Historia Constitucional - Liberalismo e Bem-estar Social Nas Constituições Brasileiras

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  • 8/18/2019 Historia Constitucional - Liberalismo e Bem-estar Social Nas Constituições Brasileiras

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    LIBERALISMO E BEM-ESTAR SOCIAL NASCONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

    LIBERALISM AND WELFARE STATE IN THE BRAZILIANCONSTITUTIONSMarcus Firmino Santiago

    Instituto Brasiliense de Direito Público – IDPCentro Universitário do Distrito Federal – UDF

    SUMARIO: I. INTRODUÇÃO - II. UM ESTRANHO LIBERALISMO: ASCONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891 - III. CONSTITUIÇÃO DE 1934 E CARTA DE1937: DIREITOS SOCIAIS EM UM ESTADO INTERVENTOR - IV. PARA ONDECAMINHA O BEM-ESTAR SOCIAL: UMA FRÁGIL DEMOCRACIA (1946) E UMA

    LONGA EXPERIÊNCIA AUTORITÁRIA (1967) - V. CONSTITUIÇÃO DE 1988:RENASCIMENTO DO BEM-ESTAR SOCIAL - VI. CONCLUSÃO

    Resumo : As categorias teóricas utilizadas para classificar as formas de relaçãoentre Estado e sociedade destacam a liberdade dos cidadãos diante do poderestatal, cujas responsabilidades variam na proporção da autonomia conferida àsociedade. Usualmente cabe à Constituição, no momento em que define as regraspara organização política do Estado e os direitos fundamentais, traçar umpanorama que permita identificar se um país se aproxima mais de valores liberaisou sociais. Porém, nem sempre o desenho constitucional permite criar realidadesque realmente reflitam os modelos conceituais. O estudo das Constituiçõesbrasileiras permite perceber que, em vários momentos da história nacional,houve um conflito entre as categorias jurídico-políticas (Estado Liberal, Estado deBem-estar Social) e as práticas institucionais. Esta artigo analisa o contexto emque as Constituições nacionaiselaboradas e osdesvios vividos em sua aplicação, etem por objetivo refletir sobre os modelos de Estado idealizados nos textosnormativos, ora concebidos para estruturar uma realidade que não chegou a serconcretizada, ora manipulados abertamente de forma a conferir legitimidade aregimes claramente autoritários.

    Abstract : The theoretical categories used to classify the relationship between

    State and society highlight citizens liberty before the State power, whoseresponsibilities vary accordingly to the degree of society autonomy. When theConstitution defines the rules of State political organization and the fundamentalrights, it draws a picture that allows identifying if a country is more concernedwith liberal or social values. On the other hand, there are times when the politicalreality do not reflect the constitutional model. The study of Brazilianconstitutions emphasizes that in several moments of national history, there was aconflict between the legal and political categories (Liberal state, Welfare state) andinstitutional practices. This study is based on the analysis of nationalconstitutions, emphasizing the context in which they were made and theobstacles encountered in its implementation process, and aims to reflect on theidealized State models in the regulatory texts, sometimes designed to structure areality that did not come true, sometimes openly manipulated in order tolegitimate clearly authoritarian regimes.

    Historia ConstitucionalISSN 1576-4729, n.16, 2015. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 339-372

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    Palavras-chave : Liberalismo. Bem-estar social. Constituições brasileiras. Direitosfundamentais.

    Key-words : Liberalism. Welfare state. Brazilian Constitutions. Fundamentalrights.

    I. INTRODUÇÃO

    Em 1822, ano da independência brasileira diante de Portugal, a Europa játinha sido inundada pelas ondas liberais agitadas pela Revolução Francesa epelas guerras napoleônicas. O pensamento político liberal era o retrato damodernidade, sendo naturalmente incorporado ao discurso das lideranças queestavam à frente do processo de ruptura com a metrópole colonial.Não é de seestranhar, portanto, que o Estado brasileiro tenha reproduzido o paradigmaeuropeu.

    A década de 1820 na Europa marcou o período de acomodação das pressõespelo controle do poder estatal, pelo fim dos regimes absolutistas, pela afirmaçãodo primado do Direito e da supremacia das constituições ante a resistência dascorrentes conservadoras que insistiam em manter vivos os privilégiosnobiliárquicos. Este frágil equilíbrio entre liberalismo e conservadorismo foiincorporado à primeira Constituição brasileira, nascida da pena do ImperadorPedro I, e mantido íntegro ao longo de quase todo o Século XIX.

