5
Ficha de Leitura HESPANHA, Antonio Manuel. “Os juristas como couteiros: a ordem na Europa ocidental dos inícios da Idade Moderna”. In: HESPANHA, Antonio Manuel. A política perdida: ordem e governo antes da modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. 1. Modernidade, antes e depois O autor inicia o texto estabelecendo, com o auxílio do sociólogo Zygmunt Bauman, a diferença entre modernismo e pós- modernismo. A visão de mundo moderna baseia-se na racionalização e, sobretudo no controle (em todos os âmbitos da vida social). Por outro lado, a perspectiva pós-moderna entende o mundo fora das formas universalistas e cientificizantes tão caras ao modernismo. Para o pós-modernismo, segundo Bauman, existem diversos modelos de ordem, e cada um deles é relativamente autônomo, sendo sustentado e validado dentro de uma comunidade de significados. A metáfora de Bauman acerca dos legisladores e intérpretes é útil para se compreender a relação entre o intelectual moderno e o pós-moderno. O intelectual moderno, autoconfiante, crente em uma razão autoritária, está ligado à figura do legislador, enquanto o intelectual pós-moderno, comunicativo, compreensivo, pluralista, é representado pela imagem do intérprete. Outra metáfora trazida por Bauman é a que distingue os jardineiros dos couteiros. Segundo ele, a modernidade consistiu num processo de domesticação de culturas, fazendo com que aquilo que era selvagem se tornasse racionalizado. Em outras palavras, o processo da modernidade foi o jardineiro que tratou de transformar culturas selvagens em culturas-jardins. Já o couteiro é o contraponto à racionalidade moderna: ele permite

HESPANHA, Antonio Manuel - Ficha de Leitura

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: HESPANHA, Antonio Manuel - Ficha de Leitura

Ficha de Leitura

HESPANHA, Antonio Manuel. “Os juristas como couteiros: a ordem na Europa ocidental dos inícios da Idade Moderna”. In: HESPANHA, Antonio Manuel. A política perdida: ordem e governo antes da modernidade. Curitiba: Juruá, 2009.

1. Modernidade, antes e depois

O autor inicia o texto estabelecendo, com o auxílio do sociólogo Zygmunt

Bauman, a diferença entre modernismo e pós-modernismo. A visão de mundo

moderna baseia-se na racionalização e, sobretudo no controle (em todos os âmbitos

da vida social). Por outro lado, a perspectiva pós-moderna entende o mundo fora das

formas universalistas e cientificizantes tão caras ao modernismo. Para o pós-

modernismo, segundo Bauman, existem diversos modelos de ordem, e cada um deles

é relativamente autônomo, sendo sustentado e validado dentro de uma comunidade

de significados.

A metáfora de Bauman acerca dos legisladores e intérpretes é útil para se

compreender a relação entre o intelectual moderno e o pós-moderno. O intelectual

moderno, autoconfiante, crente em uma razão autoritária, está ligado à figura do

legislador, enquanto o intelectual pós-moderno, comunicativo, compreensivo,

pluralista, é representado pela imagem do intérprete.

Outra metáfora trazida por Bauman é a que distingue os jardineiros dos

couteiros. Segundo ele, a modernidade consistiu num processo de domesticação de

culturas, fazendo com que aquilo que era selvagem se tornasse racionalizado. Em

outras palavras, o processo da modernidade foi o jardineiro que tratou de transformar

culturas selvagens em culturas-jardins. Já o couteiro é o contraponto à racionalidade

moderna: ele permite que as culturas se reproduzam autonomamente na sua

originalidade sem intervenções artificiais.

A partir daí, Hespanha usa as contribuições de Bauman para situar sua

exposição do direito e dos juristas medievais.

2. Os juristas medievais como couteiros

A ideia de ordem, como definida por Tomás de Aquino (uma unidade

“autossustentada por meio de impulsos naturais e plurais”), é colocada pelo autor

como chave para compreendermos o direito e sua inserção no mundo. Num mundo

multiordenado, permeado pelas diversas esferas do direito, da religião, do amor, etc.,

o papel dos juristas seria o de guardiões. Os juristas tem a função de deixar o direito

ser como é, na sua espontaneidade, assim assumem a posição de couteiros.

Page 2: HESPANHA, Antonio Manuel - Ficha de Leitura

3. Uma constelação de ordens normativas

Sendo o amor o que mantinha unidas as comunidades humanas, Tomás de

Aquino parte dele para tratar das relações sociais. As obrigações e deveres derivados

dos relacionamentos humanos colocam valores que são assimilados pela ordem

político-jurídica. Mas esta era uma ordem variável, sendo que “em vez de um sistema

fechado de camadas normativas cujas hierarquias recíprocas eram definidas de uma

só vez, o direito comum era uma constelação de ordens aberta e flexível” (p.247).

