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Experincias nacionais, temas transversais:subsdios para uma histria comparada da Amrica Latina

Flavio M. Heinz(Org.)

Experincias nacionais, temas transversais:subsdios para uma histria comparada da Amrica Latina

OI OSEDITORA

2009

Dos Autores 2009 [email protected]

Editorao: Oikos Capa: Marcelo Garcia dos Santos Fotos da capa: 1. Ao largo de Tenerife, Ilhas Canrias, navio de imigrantes de Hamburgo em rota para o Rio de Janeiro (maro de 1887). Acervo do Museu Histrico Visconde de So Leopoldo. 2. R. N 2080: Arquivo da Emigracin Galega (Santiago de Compostela, Espaa), Vigo, c. 1955, Foto Bene. (Transatlntico Santa Cruz, que realiz muchos viajes hacia la Amrica del Sur, transportando pasajeros). Reviso: Do Organizador Arte final: Jair de Oliveira Carlos Impresso: Rotermund S. A.Editora Oikos Ltda. Rua Paran, 240 B. Scharlau Caixa Postal 1081 93121-970 So Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 / Fax: 3568.7965 [email protected] www.oikoseditora.com.br

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Experincias nacionais, temas transversais: subsdios para uma histria comparada da Amrica Latina. / Organizado por Flavio M. Heinz. So Leopoldo: Oikos, 2009. 328p.; 16 x 23 cm. ISBN 978-85-7843-116-7 1. Histria comparada Amrica Latina. 2. Anlise histrica. 3. Histria social. I. Heinz, Flvio M. CDU 98(=4)

Catalogao na Publicao: Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil CRB 10/1184

Em memria de Blanca Zeberio (Orieta), historiadora arguta e colega generosa.

SumrioComparaes e comparatistas ..................................................................... 9 Flavio M. Heinz Ana Paula Korndrfer A longa durao hoje: balano de meio sculo (1958-2008) .................. 21 Maurice Aymard Comparao e anlise histrica: reflexes a partir de uma experincia de pesquisa .............................................................................. 44 Rosa Congost Una reflexin en torno a los mediadores polticos en la segunda mitad del siglo XIX. El partido como problema ........................................... 56 Marta Bonaudo Tradiciones militares coloniales. El Ro de la Plata antes de la revolucin ............................................................................................ 74 Ral O. Fradkin La redefinicin de las fronteras: cuando argentinizar fue la consigna ............................................................................................ 127 Susana Bandieri A fronteira manejada: apontamentos para uma histria social da fronteira meridional do Brasil (sculo XIX) ........................................... 145 Mariana Flores da Cunha Thompson Flores Lus Augusto Farinatti O comerciante, o estancieiro e o militar: noes divergentes de honra entre as elites do Rio Grande do Sul no incio do sculo XIX .... 178 Karl Monsma Los actores sociales de la ganadera patagnica: polticas pblicas y formas asociativas en las primeras dcadas del siglo XX ................ 196 Graciela Blanco

Aportes al estudio de la conformacin de la propiedad moderna en Argentina. Ni feudal ni comunista: El caso de la Provincia de Jujuy ..................................................................................... 217 Ana Teruel Mara Teresa Bovi El desierto y sus confines. Contexto y narrativa en la Descripcin Amena de la Repblica Argentina de Estanislao Zeballos....................... 252 Sandra Fernndez Los mecanismos de asistencia oficial en el ltimo ciclo de las migraciones gallegas hacia la Argentina ............................................... 285 Nadia Andrea De Cristforis Elites, polticos e instituies polticas: o Estado Novo no Brasil, de novo ........................................................................................................ 316 Adriano Codato

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Comparaes e comparatistasFlavio M. Heinz* Ana Paula Korndrfer**As pginas que compem este livro traduzem o esforo de especialistas de Histria do Brasil, da Argentina, da Frana e da Espanha em somar suas experincias de pesquisa e trabalho de reflexo para o avano da empresa comparativa. Esto aqui reunidos alguns dos textos apresentados em um colquio cientfico destinado a aproximar especialistas interessados neste avano, o II Encontro da Rede Internacional Marc Bloch de Estudos Comparados em Histria Europa/Amrica Latina, realizado em Porto Alegre em outubro de 2008.1 Estes textos expem, em sua diversidade temtica e complexidade metodolgica, as dificuldades inerentes realizao da histria comparada, mas tambm sugerem pistas e solues para super-las. Como si acontecer em coletneas do gnero, h um amplo gradiente de variao entre os textos no que diz respeito sua maior ou menor proximidade com a metodologia ou perspectiva comparatista. Com efeito, a ideia orientadora do colquio no era a de, ingenuamente, fundar uma prtica comparatista, mas antes de colocar, lado a lado, pesquisadores experientes que tivessem a comparao como um elemento possvel e desejado de seu trabalho, permitindo que a reflexo e a prtica de pesquisa de uns e outros se deixassem contaminar pelas experin* Programa de Ps-Graduao em Histria da PUCRS, coordenador do Laboratrio de Histria Comparada do Cone Sul (CNPq/PUCRS). ** Doutoranda em Histria, CNPq/PUCRS. 1 Nem todos os textos apresentados no II Encontro da Rede Marc Bloch esto includos neste volume. Alguns textos apresentados no Encontro, notadamente aqueles de autoria de pesquisadores do Projeto de cooperao acadmica existente entre UNCPBA (Tandil, Argentina) e Unisinos (Brasil), sero objeto de publicao especfica. Agradecemos coordenadora brasileira deste projeto, Marluza Harres, da Unisinos, pelo apoio e colaborao para a viabilizao da atual publicao.

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Comparaes e comparatistas / Flavio M. Heinz e Ana Paula Korndrfer

cias dos colegas. Assim, h textos onde a reflexo sobre a comparao histrica tem grande destaque e outros em que a experincia singular de pesquisa deste ou daquele tema prevalece sobre os traos comparatistas. Em todos os casos, contudo, um mesmo perfil de pesquisa se descortina: rigor e qualidade no trabalho investigativo, riqueza das fontes utilizadas e clareza metodolgica, alguns dos requisitos bsicos do sucesso no apenas da empresa comparatista, mas de toda boa historiografia. A comparao em Histria Duas frases da historiadora norte-americana Deborah Cohen, no ensaio preparatrio do workshop Europe in comparative and crossnational perspective, provocativamente intitulado Comparative History: buyer beware, parecem bem sinalizar as dificuldades suscitadas pelo binmio histria comparada: Comparative history has few detractors. Formally, at least, it may have even fewer practitioners2. Com efeito, a histria comparada nas palavras de Cohen, ao lado da histria quantitativa, uma das queridinhas dos pesquisadores nos anos 1970 , segue, apesar de suas dificuldades, conquistando coraes. E isso se deve, nos parece, mais pela suposio de sua eficcia do que pelos resultados alcanados pelos historiadores comuns que a ela se dedicaram ao longo das ltimas dcadas. Assim, o mtodo comparativo atrairia simpatias de um pblico que, em sua esmagadora maioria, no faz histria comparada. Mas o que explica o charme desta disciplina/especialidade, subentendendo-se que seu fascnio amplamente superior sua capacidade de mobilizar pesquisadores? No h uma, mas vrias respostas possveis para esta pergunta. Uma primeira resposta aquela que aponta para a ausncia de um rol claro de procedimentos a serem seguidos, o que, apesar dos atrativos, dificulta sua difuso. Assim, se verdade que todos j escutaram falar de mtodo comparativo, a maioria no sabe exatamente como fazer, como aplic-lo. Mais grave, quando algum se lana a busc-lo, via de regra, no encontra respostas objetivas quanto s suas etapas e consecuo.2

COHEN, Deborah, Comparative History: buyer beware, GHI Bulletin, n. 29 (Fall 2001), p. 23.

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Dir-se-ia que a melhor maneira para se apropriar de uma determinada metodologia ou teoria partir para suas leituras cannicas, o que no totalmente falso, mas que representa uma certa simplificao da realidade. No caso da Histria comparada, o cnone dos cnones Bloch, e de Bloch, dois artigos: Por uma histria comparada das sociedades europias e Comparao, respectivamente, de 1928 e 1930. Ora, Bloch nos oferece linhas gerais para pensar a comparao, no um manual de procedimentos. A popularizao dos dois artigos como porta de entrada da histria comparada tambm pode no ter ajudado muito, uma vez que a perspectiva de anlise, logo o modus operandi do historiador, poderia ser melhor percebida na leitura do conjunto de sua obra do que nos textos de divulgao sobre as virtudes do mtodo. Uma segunda resposta pode ser encontrada na dificuldade e complexidade da empresa comparatista. Maturidade intelectual e erudio so caractersticas exigidas aos que se aventuram na comparao histrica, condies necessrias, mas no suficientes, certo, para o seu sucesso. O comparatista se destaca como quem realiza um feito extraordinrio: para alm do necessrio domnio de sua histria nacional, aventura-se tambm no conhecimento de outras histrias nacionais. Se considerarmos a crescente especializao da profisso e o crescimento exponencial dos conhecimentos produzidos em diferentes espaos disciplinares passveis de serem incorporados numa histria nacional, a tarefa parece simplesmente gigantesca. Por definio, o comparatismo no seria tarefa de iniciantes. Colocado assim, parece claro que os fatores de desestmulo ao aparecimento de novos postulantes condio de historiador comparatista so mais importantes do que os estmulos. Jrgen Kocka chama a ateno para a crescente dependncia que um amplo estudo de comparao histrica ter de literatura secundria e seu distanciamento em relao a fontes e idiomas prprios de alguns dos casos em anlise.3 De toda forma, o conjunto de dificuldades para a aplicao do mtodo revela uma das estratgias de sucesso do comparatismo entre historiadores: o trabalho de equipe e a diviso de tarefas entre especialistas nacionais.

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KOCKA, Jrgen. Comparison and Beyond. History and Theory. V. 42, n. 1, February 2003, p. 41.

