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JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES
HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO
Fortaleza, agosto de 2008.
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES
HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Linguística da Universidade
Federal do Ceará, como requisito
parcial para obtenção do Grau de
Mestre.
Orientadora: Profª. Drª. Mônica
Magalhães Cavalcante
Fortaleza, agosto de 2008.
3
Esta dissertação constitui parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de
Mestre em Linguística, outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à
disposição dos interessados na Biblioteca Central da referida Universidade.
A citação de qualquer trecho desta dissertação é permitida, desde que seja feita em
conformidade com as normas da ética científica.
Julianne Larens Lopes Fernandes
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante / UFC
(Orientadora)
Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza / UERN
(1º Examinador)
Profa. Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa / UFC
(2º Examinador)
Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin / UFC
(Suplente interna)
Prof. Dr. Francisco Alves Filho/ UFPI
(Suplente externo)
Dissertação defendida e aprovada em ___/___/_____
4
A meu Painho e a Juju, meus amores, pelo apoio incondicional sempre;
A Alcides, meu Marido Lindo, razão para tudo que faço,
Dedico.
5
AGRADECIMENTOS
_________________________________________________ A meus pais, meus amores, Wilson e Júlia, irremediáveis incentivadores, pelo apoio incondicional que
me dedicam sempre.
A meu pai, especialmente, por ter me mostrado que nem todos os ídolos têm os pés de barro: os dele
são de carne e osso.
A meu marido, Alcides, meu amor, por ABSOLUTAMENTE tudo.
À minha irmã que tanto amo, Sue, minha melhor amiga, parceira de todas as horas, que, mesmo
distante, está sempre perto.
A meu sobrinho, Pedro Ayrton, por me fazer a titia mais feliz do mundo!!!!!
A meu enteado Lucas, meu pinguinho de gente, anjinho mais querido por quem sou completamente
apaixonada, por me fazer mais feliz.
Às AMIGAS Camile, Carol, Clarissa, Karine, Michelle e Samarkandra. Fundamentais. Admiráveis.
Pelos porres, pelo incentivo, pela confiança, pela lealdade...
Aos colegas da turma de 2005, pelas aulas descontraídas e sempre produtivas, pelas discussões nada
ontológicas depois das aulas, regadas (quase sempre) à cerveja, sempre com muuuuita alegria.
À minha queridíssima orientadora, professora Drª. Mônica Magalhães Cavalcante – para mim,
Monikita -, pela confiança e incentivo dispensados a mim desde o período da graduação e por não me
ter deixado, nos momentos de fraqueza, angústia e de extrema insatisfação, desistir da carreira
acadêmica.
Ao professor Dr. José Américo Bezerra Saraiva, pelo apoio em todas as ―fases lingüísticas‖ por que
passei, pelas orientações e por ter me apresentado à Semiótica, disciplina basilar em minha formação.
Ao admirável e querido professor Dr. Fernando Pimentel – o Fernandinho! - , pelo aprendizado
constante e pelo auxílio nas traduções que constituíram este trabalho.
Às professoras Dras. Lívia Márcia Baptista e Margarete Fernandes, que vêm acompanhando meu
trabalho desde a qualificação do projeto, pelas críticas sempre pertinentes, as quais me ajudaram na
construção desta dissertação.
Ao professor Dr. Clemilton Lopes Pinheiro, por ter se colocado à disposição para ler este trabalho,
com (severas) considerações, também sempre pertinentes e de grande valia para o amadurecimento
desta dissertação.
Ao professor Dr. Francisco Auto Filho, Secretário da Cultura, intelectual admirável. Pelo exemplo de
vida; pela confiança; pela compreensão.
6
―Entre a intenção do autor e o propósito do intérprete,
existe a intenção do texto‖
(Umberto Eco)
―Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o
quanto é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com terceiros... Sem correr
o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento. Quero, um dia, poder dizer às
pessoas que nada foi em vão... que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades e às
pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim... e que valeu a pena!!!‖
(Mário Quintana)
7
RESUMO _______________________________________________________________
Procedemos, a partir dos pressupostos da Lingüística da Enunciação, à problematização do quadro das
heterogeneidades do tipo mostrada (marcada vs. não-marcada), proposto por Authier-Revuz (1982). Nossa
proposta consiste em sugerir que o escopo das ocorrências dos fatos de heterogeneidade marcada seja
flexibilizado, de modo a abarcar fenômenos de natureza (mais) cognitiva que evidenciam a presença do alheio na
materialidade lingüística num ponto específico da cadeia do dizer, promovendo, destarte, uma articulação entre
heterogeneidade mostrada/marcada e referenciação. Submetemos a um reexame, acrescentando o que nos
pareceu pertinente, um conjunto de marcas que não apenas as consagradas (como, por exemplo, negrito,
mudança de fonte, aspas, discurso direto) na tentativa de lhes conferir um estatuto de marcadores da presença
consciente do outro no fio discursivo, considerando a noção de leitor-modelo sugerida por Eco (1979). Para
tanto, elegemos como categorias principais de análise os processos referenciais anafóricos e dêiticos, o discurso
indireto livre e a intertextualidade por alusão. Nossos resultados legitimaram nossa proposta e confirmaram o
potencial marcativo de tais categorias.
Palavras-chave: Heterogeneidade enunciativa; heterogeneidade mostrada/marcada; referenciação;
processos referenciais.
8
ABSTRACT ___________________________________________________________________________
We proceed to the problematization of the frame of heterogeneities of the displayed type (marked versus not
marked) as proposed by Authier-Revuz (1982) from the assumptions of the Linguistics of Enunciation. Our
proposal consists in suggesting that the scope of the occurrences of facts of marked heterogeneity be widened in
order that it includes phenomena of a (more) cognitive nature that make evident the presence of the other in the
linguistic materialization in a specific point of the chain of the saying and, besides, articulate the displayed
marked heterogeneity and the referentiation. We reexamine, appending whatever seems to us pertinent, a set of
marks, besides those already established (e.g., bold face, font changing, inverted commas, direct speech) in an
attempt to confer them the statute of markers of the conscious presence of the other in the discursive thread,
considering the notion of model reader suggested by Eco (1979). To achieve this goal, we choose for main
categories of analysis the deictic and anaphoric referential processes, the free indirect speech and the
intertextuality by allusion. Our results legitimize our proposal and confirms the marking potential of such
categories.
Keywords: Enunciative heterogeneity, displayed/marked heterogeneity; referentiation; referential
processes.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................... 11
CAPÍTULO I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS........................................... 17
1.1 Delimitação do campo: a linguistica da enunciação........................................ 17
1.1.2 a) O lugar do sujeito na Linguística da
Enunciação.............................................
18
1.2 A Enunciação................................................................................................... 19
1.2.1 Bakhtin: o precursor......................................................................................... 19
1.2.2 Benveniste: ―a exceção francesa‖.................................................................... 22
1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem......................................................... 22
1.2.2.2 A instauração de subjetividade......................................................................... 24
1.3 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade...................................................... 26
1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo............................................................. 30
CAPÍTULO II: HIPÓTESES E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS.....................................................................................
33
2.1 Delimitação do universo................................................................................... 33
2.2 Questões de pesquisa........................................................................................ 34
2.3 Procedimentos metodológicos.......................................................................... 35
2.3.1 Etapas do trabalho............................................................................................ 35
CAPÍTULO III: HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA...................... 38
3.1 Balizagem teórica: filiação............................................................................... 38
3.1.1 Benveniste: os estudos enunciativos................................................................ 38
3.1.2 Rey-Debove: conotação autonímica................................................................. 39
3.2 Heterogeneidade teórica: a convocação de exteriores...................................... 41
3.2.1 Bakhtin: o dialogismo...................................................................................... 43
3.2.2 Psicanálise freudo-lacaniana: o Outro.............................................................. 43
3.2.3 Pêcheux: a noção de interdiscurso................................................................... 46
3.3 Heterogeneidade enunciativa: modalidades..................................................... 51
3.3.1 Heterogeneidade constitutiva........................................................................... 52
3.3.2 Heterogeneidade mostrada............................................................................... 53
3.4 Heterogeneidade mostrada, intertextualidade stricto sensu e marcação: uma
implicação........................................................................................................
55
3.4.1 O conceito fundador de Kristeva...................................................................... 56
3.4.2 A taxionomia das transtextualidades de Genette.............................................. 58
3.4.3 As relações de co-presença e de derivação de Piégay-Gros............................. 59
3.4.4 A abrangência conceitual da intertextualidade em Maingueneau.................... 64
CAPÍTULO IV: REFERENCIAÇÃO.......................................................... 67
4.1 Conceito e processos........................................................................................ 67
4.1.1 Introdução referencial...................................................................................... 70
4.1.2 Continuidades referenciais............................................................................... 71
4.1.2.1 Anáfora direta................................................................................................... 72
4.1.2.1.1 Recategorização............................................................................................... 73
4.1.2.2 Anáfora indireta................................................................................................ 76
4.1.2.3 Anáfora encapsuladora com dêitico................................................................. 78
4.2 Heterogeneidade não-marcada e leitor-modelo................................................ 79
CAPÍTULO V: ANÁLISE............................................................................. 81
10
5.1 Considerações Preliminares............................................................................. 81
5.2 Análise.............................................................................................................. 83
5.2.1 Dêiticos memoriais.......................................................................................... 83
5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais......................................................................... 91
5.2.3 O Discurso indireto livre.................................................................................. 94
5.2.4 Recategorização............................................................................................... 95
5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora indireta............................................... 97
CONCLUSÃO................................................................................................ 102
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................... 107
11
INTRODUÇÃO ____________________________________________________________
O que será que me dá?
Que me bole por dentro, será que me dá?
Que brota à flor da pele, será que me dá?
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular [...]
O que será que será?
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar [...] E uma aflição medonha me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
O que não tem juízo.
(Chico Buarque)
Esta pesquisa tem o propósito maior de reconsiderar o conceito e a caracterização do
fenômeno descrito por Authier-Revuz (1982) como heterogeneidade mostrada e sua
bipartição em marcada e não-marcada. A preocupação central dessa nossa análise é submeter
a um reexame mais criterioso casos particulares de heterogeneidade, tal como ilustrados por
Authier-Revuz (1982,1990).
O estudo que estamos empreendendo justifica-se porque a literatura sobre o assunto
não discute os critérios utilizados para se definir algo como sendo da ordem do marcado ou do
não-marcado, nos termos de Authier-Revuz. Parte-se do já estabelecido, ou seja, das
marcações formais já instituídas que identificam irrupção do outro no fio discursivo, o que,
para nós, é bastante inquietante.
O objetivo geral deste trabalho, cuja temática se dá em torno da heterogeneidade
enunciativa, é o de sugerir que, em se tratando de casos de heterogeneidade mostrada-
marcada, outros mecanismos, além dos consensualmente aceitos na literatura (aspas, negrito,
itálico, mudança de fonte etc), que tornam manifesta a mostração da presença do outro na
materialidade linguística, sejam legitimamente considerados como portadores de potencial
marcativo. Esses outros mecanismos serão defendidos baseados, sobretudo, nos processos de
referenciação. Os objetivos específicos a ele atrelados são bastante esclarecedores em relação
a nosso propósito maior:
12
b) Propor formas de marcação de heterogeneidade mostrada marcada, que não apenas as
consagradas e aceitas consensualmente pela literatura;
c) Incluir processos referenciais de natureza anafórica e / ou dêitica entre os casos
marcados da modalidade mostrada de heterogeneidade;
d) Estabelecer relações entre heterogeneidade mostrada do tipo marcada,
intertextualidade por alusão e processos referenciais;
e) Reexaminar os casos ditos não-marcados de heterogeneidade mostrada, questionando
a classificação da heterogeneidade mostrada (marcada vs. não-marcada).
No capítulo primeiro desta dissertação, situamos a vertente linguística de que nosso
trabalho é tributário, a saber, o arcabouço teórico dos Estudos da Enunciação.
Em se tomando os estudos da enunciação como base epistemológica, estuda-se, em
última instância, a relação que um texto, entendido em um sentido mais amplo, estabelece
com seu leitor. Estudos dessa natureza envolvem, num primeiro plano, a proposta de leitura
que o próprio texto sugere, por si só, ao seu leitor. Incluem, num segundo plano, a relação
interativa que se dá, por meio do texto, entre o enunciador e o co-enunciador/leitor. Em
termos mais técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de
estruturas semióticas virtuais.
No interior desses estudos que tomam a enunciação por objeto, seguiremos os
pressupostos do que Flores (2001) chama de Linguística da Enunciação. O autor apresenta
uma proposta epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em
teorias da enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação.
A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da
ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, se inclui o sujeito -, porque, sempre que a
língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.
Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado
que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que
não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador que vê a língua como tendo
ordem própria, mas que prevê um sujeito que a atualize a cada instância de uso.
Pelo menos dois dos estudiosos que pensaram a enunciação de modo a promover
inovações no campo dos estudos que toma por objeto a enunciação foram inseridos neste
13
capítulo. O primeiro é Bakhtin – indiscutivelmente, o precursor –, para quem a enunciação foi
entendida como a unidade real da cadeia verbal que está em constante evolução, já que as
relações sociais assim estão; e como um todo que se presentifica no discurso como atividade
ininterrupta de linguagem, que atende aos objetivos sociais da comunicação. O outro é
Benveniste, o primeiro a produzir uma teoria da enunciação, com seu célebre entendimento
respeitante a esta instância: ―a enunciação é a colocação em funcionamento da língua por um
ato individual de utilização‖ (BENVENISTE, 1974, p.82), incluindo aí, portanto, a
subjetividade.
Já aqui, começamos a enxertar a noção de heterogeneidade instalada por Authier-Revuz
(1982) no âmbito dos estudos enunciativos. Para ela, a heterogeneidade é vista e detectada em
duas dimensões: a constitutiva e a marcada.
Ainda neste capítulo, esboçaremos o que diz Umberto Eco acerca de certa instância
pressuposta que emerge de todo e qualquer texto: o leitor-modelo. Isso porque as
considerações que tece sobre essa instância apóiam nosso posicionamento frente a uma das
questões que estamos defendendo: se há manifestação textual de determinado fenômeno que
marca a voz do outro no fio discursivo, é porque há marcação; se o co-enunciador / leitor não
mantiver com o texto (ou com parte dele) certa ―intimidade‖ - não sendo, portanto, seu leitor-
modelo -, tal fenômeno não deixará de estar ali, ―apenas‖ será ignorado, o que,
necessariamente, não prejudica a construção global do sentido daquele texto.
Os princípios metodológicos por que se pauta nossa análise vêm explicitados no
capítulo II. Especificamos e detalhamos cada uma das seis etapas – recensão bibliográfica,
descrição das categorias de análise, identificação dos fatos de heterogeneidade nos processos
referenciais e na intertextualidade por alusão, delimitação e a quantificação do exemplário de
textos (não trabalhamos exatamente com um corpus, senão apenas com um exemplário) –
tudo por que passamos para chegarmos ao resultado que justifica nossos esforços, a saber, a
articulação entre heterogeneidade mostrada/marcada e processos referenciais anafóricos e
dêiticos.
No capítulo subseqüente, enquadraremos nossa pesquisa nos estudos enunciativos
empreendidos por Jacqueline Authier-Revuz, a partir da década de 80, que se inscrevem na
campo da dita Linguística da Enunciação. A autora situa-se, como veremos, nos quadros das
teorias enunciativas de base saussuriana e da abordagem da metalinguagem, tal como
empreendida por Rey-Debove (1978). No campo da enunciação, filia-se a Bally, Benveniste e
Culioli.
14
Na seção destinada especificamente à tese de Authier-Revuz, demos destaque àquilo
que nos interessa mais de perto: a esquematização, proposta pela autora, da heterogeneidade
enunciativa, sobretudo no que tange às formas de mostração / marcação dessa
heterogeneidade.
Veremos que Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da
heterogeneidade. A primeira, constitutiva, remete à presença do Outro diluída no discurso,
não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro, condição mesma do
discurso. A segunda, a heterogeneidade mostrada, marca o discurso de modo a criar um
mecanismo de distanciamento entre o sujeito e aquilo que ele diz. Esta última forma de
heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando marcada, é da ordem da
enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as
palavras entre aspas, o uso de itálico, a citação. Se não-marcada, então, é da ordem do
discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.
Nossa pesquisa está centrada no heterogêneo manifesto, ou seja, nas formas de
mostração da presença do outro no discurso. Nosso questionamento incide sobre a forma dita
não-marcada da heterogeneidade mostrada. O fato de mecanismos de inscrição do outro no
enunciado, que, por não serem formalmente flagrantes, terem de ser entendidos como formas
não-marcadas, embora mostradas, da presença da alteridade em determinado discurso,
ocupará o foco de nossa discussão.
Ainda neste capítulo, reunimos algumas considerações acerca de processos
intertextuais, vez que este procedimento constará de nossa argumentação em favor de uma
flexibilidade em se tratando da mostração do alheio no heterogêneo do fio.
O quarto capítulo tratará da referenciação e de seus processos: introdução referencial,
anáfora direta, anáfora indireta, procedimentos dêiticos. Inauguramos este capítulo porque é
basicamente pelos processos referenciais aí descritos que pautaremos nossa categoria
analítica, para argumentar que a discretização das modalidades de heterogeneidade mostrada
produz um fechamento no que tange às estratégias de que dispõem os sujeitos para marcar a
presença do outro em seus dizeres; as possibilidades de o sujeito mostrar a marcação de seu
dizer, previstas por Authier-Revuz, estão restritas ao expediente formal mais convencionado
na literatura (aspas, itálico, negrito, mudança de fonte, discurso direto), posicionamento do
qual discordamos. Em favor de nosso pensamento, apresentamos o caso dos processos
referenciais anafóricos e dêiticos. Para nós, as várias maneiras de marcação – vez que
defenderemos que estratégias desse tipo configuram um texto como marcado – são
inteiramente legítimas, já que passíveis de serem identificadas. Ocorre que tal identificação se
15
dará por vias não prototípicas de acesso à maneira pela qual o sujeito opta por marcar a
―alteração‖ em seu discurso. Traremos à baila, também, a intertextualidade stricto sensu por
alusão e o discurso indireto, fenômenos que estamos entendendo como recursos de marcação
do heterogêneo.
No capítulo destinado à análise, quinto e último, reivindicamos que os procedimentos
retrocitados apresentam, também, potencial marcativo. Assim sendo, não se justificaria, no
quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada heterogeneidade mostrada não-marcada.
A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada
(marcada vs. não-marcada), redescrevemos (acrescentando o que nos pareceu pertinente) um
conjunto de marcas, que não apenas as consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas,
discurso direto), como sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio
discursivo.
O ponto alto de nosso trabalho, concentrado neste último capítulo, dar-se-á quando de
nossa proposta para que seja alargado o horizonte de possibilidades de mostração-marcação
da irrupção do alheio na materialidade linguística, já que colocamos em questão que outras
formas de marcação têm sua legitimidade calcadas na inter-ação entre os interlocutores. Isso
porque nossa argumentação se fundamenta na crença de que há um contrato fiduciário
interferindo no discurso dos sujeitos, consoante o qual outros procedimentos, que não apenas
aqueles mais tipograficamente visíveis, são acionados quando se quer, conscientemente,
sinalizar a presença do heterogêneo no fio discursivo: procedimentos de natureza referencial,
por exemplo.
Importante, desde já, é esclarecer que não tomamos como pretensão verificar, em
nossas análises, a presença do Outro – o inconsciente – que atua no fio discursivo, marcando-
o. Limitamo-nos a reconhecer como inteiramente legítimas as marcações promovidas por Ele,
vez que assumimos, em consonância com Authier-Revuz, a concepção da fissura radical do
sujeito: de sua clivagem, portanto. Conquanto esta instância faça parte do aparato teórico de
cujo escopo estamos nos servindo, pensamos que isso só seria possível, por coerência com os
pressupostos psicanalíticos freudo-lacanianos, se fosse uma análise do próprio indivíduo,
realizada por um especialista, no caso, o psicanalista.
Concluímos nosso trabalho atestando, com base nas análises a que procedemos, todas
as nossas hipóteses, comprovando o potencial mostrativo-marcativo dos processos
referenciais de natureza anafórica e dêitica, os quais sustentamos serem eficazes mecanismos
de marcação que opacificam um ponto específico do fio discursivo.
16
Nas considerações finais, lançamos a sugestão de um estudo que, tomando por base a
crença em nossos resultados, se proponha elaborar critérios a partir dos quais se construa uma
escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia mostrativa vigente de
heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada, contemple desde o discurso
mais formalmente marcado e, portanto, (mais) explicitamente marcado - já que carregam
consigo marcas ―exteriores‖ ao signo linguístico propriamente dito -, até aquele que é também
explicitamente marcado, mas que, como vimos em nossa análise, materializa de maneira
diferente a irrupção do Não-Um na superfície textual.
17
CAPÍTULO I
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS _____________________________________________________________________________________
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
(Caetano Veloso)
1.1 Delimitação do campo: a linguística da enunciação
O arcabouço teórico que embasará nossa pesquisa se inscreve na vertente linguística
dos estudos da enunciação. Esse campo trata, em última instância, da relação que um texto,
entendido em um sentido mais amplo, estabelece com seu leitor. Envolve, num primeiro
plano, a proposta de leitura que o próprio texto (linguístico e não-linguístico) sugere, por si
só, ao seu leitor (observador ou espectador). Inclui, num segundo plano, a relação
comunicativa que se dá, por meio do texto, entre o seu autor e o leitor. Em termos mais
técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de estruturas
semióticas virtuais.
Em oposição às várias vertentes da Linguística que se servem de teorias da
enunciação, Flores (2001) postula ser possível individuar, dentre os vários estudos que se
pretendem enunciativos, uma dita Linguística da Enunciação. O autor apresenta uma proposta
epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em teorias da
enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação. Destarte,
haveria traços comuns entre as abordagens enunciativas, de modo que se poderia pensar em
um objeto próprio da Linguística, o que não significa propor a hierarquização de teorias, mas
instituir um ponto de vista segundo o qual, respeitadas as diferenças, é possível vislumbrar
uma unidade em meio à diversidade1.
A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da
ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, inclui-se o sujeito -, porque, sempre que a
língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.
1 Cf. Princípios para a definição do objeto da Linguística da Enunciação. In: Estudos sobre a enunciação,
texto e discurso. BARBISAN, L.B. & FLORES, V. (Orgs.), 2001.
18
Em Flores (2001), vemos a defesa de um objeto da Linguística da Enunciação que,
embora vinculado à dicotomia saussuriana langue / parole, não deriva nem de sua negação,
nem de sua afirmação absolutas. Para o autor, os fenômenos estudados nas teorias da
enunciação pertencem à língua, mas não se encerram nela; pertencem à fala na medida em
que só nela e por ela têm existência e questionam a existência de ambas, já que emanam das
duas. Uma definição que julgamos bastante pertinente encontra-se em Lahud (1979, p. 98)
[...] A Linguística da Enunciação visa não somente a um fenômeno
que não pertence à ‗fala‘, mas justamente a um fenômeno cuja
existência compromete a própria distinção língua-fala em algumas de
suas postulações. Nem da ordem da língua, nem da ordem da fala [...],
mas da própria linguagem enquanto atividade regrada (portanto
coletiva) linguisticamente: eis o que é revelado sobre a natureza dessa
linguística quando se diz que ela não estuda nem os componentes da
matéria-linguagem que fazem parte do objeto de outras ciências não
propriamente linguísticas (Fisiologia, Física, Psicologia etc.), nem as
variações que sofre o sentido dos signos do sistema quando assumido
pelo locutor num ato individual de produção, mas a enunciação
enquanto centro necessário de referência do próprio sentido de certos
signos da língua.
Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado
que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que
não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador: ―a crença na língua como
ordem própria que precisa ser atualizada pelo sujeito a cada instância de uso‖. (Cf. p. 106).
No interior desse campo teórico – o dos Estudos da Enunciação -, enquadraremos nossa
pesquisa nos estudos enunciativos empreendidos por Jacqueline Authier-Revuz, a partir da
década de 80. A autora situa-se nos quadros das teorias enunciativas de base saussuriana e da
metalinguagem, tal como empreendida por Rey-Debove (1978). No campo da enunciação,
filia-se a Bally, Benveniste e Culioli.
Não podemos falar da instância enunciativa sem fazer alguns detalhamentos acerca
daquele que a enuncia. A seção seguinte foi inaugurada para fazermos algumas especificações
respeitantes ao sujeito da linguística da enunciação.
1.1.2 O lugar do sujeito na Linguística da Enunciação
Quanto ao tratamento dispensado ao sujeito, vale a ressalva de que o estudo que se faz é
o da enunciação do sujeito e não o do sujeito em si. Aqui, a abordagem dessa entidade exige
19
que sejam convocados exteriores teóricos. É exatamente o que faz a autora em cujo aporte
teórico ancoramos nossa pesquisa. Authier-Revuz fundamenta sua perspectiva de abordagem
do sujeito no que chama de heterogeneidade teórica e convoca, para o tratamento dessa
instância, o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise freudo-lacaniana, como veremos adiante
(cf. item 3.2.2 deste trabalho). Para ela, considerar essa instância exige que seja feita uma
―necessária referência preliminar a pontos de vista exteriores que fundamentam essa
heterogeneidade constitutiva do discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.11).
Situar-se no campo da Linguística da Enunciação é tratar o sujeito como a representação
que a enunciação faz erigir em relação a ele e não tomá-lo como objeto de estudo dentro de
determinada teoria. Nesse sentido, posiciona-se Flores (2001)2:
A linguística da enunciação toma para si não apenas o estudo das
marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua
produção: ao sujeito, tempo e espaço. A linguística da enunciação
deve centrar-se no estudo das representações do sujeito que enuncia e
não do próprio sujeito, objeto de outras áreas. (p.59).
Desta feita, a enunciação se define, aqui, como uma reflexão sobre o dizer (produzido
pelo sujeito) e não exatamente sobre o dito (sujeito em si), o que não quer dizer que este seja
preterido pelos linguistas da enunciação, como pode aparentar. Esse dito é relevante na
medida em que é por intermédio do sujeito que diz que alcançamos o dizer e, por conseguinte,
a enunciação.
1.2 A Enunciação
Achamos por bem mencionar, neste momento do trabalho, as considerações de
Benveniste e de Bakhtin acerca da instância enunciativa, por entendermos que a corrente
teórica a que estamos nos filiando parte dessas considerações para estabelecer seu campo.
Estes dois autores, como veremos adiante, servem de pressuposto para os estudos de Authier-
Revuz, especificamente a autora que suscitou esta pesquisa, o que reforça a utilidade da
―descrição‖ do pensamento dos autores que apresentaremos a seguir.
1.2.1 Bakhtin: o precursor
2 Importa esclarecer que Flores considera absolutamente legítima a teoria enunciativa que busca dizer algo
acerca do sujeito (para um detalhamento do que pensa o autor sobre o estudo do sujeito, ver FLORES, 1999)
20
Antes de detalharmos as influências de Authier-Revuz, cumpre remontar aos estudos
bakhtinianos, vez que a contribuição dos estudos de Bakhtin influenciou ou antecipou as
principais orientações teóricas dos estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos,
sobretudo, nas últimas três décadas. Suas ideias acerca da linguagem trazem elementos que,
de algum modo, contribuem para o estabelecimento de uma linguística da enunciação e que
contemplam a intersubjetividade no âmbito dos estudos sobre a linguagem, quando a
distinção entre tema e significação é relacionada ao problema da compreensão;
compreendemos os enunciados de outrem quando ―reagimos àquelas [palavras] que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida‖ (BAKHTIN, 1992, p.95).
