Para Sistematizar Experiencias

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Para sistematizar experinciasOscar Jara Holliday

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Ministrio do Meio Ambiente Secretaria de Coordenao da Amaznia Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil Projeto de Apoio ao Monitoramento e Anlise Esplanada dos Ministrios, Bloco B, 9 andar 70068-900 Braslia DF Tel. 55 61 4009-1442 Fax 55 61 3322-3727 E-mail: [email protected]

Para sistematizar experinciasOscar Jara Holliday

Ministrio do Meio AmbienteBraslia, 2006

Srie Monitoramento & Avaliao uma publicao do Projeto de Apoio ao Monitoramento e Anlise do Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil, vinculado Secretaria de Coordenao da Amaznia do Ministrio do Meio Ambiente.

Projeto de Apoio ao Monitoramento e Anlise AMACoordenadora: Onice DallOglio Estudos: Egaz Ramirez de Arruda Flvia Pires Nogueira Lima Pedro Simpson Jnior Monitoramento Integrado: Ana Cristina Milanez Kiel Larisa Ho Bech Gaivizzo Rassa Miriam Guerra Sonia Maria de Brito Mota Disseminao: Andr Ribeiro Lamego Clia Chaves de Sousa Kelerson Semerene Costa Larissa Ribeiro Barbosa Plcido Flaviano Curvo Filho Rui Alves de Sousa Uir Felipe Loureno Cooperao Tcnica GTZ: Petra Ascher Apoio Administrativo: Eleusa Zica Paula Lucatelli

Responsvel por esta edio: Ana Cristina Milanez de Oliveira Kiel Traduo para o portugus: Maria Viviana V. Rezende

Reviso: Ana Cristina Milanez de Oliveira Kiel Sonia Maria de Brito Mota Projeto Grfico e Diagramao: Isabela Lara Foto da Capa: Juan Pratiginests Impresso: Cidade Grfica Normalizao Bibliogrfica: Edies Ibama Heliondia C. Oliveira Direitos desta edio reservados ao Ministrio do Meio Ambiente Distribuio Dirigida: 2.000 exemplares Venda Proibida

Catalogao na Fonte Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis H739p Holliday, Oscar Jara Para sistematizar experincias / Oscar Jara Holliday; traduo de: Maria Viviana V. Resende. 2. ed., revista. Braslia: MMA, 2006. 128 p. ; 24 cm. (Srie Monitoramento e Avaliao, 2) Bibliografia ISBN 85-87166-97-2 ISBN 85-237-0028-5 Ed. UFPB 1. Educao. 2. Educao comunitria. I. Resende, Maria Viviana. V. II. Ministrio do Meio Ambiente. III. Ttulo. IV. Srie. CDU(2.ed.)37

SumrioApresentao IntroduoCap. 1 Encontros e desencontros das propostas de sistematizao O que sistematizar? Para que serve sistematizar? A pedra de toque: confluncias e diferenas entre sistematizao, pesquisa e avaliao O problema de fundo a relao dialtica entre prtica e teoria Condies para sistematizar Como sistematizar? Uma proposta em cinco tempos Anexos terico-prticos Anexo 1 - Trs exemplos de sistematizao Anexo 2 - Alguns formulrios teis para registro Anexo 3 - Roteiro para elaboraruma proposta de sistematizao

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Cap. 2 Cap. 3 Cap. 4

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Cap. 5

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Cap. 6 Cap. 7

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Bibliografia Sobre o autor

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Apresentao

Ana Cristina Milanez de Oliveira Kiel e Petra Ascher

O Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil, coordenado pela Secretaria de Coordenao da Amaznia - SCA do Ministrio do Meio Ambiente MMA, tem mobilizado governo e sociedade civil numa rara experincia de parceria com a comunidade internacional, testando e desenvolvendo modelos e estratgias inovadoras voltadas para a proteo e uso sustentvel das florestas tropicais na Amaznia e Mata Atlntica. Atualmente, o maior desafio est na ampliao das experincias bemsucedidas e na incorporao das aprendizagens geradas s polticas pblicas, de forma a se traduzirem em indutoras de um novo modelo de desenvolvimento para o pas, capaz de promover a sustentabilidade em suas vrias dimenses: social, ambiental, econmica, poltica e tica. Vinculado coordenao tcnica do Programa Piloto, o Projeto de Apoio ao Monitoramento e Anlise - AMA exerce funo estratgica de assessoria tcnica, promovendo aes de capacitao, monitoramento, estudos e anlises, potencializando a reflexo e disseminao dos aprendizados. O AMA tem desempenhado um papel fundamental na criao de uma cultura permanente de monitoramento e sistematizao dentro do Programa Piloto e no Ministrio do Meio Ambiente. Sistematizar experincias um desafio poltico pedaggico pautado na relao dialgica e na busca da interpretao crtica dos processos vividos. Trata-se de um exerccio rigoroso de aprendizagem que contribui para refletir sobre as diferentes experincias, implicando na identificao, classificao e re-ordenamento dos elementos da prtica; utiliza a prpria experincia como objeto de estudo e interpretao terica, possibilitando a formulao de lies e a disseminao. Poderoso instrumento para a prtica transformadora, realizada por meio de metodologias participativas bastante testadas na Amrica Latina, a sistematizao busca reconstruir experincias. Sistematizar implica compreender, registrar, ordenar, de forma compartilhada, a dimenso educativa de uma experincia vivenciada.

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sist exper xperincias Segundo o autor desse livro, Oscar Jara, a sistematizao de experincias pressupe como fundamento a Concepo Metodolgica Dialtica, que entende a realidade histrico-social como uma totalidade, como processo histrico: a realidade , ao mesmo tempo, una, mutante e contraditria porque histrica; porque produto da atividade transformadora, criadora dos seres humanos.No mbito do Programa Piloto, a sistematizao um instrumento poderoso para contribuir no enfrentamento aos desafios que esto colocados, porque estas experincias contm aprendizagens fundamentais que podem e devem ser disseminadas, e so potenciais indutores de polticas pblicas sustentveis. S na medida em que produzida uma compreenso mais profunda das experincias realizadas possvel compartilhar aprendizagens, identificar e construir abordagens tericas que contribuem para o aprimoramento das prticas, estabelecendo assim, ciclos virtuosos de ordenamento e reconstruo, reflexo crtica, possibilitando o intercmbio com iniciativas afins e a disseminao das experincias, gerando muitas possibilidades e responsabilidades. Neste contexto, O Projeto AMA, por meio do Componente Monitoramento, apresenta o segundo volume da Srie Monitoramento e Avaliao com a publicao: Para Sistematizar Experincias de Oscar Jara Holliday, reconhecido educador popular da Costa Rica. Pretendendo ser um guia didtico, Para Sistematizar Experincias se apresenta como um instrumento para a reflexo crtica e ferramenta de planejamento dos processos de sistematizao de experincias e para o sist exper xperincias fomento disseminao de lies aprendidas. Esta publicao motivou-se em funo dos avanos e dificuldades, alegrias e incertezas, do saber-fazer e do fazer-saber construdos nos cotidianos dos projetos do Programa Piloto e do Ministrio do Meio Ambiente. Sistematizar experincias tem em seu cerne a Concepo Metodolgica Dialtica. Articula o presente com o vir a ser, com possibilidades, com potencialidades. Por sua dimenso mobilizadora, criativa e educativa se constitui em tarefa para todos ns, homens e mulheres, que tm o compromisso histrico de reinventar os cotidianos e protagonizar reflexes e prticas voltadas a promoo do desenvolvimento sustentvel.8

Introduo Por que se quer e, muitas vezes, no se pode sistematizar?

Entre os centros de educao popular e as instituies de promoo social da Amrica Latina, cada vez mais frequente encontrar uma grande preocupao em torno da necessidade e, s vezes, dificuldade de sistematizar as experincias. Nos ltimos anos multiplicaram-se os eventos e publicaes sobre o tema e colocaram-se, sobre o tapete da discusso, seus desafios mais importantes. O trabalho de Diego Palma A sistematizao como estratgia de conhecimento na educao popular e O estado da questo na Amrica Latina1 , representam uma excelente contribuio que permite ordenar o produzido at o momento, identificar suas confluncias e divergncias e avanar at elaborao de novas propostas. Estas, integrando as contribuies convergentes, devem contribuir para obter consensos mais slidos em relao ao tema e, sobretudo, que possam ser postos em prtica de maneira generalizada na Amrica Latina. Abordando esta problemtica a partir da tica dos educadores e animadores populares, constatamos que, em geral, todos queremos sistematizar e todos reconhecemos sua importncia; mas, sem dvida, poucos so os que podem afirmar que o fazem. Por qu? Fundamentalmente, por trs razes:

i) Parece uma tarefa complexa demais

As propostas mais difundidas aparecem, em geral, como excessivamente complicadas, tanto em sua linguagem como em seus procedimentos. Parece, portanto, que requerem um esforo extraordinrio e muito especializado.

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Papeles de CEAAL, N 3, Santiago, junho de 1992. Recomendamos a leitura deste documento, que tomamos como referncia importante para avanar nos desafios que prope.

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Isto causa trs reaes possveis: primeiro, no se atrever nem a comear; segundo, aventurar-se a comear e perder o alento em pouco tempo, seja porque as fases iniciais se prolongam e se enredam demais ou porque o ritmo de outras atividades impede a dedicao sistematizao pelo tempo necessrio; terceiro, pensar em contratar um especialista para que assuma esta tarefa to importante mas pouco exequvel seno por um especialista (o que supe contar com suficientes recursos econmicos para remunerar adequadamente esta tarefa to especializada).

ii) No se conta com definies claras

Falta uma compreenso mais precisa em torno do que significa exatamente fazer uma sistematizao e quem so os indicados para faz-la. No fica muito clara sua diferena em relao avaliao. s vezes entendida como um projeto de investigao; outras vezes identificada como um informe de trabalho ou com o uma lista ordenada de atividades realizadas. No se sabe claramente que produtos concretos poderiam trazer. Tampouco est claro se se deveria sistematizar toda a experincia institucional ou se possvel faz-lo s sobre uma experincia particular. Enfim, converte-se em algo misterioso, entre mgico e etreo, que no se sabe por onde pegar. Tampouco h clareza a cerca de quem deveria sistematizar. No se sabe se deveria ser toda a equipe; se deve haver alguma pessoa responsvel por faz-lo permanentemente; se se deveria criar um setor de sistematizao na instituio ou formar uma comisso para realiz-la durante um determinado perodo; se os sujeitos sociais com os quais a instituio trabalha tambm devem sistematizar ou se se trata de um trabalho exclusivamente institucional, etc.

iii) Na prtica dada prioridade sistematizao

Os centros e instituies no tm definida como poltica institucional efetiva a dedicao da equipe sistematizao das experincias que realizam (ainda que no discurso seja mencionada como importante). Normalmente se tm definido momentos para o planejamento, a execuo e a avaliao institucionais, mas no se programam momentos para a

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sistematizao. muito comum que algum afirme que no se tem tempo para sistematizar, porque o ritmo das atividades muito intenso. Isto reflete, muitas vezes, uma carncia nas instituies no que diz respeito a refletir criticamente sobre o nosso fazer. Revela tambm que, no fundo, no se d prioridade real sistematizao. Em alguns casos, essa situao pe em evidncia a distncia que existe entre as instncias de direo e os educadores ou animadores. Geralmente so estes ltimos que manifestam mais a necessidade, mas so os primeiros que decidem as prioridades e polticas institucionais. E pode ocorrer que no percebam a sistematizao como algo to importante ou til como quem est trabalhando cotidianamente na tarefa educativa ou de animao.2

Algumas pistas de resposta

Neste texto queremos abordar essas dificuldades e propor, como pistas alternativas, algumas reflexes tericas e metodolgicas como pautas operativas de sistematizao, que surgiram de experincias prticas nas quais participamos ou que conhecemos de perto. O primeiro captulo parte de uma constatao: apresenta de maneira breve um panorama das mais difundidas propostas de sistematizao surgidas em nosso continente, situando seus pontos de encontro e suas principais diferenas. Os captulos de dois a quatro buscam aprofundar teoricamente o estabelecido: contm uma proposta conceitual sobre o que sistematizar, para que serve e que semelhanas e diferenas existem entre sistematizao, avaliao e a pesquisa. O quinto captulo trata de abordar o problema de fundo da sistematizao, explicitando o sustentculo epistemolgico de nossa proposta: a Concepo Metodolgica Dialtica.