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Por fim, uma terceira resposta para o descompasso entre o grande prestgio do mtodo e o pequeno nmero de seus efetivos utilizadores diz respeito natureza das sensibilidades polticas e intelectuais no perodo de sua disseminao. Nao e nacionalismo so duas dimenses evidentes do xito do Estado e da sociedade burguesa da segunda metade do sculo XIX momento no qual preciso localizar a consolidao da disciplina histrica , mas tambm so expresses centrais da perigosa precipitao das radicalizaes polticas e intelectuais dos anos 1920/30. Assim, superar o quadro nacional e mergulhar no mbito europeu ou, ao menos, cotejar outras histrias nacionais, poderia ter significado um olhar sobre o outro que, para alm dos bvios contornos psicanalticos, sinalizava um certo posicionamento poltico. Este posicionamento, uma espcie de linha de frente contra a seduo de uma histria nacional instrumentalizada e submetida ao chauvinismo intelectual ambiente, provavelmente atraiu muitos historiadores para o comparatismo. possvel sugerir que, ainda hoje, longe da conjuntura europeia que a militncia intelectual de Bloch conheceu, a comparao de histrias nacionais conserva um certo atrativo cosmopolita e internacionalista, em contraponto ao particularismo de certas histrias regionais e mesmo nacionais. Mas, retomando o primeiro ponto, a pergunta que nos afeta mais diretamente aqui : h efetivamente um mtodo da histria comparada? Para um certo nmero de estudiosos contemporneos, a histria comparada, no sentido de um conjunto claro e ordenado de procedimentos que, aplicados a determinada situao, permitem auferir resultados concretos, no existe. Como delineamento geral do mtodo, Bloch indicava a necessidade de escolha de fenmenos nos quais houvesse certas semelhanas entre os fatos observados e dessemelhanas em relao ao meio, o acompanhamento de sua evoluo no tempo, a percepo das continuidades, a busca de influncias entre uma sociedade e outra, e a busca das causas ou o sentido das causalidades. O editor de Comparative Studies in Society and History, Raymond Grew, citado por Maria Lgia Coelho Prado, entende que o historiador francs propunha menos um mtodo e mais uma forma de pensar. Para Grew no haveria propriamente um mtodo comparativo. O uso da comparao [em Bloch] era uma maneira de alcanar diferentes perspectivas no campo

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da pesquisa. [Tratar-se-ia de um] modelo que prescinde da elaborao de estruturas formais e que se apresenta mais como uma forma de pensar o objeto do que como uma metodologia4. Mesmo Kocka, talvez o mais importante historiador comparatista em atividade, coordenador daquele que possivelmente o maior empreendimento internacional do gnero, a pesquisa sobre as burguesias europeias do sculo XIX, chama a ateno para uma dimenso mais subjetiva das virtudes do mtodo: a comparao ajuda a tornar o clima da pesquisa histrica menos provinciano5! Para ele, a comparao na pesquisa histrica responde a quatro propsitos: heurstico, descritivo, analtico e paradigmtico. Em relao ao primeiro, Kocka sugere que a abordagem comparativa permite localizar questes e problemas que, de outra forma, seriam possivelmente negligenciados ou ignorados. Kocka ilustra o propsito com a clebre identificao de Bloch da questo de estruturas de apropriao da terra similares aos enclosures no sul da Frana, uma revelao que ao mesmo tempo d perspectiva ao caso clssico ingls e tensiona de forma objetiva a historiografia agrria e regional francesa. No plano descritivo, a comparao se presta a iluminar os perfis dos casos singulares, contrastando-os com outros. Kocka exemplifica este propsito com o grande nmero de caracterizaes particularistas dos fenmenos histricos do tipo Sonderweg alemo ou Excepcionalismo americano. Neste aspecto, poderamos reconhecer a funo descritiva da comparao na historiografia regional ou nacional, por exemplo, na identificao de tipos diferentes de regionalismo, como o regionalismo gacho de Joseph Love, de vis autoritrio e fortemente ideolgico, em contraste com regionalismos menos particularistas de outras regies do pas; ou, ainda, a pretensa semelhana dos regimes polticos varguista e peronista. Em relao funo analtica, a comparao se mostra indispensvel na formulao e na resposta a questes causais. E afirma Kocka, sem antes deixar de assinalar que fora Weber o pioneiro deste tipo de ambiciosa comparao: William Sewell e outros sublinharam que a comparao

PRADO, Maria Ligia Coelho. Repensando a histria comparada da Amrica Latina. Revista de Histria, Universidade de So Paulo, n. 153, 2005, p. 19. 5 KOCKA, op. cit., p. 39 (traduo nossa).4

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pode ter o lugar de um experimento indireto que facilitaria o teste de hipteses. Ainda que possamos ser cticos em relao a esta reivindicao, no h dvida de que a comparao indispensvel para historiadores que gostam de formular questes causais e oferecer respostas causais. Por fim, a funo paradigmtica da comparao aparece na abertura que ela oferece ao historiador, distanciando-o daquilo que conhece melhor e ampliando sua capacidade de problematizar seus temas de pesquisa. Neste sentido, Kocka oferece uma extraordinria leitura dos problemas das formaes profissionais excessivamente nacionais e do peso das historiografias regionais de vis marcadamente particularista: Historiadores esto com frequncia muito concentrados na histria de seu prprio pas ou regio. Por causa disso, a comparao pode ter um efeito de desprovincializao e liberao, de abertura dos olhos, com consequncias para a atmosfera e o estilo da profisso6. Para concluir, duas palavras sobre as tenses entre o comparatismo histrico e as novas tendncias historiogrficas de privilegiar a dimenso supranacional ou internacional dos processos. Referimo-nos s histrias chamadas interconectadas, ou connected histories, que se popularizaram entre os historiadores por permitir que o objeto de pesquisa conduza o investigador. Diferentemente dos estudos comparativos, modelizados, estruturados e, sobretudo, definidos a partir de unidades de anlise mais ou menos rgidas, como o estado nacional e suas instituies, ou ainda, suas unidades regionais (como fizeram Joseph Love, Robert Levine e John Wirth na anlise de trs estados brasileiros na primeira fase republicana), a histria conectada persegue um tema, um objeto que migra entre diferentes classes, grupos sociais, identidades tnicas ou profissionais, e, sobretudo, passa relativamente impune pelas fronteiras regionais e nacionais. Uma disciplina genuinamente nacional como a histria se deixa assim seduzir pela possibilidade de que o aspecto universalizante presente na circulao mundial de determinada ideia ou produto cultural se deixe apreender, no no quadro de sua inscrio nacional, mas nos traos por vezes errticos de sua recepo em diferentes populaes. Retomando Cohen, preciso dizer que ambas as histrias, a comparativa e as histrias cruzadas ou interconecta-

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KOCKA, p. 41 (traduo nossa).

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das, tm em comum o fato de sustentarem sua legitimidade na habilidade de ver algo que as histrias nacionais obscurecem, ainda que com diferentes motivaes e resultados: Depois de tudo, a histria comparada est preocupada fundamentalmente com diferenas e semelhanas, frequentemente com questes de causalidade. Histrias transnacionais, em contraste, podem nos falar sobre circulao transnacional, sobre a histria das trocas culturais, sobre fenmenos internacionais7. Os textos O inventrio de temas aqui propostos retoma alguns dos temaschave do comparatismo histrico, daquele que se realiza h muito tempo no hemisfrio norte, certo, mas tambm daquele esboado por historiadores das duas margens do Rio Uruguai: fronteira, elites polticas, homens pblicos e imigrao so apenas alguns deles. Debrucemo-nos sobre eles um instante: O texto de Maurice Aymard que abre esta coletnea, apresentado na sesso de abertura do II Encontro da Rede Internacional Marc Bloch, intitula-se A longa durao hoje: balano de meio sculo (1958 2008). Erudito e metodologicamente instigante, Aymard prope uma discusso sobre a noo de longa durao a partir da publicao, nos Annales E. S. C., em 1958, do clebre artigo de Fernand Braudel, Histoire et sciences sociales. La longue dure. Constatando o impacto internacional do texto de Braudel ao longo do ltimo meio sculo, Aymard prope-se a explorar alguns aspectos do texto e a situ-lo no contexto de sua elaborao, a abordar suas formas de recepo/adaptao e a perguntar-se sobre sua influncia e possvel atualidade. O texto de Rosa Congost, historiadora do espao agrrio espanhol, foi aquele da conferncia de encerramento do evento. Escrito em tom pessoal, como afirma a prpria autora, Comparao e anlise histrica: reflexes a partir de uma experincia de pesquisa, narra o percurso de reflexo e as percepes da autora em torno da histria comparada. Afirmando no conceber outra maneira de realizar estudos histricos, Rosa Con-

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COHEN, p. 24 (traduo nossa).

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gost aponta que a comparao permite ao historiador analisar melhor a realidade investigada, ajudando-o a situar os problemas estudados em coordenadas de espao e tempo. Estabelecendo dilogos com Maurice Aymard e Marc Bloch, e abordando suas experincias pessoais de investigao sobre a propriedade na Catalunha entre os sculos XVIII a XX, a autora discute os desafios e os ganhos da comparao em anlises histricas. O objetivo da historiadora Marta Bonaudo, da Universidade Nacional de Rosrio, no terceiro dos textos aqui reunidos, aproximar-se da complexa experincia de conformao/configurao de instncias de mediao entre a sociedade civil e o Estado os partidos na Argentina da segunda metade do sculo XIX. Analisando as experincias e reflexes sobre a poltica e os partidos em Santa F, entre 1853 e 1890, a partir de fontes como peridicos e correspondncias, Bonaudo discute os dilemas e as tenses que marcaram a dinmica das construes republicanas e nacionais como a organizao da vida poltica e de um sistema representativo. Ral Fradkin aborda as tradies militares forjadas no espao do Rio da Prata durante o perodo colonial enfocando, principalmente, o sculo XVIII. Neste sentido, Fradkin se prope a identificar as caractersticas das formaes armadas que se configuraram no espao da Intendncia de Buenos Aires milcias, corpos veteranos, entre outras e as tradies que se forjaram em torno dessas formaes, buscando comparar a experincia de Buenos Aires com outras do Prata, investigando especificidades e variaes regionais. Tradiciones militares coloniales. El Ro de la Plata antes de la revolucin, texto embasado em vasta bibliografia, deve ser entendido, segundo o autor, como parte de uma preocupao maior: desvelar a natureza e as caractersticas das foras beligerantes que intervieram no ciclo de guerras aberto no Rio da Prata entre as dcadas de 1810 e 1870 para compreender melhor as possibilidades de interveno poltica dos setores sociais subalternos, bem como a incidncia da guerra e das tradies militares na configurao de suas culturas polticas. Susana Bandieri, historiadora da regio patagnica, prope-se a discutir o processo de argentinizao da Patagnia nas primeiras dcadas do sculo XX. Apontando a crescente penetrao estatal na regio