4. Flexibilidade por via da graça

O direito era visto como o meio caminho entre o paraíso e a realidade,

situando-se apenas abaixo da ordem da graça. Para além dos atos de Deus, os atos

de nível político-institucional formulados pelos príncipes imitam a graça de Deus,

introduzindo “uma flexibilidade divina na ordem humana”.

A graça é um ato livre e de vontade, mas, simultaneamente, é uma decisão

arbitrária. Nessa situação a graça do príncipe não aparece como uma violação da

justiça, mas como um complemento seu.

5. Flexibilidade por via da equidade

A flexibilidade está também ligada à questão da equidade. Conforme Tomás de

Aquino, que partia da ideia de que a equidade é uma virtude anexa à justiça, “às vezes

é necessário fazer alguma coisa que vai além das regras da ação comum”, ou seja,

praticar a flexibilidade para se garantir a equidade. Nesse sentido, a equidade não se

afasta da justiça, mas tão somente daquela justiça posta pela lei, pois, segundo

Tomás de Aquino “a equidade é uma justiça melhor do que a justiça legal”.

6. Legisladores coloniais

No início da idade moderna havia uma situação de pluralismo legal entre as

metrópoles européias e suas colônias. Contudo, este princípio do pluralismo foi sendo

atenuado na medida em que os povos colonizados foram sendo representados como

bárbaros e subdesenvolvidos. Nos países católicos, a prática do colonialismo foi ainda

mais forte, o que acentuou o desrespeito às instituições jurídicas das colônias por

meio deste “colonialismo católico”. Assim a Igreja foi portadora de uma supremacia

jurídica que convivia com o poder régio e que imprimiu uma nova dinâmica política nas

colônias. Trata-se de um imperialismo jurídico.

Page 3: HESPANHA, Antonio Manuel - Ficha de Leitura

7. Conhecimento imperial

No colonialismo tardio, o direito europeu se tornou a forma geral para qualquer

ordem humana. Sob a influência do racionalismo, a ordem jurídica era interpretada

como o produto da razão humana, uma e universal. Assim, o direito assumiu um papel

colonialista que foi minando a ordenação espontânea das sociedades coloniais.

Nesse contexto, a flexibilidade significava um desvio da razão e deveria ser

eliminada pelos legisladores-jardineiros. Assim, foi realizado o processo de

“despersonalização das culturas jurídicas dissidentes numa cultura legalista”.

8. A graça impeditiva: império, humanidade e decência enquanto limites ao

autogoverno

Na prática, nas sociedades coloniais permitia-se o uso do direito costumeiro

quando este não entrava em choque com os interesses dos colonizadores. Na prática

cotidiana, como diz Hespanha, “se os magistrados não podiam aplicar a lei

metropolitana à maior parte das situações nativas, também não podiam arbitrar de

acordo com os costumes nativos, dos quais não tinham conhecimento”.

9. Uma questão prática

O programa racionalista liberal começou a ser questionado a partir de meados

do século XIX. À crítica às suas concepções estabeleceu um novo quadro de

referência intelectual que pôde conciliar a doutrina liberal com um domínio colonial

autocrático.

Houve um certo impulso para o pluralismo depois que a razão metafísica do

liberalismo foi problematizada, surgindo uma tendência antidoutrinarista que

questionou a existência de uma só legislação geral para povos em condições

diferentes. Na colônias portuguesas houve o reconhecimento do direito nativo na Índia,

em Macau, em Timor, etc.

Entretanto, o movimento da codificação empreendeu a “vingança do legalismo”.

Foram algumas “razões práticas” que promoveram a elaboração de códigos e a

purificação normativa.

10. Conclusão – voltando a Bauman: flexibilidade e ética contemporânea

Retornando a Bauman, cujo trabalho intelectual circunda o tema da ética,

verifica-se que o sociólogo polonês exclui a possibilidade de fundamentar uma ética

em torno de um projeto jurídico. Para Bauman, a consciência deve ser guiada por um

impulso moral interior. E nisso, os intelectuais tem de cumprir o papel da “clarificação

de opções, da intertradução de valores”, ou seja, desempenharem seus papéis de

Page 4: HESPANHA, Antonio Manuel - Ficha de Leitura

intérpretes. Bauman não trata muito dos juristas na sua obra. Porém, se o seu

programa ético for adotado pelos juristas, haverá uma grande mudança no modo como

se conhece o direito.