Compreender, portanto, não é o mesmo que decodificar a forma linguística e nem equivale a
um processo de identificação. Trata-se da interação dos significados das palavras e seu
conteúdo ideológico, não só do ponto de vista enunciativo, mas também do ponto de vista das
condições de produção e da interação dos interlocutores.
A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em
conexão com problema da compreensão [...] Qualquer tipo genuíno de
compreensão deve ser ativo e deve conter já o germe de uma resposta.
Somente a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a
evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro
processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa
orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no
contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos
em processo de compreender fazemos corresponder uma série de
palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma
forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica
está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor
uma ―contrapalavra‖. (BAKHTIN, 1992, p.131).
O princípio norteador do pensamento bakhtiniano é o dialogismo. ―A alteridade define
o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no
homem fora das relações que o ligam ao outro‖ (BAKHTIN, 1992, p.36). A vida é dialógica
por natureza, diz ele; se a vida é dialógica, isso não excluiria linguagem, seja ela pensada em
termos de língua ou de discurso.
A maneira como concebeu a linguagem - não como um sistema de categorias
gramaticais abstratas, mas como uma realidade axiologicamente saturada; não como um ente
gramatical homogêneo, mas como um fenômeno sempre estratificado - anunciou a fundação
de uma linguística que promoveria a enunciação a centro de referência do sentido dos
fenômenos linguísticos, entendendo-a como evento, sempre renovado, por intermédio da qual
21
o locutor se institui na interação viva com vozes sociais3. A partir da noção de recepção /
compreensão ativa proposta por Bakhtin, podemos perceber o movimento dialógico da
enunciação - território comum do locutor e do interlocutor. O locutor enuncia em função da
existência real ou virtual de um interlocutor, requerendo, por parte deste último, uma atitude
responsiva, como que antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, experimentando o lugar do
outro. Em contrapartida, quando recebemos uma enunciação significativa, esta nos propõe
uma réplica (concordância, apreciação, ação etc). A inteligibilidade enunciativa dá-se
exatamente porque colocamos a enunciação no movimento dialógico dos enunciados, em
confronto tanto com os nossos próprios dizeres quanto com os dizeres alheios.
Quanto às concepções de enunciado / enunciação, conceitos tão utilizados na área dos
estudos da linguagem e que apresentam uma grande polissemia de definições e empregos
conforme a teoria a que são vinculados, além de ocuparem lugar central na concepção de
linguagem que rege seu pensamento, até porque ―é concebida [a linguagem] de um ponto de
vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a
comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela envolvidos‖ (BRAIT & MELO, 2005,
p.65), não são definidos de forma pontual: trata-se, em verdade, de uma construção paulatina.
É em Marxismo e filosofia da linguagem (2002) que a noção de enunciação começa a
ganhar eco como sendo de natureza constitutivamente social e histórica e que, por isso
mesmo, está inevitavelmente ligada a enunciações anteriores e posteriores, produzindo e
fazendo circular discursos. Consoante Bakhtin (1992), a instância enunciativa resulta da
interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto
sócio-ideológico no qual cada um dos interlocutores ocupa um lugar social bem definido,
pensado e dirigido a um ―auditório‖ também definido. Desse modo, a enunciação procede de
alguém e se destina a alguém. Toda enunciação, nesse sentido, propõe uma réplica, uma
reação.
O enunciado, para Bakhtin4, compreende três fatores: (i) o horizonte espacial comum
dos interlocutores; (ii) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos
interlocutores; (iii) sua avaliação comum dessa situação. Nesse sentido, o enunciado e as
peculiaridades de sua enunciação pressupõem um processo interativo, em outras palavras, ―o
verbal e o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um contexto
maior histórico, tanto no que diz respeito a aspectos (enunciados, discursos, sujeitos etc.) que
3 Expressão introduzida por Bakhtin no texto O discurso no romance para se referir aos complexos semiótico-
axiológico com os quais determinado grupo humano diz o mundo. 4 Cf. O discurso na vida e o discurso na arte (apud BRAIT & MELO, 2005, p.77).
22
antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta adiante‖.(BRAIT & MELO,
2005, p.67).
1.2.2 Benveniste: ―a exceção francesa‖ 5
A teorização acerca da enunciação ganhou impulso na França, na década de 60, a
partir dos estudos de Benveniste (1966, 1974) sobre essa instância. O linguista francês propôs
o estudo da subjetividade na língua, vinculando-a à noção de enunciação, tratada como
instância produtora do enunciado. Vale assinalar a distinção entre o modo como a enunciação
é compreendida em Benveniste e em Bakhtin. Enquanto a perspectivação benvenistiana
contempla o entorno mais imediato da comunicação, já que leva em conta como instâncias da
enunciação o locutor, o tempo e o lugar em que ocorre a produção do enunciado, vemos, em
Bakhtin (cf. item 1.2.1), a enunciação tratada de um ponto de vista bem mais amplo, de vez
que tal instância, situada numa dimensão discursiva, pressupõe o processo interativo, a
relação social estabelecida dialogicamente entre os indivíduos, bem como o contexto
histórico-cultural em que está imersa, compreensão que confere a essa instância um caráter
constitutivamente sócio-histórico.
Os estudos sobre a enunciação, em geral, e particularmente a teoria enunciativa
proposta por Benveniste, trazem para o cenário das preocupações linguísticas - sem, em
absoluto, desconsiderar as proposições estruturalistas anteriores - o sujeito, personagem tido
como secundário pela linguística saussuriana. Com a noção de subjetividade, outras também
emergiram: as noções de sentido e de contexto (―referente‖); juntas, essas noções
possibilitaram uma outra perspectivação quanto ao modo de pensar a língua / linguagem.
1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem
A perspectiva de entendimento de língua de Benveniste se diferencia da de Saussure,
já que a vê como essencialmente social, concebida no consenso coletivo. Para o teórico da
enunciação, ―[...] somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui o que
mantém juntos os homens, o fundamento de todas as relações que, por seu turno,
fundamentam a sociedade.‖ (BENVENISTE,1989, p. 63). Já Saussure, o fundador da
linguística moderna, pensava a língua como um código fechado em si mesmo, estruturado por
signos. A forma como Benveniste pensou a língua advém do seu entendimento de signo.
5 Dosse (1993) assim se referia a Benveniste pelo fato de ter suposto em seu estudo acerca da enunciação sujeito
e estrutura articulados.
23
Considerando sua forma de significação, propõe dois planos de sentido: o semiótico e o
semântico. No primeiro, comungando com o pensamento saussuriano, está o signo
significando no sistema; o autor define o signo como uma unidade semiótica, ou seja,
elemento necessariamente de dupla relação, cuja unidade – porque decomponível do todo que
é a linguagem - é submetida (porque limitada à ordem da significação) a uma ordem
semiótica. No segundo plano, há a expressão do sentido resultante da relação do signo com o
contexto, ou seja, o modo de significar do enunciado; o critério utilizado para matizar este
segundo nível é o da comunicação para definir a palavra como a unidade de operações
sintagmáticas que se realizam no nível da frase6. Para o autor, essa forma de significar resulta
numa concepção da língua como trabalho social. Assim, Benveniste vê a língua no seio da
sociedade e da cultura porque, para ele, o social é da natureza do homem e da língua.
O entendimento de língua, tal como nos apresenta Benveniste, também vai refletir-se
na concepção de linguagem que ancora seu pensamento, que não é compreendida como
aquela que serve de instrumental comunicativo ao homem, mediadora do processo
comunicativo. Em seu estudo Da subjetividade na linguagem, Benveniste (1988, p.285) é
enfático quando rejeita essa noção de linguagem, dizendo-nos que ―falar de instrumento é pôr
em oposição o homem e a natureza [...] e a linguagem está na natureza do homem‖,
mostrando que não se pode mais conceber a linguagem e o indivíduo dessa forma, e continua:
Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos
nunca inventando-a (sic). Não atingimos jamais o homem reduzido a
si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem
falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro
homem, é a linguagem que ensina a própria definição do homem.
Na verdade, essa concepção aponta para um indivíduo à margem da linguagem. O que
o autor propõe, então, é que linguagem seja vista como algo que dá ao indivíduo o estatuto de
sujeito. Pensada sob esse prisma, a linguagem passa a ser uma espécie de lugar de emergência
da instância subjetiva, que transpõe o indivíduo à condição de falante propriamente dito, de
sujeito.
Esse modo de ver a linguagem desenvolvido na teoria da enunciação postulada por
Benveniste amplia os horizontes dos estudos sobre a linguagem rumo a uma nova
perspectivização.
6 Lembramos que os termos ―palavra‖ e ―frase‖ adquirem, no contexto de seu pensamento, o sentido amplo de
―discurso‖ ou de ―língua em ação‖ e não o sentido canônico dado pelas teorias do léxico e da sintaxe.
24
1.2.2.2 A instauração da subjetividade
Benveniste, em seus estudos sobre a enunciação, não tencionou elaborar uma teoria
cujo objeto fosse o sujeito. Sua preocupação insidia sobre a significação. Conquanto não fosse
de sua pretensão debruçar-se particularmente no sujeito, sua maior contribuição para a
linguística moderna acabou sendo a questão da subjetividade. Ela veio à tona porque é
inevitável seu chamamento em se tratando de estudos que versem sobre linguagem e sentido.
Dessa forma, o sujeito inevitavelmente ocupou o cerne da sua teoria da enunciação.
Nos termos de Benveniste (1988, p.286), a subjetividade é entendida como ―a
capacidade do locutor para se propor como ‗sujeito‘[...], como a unidade psíquica que
transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da
consciência‖. Essa proposta de sujeito tem como condição a linguagem: trata-se de uma
implicação. ―É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito;
porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade, que é a do ser, o conceito
de ‗ego‘‖ (p.286). Assim sendo, a propriedade da subjetividade é determinada pela pessoa e o
por seu estatuto linguístico. Além disso, para o autor, a subjetividade é percebida
materialmente num enunciado através de algumas formas (dêixis, verbo) que a língua
empresta ao indivíduo que quer enunciar; ao fazê-lo, institui-se ele mesmo como sujeito.
Benveniste classifica essas marcas linguísticas que têm o poder de expressar a subjetividade -
os pronomes e o verbo – como dêiticas, integrando essas duas classes de palavras à categoria
de pessoa do discurso.
Ao instaurar essa categoria, Benveniste define as pessoas do discurso. Considera eu /
tu como as autênticas pessoas em oposição a ele – a não-pessoa. As pessoas eu / tu se
caracterizam como categorias de discurso que só ganham plenitude quando assumidas por um
falante na instância discursiva. Essa tomada é sempre única, móvel e reversível, representando
a (inter)subjetividade na linguagem. A terceira pessoa (a não-pessoa, ele), ao contrário, é um
signo pleno, uma categoria da língua, que tem referência objetiva com valor independente da
enunciação, declarando, portanto, a objetividade. A oposição entre os participantes do diálogo
e os não-participantes resulta em duas correlações: pessoalidade e subjetividade. A correlação
de personalidade opõe a pessoalidade, presente em eu / tu, e a não pessoalidade, presente em
ele; enquanto que a correlação de subjetividade descreve a oposição existente entre o eu
(pessoa subjetiva) e o não-eu (pessoa não-subjetiva). Tais correlações se estendem aos
pronomes no plural que, nessa teoria, significam mais que pluralização. É assim que
25
Benveniste inova ao dizer que os pronomes pessoais no plural não expressam somente plural.
É o caso de nós e vós. Somente eles — por não apresentar marca de pessoa — indica
verdadeiro plural. Define, ainda, o nós como inclusivo (união de um eu, pessoa subjetiva, a
um tu / vós, pessoa não subjetiva) e como exclusivo (eu, pessoa + ele(s), não-pessoa). Não
podem significar plural porque não demonstram a repetição da mesma pessoa. No caso do
nós, não há soma de diferentes pessoas e não há repetição de ―eus‖; no caso do vós, no sentido
coletivo ou de cortesia, não há soma de vários ―tus‖. Então, o fato a que chama atenção
Benveniste é que os pronomes não devem ser mais considerados como uma ―classe unitária‖
no que se refere à forma e à função. O autor diferencia o aspecto formal dos pronomes,
pertencente à parte sintática da língua, do aspecto funcional, considerado característico da
instância do discurso, ou seja, da enunciação. Quer dizer, os pronomes se configuram numa
classe da língua que opera no formal, sintático, e no funcional, pragmático. A partir dessa
linha de raciocínio, os pronomes devem ser entendidos também como fatos de linguagem,
pertencentes à mensagem (fala), às categorias do discurso, e não apenas como pertencentes ao
código (língua), às categorias da língua, como considerava o linguista genebrino. Essa visão
dos pronomes, também como categoria de linguagem, é dada pela posição que nela ocupam.
Desse modo, acredita-se que, para encontrar e tentar entender o sujeito e suas
representações na teoria enunciativa de Benveniste, é necessário partir da categoria de pessoa.
De acordo com Gomes (2004), ―a subjetividade é vista como uma propriedade da língua
realizável pela categoria de pessoa‖. Da mesma forma, Santos (2002, p.25) afirma que:
O fundamento da subjetividade repousa sobre a categoria de pessoa
presente no sistema da língua; todavia essa subjetividade depende da
inversibilidade do par eu-tu, a qual assegura um fator fundamental na
atribuição de sentido à categoria de pessoa - a intersubjetividade.
Segundo Benveniste (1989, p.87), ―o que caracteriza a enunciação é a acentuação da
relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo‖. Isso
determina a estrutura do quadro figurativo da enunciação, o do diálogo, que tem
obrigatoriamente um eu e um tu. Os dois participantes alternam-se nas funções,
caracterizando-se como parceiros e protagonistas da situação de enunciação; é exatamente
esse movimento que cria uma relação intersubjetiva entre as pessoas do enunciado.
A partir dessas considerações, veremos de que modo particularmente nossa autora se
serve do pensamento bakhtiniano e do benvenistiano, bem como do de outros autores, para
formular sua teoria da heterogeneidade enunciativa (cf. itens 3.3.1 e 3.2.1 deste trabalho).
Diferentemente dos outros autores que contribuem para a fundamentação dessa teoria,
26
Bakhtin e Benveniste figuram neste capítulo porque se debruçaram sobre a enunciação de
modo a lhe imprimir um olhar inovador, o que promoveu, de certa forma, uma abertura para
estudos enunciativos que consideram o sujeito da enunciação – como é nosso caso -,
sobretudo Benveniste, que tomou especificamente esta instância como objeto para seu estudo.
1.2 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade
Para Authier-Revuz (1982), a dimensão do heterogêneo na enunciação se impõe sob
dois planos: o dos fatos de heterogeneidade, nas realizações linguísticas, e o da
heterogeneidade teórica, que afeta necessariamente o campo enunciativo.
Entendo, dessa forma, o inevitável não-fechamento do linguístico
sobre ele mesmo no sentido formal, que proíbe falar de enunciação
sem se apoiar – quer isso seja dito explicitamente ou não – em
teorizações exteriores, particularmente sobre o sujeito. (p.173).
Ao teorizar sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem, articula este conceito à
noção de dialogismo bakhtiniano. Segundo a autora, por trás de uma aparente linearidade, da
emissão ilusória de uma só voz, outras vozes ecoam. O diferencial entre a teoria bakhtiniana e
a proposta por Authier-Revuz está relacionado à incorporação, por parte desta última, da
psicanálise freudo-lacaniana – a noção de inconsciente – em seu escopo teórico. A própria
autora, ao se referir diretamente ao ―outro de Bakhtin‖, comenta que:
O outro de Bakhtin, aquele dos outros discursos, o outro-interlocutor,
pertence ao campo do discurso, do sentido construído, por mais
contraditório que seja, em discurso, com palavras ‗carregadas de
história‘; o Outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um
sentido ‗desconstruído‘ no funcionamento autônomo do significante, o
Outro que abre uma outra heterogeneidade no discurso – de uma outra
natureza – que não aquela que estrutura o campo do discurso para
Bakhtin, está ausente do horizonte deste. Há aí uma radical
heterogeneidade, que parece ser recusada, nessa teoria da
heterogeneidade que quer ser dialogismo. (AUTHIER-REVUZ, 1982,
p.43).
A heterogeneidade constitutiva do discurso seria, portanto, mais abrangente que o
dialogismo, no sentido de que contempla não ―apenas‖ o outro social, à maneira de Bakhtin,
mas também o Outro, que é da ordem de uma alteridade radical – o inconsciente. ―Em
27
Bakhtin, o outro (interlocutor, discurso) é sempre ‗o outro de um outro‘ (interlocutor,
discurso), lá onde podemos dizer que não há outro do Outro (inconsciente)‖ (AUTHIER-
REVUZ, 1982, p.44), complementa a autora.
O princípio da heterogeneidade, a ideia de que a linguagem é heterogênea, isto é, de
que o discurso é construído a partir do discurso do outro, que é o ―já dito‖ sobre o qual
qualquer discurso se constrói, respeitadas as críticas, está ancorada no dialogismo
bakhtiniano. Na heterogeneidade constitutiva, o outro está inscrito no discurso, mas sua
presença não é explicitamente demarcada. Authier-Revuz (1982) concebe a heterogeneidade
constitutiva como sendo da ordem do não-representável, do não-localizável, pertencente à
ordem real de constituição do discurso, condição mesma de existência do fato enunciativo. ―O
heterogêneo constitutivo da enunciação está presente nela, em ação, de maneira permanente,
mas não diretamente observável‖ (p.179), o que nos leva a crer que essa forma de
heterogeneidade apreende-se pela memória discursiva de uma dada formação social.
A contrapartida da heterogeneidade constitutiva são as formas mostradas, passíveis de
apreensão na materialidade linguística do texto, que vão constituir o processo por ela
denominado ―heterogeneidade mostrada‖, a qual deve ser compreendida como ―formas
linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva do seu discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 1991, p.26). Importante
salientar que ―as heterogeneidades‖ não se excluem. Absolutamente; uma não existe em
detrimento da outra. A autora é enfática nesse sentido quando nos diz que o heterogêneo
constitutivo da enunciação está presente na modalidade mostrada de heterogeneidade de
maneira permanente, mas não diretamente observável. Nas palavras dela:
As formas de heterogeneidade mostrada, no discurso, não são um
reflexo fiel, uma manifestação direta - mesmo parcial – da realidade
incontornável que é a heterogeneidade constitutiva do discurso; elas
são elementos de representação - fantasmática – que o locutor (se) dá
de sua enunciação.(AUTHIER-REVUZ, 1991, p.70).
O heterogêneo manifesto, aquele que produz rupturas observáveis no fio discursivo,
consoante a autora, pode se nos mostrar ainda de duas maneiras: marcado e não-marcado. A
heterogeneidade mostrada marcada é da ordem da enunciação, visível na materialidade
linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as palavras entre aspas, a citação, o uso de
itálico. Importante, nesse momento da explanação, dizer que o estudo analítico de Authier-
Revuz – modalização autonímica - privilegia as formas marcadas, diretamente flagrantes no
28
fio. Há de se esclarecer, a esse respeito, que a autora utiliza o termo ―marca‖ referindo-se à
presença de um outro que acaba por duplicar o mesmo; não pode ser tomada como evidente,
pois, como veremos adiante (cf. seção 3.3.2 deste trabalho), há um processo de negociação em
jogo. Outra observação é que as marcas não têm, na perspectiva da autora, o mesmo estatuto,
mas estão situadas numa escala que inscreve gradativamente o grau de explicitação ―dos
outros‖ no fio discursivo.
Se a heterogeneidade for do tipo mostrada não-marcada, então, é da ordem do
discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.
Chama nossa atenção a descrição feita por Piègay-Gros (1996) acerca das relações
intertextuais, ao classificá-las em explícitas e implícitas, pois enxergamos aí uma proximidade
entre esses dois tipos de intertextualidade e as formas marcada e não-marcada postuladas por
Authier-Revuz. Estas duas autoras classificam a intertextualidade em instâncias bilaterais que
lhe imprimem caracteres perceptíveis e não-perceptíveis. Para Cavalcante (2006), no entanto -
em consonância com o que pensamos -, toda intertextualidade se revela por alguma marca, na
medida em que o enunciador possui a consciência do ato comunicativo que pretende realizar,
daí a proposta da autora se pautar pelo reconhecimento de marcas diferentes de manifestação
das heterogeneidades em contraposição à ausência de marcas textuais proposta por PIÈGAY-
Gros e por Authier-Revuz.
Nesta pesquisa, estendemos esse raciocínio a todos os modos de heterogeneidade
mostrada, por isso reivindicamos que eles sempre apresentam algum tipo de marcação. Assim
sendo, não se justificaria, no quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada
heterogeneidade mostrada não-marcada.
Cumpre registrar que Authier-Revuz (1982) nos fala ensaisticamente de não-
coincidências do dizer, quando se refere aos ―modos de dizer‖, da alteração7 local do dizer,
dos tipos de ruptura pensadas por ela em seu estudo acerca da modalização autonímica.
Embora entendamos que esta designação não mantém com a heterogeneidade mostrada do
tipo marcada diferenças significativas para este trabalho, a referência a ela faz-se necessária
por tratar-se de um tipo de heterogeneidade. Dissemos que a autora nos fala ensaisticamente
porque ela acabou por reservar, posteriormente, em Palavras incertas: as não-coincidências
do dizer, um estudo específico para tais acontecimentos. Aqui, Authier-Revuz (1998) retoma
a questão das heterogeneidades sob a denominação de não-coincidências, situadas em quatro
7 Termo utilizado por Authier-Revuz (1982) para designar a dupla possibilidade de irrupção da alteridade no fio
discursivo, a saber, o pequeno (outro social) e o grande outro (inconsciente).
29
campos de não-coincidência em que o dizer se representa como localmente confrontado com
pontos em que, assim alterado, desdobra-se:
a) Não-coincidência interlocutiva entre enunciador e destinatário8, em glosas que,
com estratégias bastante diversas, representam o fato de que uma palavra, uma
maneira de dizer, ou um sentido não são imediatamente, ou de modo algum,
partilhados – no sentido de comum a – pelos dois protagonistas da enunciação. Por
exemplo9, digamos X; X, passe-me a expressão; X, compreenda...; X, se você quer;
X, se você vê o que quero dizer; etc., expressões utilizadas pelo enunciador, na
tentativa de reinstaurar a unidade de co-enunciação no ponto em que se sente
ameaçado. Pode, ao contrário disso, assumir o ponto de não-coincidência: X, assim
como você ousa dizer; X, sei que você não gosta da palavra; X, como você não diz;
etc.
b) Não-coincidência do discurso com ele mesmo, em glosas que assinalam no
discurso a presença estranha de palavras marcadas como pertencentes a outro
discurso e que, através de um leque completo de relações com o outro, desenham no
discurso o traçado que depende de uma ―interdiscursividade mostrada‖, de uma
fronteira interior / exterior. Por exemplo, quando se diz: X, como diz fulano; para
retomar as palavras de X; X, no sentido que fulano emprega; X, no sentido de tal
discurso; etc.
c) Não-coincidência entre as palavras e as coisas, posta em jogo em glosas que
representam as pesquisas, hesitações, fracassos, êxitos, na produção da ―palavra
certa‖, plenamente adequada à coisa. Por exemplo, em: X, por assim dizer; X,
maneira de dizer; como eu diria? X; X, melhor dizendo, Y; X, não, mas eu não
encontro palavra; X, é essa a palavra; não há palavra; X, não existe outra palavra;
etc.
d) Não-coincidência das palavras com elas mesmas, em glosas que designam, ao
modo da rejeição - por especificação de um sentido contra outro – ou, ao contrário,
8 Nomenclatura utilizada por Authier-Revuz. Em nosso trabalho, estamos utilizando os termo co-enunciador e
leitor. 9 Todos os exemplos dessas não-coincidências foram retirados de Authier-Revuz (1991, p.183).
30
da integração ao sentido, fatos de polissemia, de homonímia, de trocadilho, etc.,
como em: X, em sentido próprio, figurado; X, não no sentido...; X, nos dois
sentidos; X em todos os sentidos do termo; X, é o caso de dizê-lo, se ouso dizer; etc.
Aos tipos de não-coincidências acima referidos relacionam-se os exteriores teóricos
convocados pela autora na tessitura de sua tese. O primeiro tipo apóia-se no dialogismo
bakhtiniano, ―muito sensível ao heterogêneo relacionado às pessoas e ao peso sócio-histórico
das palavras‖ (1998, p.147); apóia-se, ainda, na concepção lacaniana do sujeito não-
coincidente consigo mesmo, radicalmente clivado em relação a um inconsciente que o
determina. Para tratar da não-coincidência do discurso com ele mesmo, a autora aciona o
dialogismo bakhtiniano ―pelo qual toda palavra, por se produzir no meio do já-dito de outros
discursos, é ‗habitada‘ pelo discurso outro‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Nesse aspecto,
Authier-Revuz (1991) recorre à noção pêcheutiana de interdiscurso, pois ela sustenta o
princípio fundamental ―de que toda palavra é determinada por isso que fala, em outro lugar,
antes e independentemente‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Os dois últimos tipos de não-
coincidências são respeitantes ao real da língua – de um lado, como forma, como espaço de
equívoco, de outro. Dessa forma, são tratados sob a égide da psicanálise lacaniana.
Vemos que seja sob a denominação de heterogeneidade, seja sob a de não-
coincidência do dizer, o chamamento de exteriores teóricos se faz necessário para compor um
estudo da enunciação que considera que o atravessamento do discurso ―pelos outros‖ é
condição mesma desse discurso.
1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo
Para apoiar nosso posicionamento, convocaremos a noção de leitor-modelo de
Umberto Eco, por julgarmos que seu pensamento acerca dessa entidade respalde nossa visão
frente a formas não prototípicas de marcação.
O nome de Umberto Eco é, sem dúvida, ponto de referência no campo de estudos do
leitor. Foi em Obra Aberta (1962) que Eco começou a discutir o papel do destinatário na
atualização e interpretação do texto. Segundo ele, não dispunha, naquele momento, ainda, de
instrumentos suficientes para analisar teoricamente a estratégia textual: como o texto
estimulava e regulava a participação do leitor.
Após seu encontro com o Formalismo e com a Linguística Textual, escreve Lector in
Fábula (1979), livro que aprofunda sua discussão e dá a ela sedimentação teórica à sua
31
discussão. Nele, afirma que todo texto demanda a participação de seu destinatário. E isso por
dois motivos: para ser atualizado, fazer a correlação expressão-código e também por estar
repleto de espaços em branco, não-ditos, que devem ser preenchidos. Para ele, o texto é um
―mecanismo preguiçoso‖, precisa de alguém que o ajude a funcionar.
Falar que um texto é preguiçoso é invocar o próprio funcionamento da linguagem, sua
não-transparência. Eco admite que a língua não se reduz a um código, ―não é uma entidade
simples, mas, frequentemente, um complexo sistema de regras‖ (ECO, 1979, p. 56) e que não
basta a competência linguística para decodificar uma mensagem, para constituir sentido
(interpretar). Além dela, deve haver ―uma competência circunstancial diversificada, uma
capacidade de pôr em funcionamento certos pressupostos, de reprimir idiossincrasias, etc.,
etc. (sic)‖ (ECO, 1979, p. 56).
Quando o autor produz um texto, faz uma hipótese sobre como este será lido, que
caminhos o leitor deve percorrer, faz uma previsão de como será esse leitor. A essa instância,
Eco chama leitor-modelo. Ele deve se mover no nível da interpretação da mesma forma que o
autor o fez no nível gerativo10
. Para tanto, estratégias são tomadas. Para organizá-las, o autor
do texto ―deve assumir que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo de seu
leitor‖ (ECO, 1979, p. 58). Eco ressalta que não se trata de esperar que o leitor-modelo exista,
mas que trabalhe o texto de forma a construí-lo.