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patagnica no perodo em questo, Bandieri analisa a Ley de Fomento de los Territorios Nacionales, de 1908, e outras aes realizadas neste sentido, a partir da dcada de 1920 e, principalmente, nas dcadas de 1930 e 1940, auge do pensamento nacionalista. De acordo com Bandieri, a partir dos anos 1920, com o crescimento da preocupao em argentinizar a regio criar a identidade nacional e proteger a soberania , o Estado nacional ampliou sua presena na Patagnia atravs, por exemplo, da criao de sucursais do Banco de la Nacin Argentina em centros fronteirios da regio, da transformao de San Carlos de Bariloche em centro turstico internacional, da criao de escolas de fronteira e da explorao de recursos como petrleo e gs. Assim como outros autores presentes neste volume, Bandieri defende, em La redefinicin de las fronteras: cuando argentinizar fue la consigna, a necessidade de se transcender as anlises tradicionais sobre fronteira. Mariana Flores da Cunha Thompson Flores e Lus Augusto Farinatti propem, a partir de uma reflexo historiogrfica sobre a questo da fronteira no estudo da sociedade dos confins meridionais do Brasil no sculo XIX, formas alternativas de anlise do espao fronteirio. Em A fronteira manejada: apontamentos para uma histria social da fronteira meridional do Brasil (sculo XIX), Thompson Flores e Farinatti discutem as vises opostas de fronteira-barreira e de zona de fronteira completamente integrada para, a partir da, proporem a discusso sobre o manejo da fronteira. Refutando as ideias de fronteira como espao que isola/separa as partes ou que as integra totalmente, os autores apontam a necessidade de se perceber que viver em uma zona de fronteira no caso, a regio sudoeste do Rio Grande do Sul , ao longo do segundo e do terceiro quartis do sculo XIX, era uma situao que propunha possibilidades e problemas diversos para os agentes, conforme sua posio social; as relaes com a fronteira e os significados atribudos a ela pelos sujeitos eram dinmicos, histricos. Articulando vasta bibliografia e documentao, como processos-crime e inventrios post mortem, os autores buscam exemplificar como grandes estancieiros, lderes militares, subalternos pequenos produtores e pees , perseguidos pela justia, escravos e comerciantes se relacionaram, a partir de seu posicionamento social, com a situao de fronteira. Karl Monsma aborda a honra masculina enquanto capital simblico em O comerciante, o estancieiro e o militar: noes divergentes de honra 17

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entre as elites do Rio Grande do Sul no incio do sculo XIX. Analisando os conflitos do comerciante Joo Francisco Vieira Braga com o estancieiro Boaventura Jos de Oliveira e com o militar Antnio Francisco Pinto de Oliveira, Monsma discute as diferenas nas noes de honra de segmentos distintos da elite no Rio Grande de So Pedro Imperial ponto importante para compreender os conflitos apresentados , bem como as formas, tambm distintas, com que os envolvidos realizavam a defesa da honra. Merecem destaque, na discusso trazida por Monsma, as associaes estabelecidas entre honra e palavra. Assim como Susana Bandieri, Graciela Blanco tambm elegeu a Patagnia argentina como recorte de sua investigao. Em Los actores sociales de la ganadera patagnica: polticas pblicas y formas asociativas en las primeras dcadas del siglo XX, os principais objetivos de Blanco so trs: analisar o processo de ocupao e distribuio da terra na Patagnia, destacando o final do sculo XIX e o incio do sculo XX; caracterizar os atores sociais que se configuraram a partir das distintas formas de apropriao da terra e sua explorao atravs da criao extensiva de gado, tais como proprietrios, arrendatrios e ocupantes; e, por fim, buscar uma aproximao dos conflitos emergentes e da ao das organizaes corporativas surgidas na Patagnia neste perodo, como a Federacin de Sociedades Rurales de la Patagonia. Ana Teruel e Mara Teresa Bovi, da Universidade Nacional de Jujuy, elegeram a complexa e variada realidade socioeconmica da provncia de Jujuy, no sculo XIX, para abordar as transformaes dos direitos de propriedade no perodo, explorando questes relativas a como estes direitos foram formulados depois da expropriao das comunidades indgenas. Em Aportes al estudio de la conformacin de la propiedad moderna en Argentina. Ni feudal ni comunista: El caso de la Provincia de Jujuy, Teruel e Bovi centram sua anlise na gesto do governador Eugenio Tello na dcada de 1880 (1883 1885), momento de inflexo mais claro, segundo as autoras, entre a antiga ordem e a nova, cujos valores bsicos eram o trabalho e a propriedade privada. A fronteira tambm tema do texto El desierto y sus confines. Contexto y narrativa en la Descripcin Amena de la Repblica Argentina de Estanislao Zeballos, de Sandra Fernndez, da Universidade Nacional de Rosario. Fernndez analisa Descripcin Amena de la Repblica Argetina, obra

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em trs tomos publicada ao longo da dcada de 1880 e que representa a cosmoviso do espao pampeano na tica de Estanislao Zeballos, homem pblico rosarino com trnsito pelos caminhos da cincia e pelo mundo editorial. Entrecruzando informaes biogrficas e contexto, a autora traz trechos da Descripcin e analisa como Zeballos, representante do homem moderno de fins do sculo XIX e incio do sculo XX argentino, abordou temas como a construo do Estado nacional e a necessidade do ingresso da Argentina na modernidade. Nadia Andrea De Cristforis, da Universidade de Buenos Aires UBA, props-se a compreender como operaram os mecanismos de assistncia oficial no ltimo ciclo da imigrao galega para a Argentina, entre 1946 e os primeiros anos da dcada de 1960, e em que medida a ao destes mecanismos incidiu sobre a conformao e as caractersticas sociodemogrficas desta imigrao. Apontando os estudos sobre imigrao como campo frtil para aprofundar as reflexes sobre os problemas da comparao e sobre a escolha da escala de anlise, De Cristforis analisa a colaborao entre o Comit Intergubernamental para las Migraciones Europeas (CIME), o Instituto Espaol de Emigracin (IEE) e a Comisin Catlica Espaola de Migracin (CCEM) na organizao e funcionamento do Plan de Reagrupacin Familiar. Em Los mecanismos de asistencia oficial en el ltimo ciclo de las migraciones gallegas hacia la Argentina, a autora apresenta e contextualiza o Plan de Reagrupacin Familiar, a doutrina eclesistica sobre a imigrao e o papel desempenhado pela Comisin Catlica Espaola de Migracin no funcionamento do Plan, entre outras questes. Por fim, no texto que fecha este volume, Elites, polticos e instituies polticas: o Estado Novo no Brasil, de novo, Adriano Codato, cientista poltico da Universidade Federal do Paran, apresenta argumentos em favor de um necessrio e urgente retorno aos estudos sobre o Estado Novo para compreender a reestruturao do universo das elites na primeira metade do sculo XX, ponto capital, segundo o autor, do processo de transformao capitalista do Brasil. Abordando aspectos da histria poltica do perodo e da historiografia, Codato destaca a modificao da posio dos atores no campo poltico e a transformao do prprio campo do poder no Brasil depois de 1930, enfocando questes relativas aos polticos profissionais. O autor defende a utilidade de se conhecer, atra-

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vs de estudos prosopogrficos, o perfil da nova classe poltica nacional para uma melhor avaliao das mudanas sociopolticas do perodo. Devido s semelhanas e afinidades ideolgicas entre as elites intelectuais de Brasil e Argentina entre 1920 e 1940, o autor prope que o texto sirva como um roteiro de questes possveis histria e historiografia argentinas.

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A longa durao hoje: balano de meio sculo (1958-2008)*Maurice Aymard**

O artigo de Fernand Braudel dedicado longa durao aparece nos Annales E.S.C. em 19581. Braudel acaba de se ver confiadas, aps a morte de Lucien Febvre (em setembro de 1956), ao mesmo tempo a presidncia da VI Seo da EPHE (da qual ele fora secretrio desde sua criao, em 1948, ao mesmo tempo fundador e diretor do Centro de Pesquisas Histricas) e a direo dos Annales. Nascido em 1902, ele sabe que, salvo algum acidente, tem diante de si 15 anos para impor sua marca. Para isso se preparara, e ele decide dar a este artigo a forma de um discurso programtico. Sua inteno no somente cientfica. fixar as orientaes que prope no apenas para a disciplina histrica, mas, mais ainda, para o conjunto das cincias humanas e sociais, no quadro de sua aproximao, o que representa, a seus olhos, uma prioridade ao mesmo tempo intelectual e estratgica. Fiel ao seu hbito de nunca se tornar prisioneiro das palavras que emprega, hesita entre duas expresses para design-las: cincias sociais (no ttulo) e cincias do homem (das quais constata, j na primeira linha, a crise geral, e que daro seu nome nova instituio que se prepara para criar, a Maison des Sciences de lHomme). A primeira das duas denominaes ir se sobrepor segun-

*Conferncia de abertura do II Encontro da Rede March Bloch de Estudos Comparados em Histria Europa Amrica Latina, em 21 de outubro de 2008. Publicado originalmente sob o ttulo La longue dure aujourdhui. Bilan dun demi-sicle (1958-2008). In: CURTO, Diego R. et alii (editors). From Florence to the Mediterranean and beyond: Essays in honor of Anthony Molho. Firenze: Leo. S. Olschki, 2009. Traduzido por Flavio M. Heinz. **Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais (EHESS); antigo administrador da Maison des Sciences de lHomme de Paris. 1 BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales: La longue dure. Annales E.S.C., XIII, 4, p. 725-753, 1958.

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da apenas em 1975, por ocasio da transformao da VI Seo da EPHE em EHESS (Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais), mas ento sofrer a concorrncia das cincias do homem e da sociedade, designao escolhida pelo CNRS, que coexistir at os dias atuais com as cincias humanas e sociais, mais fceis para traduzir para o ingls. Mas o essencial, em 1958, est situado alhures: no fato de que a longa durao para ele a carta mestra e, de fato, a nica que lhe permite reivindicar para a histria, ao lado das matemticas, um papel de congregar as cincias do homem. Elas sofrem, a seus olhos, de um defeito maior: o de concentrar sua ateno no presente, e de no levar em considerao as realidades e as dinmicas do passado que, estima, so indispensveis para compreender o presente. O artigo foi lido, citado e traduzido para diversas lnguas, mas sua recepo privilegiou o que dizia respeito histria e, com frequncia, deixou em segundo plano o que dizia respeito s demais cincias do homem. As razes deste descompasso entre as intenes do autor e a recepo pelos seus leitores mereceriam, sem dvida alguma, ser especificadas. Duas me parecem ter pesado de forma determinante. A primeira: a aliana proposta entre histria e cincias sociais se colocava em muitos pases em termos diferentes, em particular em todos aqueles onde a histria era classificada pelos prprios historiadores entre as humanities (Estados Unidos) ou entre as Geisteswissenschaften (Alemanha). A segunda lhe complementar: a histria que, nos anos 1960, constituiu a linha de frente*** da influncia dos Annales no exterior, e tambm ela a responsvel pela adeso de ao menos uma parcela dos historiadores a uma identificao de sua disciplina com as cincias sociais. Esta adeso se d por volta de 1968 nos Estados Unidos, em datas posteriores em outros pases, mas ela se d tambm no momento em que, na prpria Frana, a antropologia toma o lugar da economia como interlocutora principal e, em certa medida, como modelo para os historiadores. Ora, o artigo de 1958 apostava de fato em diferentes cenrios. De um lado, ele afirmava a ruptura da histria com a concepo vnementielle com a qual se identificara por tanto tempo e, com o tempo, dava razo a Simiand, cuja crtica a Langlois e Seignobos, Mthode historique et sciences sociales, publicada em 1903 na Revue de Synthse