Sobre esta distncia e outros fatores que incidem nas experincias, necessidades e conflitos que vivem os educadores ou animadores institucionais, ver: Ruiz Bravo, Patrcia e Percy Bobadilla, Con los zapatos sucios. Promotores de ONGDs, Escola para o desenvolvimento, Lima, janeiro de 1993.

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Aps esse processo progressivo de aprofundamento terico, o captulo sexto inicia um novo salto prtica, estabelecendo que condies pessoais ou institucionais sero necessrias para poder sistematizar. Assim, chegamos ao captulo sete, que apresenta uma proposta metodolgica e operativa de como sistematizar, sustentando e exemplificando seus distintos componentes. Contm tambm uma mostra de experincias muito diversas de sistematizao, que esperamos que sirvam para estimular a imaginao em todas as pessoas que buscam neste livro algumas pistas concretas para pr em prtica processos de sistematizao em suas instituies ou organizaes. Esperamos contribuir com este trabalho, tanto para reafirmar a importncia e a necessidade da sistematizao como para encontrar pistas concretas para faz-la possvel e vivel entre os muitos homens e mulheres da Amrica Latina, que entregam suas vidas a cada dia como educadores, animadores e dirigentes populares.

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Encontros e desencontros das propostas de sistematizao

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O trabalho j mencionado, de Diego Palma, permite-nos avanar rapidamente na questo de como se est concebendo e propondo a sistematizaco, justamente porque ordena e confronta diferentes propostas de sistematizaco, encontrando elementos de coincidncia e de diferenciaco entre elas. Palma identifica vrias propostas, das quais considero que se devem ressaltar as seguintes: A que surge do Centro de Cooperaco Regional para a Educao de Adultos na Amrica Latina e no Caribe (CREFAL), no Mxico, particularmente com as contribuices de Pablo Latap. A do Centro de Estudos do Terceiro Mundo (CEESTEM), tambm no Mxico, que foi retomada posteriormente por Flix Cadena no Programa de Sistematizao do Conselho de Educao de Adultos da Amrica Latina (CEAAL). As que impulsionam, no Chile, o Centro de Investigaco e Desenvolvimento da Educaco (CIDE) e a Faculdade Latino-americana de Cincias Sociais (FLASCO), especialmente por Juan Eduardo Garca Huidobro, Sergio Martinic e Horcio Walker. Todas estas propostas foram difundidas entre 1980 e 1985. Posteriormente, as propostas mais desenvolvidas surgem do Centro Latinoamericano de Trabalho Social (CELATS), em Lima, trabalhadas principalmente por Mariluz Morgan, Teresa Quiroz e Mara Luisa Monreal. Mais recentemente, o coletivo que trabalha o tema com maior constncia a Oficina* Permanente de Sistematizao CEAAL-Peru, onde Mariluz

* N.T. Traduzimos com oficina a palavra espanhola taller.

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Morgan, Mirna Barnechea, Estela Gonzlez, Jos Luis Carbajo e Ricardo Reyes, entre outros, contribuem para aprofundar e precisar a proposta do CELATS. Baseando-nos no trabalho de Palma, gostaramos de sintetizar alguns aspectos gerais e acrescentar outros elementos que podem ser teis para a reflexo que nos propomos realizar neste livro. Diego Palma chega a cinco constataes bsicas: 1. que, efetivamente existe uma prtica especfica que merece o nome prprio de sistematizaco e que, portanto, pode-se distinguir de outros esforos referentes ao conhecimento dos fatos sociais, tais como a investigaco ou a avaliao; 2. que o termo sistematizaco utilizado de maneira ambgua por educadores e promotores sociais e que entre os autores que escrevem sobre o tema no existe pleno acordo quanto aos contedos que se lhe atribuem; 3. que, entre as diferentes propostas, ainda que com diferentes enfoques e nfases particulares (de concepo e de mtodo), existem tambm influncias mtuas e filiaces mestias; 4. que a fonte de unidade fundamental, manifestada na coincidncia dos objetivos gerais, encontra-se num marco epistemolgico comum:...todas as propostas de sistematizao expressam uma oposio lagrante orient ientaco positivist f lagrante com a orientaco positivist a que guiou e ainda guia as correntes mais poderosas da Cincias Sociais...Todo o esforo para sistematizar, qualquer que seja sua traduo mais operacional, inclui-se nessa alternativa que reage contra as metodologias formais. A sistematizao inclui-se nessa ampla corrente que busca compreender e tratar com o qualitativo da realidade e que se encontra em cada situao qualitativo ualitativ particular. Uns a explicitam e outros no, mas a oposio reduo positivista de toda sistematizao se funda em uma epistemologia dialtica.1

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Diego Palma, texto citado, p.13.

5. que as fontes principais de diferenciao encontram-se em: Os objetivos especf icos que se perseguem prioritariamente com a objetiv especficos tivos sistematizaco; quer dizer, se a sistematizao se faz: - para favorecer o intercmbio de experincias; ou - para que a equipe tenha melhor compreenso de seu trabalho; ou - para adquirir conhecimentos tericos a partir da prtica; ou - para melhorar a prtica. O objeto concreto que se sistematizar; ou seja, se o que se quer objet concre sistematizar fundamentalmente: - a prtica dos educadores; ou - a prtica dos grupos populares; ou - a relao entre educadores e educandos. Assim, a diferena depender do fato de que se busca abranger o conjunto de prticas e relaes ou, ao contrrio, s um aspecto central dessa prtica. Finalmente, o trabalho mencionado coloca a debilidade principal na maioria das propostas de sistematizao: a metodolgica. Concordo em qualificar este aspecto decisivo como o principal obstculo com o qual ns educadores populares e animadores, encontramos quando queremos sistematizar. O tema da metodologia, na realidade, tem a ver com um conjunto de elementos tericos e prticos que se entrecruzam quando pretendemos executar uma proposta de sistematizao: a concepo (do processo de conhecimento, do processo social, do que sistematizar), as categorias categor egorias que se utilizam (para o ordenamento ou a interpretao da experincia), a sequncia sequncia lgica de passos ou momentos previstos, as tcnicas e procedimentos operativos de cada passo, etc. O que muita gente busca, enquanto mtodo, uma receita que possa ser aplicada rpida e facilmente a qualquer experincia, no importando seu contexto. Pensa-se que os assuntos de mtodo referem-se simplesmente a uma lista de passos ou tarefas que se tem que seguir.

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No comum o reconhecimento da complexidade do metodolgico em seu sentido mais profundo. Implica sustentar teoricamente e organizar de forma rigorosa uma determinada sequncia de momentos, que seja coerente com uma fundamentao terico-filosfica e que se execute de forma criadora (de acordo com as caractersticas de cada experincia e as particularidades do contexto). As diferenas de mtodo que encontramos nas distintas propostas de sistematizao tm precisamente a ver com tudo isto: com diferenas de concepo, de objetivos previstos, de objetos que se prope sistematizar e de experincias prticas de quem formula as propostas. Definitivamente, o metodolgico um aspecto fundamental sobre o qual h que avanar, seguindo a experincia acumulada nesses encontros e desencontros. Por isso, as pginas que se seguem buscam contribuir, a partir de nossa experincia, com dilogo, aprendizagem, confrontaes com outras experincias e uma fundamentao terico metodolgica e suas correspondentes consequncias operacionais, como uma forma de contribuir para que continuemos nos encontrando. O trabalho j mencionado de Diego Palma, permite-nos avanar rapidamente na questo de como se est concebendo e propondo a sistematizaco, justamente porque ordena e confronta diferentes propostas de sistematizaco, encontrando elementos de coincidncia e de diferenciaco entre elas.

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O que sistematizar?2

Primeira aproximao: A experinciaPartamos da seguinte considerao bsica: quando falamos de sistematizao estamos falando de um exerccio que se refere, necessariamente, a experincias prticas concretas. No nosso caso, vamos nos referir sempre a experincias de educao popular, organizao popular ou promoo social. Estas experincias so processos sociais dinmicos: em permanente mudana e movimento. So tambm processos sociais complexos, em que se interrelacionam, de forma contraditria, um conjunto de fatores objetivos e subjetivos: as condies do contexto em que se desenvolvem; situaes particulares a enfrentar-se; aes dirigidas para se conseguir determinado fim; percepes, interpre erpr intenes percepes, interpre taes e intenes dos diferentes sujeitos que intervm no processo ; resultados esperados e inesperados que vo surgindo; esultados reaes relaes e reaes entre os participantes. So processos particulares que fazem parte de uma prtica social e histrica mais geral igualmente dinmica, complexa e contraditria. Estamos falando, ento, de experincias vitais, carregadas de uma enorme riqueza acumulada de elementos que, em cada caso, representam processos inditos e irrepetveis. por isso que to apaixonante a tarefa de compr preend-las, extr xtrair ensinamentos comunic-los. compreend-las, extrair seus ensinamentos e comunic-los Como diz Alfonso Ibez:...As prticas de educao popular buscam inserir-se nos processos sociais e organizativos da populao, visando a resoluo de seus problemas, necessidades e aspiraes, num contexto bem determinado. Em21

qualquer caso, pem-se em marcha ou impulsionam-se processos sociais de ao consciente e organizada, por meio de um reflexo crtica de sua situao, que permitam modific-la no sentido do projeto histrico popular. Ele conduz, normalmente, elaborao de estratgias polticopedaggicas de interveno, em funo do apoio e potencializao do protagonismo de distintos sujeitos populares. Estamos, ento, diante de experincias da realidade que so susceptveis de ser entendidas e, portanto, sistematizadas de maneira dialtica. Essas experincias de educao popular ou de promoo em geral, podem ser lidas ou compreendidas como uma unidade rica e contraditria, cheia de elementos constitutivos que esto presentes num movimento prprio e constante...Alm disso, estas experincias, estes processos sociais, organizativos e culturais muito especficos, esto, por sua vez, relacionados com outros processos da realidade que possuem caractersticas similares...1