Eco (1979), quando advoga em favor de uma entidade pressuposta que emerge de
todos os textos - o leitor-modelo -, refere-se a uma tal entidade abstrata, construída pelo texto
que constitui, em verdade, um conjunto de condições de êxito11
, textualmente estabelecidas,
para a leitura desse texto. Cabe, aqui, a ressalva de que o leitor-modelo de que fala o autor não
se confunde, em hipótese alguma, com o leitor empírico - entidade concreta que se depara
com o texto.
Os meios de que se dispõe para ―selecionar‖ um dito leitor-modelo são múltiplos: a
escolha de uma língua, que exclui quem não a lê; a escolha de um tipo de enciclopédia; a
seleção lexical. Eco adverte que, muitas vezes, há erros de previsão, motivados por análises
infundadas ou preconceitos culturais. Lembra, também, que os textos podem ser classificados
em abertos ou fechados dependendo da forma como as estratégias foram trabalhadas. Os
últimos cerceiam o leitor, dão pouco espaço a ele. Os primeiros são mais "preguiçosos",
pedem mais a participação do leitor.
10
Nível gerativo concerne ao percurso gerativo de sentido (termo da Semiótica), que é uma sucessão de
patamares, cada um dos quais susceptível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz os
sentidos, que vai do mais simples (nível discursivo) ao mais complexo (níveis narrativo e fundamental). 11
Para Condições de êxito, v. AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969.
32
Assim como Eco, assumimos que o texto postula a cooperação do leitor como
condição própria de atualização. Podemos dizer melhor: o texto é um produto cujo destino
interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo. Gerar um texto significa
executar uma estratégia de que fazem parte previsões dos movimentos de outrem - como,
aliás, em qualquer estratégia. É relevante, neste ponto, ratificar que a previsão de um leitor-
modelo não significa apenas ―esperar‖ que ele exista, mas significa, também, mover o texto
de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para
produzi-lo.
É fato que nenhum texto é lido independentemente da experiência que o leitor tem de
outros textos. Desse modo, se aceitamos a proposta do leitor-modelo, estamos aceitando,
também, o fato de que, no momento em que dissimulamos que é nosso o discurso do outro, a
partir de procedimentos intertextuais conscientes, por exemplo, é nesse momento mesmo que
instituímos uma instância cuja competência intertextual tornará possível o alcance semântico
pretendido. Não estamos, com isso, dizendo que, em não se tendo a ―adequação‖ de tal
competência, determinada interpretação será rejeitada – afinal, ela existe como potencialidade
virtual; um texto é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas
interconexões. Com efeito, o ato da leitura de um texto é uma transação difícil entre a
competência do leitor (seu conhecimento de mundo) e o tipo de competência que um dado
texto postula, a fim de ser lido de forma econômica. É relevante salientarmos que não estamos
falando do texto como entidade autônoma. As intenções comunicativas do enunciador, seus
desejos inconscientes são considerados, mas desde que haja um percurso mínimo (textual) que
sinalize nesse sentido.
Face ao exposto, como estamos defendendo que os mecanismos de mostrar, apontar a
presença do outro na superfície textual de modo que essa presença se nos apresente
marcadamente, o chamamento dessa instância proposta por Eco nos parece interessante na
medida em que acreditamos que, quando há consciência na escolha de certos termos, nas
marcações de heterogeneidade, é apostando na visão de um certo leitor-modelo que o autor
mostra as heterogeneidades no discurso, por meio de certas marcas que, por não serem
aquelas clássicas, não trazem consigo a garantia inequívoca de que serão reconhecidas por
todos, o que não faz, absolutamente, com que o fenômeno deixe de estar ali, ponderação
imprescindível para os objetivos deste trabalho.
33
CAPÍTULO II
QUESTÕES DE PESQUISA E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
O universo não tem anverso nem reverso
O universo não tem anverso nem reverso
O universo não tem anverso nem reverso
Não tem uro externo nem tem centro secreto
Você está dentro,
não haverás nunca uma porta.
Não espere que o rigor de seu caminho,
desse caminho que teimosamente se bifurca em outro
que obstinadamente se bifurca em outro,
não espere que ele tenha fim.
(Jorge Luís Borges)
2.1 Delimitação do universo
Nossa pesquisa procede a uma releitura crítica da teoria da heterogeneidade
enunciativa, instituída por Authier-Revuz (1982). Travamos uma discussão em torno do
esquema proposto pela autora, com vistas a repensar a discretização das modalidades de
heterogeneidade constitutiva, a saber, a constitutiva, em oposição à mostrada, podendo, esta
última, ser do tipo marcada ou não-marcada, com vistas a cumprir nosso desiderato precípuo,
qual seja, o de incluir fenômenos de natureza não estritamente formal entre os fatos de
linguagem tidos como marcados, ampliando, assim, o leque de marcações para os casos de
mostração.
Para argumentar em favor dessa ―abertura‖ para que procedimentos de natureza (mais)
sócio-cognitiva sejam alocados no âmbito do localizável, recorremos a processos de
referenciação que desempenham papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para
tanto, precisem vir acompanhados de indicadores formais que denunciem marcação.
Nossos esforços vão em direção à tentativa de conferir autonomia a certas marcas
linguísticas que, inseridas em contextos específicos, promovem a marcação da alteridade no
fio discursivo. Mais especificamente, tentaremos analisar que processos de continuidades
referenciais anafóricos (sobretudo as anáforas indiretas) e dêiticos apresentam estatuto de
marcadores, assim como aqueles ditos formais. Incluiremos, também, o processo de
recategorização como categoria de análise, já que pode estar condensada nos processos supra,
34
quando entendida como uma transformação cognitiva do referente. Processos intertextuais por
alusão e o discurso indireto livre também encontraram lugar em nossas considerações.
2.2 Questões de pesquisa
Esta pesquisa está assentada no pressuposto de que é possível haver marcação explícita da
presença da voz do outro no fio discursivo sem que, para tanto, esta tenha que vir indicada por
vias prototípicas (aspas, itálico, negrito, discurso direto, mudança de fonte).
Partimos dessa linha de raciocínio para fazermos os seguintes questionamentos:
a) Que marcas linguísticas promovem a mostração do outro no fio discursivo sem que
haja uma marcação prototípica (aspas, itálico, negrito mudança de fonte, discurso
direto) dessa alteridade?
b) Que heterogeneidades são intertextuais?
c) Que processos referenciais evidenciam casos de intertextualidade?
d) Que processos de referenciação podem evidenciar fatos de heterogeneidade?
e) Nas heterogeneidades não-intertextuais, em que casos os processos referenciais podem
constituir marcas?
A partir desses questionamentos, propomos as seguintes hipóteses:
Hipótese básica:
É possível reconhecer outras possibilidades de mostração-marcação da alteridade no
fio discursivo, a partir de diferentes fenômenos de intertextualidade e de estratégias de
referenciação.
35
Hipóteses secundárias:
a) Dentre as marcas tipicamente consideradas como marcações de explicitude da alteridade
no fio discursivo, estão as que assinalam a intertextualidade por co-presença da citação,
como verbos dicendi e equivalentes, dois pontos, aspas, itálicos, negrito, indicação da
fonte;
b) A intertextualidade por alusão é a que mais claramente se estabelece por um processo de
referenciação, classificado na literatura como anáfora indireta;
c) Os demais tipos de heterogeneidade discursiva que são intertextuais não se descrevem
por um processo referencial específico, mas podem ser reconhecidos com a ajuda de
introduções referenciais, em primeiro lugar, mas também de anafóricos e dêiticos;
d) Nas heterogeneidades não-intertextuais, os seguintes processos referenciais podem
constituir marcas: 1) anáforas diretas e indiretas, que podem constituir mecanismos de
marcação de vozes distintas no discurso; 2) recategorização homologada por expressão
de introduções referenciais, que pode também constituir um mecanismo de marcação de
alteridade no fio discursivo; 3) dêiticos de tempo e de espaço, que podem indicar a
existência de discurso indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre
narrador e personagem;
2.3 Procedimentos metodológicos
2.3.1 Etapas do trabalho
1. Na primeira etapa deste trabalho, procedemos a uma leitura exaustiva da literatura, nas
diferentes vertentes dos estudos da enunciação que trata, direta ou indiretamente, do
assunto, para que pudéssemos travar uma discussão rigorosa acerca dos mecanismos de
que dispõem os sujeitos da enunciação para marcar a ―alteração‖ de seu discurso. Nesse
primeiro momento, encampamos nossa pesquisa na Linguística da Enunciação, mas
também em pressupostos da Linguística do Texto;
36
2. Posteriormente, descrevemos as categorias de análise em torno das quais visualizamos os
fenômenos que queremos que sejam tratados como se mostrando na materialidade
linguística como marcados: os fenômenos intertextuais e os processos de referenciação;
3. Feito isso, partimos para a identificação das heterogeneidades textuais e intertextuais em
textos de gêneros variados (não trabalhos exatamente com um corpus, senão apenas com
um exemplário);
4. Identificamos, então, as marcas de referenciação que enxergamos nas intertextualidades e
quais os processos referenciais especificamente que funcionavam como mostradores de
heterogeneidade marcada no fio discursivo;
5. O passo seguinte foi a definição dos textos para análise. Para demonstrar o que estamos
defendendo, não nos utilizamos de textos de um gênero específico, uma vez que
objetivamos investigar tão-somente estratégias ―alternativas‖ de marcação. Não é
pretensão nossa, pois, atrelar tais possibilidades marcativas a um gênero específico, nem
à predominância desta ou daquela sequência textual; focalizamos o fenômeno
independentemente do gênero em que ele se manifeste ou da sequência em que esteja
inserido; mais exatamente, não fizemos uma associação direta, porque a relação entre os
gêneros e sequências e o fenômeno estudado existe: uns vão ser mais propensos a certos
tipos de intertextualidade e de processos referenciais do que outros, fato do qual não
iremos nos ocupar. Será, portanto, convocado um exemplário de vinte textos pertencentes
a gêneros variados, com vistas a respaldar materialmente o intento que orienta o
empreendimento desta pesquisa: comprovar textualmente que é possível haver marcação
sem, necessariamente, indicá-la pelas vias formalmente já aceitas;
6. O exemplário da análise reúne 20 textos cujos gêneros se alternam entre artigo de
opinião, crônica, conto, nota de coluna, poema, relatório e soneto. Ancoramos nossas
considerações nas seguintes categorias:
a) Analisamos a dêixis de memória, identificando as marcas que ela promoveu e de que
forma essas marcas se mostram textualmente, num ponto específico da cadeia do
dizer, ao interlocutor;
37
b) Analisamos, a partir das dêixis de espaço e de tempo, as marcas de heterogeneidade
que promoveram na superfície textual e de que forma essas marcas se mostram
textualmente, produzindo uma opacificação local no fio discursivo, ao interlocutor;
c) Utilizamos a recategorização como critério de análise para demonstrar que tipo de
marca tal fenômeno promove na materialidade linguística e de que maneira essa marca
se mostra concretamente, em um ponto específico da cadeia do dizer, ao interlocutor;
d) Utilizamos o discurso indireto livre como critério de análise para demonstrar que tipo
de marca promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra ao
interlocutor;
e) Partimos da intertextualidade por alusão para demonstrar a natureza da marca que
promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra, por meio de
procedimentos de remissão indireta e em pontos específicos da materialidade
linguística, ao interlocutor.
Em nossa análise, demonstramos, a partir de elementos textuais, como um fato de
heterogeneidade se mostra por meio das categorias analíticas que elegemos para legitimar a
proposta maior de nossa empresa: a de incluir, entre as marcas que opacificam um ponto
específico da cadeia do discurso, processos referencias de natureza anafórica e dêitica.
38
CAPÍTULO III
HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
______________________________________________________________________
Combinando uma simulação com uma
dissimulação, o discurso é uma
trapaça: ele simula ser meu para
dissimular que é do outro.
(Edward Lopes)
3.1 Balizagem teórica: filiação
3.1.1. Benveniste: os estudos enunciativos
É particularmente seguindo a senda dos estudos enunciativos empreendidos por
Benveniste (1988) que Authier-Revuz (1982) alicerça seu estudo acerca da heterogeneidade
enunciativa. Como já fizemos referência a seus estudos em outro momento deste trabalho (cf.
item 1.2.2), relacionamos pelo menos três pontos específicos da obra do linguista francês nos
quais Authier-Revuz se apóia para, então, avançar:
Afirmação da propriedade reflexiva da língua, pela qual ela se coloca em
posição privilegiada entre os sistemas semióticos;
Reconhecimento da língua como ordem própria, sem que, por isso, o linguista
deva rejeitar o que é da ordem do discurso, que está aí mesmo contido;
Indicação de que certas formas da língua - como os pronomes pessoais, os
tempos verbais, os performativos, os delocutivos – são os sinais, na língua, do
que lhe é radicalmente outro.
Assim como Benveniste, a autora é herdeira do legado saussuriano e não despreza o
objeto da linguística - qual seja a língua como tendo sua ordem própria – o que a coloca,
como ela mesma se define, entre os neo-estruturalistas, haja vista que não relega, como
veremos, a convocação de exteriores teóricos para a abordagem dos fatos da língua.
39
O segundo postulado benvenistiano é interessante para Authier-Revuz na medida em
que propõe a ―viabilização do trânsito entre a língua e a anunciação‖ (TEIXEIRA, 2005,
p.133), sem que esse movimento se dê por um ato de dissolução do objeto nos moldes
saussurianos. Desta feita, a ancoragem neste ponto do pensamento do linguista francês se
justifica, pois a unidade de seu projeto encaixa-se exatamente nessa vontade de, sem rejeitar o
projeto saussuriano, ultrapassá-lo.
Quanto ao terceiro aspecto, Benveniste define um quadro formal em que se realiza a
enunciação; com esse quadro, faz aparecer, na própria estrutura da língua, elementos próprios
do discurso, a saber, o sujeito e a referência. Quando de seu estudo de determinadas formas da
língua – índices de pessoa, de ostenção e os tempos verbais -, o autor chega à conclusão de
que há elementos que, oriundos da enunciação, ―não existem senão na rede de ‗indivíduos‘
que a enunciação cria e em relação ao ‗aqui-agora‘ do locutor‖ (1989, p.86). Vemos, então, a
subjetividade afetando o sistema formal, ideia fundamental em torno da qual nossa autora
constrói sua empresa.
Authier-Revuz percebe, desde já, que Benveniste promove certa abertura ao exterior
em seu estudo acerca da enunciação, sem que, para isso, abra mão dos princípios
saussurianos, fator que, essencialmente, justifica o interesse da autora pelo projeto
benvenistiano.
3.1.2 Rey-Debove: conotação autonímica
Authier-Revuz toma como ponto de partida para o estudo em que se concentra, a
modalização autonímica, a autonímia / conotação autonímica, tal como a institui Rey-Debove
(1978), no campo da semiótica. A descrição fornecida por esta autora é de natureza semiótico-
linguística e parte do pressuposto de que a ―menção‖ duplica o ―uso‖.
―Tome um signo, fale dele e você terá uma autonímia‖, sintetiza Rey-Debove. Quando
temos, por exemplo, uma frase do tipo A palavra “casa” tem duas sílabas, a palavra ―casa‖ é
vista como tendo sido mencionada pelo locutor e não usada por ele, o que significa dizer que
estamos diante de um caso de autodesignação do signo, exatamente o que caracteriza a
autonímia. O signo autonímico - ―em menção‖ - faz com que o transformemos num signo cuja
estrutura semiótica é complexa. Em outros termos, o signo autonímico é um outro signo, mas
que apresenta os mesmos significantes do signo normal – em uso -, aquele que tem
significante e significado, assim como o de Saussure. Vejamos os exemplos que colhemos de
Teixeira (2005, p.142):
40
(1) Compor é difícil.
(2) ―Compor‖ é uma palavra ambígua.
Em (1), podemos visualizar o emprego normal do signo. Isso porque compor é um signo
simples cujo significante é /kõp‘or/ e o significado é <compor>. No exemplo (2), é como se o
signo ―compor‖ tivesse dois andares12
. Temos aí um signo autonímico cujo significante é
/kõp‘or/ e cujo significado, equivalente à palavra compor, é formado pela união do
significante /kõp‘or/ e do significado <compor>. É pelo fato de o significante ser parte
integrante do significado do signo autonímico que lhe é atribuído um estatuto semiótico
complexo.
Um outro exemplo:
(3) É um ―marginal‖, como dizemos hoje em dia.
Aqui, está-se referindo a um indivíduo que se encontra à margem da sociedade para,
então, a palavra ―marginal‖ ganhar voz. Dessa forma, estamos diante de um caso em que:
A palavra torna-se objeto do dizer ao mesmo tempo em que é
utilizada: fala-se da ―coisa‖ e simultaneamente da palavra pela qual se
fala da ―coisa‖, acumulando-se dois empregos: o uso e a menção. [...]
Relativamente à semiótica denotativa que fala do ―mundo‖ [...] e à
semiótica metalinguística que fala do signo via autonímico [...], a
conotação autonímica aparece como uma estrutura em que se
acumulam as duas semióticas, constituindo um modo bastardo em que
se emprega e se cita o signo ao mesmo tempo [...]. (2005, p.142).
A conotação autonímica consiste, portanto, nesse fenômeno cumulativo de uso e menção.
É na esteira desse raciocínio que Authier-Revuz elege para seu estudo as aspas de
conotação autonímica, que se apresentam em cinco possibilidades, quais sejam:
1. Aspas de diferenciação – são usadas em estrangeirismos, neologismos, palavras
técnicas e familiares, para assinalar a distância entre as palavras do locutor e as dos
outros:
(4) O ―sit-in‖ dos estudantes defronte da embaixada...13
(5) A ―giscardização‖ acelerada da administração superior.
12
Cf. Authier-Revuz (1995, p. 30) 13
Todos os exemplos fora extraídos de Authier-Revuz (1980).
41
2. Aspas de condescendência – usadas quando o locutor, assumindo uma posição
paternalista, utiliza uma palavra apropriada ao universo do receptor, mas , como que a
preservar a própria imagem, marca com aspas seu distanciamento em relação a esse
universo:
(6) Ora, muitas vezes, essa atividade da célula se torna lenta. A pele, especialmente se for
seca ou fina, ―estica‖ e ―se marca‖ por qualquer coisa.
3. Aspas de proteção – usadas quando o locutor é levado a empregar palavras que julga
carregadas de um saber que não considera ter ou de uma situação social que julga não
ser a sua ; como forma de proteção, opta, então, pelo aspeamento:
(7) A publicação por La Croix da entrevista de M. Beullac teve o efeito de uma ―bomba‖.
4. Aspas de questionamento ofensivo – usadas quando o locutor é obrigado a se
expressar por meio de palavras que percebe como impostas pelo exterior, tomando
suas próprias palavras como interditadas; o uso das aspas é utilizado como forma de
defesa e demonstra ―uma reação ofensiva em uma situação dominada‖ (AUTHIER-
REVUZ, 1981, p.132):
(8) Toda criança que vem ao mundo por ―acidente‖ pode muito bem ser, de fato,
inconscientemente desejada.
5. Aspas de ênfase – usadas como forma de ressaltar aquilo que realmente se quer dizer;
funcionam como uma resposta à suspensão de responsabilidade própria a qualquer
colocação de aspas; esse último tipo pode ser substituído por itálico ou negrito,
conforme a autora:
(9) [...] LA CROIX lhe traz as informações, as precisões, os números graças aos quais
você formará uma opinião (―sua‖ opinião) e graças aos quais você não se deixará enganar
com facilidade.
Vemos que o estudo a que procede Authier-Revuz acerca das aspas revela que a autora se
inscreve no campo aberto por Rey-Debove pela via de um deslocamento do ponto de vista
semiótico para o linguístico.
3.2 Heterogeneidade teórica: a convocação de exteriores
O estudo de Authier-Revuz é dedicado particularmente a um tipo de configuração
enunciativa da reflexividade metaenunciativa – a modalização autonímica - que ela
circunscreve às noções de transparência e opacidade, de Récanati (1979), e de conotação
autonímica, de Rey-Debove (1978), nos termos descritos no item anterior.
42
Antes de detalharmos a perspectiva enunciativa da autora, cabe um parêntese para
especificarmos em que medida a reflexão lógico-filosófica de Récanati (1979) é considerada
em seus estudos. Authier-Revuz toma emprestadas as considerações que o autor faz acerca da
oposição transparência / opacidade referencial do signo. Diferente da clássica concepção de
signo saussuriana que, segundo ele, privilegia o semiótico, concebe esta entidade como ―um
vidro transparente que permite ver outra coisa além dele próprio, e essa transparência vem do
fato de representar a coisa significada sem ele mesmo se refletir nessa representação‖
(FLORES & TEIXEIRA, 2005, p.81). Desta feita, o signo transparente é posto em ação pelo
locutor quando este faz uso deste signo que, enquanto tal, não aparece propriamente: é a coisa
significada, mediada por ele, que aparece. Acontece, entretanto, que o signo pode se remeter a
ele mesmo; neste caso, a transparência é subtraída de sua condição, o que faz com que se
opacifique. É isso que se dá quando fazemos menção do signo: tratamo-lo como a própria
coisa de que se fala.
Voltando à Authier-Revuz, consideramos que a singularidade de sua perspectiva se deve
ao reconhecimento de que o campo da enunciação é marcado por uma dupla heterogeneidade:
a linguística e a teórica. Assumindo essa postura, sobretudo no que tange a este último tipo de
heterogeneidade, vê como inevitável o chamamento, para a descrição dos fatos da língua, de
abordagens exteriores à linguística como tal, de modo que se abandone ―um domínio
homogêneo, onde a descrição é da ordem do ‗UM‘, por um campo duplamente marcado pelo
‗NÃO-UM‘14
, pela heterogeneidade teórica que o atravessa [o discurso]‖. (1998, p.166). De
acordo com Authier-Revuz (1982), os teóricos que deram início aos estudos da enunciação
fizeram-no sem estabelecer seus limites. A autora, ao apresentar seu ponto de vista, advoga
em favor da heterogeneidade teórica, afirmando que três campos do conhecimento são
requeridos para abordar a enunciação: a Linguística (stricto sensu), a Psicanálise e a Análise
do Discurso. Segundo ela, é preciso expandir o modelo teórico, não confundindo as
contribuições de cada campo mobilizado.
É, basicamente, a partir de contribuições de Bakhtin e Pêcheux e da Psicanálise
freudo-lacaniana que Authier-Revuz institui uma perspectiva inovadora para a investigação
das formas de modalização autonímica, pelas quais um enunciador representa seu discurso –
se representa em seu discurso - como inevitavelmente marcado pela heterogeneidade que o
constitui.
14
Authier-Revuz se refere à dupla heterogeneidade que inside sobre o campo da enunciação: a dos fatos
linguísticos observados e a das escolhas teóricas acionadas para a descrição desses fatos.
43
3.2.1 Bakhtin: o dialogismo
Em Bakhtin, é do conceito de dialogismo que a autora irá lançar mão para
fundamentar a heterogeneidade constitutiva do discurso. O dialogismo bakhtiniano faz da
interação com o discurso do outro a lei constitutiva de qualquer discurso. Authier-Revuz toma
esse princípio em duas diferentes concepções: a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo
entre discursos, referidos, sob a ótica da autora, com os termos ―interação e discursividade‖
(1982, p.140). Visto do primeiro modo, o dialogismo não se reduz ao diálogo face a face, pois
o que Bakhtin propõe é uma teoria da dialogização interna do discurso. Para o pensador russo,
a comunicação é muito mais que a transmissão de mensagens; ela tem o sentido antropológico
de processo pelo qual o homem se constitui em uma relação de alteridade. Visto daquela
forma, a do diálogo entre discursos, o dialogismo traz a ideia de que o discurso não se
constrói a não ser pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo já
―habitadas‖ por outras ressonâncias. Para ele, não há palavras neutras; todas as palavras estão
fatalmente carregadas, atravessadas pela alteridade. Lembramos, ainda, que, na perspectiva de
Bakhtin, todo discurso se encontra diretamente determinado por uma resposta antecipada:
―Ao se construir na atmosfera do já-dito, ele se orienta tanto para o espaço interdiscursivo
como para o discurso- resposta que ainda não foi dito, mas foi solicitado a surgir, sendo já
esperado‖ (1993, p.89).
Consoante Authier-Revuz (1982), a noção de dialogismo bakhtiniana faz da interação
com o discurso do outro ―a lei constitutiva de todo discurso‖ (p.140), entendendo se tratar, em
Bakhtin, de ―um outro que não é nem o duplo nem um face a face, nem mesmo o ‗diferente‘,
mas sim um outro que atravessa constitutivamente o um‖ (p.103).
3.2.2 Psicanálise freudo-lacaniana: o Outro
A psicanálise freudo-lacaniana é trazida para o escopo teórico da autora pela dupla
concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um sujeito dividido
estruturalmente. O que, de modo particular, mobiliza a atenção de Authier-Revuz é o fato de a
psicanálise mostrar que, atrás da linearidade da emissão por uma única voz, faz-se ouvir uma
pluralidade de vozes - a descontinuidade: o discurso sendo constitutivamente atravessado pelo
discurso do O/outro.
A autora articula a teoria da heterogeneidade da palavra a uma teoria do sujeito efeito
de linguagem. Para ela, a instância subjetiva não existe fora da ilusão e do fantasma nem pode
44
ocupar uma posição de exterioridade em relação à linguagem, tampouco a de centro em que
emanariam, particularmente, a fala e o sentido.
A noção de outro com a qual trabalha Authier-Revuz - não como um objeto exterior de
que se fala, mas como condição constitutiva do discurso - tem sua ancoragem fundada em
Bakhtin e Lacan, os quais concebem esta entidade de maneira diferente. Para Bakhtin, a noção
de outro recobre os outros discursos constitutivos do discurso; o outro da interlocução cuja
compreensão responsiva é pressuposta pelo sujeito que toma a palavra; e o superdestinatário,
um terceiro invisível, situado acima de todos os participantes do diálogo. Já Lacan distingue
um Outro que é da ordem de uma alteridade radical, espaço aberto de significantes que o
sujeito encontra desde seu ingresso no mundo; e um ―outro‖ definido como outro imaginário,
lugar da alteridade especular.
A instância do inconsciente constitui a hipótese fundadora do edifício psicanalítico,
inaugurado por Freud no final do século XIX, o qual teve Lacan por seu mais significativo
exegeta. O que interessa à teoria da heterogeneidade enunciativa na intervenção de Lacan na
Psicanálise é o fato de situar o inconsciente como lugar de um saber constituído por um
material linguístico em si mesmo desprovido de qualquer significação; como sendo a própria
história do sujeito: constitutivo dele, portanto.
O inconsciente é esse capítulo da minha história que é marcada por
um branco ou ocupado por uma mentira: isto é, o capítulo censurado.
Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está
escrita em algum lugar. (LACAN, 1985, p.124).
Lacan (1998) nos apresenta a instância inconsciente como uma cadeia de significantes
que se repete e insiste, aproveitando-se das frinchas no discurso consciente do sujeito para se
fazer enxergar e deixar suas marcas. É, então, por meio do discurso que fala o inconsciente,
daí por que a psicanálise de orientação lacaniana reconhece como seu campo de ação a fala,
lugar onde, por meio de chistes, atos falhos, esquecimentos, entre outros tropeços de
linguagem, o inconsciente se manifesta.