***Aile marchante, no original. N. do T.

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Historique, ser por ele reeditada nos anos 1960 nos Annales. Por outro lado, ele procurava identificar as pontes e os contatos possveis entre os setores mais avanados da pesquisa nas outras disciplinas. Mas visava tambm, em outro plano, a explicitar aquilo que separava as ambies da histria dos objetivos que Claude Lvi-Strauss acabava de fixar para a antropologia. Isto o conduzia a sublinhar uma dupla oposio: aquela entre a pesquisa das regras, ao mesmo tempo simples e gerais, mas vlidas para sociedades de dimenses limitadas, e as idas e vindas incessantes entre modelos e realidades sociais cuja complexidade parece inesgotvel e constantemente relanada ao historiador das sociedades mais prximas de ns, e aquela entre a longa durao dos historiadores um tempo quase imvel, lento a passar e o tempo imvel da antropologia estrutural, que bem se contentaria de deixar histria apenas as migalhas do acontecimento. Todo sucesso tem suas contrapartidas. Para um texto, duas delas so as mais frequentes. Por um lado, ele chamado a circular cada vez mais fora de seu contexto, a ser lido com olhos diferentes em funo de outros debates, seja para ser reivindicado como modelo a seguir, seja para ser criticado ou recusado: basta pensar na clebre frmula de Keynes in the long run we are all dead, que foi utilizada por muitos historiadores para rejeitar uma histria suspeita de colocar entre parnteses as decises, as maneiras de pensar e de sentir, as trajetrias individuais e coletivas, as emoes e paixes dos homens concretos, e para reivindicar para a histria o tempo da vida contra aquele da morte. Por outro lado e o preo a pagar ainda mais elevado , o ttulo do texto acaba por bastar a si prprio, por circular s e por oferecer queles que o citam a iluso de que podem dispensar-se de sua leitura: a prtica do namedropping no vale apenas para os autores, mas tambm, como se sabe, para as palavras da moda. O impacto internacional do artigo de Braudel ao longo dos ltimos 50 anos o exps particularmente a este duplo risco. Ele se tornou uma referncia obrigatria. Mas por isso teria ele conservado uma influncia real sobre as orientaes recentes da pesquisa tanto em histria quanto em cincias sociais? Em outras palavras, ele se manteria atual ou teria se tornado um texto entre outros, datado historicamente, cujo impacto poderia ser seguido e medido, mas, no fundo, estava ultrapassado, pois fora deixado de lado ou substitudo por outras proposies metodolgicas ou tericas, dotadas de uma real capacidade heurstica e que teriam deslocado o debate para outros terrenos? 23

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Tentarei responder aqui estas questes, na ordem. Logo, inicialmente, irei reler o prprio texto, na sua totalidade e complexidade, para situ-lo novamente em seu contexto. E, em seguida, mostrar as formas e as modalidades de recepo dele, quer conscientes e confessadas, quer silenciosas e mesmo involuntrias, mas igualmente reais: ou, se preferirmos, segui-lo e medir sua influncia e posteridade. E, enfim, na terceira etapa, perguntarei sobre sua atualidade. O texto tem sua data 1958 e deve ser lido por aquilo que , isto , como um programa proposto por um homem que, cercado pela aura que seu Mediterrneo lhe valera dez anos antes, acaba de aceder s responsabilidades universitrias, que para isso se preparara por muitos anos2. E Braudel est bem decidido a no deixar passar a oportunidade que lhe confere, no contexto francs e internacional da poca, a dupla direo que lhe coube. De um lado, aquela dos Anais, fundados em 1929, dirigidos com firmeza por Lucien Febvre depois da morte de Marc Bloch de 1944 a 1956, e que conseguiu se impor como uma revista de combate, engajada em uma reviso drstica e uma modernizao das maneiras de fazer, de conceber e de escrever a histria. De outro, aquela da VI Seo da EPHE, uma instituio recente, criada apenas dez anos antes, e ento em plena expanso face Universidade tradicional. Uma instituio que encarna a necessidade de ensinar no apenas saberes adquiridos, que se ocuparia apenas de transmitir, mas a prpria pesquisa em execuo. Enfim, uma instituio capaz de atrair, para os numerosos postos colocados sua disposio, tanto quanto professores confirmados, dispondo j de uma posio acadmica de prestgio numa Faculdade ou no Collge de France, quanto pesquisadores que a Universidade mantivera at ento distncia, ou que no podia recrutar porque eram estrangeiros, e que estavam entre os melhores de sua gerao: assim, um Jean Meuvret, na Frana, bibliotecrio na Escola Normal Superior, ou um Etienne Balazs, sinlogo de primeiro nvel, de origem hngara,2

Conferir G. GEMELLI. Fernand Braudel e lEuropa universale. Veneza: Marslio, 1990, que sublinha as principais etapas desta preparao, desde a criao do Centre de Recherches Historiques da VI Seo, que Braudel dirige, at a viagem aos Estados Unidos no outono de 1955, organizada nesta perspectiva por Clemens Heller em ligao com Edward dArms, um dos responsveis da Fundao Rockefeller, em sua contribuio redao do IV Plan, nos diferentes artigos que ele publica precisamente nestes mesmos anos e que se encontram reunidos no primeiro volume de seus crits sur lhistoire, publicados 11 anos mais tarde, em 1969 (Paris, Flammarion).

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que encontrara refgio como trabalhador agrcola numa fazenda do sudoeste no final dos anos 1930. Ou ainda excludos e dissidentes do Leste e do Oeste, numerosos no clima da Guerra Fria um Daniel Thorner, um Ignacy Sachs ou um Georges Haupt. E, enfim, e sobretudo, os jovens que chegavam aos 30 na dcada de 1950 (Jacques Le Goff, Franois Furet ou Emmanuel Le Roy Ladurie), que tinham suas obras pela frente, mas em relao aos quais era necessrio ter a audcia de apostar. Esta instituio, que leva o nome de Seo de Cincias Econmicas e Sociais, apresenta o paradoxo, ao menos aparente, de ter sido fundada por historiadores Lucien Febvre, Fernand Braudel, Charles Mozar e de ser dirigida desde sua fundao, e ainda por outros 25 anos (at 1985 e, depois, entre 1995 e 2004) por historiadores. A intuio de Braudel compreender que esta posio, para ser aceita pelas outras disciplinas e mantida, deve ser justificada por um programa que dever atingir trs objetivos. Em um primeiro momento, ele dever mostrar no a superioridade intrnseca da histria, que no est absolutamente garantida, mas sim sua capacidade, no momento em que , sem dvida, a menos constituda cientificamente das cincias do homem e no para de tomar emprestado das outras (economia, geografia, cincias polticas, demografia, etc.) e de lhes fornecer, em contrapartida, o que lhes falta: uma insero no passado das sociedades que elas estudam essencialmente no tempo presente (mesmo a antropologia e a etnologia, cujo alvo principal, no caso das sociedades ditas primitivas, ainda era o presente como testemunho vivo de um passado e de uma origem do homem, especialmente do homem vivendo em sociedade). A histria, reivindica Braudel, est a, presente, sua disposio, para lhes trazer as chaves de acesso quilo que lhes falta e do qual, ele lembra, tm absoluta necessidade: sem sua ajuda, elas esto condenadas ao fracasso. Mas tambm lhe ser necessrio, em um segundo momento, mostrar que os historiadores tambm esto interessados pelas mais recentes questes que mobilizam as cincias sociais. As dimenses inconscientes da vida dos homens e das sociedades, as estruturas, os modelos, e quase ainda mais as matemticas sociais, estatsticas ou qualitativas: matemticas que, com certo avano sobre os historiadores, os economistas3, os3

O que no impede Braudel de conden-los por permanecerem quase sempre prisioneiros da atualidade mais breve [...] encurralados por esta restrio temporal. Um julgamento

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linguistas e os antroplogos, imagem de Claude Lvi-Stauss, reencontraram em seu caminho, e cujos recursos souberam mobilizar para vencer a escalada das cincias exatas ou, em outras palavras, obter xito na passagem da observao, da descrio e da classificao sempre necessrias, mas insuficientes isoladamente elaborao de regras suficientemente gerais, no limite vlidas em todos os tempos e em todos os lugares, em todas ou quase todas as sociedades. A histria, repete-lhes ele, tomou claro conhecimento de suas descobertas e, por sua vez, engajou-se no mesmo caminho. Ela est pronta para jogar com eles, sem reticncias, o jogo das matemticas, mas sem por isso renunciar inesgotvel complexidade das realidades sociais. Com efeito, ela no poderia (e ele cioso em marcar sua diferena, atravs da oposio entre dois caminhos, um redutor e outro globalizante) contentar-se com uma abordagem exclusivamente microssocial, que limitaria sua ambio em estabelecer, em relao a grupos muito restritos de indivduos, regras cuja validade seria, em seguida, estendida ao conjunto. Para o dilogo que este artigo apresentado como uma chamada discusso quer estabelecer com as outras cincias sociais, Braudel pode, assim, avanar trs pistas que deveriam permitir que se compreendessem: a das matemticas, claro, mas tambm a do espao e a do tempo. De um lado, ento, a geografia ou, se se preferir, a ecologia (40 anos antes do termo ser retomado por Peregrine Horden e Nicholas Purcell)4, em nome do princpio da reduo necessria de toda realidade social ao espao que ela ocupa. De outro, a longa durao, que no outra coisa, insiste, que uma das possibilidades de uma linguagem comum em vista de uma confrontao entre as cincias sociais e que representa o aporte prprio da histria, ou, melhor, de uma histria nova que ter superado a tentao de ateno exclusiva ao acontecimento e ao individual. Esta longa durao sempre relativa a outras, sejam mais longas ou, ao contrrio, mais breves. Ela se identifica, em sua extenso mais ampla, com aquelas das sociedades e das civilizaes humanas, mas engloba outras, mais curtas, mesmo que cada uma destas duraes retome, por sua conta, uma parte da herana daquelas que a precedecontra o qual Witold Kula decidir defend-los, colocando em evidncia tudo o que as duas disciplinas tm a aprender uma com a outra: KULA, W. Histoire et conomie: La longue dure, Annales E.S.C., XV, 2, p. 294-313, 1960. 4 HORDEN, P.; PURCELL, N. The Corrupting Sea: A Study on Mediterranean History. Oxford: Blackwell, 2000.