Este ponto de partida o que nos permite aproximar-nos da sistematizao a partir do que a prpria riqueza das experincias pede que se faa: apropriar-se opriar exper xperincia conta compar partilhando apropriar-se da experincia vivida e dar conta dela, compartilhando outros aprendido endido. com os outros o aprendido

Segunda aproximao: o conceito de sistematizaoJ um lugar comum entender a sistematizao como uma reflexo da experincia. Sem dvida, evidente que nem toda reflexo sobre uma experincia poder ser classificada como sistematizao. Como vimos no item anterior, alguns autores enfatizam uns elementos mais que outros, de acordo com os objetivos ou objeto de sistematizao que se propem. Por exemplo, h quem coloque o acento na reconstruo ordenada da econstr truo ordenada xperincia incia: e xper inciaCom esse conceito alude-se a um processo de reflexo que pretende ordenar ou organizar como foram o caminho, os processos, os resultados de um projeto, buscando em tal dinmica as dimenses que podem

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1 Ibez, Alfonso: La dialtica en la sistematisacin de experincias, Revista Tarea, Lima, setembro de 1991, p.33.

explicar o curso que assumiu o trabalho realizado. Como a experincia envolve diversos atores, a sistematizao tenta elucidar tambm o sentido ou o significado que o processo teve para os atores que dela participaram.2

Outros autores acentuam seu carter de processo produtor de conheciprocesso produt odutor mentos os: mentosEntendemos a sistematizao como um processo permanente, cumulativo, de criao de conhecimentos a partir de nossa experincia de interveno numa realidade social, como um primeiro nvel de teorizao sobre a prtica. Nesse sentido, a sistematizao representa uma articulao entre teoria e prtica(...) e serve a objetivos dos dois campos. Por um lado mostra como melhorar a prtica, a interveno, a partir do que ela mesma nos ensina (...); de outra parte (...) aspira a enriquecer, confrontar e modificar o conhecimento terico atualmente existente, contribuindo para convert-lo em uma ferramenta realmente til para entender e transformar nossa realidade.3

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Outros enfatizam que, sistematizar implica conceitualizar a prtica, para prtica, para coerncia todos elementos os: dar coerncia a todos os seus elementosUm dos propsitos principais da sistematizao a conceitualizao da prtica (...), para colocar em ordem todos os elementos que intervm nela; no uma ordem qualquer, mas aquela que organiza o fazer, que lhe d corpo, que o articula em um todo, em que cada uma de suas partes situe sua razo de ser, suas potencialidades e suas limitaes (...) um pr em sistema o fazer, na busca de coerncia entre o que se pretende e o que se faz. 4

Outros ressaltam o fato de que a sistematizao um processo processo participativ ticipativo par ticipativo :Na Educao Popular, a sistematizao uma espcie particular de criao participativa de conhecimentos terico-prticos, a partir de e

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Martinic, Sergio: Algumas categorias de anlise para a sistematizao. CIDE-FLASCO, Santiago, janeiro de 1989.

3 Taller Permanente de Sistematizacin , CEAAL-Peru: Y cmo lo hace? Propuesta de mtodo de sistematizacin. Lima, junho de 1992. 4 Antilln, Roberto: Como entendemos la Sistematizacin desde una Concepcin Metodolgica Dialctica? Documento para discusin. IMDEC-ALFORJA, Guadalajara, 1991.

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para a ao de transformao, entendida como a construo da capacidade protagonista do povo.5

Concordando, basicamente, com os elementos que aparecem nessas diferentes abordagens, pensamos que ainda necessrio precisar mais aquilo que prprio do tipo de reflexo ou conceitualizao que realiza a sistematizao. O que a diferencia de outros tipos de reflexo que se realizam a partir da prtica e tem, igualmente, a inteno de teorizar sobre ela, para transform-la? Parece que o mais caracterstico e prprio da reflexo sistematizadora que ela busca penetrar no interior da dinmica das experincias. Algo assim como entranhar-se nesses processos sociais vivos e complexos, circulando entre seus elementos, percebendo a relao entre eles, percorrendo suas diferentes etapas, localizando suas contradies, tenses, marchas e contramarchas, chegando assim a entender estes processos a partir de sua prpria lgica, extraindo ensinamentos que possam contribuir para o enriquecimento tanto da prtica como da teoria. Sintetizando esta caracterstica essencial e prpria, poderamos aventurarnos a afirmar que:sist aquela interpre erpr vr rias A sistematizao aquela interpretao crtica de uma ou vrias xperincias que, partir ordenament denamento reconstruo, econstr experincias que, a partir de seu ordenamento e reconstr uo, descobre explicit xplicita processo fatores que ator descobre ou explicita a lgica do processo vivido, os fatores que inter vieram ervier dito processo, relacionar elacionaram entre inter vieram no dito processo, como se relacionaram entre si e porq fizer izeram porque o f izeram desse modo.

Esta afirmao bsica, contm sinteticamente vrias afirmaes particulares: Define a sistematizao como interpre t ao crtica quer dizer, como o interpre erpr crtica, resultado de todo um esforo para compreender o sentido das experincias, tomando distncia delas. Assinala que essa interpretao s possvel se previamente se ordenou ordenou reconstruiu econstr e reconstr uiu o processo vivido nas experincias.

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5 Cadena, Flix: La sistematizacin como creacin de saber de liberacin. CEAAL. Santiago, sin fecha.

uma interpretao que se caracteriza por descobrir a lgica que conduz o processo, quais os fatores que intervm nele e as relaes entre eles. A partir dessas afirmaes centrais, poderamos acrescentar outras caractersticas importantes da sistematizao:

2A sistematizao de uma experincia produz um novo conhecimento , produz nov conhecimento um primeiro nvel de conceitualizao a partir da prtica concreta que, uma vez que possibilita sua compreenso, leva a transcend-la, a ir mais alm dela mesma. Nesse sentido, permite-nos abstrair o que estamos fazendo em cada caso particular e encontrar um terreno frtil onde a generalizao possvel. A sistematizao, ao reconstruir o processo da prtica, identificar seus elementos, classific-los e reorden-los, faz-nos objetivar o vivido objetiv tivar vivido, fazer uma parada para tomar distncia do que experimentamos vivencialmente e converter assim a prpria experincia em objeto de estudo e interpretao terica e, ao mesmo tempo, em objeto de transformao. A sistematizao pe em ordem conhecimentos desordenados e ordem conhecimentos desordenados percepes dispersas percepes dispersas que surgiram no transcorrer da experincia. Assim, explicita intuies, intenes e vivncias acumuladas ao longo do processo. Ao sistematizar, as pessoas recuperam de maneira ordenada o que j sabem sobre sua experincia, descobrem o que ainda no sabem sobre ela, mas tambm revela-se o que ainda no sabiam que j sabiam. Ao sistematizar no s se atenta aos acontecimentos, seu comportamento e evoluo, como tambm s interpret aes que os sujeitos tem interpre erpr sobre eles. Cria-se assim um espao para que essas interpretaes sejam discutidas, compartilhadas e confrontadas.6 Acreditamos que essas caractersticas bsicas perfilam uma concepo de sistematizao que no se confunde com outros processos de reflexo, estudo ou comunicao de experincias. Nesse sentido, cremos que vale a pena reafirmar explicitamente que sistematizao no :

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Narrar experincias (mesmo que o testemunho possa ser til para sistematizar, deve-se ir mais alm da narrao). Descrever processos (pois, ainda que seja necessrio faz-lo, preciso passar do nvel descritivo ao interpretativo). Classificar experincias por categorias comuns (esta pode ser uma atividade que ajuda o ordenamento, mas no esgota a necessidade de interpretar o processo). Ordenar e tabular informao sobre experincias (igual ao caso anterior).Fazer uma dissertao terica exemplificando com algumas referncias prticas (pois no seria uma conceitualizao surgida da interpretao desses processos). Concebida da maneira que propomos, a sistematizao situa-se no caminho intermedirio entre a descrio e a teoria, um terreno no qual temos pouco costume de transitar. A tendncia a contar anedoticamente experincias vividas, a encaixar processos originais em esquemas rgidos prestabelecidos ou a jogar discursos abstratos com o pretexto de alguma referncia a experincias de campo, atenta contra o modo de pensar dinmico, rigoroso, processual, crtico e criativo que indispensvel para realmente sistematizar. Muitas aproximaes ao conceito de sistematizao no o abordam a partir da preciso de suas caractersticas essenciais, mas sim a partir dos objetivos que prope, das utilidades que oferece ou dos procedimentos

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Parece-nos muito precisa a forma como Martinic e Walter ressaltam essa caracterstica: As prticas sociais que se estudam so entendidas como situaes nas quais h atores involuntrios. Estes conhecem e interpretam a realidade de modos diferentes que, por sua vez, tem relao com o mundo social e cultural ao qual pertencem. Trata-se assim de recuperar o que os atores sabem da experincia na qual participam (...) As interpretaes que se produzem acerca da experincia e da prtica dos sujeitos se assume como premissa (...) O que se v agora so os sentidos que as aes tm para os atores que as promovem e os resultados que elas tm , de acordo com os propsitos que eles mesmos estabeleceram. Martinic, Sergio y Horacio Walker: La reflexin metodolgica en el proceso de sistematizacin de experiencias de educacin popular. CIDE. In vrios autores, La sistematizacin de projetos de educao popular. CEAAL, Santiago de Chile, 1987, p.8. Ver tambm: Falkembach, Elza M.: Sistematizao. SPEP, Universidade de Iju. Srie Educao Popular, 1. Livraria Uniju Editora, R.S., Universidade de Iju, R.S., Brasil, 199, p.11

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que aplica. Ns pretendemos contribuir para a construo do conceito de sistematizao a partir dos pontos de confluncia de muitas propostas diferentes, tratando de ir um pouco mais alm. Esperamos que sirva de incentivo a outros, para continuar aprofundando, num debate fraterno, essa tarefa de conceitualizao, que s ser possvel se avanarmos tambm em nossas prticas.

2Continuemos agora, na mesma linha, buscando precisar dois aspectos complementares que so de suma importncia e cuja abordagem suscita muito interesse em educadores e animadores: a) para que serve a sistematizao b) quais so suas diferenas com relao investigao e avaliao.

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Para que serve sistematizar?