Para Lacan, não há verdade e significação possíveis fora do campo da linguagem. Para
ele, a linguagem não se confunde com as diversas funções somáticas e psíquicas que a
desservem no sujeito falante, pela razão primeira de que ela, com sua estrutura, preexiste à
entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental (LACAN, p.498). Se
45
assim for, temos, no registro do simbólico15
, o lugar, por excelência, de constituição do
sujeito. Nesse contexto, trazemos o famigerado axioma lacaniano o inconsciente é o discurso
do Outro, sendo esse não o outro que se evidencia na imagem especular, mas o Outro
enquanto alteridade absoluta, estrutural, constitutiva do sujeito - representante da linguagem.
Sob esse prisma, o sujeito, com efeito, é compreendido como efeito do significante, porque
submetido à sua lei. Fundamentamos no dizer de Settineri (2002) nossa resenha quanto ao
lugar de constituição da subjetividade:
Lacan toma de Lévi-Srtauss a ideia de que há uma lei simbólica
universal, fundadora da aliança e do parentesco, que irá se aproximar
daquilo que Freud havia colocado em um lugar central do
inconsciente, o complexo de Édipo. O sujeito se constitui no lugar do
Outro, sendo tomado em uma cadeia simbólica desde antes de seu
nascimento até depois de sua morte. (p.252).
O discurso do Outro é teorizado como sendo uma cadeia de elementos discretos, que,
para se fazer reconhecer, insistem de modo a interferir nos cortes oferecidos no discurso,
constituindo um sintoma, o qual, conforme Lacan, ―se resolve inteiramente numa análise de
linguagem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem, que ele é linguagem cuja
fala deve ser libertada.‖ (1985, p. 133).
No objeto da linguística, tal qual empreendida por Saussure, Lacan encontra apoio
para postular que podem ser encontrados, nas leis que regem o inconsciente, os efeitos
essenciais que se descobrem no discurso efetivo dos sujeitos: ―de nossa parte, vamos fixar-nos
apenas nas premissas que viram seu valor confirmado pelo fato de a linguagem ter
efetivamente conquistado, na experiência, seu status de objeto científico.‖ (1998, p. 499). A
essa base de apoio se refere o aforismo lacaniano o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, já que o psicanalista se concentra, quando da fala do analisando, na dimensão da
diferença e da repetição. Como bem interpreta Settineri (2002, p. 252), ―o inconsciente, para
Lacan, é estruturado como uma linguagem, não por uma linguagem; apesar desta ser sua
condição, ele não é uma linguagem‖ (grifos do autor).
Conquanto Authier-Revuz proceda a um chamamento exterior à linguística
propriamente dita, vale dizer que o trabalho por ela desenvolvido não se pretende
especializado nas teorias convocadas, como esclarece a própria autora:
15
Lacan (cf. LACAN, 1999) demonstra que o real, o simbólico e o imaginário – necessariamente nessa ordem –
definem a estrutura psíquica dos sujeitos. Mostra que, nessa estrutura, esses registros estão ligados à maneira de
um nó borromeu, ou seja, que se retirarmos um deles, os dois outros não fazem estrutura, partem cada qual para
seu lado.
46
[...] esse trabalho, se ele encontra e se apóia na teoria do discurso e do
sentido de Pêcheux e na teoria lacaniana do sujeito, não é de modo
nenhum um trabalho de ‗análise do discurso‘, muito menos de
‗psicanálise‘. (1995, p. 59-60).
Vale frisar que o fato de Lacan ter situado a questão da alteridade na perspectiva de
uma determinação inconsciente torna sua concepção de outro completamente distinta da de
Bakhtin. Authier-Revuz (1982) destaca essa diferença dizendo que esse Outro do
inconsciente, do imprevisto do sentido, abre, nos processos discursivos, uma heterogeneidade
de outra natureza em relação à que estrutura o discurso em Bakhtin.
As considerações de Bakhtin e de Lacan acerca da alteridade, como vimos, não são
passíveis de articulação; os autores falam de lugares diferentes. Cônscia disso, ao apoiar sua
teoria da heterogeneidade enunciativa nos trabalhos desses dois, Authier-Revuz se contenta
em justapô-los.
3.2.3 Pêcheux: a noção de interdiscurso
O chamamento de Pêcheux para a composição da heterogeneidade teórica
reconhecida por Authier-Revuz dá-se por ocasião dos últimos desenvolvimentos teóricos da
obra do autor. É a fase da famigerada autocrítica por que passou, quando de sua reestruturação
teórica acerca das instâncias subjetiva e enunciativa. Estamos nos anos 80, momento em que
se inaugura a 3ª fase da Análise do Discurso francófona, a partir do reconhecimento, por parte
de Pêcheux, de um sujeito instituído por um triplo registro: imaginário, simbólico e real; esse
triplo registro, consoante esse deslocamento teórico, emerge nas formas singulares da fala do
sujeito, fato que o conduz a redimensionar o lugar dado ao fio discursivo.
Antes de estabelecer a ponte entre a noção de interdiscurso – maturada na 3ª fase da
AD - e a teoria da Heterogeneidade Enunciativa de Authier-Revuz, cumpre mencionar muito
brevemente as duas fases anteriores por que passou a Análise do Discurso, percorrendo um
tumultuado percurso até sua (re)estruturação. O assentamento das bases, cuja culminância se
dá na 3ª e última fase das reflexões de Pêcheux, é atribuído ao que o próprio autor chama de
conversão filosófica do olhar.
A primeira tópica pecheutiana - Análise Automática do Discurso, de 1969 (AAD) -
caracterizou-se pela exploração teórico-metodológica da noção de maquinaria discursiva
estrutural; concebia o processo de produção discursiva como ―uma máquina autodeterminada
e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como
47
produtores de seus discursos‖ (Pêcheux, 1997, p.311). Nesse primeiro momento, como
vemos, o sujeito acreditava-se produtor de seu discurso - crença absolutamente contestável,
uma vez que é, ainda, completamente assujeitado, suporte para a produção do discurso.
Num segundo momento, a AAD é repensada e passa por algumas redefinições
epistemológicas, sobretudo no que respeita às noções de discurso, que passa a ser
compreendido dentro da perspectiva do materialismo histórico, e de sujeito, que é remetido ao
campo psicanalítico.
O conceito foucaultiano de formação discursiva (FD), bem como o gérmen da
concepção de interdiscurso, são incorporados à AD como que para minar a IDEIA de
qualquer possibilidade que assuma o discurso e o sujeito de modo inteiramente homogêneos.
Nos termos de Foucault (1987), uma FD vem a ser um ―conjunto de regras anônimas,
históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram uma época dada, e para
uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da
função enunciativa‖ (p.43-44).
A introdução do conceito de FD no escopo teórico da AD começa a balançar as
estruturas daquela noção de máquina estrutural fechada, ―na medida em que o dispositivo da
FD está em relação paradoxal com seu ‗exterior‘: uma FD não é um espaço estrutural
fechado, pois é constitutivamente ‗invadida‘ por elementos que vêm de outro lugar‖
(PÊCHEUX, 1997, p.314).
Neste momento, a ideia de homogeneidade enunciativa é abandonada como resultado
da interação cumulativa de momentos de análise linguística e discursiva. Essa postura
permitiu o deslocamento da noção de constituição do discurso, que passou a ser concebido
como constituído no entrecruzamento entre a estrutura e o acontecimento, como consequência
da mudança de enfoque da estrutura para o acontecimento. Permitiu, também, dentro da
perspectiva de que a heterogeneidade enunciativa é constitutiva do discurso, a percepção de
lugares enunciativos plurais no fio do discurso. Inicia-se, aqui, o processo de desconstrução
da maquinaria discursiva de 69.
A AD recusa, desde o primeiro momento, ―qualquer metalíngua universal
supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e de toda suposição de um sujeito
intencional como origem enunciadora de seu dizer‖ (PÊCHEUX, 1997, p.311). No entanto,
foi somente a partir do refinamento teórico pelo qual passou e, conseqüentemente, da
postulação do primado da relação, que o sujeito do discurso passou a ser compreendido a
partir de duas dimensões: a ideológica e a psicanalítica.
48
Por meio do conceito de forma-sujeito, a instância subjetiva desse momento do
pensamento pecheutiano é remodelada a partir da tentativa de articular a concepção de sujeito
da ideologia de Althusser à de sujeito efeito de linguagem da psicanálise lacaniana. Com
vistas a superar a ideia de transparência subjetiva, a noção de forma-sujeito nasce como modo
de reconhecimento da ação ―exterior‖ da qual o sujeito é, infalivelmente, ―vítima‖.
A partir do conceito de interpelação, de Althusser, Pêcheux procede a uma particular
leitura que, entre outras derivações, identifica o sujeito do discurso com a FD – representante
das formações ideológicas na linguagem – a que está subjugado. Esse sujeito é associado,
pelo autor, ao Outro lacaniano, para quem, como vimos no item anterior, o inconsciente é o
discurso do outro. Estão postas, então, as duas estruturas fundamentais que constituem o
sujeito desta segunda fase da AD.
Assim – forçadamente - delineado, o sujeito é, então, caracterizado por dois tipos de
esquecimentos, que, como bem observa Teixeira, ―não designa perda de alguma coisa que se
tenha tido um dia. Trata-se do acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu
efeito, ou seja, o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina‖ (2005,
p.48). Pelo esquecimento um – de natureza inconsciente e ideológica -, o sujeito tem a ilusão
de que é o criador absoluto do seu discurso, a origem do sentido, apagando tudo que remeta
ao exterior de sua formação discursiva, ―instituindo a ilusão de ser Um, pelo apagamento do
fato de que os sentidos não originam nele (2005, p.49); essa forma de esquecimento respeita a
uma zona inacessível ao sujeito e coloca-o como que precedendo o discurso, na origem
mesma do sentido. No esquecimento dois – situado dentro do domínio do sujeito -, tem-se a
ilusão de que tudo que se diz tem apenas um significado e que este será devidamente captado
por seu interlocutor; há a impressão da transparência do sentido, fazendo com que o sujeito
tenha a ilusão de que seu discurso reflete o conhecimento objetivo da realidade; esquece-se de
que o discurso caracteriza-se pela retomada do já dito; tal esquecimento ―cobre exatamente o
funcionamento do sujeito do discurso na FD que o domina, sendo aí, precisamente, que se
apóia sua ‗liberdade‘ de sujeito-falante, liberdade que se nada mais é do que a aceitação
(livre) de sua submissão‖ (2005, p.50).
Finalmente, na década de 80, a terceira fase da AD é inaugurada evidenciando,
definitivamente, o outro em detrimento do mesmo. É exatamente este momento teórico que
justifica a incursão a que procedemos, vez que culmina aqui a noção de interdiscurso, bem
como o assentamento da teoria psicanalítica do sujeito no interior da disciplina,
amadurecimento que justifica o chamamento da AD para a composição do posicionamento
teórico de Authier-Revuz no que respeita ao estudo das ―heterogeneidades‖. Mas é
49
precisamente na concepção de interdiscurso que a autora encontra eco para pensar os fatos de
heterogeneidade.
O conceito de interdiscurso16
, tal qual concebido pela AD3, compromete a
transparência antes conferida aos discursos, de vez que é entendido enquanto memória
discursiva, ou seja, como um conjunto de já-ditos que sustenta, irremediavelmente, todo e
qualquer dizer ―e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada de palavra‖ (ORLANDI, 2003, p.31). O processo de
construção dos sentidos extrapola a palavra, já que coloca os dizeres em relação com a
exterioridade, considerando não apenas o que é dito ad hoc, mas também alhures, o que
coloca historicidade e memória nas entranhas da concepção de interdiscurso. Nesse sentido,
Courtine (1984, apud ORLANDI, 2003, p.32) coloca esse conceito, em termos de
constituição, como representado num eixo vertical em que teríamos todos os dizeres e já-
ditos; no interdiscurso, conforme o autor, fala uma voz sem nome: é necessário que o dizer de
um sujeito específico, em dado momento, seja apagado da memória para que possa significar
num dizer ―atual‖. É o interdiscurso, como vemos, a instância que disponibiliza dizeres que
constrangem o modo como os sujeitos significam em uma situação discursiva específica.
Enxergamos aí a assunção da heterogeneidade fundante, vale dizer, estrutural, de que fala
Authier-Revuz.
O interdiscurso está pautado na premissa de que alguma coisa fala antes, algures,
independentemente. Esse ―anterior pressuposto‖, conceitualmente, não constitui um ―antes-
passado-vivido‖, mas a busca de um efeito de sentido no entrelaçamento do passado com o
presente. Esse modo de ver a relação passado/presente acena para a psicanálise, na medida em
que:
A terapêutica psicanalítica entrevê, nas palavras do paciente, uma
organização que ―trai‖ uma gênese, impossível, entretanto, de ser
capturada. A AD3 dialoga com sua matéria, procurando surpreender
os pontos em que a rede de sentidos relativamente estável que
constitui o discurso – o sempre-já-aí (o pré-construído) – é
desestratificada pelo equívoco que atravessa o acontecimento.
(TEIXEIRA, 2005, p.180).
16 Para falar de interdiscurso, faz-se necessário mencionar o conceito de intradiscurso, que vem a ser a
intervenção do sujeito no espaço do repetível.
50
Quanto ao ajuste teórico acerca da instância subjetiva, houve, em verdade, uma
colaboração mútua entre o retorno crítico operado por Pêcheux acerca da questão do sujeito e
o estudo da heterogeneidade enunciativa que Authier-Revuz começara a esboçar.
À luz de novos direcionamentos nos campos da História, da própria AD e da
Linguística, interessam-nos, no sentido de respaldar o parágrafo anterior, os frutos
plantados/colhidos nessa última área, mais especificamente relacionados ao terreno da
enunciação.
A partir dos estudos acerca dos processos enunciativos empreendidos por Authier-
Revuz (19810), Pêcheux subsidia os encaixes teóricos da disciplina, vez que não levou a
fundo o chamamento feito outrora à psicanálise freudo-lacaniana no que toca,
fundamentalmente, ao atravessamento inelutável do inconsciente no discurso.
Vemos que a instância do inconsciente está contemplada no interior do conceito de
interdiscurso, na medida em que o entendimento dessa categoria trata da inserção de um
discurso em outro, no sentido de as filiações históricas estarem organizadas em memórias e as
relações sociais em redes de significantes. Ad hoc, é assim que o discurso é concebido
enquanto lugar do outro.
Explanamos, a seguir, o destaque, conferido por Authier-Revuz, a dois aspectos da
dita conversão crítica do olhar:
1. A promoção da ―sequência em sua singularidade‖ como objeto da AD,
conferindo-se à materialidade do fio do discurso, às manifestações concretas da
enunciação, um passo que não lhes era antes reconhecido, em virtude de ser ela
tomada com um ―espaço imaginário‖;
2. A ruptura – irreversível a partir do questionamento da noção de formação
discursiva – com a concepção homogênea do discurso que prevalecia na primeira
AD, em favor de uma heterogeneidade fundante do discurso e da sequência.
A convocação do tríptico que alicerça a teoria da heterogeneidade enunciativa pensada
por Authier-Revuz produz deslocamentos importantes que tornam mais complexas e
abrangentes as investigações em enunciação, uma vez que torna possível considerar o estudo
da reflexividade opacificante da modalidade autonímica tanto no plano da língua, sob o
ângulo da linearidade do dizer, como no plano do discurso, sob o ângulo do que essas formas
dizem do sujeito do dizer. Esse chamamento, no entanto, não desvirtua o foco do estudo de
51
Authier-Revuz, como ela mesma esclarece, referindo-se a dois dos eixos teóricos por ela
acionados:
O apoio a esses dois exteriores teóricos que são a teoria lacaniana e a
análise do discurso no sentido de Pêcheux em seus últimos
desenvolvimentos, em oposição aos exteriores antagônicos que
teorizam um sujeito pleno, fonte intencional de um sentido expresso
através do instrumento de comunicação [...]. (1995, p. 59).
Dentro do arcabouço teórico que embasa nossa pesquisa, interessa-nos mais de perto a
esquematização, proposta por Authier-Revuz, da heterogeneidade enunciativa, sobretudo no
tocante às formas de mostração / marcação dessa heterogeneidade, conforme apresentamos a
seguir.
Desde logo, apresentamos esquematicamente o organograma da Heterogeneidade
Enunciativa, tal como propõe Authier-Revuz, de modo que possam ser visualizadas as
considerações feitas até este momento do trabalho:
3.3 Heterogeneidade enunciativa: modalidades
A partir do alicerçamento teórico calcado no conceito bakhtiniano de dialogismo, da
noção freudo-lacaniana de sujeito (barrado) do inconsciente e da concepção de interdiscurso
de Pêcheux, Authier-Revuz (1982) toma para si o estudo enunciativo que trata das formas que
evidenciam a língua como espaço de equívoco, onde Um e Não-Um se entrepõem, negociam
e se desdobram; como uma arena de embate constante entre transparência e opacidade.
Heterogeneidade
Mostrada
Não-marcada
Marcada
Heterogeneidade Enunciativa
Heterogeneidade
Constitutiva (condição mesma do
discurso)
Dialogismo
bakhtiniano
Inconsciente
Lacaniano
Interdiscurso
Pecheutiano
52
O estudo da autora acerca da heterogeneidade enunciativa é entendido como uma
forma de negociação do sujeito com o seu dizer. Essa negociação pode se representar, como
veremos mais detalhadamente a seguir, de duas maneiras: por meio da heterogeneidade
constitutiva, cuja formatação conceitual remete à presença - inelutável - do Outro, diluída no
discurso, não como objeto, mas como presença integrada às palavras do outro – porque da
ordem do inconsciente -, condição mesma do discurso; por meio da heterogeneidade
mostrada, que marca a presença do outro no fio do discurso, de modo a criar como que uma
zona de distanciamento entre o sujeito e seu(s) dizer(es).
.
3.3.1 Heterogeneidade constitutiva
Consoante Authier-Revuz (1982), o princípio da heterogeneidade parte da IDEIA de
que a própria linguagem é heterogênea na sua constituição; como a materialidade do discurso
é de natureza linguística, é lógico considerá-la também heterogênea. Porém, quando se fala
em linguagem heterogênea, restringe-se tal princípio, praticamente, ao reconhecimento das
outras vozes que marcam as palavras, conforme as noções de dialogismo e de polifonia de
Bakhtin, o que, de certa forma, configura um olhar reducionista dos fatos de alteridade que
constituem a linguagem e seus sujeitos. O posicionamento da autora aponta para uma
dimensão estrutural do heterogêneo, conforme sua própria colocação no texto de 1991:
[...] parece um traço característico e positivo deste colóquio, que aqui
se manifesta um acordo sobre o fato de não considerar os
―heterogêneos-rupturas sobre o fio‖ como simples escórias, rebarbas,
defeitos, faltas desejos etc... de desempenho, mas, ao contrário, de
ligá-las em sua aparente irregularidade a uma regularidade
estrutural de outra ordem, regularidade que é da ordem de um não-
um. (p.177).
Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da
heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada (cf. 3.3.2). O heterogêneo constitutivo da
enunciação ―está presente nela, em ação, de maneira permanente, mas não diretamente
observável‖ (1991, p.179). Esse tipo de heterogeneidade se refere à presença do Outro diluída
no discurso, não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro, condição
mesma do discurso, e o sujeito desaparece para dar espaço a um discurso-outro. Julgamos de
suma importância sublinhar que Authier-Revuz se refere ao sujeito tal como a psicanálise
lacaniana o concebe, isto é, um ser dividido pelo inconsciente, mas que, imaginariamente,
53
acredita-se senhor de si e de seu discurso. Essa fissura, no entanto, é desconhecida pelo
sujeito que, ao pensar que fala, é falado por um Outro que foge a seu domínio.
Assim, segundo a autora:
A heterogeneidade constitutiva do discurso e a heterogeneidade
mostrada no discurso representam duas ordens de realidade diferentes:
a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos
não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição.
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p.32).
3.3.2 Heterogeneidade mostrada
O heterogêneo manifesto, que está sobre o fio do discurso, ―produz nele rupturas
observáveis‖ (AUTHIER-REVUZ, 1991, p. 174). Essa heterogeneidade mostrada marca o
discurso com certas formas que criam um mecanismo de distanciamento entre o sujeito e
aquilo que ele diz. Chamamos atenção para o fato de não se tratar tão-somente de a
heterogeneidade mostrada ser um espelho, no discurso, da heterogeneidade constitutiva do
discurso; também não é de todo ―independente‖. Na verdade, ela - a heterogeneidade
mostrada - corresponde a uma forma de negociação necessária do sujeito falante com aquela
heterogeneidade constitutiva - inelutável, mas que lhe é necessário desconhecer; assim, tal
negociação se assemelha ao mecanismo de denegação - nos termos freudianos; é uma negação
que ocorre sob forma de denegação. Nas palavras de Roudinesco e Plon (1997, p.145), o
mecanismo de denegação é proposto por Freud ―para caracterizar um mecanismo de defesa
através do qual o sujeito exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou
existência ele recalca‖. Preso em sua própria palavra, o locutor, ao marcar explicitamente por
formas de distanciamento – pontos de mostração de heterogeneidade em seu discurso -,
delimita e circunscreve o outro, e, fazendo isso, afirma que o outro não está em toda parte.
Dessa forma, ao designar o outro, em um ponto do discurso, o locutor: (i) institui
diferencialmente o resto desse discurso como se emanasse dele próprio; (ii) afirma, ao mesmo
tempo, pelo estatuto contingente que é dado a essas emergências do outro, que o discurso, em
geral, é potencialmente homogêneo; (iii) e afirma, pela posição metalinguística na qual se
coloca seu domínio de sujeito falante, em condição plena de separar o Um do ―outro‖, do não-
Um: seu discurso do discurso dos outros; e, mais ainda, ―ele e seu pensamento, da língua que
ele observa do exterior como um objeto‖ (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.73). Assim, as formas
explícitas de heterogeneidade respondem à ameaça que representa, para o desejo de domínio
54
do sujeito falante, o fato de que ele não pode escapar ao domínio de uma fala que,
fundamentalmente, é heterogênea. Por meio dessas marcas, localizando o outro no fio do
discurso, o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do Um. É nesse sentido que a
modalidade mostrada de heterogeneidade pode ser considerada como um modo de denegação
no discurso da heterogeneidade constitutiva que depende do outro no Um.
Esta última forma de heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando
marcada, é da ordem da enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo,
o discurso direto, as palavras entre aspas, o uso de itálico, a citação. Vejamos alguns
exemplos desse tipo de heterogeneidade:
(1) Seu discurso teve o efeito de uma “bomba”.
(2) Lidiana...Aquela garota tem sexapeel!
(3) Olhou pra mim e disse: é o fim.
Se for não-marcada, então, é da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso
indireto livre, a intertextualidade, a ironia, o pastiche, a alusão. Nos termos de Authier-Revuz:
―Observando a existência dessas formas marcadas, explícitas [...], deparo-me [...] com as
sequências nas quais a presença do outro só é indicada / reconhecida implicitamente, portanto
aleatoriamente.‖ (1982, p.20).
Recorrendo à definição proposta pela Análise do Discurso francófona, que incorpora a
noção de heterogeneidade proposta por Authier-Revuz, esclarecem Charaudeau &
Maingueneau (2004, p.261) que:
A ‗heterogeneidade mostrada‘ corresponde à presença localizável de
um discurso outro no fio do discurso. Distinguem-se as formas não-
marcadas dessa heterogeneidade e suas formas marcadas (ou
explícitas). O co-enunciador identifica as formas não marcadas
(discurso indireto livre, alusões, ironia, pastiche...) combinando em
proporções variáveis a seleção de índices textuais ou paratextuais
diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao
contrário, são assinaladas de maneira unívoca; pode tratar-se de
discurso direto ou indireto, de aspas, mas também de glosas que
indicam uma não-coincidência do enunciador com o que ele diz
(modalização autonímica).
Reapresentamos abaixo o organograma da heterogeneidade enunciativa (cf. item
3.2.3), agora com o detalhamento das categorias que o compõem, tal qual pensadas por
Authier-Revuz: ·
55
3.4 Heterogeneidade mostrada, intertextualidade stricto sensu e marcação: uma implicação
A nosso ver, dada porção de texto que se nos apresente - independentemente da
estratégia que materializa, num ponto específico da cadeia do dizer, a irrupção do outro no fio
discursivo- como marcada estará, fatalmente, mostrando tal feito. É esse ―mostrando‖, na
verdade, a causa da inquietação que suscitou nossa pesquisa, vez que não nos contentamos
com a redução dos fenômenos abarcados por esse termo.
Longe da pretensão de sugerir novas nomenclaturas e cair na ―febre‖ taxionômica
comum às investigações acadêmicas, defendemos tão somente que a outros fenômenos
textuais seja também conferido o estatuto de marcado/mostrado.
A intertextualidade stricto sensu está entre os modos de marcação-mostração que
consideramos lícitos, em se tratando da ativação de um referente, textualmente presente ou
não, em dada situação de interação.
Antes de aprofundarmos nossa argumentação quanto à relação de implicação a qual
estamos defendendo, faremos um breve registro das noções de intertextualidade postuladas
por estudiosos do texto, certos de que tal incursão contribuirá quando da retomada da
discussão propriamente.
Heterogeneidade
Mostrada (rupturas observáveis)
Não-marcada (leituras pragmáticas)
Marcada
Alusão, pastiche,
paródia etc.
Aspas, itálico,
negrito, verbos
dicendi etc.
Heterogeneidade Enunciativa
Heterogeneidade Constitutiva (ruptura não diretamente observável)
Dialogismo
bakhtiniano
Inconsciente
Lacaniano
Interdiscurso
Pecheutiano
56
3.4.1 O conceito fundador de Kristeva
O conceito de intertextualidade a partir do qual todos os outros derivaram foi
introduzido por Kristeva, membro atuante da crítica francesa, na década de 60, no âmbito da
Teoria Literária. O tratamento, por parte da autora, dispensado a este fenômeno provocou uma
espécie de ranhura profunda na ideia cristalizada e até então estabelecida sobre o autor como
única fonte do texto. Suas considerações acerca da intertextualidade transcendem os umbrais
da literatura; têm uma aplicação bem mais ampla, na medida em que considera,
independentemente do gênero a que pertence, que todo texto particular vem constituído de um
intertexto, numa sucessão de textos já escritos ou que ainda estão para sê-lo. Segundo ela,
―qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de
um outro texto‖.(KRISTEVA, 1974, p.60). Sob tal ótica, o texto não é simplesmente produto
do trabalho de "escritura" de um único autor: o ato mesmo da escritura nasce de seu
relacionamento com outros textos e com estruturas da própria linguagem. A autora diz que a
palavra ―[...] não é um ponto, mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de
diversas escrituras‖ (1969, p.66). Apresenta-nos a palavra como elemento que une o modelo
estrutural ao contextual, espacializando-a em três dimensões: a do sujeito da escritura, a do
destinatário e a dos textos exteriores (sujeito – destinatário – contexto), todas calcadas na
ambivalência – ―inserção da história (da sociedade) no texto e do texto na história17
‖ - ou na
dialogicidade – já nos termos de Bakhtin.
Esse modo de conceber o ato da escritura dos textos gerou interpretações exacerbadas,
a exemplo do que fez Compagnon18
, o qual, valendo-se também do que disse Barthes19
acerca
da intertextualidade, considera que ―escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A
citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao
de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação‖. (1996, p.31). Gerou também, na
17
Cf. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 71.
18
Para um detalhamento maior do estudo do autor acerca da citação, cf. COMPAGNON, A. O trabalho da
citação. Belo Horizonte: UFMG, 1996, donde diz ainda ser ―o trabalho da escrita é uma reescrita já que se trata
de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-
los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim? Reescrever, produzir um texto a partir de suas
iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos
em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário‖.(p. 29).