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ram aquelas das economias, das religies ou das culturas. Mas ela ela mesma englobada em outras, infinitamente mais longas, que comearam bem antes da apario das primeiras sociedades e mesmo dos primeiros homens: assim as da terra ou do clima, com as quais o homem teve de compor para poder elaborar suas prprias respostas, ou ainda as das espcies animais e vegetais, entre as quais aprendeu a fazer suas escolhas, domesticando e adaptando umas a suas prprias necessidades, caando, ao contrrio, outras at as eliminar, pois eram consideradas nocivas ou perigosas. Voltado ao presente e ao futuro, para o qual Braudel define uma estratgia intelectual de cooperao entre disciplinas, em vista da ocupao de uma posio dominante no campo das cincias sociais e humanas cujo centro ser ocupado pela histria, tal programa , para ele, tambm o ponto de chegada de seu prprio percurso pessoal, da maturao de seu pensamento e, sobretudo, de sua viso do espao e do tempo, entre Arglia, Frana, Brasil e Alemanha: este percurso o conduziu de uma pesquisa inicialmente centrada em Felipe II e o Mediterrneo, quer dizer, em um estudo que poderia ter sido tradicional ou clssico sobre a poltica externa de uma grande potncia da poca em uma das direes de sua expanso, para um livro cujo personagem central se tornou o prprio Mediterrneo5. Este mesmo percurso o levou a construir seu livro em torno de trs diferentes temporalidades, correspondendo a trs nveis de leitura da realidade social e humana: aquela dos acontecimentos, que a do vivido pelos homens, mas tambm a que eles registraram, ao menos em parte, nas fontes escritas que nos deixaram; aquela dos movimentos de conjunto das sociedades, da economia, da poltica, da guerra, que marcam a durao de um longo sculo XVI; e, enfim, a longa durao, que ele intitula, no Mediterrneo, a parte do meio, e que organiza em torno de duas disciplinas que eram, no momento em que escreve o livro, as nicas a colocar o longo tempo no centro de suas anlises: a geografia humana e a etnografia. Uma etapa intermediria desta reflexo nos fornecida hoje pela recente publicao, sob o ttulo de Lhistoire, mesure du monde6, daBRAUDEL,Fernand. La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949. Em portugus: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Filipe II. So Paulo: Martins Fontes, 1984, 2 v. (N. do T.). 6 Les crits de Fernand Braudel; t. II: Les ambitions de lhistoire. Paris: Editions de Fallois, 1997, p. 11-83.5

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parte conservada das notas, reescritas por dois de seus ouvintes num pequeno caderno timbrado de seu Oflag**** e por ele corrigidas, das conferncias que realizara durante seus cinco anos de recluso na Alemanha, primeiro no campo de Maiena (1941-42), depois no de Lbeck (1943-44). Este texto, que se pode ler hoje como o esboo de um livro que nunca ser acabado e publicado, permite-nos dispor de outro parmetro, anterior ao seu livro sobre o Mediterrneo (defendido como tese em 1947, mas publicado somente em 1949), e de fato contemporneo de sua redao ou, antes, de suas redaes sucessivas: no por acaso que ele dedica uma parte importante de seu desenvolvimento s formas e aos contedos de um dilogo ao mesmo tempo possvel e necessrio entre as cincias sociais. Alm disso, sabemos, sobreviver esses cinco anos num campo de prisioneiros foi, para ele, no apenas escrever e isolar-se do presente: foi tambm olhar para alm dos acontecimentos que se identificavam com a sucesso de vitrias alems, amplamente anunciadas pelas rdios e pelos jornais locais, e projetar-se no futuro. Sua repetida afirmao sobre elas, retomada por seus companheiros de priso, em tom de blague: apenas um acontecimento, inscrevia-se na mesma linha que a clebre frase de Churchill: De derrota em derrota vamos em direo vitria final. Restaria ainda explorar a pista das fontes eventuais e, mais amplamente, de seus precedentes, tanto na histria como em outras disciplinas. Para ficarmos com a Frana, Marc Bloch, defensor de uma histria regressiva, voltando do presente em direo ao passado, tentara dar destaque tanto s continuidades longas (como em seu artigo sobre as falsas novidades)7 quanto s sedimentaes sucessivas: entre Alemanha e Frana, a rea de extenso do open field ignora e, portanto, precede o estabelecimento das fronteiras polticas8. Por seu lado, Lucien Febvre acentuara a pluralidade dos tempos dos homens, na qual via um verdadeiro desafio para os historiadores. Ainda antes de Braudel, a equipe de****Oflag, acrnimo de Offizierslager, campo de prisioneiros para oficiais, durante a Primeira e a Segunda Grande Guerra. 7 BLOCH, Marc. Rflexion dun historien sur les fausses nouvelles de la Guerre. Revue de Synthse historique , XXXIII, p.13-35, 1921. Em portugus: Reflexes de um historiador sobre as falsas notcias da guerra. In: BLOCH, Marc. Histria e historiadores. Textos reunidos por tienne Bloch. Lisboa: Teorema, 1998, p. 177-198 (N. do T.). 8 BLOCH, Marc. Les caracterres originaux de lhistoire rurale franaise. Paris: Armand Colin, 1952, captulo II.

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sbios que acompanha Napoleo no Egito nos lembra o papel de laboratrio cientfico que O Mediterrneo havia desempenhado, desde a segunda metade do sculo XVIII, mobilizando a ateno tanto das cincias da natureza (zoologia, botnica, geologia, etc.) quanto das cincias do homem que se estavam constituindo (histria, geografia, arqueologia, etnografia): papel cuja herana Braudel ir, precisamente, recolher e capitalizar, para reapropri-la e reformul-la em termos diferentes. De fato, a concepo de longa durao que elabora por ocasio da redao de O Mediterrneo distancia-se, claramente, de todas as proposies do tipo de Toynbee ou de Spengler, que se reduzem, a seus olhos, a formas de leitura sub specie aeternitatis da histria dos homens e a generalizaes desencarnadas. A longa durao no existe sozinha, mas em referncia a outras duraes mais curtas, que Braudel reagrupa, pela comodidade e simplicidade de sua exposio, como o faz para as prprias longas duraes, em torno de dois polos principais: aquelas dos movimentos de conjunto indo da dcada ao sculo e aquela dos acontecimentos. A longa durao no define um tempo imvel, mesmo que ele possa ser percebido como tal pelos atores, mas um tempo quase imvel, que passa lentamente. Ela s se ope ao acontecimento na medida em que este usualmente identificado com o excepcional, com o que acontece apenas uma vez. Ela constituda de pequenos fatos e gestos regularmente repetidos, sem neles se pensar, por serem evidentes. tecida de regularidades silenciosas um silncio em relao ao qual o papel da histria precisamente de explicitar e fazer falar. No entanto, mesmo que seja feita de regularidades e repeties que podem surgir quase da mesma forma, ela ao mesmo tempo construo, sedimentao e mudana, e todas as trs se do em uma escala temporal infinitamente maior (um ou vrios milnios) que aquela do tempo familiar aos historiadores. Da a questo que Braudel coloca, ao final de uma longa enumerao de regularidades do clima, tal como foram percebidas, vividas e interiorizadas pelos homens poca: O clima mudou desde o sculo XVI? Ela abre o caminho escrita de uma verdadeira histria do clima, enfim livre de todo impressionismo jornalstico. A mesma distino entre tempo imvel e tempo quase imvel permite a Braudel se distanciar de Lvi-Strauss, mesmo que saudando seu empreendimento: sua tentativa, nestes temas, me parece a mais inteligente, a mais clara, a melhor enraizada na experincia social, de onde tudo deve partir e para onde tudo deve voltar. Nela ele percebe as 29

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sedues, mas tambm os perigos, a ameaa para a histria de ser rejeitada ao lado do acontecimento. Compartilha a ambio de transpor a superfcie da observao para atingir a zona dos elementos inconscientes ou pouco conscientes e extrair as leis mais gerais de estrutura. Mas ele denuncia, nas respostas dadas, seus limites. Estas so formuladas a partir de grupos restritos onde cada indivduo , por assim dizer, observvel, situam-se no encontro do infinitamente pequeno e da durao muito longa, mas circulam apenas numa das inumerveis rotas do tempo, aquela da durao muito longa, ao abrigo dos acidentes, das conjunturas, das rupturas. Contra a reduo a uma leitura modelizada de uma vida social muito homognea, que permite definir de forma certeira as relaes humanas simples e concretas, pouco variveis, ele reivindica para a histria, no extremo oposto, a infinita complexidade do social, a multiciplicidade das inumerveis rotas do tempo. reduo do real a elementos midos, a toques finos, idnticos, cujas relaes se possam analisar precisamente, para delas extrair as leis de estrutura mais geral, ele ope da parte da histria uma iniciativa mais experimental, feita de idas e vindas entre realidades observadas e modelizaes. Os modelos, sempre provisrios, sempre simplificados, devem igualmente ser sempre submetidos prova da realidade, como os movimentos dos navios que, lanados ao mar aps terem sido construdos para utilizar a metfora que ele aprecia so observados at que afundem. A racionalizao, a modelizao so para o historiador sempre aproximaes cujo mrito relanar a anlise: a longa durao ser, portanto, sempre uma explicao entre outras. O mesmo se dar em relao economia-mundo, no terceiro volume de Civilisation matrielle, Economie et Capitalisme, intitulado Le temps du Monde (1979): ela no mais que uma ordem face a outras ordens. Este modelo, uma vez lanado ao mar, seguiu seu curso, cujas etapas, mudanas de rota, incidentes de percurso, escalas nos necessrio repetir agora. Sem dvida era inevitvel que ele escapasse em parte a seu construtor e idealizador e que outros buscassem utiliz-lo, por sua vez, e tomar o controle dele, modificando, como acontece seguidamente em relao aos navios, o nome, os portos de atracagem e as bandeiras. Se Fernand Braudel nunca reivindicou nem o comando nem a propriedade exclusiva, tambm nunca deixou de utiliz-lo nas diferentes etapas de seu prprio percurso.