Tendo apontado caractersticas essenciais que definem, a partir do nosso ponto de vista, o que um processo de sistematizao, passemos agora a assinalar algumas de suas mltiplas possibilidades de utilizao em trabalhos de educao, animao e organizao popular.

para Uma primeira afirmao elementar que sempre sistematizamos para algo. No tem sentido sistematizar por sistematizar, s para fazer uma sistematizao e ponto. A sistematizao sempre um meio em funo de determinados objetivos que a orientam e lhe do sentido. Quer dizer, em funo de uma utilidade concreta que vamos lhe dar, em relao com as experincias que estamos realizando.Toda sistematizao tem dois componentes bsicos, aos quais podemos assinalar uma determinada utilidade: o processo de sistematizao e o processo produt oduto produto (ou produtos) da sistematizao. Ambos os componentes esto intimamente ligados, mas importante diferenci-los, sobretudo na hora de definir a utilidade que esperamos obter deles. De maneira muito sinttica poderamos resumir as mltiplas possibilidades e utilidades da sistematizao do seguinte modo: compr preenso profunda exper xperincias que Ter uma compreenso mais profunda das experincias que fim melhorar prpr prtica. pria realizamos, com o f im de melhorar nossa prpria prtica. Compar partilhar outras prticas semelhantes ensinamentos Compar tilhar com outras prticas semelhantes os ensinamentos surgidos exper xperincia. surgidos com a experincia. Conduzir ref lexo terica (e em geral construo de teoria) os ref lexo ter erica ger eral constr truo teor eoria) conhecimentos surgidos prticas concre conhecimentos surgidos de prticas sociais concret as.

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Compreender e melhorar nossa prpria prtica:A sistematizao possibilita compreender como se desenvolveu a experincia, por que se deu dessa maneira e no de outra; d conta das mudanas ocorridas, como se produziram e porque se produziram. Diferente de outros esforos reflexivos, a sistematizao permite entender a relao entre as diferentes etapas de um processo: que elementos foram mais determinantes que outros e porque, e quais foram os momentos significativos que marcaram o desenvolvimento posterior de uma experincia e que deram determinadas viradas ao seu encaminhamento. Sistematizar permite, assim, diferenciar os elementos constantes dos ocasionais; os que ficaram sem continuidade no trajeto, os que incidiram em novas pistas e linhas de trabalho, os que expressam vazios que apareceram muitas vezes. Assim, permite determinar os momentos de aparecimento, de consolidao, de desenvolvimento, de ruptura, etc., dentro do processo e como os diferentes fatores comportaram-se em cada um deles. Nesse sentido, a sistematizao possibilita entender a lgica das relaes e contradies entre os diferentes elementos, localizando coerncias e incoerncias: por exemplo, entre a dinmica do processo particular que realizamos e os desafios que a dinmica social geral havia colocado para nossas prticas. A localizao das etapas pelas quais uma organizao ou instituio passou, toma sentido na medida em que se vo estabelecendo as relaes e as conseqentes adequaes dos projetos, em funo do desenvolvimento dos processos de transformao social. No caso de um centro de apoio ao movimento popular, haveria que ver como se deu a evoluo de seus programas com respeito aos diferentes momentos e conjunturas polticas que as organizaes que se apoia esto atravessando. 1 Tudo isso s tem sentido na medida em que nos ajuda a entender como chegamos ao momento em que estamos; quer dizer, a explicar-nos nossa prpria trajetria e no para reconstruir o passado por reconstruir e sim para poder compreender melhor nosso presente, localizando - a partir da trajetria acumulada - os elementos, caractersticas, contradies e desafios da etapa atual em que nos encontramos.1

Antilln, Roberto Como entendemos la sistematizacin desde una concepcin metodolgica dialctica? IMDEC in Sistemati...que? (seleo de textos), ALFORJA, So Jos, 1992. pp.53-58.]

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Evidentemente que, chegados a este ponto, a derivao lgica de uma reflexo de tal natureza s pode ser uma: obter concluses que sirvam para melhorar a prtica, para faz-la mais coerente no futuro; para superar seus vazios, reafirmar os pontos fortes , insistir nos fatores cujo comportamento demonstrou que so sinrgicos 2 e para no repetir o que muitas vezes foi fator de debilidade ou desgaste. Como dizem as companheiras da Oficina de Sistematizao CEAAL-Peru:A sistematizao permite, ao refletir, questionar, confrontar a prpria prtica, superar o ativismo, a repetio rotineira de certos procedimentos, a perda de perspectiva em relao ao sentido de nossa prtica. Nessa medida um bom instrumento para melhorar a interveno.

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Em sntese, o processo de sistematizao permite pensar no que se faz, seu produto ajuda a fazer as coisas pensadas.

Extrair seus ensinamentos e compartilh-losCada experincia de educao, animao e organizao popular nica e irrepetvel; mas isso no significa que podem ser entendidas e mantidas isoladas, cada uma dentro de sua prpria verdade. Qualquer prtica social transformadora tem intenes, apostas, desenvolvimentos e resultados que definitivamente servem de inspirao, iluminao ou advertncia a outras prticas semelhantes. Os grandes propsitos dessas experincias so geralmente confluentes ou, pelo menos, no antagnicos. Extrair os ensinamentos da prpria experincia, para compartilh-los com outros, deveria ser sempre uma linha de trabalho priorizada entre ns que fazemos educao e animao popular. Da mesma maneira que, inversamente, estar atentos para conhecer e

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Quer dizer, fatores que possuem a caracterstica de dinamizar outros; que podem imprimir sentido e projeo a outros elementos que tm energias em repouso, sob a forma de potencialidades e que requerem que outro fator os incentive para liber-las. Ver tambm, a respeito, a contribuio dada por Manfred Max Neef e os companheiros do CEPAUR no Chile, ao falar de satisfatores sinrgicos das necessidades humanas; quer dizer, processos que podem satisfazer vrias necessidades em Desarrollo a escala humana, CEPAUR, Santiago, 1986.

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aprender da experincia de outros, deveria ser uma atitude permanente dos que crem no possuir verdades definitivas e nem estar pondo em marcha prticas perfeitas. Aprender e compartilhar so, assim, dois verbos que no podem ser desligados do exerccio de sistematizar. Aqui reside, justamente, uma contribuio insubstituvel da sistematizao, entendida no sentido que estamos reafirmando: poder realizar uma confrontao entre experincias diferentes, baseada no intercmbio de aprendizagens, de valoraes qualitativas com respeito lgica e aos elementos presentes nos processos que experimentamos. Isto significa superar o intercmbio descritivo ou narrativo das experincias, dos quais pouco se pode tirar, salvo se conhecermos como elas esto se realizando. O relato puramente anedtico, geralmente linear e cronolgico, pode ser ilustrativo e, se est bem contado, pode ser at apaixonante, mas um desperdcio se no tiver uma explicitao de seus ensinamentos, o que o faria compartilhvel. Evidentemente, com a sistematizao no se trata de chegar a comparar experincias, nem mesmo de ver qual poderia ser melhor que as outras. Trata-se de compartilhar criticamente os resultados que surgem da interpretao dos processos; de colocar sobre o tapete da reflexo coletiva as contribuies e os ensinamentos que se aprendem a partir do que foi vivido por cada um em particular. Isto produz uma plataforma de abordagem para o encontro entre nossas prticas e para o aprofundamento terico, radicalmente diferente e qualitativamente superior. Cria um novo ponto de partida que, sendo agora comum e coletivo, pode chegar a propor perguntas de um grau de complexidade maior, de um nvel mais profundo de abstrao, onde as confluncias e diferenas entre as prticas individuais tomam um novo sentido e adquirem um valor explicativo mais relevante. Com essa perspectiva, a sistematizao contribui tambm para o intercmbio de experincias, possibilidades que vo muito mais alm do que pode oferecer uma classificao ordenada de experincias diversas que as agrupe e compare de acordo com determinadas caractersticas comuns: seus

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objetivos, metodologia, opo terica, mbito de ao, temas ou sujeitos prioritrios. 3 Com a viso que propomos, no pretendemos catalogar a partir de fora as experincias, enfatizando aquilo em que se parecem, e sim relacion-las num nvel de reflexo crtica, onde o que difere contribui tanto ou mais que difer contribui tant ere anto semelhante que o semelhante na busca de respostas de fundo frente s mesmas perguntas. Por exemplo:Poucas coisas semelhantes poderamos encontrar entre uma experincia de educao popular em Colomoncagua, um campo de refugiados salvadorenhos de origem camponesa em Honduras, promovendo a sade comunitria e enfrentando o trauma da guerra e do exlio, e uma experincia de educao popular com operrios metalrgicos que se realizava, na mesma poca, no municpio de So Bernardo do Campo, no Brasil, e que em meio ao ascenso de greves, promovia a incorporao da luta por eleies presidenciais diretas. Dificilmente apareceriam juntas numa classificao. A narrao do que sucedeu num e noutro lugar no passaria de uma informao interessante. Sem dvida, a permitir encontrar uma fonte de intercmbio riqussima em torno do reconhecimento dos fatores que estavam - em cada caso - facilitando ou dificultando a organizao a partir da base; ou no papel decisivo que poderiam estar jogando a formao de educadores surgidos da prpria populao; ou de que maneira a produo de materiais educativos demonstrou ser til ou no para o alcance dos objetivos; quais foram as relaes entre dirigentes e base nas diferentes etapas, ou que importncia teve, ao longo do processo, a vinculao com outros setores e organizaes; ou que elementos permitiram vincular as necessidades imediatas com as perspectivas polticas de longo prazo...

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certo que para superar o nvel descritivo necessrio um instrumental metodolgico especfico, mas isso veremos mais adiante. Conclumos esse segundo ponto, assinalando mais um aspecto, que se deduz de todo o anterior: para que a sistematizao sirva, efetivamente, ao intercmbio de aprendizagem, ser necessrio no s interpretar as experincias, como tambm faz-las comunicveis.3

Nesse sentido nossa proposta de sistematizao se diferencia claramente do esforo por ordenar experincias com vistas a estabelecer uma tipologia ou avaliar conjuntos separveis, que caracteriza fundamentalmente o enfoque promovido pelo CREFAL baseado nas contribuies de Pablo Latap e que marcariam posteriormente a orientao das propostas de Flix Cadena.