    É interessante destacar este marco inicial na formação do Estado brasileirona medida em que ilustra boa parte da trajetória institucional do país, marcada

    por frequentes antagonismos e incoerências decorrentes de modelos teóricos quenem sempre combinam com as práticas estatais. Assim se viu durante a eraimperial, de 1822 a 1889, e posteriormente no período republicano. Constituiçõesliberais conviveram com práticas estatais altamente interventivas, seja no planosocial ou econômico; Constituições sociais foram combatidas ferrenhamente porforças defensoras de um liberalismo por vezes extremado.

    O presente estudo objetiva traçar um panorama das transformações vividaspelo Brasil quanto a sua organização político jurídica por intermédio de umareleitura de sua história constitucional. Para tanto, são analisados os processosconstituintes, os textos constitucionais produzidos e algumas práticas

    institucionais ilustrativas da realidade vivida em cada momento da vida estatal.A história constitucional brasileira foi dividida em duas grandes etapas,

    identificadas com o Liberalismo e o Bem-estar social. O termo Liberalismo éutilizado para definir um pensamento político e econômico que defende umamínima intervenção estatal nas relações privadas, preservando os espaços deliberdade e autodeterminação e se materializa em Constituições que privilegiam adefesa das liberdades individuais e a contenção do poder estatal. Já Bem-estarsocial denomina um modelo pautado em uma intervenção estatal direcionada,focada especialmente no domínio econômico e voltada a garantir acesso a umconjunto de benefícios sociais, buscando equilibrar liberdade e igualdade, vistaesta última sob uma perspectiva material.

    Estes conceitos traduzem os modelos teóricos encontrados nos discursos enos textos legislativos que orientam a formação do Estado brasileiro, fornecendo

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    os alicerces estruturais de suas instituições políticas, econômicas e sociais.Instituições que nem sempre têm funcionado da maneira idealizada, não rarosendo apreendidas e torcidas a fim de favorecer interesses por vezes claramentedissociados do ideal de busca por um bem comum. A realidade fática apresentaaos olhos situações complexas, tanto sob a perspectiva conceitual quanto jurídicaque merecem reflexão e análise mais detida, o que o presente artigo se propõe afazer.

    II. UM ESTRANHO LIBERALISMO: AS CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891

    No Século XIX, o modelo estatal brasileiro se alinhava com o paradigmaliberal dominante, recebendo influências de diferentes sistemas. Em suaformação inicial, imediatamente após a proclamação de independência perantePortugal, em 07 de setembro de 1822, a referência buscada para desenhar aprimeira Constituição nacional foi o constitucionalismo francês. A Carta de 1814,

    outorgada pelo rei Luis XVIII no contexto da restauração monárquica que seseguiu à deposição de Napoleão Bonaparte, era uma mescla de elementos liberaise conservadores, exatamente como a Constituição brasileira de 1824, igualmenteoutorgada pelo Imperador Pedro I. 1

    O primeiro processo constituinte brasileiro, em verdade, teve início antes daproclamação de independência, quando Dom Pedro, então Príncipe Regente,editou o Decreto de 03 de junho de 1822 convocando uma Assembleia Luso- Brasiliense , composta por deputados eleitos pelas províncias, unidadesadministrativas do território brasileiro. 2 Com a separação formal face àmetrópole, em setembro do mesmo ano, o chamamento feito pelo governo central

    não foi posto em prática e, nos meses que se seguiram, o agora Imperadorbrasileiro hesitou em instalar a Assembleia Constituinte. Este fato gerou grandespressões internacionais, sendo vários os países que se recusaram a reconhecer oBrasil como nação independente, e internas, oriundas da Câmara e do Senado,além de várias províncias. 3

    Finalmente, em 03/05/1823, reuniu-se a Assembleia (na verdade, umCongresso Constituinte, pois também exercia atribuições legislativas ordinárias), 4 contando com Deputados que tinham participado da Constituinte portuguesa de1822 e traziam ideias liberais, presentes firmemente na Revolução do Porto. 5 Jáse avizinhava, então, o eminente conflito entre o Imperador e os parlamentares,

    1 Constituição de 1824 disponível em:

    www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm2 LEAL, Aurelino. História Constitucional do Brasil . edição fac-similar. Brasília: Senado Federal,

    2002. p. 48-50.3 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil . 3. ed. São Paulo:

    Paz e Terra, 1991. p. 34. CASTRO, Araújo. A Constituição de 1937 . edição fac-similar. Brasília:Senado Federal, 2003. p. 32-35.