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Primeiro, o percurso institucional: as orientaes dadas VI Seo atravs do recrutamento de jovens pesquisadores, historiadores, antroplogos, economistas, psiclogos sociais, demgrafos, gegrafos, que, em sua maioria, adequaram para seu prprio uso, cada a um sua maneira e com toda a liberdade, a noo de longa durao, como alis ele lhes havia sugerido, reconhecendo que cada realidade social observada remete sua prpria definio e delimitao da longa durao, vlida para ela e apenas para ela. Em seguida, o percurso intelectual, que conduzir Braudel a declinar dos usos da longa durao em funo de quatro objetos principais, fora do prprio Mediterrneo. Les mmoires de la Mediterrane, livro redigido em 1968-69, mas publicado 30 anos depois9, lhe servir para percorrer novamente a trajetria histrica antes de Grcia e Roma. O primeiro destes objetos sero as civilizaes, em seu manual sobre o tempo presente, reeditado sob o nome de Grammaire des civilisations10: neste ele oferece a definio mais englobante delas (elas so ao mesmo tempo espaos, sociedades, economias, mentalidades coletivas, assim como continuidades), mas reafirma fortemente que no podem ser compreendidas e analisadas seno sob a condio de tom-las em sua mais longa durao. Uma durao mais longa do que os elementos com os quais o observador contemporneo por vezes tende a identificlas: assim as religies, sobre as quais escreve, com certo sentido da antecipao, que so retardatrias, que se apropriaram de civilizaes j estabelecidas, solidamente implantadas, que as haviam precedido11. O segundo destes objetos, j presente no artigo de 1958 (p. 51), estar no cerne das explicaes de Civilisation matrielle12: as prises deBRAUDEL, Fernand. Les mmoires de la Mditerrane: prhistoire et antiquit. Paris: de Fallois, 1998. 10 BRAUDEL, Fernand. Grammaire des civilisations. Paris: Arthaud, 1987 (este texto retoma a parte principal, por ele redigida, do manual destinado s classes finais dos liceus franceses e consignada por S. Baille e R. Philippe em Le monde actuel, histoire et civilisations. Paris: Belin, 1963). 11 Citaremos em relao a este tema as duas afirmaes da pgina 54 (a religio o trao mais forte no corao das civilizaes, ao mesmo tempo seu passado e seu presente) e da p. 73 (Cristandade e Isl: estas novas religies recuperaram o corpo das civilizaes j existentes. A cada vez foram a alma delas, desde o incio tiveram a vantagem de se encarregarem de uma rica herana, de um passado, de todo um presente, e desde logo um futuro). 12 BRAUDEL, Fernand. Civilisation matrielle et capitalisme. Paris: Armand Colin, 1967, que, na verso final em trs volumes da obra, Civilisation matrielle, conomie et capitalisme, XVe-XVIIIe sicle, receber um novo ttulo: Les structures du quotidien.9

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longa durao, representadas, para as principais dentre elas, por suas escolhas tcnicas fundamentais, e primeiramente a das plantas das quais fizeram a base de sua alimentao o trigo, o arroz (com a passagem ulterior irrigao), o milho, o paino, os tubrculos. A cada vez estas escolhas orientam, condicionam e limitam as decises ulteriores das sociedades que as fizeram. O terceiro objeto ser o capitalismo entre o sculos XV e XVIII, ao qual ele dedica o terceiro volume de sua trilogia, publicada em 1979, Les temps du Monde: trata-se, a seus olhos, de uma construo ao mesmo tempo original, que deve, pois, ser estudada nela mesma, inseparvel do capitalismo industrial que a seguiu e que ela vislumbra, e comparvel com outros capitalismos que dominaram perodos mais ou menos longos da histria de outras civilizaes, como a fencia, a grega e a romana da Antiguidade, ou a da China. No caso desta, de importncia central para qualquer comparao com a Europa moderna, preciso analisar o capitalismo ao mesmo tempo local, colocado sob vigilncia do poder poltico, e exterior a ela, em todo o Sudeste asitico, onde muito cedo ele encontra as liberdades que lhe faltam em seu pas. O quarto objeto, enfim, ser aquele de La identit de la France13, em relao ao qual se dedica a demonstrar que esta identidade tecida, ao mesmo tempo, por continuidades, por escolhas muito antigas e por rupturas, por permanncias e por construes progressivas, por unidade e por diversidade. Demonstra tambm que ela carrega a marca do Estado que foi, ao longo dos sculos, um dos atores principais, mas no o nico, de sua construo, e que ela a este respeito tudo menos eterna. Mas essas utilizaes pessoais e diferentes do tema da longa durao pelo prprio Braudel, para construir demonstraes histricas a cada vez tambm diferentes, no devem levar a esquecer que outras tambm subiram bordo do navio, dele tomaram posse e adaptaram o tema s suas prprias necessidades, nem sempre o que pouco importa reconhecendo suas dvidas. Contentar-me-ei aqui em assinalar os episdios principais que acompanharam as mutaes sucessivas da pesquisa histrica. O primeiro se identifica com a deposio das alianas disciplinares que ocorre no fim dos anos 1960: a histria toma volens nolens suasBRAUDEL, Fernand. Lidentit de la France. 3 v. Paris: Arthaud-Flammarion, 1986-90.

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distncias em relao economia, que, de toda forma, afasta-se dela, e constri com a antropologia uma nova parceria, da qual retirar um triplo enriquecimento. Em primeiro lugar, a ampliao de seus temas de estudo a um conjunto de questes at aqui ignorado ou deixado de lado, pois as considerava fora de sua alada. Estas se tornam, em alguns anos, parte integrante do territrio do historiador caro a Emmanuel Le Roy Ladurie: o parentesco e a aliana, claro, mas tambm os mitos e as crenas, as relaes interpessoais e as prticas sociais, as tcnicas no sentido mais amplo do termo, o corpo, as representaes de si e do outro, da vida, da morte e do tempo, as relaes de sexo e de gnero, etc. Em seguida, a apropriao de um vocabulrio conceitual, utilizado inicialmente com a paixo do nefito, e progressivamente dominado, e as problemticas correspondentes. Enfim, a terceira ampliao espetacular do campo das fontes utilizadas e a transformao da maneira de l-las e interpret-las: passa-se assim, em particular, dos textos aos objetos, com a abolio da fronteira que os separara, e de uma leitura desses documentos que se pretendia exclusivamente crtica e objetiva a uma pesquisa sistemtica da ligao estreita entre as fontes e seus autores, que as produziram e que, conscientemente ou no, explicitamente ou no, as carregaram de sentido, que precisamos hoje redescobrir. Mesmo que a referncia longa durao braudeliana no aparea sempre a, ela est no cerne da prpria conduta dos mais exigentes destes historiadores que exploram as vias abertas pela antropologia e buscam criar a moda em vez de se contentar em segui-la. A empresa se situa, de fato, em uma dupla continuidade. De um lado, aquela da linha fixada por Lucien Febvre, em 1932, em sua lio inaugural no Collge de France: os textos sim, mas todos os textos e no uma simples seleo subjetiva dentre eles feita pelo historiador , os textos sim, mas no apenas os textos e, portanto, tambm outras marcas, objetos e signos que nos deixaram, voluntria e conscientemente ou no, as geraes e as sociedades que nos precederam, que redescobrimos ou que chegamos a reconstituir, e que aprendemos a ler. De outro lado, aquela da histria inconsciente, da histria das formas inconscientes do social, que Braudel privilegiara em seu artigo, tomando emprestado de LviStrauss uma citao que este fizera de Marx em Anthropologie Structurale: os homens fazem a histria, mas ignoram que a fazem, mas para apressar-se em acrescentar que esta histria que diz respeito ao tempo

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estrutural [...] com frequncia mais claramente percebida do que acreditamos. Se ento os historiadores ganharam amplamente, foi porque eles foram bem-sucedidos em impor aos antroplogos sua concepo do tempo, reintegrando as reas estudadas pelos seus parceiros ao mesmo tempo na durao longa de uma temporalidade lenta, mas com certeza no imvel, e no contexto social no qual os homens aprendem rapidamente a manipular as regras em vez de se contentarem em aplic-las ou a elas se submeterem. Isto o que Pierre Bourdieu lembrar ao afirmar que a tarefa do socilogo explicar e explicitar, ao mesmo tempo, as regras e as excees que lhes so feitas, sem, no entanto, question-las definitivamente. E o que far Braudel dizer que tinha um ponto em comum com o pensamento de Bourdieu: ambos consideravam que toda sociedade dedica 85 ou 90% de suas energias para se reproduzir. Estes 10 a 15% fazem a diferena em relao a uma viso determinista da histria na qual leitores apressados tentaram, com frequncia, enclausurar Braudel: a longa durao d lugar s iniciativas do indivduo, apenas se contenta em limitar seu alcance, enclausurando-o em um destino que ele mal fabrica, em uma paisagem que desenha atrs dele e sua frente as infinitas perspectivas da longa durao14. Levada por esta aliana que domina as transformaes da disciplina histrica a partir do fim dos anos 60, a histria se renova profundamente a partir de seu interior. De um lado, as problemticas elaboradas para o perodo compreendido entre os sculos XIII e XVIII passam por uma indiscutvel expanso, tanto a jusante como a montante, tocando tanto a histria dos sculos XIX e XX, com a social history anglo-sax, quanto da Alta Idade Mdia e da Antiguidade. De outro lado, elas deixam os limites da Europa para tocar outras reas geogrficas e culturais, desde o Mxico e os Andes ao Sudeste Asitico, para o qual Bernard Lepetit justamente props observar, no livro de Denys Lombard, Le Carrefour javanais15, o ltimo grande livro braudeliano, regressando do passado mais prximo ao mais longnquo, como sugeria Marc Bloch, analisando, tal como o arquelogo, os estratos sucessivos acumulados ao longo do tempo, de maneira a reconciliar continuidades e rupturas. Em

14 15

BRAUDEL, Fernand. La Mediterrane..., 1966, I, p. 520. LOMBARD, Denys. Le Carrefour javanais. Paris: EHESS, 1990, 3 v.

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outro plano, a histria das mentalidades, tal como se define a partir do incio dos anos 1970, rompe aparentemente com as problemticas de inspirao braudeliana, que, por muito tempo, privilegiaram a economia e os determinismos da vida material, e desloca sua ateno para outras direes. Mas ela no apenas retoma, sua maneira, o prprio conceito de longa durao, como afirma constituir o campo de aplicao privilegiado dele, afirmando que so as mentalidades que evoluem o mais lentamente, que elas tm dificuldade em interiorizar a mudana, esto sempre atrasadas em relao ao real e ao presente e fornecem, portanto, a chave de uma durao mais longa, que aquela, ao mesmo tempo herdada e incessantemente re-atualizada, das maneiras de pensar, de decidir e de viver dos homens. Outras pistas poderiam ser seguidas para mostrar, por exemplo, como duas concepes da longa durao, a dos antroplogos e a dos historiadores, puderam coexistir e interagir: basta pensar neste ponto de oposio entre o Mediterrneo dos historiadores e o dos antroplogos16. Uma dezena de anos depois do livro de Braudel, que orientar durante vrias dcadas a maioria das pesquisas dos historiadores, os programas do Mediterrneo dos antroplogos so definidos a partir do final dos anos 1950 em torno do estudo da Europa do Sul, vista e analisada como encarnando a outra Europa, testemunha do passado que perdemos ou que estamos perdendo, e no mais a da primeira modernidade de uma Europa em expanso. Mas muitos dos participantes deste novo empreendimento tendem a esquecer que estas maneiras de pensar e de viver e esta organizao cultural do social so em grande parte construes recentes, cujas etapas de criao a histria pode precisamente reconstituir, sobre o duplo fundo da continuidade de comportamentos atestados pelo passado e da clivagem que se constituiu entre a Europa do norte e do nordeste e a Europa do sul e do sudeste a primeira tendo desempenhado um papel ativo, e mesmo decisivo, na construo da imagem da segunda. Para a Amrica pr-colombiana e, depois, colonial, a etnohistria de John Murra, introduzida na Europa por Ruggiero Romano e, em16

Cf. ALBERA, D.; BLOK, A.; BROMBERGER, C. (Org.). Lanthropologie de la Mditerrane. Anthropology of the Mediterranean. Paris: Maisonneuve & Larose; Maison Mditerranenne des Sciences de lHomme, 2001; ALBERA, D.; TOZY, M. (Org). La Mditerrane des anthropologues. Paris: Maisonneuve & Larose; Maison Mditerranenne des Sciences de lHomme, 2005.