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Quer dizer, ser necessrio estruturar um produto com os resultados obtidos no processo de sistematizao, de forma tal que permita a outros aproximarem-se adequadamente de sua compreenso e compartilhar seus ensinamentos, o que nem sempre fcil. Os produtos podem ser muito variados, mas o importante agora ressaltar que devem ser pensados com vistas a gerar um processo de comunicao viva e retroalimentadora entre as experincias. O que significa isso? Que devemos entender como intercmbio de experincias, no em seu sentido elementar de conhecer umas as outras, mas sim no sentido de confrontar as aprendizagens mtuas que obtivemos confront ontar aprendizag endizagens com elas, de tal modo que nos permita olhar nossas prprias experincias com novos olhos. Aqui poderamos distinguir trs momentos: 1. A sistematizao (como dissemos linhas acima) um processo que permite objetivar o vivido. 2. Ao ter que dar conta de nossa prtica, vemo-nos obrigados a expor ante os outros um produto que a comunique, o que significa realizar uma segunda objetivao. Normalmente, este fato nos permite compreender ainda melhor os ensinamentos obtidos ou dar-nos conta de alguns vazios de interpretao que s se fazem evidentes quando buscamos explic-los. 3. Ao tentar apropriar-nos das aprendizagens de outras prticas, vamos relacion-las necessariamente com a nossa, pondo em confronto crtico os aspectos comuns e os diferentes. Realiza-se, desse modo, uma terceira objetivao de nossa prpria experincia, graas s contribuies que nos suscitam as experincias alheias. Seguindo esse processo no continuaremos a ver nossa prtica com os mesmos olhos. Ao contrrio, dialeticamente reafirmaremos posies que tnhamos antes, graas aos novos elementos que incorporamos, ou eles faro com que modifiquemos no todo ou em parte nossas apreciaes iniciais. Isto far com que tenhamos critrios orientadores vlidos que permitam transformar e melhorar nossas prprias prticas e inser-las dentro de um processo coletivo que as transcendam e por isso lhe d sentido histrico.34

Pelo que assinalamos nesse item, podemos concluir que esse intercmbio

vivo e retroalimentador, essa confrontao crtica, essa dimenso comunicativa, no pode ser considerado um aspecto secundrio ou optativo, mas sim um aspecto substancial da sistematizao. E isso vlido no s para melhorar a prpria prtica, mas tambm para contribuir construo terica.

Serve de base para a teorizao e a generalizaoEsta utilidade da sistematizao , sem dvida, a mais complexa de conseguir e requer maior aprofundamento. No captulo V tentaremos abordar esse desafio a partir da perspectiva de uma concepo metodolgica dialtica. Basta agora assinalar, de modo geral e introdutrio, algumas consideraes bsicas sobre como a sistematizao pode servir a esses propsitos. Para transformar a realidade preciso conhec-la. Isso nos prope o objetivo de produzir conhecimentos a partir de nossa insero concreta e cotidiana em processos sociais especficos que fazem parte dessa realidade.4 Se nossa insero se d principalmente por meio de processos de educao, animao e organizao popular, temos a um excelente ponto de partida precisamente pela riqueza e multidimensionalidade dessas experincias. Elas trazem elementos que normalmente no so tomados pelas cincias sociais:As prticas de animao e educao popular se realizam nos espaos particulares, incidem nas dimenses cotidianas da vida dos setores populares. Esta dimenso tem sido pouco estudada pelas cincias sociais, que tm privilegiado o conhecimento do geral, do macro. A sistematizao representa uma contribuio para a produo de conhecimento a partir e sobre o particular, o cotidiano, enriquecendo, confrontando e questionando o conhecimento existente sobre esses processos sociais, para que seja cada vez mais adequado s condies rapidamente mutantes da realidade em nossos pases 54

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Preferimos usar a expresso fazem parte em lugar de so parte para sublinhar a interrelao profunda entre o particular e o geral dos processos sociais. As dinmicas do geral se expressam e vivem a partir do particular. Assim, tratamos de superar uma viso formalista e esttica que v essas relaes como uma vinculao entre o pequeno (o particular) e o grande (o geral).

5 Oficina de Sistematizao CEAAL-Peru: A sistematizao no interior do Coletivo de Apoio Metodolgico do CEAAL ( rascunho para discusso). Lima, 1991, pg.4.

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O exerccio de sistematizao um exerccio claramente terico um erico ico; esforo rigoroso que formula categorias, classifica e ordena elementos empricos; faz anlise e sntese, induo e deduo; obtm concluses e as formula como pautas para sua verificao prtica. A sistematizao relaciona os processos imediatos com seus contextos, confronta o fazer prtico com os pressupostos tericos que o inspiram. Assim, o processo de sistematizao se sustenta em uma fundamentao terica e filosfica sobre o conhecimento e sobre a realidade histrico-social. A sistematizao cria novos conhecimentos mas, na medida que seu objeto de conhecimento so os processos e sua dinmica, permite trazer teoria algo que lhe prprio: explicaes sobre a mudana dos processos.Trata-se no s de entender situaes, processos ou estruturas sociais mas tambm, no fundamental, conhecer como se produzem novas situaes e processos que podem incidir na mudana de certas estruturas.6

Com base nessas caractersticas prprias, como exerccio terico que permite criar conhecimentos a partir do cotidiano e explicar os fatores de mudanas nos processos, que a sistematizao pode contribuir de forma decisiva para a recriao e a construo de teoria dinamizando dialeticamente a relao entre o conhecimento terico j existente, como expresso do saber acumulado, e novos conhecimentos que surgem de novas situaes e processos. As integrantes da Oficina de sistematizao CEEAL-Peru formularam esse desafio de maneira muito ntida:...a sistematizao, como atividade de produo de conhecimento a partir da prtica, aspira a enriquecer, confrontar e modificar o conhecimento terico atualmente existente, contribuindo para convertlo em uma ferramenta realmente til para conhecer e transformar nossa realidade. assim que a sistematizao produz uma reconceitualizao mediante a qual as concepes tericas vigentes so redefinidas a partir da prtica, a partir dos novos conhecimentos que se elaboram ao se refletir sobre a ao. Esses novos conhecimentos sero logo difundidos e, por sua vez, confrontados com outras experincias, num processo em espiral, flexvel e dinmico, onde o aprendido sempre base para novos conhecimentos. Assim, a sistematizao e a socializao do novo saber

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Martinic, Sergio e Horacio Walker: texto citado, p.7

produzido mediante ela(...), ir conformando um corpo de conhecimentos, produto da prtica, que estar em condies de confrontar-se com a elaborao terica atualmente existente.7

Definitivamente, a sistematizao permite incentivar um dilogo entre saberes: uma articulao criadora entre o saber cotidiano e os conhecimento tericos, que se alimentam mutuamente. Esta talvez uma das tarefas privilegiadas da educao popular, o que reafirma a importncia fundamental de sistematizar nossas experincias, no s pelas possibilidades que tm, mas pela responsabilidade que implica para ns, educadores e educadoras populares. O que acabamos de dizer tem como consequncia que, em trabalhos de educao popular, se tenha que empreender com igual rigor tanto o esforo por aprender e conceitualizar a partir da prtica (o que vem a ser caracterstico da sistematizao), quanto o esforo por conhecer e dominar as caractersticas e os termos nos quais se estabelece o debate terico atual. Por ltimo, no podemos deixar de assinalar que tudo o que foi expresso nesse item coloca a sistematizao como um fator indispensvel e privilegiado para nossa prpria formao. Nossas experincias se convertem, graas a ela, na fonte mais importante de aprendizagem terico-prtica que temos: para compreender e melhorar nossa prticas, para extrair os ensinamentos e compartilh-los com outros, para contribuir com a construo de uma teoria que responda realidade e, por isso, permita orientar nossa prtica sua transformao. Concebida assim, a sistematizao no pode ser um fato pontual e sim permanente e deve, por conseguinte, ser realizada pelos prprios educadores, animadores, dirigentes e setores populares que comprometem sua vida cotidianamente nesses processos.

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Oficina de sistematizao CEAAL-Peru: Como fazer? Proposta de mtodo de sistematizao. Lima, junho de 1992, pgs. 6 e 7.

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A pedra de toque:confluncias e diferenas entre sistematizao, pesquisa e avaliao

Uma das dificuldades mais frequentes para precisar em que consiste especificamente a sistematizao a indefinio das fronteiras e zonas comuns entre ela, a avaliao e a pesquisa social. Sendo esta uma causa de tropeos, pode, porm, converter-se numa fonte de avanos importantes se conseguirmos encontrar algumas pistas esclarecedoras. Comearemos assinalando que essas trs atividades so como irms de uma mesma famlia. Afirmemos, pois, que todas contribuem ao mesmo propsito geral de conhecer a realidade para transform-la e que as trs se situam no terreno do conhecimento. Um segundo elemento que devemos considerar que todas elas se alimentam mutuamente e as trs so indispensveis. No podemos prescindir de alguma, se queremos avanar diante dos desafios tericos e prticos que nos estabelecem os trabalhos de educao, animao e organizao popular. Uma terceira aproximao nos leva a colocar suas particularidades e a contribuio especfica de cada uma ao propsito comum: 1 A avaliao, como a sistematizao, representa um primeiro nvel de primeir nvel imeiro elaborao elaborao conceitual e tambm tem como objeto de conhecimento a prtica direta dos sujeitos que a realizam, ou seja, sua prtica imediata. Mas sua lgica no realizar uma interpretao da lgica do processo vivido, mas sim fundamentalmente medir os resultados obtidos pelas experincias, confrontando-os com o diagnstico inicial e objetivos e metas que se haviam proposto. Essa medio no somente quantitati-

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Um maior detalhe sobre este aspecto pode ser encontrado no trecho sobre sistematizao e construo terica em: Jara, Oscar. Capacitarse para sistematizar experiencias. Em Sistemati...que? (seleo de textos), ALFORJA, p.98 e 99.