19
Referimos-nos ao dizer de Barthes (1974) que reforça o pensamento de Kristeva: "todo texto é um intertexto;
outros textos estão presentes nele [...] o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é
raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas", asserção que nos permite
concluir que também esse autor concebe a intertextualidade no âmbito das relações implícitas. (apud BENTES,
2003, p.269).
57
direção inversa, interpretações reducionistas em relação ao fulcro do pensamento de Kristeva.
Sectário desse grupo, citamos Schneider:
Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de
atribuições, por que então assinar um texto defendendo essa
intertextualidade absoluta? Se o texto moderno, segundo Barthes, é
essa ‗citação sem aspas‘, por que deveria ficar ligado a um nome, uma
vez que esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou indicar a
origem? (1990, p.43).
Sob pontos de vista teóricos distintos, é partindo do conceito fundador de Kristeva que
o fenômeno da intertextualidade vem sendo tratado, constituindo um dos grandes temas de
discussão no interior dos estudos linguísticos.
Conforme essa visada, qualquer sequência textual é desdobramento de uma outra
sequência precedente, raciocínio que torna possível pensarmos nas sequências textuais como
um todo como que funcionando a partir de duas orientações complementares: (i) sob o signo
da reminiscência, vez que o que temos é sempre a evocação de outro texto; (ii) sob o signo da
transmutação de textos.
Na esteira desse raciocínio – bastante radical, diga-se -, quaisquer formas de expressão
textual-discursivas não passam de releituras de textos precedentes; podemos, então, enxergar
os ―produtores‖ de textos como, digamos, atualizadores de memória.
O texto é aqui compreendido como evento situado na história e na sociedade, que não
apenas reflete uma situação; é ele essa própria situação. Tais considerações acerca do
(inter)texto apontam para um completo apagamento das fronteiras entre o que é meu e o que é
de outrem. Isso nos diz que o texto está relacionado a outro texto e é de algum modo afetado
por ele.
Em suma, a compreensão da instância textual delineada pela autora vê o texto
enquanto voz que dialoga com outros textos, mas também que funciona como eco de outras
vozes de seu tempo, da história de um dado grupo social, de seus valores, crenças, conceitos.
Trata-se de um território dinâmico, erigido sob o signo da confluência de diversas vozes, no
qual habitam, mutatis mutandis, escritor e leitor. Segundo Kristeva20
, o papel do leitor é mais
importante do que o do escritor, na medida em que este último desaparece na teia da
intertextualidade, enquanto aquele constrói o significado textual não de forma isolada, mas no
diálogo com outros textos.
20
Cf. KRISTEVA (ibidem, p. 117).
58
Sob pontos de vista teóricos distintos, é derivado do conceito de intertextualidade
fundado em Kristeva, que esse fenômeno vem sendo investigado e constitui um dos grandes
temas de discussão no interior dos estudos linguísticos, bem como de outras áreas do saber.
3.4.2 A taxionomia das transtextualidades de Genette
Genette (1982), ao tratar dos diálogos entre textos, trabalha com o conceito
transtextualidade. Assim denomina aquelas relações entre textos que extrapolam a unidade
textual de análise. Nos termos do autor, o conceito de transtextualidade abarca ―tudo o que
coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos‖ (GENETTE, 1982, p.
7). Em outros termos, um texto é um emaranhado de relações não somente intertextuais, mas
também interdisciplinares.
A tipologia de relações transtextuais postulada por Genette (1982) distingue:
a) Intertextualidade – trata-se da presença observável de um texto em outro;
b) Paratextualidade – trata-se do conjunto das relações que o texto estabelece com os
segmentos de texto (título, subtítulo, prefácio, epígrafes, ilustrações etc.) que
compõem determinada obra;
c) Metatextualidade – trata-se da relação que assume forma de comentário que une um
texto a outro texto, ainda que não haja citação evidenciando a relação crítica como
paradigma;
d) Hipertextualidade – trata-se da suposição da existência de um texto em função do qual
se estrutura outro texto; essa (re)estruturação pode ser operada tanto por derivação
como por transformação;
e) Arquitextualidade – trata-se de uma ―ocorrência‖ de natureza mais abstrata, por ser
menos flagrante, menos pontual; é articulada pela autodeterminação do gênero a que o
texto pertence.
Dentro da taxionomia que Genette propõe para as transtextualidades, interessa-nos
particularmente o modo como concebe a intertextualidade, já que nossa investigação dá-se em
função de possibilidades textualmente observáveis.
Como bem apreende Cavalcante (2007),
A transtextualidade por intertextualidade restrita diz respeito a
relações de co-presença entre textos e seria identificada 'pela presença
59
efetiva de um texto em outro'. Aqui estão abrigadas as citações com
aspas (mais modernamente, elas aparecem com outras espécies de
grifo, como o itálico ou o negrito), não importando que se apresentem
com ou sem referência de autoria [...]. ( p. 119).
Entendemos que, para determinado fenômeno ser compreendido como sendo
intertextual, é na esteira desse olhar que deve ser encarado: dentro do horizonte daquilo que
pode ser textualmente observável.
Partiremos da noção de intertextualidade postulada por Genette – e,
conseqüentemente, por Piègay-Gros (1966) – para, então, estendermos o alcance do que pode
ser considerado como da ordem do observável.
3.4.3 As relações de co-presença e de derivação de Piègay-Gros
Para nós, menos que fazer uma incursão pelos estudos que versam sobre o tema
Intertextualidade, interessa-nos, neste momento, retomar particularmente as considerações de
Piègay-Gros (1996), respeitantes a sua proposta de tipologia da intertextualidade, fundada em
Genette (1982). Isso porque identificamos uma estreita relação entre esta proposta e a de
Authier-Revuz, no que toca aos recursos linguísticos para se localizar a presença do outro no
fio do discurso. Essa relação é uma das contribuições importantes de nossa pesquisa, pois
nasce daí a sugestão para que sejam consideradas maneiras outras de marcação de vozes
alheias na materialidade textual.
Na esteira de Genette (1982), que, como vimos, preferiu incluir a intertextualidade
como uma forma de transtextualidade, Piègay-Gros (1996), na tentativa de particularizar
ainda o estudo acerca da intertextualidade genettiana, distingue dois tipos de relações
intertextuais: as baseadas numa relação de co-presença entre dois ou vários textos e as que se
baseiam numa relação de derivação21
. A partir dessa distinção, opõe as relações explícitas às
implícitas, para descrever as diferentes formas intertextuais por ela elencadas. A autora
admite que, no primeiro caso, a referência pode ser assinalada por um código tipográfico, ou,
no plano semântico, pela menção ao título da obra ou do seu autor; já naquele, relações
podem ser estabelecidas mesmo com a ausência de qualquer sinal in praesentia de vozes
outras co-atuando no fio discursivo. Aqui, a ação de colocar o intertexto em evidência fica sob
incumbência do leitor. Os seguintes mecanismos assinalam a intertextualidade: a citação, a
21
Numa relação de co-presença há, além da geração de um novo texto, uma incorporação ao discurso, o que, na
relação de derivação, não ocorre. Embora discordemos dessa distinção, é a partir dessa diferenciação que a
autora delineia sua tipologia.
60
referência, o plágio e a alusão. Os dois primeiros designariam relações explícitas do
intertextual, enquanto que os dois últimos só deflagram o intertextual de maneira implícita.
Vejamos, sinteticamente, como a autora descreve cada um desses mecanismos e sua
justificativa para dividi-los em grupos distintos.
A citação, nas palavras da autora, ―aparece legitimamente como a forma emblemática
da intertextualidade: ela torna visível a inserção de um texto em outro‖ (1996, p.45). Neste
caso, as marcas tipográficas é que materializam a heterogeneidade manifesta, daí seu lugar
entre as formas explícitas de relação intertextual. Em contrapartida, embora seja o mecanismo
mais codificadamente visível de marcação, ainda de acordo com Piègay-Gros (1996, p.46), a
citação é também considerada como uma forma mínima, já que se impõe no texto, sem exigir
do leitor qualquer ―esforço‖ ou erudição particular (em tempo: o leitor é ―poupado‖ no que
tange à identificação da marca; para sua interpretação, exige-se, sim, trabalho por parte dele,
ponderamos). Note-se que também Piègay-Gros privilegia como formas de marcação aquelas
que são tipicamente aceitas. Ainda que haja, assumidamente, o apelo às marcas formais como
condicionantes da citação, a autora adverte que:
Seu reconhecimento se subentende, mas a maior atenção deve ser
dirigida à sua identificação e à sua interpretação: a escolha do texto
citado, os limites de seus recortes, as modalidades de sua montagem, o
sentido que lhe confere sua inserção dentro de um contexto inédito...
São também elementos essenciais na sua significação. (1996, p. 46).
A referência, diferentemente da citação, não ―mostra‖ o outro texto ao qual faz
remissão. É o artifício utilizado quando a intenção é apenas a de fazer com que o leitor seja
levado a um texto, sem que este seja citado literalmente. Nos termos de Piègay-Gros,
A referência, como a citação, é uma forma explícita de
intertextualidade. Mas não expõe o outro texto ao qual nos remete. É,
portanto, uma relação in absentia que ela estabelece. È por isso que
ela é privilegiada sempre que for o caso apenas de remeter o leitor a
um texto, sem citar o texto literalmente. (1996, p. 48).
Ainda que se estabeleça uma relação in absentia, sua presença entre as formas
explícitas de intertextualidade deve-se ao fato de a remissão ser feita de maneira explícita,
mas não se valendo de códigos tipográficos formais. Neste ponto, podemos afirmar que há,
indiretamente, no estudo da autora, um reconhecimento de que a referência funciona como
mecanismo de marcação. A referência de que fala a autora não abrange todo o fenômeno da
61
referenciação, senão apenas uma parte dele, especificamente quando se empregam expressões
referenciais que mencionam, por exemplo, entidades, personagens de outros textos.
Valemo-nos dessa brecha para já fixarmos nosso posicionamento em defesa de
estratégias de marcação que, a exemplo do que ocorre (ainda que bastante discretamente) na
referência, não se manifestam por meio de mecanismos prototípicos de marcação. Aqui, o
código tipográfico já não é absoluto em se tratando de marcação, fato que fomenta nossa linha
argumentativa ―contra‖ o imperialismo dos marcadores formais indiscutivelmente aceitos.
Acreditamos, assim como se dá na referência, na explicitude marcativa ocasionada por
expressões referenciais - que, por definição, abarcam todas as formas de designação de
referentes, a partir de como o enunciador pretende que o co-enunciador os identifique e os
interprete.
Questionamos, ainda, a própria diferenciação entre os tipos supramencionados de
intertextualidade por co-presença. Se, em ambos os casos, há, conforme Piègay-Gros, a
remissão do co-enunciador a outros textos, sendo que na referência não ocorre citação literal
do texto-fonte, o que a impede de figurar entre os casos de alusão, que são caracterizados
exatamente pela implicitude do texto ao qual se reporta?
A esse respeito, seguimos a orientação de Cavalcante (2007), que, ao analisar casos de
intertextualidade com remissão explícita a personagens shakesperianos, sugere acertadamente
que:
Para manter a referência como um tipo de intertextualidade explícita
de co-presença, é mais coerente considerá-la como uma remissão
direta ou ao próprio texto.
[...] Preferimos, portanto dizer que a menção direta aos personagens
[de obras literárias, humorísticas, publicitárias etc] constitui um caso
de intertextualidade explícita por referência, ao passo que a remissão
indireta à obra a que essas entidades pertencem é um caso de
intertextualidade explícita por alusão. (p. 125).
Não faz parte de nossas preocupações a classificação em si que a autora sugere para os
casos de intertextualidade; independentemente de sob que categorias a ocorrência do
intertextual esteja abrigada, o fenômeno, para nós, apresenta-se como heterogêneo-ruptura, o
que quer dizer que comporta o não-um na materialidade linguística: temos casos de
mostração-marcação, portanto.
No terreno do intertextual implícito, temos o plágio. Trata-se de uma espécie de
citação não-marcada. A autora nos diz que ―a citação está para a intertextualidade explícita,
assim como o plágio está para a intertextualidade implícita‖ (2007, p.50). A diferença entre
um e outro é assegurada pelo critério da marcação formal, já que, em ambos os casos, trata-se
62
de um discurso literal do outro. Neste caso, para ser compreendido como tal, o leitor deve
reconhecê-lo. O plágio é, portanto, uma citação sem as marcas que lhe são devidas. Com
efeito, trata-se de um recurso fraudulento de ―mostração‖ do outro no fio discursivo.
Quanto à alusão, a autora reconhece um apelo particular à memória do leitor, já que
supõe que ele possa compreender, nas entrelinhas, a sugestão promovida pelo autor, sem que
isso seja expresso diretamente. Baseia-se, normalmente, num jogo de palavras, o que requer
do leitor, além de memória, inteligência e perspicácia. Trata-se de um mecanismo bastante
intrincado que consiste em ―fazer perceber a relação de uma coisa que se diz com outra que
não se diz, e assim essa mesma relação revela a ideia‖ (FLAMARION, 1977, apud PIÉGAY-
GROS, 1996, p. 52).
Justifica-se, assim - pela ausência de marcação formal; por ser de natureza mais
discreta e sutil -, conforme a autora, a alusão estar circunscrita entre as relações intertextuais
implícitas. Trata-se de um procedimento que não está nem dentro dos limites do que Piègay-
Gros toma por explícito nem dentro do campo do literal. Ao contrário do que ocorre com a
referência, a alusão ―solicita diferentemente a memória e a inteligência do leitor e não quebra
a continuidade do texto‖ (p.52), o que nos habilita a compreendê-la como uma referência por
vias indiretas, a qual não explicita o que se pretende enfocar.
A autora reconhece que a alusão será tanto mais eficaz quanto mais ela puser em jogo
um texto conhecido, a partir do qual a associação de uma ou duas palavras será o bastante
para estabelecer uma conexão com o texto-fonte. Nesse sentido, ao exemplificar tal
procedimento, diz ser possível afirmar, sem maiores riscos, que a alusão a La Fontaine não
passará despercebida. Vejamos:
(5) Velho oceano, tua grandeza material não se pode comparar a nada, senão na
medida em que se imagina o tipo de poder ativo que foi necessário para produzir a
totalidade de tua massa. Não se pode abraçar-te de um golpe de vista. [...] O homem se
alimenta de substâncias nutritivas e envida outros esforços, dignos de uma melhor
sorte, para parecer gordo. Que ela se inche tanto quanto queira, essa adorável rã. Fique
tranqüila, ela não te igualará em largura; eu o suponho, pelo menos. Eu te saúdo, velho
oceano! (Lautréamont, Les Chants de Maldoror, canto I, 1869).
Neste exemplo fornecido por Piègay-Gros, vemos que a alusão transpõe os termos da
relação instaurada por La Fontaine: a rã seria o homem que se pretende forte como o boi, isto
é, o oceano. A moral que o autor de Les Chants de Maldoror tira de sua alusão seria, então, a
pequenez do homem frente à grandeza do oceano. ―A singularidade dessa alusão é que ela
mostra claramente o princípio da fábula (a rã é como o homem, orgulhosa e inconsciente de
63
sua fraqueza) e supervaloriza sua significação, sem citá-la explicitamente.‖ (PIÈGAY-GROS,
1996, p. 54).
A autora não simplifica o fenômeno, como, a partir de um exemplo tão trivial, pode
parecer. Nem sempre, segundo ela, a alusão é tão cúmplice do leitor; muitas vezes, ela assume
a simples forma de uma retomada mais ou menos literal e implícita. Por vezes, pode o texto-
fonte, base do texto alusivo, estar distante da ―realidade‖ do leitor, exigindo que este tenha
uma bagagem cultural bastante privilegiada e aguçada. Diante disso, pondera a autora
(colocação com a qual não concordamos, diga-se, já que sustentamos a independência de
fenômenos desse jaez):
Qualquer que seja o jogo de sentido que testemunha tal alusão, é
legítimo se perguntar se ela não se desvia, quando o texto ao qual se
refere não está mais ativamente presente na memória do leitor, numa
―fonte‖ que deixa de interpelar diretamente o leitor e que não pode ser
percebida senão pelos eruditos (1996, p.55).
E conclui:
É, pois, somente quando ela [a alusão] é posta em evidência, pela
referência explícita do texto ao qual se faz implicitamente a
referência, que seu sabor sutil, a graça discretamente irônica que ela
constitui podem aparecer novamente. [...] Manifestar a fonte é,
portanto, desmontar o mecanismo de alusão para lhe permitir, em
seguida, inscrever obliquamente o significado. (1996, p. 55).
Voltando a nosso propósito ao trazer Piègay-Gros à baila, enxergamos que tanto esta
autora quanto Authier-Revuz, para demarcar a fronteira do que é explícito / marcado para o
que é implícito / não-marcado, respectivamente, tomam por critério apenas mecanismos já
convencionados e consagrados.
Não obstante tenhamos vislumbrado uma possível aproximação entre a linha de
raciocínio seguida pelas autoras, cumpre chamar atenção para o fato de que o que é
considerado como intertextualidade para Piègay-Gros não recebe o mesmo tratamento em
Authier-Revuz. Para esta última, o que é da ordem do intertextual é fatalmente não-marcado -
ou, na terminologia de Piègay-Gros, implícito. Há uma diferença, a nosso ver, terminológica,
apenas; em termos mais abstratos, ambas privilegiam, na maioria dos casos, os mesmos
critérios para justificar a dicotomização, seja a da heterogeneidade mostrada (marcada / não-
marcada), seja a da tipologia da intertextualidade (explícita / implícita).
64
Independente da terminologia adotada, o que nos interessa de fato é a problematização
dos critérios adotados para se conceber ―algo‖ como sendo marcado – fazendo com que
localizemos o outro no fio do discurso – ou não. Além disso, interessa-nos também refletir
sobre os tipos de heterogeneidade que podem constituir ocorrências de intertexto22
.
Uma de nossas propostas, nesta pesquisa, é a de tentar mostrar textualmente, a partir
de ―marcadores‖ não-prototípicos, que as formas de heterogeneidade mostrada não-marcada
defendidas por Authier-Revuz podem ser problematizadas, se considerarmos mecanismos
outros que funcionem como marcadores eficazes de alteração no fio discursivo, como alguns
processos de referenciação, por exemplo.
3.4.4 A abrangência conceitual da intertextualidade em Maingueneau
Para esse analista do discurso, ao se falar de intertextualidade, uma diferenciação tem
de ser feita inicialmente: a separação entre intertexto e intertextualidade. O intertexto seria
todo o conjunto de fragmentos mencionados em determinado material de análise, ao passo
que a intertextualidade seria um sistema de regras implícitas que subjazem ao intertexto, ―o
modo de citação que é julgado legítimo na formação discursiva‖ (MAINGUENEAU, 2000, p.
88) em cuja dependência está aquele material de análise. O autor distingue, ainda, dois tipos
de intertextualidade: uma interna, que se daria entre discursos de um mesmo campo
discursivo23
, e a externa, que, ao contrário da do primeiro tipo, dar-se-ia entre discursos cujos
campos discursivos fossem distintos. Tais subcategorias, porém, não tratam de mecanismos
discursivos diferentes; ao contrário, são, nos termos de Maingueneau (2000, p. 89), ―duas
facetas de um mesmo funcionamento discursivo‖.
O conceito de intertextualidade proposto pelo autor nos leva a crer que o diálogo entre
textos pode entre discursos, gêneros, épocas etc, posicionamento que julgamos ilegítimos, na
medida em que consideramos como procedimento intertextual aquele que se presentifica por
ocasião do intertexto, de modo a tornar tangível o que de alheio comporta a materialidade
22
Nos termos de Maingueneau (2004), ―emprega-se frequentemente o termo intertexto para designar um
conjunto de textos ligados por relações intertextuais; [...] o intertexto é o conjunto de fragmentos convocados
(citações, alusões, paráfrases...) em um corpus dado, enquanto a intertextualidade é o sistema de regras implícitas
que subjaz a esse intertexto [...]‖.(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.289). 23
Conforme Maingueneau (2005, p.36), um campo discursivo deve ser entendido como o conjunto de formações
discursivas em concorrência, delimitando-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo.
O autor chama atenção para que essa ―concorrência‖ seja entendida em sentido amplo, abrangendo não apenas o
enfrentamento aberto, mas também a aliança, a indiferença aparente etc. entre discursos que têm a mesma função
social e divergem quanto à maneira de exercê-la. São exemplos de campos discursivos o político, o pedagógico,
o filosófico, etc. ou subconjuntos desses, que compõem, no interior desses campos maiores, uma configuração
relativamente autônoma.
65
linguística. Não faz parte de nossas preocupações proceder ao exame da interferência da
interdiscursividade na rede de relações intertextuais. Dito isso, reforçamos que restringiremos
o entendimento de intertextualidade à presença de outros textos em um texto, em níveis
variáveis, tal como foi pensada por Barthes (1973), condicionando-a, no entanto, a algum tipo
de assinalação do intertexto, fato que sustenta um dos desideratos desta pesquisa: o de incluir
a intertextualidade entre os modos de marcação de que dispõe o enunciador para (se) mostrar
na superfície textual.
Para Maingueneau (1997, p.120):
Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada,
toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita
em uma relação essencial com uma outra, aquela do ou dos discursos
em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua
identidade.
Na esteira desse raciocínio, vemos a definição mais ampla de interdiscursividade
proposta por Charaudeau e Maingueneau, que se põe paralelamente ao conceito lato de
intertextualidade, conforme a noção de interdiscurso apresentada pelos autores:
Mais amplamente, chama-se também de ―interdiscurso‖ o conjunto
das unidades discursivas com os quais um discurso particular entra em
relação implícita ou explícita. Esse interdiscurso pode dizer respeito a
unidades discursivas de dimensões muito variáveis. (CHARAUDEAU
& MAINGUENEAU, 2004, p.286).
A contraparte restrita do interdiscurso, no entanto, representa um conjunto de discursos
―que mantêm relações de delimitação recíproca uns com os outros‖ (p.286). Em consonância
com o que ensaia Cavalcante (2006), pensamos que, nos termos em que essa restrição é
colocada, pode-se considerar o fenômeno geral da alusão assinalando relações interdiscursivas
sem que, necessariamente, represente uma ocorrência de intertextualidade, de vez que a
alusão não pressupõe, necessariamente, intertextualidade, conforme afirma Piègay-Gros
(1996, p. 52), para quem ―[...] é evidente, com efeito, que a alusão ultrapassa em muito o
campo da intertextualidade‖.
A esse respeito, Cavalcante (2006), lucidamente, pondera:
A recíproca também não se verifica: nem toda intertextualidade se
manifesta, evidentemente, por alusão. E é preciso frisar que a
referenciação como um todo excede, com efeito, os limites da
intertextualidade. Reputamos a alusão como uma espécie de
66
referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização
para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele
deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. Se a alusão
não remeter à inclusão de um texto em outro, não se terá
intertextualidade, a nosso ver. Se remeter à interseção entre diferentes
tipos de discurso, falaremos apenas de interdiscursividade (em sentido
restrito) por alusão.
A referência a Maingueneau no presente trabalho assume relevância, na medida em que
embasa – mesmo que contraditoriamente - nosso posicionamento acerca do processo de
intertextualidade por meio de procedimentos alusivos, além de, obviamente, registrar o que
diz o autor sobre a intertextualidade no interior dos estudos textual-discursivos da Análise do
Discurso.
Frisamos, então, que, em se utilizando o procedimento alusivo como modo de remissão
a conhecimentos gerais compartilhados, aos já-ditos e esquecidos, teremos, em verdade,
aquela interdiscursividade mencionada supra, que concorre para as noções, mutatis mutandis,
de dialogismo e de heterogeneidade constitutiva.
67
CAPÍTULO IV
REFERENCIAÇÃO ______________________________________________________________________
Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!
(Paulo Leminski)
4.1 Conceito e processos
É em favor de uma visão não-realista de como a língua refere o mundo, a partir da
qual se assume uma instabilidade constitutiva das relações entre as palavras e as coisas, que a
noção tradicionalmente aceita de referência ―como simples representação extensional de
referentes do mundo extramental‖ (cf. KOCH, 2002) é substituída pela de referenciação. Em
consonância com a posição de Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995), que rejeitam todas as
concepções realistas de significação, evitando assim uma relação ingenuamente rígida entre a
linguagem e o mundo, e mais especificamente, assumindo a posição de Mondada & Dubois
(1995), que postulam uma visão processual em relação à significação, embasaremos as
considerações que se seguem.
Mondada (2001) nos diz que a referenciação privilegia a relação intersubjetiva e social
no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de
adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. Esta reorientação se
funda nos questionamentos de Mondada & Dubois (1995), acerca dos processos de
discretização e de estabilização, e assinala o caráter processual e dinâmico que emana do ato
de referir. A noção de referente acompanha esse deslizamento e é também substituída pela de
objeto-de-discurso. Esclarece Mondada (1994, p. 64):
O objeto de discurso caracteriza-se pelo fato de construir
progressivamente uma configuração, enriquecendo-se com novos
aspectos e propriedades, suprimindo aspectos anteriores ou ignorando
outros possíveis, que ele pode associar com outros objetos ao
integrar-se em novas configurações, bem como pelo fato de articular-
se em partes suscetíveis de se autonomizarem por sua vez em novos
objetos. O objeto se completa discursivamente.
68
Os objetos-de-discurso são, pois, interativa e discursivamente construídos pelos
participantes da atividade linguística. Não se trata de entidades que representam objetos do
mundo, com estrutura fixa e incontestável, e que preexistem ao discurso. Pelo contrário,
erigem-se e (re)elaboram-se dinâmica e progressivamente no curso da atividade discursiva.
Referir não significa mais uma atividade de rotular objetos de um mundo já existente. Longe
de ser uma abordagem eminentemente subjetivista, o que está sendo posto é que, mais do que
uma relação especular entre expressões referenciais e os objetos do mundo ou sua
representação cognitiva, trata-se de uma construção da relação do indivíduo com a realidade.
Ela, a realidade, ―é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o
mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele:
interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico,
social e cultural‖ (KOCH, 2004, p.61).
A referenciação, a partir de uma orientação que considere tais deslocamentos teóricos,
constitui uma atividade discursiva promovida por sujeitos sociais atuantes, por ocasião da
interação verbal. Seguindo este raciocínio é que, segundo Koch (2005), as formas de
referenciação, assim como os processos de remissão textual que se realizam por meio delas,
constituem escolhas do sujeito em função de um querer-dizer, ou seja, este sujeito realiza
escolhas significativas para concretizar sua proposta de sentido. É assim que, em
concordância com a autora, pensamos que a interpretação de uma expressão referencial
anafórica, por exemplo, consiste menos em localizar um segmento linguístico no texto (um
seu ―antecedente‖, simplesmente) do que em alcançar algum tipo de informação
anteriormente alocada na memória discursiva24
. Interessante, neste momento, elencar as
estratégias básicas de referenciação que constituiriam, conforme Koch (2006, p. 62), a
memória discursiva:
1. Construção / ativação: pela qual um ―objeto‖ textual até então não mencionado
é introduzido, passando a preencher um nódulo (―endereço‖ cognitivo,
locação) na rede conceitual do modelo de mundo textual: a expressão
linguística que o representa é posta em foco na memória de trabalho, de tal
forma que esse ―objeto‖ fica saliente no modelo;
24
―Qualquer discurso constrói uma representação que opera como uma memória partilhada ‗publicamente‘
alimentada pelo discurso. Os níveis / estágios sucessivos desta representação, ao menos parcialmente, para as
seleções feitas, em particular para as expressões referenciais. A ideia de que esta representação é o fim e a
restrição imposta nesta atividade discursiva é agora correntemente aceita‖.(APOTHÉLOZ E REICHLER-
BÉGUELIN, 1999, p.36).