    4 Havia a necessidade de decidir diversas questões referentes ao desenho jurídico do novoEstado, o que incluía decidir pela manutenção em vigor, ou não, de normas do direito português,tarefas que foram desempenhadas pelos legisladores constituintes. CASTRO, Araújo. Op. cit ., p.12.

    5 LEAL, Aurelino. Op. cit., p. 4 e 20.

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    jamais sendo esquecido o discurso proferido por Dom Pedro I em sua coroação(em 01/12/1822), ocasião em que jurou “(...) defender a Constituição que estápara ser feita, se for digna do Brasil e de mim.” 6A respeito do tema, lembraNelson Nogueira Saldanha:

    Sempre os historiadores frisam o modo pelo qual o imperador, abrindo os trabalhos,pedia uma Constituição à altura, que ele defenderia “se fosse digna dele” – o que põeos olhos do crítico atual ante uma aporia difícil: ou o julgamento do monarca seria ofundamento da validade do texto, e então aquela assembleia não era bem umaconstituinte, ou a constituição a fazer-se seria emanação de um poder legítimo,fundado no povo e exercido em competência autêntica, e então o monarca, órgão a serdelimitado na letra mesma da carta, só devia acomodar-se. É que vivíamos no transeuma combinação insustentável. Tínhamos um soberano no trono e queríamos ter umgoverno liberal: aquele Guilherme de Orange às avessas pretendia adequar a ele onosso Bill .7

    O projeto elaborado pela Assembleia era impregnado pelo pensamentoliberal, impondo restrições ao poder monárquico e fortalecendo a representaçãolegislativa, com o que rejeitava as tendências mais conservadoras dominantesdesde o Congresso de Viena. Segundo Nelson Saldanha:

    Agenor de Roure, em sua minuciosa e exaustiva Formação , mostra aliás como – porsingularidade, acaso ou ironia das coisas – o exemplo inglês era a cada passo copiadono andamento dos trabalhos e nas propostas apresentadas. Copiado, de resto, comentusiasmos pouco ingleses, com muito palavreado e até com a feérica inclusão devivas e saudações nos atos publicados. 8

    Os trabalhos da Assembleia foram marcados por embates com o Imperador,que deixava clara sua repulsa ao projeto idealizado pelos irmãos Andrada, emespecial Antonio Carlos de Andrada Machado. 9 Entendendo-se desafiado em suaautoridade, Dom Pedro I reagia com crescente violência. Em 19 de julho de 1823,fez editar Proclamação por meio da qual se opunha a dispositivo que previa o vetolegislativo a decisões do Imperador. Reclamava o monarca que “(...) algumasCâmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus Deputados em quereina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Impérioé um absurdo...”. 10

    6 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. Op. cit ., p. 47.7 SALDANHA, Nelson Nogueira. História das Ideias Políticas no Brasil . Brasília: Senado Federal,

    2001, p. 105.8 SALDANHA, Nelson Nogueira. Op. cit ., p. 105.9 BONAVIDES,Paulo; ANDRADE, Paes de. Op. cit ., p. 77-78 e 81-82. Os três irmãos da família

    Andrada tiveram papel de destaque no processo de independência e seguiram participandoativamente da vida política nacional ao longo das décadas iniciais do regime imperial. LEAL. Op.cit., p. 63.

    10 CERQUEIRA, Marcelo. Notas à Constituição . Como foram convocadas as constituintes.Brasília: Imprensa Nacional, 1985. p. 18.

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    Finalmente, após uma sequência de embates públicos, o monarca acabou pordissolver a Assembleia, em 12/11/1823, forçando a saída dos parlamentares a pontade baionetas. 11 O Decreto imperial que determinava a dissolução da AssembleiaConstituinte previa a convocação de novo corpo de legisladores, o que nuncaaconteceu. Em verdade, imediatamente o Conselho de Estado, órgão de assessoriaimperial criado na sequência do golpe, sob a influência do ex-parlamentar constituinte José Joaquim Carneiro de Campos, passou a elaborar um projeto constitucional. 12 Otexto foi encaminhado para análise nas Câmaras municipais, órgãos provinciais, 13 nasquais, sob enorme pressão do Imperador, se procedeu à aclamação quase unânime e opedido por sua imediata outorga, o que ocorreu em 25/03/1824. 14

    A Constituição de 1824 foi elaborada conforme os preceitos doconstitucionalismo monárquico conservador inaugurado no Congresso de Viena.Nas palavras de Paulo Bonavides e Paes de Andrade:

    Sendo D. Pedro I um Bragança, a tradição autoritária da Casa não poderia deixar deter ingresso ao texto da Carta constitucional outorgada por um membro da família.Nada de estranhar, pois, quanto ao enxerto absolutista de 1824, tão diferente nessetocante, do liberalismo do Projeto Antonio Carlos, desconhecedor da singular inovaçãoe, respeitante à separação de poderes, estruturalmente fiel a Montesquieu e aopensamento da filosofia liberal trazida pelas revoluções do século. 15

    Seu texto contemplava normas de organização do Estado, delimitava osâmbitos de atuação de cada instância governamental, definia os poderes, além delistar as liberdades fundamentais. Era uma mescla de elementos liberais eautoritários, convivendo os direitos e liberdades típicos da agenda burguesa coma irresponsabilidade do Imperador ou a afirmação da sacralidade de sua pessoa.O discurso oficial, contudo, buscava ressaltar a natureza liberal do texto,afastando toda espécie de crítica que pudesse cobri-lo com a pecha deconservador. “Seja como for, a Constituição foi concebida liberalmente eliberalmente redigida.”, sustentava Aurelino Leal, endossando o pronunciamentodo Senado, de 20 de dezembro de 1823, segundo o qual “(...) não poderia haveruma Constituição mais liberal”. 16

    No que tange à organização institucional, merece destaque a previsão de umquarto Poder, o Moderador, inspirado em Benjamin Constant e entregue aoImperador, que era também chefe do Poder Executivo. 17 Sobre aquele se refere

    Nelson Saldanha:

    11 CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 12.12 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 74-75 e 77.13 Como explica Octaciano Nogueira, “(...) durante todo o regime colonial, as Câmaras

    Municipais não eram instituições políticas, mas simples órgãos administrativos e judiciários,funções herdadas da tradição portuguesa que, por sua vez, as adaptara do Direito Romano.”NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Vol. I. Brasília: Senado Federal, 2001. p.31.

    14CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 12.

    15 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 97.16 LEAL, Aurelino. Op. cit., p. 125-126.17 CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 13.

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    E que fazia tão importante um assunto como o Poder Moderador (assunto até tão semgraça sob certo prisma e em particular se olhado de agora), e tão amplificadas asanálises de suas implicações políticas e administrativas? É que ele significava, comoproblema, a presença do monarca no nosso edifício constitucional. Tínhamos ummonarca autorizado a imperar de verdade (e sem ter passado por uma autênticaexperiência de limitação da monarquia, como na Inglaterra ocorrera), e tínhamos um

    arcabouço constitucional cheio de materiais liberais – ao que se somava a atuação decertas tradições liberais nossas (permanência daqueles rastilhos que germinavamdesde a colônia), e de certas influências europeias, de modelos positivos e teóricos quecontinuavam aportando ao Brasil. 18

    O delicado equilíbrio entre valores conservadores monárquicos e liberaisburgueses foi facilitado pela reduzida força política da burguesia nacional, gruporelativamente pequeno, em termos numéricos, e cuja relevância econômica nãochegou a ser considerada elemento essencial de apoio pelo Imperador.Liberalismo e monarquismo, portanto, se combinaram de forma quase natural,

    seja por força das relações de dependência presentes entre as forças produtivas eo governo, seja pelas aspirações populares (ou ao menos de uma elite que cercavaa Corte) por estabilidade. 19

    Outro elemento relevante e fortemente invocado para justificar acentralidade monárquica, além do fortalecimento da autoridade imperial, era apreocupação em manter a integridade territorial, evitando a fragmentaçãoocorrida na América espanhola, como assinala Octaciano Nogueira:

    Quando a Constituição foi outorgada, o exemplo da América Espanhola, fracionada emrazão dos particularismos locais criados a partir da administração colonial, tinha

    produzido seus frutos. Havia no Brasil, sobretudo depois da Revolução Liberal doPorto, em 1820, o procedente temor de que esse exemplo se repetisse. 20

    Esse medo certamente não era infundado, nem se fez presente apenas nosanos imediatos à independência. De fato, foram diversos os movimentos contráriosao poder central, vários dos quais com natureza separatista. 21 E não se pode deixarde ressaltar a falta de unidade interna. Octaciano Nogueira lembra que, no início doSéculo XIX, em vastas regiões do Brasil a língua dominante não era o português,mas o tupiguarani, idioma de uma das várias nações indígenas tradicionais. 22

    De toda sorte, vários são os autores (dentre os quais Euclides da Cunha eOliveira Viana) que atribuem a unidade territorial brasileira à monarquia, vendo-a como instrumento de integração social e cultural essencial à construção devínculos entre os diferentes grupamentos humanos que habitavam o território(posição que Nelson Saldanha entende questionável, enxergando em um regimerepublicano um caminho possível ao alcance do mesmo fim). 23

    18 SALDANHA, Nelson Nogueira. Op. cit ., p. 137.19 SALDANHA, Nelson Nogueira. Op. cit ., p. 107.20 NOGUEIRA, Octaciano. Op. cit ., p. 28.21

    CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 19.22 NOGUEIRA,Octaciano. Op. cit ., p. 28.23 SALDANHA, Nelson Nogueira. Op. cit ., p. 108.