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va e sim deve aspirar a situar as mudanas qualitativas que a esperincia produziu.Tanto a avaliao como a sistematizao supe realizar um e xerccio de erccio abstr trao abstrao a partir da prtica; mas enquanto a sistematizao se centra nas dinmicas dos processos, a avaliao pe mais nfase nos resultados. A partir de sua contribuio particular ambas se convertem em fatores integrantes de nossa prpria formao. A avaliao deve, por isso, ser considerada um fato educativo , til para ato educativo todos que participam da experincia e no como uma tarefa formal que faz um simples balano entre custos e benefcios. Como o sistematizao, a avaliao deve chegar a concluses prticas e ambas devem retroalimentar-se mutuamente com o fim de confluir em seu propsito comum: melhorar nossos trabalhos. Este primeiro nvel de conceitualizao a que chegamos por meio da avaliao e da sistematizao a base para um processo de teorizao para processo teor eorizao amplo profundo ofundo. mais amplo e profundo Para passar aos outros nveis necessrio relacionar o conhecimento produzido a partir de prticas particulares com o conhecimento acumulado, sintetizado e estruturado nas teorias existentes. A pesquisa2 (cujo objeto no se limita prpria experincia, podendo abarcar mltiplos fenmenos, processos e estruturas) um exerccio que era conhecimento cientfico ico, gera conhecimento cientf ico e este se caracteriza porque baseia-se num corpo terico entendido como um conjunto de leis fundamentais que procuram compreender e explicar os movimentos e contradies inerentes da sociedade, que confrontado e enriquecido com o conhecimento obtido de forma sistemtica. Adquiri-se mediante formas metdicas. Os resultados assim conseguidos podem se avalizar e compa-

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certo que aqui estamos nos referindo investigao que se realiza nas cincias sociais, a partir de uma perspectiva dialtica, crtica e comprometida com os interesses populares. Em particular, quela que se deve realizar como uma dimenso necessria do trabalho de educao, animao e organizao popular. Colocamo-nos claramente na vertente que Diego Palma qualifica de investigao crtica, oposta corrente positivista que impregna certas correntes da cincias sociais.

rar. Os produtos de conhecimento incorporam-se a um sistema que se enriquece e se aperfeioa. 3 A pesquisa social realiza um exerccio terico que nos permite uma compreenso das determinaes mais profundas e essenciais da realidade histrico-social. A pesquisa enriquece a interpretao da prtica direta que realiza a sistematizao, com novos elementos tericos, permitindo um maior grau de abstrao e generalizao. 4 Como acontece com a avaliao, a pesquisa e a sistematizao devem dev troalimentar-se mutuamente oalimentar re troalimentar-se mutuamente , cada uma contribuindo com o que lhe prprio. Cada uma constitui uma maneira particular de aproximar-se do conhecimento da realidade e cada uma insubstituvel. No devemos confundi-las, nem tampouco contrap-las, como se uma anulasse a outra. Postulamos a importncia fundamental de ambas. Por isso, assim como reconhecemos a urgente necessidade de impulsionar a sistematizao nos projetos de educao, animao e organizao popular, devemos reafirmar a no menos importante necessidade de incentivar a pesquisa.5

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Quiroz, Teresa e Mara de la Luz Morgan: La sistematizacin, un intento conceptual y una propuesta de operacionalizacin. (Documento de trabalho do CELATs). In: Vrios autores, La sistematizacin en proyectos de educacin popular. CEAAL, Santiago, 1987.4 Para maior aprofundamento neste aspecto ver as caractersticas que destinamos investigao a partir de um trabalho de educao popular: a) No se separa o sujeito do objeto de investigao. b) eminentemente participativa. c) Permite a compreenso da realidade como um todo articulado. d) Permite descobrir as causas dos fenmenos sociais. e) Valoriza o conhecimento existente no povo. f) Permite apropriar-se da capacidade de investigar... In: Jara, Oscar: Investigacin participativa: una dimensin integrante del proceso de educacin popular, srie Pensando la educacin popular, N 3, Alforja, San Jos, 1990, pp. 9-17. 5

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Este tema nos remete, deste modo, necessidade de aprofundar a relao entre investigadores e animadores-educadores ou entre aqueles e os setores populares. Em muitos centros de educao popular, por exemplo, existe uma separao radical entre as reas de investigao e as de capacitao ou acompanhamento de base. Ns postulamos que todo educador ou animador popular deve saber fazer trabalho de base, avaliar, sistematizar e investigar. indispensvel romper com o esquema intelectualista-academicista (e tambm o basista), que coloca a investigao em um limbo alijado da prtica do trabalho popular e a supervaloriza ou subvaloriza.

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Na identificao das zonas comuns, e diferentes, desses trs esforos reside a pedra de toque que permite realmente avanar at uma definio precisa do conceito e do papel da sistematizao.6 Nossa principal preocupao, sem dvida, deveria estar centrada em como incorporar de maneira efetiva, vivel e permanente, processos e produtos de avaliao, pesquisa e sistematizao nos nossos trabalhos cotidianos, na dinmica de nossas instituies ou organizaes. Nessa tarefa, seguramente, encontraremos formas criativas de articulao prtica entre elas, onde mais importante que descobrir as barreiras que as separem, ser pr em funcionamento os vasos comunicantes entre elas. Na prtica, certamente nos encontraremos, inclusive, com momentos e atividades nas quais a diferenciao no ser ntida e, alm do mais, no ter maior sentido preocupar-se com isto.

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6 Como tudo que foi dito at aqui, vale a pena nos referirmos ao interessante esforo que Pablo Latapi realiza quando, buscando contribuir para a realizao de avaliaes qualitativas de conjuntos de projetos de educao de adultos na Amrica Latina, prope a necessidade de ordenar experincias com vistas a estabelecer uma tipologia a partir do ponto de vista de seus enfoques terico-sociais e a partir do ponto de vista de suas metodologias. Desse modo, de acordo com a opo ideolgico-poltica que as inspira, o diagnstico que realizam da realidade social, a inteno de incidir sobre certa realidade, os processos instrumentais que se pem em operao e a forma de insero poltica, ele classifica as experincias de acordo com determinadas tendncias. (Por exemplo: extencionista, de animao, educao-concientizao, organizao econmica, organizao poltica, educao poltica, mobilizao poltica). Ns pensamos que este trabalho constitui um esforo muito interessante de investigao documental, mas no o qualificaramos de sistematizao. Ver: Latapi, Pablo, Tendencias de la Educacin de Adultos en Amrica Latina. CREFAL, UNESCO, Mxico, 1984.

O problema de fundo:a relao dialtica entre prtica e teoria

O matemtico Ta traou uma figura muito irregular e convidou seus alunos a calcular sua superfcie. Os alunos dividiram a figura em tringulos, crculos e outras figuras de superfcie calculvel; mas nenhum pode obter a superfcie com exatido. Ento o mestre Ta tomou um tesoura, recortou a figura, coloco-a sobre um dos pratos de uma balana, pesou-a e colocou sobre o outro prato um retngulo facilmente calculvel. Em seguida foi recortando o retngulo at que os pratos se equilibraram. Me-Ti qualificou-o de dialtico porque -diferente de seus alunos, que s comparavam figura com figura-considerou a figura a calcular como um pedao de papel com um peso (e dessa maneira resolveu o problema como um problema real problema real eal, sem levar em conta as regras) Bert Brecht: echt Bertold Brecht: Me-Ti, el libro de las mutaciones

5Afirmamos nos captulos anteriores que a sistematizao situa-se no difcil e pouco transitado caminho intermedirio entre a descrio de uma experincia e a reflexo terica; que a sistematizao um primeiro nvel de conceitualizao e que pretende contribuir na melhora da prpria experincia e, s vezes, no enriquecimento da teoria. Em que se fundamentam todas essas possibilidades? O que permitiria que uma reflexo sobre uma experincia especfica possa aspirar contribuir na construo terica? Quais seriam as caractersticas que deveriam ter para que, efetivamente, isso seja possvel? Trataremos nesse captulo de abordar estas interrogaes a partir da Concepo Metodolgica Dialtica.1

Colocaremos nesse captulo algumas idias centrais em torno da Concepo Metodolgica Dialtica, a qual sustenta nossa proposta de sistematizao. Pareceu-nos importante contribuir para o aprofundamento da reflexo sobre esse tema entre educadores e dirigentes populares.

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Uma Concepo Metodolgica DialticaA partir das experincias de educao popular muito se escreveu sobre a metodologia dialtica2, sem dvida, devemos reconhecer que sendo um tema complexo existe o risco grande de simplific-lo e esquematiz-lo at o ponto de que para muitos educadores populares, a concepo dialtica reduziu-se aplicao mecnica e superficial de trs passos nas atividades de formao, ao que se chama de maneira leviana de prtica-teoriaprtica. A Concepo Metodolgica Dialtica uma maneira de conceber a ealidade, realidade de aproximar-se dela para conhec-la e de atuar sobre ela para transform-la ansform-la. transform-la , por isso, uma maneira integral de pensar e de viver: uma filosofia.3 A Concepo Metodolgica Dialtica entende a realidade como um processo histrico ico. processo histrico Nesse sentido, concebe a realidade como uma criao dos seres humanos que, com nossos pensamentos, sentimentos e aes, transformamos o mundo da natureza e construmos a histria outorgandolhe um sentido. A Concepo Metodolgica Dialtica entende a realidade histrico-social como uma tot alidade um todo integrado, em que as partes (o econmito alidade: co, social, poltico, cultural; o individual, local, nacional, internacional; o objetivo, o subjetivo, etc.) no podem ser entendidos isoladamente, seno em sua relao com o conjunto. uma totalidade que no vista como soma aritmtica das partes e sim como a articulao interna de todas as suas mltiplas relaes:

Em particular, no Alforja, levamos a cabo uma reflexo abundante sobre o tema. Ver, por exemplo: Carlos Nuez: Educar para transformar, transformar para educar, Alforja, San Jos, 1984. Raul Leis: Dialtica e educacin popular, Alforja, San Jos, 1991. Oscar Jara: Los desafos de la educacin popular, Alforja, San Jos, 1984. Aprender desde la prctica, Alforja, San Jos, 1987. Cmo conocer la realidad para transformala, Alforja, San Jos, 1991. Gramsci a chamava: Filosofa de la Praxis, filosofia da prtica conservadora. Recomendamos para maior aprofundamento: Adolfo Snchez Vsquez: Filosofia de la praxis, Ed. Grijalbo, Mxico, 1967. Karel Kosik: Dialctica de lo concreto, Ed. Grijalbo, Mxico, 1976. Rodolfo Cortes de Moral: El mtodo dialctico. Ed.Trillas, Mxico, 1985. Antonio Gramsci: Introducin a la filosofa de la Praxis, Ediciones Pennsula, Barcelona, 1978. El materialismo histrico e la filosofa de Benedetto Croce, Ed. Nueva Visin, Bs. As. 1973. Marx, Carlos, Tesis sobre Feuerbach y La ideologa Alemana, Ed. Pueblos Unidos, Bs. As.1973.3

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Totalidade significa: realidade como um todo estruturado e dialtico, no qual pode ser compreendido racionalmente qualquer fato (...) O princpio metodolgico da investigao dialtica da realidade social o ponto de vista da realidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenmeno pode ser compreendido como elemento do todo (...) Esta interdependncia e mediao da parte e do todo significa, ao mesmo tempo, que os fatos isolados so abstraes, elementos artificialmente separados do conjunto, que s mediante sua unio ao conjunto correspondente adquirem veracidade e concreo...4

A Concepo Metodolgica Dialtica concebe a realidade em permanente permanent manente moviment vimento movimento : uma realidade histrica sempre mutante, nunca esttica ou uniforme, devido tenso que exercem incessantemente as contradies entre seus elementos. Em todo processo histrico geram-se tendncias contraditrias, cuja confrontao gera a mudana e o movimento. A origem das transformaes encontra-se, assim, no interior dos prprios processos histricos, em cujo mago comea uma relao de oposio recproca entre aspectos ou polos contraditrios que, ao vincularem-se entre si, tendem a excluir-se mutuamente. Em qualquer processo histrico existe sempre algum elemento fundamental (objetivo ou subjetivo) que influi decisivamente no desenvolvimento dos acontecimentos e unifica de uma determinada forma o resto dos elementos integrantes. Sem dvida, esta tendncia no surge nem se mantm de forma passiva, e sim precisamente como uma opo que se que impe sobre outras possibilidades que so negadas por ela. Como os impe sobre outras possibilidades, acontecimentos no se detm, a tendncia dominante tem que se enfrentar constantemente com novas condies e o surgimento de outras opes que, por sua vez negam a que se impe atualmente. Esta relao de confrontao permanente entre opes postas ou distintas, origina a mudana contnua nos processos histricos.