69
2. Reconstrução / reativação: um nódulo já presente na memória discursiva é
reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma referencial, de
modo que o objeto-de-discurso permanece saliente (o nódulo continua em
foco);
3. Desfocalização / desativação: ocorre quando novo objeto-de-discurso é
introduzido, passando a ocupar a posição focal. O objeto retirado de foco,
contudo, permanece em estado de ativação parcial (stand by), podendo voltar à
posição focal a qualquer momento; ou seja, ele continua disponível para a
utilização imediata na memória dos interlocutores25
.
É a partir do pressuposto da referenciação assim concebida - como uma atividade
discursiva - que Mondada & Dubois (1995) e Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995) passam
a postular que a referência é, sobretudo, um problema que diz respeito às operações efetuadas
pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve; e que o discurso constrói os ―objetos‖ a
que faz remissão, ao mesmo tempo que é tributário dessa construção.
Antes de avançarmos na descrição de alguns processos referenciais, é imprescindível
que distingamos as categorias referir, remeter e retomar que, não raro, são concebidas como
se fossem termos sinônimos. Koch (2006) defende a posição de que se trata de algo
essencialmente diverso e estabelece a seguinte relação de subordinação hierárquica entre os
três termos:
(a) a retomada implica remissão e referenciação;
(b) a remissão implica referenciação e não necessariamente retomada;
(c) a referenciação não implica remissão pontualizada nem retomada .
Feita essa distinção, a autora conclui:
Portanto, sendo a referenciação um caso geral de operação dos
elementos designadores, todos os casos de progressão referencial são
baseados em algum tipo de referenciação, não importando se são os
mesmos elementos que recorrem ou não. A determinação referencial
se dá como um processamento da referência na relação com os
25
A autora lembra que muitos problemas de ambiguidade referencial se devem a instruções pouco claras sobre
com quais objetos-de-discurso presentes na memória a relação deverá ser estabelecida.
70
demais elementos do co-texto (ou mesmo do contexto), mas não
necessariamente como retomada referencial (correferenciação).
(KOCH, 2006, p.59).
Esboçaremos, a seguir, os processos referenciais sobre cujas bases encamparemos
nossa investigação.
4.1.1 Introdução Referencial
Falar em introdução referencial requer que o objeto em questão apresente a conjunção
de dois fatores: tem de ser considerado como novo no cotexto e não pode ter sido engatilhado
por nenhuma entidade, atributo ou evento expresso no texto.
Consoante Cavalcante (2004), existem dois recursos fundamentais através dos quais se
faz a introdução de um referente considerado ―novo‖ no texto: ou ele é mencionado por
simples apelo à memória comum, sem nenhuma marca dêitica de remissão ao conhecimento
partilhado, como em (6), ou é expresso para remeter, por meio de expressões indiciais, a uma
das coordenadas dêiticas de pessoa (eu, você), tempo (hoje, amanhã), espaço (aqui, ali) ou
memória dos interlocutores (naquele dia, essa história de...), como em (7). A autora situa, no
primeiro caso, as introduções não-dêiticas; no segundo, todos os usos dêiticos puros.
(6) ―Por trás de um grande homem, sempre há uma grande mulher‖
(7) ―Nesta segunda-feira você não pode perder a estréia de Zorro, o cavaleiro mascarado.‖
Observe-se que os termos sublinhados em (6) não se prestam a um papel anafórico
nem dêitico, já que têm a função de não-continuidade referencial e não pressupõem o tempo/
espaço dos interlocutores. Em (7), o termo sublinhado exige a ancoragem na situação
enunciativa, sob pena de não ser satisfatoriamente interpretado, condição suficiente para lhe
conferir deiticidade.
Ainda segundo Cavalcante (2004), seria lícito dizer que as introduções não-dêiticas e
as introduções por dêixis de memória apontam ambas em direção ao campo dêitico do
conhecimento compartilhado entre os interlocutores da situação comunicativa, enquanto as
introduções por dêixis de pessoa, de tempo e de espaço remetem ao campo da situação
empírica de fala, o que nos faz supor que os critérios que separam as duas espécies de
remissão ao conhecimento partilhado apóiam-se no tipo de instrução dada ao co-enunciador e
71
nos implícitos que cada uma acarreta. A autora ilustra seu posicionamento a partir do esquema
abaixo:
Tipos de remissão
Ao conhecimento compartilhado À situação empírica
Introdução Dêiticos Dêitico Dêitico Dêitico Dêitico
não-dêitica de memória pessoal social espacial temporal
Não é privilégio das introduções referenciais (não-dêiticas e de memória) a invocação
à memória compartilhada, obviamente. Tal recurso pode, também, ser requerido nas
estratégias de continuidades referenciais, categoria que descreveremos a seguir.
4.1.2 Continuidades referenciais – as anáforas
Diferentemente dos casos descritos acima, as continuidades referenciais se
caracterizam pelo critério de remissão / retomada do referente. Aqui, a expressão referencial,
obrigatoriamente, tem de retomar uma âncora do co(n)texto. Nas palavras de Cavalcante
(2003), ―as continuidades referenciais fazem manter uma espécie de base de referencialidade,
que se percebe por algum gatilho no co(n)texto‖. A autora nos diz, ainda, que, para que haja
continuidade, não é obrigatório que exista sempre retomada total ou parcial de um mesmo
referente, como nas anáforas diretas; a ligação pode ser estabelecida somente entre uma
âncora e outro elemento contextual introduzido pela primeira vez no discurso, como no caso
das anáforas indiretas.
Não é de nosso interesse, pelo menos nesta fase da pesquisa, problematizar o quadro
classificatório desses processos, visto que desviaria a atenção do fenômeno para o qual
estamos querendo chamar atenção, a saber, a eficácia marcativa que tais processos carregam.
72
Desta forma, assumiremos as postulações de Cavalcante (2004), Koch (2002) e Marcuschi
(2005), para a descrição das continuidades referenciais (anáfora e dêixis) que se segue.
4.1.2.1 Anáfora Direta
Em se tratando de anáfora, faz-se necessário dizer que, para bem compreender esse
fenômeno e seus desdobramentos, é preciso que se tenha em mente que existem dois
processos anafóricos - um direto e outro indireto – e que esta divisão se dá em função da
realização ou não de uma retomada de referentes. Para Cavalcante (2004), só se deve
empregar a noção de retomada para os casos de recuperação total ou parcial de objetos de
discurso, ou seja, para as situações de correferencialidade. Assim sendo, as anáforas diretas
seriam necessariamente correferenciais, já que estas são as que se caracterizam pela retomada
total ou parcial de um referente no universo discursivo. Podemos visualizar a ocorrência desse
tipo de processo anafórico nos exemplos abaixo:
(8) ―Os homens são mesmo uns insensíveis; eles nunca sabem a hora certa de nos fazer
um elogio...‖
(9) ―Comer insetos faz mal?
Se você respondeu que sim, e ainda fez cara de nojo, não sabe o que está perdendo. Além
de não fazer mal algum, muitos insetos podem ser tão nutritivos – e saborosos – quanto
vários outros bichos que colocamos no prato todos os dias.‖ (reportagem –
Superinteressante, junho / 2004 / exemplo da autora).
Ao passo que o pronome ―eles‖ retoma completamente o antecedente ―os homens‖, o
sintagma nominal ―muitos insetos‖ é um tanto restritivo, pois se refere a apenas alguns
elementos do conjunto ―insetos‖, já introduzido, mas nas duas ocorrências, preservadas as
nuances, ocorre uma retomada de referentes.
Pode-se pensar, a partir dos exemplos dados, considerando-se o critério semântico-
lexical, em classificar tais anáforas correferenciais como co-significativas, já que a
significação de ―os homens‖ e de ―insetos‖ é preservada. Atenta a essa possível associação,
Cavalcante (2004), lembrando Koch & Marcuschi (2002), desfaz essa possibilidade de ilação
alertando que nem sempre correferencialidade e co-significação se equivalem, de vez que
muitas das anáforas correferenciais costumam recategorizar seus antecedentes e explicitar
essa recategorização por meio de formas com outros significados. Em relação à
recategorização, Tavares (2003, p. 45, apud CAVALCANTE, 2004) nos diz que:
73
Todos estes processos referenciais são movidos pela tentativa do
enunciador de complementar a designação de um objeto discursivo,
que ele julga, de início, inadequada ou insuficiente, sempre
procurando a expressão referencial mais apropriada, que levará o
interlocutor à reconstrução de suas ideias iniciais a respeito do
referente. Assim, ocorrem as recategorizações, que realizam uma
dupla função, a da referência propriamente dita, e a de acréscimo de
uma informação nova.
É comum que as recategorizações das anáforas correferenciais sejam assinaladas com
um elemento dêitico, geralmente um demonstrativo. Este elemento como que sinaliza para o
co-enunciador que o objeto foi refocalizado sob novo prisma. Vejamos:
(10) ―O PT revelou-se um partido de contradições. Como pode esse grupo fazer
chantagem com os colegas se livrar de uma CPI?‖ (Carta do leitor – Veja, março de
2004 / exemplo da autora)
Em (10), temos um caso de expressão referencial anafórica que comporta, dentro de si,
um elemento dêitico cuja deiticidade ―propriamente dita‖ (pessoal, espacial, temporal) é
baixíssima se comparada, por exemplo, a (7).
Ciulla (2002) propõe tratar-se de um fenômeno híbrido de anáfora e de dêixis; a
ocorrência simultânea desses dois fenômenos não se verifica somente entre anáfora e dêixis
textual. Segundo Cavalcante (2004), outros amálgamas entre anáforas correferenciais e dêixis
são ainda possíveis, como nos casos de apelo ao conhecimento compartilhado nos dêiticos de
memória.
Essa discussão nos renderia, certamente, muitos comentários, todavia, neste momento,
interessa-nos, em verdade, a transformação cognitiva do referente promovida pelo processo de
recategorização, tema do próximo subitem.
4.1.2.1.1 Recategorização
A partir das considerações feitas neste trabalho (cf. seção 4.1) acerca da referenciação
como processo - consoante o qual o ato da referência às coisas da realidade objetiva implica
etiquetá-las por meio da língua -, como uma atividade histórica e socialmente situada,
admitimos o viés sociocognitivista de nossa empresa. Koch (2004, p. 295) acertadamente nos
diz para onde o olhar de um estudo que se pretende calcado nessa dimensão sociocognitivista
da linguagem deve estar direcionado:
74
O sentido das palavras e textos não lhes é imanente e não é
depreensível numa atividade de cálculo com regras rígidas
previamente estabelecidas. O sentido é necessariamente situado
histórica e socialmente e é, também, plástico, no sentido de que, em
todos os níveis da linguagem, existe uma negociação entre os
interactantes para o estabelecimento desse sentido. A linguagem não
traz os objetos do mundo para dentro do discurso e sim trata esses
objetos de diversas maneiras, a fim de atender a diversos propósitos
comunicativos: passa-se a falar, então, de objetos-de-discurso.
Somente a partir da assunção de que os sentidos são construídos socialmente é que se
pode considerar a dimensão discursiva das atividades de categorização. Dessa forma,
categorizar constitui um processo. É, como vimos noutro momento deste trabalho, por esse
motivo que a Linguística do Texto utiliza o termo objetos-de-discurso em detrimento de
referentes (que corresponde, em outra perspectiva, a objetos do mundo), em se tratando de
referenciação.
Esclarecida a perspectiva em que entendemos o ato de categorizar, iniciamos nossas
considerações sobre o ato de recategorizar.
Fala-se em recategorização se determinado objeto-de-discurso, ao ser reativado em
certo momento do discurso, é designado a partir de propriedade diferente da eleita na
designação anterior. Nessa outra forma de designação do referente, há um processo mental em
jogo ―por meio do qual os objetos-de-discurso vão sendo reavaliados pelo falante; isso
envolve também uma dimensão social, uma vez que ele se efetiva para atender ao propósito
do falante de interagir com o interlocutor‖, diz Jaguaribe (2005), em seu projeto de tese de
doutorado.
É a partir dessa reavaliação que trazemos esse fenômeno para as discussões que este
trabalho propõe. Se o enunciador procede à reavaliação de determinado referente, é porque
supõe que o interlocutor acompanhará o procedimento realizado. A interação entre as partes
do ato discursivo, como sabemos, está pressuposta, o que nos permite asseverar que o ato de
recategorizar considera os conhecimentos partilhados do interlocutor, conforme corrobora o
dizer de Koch (2004, p. 282), que considera tais conhecimentos como indispensáveis para que
os falantes possam tomar uma série de decisões: o que deve ficar implícito e explícito na
superfície textual; que fatos devem ser enfatizados; que postura (intimidade, respeito,
distância, autoridade etc) um deve assumir em relação ao outro; em que gênero deve ser
vazado o discurso, etc.
Jaguaribe (2005, p.50), citando Tavares (2003), confirma nosso posicionamento:
75
O locutor tem autonomia para interferir no processo de designação, e
essa interferência, sempre encaixada sócio-culturalmente, será
motivada pela tentativa de ―adequação referencial‖ aos propósitos do
falante. Além de ter o direito de escolher a designação que julga mais
capaz de cumprir os seus objetivos, o falante pode, ainda, através da
recategorização, modificar as ideias iniciais que temos dos referentes,
ou acrescentando ou suprimindo atributos.
O ato de recategorizar deve ser concebido, como vemos, sociocognitivamente, já que é
constrangido por fatores de natureza social, cultural e toma por base processo mentais de
retomada referencial26
.
Utilizando-se do processo de recategorização, vejamos a astúcia do enunciador
no exemplo que se segue:
(11) Você não poupa energia na hora de trabalhar. Dinavital C não poupa na hora de repor.
Para enfrentar o ritmo do dia-a-dia, você precisa de uma dose extra de energia efervescente:
Dinavital C. O antifatigante rico em Aspartato de Arginina e Vitamina C que trata o estresse e
o cansaço físico e mental com um delicioso sabor. Experimente essa nova fonte de energia.
Nesse exemplo, temos o referente ―Dinavital C‖ por três vezes sendo, diferentemente,
retomado e cognitivamente transformado: ―uma dose extra de energia‖, ―o antifatigante rico
em Aspartato de Arginina e Vitamina C‖, ―nova fonte de energia‖. Note-se que essas três
retomadas não são, de forma alguma, casuais ou ingênuas – sobretudo se considerarmos que
estamos diante de um texto publicitário. Cada vez que o referente é retomado, é remodulado e
é acrescentada a seu escopo semântico uma nova informação que funciona como apoio
argumentativo para aquele que enuncia, reforçando sua intenção. O co-enunciador é, assim,
orientado a relacionar Dinavital C a ―uma dose extra de energia‖, ―o antifatigante rico em
Aspartato de Arginina e Vitamina C‖ e a ―nova fonte de energia‖. O enunciador se aproveita
da instabilidade das entidades, consoante seu propósito específico.
Fundada na cooperação entre os interlocutores pressuposta própria ao ato de
recategorizar, sustentamos que porções textuais que tenham função recategorizadora sejam
aceitas como mostrada-marcada, vez que a relação com o referente é textualmente construída
de modo, pensamos, cauteloso, para que o propósito de quem enuncia obtenha sucesso.
26
A esse respeito, Cavalcante (2005) sustenta que a recategorização pode ocorrer mesmo no caso de não haver
referente textual explícito no cotexto: ―[...] se pensarmos que a mudança no referente pode acontecer
completamente em nível cognitivo, numa espécie de ordem inversa, em que primeiro a introdução
recategorizadora é empregada e só a partir dela é que ativamos o objeto já transformado, então poderemos
manter a afirmação de que o processo cognitivo-referencial da recategorização não é exclusividade das anáforas
[...]‖. Embora aderindo a esse posicionamento, não traremos a questão para a discussão neste trabalho.
76
Considerar um referente passível de ser categorizado a partir de mais de uma
propriedade possibilita, a nosso ver, o exame da heterogeneidade, por meio do modo como a
transformação cognitiva desse objeto-de-discurso se nos apresenta na construção textual, pois
essa heterogeneidade somente pode ser explicada se se (re)conhecerem as propriedades dos
referentes eleitas a cada designação, ao (re)categorizar.
Koch e Marcuschi (1998, p. 174), a respeito de uma heterogeneidade de ordem
semântica, colocam que ―a noção de recategorização pode ser retomada com uma categoria
fundamental para explicar os processos de heterogeneidade semântica no processamento
textual‖. Comungando com esse pensamento, podemos estabelecer uma relação entre
heterogeneidade semântica e heterogeneidade mostrada-marcada, na medida em que
sustentamos ser o processo de referenciação que se dá por meio da recategorização uma
estratégia textual-discursiva que, a partir de uma remodulação cognitiva do referente, produz
efeitos opacificantes na materialidade linguística, visto que o referente reformulado se serve
dos propósitos do enunciador. Vale dizer, entretanto, que não se trata exclusivamente de uma
questão de ordem semântica, de vez que o referente que sofre uma remodulação cognitiva
pode revelar um outro ponto de vista, uma outra voz, o que configura um caso de mostração-
marcação do outro num superfície do discurso
Aprofundaremos nosso posicionamento a respeito do estreitamento que estamos
sustentando entre as heterogeneidades semântica e mostrada-marcada no capítulo destinado à
análise.
4.1.2.2 Anáfora Indireta
Para que se incluam entre as indiretas, o fator correferencialidade não pode estar
relacionado às anáforas, de vez que é este, como vimos, o critério que as distingue dos casos
de anáfora direta. A estratégia de referenciação mobilizada, conforme Koch (2002), é a
associação. ―Trata-se de uma configuração discursiva em que se tem um anafórico sem
antecedente literal explícito, cuja ocorrência pressupõe um denotatum implícito, que pode ser
reconstruído, por inferência, a partir do cotexto precedente.‖ (2002, p.107).
Dessa forma, temos, ao invés do cotexto, um elemento de relação em jogo, elemento
esse que é decisivo para a orientação interpretativa. A este elemento, Schwarz (2000)
denominou âncora, e é esta denominação que manteremos aqui, já que o termo ―antecedente‖
pode levar a uma noção de remissão retrospectiva, apenas.
77
Marcuschi (2005), complementando a definição de Schwarz (2000), assim define as
anáforas indiretas:
No caso da Anáfora Indireta trata-se de expressões definidas,
indefinidas e pronominais que se acham na dependência interpretativa
em relação a determinadas expressões ou informações constantes da
estrutura textual precedente ou subseqüente e que têm duas funções
referenciais textuais: a introdução de novos referentes (até aí não
nomeados explicitamente) e a continuação da relação referencial
global. (MARCUSCHI, 2005, p.59).
Tais anáforas são também responsáveis por dois processos que são de fundamental
importância para a progressão textual: a ativação e a reativação de referentes. Este responde
pela continuidade referencial, isto é, ―remissão constante aos mesmos domínios de referência,
garantindo a prossequência do quadro referencial global‖ (MARCUSCHI, 2005, p.60);
aquele, pela inserção de um novo nódulo informacional, o que promove uma ampliação do
modelo textual. É por isso que Marcuschi (2005), ainda retomando Schwarz, fala de uma
―tematização remática‖ produzida pelas AI; já estão envolvidas informações novas e velhas
nestes processos. Vejamos:
(12) ―Ontem fomos a um restaurante. O garçom foi muito deselegante e arrogante.‖
(exemplo do autor)
Em (12), a ativação de um referente novo promovida pela expressão ―o garçom‖ está
ancorada em um universo textual precedente, o que, em termos, também promove a
reativação a expressão ―um restaurante‖.
Em concordância com Schwarz (2000), o autor relaciona as seguintes características
para as AI:
1. A inexistência de uma expressão antecedente ou subseqüente explícita para
retomada, e a presença de uma âncora, isto é, uma expressão ou contexto
semântico base decisivo para a interpretação de uma AI;
2. A ausência de co-referência entre a âncora e a AI, dando-se apenas uma
estreita relação conceitual;
3. A interpretação de uma AI, dando-se como construção de um novo referente
(ou conteúdo conceitual) e não como uma busca ou reativação de referentes
prévios por parte do receptor;
78
4. A realização da AI, dando-se normalmente por elementos não pronominais,
sendo menos comum sua realização pronominal.
4.1.2.3 Anáfora encapsuladora com dêitico
Quando, no tópico anterior, afirmamos que certas introduções referenciais podem, em
dado contexto, apresentar uso dêitico, referimo-nos somente aos dêiticos de pessoa, de
tempo, de espaço e de memória. Em verdade, a subdivisão dos dêiticos, definida por Fillmore
(1971, apud CAVALCANTE, 2004), conta com seis, e não apenas com aqueles cinco
vértices. A razão pela qual não fizemos referência a um dos tipos deu-se pelo fato de, neste
caso, tratar-se de entidades que remetem a trechos do contexto, integrando, desta forma, o
conjunto das continuidades referencias, tema deste tópico.
Trata-se das anáforas encapsuladoras com dêiticos (textuais). Antes de descrevermos
esta categoria, cumpre mencionar que muitos dos estudos incluem entre os casos de anáfora
esse caso híbrido, que contém a dêixis textual, o que provoca uma enorme flutuação
terminológico-delimitativa em torno deste fenômeno. Fato é que a área limítrofe que separa
os fenômenos da dêixis e da anáfora é bastante tênue e tem causado inquietação entre
estudiosos da área (cf., por exemplo, CAVALCANTE, 2000).
A extensa literatura27
sobre o assunto reúne, basicamente, dois critérios para a
caracterização dessas anáforas encapsuladoras dêiticas: a referência a porções difusas do
discurso e a consideração do posicionamento do falante na situação enunciativa. Outro
critério que costuma ser utilizado para esta caracterização é o processo metalinguístico em
que se dá a retomada da própria forma pela qual se manifesta a fonte. Porém, conforme
Cavalcante (2004):
[...] nem o escopo referencial difuso, nem a função de organizar a
disposição de organizar os elementos no texto, nem a retomada
metalinguística, tomadas em isolamento, são suficientes para definir
os dêiticos discursivos, porque conflitam sempre com a
caracterização de anafóricos muito semelhantes.
27
―[...] essas duas restrições foram delineadas pelos estudos seminais de Fillmore (1971) e Lyons (1977) e
repetidas por trabalhos posteriores (cf. LEVINSON (1983), APOTHÉLOZ (1995), MARCUSCHI (1995), et
al.).‖ (CAVALCANTE, 2004).
79
Por esta razão, a autora propõe que essas anáforas encapsuladoras se definam pelo
conjunto das características, ou seja: resumir proposições inteiras por meio de uma expressão
encapsuladora e marcar o ponto da última enunciação do falante no texto.
Quando uma dessas características deixa de existir, como, por exemplo, a propriedade
resumitiva, podemos ter somente a dêixis textual, aquela que se configura pelo uso de
expressões como anteriormente, abaixo etc. Para uma definição de dêixis textual mais geral,
citamos Apothéloz (2003, p. 69):
A expressão dêixis textual designa comumente o emprego de
expressões indiciais como mais acima, abaixo, no próximo capítulo,
aqui, etc. com o objetivo de se referir aos segmentos, aos lugares ou
aos momentos do próprio texto em que estas expressões são
utilizadas. Diferentemente da dêixis situacional, o ponto que funciona
como marca deste gênero de designação não é o lugar e o momento
da enunciação, mas o lugar e o momento do texto onde aparece a
expressão indicial.
Explica o autor, apoiando-se em Conte (1981), que a dêixis textual desempenha uma
função metatextual. Ela permite organizar o espaço do texto, o que facilita a orientação do
leitor / ouvinte neste espaço.
4.2 Heterogeneidade não-marcada e leitor-modelo
Considerando nosso objetivo nesta pesquisa, pensamos que não seria equivocado fazer
uma aproximação entre o conceito de leitor-modelo de Eco e as formas de heterogeneidade
mostrada não-marcada postuladas por Authier-Revuz. É bem verdade que a autora nos fala,
no que tange às formas de heterogeneidade mostrada não-marcada, de dizeres que não ―se
deixam‖ marcar de forma clara e pontual. Aludindo à polifonia bakhtiniana, relaciona esse
tipo de heterogeneidade a vozes pouco precisas no que respeita à sua identificação pelo outro,
como que dissimulando a presença de outro(s) discurso(s). Contempla, também, implicaturas
presentes no discurso, mostrando que somente com a cooperação do leitor se faz possível a
negociação do sentido. É precisamente neste ponto que estamos propondo a inserção da noção
de leitor-modelo de Eco.
Ora, se, a partir do que vimos, entendemos o leitor-modelo - entidade puramente
abstrata - como sendo uma estratégia textual, derivamos daí a ideia de que tal entidade
constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser
80
satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial, podemos
situá-lo como estando pressuposto na modalidade mostrada das heterogeneidades. Logo, em
se tratando de tentativas de dissimulação consciente de discursos do outro, não há como fugir
da marcação, por mais sutil ou habilidosamente dissimulada que seja, dada a materialização já
textualizada dos elementos que promovem essa marcação.
A proposta de classificação da heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz, ao
dicotomizar a modalidade mostrada em marcada / não-marcada, opera de modo ―simplista‖,
quando não considera possibilidades outras de manifestação de marcação do outro no
discurso. Partiremos dessa constatação, aliando-nos à teorização de Eco acerca do leitor-
modelo, para tentar dar um tratamento menos fechado às possibilidades de que o sujeito
dispõe para marcar – e mostrar que o fez – seu dizer, ainda que não tencione,
conscientemente, fazê-lo.
81
CAPÍTULO V
ANÁLISE
_____________________________________________________________________________________
Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas que já
têm a forma de nossos corpos e
esquecer os nossos caminhos que
nos levam sempre aos mesmos
lugares.
É o tempo da travessia. E se não
ousarmos fazê-la teremos ficado
para sempre à margem de nós
mesmos.
(Fernando Pessoa)
5.1 Considerações preliminares
O alvo de nosso questionamento está pautado na forma não-marcada da
heterogeneidade mostrada. Pensamos não ser legítimo pensar em mecanismos de inscrição do
outro no enunciado, que, por não serem formalmente flagrantes, tenham de ser entendidos
como formas não-marcadas, embora mostradas, da presença da alteridade em determinado
discurso. A discretização das modalidades de heterogeneidade mostrada produz, a nosso ver,
um fechamento no que tange às estratégias de que dispõem os sujeitos para marcar a presença
do outro em seus dizeres. Defendemos que o fato de o sujeito não marcar, formalmente, tal
como o é na heterogeneidade mostrada marcada, a ruptura produzida no fio discursivo pela
―irrupção‖ do outro não nos leva, necessariamente, a postular uma não-marcação por parte do
sujeito. Prova disso, reivindicamos, são os processos referenciais anafóricos e dêiticos e a
recategorização expressa por introduções referenciais, por exemplo. Para nós, as várias
maneiras de marcação – vez que defendemos que estratégias desse tipo configuram um texto
como marcado – são inteiramente legítimas, já que passíveis de serem identificadas. Ocorre
que tal identificação se dará por vias não prototípicas de acesso à maneira pela qual o sujeito
opta por marcar a ―alteração‖ em seu discurso. Também nos provoca incômodo a ideia de
pensar a intertextualidade, sobretudo aquela que se dá por alusão, como sendo não-marcada.
O enunciador, que neste caso tem ciência do efeito pretendido, não privaria, obtusamente, seu
co-enunciador de pistas que viabilizassem acesso ao intertexto, sob pena de sabotar seu
próprio desiderato. Com efeito, o procedimento alusivo, mesmo se admitirmos que se
82
aproxime mais da implicitude, consiste justamente em sinalizar, a partir de marcas textuais,
que o co-enunciador terá de apelar à memória, na busca do referente já-dito.