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seguida, por Nathan Watchel (que coordenou com o mesmo John Murra o nmero especial dos Annales intitulado Antropologia histrica das sociedades andinas)17, se constituiria em outro exemplo de sntese, desta feita infinitamente mais convincente e melhor acabada, entre os aportes da etnologia e da histria. Em um nvel mais profundo, poder-se-ia perguntar se a converso iniciada, a partir de meados dos anos 1970, por muitos antroplogos, especialmente africanistas, em direo a temas europeus, no contribuiu para a modificao, de maneira ainda mais significativa, das prprias condies do dilogo, criando novos campos de cooperao e de mtua fecundao entre antropologia e histria. Basta pensar no impacto dos trabalhos de um Jack Godoy sobre a histria longa da alfabetizao e da famlia: os historiadores encontraram nele a chave das inflexes fundamentais que podiam lhes ajudar a identificar as rupturas que recortam a longa durao em sequncias sucessivas e os descompassos cronolgicos entre regies e meios sociais diferentes. Lenta a passar e a se transformar, a longa durao no passa em todo lugar no mesmo ritmo e no toma sempre os mesmos caminhos. Onde estamos hoje? A referncia longa durao ficou para trs, aceitada como uma evidncia, mencionada como referncia obrigatria, mas doravante privada de toda eficcia real, ao menos para uma histria, na Europa ocidental, cada vez mais atrada pelo presente e preocupada pela explicitao de seus procedimentos narrativos? Deixarei de lado todos os falsos problemas, essencialmente imputveis a uma leitura superficial dos textos de Braudel, no entanto muito nuanados, a este respeito. Bastar lembrar uma vez por todas que a longa durao no se define, ou, em todo caso, no apenas, por um nmero de sculos ou de milnios, mas pela durao da vida do objeto histrico estudado, que fixa, caso a caso, a escala temporal e, com frequncia, tambm, espacial da anlise. E que ela tambm no o passado, mas aquilo que, no passado, explica o presente e, portanto, em particular a presena do passado no presente, mantida viva e ativa pelas decises, os gestos, as maneiras de viver, de pensar e de reagir dos indivduos concretos. Procurando traos da longa durao no sculo XVI, Braudel no procedeu de maneira diferente: seu arquivo, cuja digitalizao est comeando no

17

MURRA, John; WATCHEL, Nathan (Org.). Anthropologie historique des socits andines, nmero especial de Annales E.S.C., XXXIII, 5-6, 1978.

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marco de um programa sobre a gnese dos textos literrios, uma sequncia de anotaes de pequenos fatos repetidos, observaes de poca. Ele se servir deles para reconstituir as regularidades, cujos traos se mantiveram vivos at os nossos dias, mas cujas origens se encontram bem distantes no passado. A longa durao , de fato, tecida de eventos menores e singulares. Esta conduta no tem nada de impressionista: ela explica e justifica a frmula dix fois pour une*****, frequentemente retomada por ele. Ela lhe permite uma dupla atualizao do Mediterrneo: no presente de hoje, para ns seus leitores, em relao ao longo sculo XVI do qual nos fala e no qual quer nos fazer entrar, mas tambm no presente do sculo XVI, em relao aos seus mltiplos passados que recuam longe no tempo, do que os atores da poca possuam conscincia mais ou menos clara. A questo central me parece, de fato, outra. Ela diz respeito menos prpria longa durao do que a seus mecanismos de funcionamento, que so aqueles da repetio, pelos indivduos, mas tambm pelos grupos e as instituies, de gestos, de comportamentos, de maneiras de pensar e de decises que tendem a se distanciar pouco da regra e, portanto, a confirm-la, admitindo-se que, ao interpret-la, pode-se desvila margem. A dupla referncia de Fernand Braudel geografia e etnologia o conduziu a destacar, no Mediterrneo, de um lado, as escolhas efetuadas ao longo de milnios pelas sociedades que construram e humanizaram o espao mediterrneo, e que, em seguida, funcionam como constrangimentos ou predeterminaes para as decises daquelas que as sucederam, e, de outro, as tradies transmitidas de gerao em gerao pelos prprios atores, particularmente no marco da famlia. Para explicar a transmisso da tradio nas sociedades rurais, Marc Bloch j havia sublinhado que a educao das crianas era, com frequncia, atribuda aos avs, que lhes asseguravam os cuidados enquanto os pais trabalhavam nos campos. Braudel, de sua parte, havia colocado o ltimo captulo de sua primeira parte, A unidade humana, sob o signo dos caminhos e das cidades, ou seja, de ordenamento durvel do espao concebido como espao de circulao e de trocas.

***** Expresso que poderia ser traduzida, literalmente, por dez vezes por uma, e que indica algo frequente, repetido, evidente (N. do T.).

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A primeira pista, aquela dos constrangimentos, esboada j no artigo de 1958, foi ulteriormente formalizada por ele, como havamos mencionado, em 1967 (em Civilisation matrielle), sob o nome de prises de longa durao. Estas se identificam com as escolhas, efetuadas pelas sociedades em um momento muito remoto de seu passado, a respeito dos cereais aos quais iro recorrer para assegurar a maior parte de sua alimentao: escolhas ao mesmo tempo tcnicas, econmicas, culturais e sociais, que se revelaro constrangedoras e irreversveis e fixam para as sociedades o campo dos possveis. Esta mesma pista foi retomada em meados dos anos 1980 pelos economistas, com o artigo de Paul David sobre o teclado da mquina de escrever18, sob o nome de dependncia temporal. A expresso lhes serve para designar as escolhas tcnicas, mas tambm institucionais e sociais, cuja durao propem explicar apesar de sua irracionalidade em certos casos intrnseca pela racionalidade dos custos de transao, que desencorajam os investimentos necessrios para question-las. A explicao tentadora, mas nenhuma verificao experimental foi feita, nem qualquer contabilizao precisa, quando seria simples faz-lo assim, por exemplo, a propsito da Sucia, quando aderiu conduo dos automveis pela mo direita, ou da Gr-Bretanha, quando renunciou, para sua moeda, ao velho sistema carolngio libra-soldo-dinheiro e adotou o sistema decimal. No entanto, estes dois casos teriam permitido colocar em nmeros, de forma bastante precisa, estes custos de transao, frequentemente invocados como explicao final mas raramente calculados. Os historiadores da alimentao, ao contrrio, estudaram bastante como os europeus conseguiram, no sculo XX, ao cabo de uma srie de mudanas e progressos agronmicos e comerciais que haviam comeado em meados do sculo XVIII, superar os embaraos de um regime alimentar no qual o trigo tinha de assegurar a maioria das calorias e das protenas, e passaram progressivamente a um regime no qual a maioria das protenas garantida pela carne e pelos laticnios, e a maioria das calorias pelas gorduras e acares rpidos. E eles seguem de perto as transformaes em curso na alimentao dos pases industrializados e18

DAVID, Paul. Clio and the Economics of QWERTY. American Economic Review. Papers and Proceedings, LXXV, p. 332-337, 1985; Understanding the Economics of QWERTY: The Necessity of History. In: Economic History and the Modern Economist. Organizado por W. N. Parker. London: Basil Blackwell, 1986, p. 30-49.

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urbanizados, com forte reduo de aportes calricos sugeridos (as 1.800 a 2.000 calorias cotidianas, que h meio sculo representavam a fronteira da subalimentao, so hoje propostas como o ideal para nossas populaes adultas sedentrias, dispensadas de todo de qualquer esforo fsico em seu trabalho), a diminuio das gorduras, dos acares e das protenas animais, os progressos dos legumes e das frutas, o privilgio dado s vitaminas, aos elementos minerais, ou a estes recm-chegados ao poder, um pouco misteriosos (mas cujo impacto publicitrio forte), que so os mega 3, 5 e outros... As duas pistas (a dos constrangimentos e a da tradio) se encontram reunidas em Braudel com base em sua definio do conceito de civilizao. A seus olhos, todas as civilizaes se inscrevem em um espao e em uma durao infinitamente mais longa que aquela do poltico ou mesmo da religio. Mas ele toma o cuida de precisar que estas se definem ao mesmo tempo por aquilo que do aos outros, pelo que lhes tomam emprestado (da uma margem de inovao no cerne da longa durao), mas tambm pelo que recusam, para afirmar a sua reserva e sua diferena. Esta prudncia, justificada pela experincia do passado, foi, com frequncia, esquecida, em todos os debates posteriores ao 11 de setembro, por todos os discpulos de Huntington atrados pela ideia de uma guerra inevitvel entre civilizaes concebidas como conjuntos petrificados e incapazes de se comunicar entre si e, ainda mais, identificadas principalmente com sua dimenso apenas religiosa. A segunda pista, a da tradio, viu-se recentemente submetida a uma dupla crtica. A primeira, de Eric Hobsbawm e de Terence Ranger, sobre a inveno da tradio19, ope os mecanismos de construo ativa da tradio viso, excessivamente simples, de uma pura transmisso passiva, e faz destas tradies construdas objetos de histria, datveis no tempo, situveis no espao, atribuveis a atores sociais e institucionais identificveis, reinterpretados mais ou menos livremente pelas sucessivas geraes em funo de suas necessidades do momento. Isto as leva do estatuto de descries objetivas, que os especialistas das tradies populares tinham se dado por objetivo registrar, para proteg-las do esquecimento e compreender, por dentro, as sociedades que as viviam no presente, ao estatuto de representaes, que devem en19

HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, T. (Coord.). The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