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Os fenmenos sociais so criao histricaPara a Concepo Metodolgica Dialtica a realidade , ao mesmo tempo, una, mutante e contraditria porque histrica; porque produto da atividade transformadora, criadora dos seres humanos. No devir histrico47

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Karel Kosik: Dialctica de lo concreto, Grijalbo, Mxico, 1976 pgs. 55 e 61.

da humanidade, mundo existente e desafio por construir, homens e mulheres desenvolvemos relaes fundamentais: com a natureza, com as demais pessoas, conosco mesmo. Essas relaes expressam-se como fenmenos sociais. Com uma Concepo Metodolgica Dialtica absurdo tratar os fenmenos sociais como se fossem coisas, como se fossem fatos estticos ou imutveis que podemos estudar de fora. Para a corrente positivista das cincias sociais este seria o ideal do conhecimento cientfico da sociedade: estud-la da mesma maneira que as cincias naturais estudam a natureza, Desta forma, segundo eles, ter-se-ia um conhecimento objetivo, no qual se descrevem e se catalogam os fenmenos, estuda-se seu funcionamento e suas regras, prev-se seu comportamento e encontram-se frmulas que os explicam. Os cientistas positivistas pretendem isolar-se dos fatos sociais (vistos como coisas), libertar-se de toda subjetividade, ser absolutamente imparciais e neutros, (portanto, apolticos) basear-se s no empiricamente mensurvel e verificvel, para obter concluses que expliquem o comportamento da realidade (os pedaos dela que se separaram dos demais pra serem estudados). No h sentido para eles em interrogar-se acerca das causas profundas dos fenmenos, relacion-los com a totalidade histrica, criticar a ordem estabelecida, perguntar se possvel mud-la por outra melhor e menos ainda estabelecer o papel que lhes compete como pessoas nos processos sociais.

Somos sujeitos e objetos de conhecimento e transformaoEsta viso de conhecimento cientfico do social, que separa o sujeito que conhece, do objeto por conhecer; que isola uma parte do todo; que pretende eliminar qualquer juzo de valor, sensibilidade ou emoo da anlise, porque lhe tirariam objetividade e cientificidade, no exclusiva dos cientistas positivistas: muita gente pensa que essa a nica forma de conhecer vlida e aceitvel. E, como os discpulos no dialticos do matemtico Ta, enredam-se nas formalidades, nos esquemas vazios, nos discursos abstratos, sem poder entender os problemas reais e - o que pior - sem fazer nada que contribua para resolv-los.

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A partir da perspectiva dialtica, ao contrrio, aproximamo-nos da compreenso dos fenmenos sociais desde o interior de sua dinmica, como sujeitos sujeitos participantes na construo da histria, totalmente implicados de forma ativa em seu processo. Nossa prtica particular, como indivduos ou grupos sociais (com nossas aes, sentimentos e interpretaes), faz parte dessa prtica social e histrica da humanidade. Somos protagonistas ou vtimas de suas mudanas e movimentos; somos, em ltima instncia, responsveis por seu devir. Por isso, no podemos aspirar simplesmente a descrever os fenmenos e a observar seus comportamentos e sim devemos nos propor a intuir e compreender suas causas e relaes, identificar suas contradies profundas, situar honestamente nossa prtica como parte dessas contradies, e chegar a imaginar e a empreender aes tendentes a transform-la. Transformar a realidade, a partir da perspectiva dialtica, significa transformarmos a ns mesmos como pessoas, com nossas idias, sonhos, vontades e paixes. Somos assim - ao mesmo tempo - sujeitos e objetos de conhecimento e transformao.

A unio entre teoria e prticaDessa viso surge uma compreenso articulada entre prtica e teoria: em cada processo social encontram-se conectados de forma particular todos os fios de relao com a prtica social e histrica. Mas estas relaes no so visveis percepo imediata: preciso encontr-las e localizar cada prtica numa viso de totalidade. a teoria que nos permite realizar essa interpretao. Porm a finalidade deste empenho no termina na concluso terica. necessrio voltar novamente prtica, agora sim com uma compreenso integral e mais profunda dos processos e suas contradies, a fim de dar sentido consciente prtica e orient-la numa perspectiva transformadora. Essa viso de realidade como totalidade histrica, contraditria e mutante, produto da prtica transformadora da humanidade, que exige um esforo terico-prtico de conhecimento e transformao, coloca-nos ante os processos sociais com uma atitude fundamental: ter disposio criadora, ter a convico de que o que hoje existe no a nica realidade possvel e que no tem sentido se propor a conhecer a realidade s para constatar como . necessrio chegar a propor como queremos que seja, que49

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realidade poderia existir. Por isso, assumir uma Concepo Metodolgica Dialtica significa situar-se ante a histria a partir de uma posio profundamente crtica, questionadora e criadora, para enfrentar de forma ativa e consciente os problemas como problemas reais (como o matemtico Ta de nossa citao inicial). Vejamos, na continuao, com mais detalhe , como pode se dar esse processo dialtico que permite relacionar os fenmenos sociais que aparecem na superfcie da realidade, com suas determinaes mais profundas que os conectam totalidade dos processos histricos:5

Da percepo viva ao pensamento abstratoSempre percebemos a realidade em que vivemos por meio dos sentidos. Esta a primeira forma de conhecimento e a primeira fase na formao de conceitos. Ela nos permite captar a aparncia exterior das coisas e situaes. Esta percepo no um ato passivo onde a realidade nos entra de fora, atravs dos sentidos que estariam simplesmente esperando receber ato ativo impresses do mundo exterior. sempre um fato ativo , no qual intervm elementos de nosso pensamento, nossa memria ou nossas emoes. A percepo dos fenmenos uma percepo viva, produto da nossa implicao total como pessoas nos acontecimentos da vida cotidiana. Para passar da aparncia externa dos fatos e situaes que vivemos em nossa realidade imediata e penetrar em seus elementos essenciais, suas causas, suas contradies fundamentais necessrio que nosso pensamento realize um processo de abstrao porque essas conexes so invisveis processo abstrao, trao percepo dos sentidos. Um processo ordenado de abstrao permite realizar essas percepes, desagregar seus elementos e estud-los em separado; tambm, relacionar os fatos, situaes ou idias que tenhamos como ponto de partida, com outros fatos, situaes ou idias que podemos conhecer indiretamente por meio de leituras, imagens ou informaes de outras pessoas. Desta forma, intelectualmente, podemos progressivamente ir selecionando o importante

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Para um aprofundamento maior nesse aspecto, recomendamos o seguinte texto: Karlhein Tomachewski, Didctica General, Grijalbo, Mxico, 1966.

do secundrio e, por meio da sntese de suas caractersticas, encontrar e construir conceitos e juzos cuja validade possa ser comum a vrios fatos ou situaes. O processo de abstrao incorpora diferentes operaes lgicas: de anlise e sntese, de induo e deduo, que se inter-relacionam mutuamente.

Anlise

Permite desagregar um acontecimento ou situao em seus diferentes componentes, estud-los em separado, procurando localizar na sua estrutura interna as caractersticas particulares de cada elemento. A anlise nos permite ir ao fundo dos aspetos prprios de cada elemento ou fator presente na realidade. como enfocar o olhar sobre cada rvore em um bosque. Por exemplo, em uma experincia de animao popular que se realiza com grupos de populaes em uma zona urbana, poderiam ser analisadas em separado: as aes das mulheres; o papel que cabe instituio de promoo; as concepes e expectativas dos jovens; as vinculaes entre os organizados e os no organizados, etc.

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Sntese

Percorre o caminho inverso: obtm concluses baseando-se na relao entre distintos componentes ou encontrando seus pontos comuns e suas principais diferenas. Reordena os diferentes elementos de acordo com prioridades, distinguindo aspectos fundamentais ou secundrios. Uma sntese mais que um resumo que s faz uma recapitulao breve do realizado; a operao intelectual por excelncia, que coloca as partes em relao ao todo. como compreender o bosque relacionando as caractersticas das rvores. A sntese permite formular conceitos (representao de fenmenos) e juzos (expressa relaes).51

Por exemplo, na experincia de animao citada poder-se-ia sintetizar o impacto conseguido pelo conjunto de atividades da instituio, ou, identificar os aspectos comuns e diferentes nas demandas e expectativas dos diferentes setores da populao, etc. A anlise e a sntese so como as faces de uma mesma moeda: necessitamse mutuamente.

Induo

o processo que, partindo dos fatos, de dados observveis, ordena e compara, chegando a formular concluses. um processo que vai do particular ao geral, do imediato ao mediato, do concreto ao abstrato. A induo vai relacionando, com aproximaes sucessivas, distintos juzos particulares at chegar a juzos mais gerais. Permite passar de situaes concretas a uma concluso abstrata de validade geral. No exemplo mencionado anteriormente, se poderia ir estudando os diferentes componentes da relao entre instituio de promoo e comunidade, (realizando anlise e sntese), compar-los com outras experincias e a partir disso, formular algumas concluses sobre este tema.

Deduo

Percorre o caminho inverso: parte das formulaes tericas, dos conceitos ou leis j estabelecidas, para ir deduzindo concluses especficas. Passa do geral ao particular, do mediato ao imediato, do abstrato ao concreto. A forma dedutiva de chegar a concluses passar de um juzo geral, tomado como premissa vlida, e ver como se manifesta em um caso concreto. Em relao experincia mencionada nos exemplos anteriores, qualquer trabalho de animao popular dever basear-se em formulaes tericas que no campo da educao popular ou trabalho social j esto estabelecidas, para deduzir a partir delas algumas orientaes para o trabalho nessas comunidades em particular.52

Todas essas operaes lgicas se entrelaam de mltiplas formas, para poder chegar a afirmaes que relacionam o concreto com o abstrato, as percepes com os conceitos, as contradies de fundo com suas manifestaes nos fenmenos sociais. O geral se expressas por meio do particular, mas o pensamento abstrato que permite descobrir suas relaes.6 Assim vo se construindo progressivamente as contribuies tericas que , em permanente enriquecimento mtuo, aspiram a uma interpretao da realidade de validade cada vez mais geral. O pensamento abstrato surge de nossa implicao vital em situaes concretas; nasce prenhe de prtica e s consegue interpretar o sentido e o movimento da realidade se servir para se localizar na prtica histrica e eoria definitiv initiva absoluta suas opes. Por isso, a teoria nunca def initiva nem absoluta ; est teor sempre em construo e recriao crtica, a servio da prtica transformadora e seus inditos desafios.