É bem verdade que Authier-Revuz (1982) já nos fala, como já mencionamos (cf. item
1.3 deste trabalho), que, dentro da heterogeneidade mostrada, têm-se desde as formas
marcadas, que atribuem ao outro um lugar linguisticamente descritível, até um continuum das
formas recuperáveis da presença do outro no discurso, que seriam as formas não-marcadas.
Nos termos da autora, ao tomarmos como ponto de partida:
[...] as formas marcadas que atribuem ao outro um lugar
linguisticamente descritível, claramente delimitado no discurso,
passando pelo continuum das formas recuperáveis da presença do
outro no discurso, chega-se, inevitavelmente, à presença do outro – às
palavras dos outros, às outras palavras – em toda parte sempre
presentes no discurso, não dependente de uma abordagem linguística.
(AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 21).
Discutível, a nosso ver, é o fato de serem estas últimas tidas como não-marcadas
apenas pelo fato de a identificação da marcação depender do conhecimento prévio, da
memória cultural do co-enunciador. Trata-se, em verdade, de uma condição contingente que
não descaracteriza o fenômeno em si. É mais ou menos como dizer que um texto que verse
sobre física quântica, lido por alguém que não tenha conhecimento sobre o assunto, não tenha
valor em si. Não podemos, com efeito, atrelar o fator compreensão ao fato linguístico da
marcação - mesmo que este procedimento não se dê de maneira tão explícita – sob pena de
desprezar o universo referencial que o próprio texto constrói. Assumimos, em consonância
com Cavalcante (2004), que toda entidade referida é utilizada mediante a pressuposição de
que se tornará acessível na interação por alguma via. Ocorre que os tipos de suposição que
aquele que enuncia julga estarem representadas na mente de seu interlocutor interferem
diretamente nas escolhas dos processos referenciais que são considerados mais adequados a
cada momento da enunciação e nos diferentes modos de expressá-los. As categorias de análise
eleitas neste trabalho foram selecionadas de modo a evidenciar os processos referenciais que,
a partir da apreensão textual de tal pressuposição, serão compreendidos como marcadores de
fatos de heterogeneidade.
Traremos essas considerações para o plano da materialidade linguística na seção
seguinte, a partir dos textos reunidos em nossos dados, reforçando, dessa maneira, nosso
posicionamento acerca dos fatos de heterogeneidade mostrada-marcada.
83
5.2 ANÁLISE
5.2.1 Dêiticos memoriais
Os dêiticos de memória, que indicam que o referente é de fácil acesso na memória
comum dos interlocutores e incentivam o outro do processo discursivo a buscar ali a
informação de que precisa para (re)construir o sentido, constituem, para nós, mecanismo de
marcação. Isso porque vemos, na pressuposição de que conhecimentos armazenados na
memória do leitor sejam cruciais para a (re)ativação do referente pretendido, representada
linguisticamente por um dêitico de memória, a explicitação de um fato de heterogeneidade no
fio textual, o que promove a opacificação de um ponto específico do dizer.
Cabe uma última observação de autoridade quanto à ativação de referentes por meio
de demonstrativos, que julgamos pertinente, na medida em que fortalece nossa argumentação
em favor do que vimos defendendo:
Um SN demonstrativo pode referir-se in absentia, quer dizer, na
ausência de qualquer designação antecedente de seu referente e sem
que este esteja presente na situação enunciativa. [...] concordamos em
descrever este tipo de demonstrativo dizendo que ele consiste em
evocar um referente cuja evidência é tal, para o locutor, que ele
equivale a um referente que acabou de ser evocado no próprio texto.
(APOTHÉLOZ, 1995, p.35).
Os textos que se seguem apresentam ocorrências cujo destaque é dado à função que o
demonstrativo acumula quando faz as vezes de mecanismo marcativo.
(1) Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as
crianças crescem [...], mas não crescem todos os dias, de igual maneira: crescem de
repente. [...] Onde andou crescendo aquela danadinha que você não percebia? Cadê
aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as
festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do
maternal ou escola experimental? [...]. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R.
de. Coleção melhores Crônicas, p.14).
Partiremos do entendimento de que a atualização da expressão ―aquele cheirinho de
leite‖, que figura de maneira nada casual no contexto em que está inserido, coloca-nos diante
de uma estratégia usada pelo enunciador que denuncia ao co-enunciador a pressuposição de
que este compartilhe determinado conhecimento.
84
Em (1), quando o enunciador se refere ―àquele cheirinho de leite sobre a pele‖ das
crianças quando bebês, o demonstrativo é utilizado exatamente para marcar que tal sensação
olfativa deve ser conhecida daqueles que estão lendo aquela crônica, já que um leitor deste
gênero provavelmente já manteve contato com crianças naquele estágio da vida; ainda que o
leitor não tenha tido nenhuma experiência com a situação forjada pelo texto, é de
conhecimento geral, enciclopédico que os bebês se alimentam integralmente de leite nesta
fase da vida, o que faz com que fique impregnado com seu cheiro. A expressão poderia
perfeitamente ter sido assinalada com aspas, indicando que se trata de uma situação comum
aos interlocutores. No entanto, vemos a utilização do demonstrativo de terceira pessoa
desempenhando função de marcador. Esse lançar mão do demonstrativo para ativar a
memória do outro, defendemos, apresenta-se como estratégia de marcação tão eficaz quanto o
aspeamento – mecanismo formal de marcação da inscrição do outro no fio discursivo -, por
exemplo.
Conquanto o referente não tenha sido anteriormente designado, o próprio cotexto se
deixa utilizar para que o caminho até o não-dito seja trilhado com sucesso; o cotexto está
repleto de referências explícitas que podem servir de ponte para o alcance do referente
pretendido, quais sejam: ―pais‖, ―filhos‖, ―crianças‖, ―pazinha de brincar na areia‖, ―festinhas
de aniversário‖, ―palhaços‖, ―primeiro uniforme do maternal‖; está posta, pois, a atmosfera
nostálgica no interior da qual o texto vem se construindo.
Aqui, mesmo que a referência propriamente dita não esteja manifesta, estamos diante
de um procedimento não inteiramente dêitico, mas também anafórico, na medida em que,
apesar de o demonstrativo sinalizar essencialmente para informações relacionadas à memória,
encontra, na materialidade textual, indícios que colaboram para que o referente pretendido
seja (re)ativado, por meio de vias indiretas.
(2) Passou o tempo do balé, das culturas francesa e inglesa [...]. Só nos resta dizer
‗bonne route, bonne route‘ como naquela canção francesa narrando a emoção do
pai quando a filha lhe oferece o primeiro jantar no apartamento dela. (Antes Que Elas
Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.15).
Coisa um pouco diferente ocorre em (2), pois, quando se refere ―àquela canção
francesa‖, reforça a canção especificamente que quer que seja buscada na memória, já que nos
dá a pista que nos levará ao referente pretendido: trata-se de uma dada canção que traz em sua
composição a expressão ―bonne route, bonne route‖ – expressão que ratifica tratar-se de uma
―canção francesa‖. Mesmo facilitando a construção do sentido, por parte do interlocutor, na
85
busca do referente, em nada se altera a situação do demonstrativo ―aquela‖. Cabe, neste
momento, chamar o leitor-modelo de Eco para complementar nosso posicionamento. Para que
o interlocutor ―ajude o texto a funcionar‖ nesse seu momento específico, não basta que este
disponha de um conhecimento de mundo geral, como o é na construção dos demais textos
selecionados. Trata-se, neste caso, da previsão de um outro que tenha uma bagagem cultural
um tanto ―sofisticada‖, sobretudo no que tange a canções, para que seja acessada a canção de
Serge Regianni, Ma fille. Ressaltamos que o não-acesso ao texto sugerido pelo autor da
crônica não compromete de todo a construção global de sentido, em absoluto; mas deixa-se,
sim, de enriquecê-la. O fato de não ter havido a ponte, de o gatilho não ter sido deflagrado - é
o que defendemos - não neutraliza a sugestão de conexão, concentrada, inicialmente, em
―aquela‖, que é o que marca a suposição deste leitor-modelo.
Assim como em (1), portanto, estamos diante de uma expressão marcada por um
dêitico de memória.
(3) Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma
respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes
cobertos naquele quarto cheio de colagens, posters (sic) e agendas coloridas de
pilot. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R. de Coleção melhores Crônicas , p. 15).
Em (3), o universo construído pelo texto pede que atualizemos nosso conhecimento -
independente de nossas experiências particulares, frisamos – acerca da fase da adolescência:
momento em que as atitudes descritas pelo texto são bastante comuns: encher o quarto com
pôsteres do(s) ídolos(s), ter agendas rabiscadas por canetas porosas coloridas. Assim, dentro
do contexto em que a expressão ―naquele quarto‖ é inserida, constatamos que o demonstrativo
(de)marca um lugar específico a ser buscado pelo interlocutor, a partir de seu conhecimento
enciclopédico.
Sustentamos que a seleção da expressão ―naquele quarto‖ nada tem de inocente no
contexto; para nós, ela denuncia a pressuposição do enunciador no que respeita ao
conhecimento partilhado que deve existir ente ele e o co-enunciador relativo a cenas e práticas
bem próprias à fase da adolescência. Para resgatar da memória do interlocutor a informação
básica que indicará a precisão semântica do referente, o enunciador se apóia, com efeito, no
demonstrativo de terceira pessoa ―aquele‖, o que materializa – portanto torna observável – um
fato de heterogeneidade.
86
(4) Aguardar assim o furacão é como aquela personagem do conto de
Hemingway, que cansado de fugir dos perseguidores deita-se e aguarda o fim. (Esperando o furacão. In: SANT‘ANNA, A. R. de. Coleção melhores Crônicas, p.105).
Em (4), convocamos, como em (2), uma instância pressuposta erigida pelo texto cujo
perfil intelectual seja, digamos, um pouco mais refinado. O interlocutor é, por um lado,
bastante ―poupado‖, já que lhe é fornecido um detalhamento da trajetória da personagem de
Ernest Hemingway: Francis Macomber, em A vida curta e feliz de Francis Macomber. Em
contrapartida, trata-se de uma via de acesso menos geral que a de (4), por exemplo, que exige
de nosso conhecimento de mundo algo da ordem do prosaico; aquela via, só alguns
conseguem trilhar.
Reconhecemos que, a exemplo do que pode acontecer com o texto de (4), determinado
co-enunciador não alcançar o referente que está condensado no dêitico memorial, mesmo que
o texto ofereça pistas supostamente suficientes para sua (re)ativação dentro do conhecimento
enciclopédico do leitor, não anula a marcação promovida, precisamente pelo demonstrativo
―aquela‖, no fio discursivo; o percurso inconcluso da busca pelo referente não-dito não
descaracteriza, em absoluto, o fenômeno propriamente dito, de vez que o fato de estar
textualmente - por meio do dêitico memorial - materializado garante sua autonomia,
independentemente de condições contingenciais.
Sustentamos que o uso que se faz do dêitico memorial em (4) configura um modo de
marcar de modo observável um fato de heterogeneidade. O demonstrativo, no interior do
contexto em que é colocado, condensa o referente não-dito em sua estrutura, referente este
que, necessariamente, está condicionado à memória cultural do outro. De modo pontual,
portanto, localizamos a opacificação de determinada porção textual, o que significa postular
que estamos diante de uma sequência em que o outro se mostra na materialidade linguística
por meio do demonstrativo, o qual passa a assumir, também, a função de elemento
responsável pela mostração marcativa do atravessamento pontual do outro no fio do texto.
Teríamos, considerando a classificação de Piègay-Gros, um caso de intertextualidade
por co-presença: a referência, que, sabemos, é tratada pela autora como uma modalidade
explícita no quadro das intertextualidades. Admitindo-se tal explicitude, admite-se, outrossim,
que temos como apontar, num ponto específico da materialidade textual, a irrupção do
estrangeiro, responsável pelo comprometimento da transparência do dizer, o que, como
queremos, consubstancia um procedimento marcativo que se mostra linguisticamente, no caso
específico de (4), precisamente por meio do dêitico memorial ―aquele‖.
87
O procedimento marcativo que se efetiva por meio de dêitico memorial se repete,
respeitadas as nuances de ―seus leitores-modelo‖, com os demais textos. Vemos o enunciador
se apoiando em demonstrativos de terceira pessoa para resgatar, da memória do interlocutor, a
informação de base responsável por engatilhar as inferências. Para nós, está aí a presença do
atravessamento tangível, portanto marcado, do outro em textos que sejam construídos se
utilizando de procedimentos dessa ordem.
(5) Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Reparem, estou
dizendo depois que amam. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do
amor. [...] Quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera
sagrada, cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram.
Uma aura de mistério as envolve [...]. (Misteriosos gozos. In: SANT‘ANNA, A.R de.
Coleção melhores Crônicas, p. 49).
O exemplo acima, em que o substantivo ―atmosfera‖ vem antecedido pelo
demonstrativo ―essa‖, é outro caso em que se evidencia a cumplicidade suposta entre
enunciador e co-enunciador no que respeita ao referente não mencionado no texto, mas cuja
localização semântica específica é linguisticamente orientada.
Não há nada de eventual na atualização do demonstrativo em determinado momento
do texto. Muito pelo contrário, o fato de figurar em dada sequência textual evidencia que há,
conscientemente, a aposta no conhecimento de mundo do co-enunciador. Supõe-se, então, que
―a atmosfera‖ mencionada é de conhecimento daquele com quem o enunciador negocia o
sentido do texto, por isso a opção por tal construção.
O discurso está pautado, com efeito, nas experiências comuns aos interlocutores,
raciocínio respaldado pela concisão da expressão ―essa atmosfera‖, cuja precisão semântica,
notadamente, não aparece, de forma que se possa delimitar, no texto; o que aparece, isso sim,
é uma ruptura promovida pelo dêitico ―esse‖, que indica a opacificação daquele ponto
específico do texto, o que torna evidente, para nós, que há aí um fato concreto de
heterogeneidade mostrada-marcada.
O elemento mostrativo-marcativo, representado linguisticamente pelo demonstrativo
―esse‖ ancora, na materialidade linguística, uma relação necessária entre o que está sendo dito
e o referente que deve ser buscado na memória do outro, daquele com quem se está
negociando o sentido. Temos, em ocorrências dessa natureza, o outro cuja representação se
faz enxergar pelo apelo ao conhecimento partilhado, enciclopédico, previsto num ponto
específico, observável, do texto.
88
(6) A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um
tronco, inteira. Não é uma canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem de
dentro e dos olhos nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em
suas formas. (A mulher Madura. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p. 18).
Em (6), mais uma ocorrência de mostração-marcação por meio de dêitico memorial é
demonstrada, com base no que vimos reivindicando. Temos uma expressão que convoca
diretamente o co-enunciador a buscar o referente não-dito, mas que, a partir da atmosfera
construída pelo texto, tem plenas condições de ser reconstruído. Note-se que a expressão
―essa irradiação‖ é apresentada de forma que seu referente, embora não constando da
materialidade do texto, parece já ser da ordem do cognoscível; a estrutura sintática foi
elaborada baseada na certeza pressuposta de que o co-enunciador, no ato da atualização de
sentido, alcançará precisamente a rede semântica deflagrada pelo demonstrativo ―essa‖.
No momento da (re)ativação do referente pretendido, que, linguisticamente, concentra-
se no modo como o SN ―essa irradiação‖ está posto no texto, a irrupção observável do alheio
no fio textual parece-nos bastante evidente, na medida em que coloca, num ponto específico
do dizer, um elemento cujo referente deve ser encontrado no conhecimento partilhado do
outro. A emergência do heterogêneo, então, manifesta-se concretamente, fato que caracteriza
a mostração de uma heterogeneidade que se nos apresenta marcadamente por meio de dêitico
memorial.
(7) [...] Esse cheiro... diz ele. Realmente
quem pode com esse cheiro nauseante?
A neve foi malfeita, não se faz
Neve como em filmes e gravuras.
E me dói a cabeça, diz alguém.
E a minha também, e o mal-estar
Me invade o corpo. Desculpem se vomito
À vista de pessoas tão distintas [...]. (Num planeta enfermo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras, p.8-
10).
Em (7), destacamos o SN ―esse cheiro‖ para continuar defendendo que expressões
desse tipo, formadas por demonstrativo + substantivo e sem referente textual expresso, são
explicitamente marcadas; trata-se de casos de heterogeneidade mostrada-marcada na medida
em que aquele que se utiliza de expedientes dessa natureza conta que o conhecimento do
outro - aquele para quem fala – alcance o referente pretendido; procedendo dessa maneira,
está marcando, por meio de um dêitico memorial, dado segmento do texto. A explicitude
89
mostrativo-marcativa em favor da qual advogamos se justifica exatamente pela utilização
desse dêitico memorial. Se o enunciador prefere atualizar ―esse cheiro‖ em lugar de predicar o
―cheiro‖ a que está se referindo, é porque entende que seu leitor-modelo, entre todos os
possíveis ―cheiros‖ que conhece, selecionará, a partir do contexto enunciativo em que se dá a
interlocução, o que reúne os semas que quer o enunciador.
(8) Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
A tirar da máquina elétrica
O destino dos seres,
A explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
Caminhando entre adultos
Na esperança da justiça
Que tarda – como tarda!
A clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
Aquela ternura contida, óleo
A derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta. (A falta de Érico Veríssimo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras,
p. 39).
O ―homem‖, o ―jeito‖ e a ―ternura‖ de que fala o exemplo (8), como se pode observar,
não traz, no texto, quaisquer referentes pontuais nos quais possa se apoiar o co-enunciador. O
que temos, nesse caso, é uma série de expressões marcadas pelo demonstrativo aquele(a), de
tal feita que corrobora o que vimos reivindicando: demonstrativos que funcionam como
dêiticos de memória têm potencial mostrativo-marcativo. Esse potencial é, também, provido
de explicitude, quando lhe é conferido o estatuto de elemento que, efetivamente, ativa o
referente pretendido na memória do co-enunciador.
Se, nos termos de Authier-Revuz (1991), no heterogêneo do fio ―há o heterogêneo
manifesto, sobre o fio, produzindo nele rupturas observáveis‖ (p. 179), podemos confirmar o
fato de heterogeneidade presente em construções do tipo das presentes em (8): a irrupção de
um elemento que deflagra, em sendo atualizado em dado contexto enunciativo, um referente
específico. Ocorre que a tal ruptura não carrega uma marcação formal ―exterior‖ ao termo
marcado, fator que a diferencia, mas não desautoriza seu estatuto marcativo, do que a autora
coloca entre as formas marcadas de mostração da irrupção do outro no fio do discurso.
90
Assim, o demonstrativo presente no SN ―aquele homem‖ engatilha, na memória do co-
enunciador, um referente específico, supostamente conhecido; caso contrário, em lugar da
utilização do demonstrativo ―aquele‖, o recurso usado para que determinado referente fosse
identificado teria sido diferente. A mesma lógica de raciocínio dá-se quando da utilização de
―aquele jeito‖ e ―aquela ternura‖. A opção feita pela construção com o demonstrativo é, a
nosso ver, bastante sintomática, no sentido de enxergarmos uma marcação intencional,
portanto consciente, por parte do enunciador. ―Jeito‖ e ―ternura‖ poderiam ter sido descritos
no corpo do texto para que sua precisão semântica fosse assegurada; ou, talvez, marcados por
aspas, o que indicaria que um sentido específico para aqueles SN‘s teria de ser buscado
algures. Fato é que recurso algum, consoante os recursos marcativos propostos pela literatura
da área do texto, foi utilizado. Para nós, o fato mesmo de os demonstrativos ―aquele‖ /
―aquela‖ acompanharem os substantivos ―jeito‖ e ―ternura‖ em dado contexto enunciativo,
inaugura outra possibilidade mostrativo-marcativa: aquela que, a partir de um dêitico de
memória, sinaliza ao co-enunciador que dado referente deve ser buscado em seu
conhecimento de mundo, para que o sentido pretendido pelo enunciador seja atualizado.
Aliada ao uso dos demonstrativos, vemos que a atmosfera nostálgica a partir da qual
se constrói o texto fortalece as expressões que queremos marcadas. Uma série de remissões
indiretas que remonta a um conjunto de práticas típicas de um certo momento é
constantemente convocada (―Falta uma tristeza de menino bom‖, ―Falta um boné‖, ―Falta um
solo de clarineta‖, Falta o casal passeando no trigal‖), de modo a reforçar o lugar onde, na
memória – que não necessariamente deve ser episódica - do co-enunciador, os referentes de
―jeito‖ e de ―ternura‖ têm de ser buscados.
(9) E chega o momento de olhar para o amigo
devagar, bem nos olhos
e sorrir para ele, sem dizer
nenhum desses vanilóquios de todo dia.
Dizemos alguma coisa para a fonte?
Alguma coisa para o ar?
Chega o momento de sentir
o amigo em estado de natureza,
e toda a limpidez
e toda a transparência
da alma se projeta
no que parece um vulto e é uma essência.
[...]. (II / Alceu na safira dos oitent‘anos. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas
sombras, pp.41-43).
91
No último exemplo desse item, o destaque ao SN ―esses vanilóquios‖ soma
argumentos em favor de nosso desiderato maior neste trabalho: reconhecer, entre outros, os
dêiticos de memória como expediente mostrativo-marcativo eficaz.
A pressuposição de que o co-enunciador selecionará o(s) referente(s) necessário(s)
para a atualização de sentido prevista pelo enunciador, que opta pela construção do SN (esses
[demonstrativo] + vanilóquios [substantivo]), apresenta-se como procedente, na medida em
que entendemos o dêitico de memória esse como elemento deflagrador da marcação operada
nesse segmento do texto; compreendido desse modo pelo co-enunciador, tal segmento será
processado já com a função de ativar o(s) referente(s) correspondente(s) ao contexto em que
se dá a interlocução.
Assim, se for verdade que ―as formas de heterogeneidade mostrada se inscrevem,
como um subconjunto formalmente caracterizável, no conjunto muito mais amplo daquilo que
se pode formalmente descrever como fato de ruptura sobre o fio enunciativo‖ (AUTHIER-
REVUZ, 1991, p.174), nossa argumentação está sendo construída com vistas a garantir a
inclusão, entre tal ―conjunto formalmente caracterizável‖, dos dêiticos memoriais como modo
lícito de marcar a conversão local de um desvio de não-um, que atravessa pontualmente a
enunciação.
5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais
Os dêiticos espaciais remetem ao lugar específico em que se encontra o enunciador, ou
pressupõem esse local. Os temporais, por seu turno, pressupõem o tempo em que se dá o ato
comunicativo. Esses tipos de dêiticos podem funcionar, também, como marcadores quando da
alternância de enunciações. Vejamos a atuação dos dêiticos ―aqui‖ e ―agora‖ nos exemplos
(10) e (11).
(10) Da minha janela os vejo. São três. Encostados no tapume da favela [...]. Da
minha janela os vejo: dois policiais a cinqüenta metros, lá embaixo [...]. Da minha
janela me dou conta de que somos um triângulo. Eu aqui do alto contemplando de
um ângulo os homens seminus e sua arma [...]. Talvez me encontre [um dos
rapazes seminus] num sinal de trânsito ou numa rua escura e me abra a cabeça com
a bala de sua fúria. [...] Mas quando isso se der, eu, você ou aquele que tiver sido
assassinado não estará mais aqui nem terá mais olhos pra ver. (Da minha janela vejo.
In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.36).
Observe-se que o texto se constrói dentro da atmosfera da enunciação enunciada. Os
lugares vão sendo definidos em torno do ponto a partir do qual fala o enunciador: da janela de
92
seu apartamento. Percebemos isso claramente quando as expressões ―lá em baixo‖ e ―aqui do
alto‖ são confrontadas. Ocorre que, ao finalizar o texto, o lugar a que passa a se referir o
dêitico ―aqui‖ aponta para a enunciação que é atualizada a cada leitura que é feita do texto, a
enunciação real à qual pertencem efetivamente os interlocutores. O modo de utilização desse
dêitico no interior de contextos, como o acima ilustrado, alça-o à condição de marcador. O
dêitico temporal promoveu a mudança do expediente da enunciação, marcando-as, portanto.
O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio, na medida em que conta com
elementos pertencentes ao momento enunciativo do outro para a constituição de seu sentido.
Procedimento semelhante ao de (10) dá-se com o exemplo abaixo:
(11) Conheci Drummond aos 17 anos, ali no seu gabinete no Ministério da
Educação. Havia lhe enviado uma cartinha interiorana e alguns poemas, e agora
subia o elevador para vê-lo de perto. [...]. De repente dava aquele respeito e não
mexia um dedo. Ele construía uma tal atmosfera de individualidade, que às vezes
era impenetrável. Era um homem imprevisto. Respeitava e se fazia respeitar.
Agora se foi. Ele vivia com aquele ar de quem estava mal alojado e sempre se
despedindo. (Perto e longe do poeta. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas,
p.61).
Aqui, temos o dêitico temporal ―agora‖ também marcando a mudança de enunciação.
Quando da utilização desse termo em torno da cena construída dentro da enunciação
enunciada, marca o tempo em que os acontecimentos se desenrolavam naquele expediente
enunciativo. Ao utilizar a expressão ―agora se foi‖, o dêitico temporal ancora-se na
enunciação atualizada pelo interlocutor no momento da leitura, fazendo com que esta outra
enunciação seja instaurada, marcando-a. Ao lançar mão desse procedimento, o conhecimento
enciclopédico do interlocutor é requerido, pois é preciso que ele saiba que o poeta de que fala
o texto já ―se foi‖.
Os dêiticos de tempo e de espaço podem, também, indicar a existência de discurso
indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre narrador e personagem. Em
(12), podemos constatar esse feito:
(12) A FUGA
(12) [...] Estava cansada. Pensava sempre: ―Mas que é que vai acontecer agora?‖
Se ficasse andando. [...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer
com toda a força: ―Você não voltará‖. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora
tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara
ao cabo de duas horas: ―Bem, as coisas ainda existem‖.
[...] Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa.
Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos
93
pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só
bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de
poço profundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só
tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la [...]
Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou
procurar um lugar onde pôr os pés [...]
Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por
essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira
uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes
dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as
portas. Mas não: o ar ali estava imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu
baixo, as nuvens escuras, densas [...]
Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante.
O pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café cheiroso e forte [...].
Rio, 1940. (LISPECTOR, C. In: O primeiro beijo e outros contos, pp. 23-27).
Note-se que a passagem da voz da personagem para a do narrador não está sinalizada
com aqueles mecanismos prototípicos responsáveis por assinalar o que é da ordem ―do um‖ e
o que ―é do outro‖. A função (de)marcativa está aí sob a incumbência de dêiticos. Em (12),
estamos lidando com um texto em que a sequência narrativa é dominante; o discurso é em
terceira pessoa; em discursos desse tipo, teoricamente, narrador e personagem constituem
pontos de subjetividade distintos. Mas o que ocorre aqui é a união das instâncias enunciativas
de narrador e de personagem, num ponto específico da cadeia textual, fazendo com que o
narrador se mostre como estando no interior da narrativa e não ―de fora‖ dela, como o é
aparentemente. No trecho ―[...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer
com toda a força: 'Você não voltará'. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora tudo
renascia‖. Assim como nos demais trechos negritados, vemos claramente este fenômeno em
ação. Observe-se que a narrativa vem transcorrendo na perspectiva de um momento
pertencente, digamos, a um ―não-agora‖. Quando se dá a atualização de ―agora‖, esse dêitico
como que convoca as enunciações de modo que constituam uma, neutralizando, portanto, os
tempos de uma e de outra. Este elemento atua como uma espécie de centralizador pontual das
instâncias enunciativas em questão. Entendemos, desta maneira, que dêiticos desse tipo,
funcionando de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro – neste caso, a do
narrador – na superfície textual, são marcadores que mostram, sim, a ruptura no fio
discursivo.