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contrar seu lugar numa histria social da cultura e numa histria cultural da sociedade. A segunda crtica se encontra no pano de fundo das posies dos antroplogos que, imagem de Marshall Sahlins, sugerem substituir a frmula quanto mais isso muda, mais permanece a mesma coisa (o tempo imvel) pela formulao inversa: quanto mais isso a mesma coisa, mais isso muda, que nos aproxima do tempo quase imvel, que passa lentamente, mas compreendendo sempre uma parte de mudana que Fernand Braudel propusera. Mas ela acrescenta a o fato de que a inovao, por forar as portas do conservadorismo das sociedades, tem a necessidade de se esconder atrs do respeito da tradio. A forma pela qual o passado contribui para modelar o presente constitui, pois, uma questo mais viva e atual que nunca no campo das cincias sociais. Esta uma questo cuja resposta deve ser buscada, ao mesmo tempo, do lado do passado as mensagens que ele nos transmitiu, os caminhos que nos preparou, mas tambm o que aprendemos a conhecer, o que buscamos saber e o que escolhemos reter sobre ele, pois a memria tecida de esquecimentos e de redescobertas , e do presente a forma pela qual as sociedades, de forma consciente ou no, explcita ou no, reinterpretam esse passado e o atualizam, e os mecanismos de sua incorporao, aceitao e apropriao, gerao aps gerao, que Bourdieu havia colocado no cerne de suas anlises do habitus, e que ditam as astcias que permitem, a cada vez, ao morto apoderar-se do vivo. Mesmo que o interesse dos pesquisadores tenha se deslocado das obrigaes materiais em direo aos modelos culturais, a ambio segue a mesma. Mas essa questo, que diz respeito ao prprio funcionamento da longa durao, no deve deixar que seus outros usos sejam esquecidos: primeiramente, aquele que consiste, para estudar um objeto histrico, qualquer que seja, em tom-lo na totalidade de sua mais longa durao, para estabelecer seus limites e identificar suas principais rupturas ou inflexes, sinalizar uma periodizao e definir, justificando-os em seguida, o momento e o lugar nos quais concentra a observao e a anlise. A histria do livro ser, pois, para tomar apenas um exemplo, uma histria de cinco sculos e meio, se a relacionamos quela da imprensa e se admitimos que os meios digitais, sem que nela tenham posto um ponto final, representam um momento de inflexo fundamental. Isso porque eles vm pr em questo o monoplio do livro, como forma de referncia de comunicao e de circulao do texto escrito, de maneira ainda

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mais eficaz, posto que passaram a controlar, na origem, a prpria composio do texto at a camera ready copy. Mas a histria do livro uma histria de um milnio ou mais, se identificamos seu nascimento com aquele da passagem do volumen ao codex, que modifica profundamente os modos de apresentao e, mais ainda, de leitura do texto. E ser uma histria mais longa ainda, da ordem de trs milnios ou mais, se a identificamos com aquela dos prprios textos literrios, de sua fixao, de sua transmisso pelo escrito, de sua publicao, de sua conservao nas bibliotecas pblicas ou privadas: tal ser tambm o tempo das religies do livro. E este recorte, em duraes de tamanho diferentes, poder ser ainda clareado e tornado mais complexo se ampliamos a histria do livro quela da leitura, igualmente rica de ensinamentos. A longa durao no una, mas plural, segundo o objeto estudado e as questes que lhe so postas. Todos estes usos e estas representaes da longa durao como repetio no idntica, mas quase idntica, fazem parte hoje da bagagem comum das cincias sociais, a includa a histria. As crticas formuladas em 1951 por Bernard Baylin, ou, em 1968, por Stuart Hugues20, nas quais ambos denunciavam a ausncia de qualquer ligao entre as trs temporalidades do Mediterrneo, no so mais citadas seno como testemunhos do efeito surpresa provocado pelo livro poca e da incompreenso gerada em alguns, mal-estar diante deste questionamento de seus hbitos e certezas. Como Anthony Molho observou corretamente, o que estes historiadores, vinculados apenas representao linear de um tempo que passa no mesmo ritmo, recusavam era precisamente essa pluralidade dos tempos que Braudel procurava distinguir para pr em evidncia suas mltiplas interaes21. Mas preciso tambm levar em conta tudo o que mudou ao longo destes ltimos 50 anos, tanto no contedo e nos mtodos das cincias sociais quanto na relao que tm ou buscam ter com as cincias exatas: os prprios termos com os quais Braudel pde formular estas duas questes, e que constituem o cerne de seu artigo de 1958, foram sensivelmente re-orientados. E a tarefa que

BAYLIN, B. Braudels Geohistory A Reconsideration. Journal of Economic History, XI, 3-1, p. 277-282, 1951; STUART HUGHES, H. The Obstructed Path: French Social Thought in the Years of Desperation, 1930-1960. New York: Harper & Row, 1967. 21 MOLHO, Anthony. Like Ships Passing in the Dark: Reflections on the Reception of La Mditerrane in the U.S. Review, XXIV, 1, p. 139-162: 155-157, 2001.20

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nos cabe levar isso em conta, para pormos em dia as respostas que, hoje, poderamos oferecer. As cincias sociais, incluindo a histria, viveram duas transformaes fundamentais, aparentemente contraditrias e, de fato, complementares. A primeira foi aquela da ampliao em direo s origens do tempo histrico. A histria no comea mais com a Sumria. Com efeito, a revoluo cientfica da arqueologia aboliu a fronteira da inveno da escrita que servia para distinguir a histria da pr-histria e aquela, frequentemente associada anterior, da oposio entre sociedades frias e sociedades quentes: ela aproximou os antroplogos, os arquelogos e os historiadores, quer trabalhassem sobre a Europa, quer sobre as outras grandes reas geogrficas e culturais do mundo, e mobilizou muitos tcnicos de anlise, de medida, de modelizao e de informatizao emprestados das cincias exatas. A comparao das Memrias do Mediterrneo, de Fernand Braudel (redigido em 1968-69), com o La mer partage, de Jean Guilaine (1994)22, permite medir o caminho percorrido em duas dcadas e aclara uma perspectiva na qual se inscreve o Sabbat des sorcires, de Carlo Ginzburg23. Deste ponto de vista, a revoluo neoltica, iniciada cerca de 12 mil anos antes de nossa era, em diferentes regies de nosso planeta (o Oriente Prximo, o Mxico e os Andes, a China, a Nova Guin), fixa hoje a unidade de anlise comum aos historiadores, aos arquelogos e aos antroplogos. Mas como nenhuma revoluo faz, nunca, tbua rasa do que a precedeu, ela coloca o problema das continuidades mais ou menos subterrneas com as etapas anteriores do controle dos recursos da natureza, que estavam na base da organizao das sociedades de caadores-coletores que no desapareceram na noite para o dia.24 A segunda foi aquela do lugar atribudo aos atores individuais e s relaes que eles tecem entre si nas decises tomadas no cotidiano, e que o pesquisador, com distanciamento, l como ditadas pela necessidade, mas que foram ento vividas como escolhas mais ou menos conscientes e racionais entre diferentes solues possveis.GUILAINE, Jean La mer partage: la Mditerrane avant lcriture, 7000-2000 av. J.-C. Paris: Hachette, 1994. 23 GINZBURG, Carlo. Storia notturna: Una decifrazione del sabba. Turin: Einaudi, 1989. 24 Cf. Nouveaux regards sur la rvolution nolithique, entrevista com Jean-Paul Demoule e Jean Guilaine, Le Monde, 28-29 de setembro de 2008.22

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Esta dupla transformao explica a situao atual das cincias sociais, na qual duas posies principais tendem a se opor. De um lado, com efeito, encontramos todos aqueles que colocam, no centro de suas anlises e de suas explicaes, os mecanismos (educao e aprendizagens diversas, representaes sociais, obrigaes aceitas e, mesmo, reivindicadas, etc.) que levam os indivduos a fazer voluntariamente a escolha do necessrio e a retomar, por sua conta, a herana do passado. Em compensao, de outro encontramos todos aqueles que, desconfiados em relao a qualquer forma de determinismo (quer reivindiquem ou no sua filiao ao individualismo metodolgico), privilegiam a racionalidade das decises dos atores e se contentam em explicar os limites destas decises em razo dos limites da informao de que eles dispunham no momento em que as tomaram. Uma das formas de superar estas oposies seria, sem dvida, seguir as pistas que as cincias exatas definiram e traaram para suas prprias necessidades e que ainda hoje encontram, com algumas excees, apenas um eco limitado nas cincias sociais: elas merecem hoje ser sistematicamente exploradas. Assim, por exemplo, aquelas que nos foram oferecidas ao longo dessas ltimas dcadas, as anlises da disseminao, da bifurcao e do caos, da complexidade ou, ainda, a anlise estocstica. Com efeito, elas abrem o caminho a outras leituras e a outras interpretaes da longa durao, que possuem em comum o fato de a introduzir a prpria ideia de ruptura e de mudana, e de orientar as cincias sociais em direo s representaes no lineares do tempo e, ao mesmo tempo, s anlises das sociedades em termos de sistemas dinmicos. As perspectivas que elas nos propem, em mais de um ponto, so radicalmente diferentes daquelas que guiaram a concepo e a redao do artigo de 1958. Mas tm o mrito de nos oferecer outras solues possveis s questes nele colocadas. A estas, Braudel props uma primeira srie de respostas cujos limites, apesar de sua fecundidade e impacto na pesquisa ulterior, hoje percebemos melhor. Contudo, uma coisa certa: na medida em que convidam a questionar as certezas que ele poca partilhava com os especialistas, e que so ainda aquelas de muitos dentre ns, elas teriam certamente fascinado Fernand Braudel.

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Comparao e anlise histrica Reflexes a partir de uma experincia de pesquisa*Rosa Congost**Antes de tudo, quero agradecer aos organizadores deste Encontro e, em particular, aos meus amigos Andrea Reguera e Flavio Heinz, que me convidaram para participar e me deram a honra, no merecida, de fazer esta conferncia de encerramento. A oportunidade de me dirigir a um conjunto de pesquisadores que trabalham em reas muito distintas e muito distante das minhas tem sido sempre especialmente estimulante para mim. Este estmulo, que experimentei de forma inesperada, quase espontnea, em minha primeira visita a Tandil h 15 anos e que, desde ento, aconselho a todos os historiadores, constitui, penso, uma manifestao da fora e das vantagens da comparao na histria. Esta a ideia que quero compartilhar hoje com vocs e que justifica o tom pessoal de minha exposio, pelo qual espero que me desculpem. Se h alguns meses aceitei, com muito gosto, o convite para participar deste II Encontro Marc Bloch, no foi apenas pela amizade que me une aos organizadores, ou pela admirao que sinto pela obra dos fundadores dos Annales, mas porque compartilho, ou creio compartilhar, com uns e outros a necessidade de reivindicar a perspectiva comparada nos estudos histricos. Confesso que a expresso histria comparada me desperta dois tipos de reaes. A primeira de relativa comodidade. Sinto-me cmoda com o qualificativo de histria comparada. Satisfaz-me e me lison-

* Texto apresentado sesso de encerramento do II Encontro da Rede Marc Bloch de Estudos Comparados de Histria Europa/ Amrica Latina, na PUCRS, em Porto Alegre, no dia 24/10/2008. Traduo de Mariana Flores da Cunha Thompson Flores. ** Universidade de Girona, Espanha.

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