Contradies: tenses e opesO manejo das contradies , talvez, um dos aspectos da perspectiva dialtica que mais se esquematizou, porque, se foi fcil localizar a idia de dois polos opostos, nem sempre ocorreu o mesmo com a noo de unidade entre ambos. Para a maneira formal de pensar compreensvel que possa haver dois elementos opostos, mas muito difcil entender que haja unidade entre eles. Este segundo aspecto talvez mais crucial para pensar dialeticamente, porque o que permite entender as relaes em termos de totalidade. Por um lado, evidente que os termos opostos da contradio se negam e se excluam mutuamente. Mas, por outro lado, fundamental entender que entre eles se d uma relao de implicao: um supe necessariamente o outro. Quer dizer, os dois termos opostos esto relacionados entre si e se

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Tomando como referncia o exemplo j colocado, de um trabalho de animao popular, poderamos dizer que nessas comunidades em sua situao concreta, encontram-se presentes expressas de forma particular - todas as relaes e contradies econmicas, sociais, polticas, ideolgicas, culturais dessa sociedade. Essas relaes e contradies no se mostram tal qual na aparncia dos fenmenos, mas esto presentes nas expectativas das pessoas, em suas aes, em sua situao de emprego, condies de vida, histria pessoal, etc. Da que preciso conceitualizar, fazer um exerccio terico de anlise, sntese, induo e deduo para descobrlas, compreend-las e saber atuar frente a elas.

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necessita que ambos existam para que possa se falar de contradio. Esta categoria simplesmente assinala que h um vnculo de oposio entre eles. Sem um, no existiria seu contrrio. Um oposto s em relao ao outro. A importncia deste aspecto (a unidade dos contrrios), reside em que fundamental para entender as contradies como fator de movimento. Desta maneira evitamos cair em duas imagens da dialtica: uma, que identifica a contradio como choque entre os termos opostos, de tal modo que no h situaes intermedirias (ou estamos absolutamente num lado ou estamos no outro); outra, que identifica a contradio como algo que se pode observar de fora, sem ter que tomar partido. Por isso, em vrias oficinas de educao popular, encontramos mais utilidade em ver as contradies como tenses nas quais cada polo enses, puxa para seu lado, numa permanente medio de foras com o outro, e onde cada elemento que identificamos estar sempre em relao com ambos os polos.7 O entender as contradies como tenses ajuda a ver os polos contraditrios em sua inter-relao dinmica e no como dois opostos isolados. Assim, ao captar o movimento da contradio e a inter-dependncia entre seus polos, podemos descobrir o leque de situaes intermedirias possveis, que estariam mais prximas ou distantes dos respectivos extremos que geram a tenso. Desta maneira evitamos cair no erro comum de ver as contradies de forma simplista ou maniquesta: branco ou negro (seria

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o caso da oficina de sistematizao que realizamos em agosto de 1991 em Iju, Brasil, organizado pelo Seminrio Permanente de Educao Popular da UNIJUI. Nele, estvamos trabalhando em torno de como se d a relao entre os processos formativos e os processos organizativos. Aps uma fase descritiva, passamos a um maior nvel de aprofundamento tratando de identificar as contradies que estamos vivendo, como polos de tenso que dinamizam os processos. Tratava-se, pois, de localizar nossa prtica formativa dentro dessas tenses. Para isso, fizemos um exerccio que implicou: a) Determinar as principais contradies dos processos organizativos em que participamos diretamente. b) Assinalar os polos que determinam as tenses. c) Identificar a tenso principal. d) Localizar nossa prtica dentro dessas tenses e em relao com os polos que as determinam Ver: Capacitarse para sistematizar experiencias. In Sitemati...que? (seleo de textos) Alforja, San Jos, julho de 1992, pgs.89 a 104.

antes como situar uma escala de tons de cinza e encontrar nela o lugar a partir de onde vivemos e participamos na tenso). Um elemento adicional que as contradies, vistas como tenses, ajudam a entender melhor o carter ativo e histrico de nossa prtica. No se trata de situar o espao no qual supostamente o destino nos coloca de maneira passiva e imvel. Trata-se de que relacionemos essas tenses, com nossas opes quando vivemos, optamos; somos parte das contradies, opes: vivemos suas tenses, e nossa prtica contribui para reforar o movimento da histria em uma outra direo. No h neutralidade nem absteno possvel.

Subjetividade e prtica transformadoraUma antiga tradio coletivista no pensamento progressista e revolucionrio insistiu tanto em afirmar nossa dimenso social, nosso pertencimento de classe, nossos projetos globais de sociedade, a importncia da condies objetivas, que depreciou outro polo dialtico que sempre est em tenso com aquele: a dimenso individual, cotidiana e subjetiva, que uma decisiva dimenso decisiva para a interpretao do que existe e para a colocao em prtica criadora do que queremos que exista. Se somarmos a isso a influncia do positivismo qual fizemos referncia anteriormente, podemos entender porque muito comum que se menospreze a dimenso subjetiva ou se, se lhe presta ateno, isso se d por meio de um nico fator: a razo.8 Pelo contrrio, a partir de uma perspectiva radicalmente dialtica, como temos esboado nesse captulo, no possvel separar objetividade de subjetividade. O componente subjetivo joga um papel preponderante na vivncia da prtica histrica, no esforo por sua compreenso terica, e na disposio transformadora e criadora. A subjetividade se converte, assim,

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Evidentemente, tudo isso tem qua ver no s com a influncia do positivismo na cincia, como tambm com a origem do marxismo em polmica com o idealismo e a religio preponderantes no sculo XIX. Tambm tributrio da herana patriarcal, racionalista e machista da sociedade ocidental.

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em um dado objetivo da realidade histrico-social, e, alm do mais, constitui o fator ativo, transformador (e recriador) das situaes objetivas.9 Muitas vezes se reduz o conceito de prtica s aes que as pessoas prtica tica, realizam. Mas prtica, entendida em seu sentido profundo, no est composta simplesmente de atividades, frias e quantificveis. A prtica uma maneira de viver nossa cotidianeidade, com toda a subjetividade de nosso ser pessoas, que muito mais que s o que fazemos, e que inclui , portanto, o que pensamos, intumos, sentimos cremos, sonhamos, esperamos, queremos... Alm do mais, tudo o que fazemos e vivemos tem para cada um de ns um determinado sentido uma justificativa, uma explicasentido: o, uma orientao, uma razo de ser. Por isso, to importante como compreender o que fazemos, situar o sentido com que orientamos esse fazer. Da, que seja fundamental reconhecer e explicitar tanto nossas aes como nossas interpretaes, sensibilidades e convices. A confrontao entre elas nos permitir descobrir as coerncias e incoerncias entre nosso fazer, nosso pensar e nosso sentir. Ora, essas interpretaes e sentidos no so unicamente individuais (ainda que estejam marcadas com o selo particular de cada pessoa) e devem ser colocadas em seu contexto social e histrico: idias dominantes, sensibilidades dominantes, modas, valores comumente reconhecidos como positivos ou negativos. Por isso adquire importncia o reconhecer e explicitar a proximidade ou distncia entre nossos sentidos pessoais e os comuns na sociedade que vivemos. Dessa relao nasce a dupla possibilidade que enfrenta nossa subjetividade de maneira permanente: a) alienar-se passivamente na corrente dominante, contribuindo para manter a situao estabelecida, a reproduo do passado; ou

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Em um sugestivo trabalho, o nicaraguense Orlando Nuez percorre vrias dimenses da subjetividade e enfatiza seu carter de fator ativo e criador dos processos histrico-sociais. A tarefa de insurreicionar a conscincia afirmada como fator indispensvel no s para transformar a ordem social, como para criar uma nova. Sem esse impulso afirma, as revolues at agora tm aparecido mais como renovaes do sistema anterior e menos como criao consciente de uma nova realidade. por isso que proponho parafrasear a conhecida tese de Marx sobre Feuerbach: At agora, os revolucionrios no tm feito mais do que transformar o mundo. Trata-se de criar um novo. La insurreicin de la conciencia, UCA, Managua, 1988.

b) afirmar-se criativamente ante o momento histrico que se vive, fundamentando convices, interpretaes e sentidos prprios; armando-se com a imaginao para a criao do novo. Assim, nossa subjetividade, como fator ativo da transformao histrica, no somente o espao para a negociao das interpretaes e sentidos que sustentam a velha realidade. , fundamentalmente, o espao uma nova tica, tica para a afirmao de novos valores e sentidos, que devem expressar-se numa nova forma de pensar e viver, individualmente e em sociedade. Quer dizer, permite-nos no s transformar a realidade existente, mas ser capazes de criar uma nova.10

Concepo Metodolgica Dialtica e SistematizaoNesse marco e com a perspectiva de uma maneira de pensar e de viver dialeticamente, que a sistematizao adquire uma virtude adicional: contribuir para a constituio de nossa subjetividade; quer dizer, contribuir a que nos convertamos em sujeitos transformadores e criadores da histria. E isso possvel porque a sistematizao permite dar conta no s das aes, como tambm das interpretaes das pessoas, suas sensibilidades e afetos, suas esperanas e frustraes, suas crenas e paixes, as quais so decisivas para dar sentido nossa prtica. Assim, a sistematizao contribui para criar identidades e para que nos valorizemos como pessoas, contribui para qualificar todas as dimenses de nossa vida e para que consigamos cada vez mais coerncia entre o que pensamos, dizemos, sentimos, queremos e fazemos. Tal como foi exposto neste captulo, ento, o problema de fundo da sistematizao, que na realidade o problema de fundo para o conheci-

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Isto particularmente vlido no momento histrico em que vivemos, no qual o modelo neoliberal dominante conseguiu impor uma estrutura de valores baseada na lgica do mercado, que a lgica do individualismo e da competncia. A luta de fundo dessa poca se d no terreno da tica: a afirmao e criao de novas identidades baseadas na solidariedade, na justia, na amizade, na busca da felicidade coletiva, no respeito s pessoas, na harmonia com a natureza, na igualdade das relaes de gnero..., em suma, na busca pela satisfao no s das necessidades bsicas de alimentao, moradia, sade, emprego, como tambm, das necessidades radicais como seres humanos. Ver a respeito: Afonso Ibez: Agnes Heller, la satisfacin de las necesidades radicales. Alforja, San Jos, 1991.

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mento e transformao da realidade, centra-se na vinculao entre prtica e teoria. Por isso, tentamos desfiar aspectos modulares da Concepo Metodolgica Dialtica com a qual sustentamos nossa anlise e nossa proposta. Ali encontra-se a raiz de uma teoria do conhecimento, de uma epistemologia fundada na praxis humana, histrica e dinmica. Ali encontra-se a razo de ser da convico de que possvel contribuir para a construo de teoria a partir de nossas prticas particulares nos processos sociais de educao, animao e organizao popular; e de que possvel contribuir com essa teoria para a transformao da histria. Ali, em uma Concepo Metodolgica Dialtica, encontra-se, tambm, a fundamentao