94
5.2.3 O discurso indireto livre
Só pelo fato de se tratar desse tipo de discurso, sabemos que as vozes não se nos
apresentarão por meio de expedientes formais. Para nós, no entanto, o fato mesmo de esse
discurso se apresentar como sendo pertencente a outrem, é suficiente para considerá-lo como
sendo da ordem do marcado. Vejamos a colocação desse procedimento em discurso:
(13) Na ocasião, o Vice-Governador do Estado, Professor Francisco Pinheiro,
comentou que a Constituinte Cultural representa 'o esforço do Governo em
responder às propostas de campanha, por meio dos princípios da transparência nas
ações, na participação popular e num governo eficiente'. Queremos fazer da
cultura não só um acessório, mas o modo de ser da vida cearense. (Relatório final
da Constituinte Cultural – SECULT/CE - 2007).
Em (13), quando vemos ―Queremos fazer da cultura não só um acessório, mas o modo
de ser da vida cearense‖, é nítida (ou audível!) a presença da voz do outro dentro do discurso
do Um. O discurso vem sendo travado na terceira pessoa; há o momento do discurso indireto,
―devidamente‖ sinalizado por aspas; a isso, segue-se um discurso em primeira pessoa, sem,
contudo, haver a indicação de que ainda se trata da mesma voz da do discurso indireto:
discurso indireto livre, portanto. Trata-se, sim, daquela voz – chega a fazer barulho! - cuja
primeira fala foi identificada formalmente. O outro está se manifestando da mesma maneira; a
própria marca desinencial o denuncia; o fenômeno está ali, no afã de ser legitimamente
reconhecido como tal.
Seguindo essa linha de raciocínio, posicionamo-nos: o discurso indireto livre traz
consigo força marcativa; a liberdade que lhe é inerente não faz calar, em absoluto, a voz do
outro que ele atualiza, pelo fato de não vir sinalizado por aqueles marcadores prototípicos. A
nós, causa-nos estranheza tratar este fato de linguagem como dependente de interpretação,
como quer Authier-Revuz, vez que vemos claramente uma alteração que opacifica um ponto
específico da cadeia do dizer. No texto acima ilustrado, a brusca mudança desinencial do
verbo constitui, a nosso ver, uma marca, não-referencial, mas de um outro tipo. Mas há
também uma marca referencial: a do dêitico de pessoa, nós, expresso desinencialmente.
95
5.2.4 Recategorização
A recategorização expressa por introduções referenciais pode também constituir um
mecanismo de marcação de alteridade no fio discursivo. Os exemplos abaixo ilustram o
fenômeno que estamos entendendo como tendo potencial marcativo.
(14) Se ninguém duvida da piedade da rainha Isabel, muitos estimam que os
meios utilizados para impor sua fé não têm sido muito católicos. É ela, com
efeito, que assina a lei que bane 150.000 judeus da Espanha e que fez perseguir,
espionar, espoliar, torturar estes infiéis. (Exemplo de artigo extraído de Apothéloz e
Reichler-Béguelin, 1995).
(15) Um jovem suspeito de ter desviado uma linha telefônica foi interrogado há
alguns dias pela polícia de Paris. Ele havia ‗utilizado‘ a linha de seus vizinhos para
fazer ligações para os Estados Unidos em um montante de aproximadamente
50.000 francos. O tagarela foi apresentado à justiça... (Exemplo de artigo extraído de
Apothéloz e Reichler-Béguelin, 1995).
(16) A bunda, que engraçada
A bunda, que engraçada,
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito o que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
96
A bunda é a bunda,
redunda.
(Carlos Drummond de Andrade)
Iniciemos por (15). Neste exemplo, temos o SN ―o jovem‖ sendo recategorizado por ―o
tagarela‖. A recategorização operada por este último SN, a nosso ver, revela a voz do locutor,
até então camuflada na voz de enunciador. Pensamos que a ativação dessa nova entidade (―o
tagarela‖), ao reativar a âncora à qual se vincula no cotexto (―o jovem...‖), promove certo
posicionamento, por parte do locutor, frente à situação em que o ―tal jovem‖ (o referente) foi
envolvido. Dessa forma, entendemos que processos dessa natureza funcionam, também, como
(de)marcadores da voz do outro na materialidade linguística.
Da mesma maneira, temos em (14) a recategorização do referente ―judeus‖ pelo SN
―estes infiéis‖. A atitude de transformar um referente noutro, refletimos, não deve ser
encarada ingenuamente como certa estratégia de não-repetição de termos. Aqui, o anafórico
recategorizador inclui-se dentro dos casos postulados por Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995) como denominação reportada, cuja manifestação se dá a partir do uso deste anafórico
quando ―assinala ou sugere um ponto de vista de uma pessoa ou de qualquer outro sujeito de
consciência sobre o objeto de discurso" (JAGUARIBE, 2005). O ato de recategorizar,
inevitavelmente, sustenta-se do modo como é elaborado; é exatamente esse modo que
subjetiviza, particulariza esse ato, gerando efeitos de sentido diversos, conforme a manobra do
sujeito. Mas, nos termos de Authier-Revuz (1982), ―por meio da denominação reportada,
introduz-se no texto a fala do outro, mantendo, com relação a ela, um distanciamento crítico,
assinalado por aspas de conotação autonímica‖, posicionamento com o qual não
comungamos.
Ora, se partirmos do pressuposto de que a expressão ―estes infiéis‖ expressa uma
maneira de dizer particular, própria de determinado sujeito, como queremos, é legítimo
afirmar que estamos diante de um eficaz procedimento mostrativo-marcativo, visão que
estamos assumindo.
Em (16), por exemplo, estamos diante de recategorizações pitorescas do referente
―bunda‖ (―esses garotos‖, ―duas luas gêmeas‖, ―montanhas‖, ―ondas‖, ―esferas harmoniosas
sobre o caos‖). O modo de certa forma icônico como é ressignificado esse referente carrega
consigo um genial vezo jocoso que dificilmente teria sido assim reformulado por ―sujeitos
outros‖ na linguagem ordinária. Eis o componente subjetivo peculiar a esse procedimento: o
mesmo referente, se perspectivizado por sujeitos diferentes, assumirá contornos igualmente
97
diferentes, gerando, assim, diferentes efeitos de sentido. Enxergamos, aqui, um indubitável
lugar linguisticamente descritível ocupado pelo outro no fio textual.
5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora Indireta
Alguns procedimentos intertextuais podem funcionar como mecanismo de marcação
do outro no fio discursivo. Elegemos o fenômeno intertextual que se manifesta por meio da
alusão para discutir nossa proposta.
Diferentemente do que pensam Authier-Revuz e Piègay-Gros, saímos em defesa da
intertextualidade, pelo menos a stricto sensu, notadamente como via de marcação da irrupção
do outro na materialidade linguística, sobretudo naquela que se dá a partir de procedimentos
alusivos. Vejamos o que ocorre com os textos abaixo relacionados:
(17) O jogador é um poeta. E como um poeta um fingidor. E joga tão perfeitamente
que nos faz pensar que é poesia o que é jogo simplesmente. (O jogador e sua bola. In:
SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.78).
No primeiro caso desse item, (17), temos um processo intertextual cuja fonte alude,
notadamente, ao poema de Fernando Pessoa que se segue:
(17.1) Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Várias pistas remetem o interlocutor de (17) ao texto fonte, entre as quais destacamos: a
manutenção prosódica de (17) em relação a (17.1); a repetição nada mimética de algumas
98
palavras de (17.1): ―fingidor‖, ―completamente‖; a parecença entre as estruturas sintagmáticas
―joga tão perfeitamente‖ e ―Finge tão completamente‖; e a conversão do sujeito de ―o poeta é
um fingidor‖ em predicativo de ―o jogador é um poeta‖. Aliadas a essas pistas, estamos
falando de um texto clássico da literatura mundial, o que favorece, e muito, a tentativa de se
estabelecer conexão com ele. Mesmo se o texto fonte não for acionado no processo de
construção do sentido do texto, isso não descaracteriza o fenômeno intertextual que ali se
manifesta, acena para o leitor, sinaliza textualmente para ele.
(18) O patinho agora é gay
Cresce nos Estados Unidos a publicação de livros infantis com personagens
homossexuais.
Era uma vez um príncipe que não gostava de princesas, uma menina que tinha duas
mães, um patinho que não era feio, mas era diferente dos outros. São, todos,
personagens de livrinhos para criança que, lado a lado, com Branca de Neve e o
Dinossauro Barney, freqüentam as prateleiras infantis das livrarias e bibliotecas
americanas – só que com temática nitidamente pró-homossexual. (Revista Veja,
31/05/2006).
Em (18), temos um caso de intertextualidade por alusão com a presença de um dêitico
temporal. Em primeiro lugar, diferentemente do texto do exemplo anterior, pede-se que o
interlocutor busque em sua memória uma informação de caráter bem mais geral, como é o
caso da história do Patinho Feio, o texto fonte em que do título do texto de (18) se ancora.
Naturalmente, não estamos desconsiderando as nuances culturais que ―determinam‖ o
acessar de fontes desse tipo, que estamos considerando como sendo de natureza mais geral.
Todavia, há de se mencionar que o texto em questão - o conto de fadas O patinho feio, cuja
autoria é de Hans Christian Andersen -, pode ser entendido como tendo alcance mundial, vez
que o poeta e escritor dinamarquês contribuiu tão maciçamente para a literatura infanto-
juvenil que na data de seu nascimento, 2 de abril é, hoje, comemorado o Dia Internacional do
Livro Infanto-Juvenil; além disso, a mais importante premiação internacional do gênero
carrega seu nome.
Desta feita, partindo-se do pressuposto de que se trata, sim, de uma informação viva na
memória dos sujeitos construtores de sentido, entendemos que, quando ―alterada‖ pelo dêitico
―agora‖, atualiza como que automaticamente o momento ―antes-do-agora‖. A atmosfera deste
momento paira sobre o ―agora‖. Ora, se ―o patinho agora é gay‖ é porque não o era antes, e o
99
interlocutor sabe disso: constrói o sentido do texto exatamente em cima do conhecimento de
que já dispõe; pensamos, enquanto leitores, que o procedimento deva ser mais ou menos o
seguinte: o patinho (de Andersen) era feio, mas agora (com a ―modernização‖ do mundo
contemporâneo) aquele mesmo patinho é gay. Defendemos, portanto, que procedimentos
desse tipo promovem marcação de um outro ponto de vista, de um outro discurso, na
materialidade linguística, sem que, para isso, tenha de haver necessariamente aspeamento ou
qualquer outro destaque formal que lhe seja ―exterior‖.
(19) A vida é bela, e me sinto como se tivesse ganho um Oscar (sic), mesmo sendo
brasileiro. (Vivendo num cartão-postal. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas,
p.133).
No exemplo acima, diferentemente do exemplo anterior, temos um caso de
intertextualidade por alusão que divide as ―responsabilidades enunciativas‖ entre os rastros
textualmente materializados na superfície linguística e as relações inferenciais que devem ser
operadas pelo co-enunciador.
Selecionamos, propositadamente, um texto cuja referência está inscrita num
momento sócio-histórico específico de um gênero semiótico também específico,
diferentemente dos textos de (17) e (18), cujas fontes têm lugar numa memória de natureza
(mais) universal, digamos.
Estamos diante de uma ocorrência de alusão ao filme italiano A vida é bela, comédia
dramática lançada em 1997 e que, concorrendo com o brasileiro Central do Brasil, foi
vencedor do óscar de melhor filme estrangeiro, no ano seguinte. Note-se que não há
referência direta ao filme propriamente dito, mas algumas expressões referenciais ancoram
essa alusão, favorecendo a identificação do intertexto por meio de anáforas indiretas, quais
sejam: ―A vida é bela‖, ―Oscar‖ e ―mesmo sendo brasileiro‖. Como citamos em outro
momento deste trabalho, sabemos que o procedimento alusivo ―solicita diferentemente a
memória e a inteligência do leitor e não quebra a continuidade do texto‖ (PIÈGAY-GROS,
p.52). Em (19), o trabalho cognitivo do co-enunciador é relativamente simples se conhecer o
trajeto por que passou o filme até chegar ao agraciamento com o óscar. Isso porque o
fenômeno alusivo é utilizado nesse contexto de modo irônico, intenção que se apreende pela
expressão ―mesmo sendo brasileiro‖. Trata-se de um conhecimento de cunho bastante
específico, se compararmos à sedimentação cultural da história do Patinho Feio ou ao
conhecimento do mais clássico poema de Pessoa. O fato de se tratar de um episódio bem
particular no interior do gênero cinematográfico não torna (19) diferente de uma alusão feita
100
ao mais clássicos dos textos, se consideramos o fenômeno propriamente dito, concretamente
textualizado – fator que, para nós, configura um dado suficiente para que seja considerado
como estando explicitamente marcado. A diferença consistirá no acesso mais ou menos
―facilitado‖ ao texto-fonte, o que, como já frisamos, respeita a um aspecto contingencial.
Já sabemos: a alusão não se manifesta por via nem literal nem explícita, mas por meio
de uma espécie de referência por meios indiretos, sem se referir explicitamente ao que se
pretende enfocar, mas fornecendo elementos textuais de apoio, de sugestão àquilo que se está
referindo. São esses meios indiretos (expressões anafóricas indiretas materializadas no fio do
discurso, como ―um Oscar‖) que queremos incluir entre os mecanismos de mostração de que
dispõe o enunciador para marcar, conscientemente, seu texto, já que tal marcação é passível
de reconhecimento num ponto ou, no caso da alusão, em pontos específicos do dizer.
Já mencionamos concordância quanto ao fenômeno de a alusão ultrapassar e muito os
domínios da intertextualidade. Sugerimos, então, que, em se tratando comprovadamente de
um caso uma ocorrência do procedimento alusivo a partir de evidências intertextuais, aceite-
se que estamos diante de um caso de mostração-marcação de um fato de heterogeneidade que,
pelo fato de se deixar entrever nas suturas textuais a irrupção factual do alheio, opacifica
determinado(s) ponto(s) do dizer.
(20) Na verdade, o projeto Zico é tão óbvio como a defesa da luz elétrica e da água
encanada, o que não significa que vá ser aprovado, ao contrário. Por ironia, as
bancadas da oposição têm manifestado maior apoio que o dos partidos que apóiam
o governo. Há até mesmo clubes e atletas que temem o projeto [...]. Apesar da
assinatura do Presidente da República, o líder do partido, por exemplo, que vem a
ser o presidente da Portuguesa de Desportos, articula um poderoso lobby ao lado
das federações e da CBF, mesmo que isso lhe custe a suspeita de ter trocado o
apoio a Zico pela convocação do menino Dener para a seleção brasileira [...]. Zico
não é mais secretário. Em seu lugar está Bernard, que tem a nobre jornada de
convencer as estrelas do Congresso a aproveitar este lançamento digno de Rei Pelé.
(Adaptado de Kfouri. Veja, 29 de maio, 1991, p.110).
Em (20), temos um texto imerso numa atmosfera de cunho desportista, que já começa
a preparar o co-enunciador para as inferências que deverão ser efetuadas. Várias são as pistas
textuais: ―Zico‖, ―atletas‖, ―CBF‖, ―o presidente da Portuguesa de Desportos‖, ―Rei Pelé‖; o
texto, por meio das relações indiretas que sugere, vem acenando para o co-enunciador que
lugar específico de seu conhecimento global está sendo solicitado; já começa a se deixar
marcar. Identificamos, no entanto, a elaboração de um procedimento alusivo, por parte do
enunciador, no último período do texto. A operação concentra-se nos elementos ―Bernard‖,
101
―jornada‖ e ―estrelas‖, a partir dos quais reconhecemos remissão implícita ao saque jornada
nas estrelas, inaugurado por Bernard, uma das importantes âncoras das anáforas indiretas
―jornada‖ e ―estrelas‖. Percebemos a consciência com que é feita alusão pelo fato de o texto
não tratar especificamente dos fundamentos do voleibol ou algo que o valha. O gesto do
enunciador demonstra cumplicidade com o co-enunciador na medida em que prevê que haja
certa medida de conhecimentos partilhado e/ou enciclopédico acerca do mundo esportivo que
viabilize a integração semântica pretendida. Exatamente por haver essa previsão, os elementos
―Jornada‖ e ―Estrelas‖ não foram acompanhados de marcas tipográficas, como as aspas ou o
itálico, por exemplo. A construção mesma do texto deixa o rastro da sugestão. O enunciador
espera que a relação entre ―Bernard‖, ―jornada‖ e ―estrelas‖ seja feita, sem que seja necessária
a referência direta a ―saque jornada nas estrelas‖; conta, dessa forma, com seu interlocutor
para que seja acionado referente não-dito. O que temos, aqui, é um texto engenhosamente
construído que supõe uma relação entre o que está sendo dito e um ―pensamento‖ já
conhecido, mas não-dito.
No caso de o co-enunciador não ser o leitor previsto pelo ―texto‖, a construção global
do sentido não fica comprometida; também a frustração do enunciador no que tange ao não-
acionamento do referente implícito não deixa de subtrair elementos que enriqueceriam tal
construção. Uma e outra postura interpretativa não anulam o fato textual do procedimento
alusivo.
Sustentamos que construções desse jaez sejam elencadas entre as formas mostradas-
marcadas que sinalizam a presença do alheio no fio discursivo, vez que, a partir de elementos
textuais, é possível que o procedimento alusivo seja reconhecido. Reputamos a alusão por
meio de anáforas indiretas, ou de introduções referenciais, como recurso mostrativo-
marcativo de alteração na materialidade linguística, de vez que a entendemos como uma
retomada implícita, elaborada a partir de uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas
orientações deixadas no texto, deve-se apelar à memória para encontrar o referente não-dito,
mas textualmente sugerido. A heterogeneidade do fio, embora apenas sugerida, é tangível e
não se deixa confundir com o que é constitutivamente atravessado pelo outro - aquele do
dialogismo bakhtiniano.
102
CONCLUSÃO
_____________________________________________________________________________
O lugar mais erógeno de um corpo não é
lá onde o vestuário se entreabre? Na
perversão (que é o regime do prazer
textual) não há ‗zonas erógenas‘; é a
intermitência [...] que é erótica: a da pele
que cintila entre duas peças (as calças e a
malha), entre duas bordas (a camisa
entreaberta, a luva e a manga); é essa
cintilação mesma que seduz, ou ainda: a
encenação de um aparecimento-
desaparecimento‖
(Barthes)
O fazer deste trabalho concentrou-se, fundamentalmente, na discussão acerca do
construto teórico da heterogeneidade enunciativa, cujas bases estão assentadas na distinção
entre heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, que, no interior da teoria,
pode ser marcada ou não-marcada.
Nossa argumentação esteve todo o tempo pautada na problematização da lógica a
partir da qual se taxionomiza a heterogeneidade do tipo mostrada, donde derivamos nossas
considerações acerca de nosso objetivo maior, que é incluir entre os fatos marcados de
heterogeneidade alguns processos de referenciação. Para nós, se há, no fio do discurso, a
irrupção de uma alteração passível de flagrante pontual, localizada num ponto específico do
discurso, há a implicação, o comprometimento de sua transparência, o que, fatalmente,
promove a opacificação dizer. Quanto a isso, a mentora da teoria das heterogeneidades, ela
mesma já nos diz. O que particularmente nos incomoda é o fato de se conceber que certa
sequência textual pode ser descrita, ao mesmo tempo, como mostrada e não-marcada.
Pensamos que, se temos uma manifestação que se mostra na materialidade do
discurso, essa mostração se dá por alguma via; sustentamos que essa via pela qual a
mostração se faz legítima deixa marcas, as quais são as responsáveis factuais da efetivação do
mostrado. Reside precisamente nesse ponto nossa discordância quanto ao que postula
Authier-Revuz, para quem as marcas de alteração no fio discursivo só podem ser explicitadas
se se fizerem materializar por meio de mecanismos prototípicos que desempenham essa
função: verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de margem, redução da fonte etc.
Essa nossa perspectivação acerca da conceitualização de mecanismos de
mostração/marcação do alheio no fio textual denuncia sob que prisma estabelecemos nossa
investigação.
103
A trajetória de nossa pesquisa resumiu-se em dar consistência a nosso propósito maior:
o de sugerir que, em se tratando de casos de heterogeneidade mostrada-marcada, outros
mecanismos, além dos consensualmente aceitos na literatura (aspas, negrito, itálico, mudança
de fonte etc), que tornam manifesta a mostração da presença do outro na materialidade
linguística, sejam legitimamente considerados como portadores de potencial marcativo.
A análise a que procedemos no último capítulo ilustrara alguns desses outros mecanismos
defendidos como tendo potencial marcativo, todos eles respeitantes a processos de
referenciação de natureza anafórica e/ou dêitica:
1. Dêitico memorial, por meio do qual o enunciador, linguisticamente, marca seu
dizer baseado na pressuposição de que o referente não-dito será (re)ativado na memória do
co-enunciador, que, a partir de seu conhecimento de mundo/enciclopédico, negocia a
(re)construção semântica desse referente. Independentemente do sucesso da negociação,
insistimos, trata-se de uma marca que, já materializada, não nulifica a marcação. A exemplo
do que vimos nos textos (1) a (9), sustentamos que os usos de dêiticos de memória acumulam,
também, a função de explicitar fatos de heterogeneidade no fio textual, o que promove a
opacificação de um ponto específico do dizer, marcando-o, portanto.
2. Dêiticos espacial e temporal, tal como exemplificamos nos textos (10), (11) e (12),
respondem, além de situar os interlocutores no âmbito espácio-temporal da enunciação, pela
alternância de espaços enunciativos, movimento que marca, na materialidade linguística, a
mudança de expediente enunciativo, que, necessariamente, conta com elementos pertencentes
ao momento enunciativo do outro para a negociação de sentido.
O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio num ponto específico da
superfície textual, marcando-a.
Indicam, também, a ocorrência de discurso indireto livre, de intertextualidade, outras
estratégias que, vimos, mostram uma alteração local no fio do discurso.
3. O discurso indireto livre, estratégia a partir da qual o enunciador, por meio de
mudança do expediente desinencial, por exemplo, e, portanto, dêitico-pessoal, tal como
demonstramos em (13), marca uma alternância de enunciações, fato que manifesta fato de
heterogeneidade num ponto específico do dizer. A ruptura local no fio discursivo –
demonstramos em (12) – pode, linguisticamente, mostrar-se por meio de elemento dêitico, o
qual funciona de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro no fio, marcando-a, pois.
104
4. Recategorização, fenômeno por meio do qual o falante de uma língua, em suas
práticas linguísticas, quer adequar os referentes a seus propósitos comunicativos,
remodelando-os, adicionando ou eliminando características num processo de reavaliação
desse referente, movimento que flagra a instabilidade que lhe é inerente, constitui mecanismo
marcativo.
Como vimos nos exemplos (14) a (16), o ato de recategorizar, pelo modo mesmo
como é elaborado, assinala ou sugere um ponto de vista de um sujeito de consciência sobre o
objeto de discurso, fato que o torna ―canalizador‖ de uma subjetividade que se deixa
apreender exatamente pela maneira como se dá a transformação cognitiva do referente,
conforme a manobra executada pelo enunciador.
Há, na essência desse ato, também, uma dimensão social, já que visa a atender ao
propósito do falante, o qual negocia com o interlocutor, considerando-se o conhecimento
partilhado entre ambos, que elementos devem vir explicitados/implicitados na superfície
textual, o que deve ser enfatizado, qual a postura a ser assumida etc.
Assim, compreendendo esse fenômeno, sustentamos que o elemento recategorizador
constante da materialidade linguística instaura claramente um fato de heterogeneidade no fio -
fato que é localmente observável quando do ato mesmo da atualização do elemento
recategorizador, procedimento marcativo que mostra alteração no fio, portanto.
5. Intertextualidade por alusão através de anáforas indiretas e de introduções
referenciais, procedimento que se concebe, conceitualmente, pela implicitude do referente
não-dito, traz, nas referências indiretas sob as quais o texto se constrói, as coordenadas de
busca que levarão o co-enunciador ao referente pretendido, a exemplo do que vimos nos
exemplos (17) a (20). São exatamente essas referências indiretas, com efeito, que
materializam o fato de heterogeneidade e que marcam a alteração do dizer. A opacificação é
promovida, linguisticamente, pelos elementos que constituem tais referências, as quais
mostram concretamente a presença do alheio no fio do dizer. Mesmo porque, se não houvesse,
ali, algum tipo de marca, o co-enunciador não alcançaria o intertexto - e o enunciador tem
ciência disso.
Assim, vemos que as hipóteses em torno das quais estabelecemos nosso objetivo maior
foram confirmadas, de modo a afirmar a pertinência de nosso estudo para a linguística que se
ocupa do texto e, conseqüentemente, das instâncias que o compõem.
105
Face ao exposto, encerramos esta dissertação com uma última consideração quanto ao
estatuto do que deve ser entendido como marcado. Julgamos, como Cavalcante28
, ser mais
apropriado falar em diferentes espécies de marca, em detrimento de se postular uma não-
marcação. De modo análogo, seria mais adequado considerar variados graus de explicitude,
evitando, assim, atribuir a marcação de explicitude apenas àquelas classicamente
reconhecidas, como as que contêm verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de
margem, redução da fonte etc. O emprego de expressões referenciais nos parece essencial
para a elaboração de citações, referências e alusões, embora a literatura sobre o assunto mal
faça menção a isso como possível assinalação de heterogeneidade mostrada-marcada. Em
tempo: insistimos que o raciocínio a partir do qual sedimentamos nossa proposta nada tem a
ver com um, digamos, behaviorismo analítico, haja vista a pressuposição de um leitor-modelo
ser elemento essencial para a visualização das marcas aqui propostas: o fato mesmo de a
marcação vir mostrada linguisticamente na superfície textual – modo pelo qual o fenômeno
em si é apreendido - já resguarda estatuto marcativo dos processos referencias aqui
apresentados de eventuais frustrações.
Elaboramos o organograma que se segue, de modo a ilustrar, finalisticamente, a
proposta de nossa empresa:
28
Consideração feita em CAVALCANTE, M. M. Referenciação – sobre coisas ditas e não-ditas. São Paulo:
Contexto (livro inédito).
Heterogeneidade
Constitutiva
Atravessamento
intangível
do o/Outro
Heterogeneidade Enunciativa
Heterogeneidade
Mostrada-Marcada
(rupturas linguisticamente observáveis)
Aspas, negrito, itálico, verbos dicendi,
discurso indireto livre, intertextualidade,
processos referenciais
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
__________________________________________________
Então sou só eu que é vil e errôneo nessa terra?
(Álvaro de Campos)
A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada,
redescrevemos, acrescentando o que nos pareceu pertinente, um conjunto de marcas que
transcendeu aquelas consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas, discurso direto), como
sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio discursivo.
Propusemos que, em vez de se falar em heterogeneidade mostrada marcada ou não-
marcada, aceitemos que a heterogeneidade que mostra a descontinuidade do dizer pode ser
linguisticamente explicitada por diferentes espécies de marcas, o que nos faz considerar
variados graus de explicitude mostrativo-marcativa, evitando, com essa assunção, atribuir a
marcação de explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas.
Limitamos-nos a ampliar o quadro dos fenômenos linguísticos que podem,
legitimadamente, acumular a função marcativa. Isso abre caminho para elaboração de critérios
para a construção de uma escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia
mostrativa vigente de heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada,
contemple desde o discurso mais formalmente marcado e, portanto, (mais) explicitamente
marcado - já que carregam consigo marcas ―exteriores‖ ao signo linguístico propriamente dito
-, até aquele que é também explicitamente marcado, mas que, como vimos, materializa de
maneira diferente a irrupção do Não-Um na superfície textual.
107
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