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    Além do tema referente à monarquia e seu papel, aspecto importante paraanálise das práticas institucionais no período de vigência da Constituição de1824 é a compreensão do sistema produtivo brasileiro.

    Desde a época colonial, a atividade econômica se concentrava na agricultura ena extração de riquezas naturais, sempre com objetivo exportador. Não havia,assim, uma burguesia comercial forte e organizada (elemento social essencial nasrevoluções liberais europeias). A defesa dos valores liberais se concentrava emrestritos círculos intelectuais e na reduzida classe média urbana de um paísestritamente rural. À classe econômica dominante, ao contrário, convinha umgoverno forte e centralizador, que garantisse o fluxo de exportações, as concessõesdas minas e de vastas extensões de terras e, acima de tudo, a escravidão.

    Pode-se a firmar que, desde o início, o liberalismo brasileiro adquiriu feiçõesbastante peculiares, para não dizer verdadeiramente estranhas. Afinal, emboraproclamado na Constituição (ao menos em partes dela) e nos discursos oficiais,há uma participação ativa do Estado no cenário econômico, além de uma forteingerência na vida social, com a manutenção da escravidão e de ordens deprivilégios.

    Quanto ao espaço econômico, durante toda a era imperial o país dependeuquase exclusivamente da exportação de produtos primários (primeiro cana deaçúcar, depois café), o que criava entre governo e produtores uma relação dedependência recíproca. O primeiro precisava das vendas externas para obterrecursos, os segundos eram agraciados pelo governo com preços mínimos,financiamento, garantias para os contratos de exportação, além da manutençãoda mão de obra escrava. 24 Nas palavras de Raimundo Faoro:

    Sobre todos, o Tesouro vela e provê, pródigo em concessões garantidas, em proteçõesalfandegárias, em emissões, em patentes bancárias, socorrendo, na hora das crises, asfortunas desfalcadas. Nesse sistema, com o Estado presente na atividade econômica,pai da prosperidade geral, a política dá as mãos ao dinheiro, como outrora. 25

    Se, ao longo do tempo, a relação entre poder político e econômico poucomuda, no correr da era imperial, que se estendeu de 1822 a 1889, é perceptível ogradual afastamento do modelo francês (que, por sua vez, também experimentoudiversas e profundas mudanças durante estas décadas) e a incorporação do

    pensamento político liberal inglês. Esta transição gerou mudanças no sistema jurídico, com a progressiva restrição ao sistema escravagista, por exemplo, epolítico,com o fortalecimento do Poder Legislativo nas décadas finais doImpério.Toda uma geração de novos líderes, que conduziram o processo deruptura monárquica e adoção do modelo republicano de governo, encontrouespaço na Câmara dos Deputados que, na visão de Raimundo Faoro, na décadade 1880 constitui-se em um dos principais espaços de oposição ao governo. 26 Nomesmo sentido sustenta Octaciano Nogueira:

    24 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed.

    São Paulo: Globo, 2001. p. 374-375.25 FAORO, Raymundo. Op. cit ., p. 462.26 FAORO,Raymudo. Op. cit ., p. 396-404.

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    De 1882 a 1885, a Câmara dos Deputados derrubou quatro Ministérios,sobretudo pormotivos da questão doelemento servil, mas o fosso iasecavando entre a representaçãonacional e o sentimento público. Em 1871, oGabinete presidido pelo Marquês de SãoVicente (José Antônio PimentaBueno) retirou-sepor causa da oposição da imprensa,como o declarou ohomem de Estado que dava semelhante exemplo de respeito àopinião pública,a qual já se encontrava fora do recinto parlamentar. 27

    Mais uma vez o pensamento liberal aflorou e funcionou como fio condutorpara as críticas que se avolumavam ao regime monárquico: “Ser culto, moderno,significa, para o brasileiro do século XIX e começo do XX, estar em dia com asideias liberais, acentuando o domínio da ordem natural, perturbada sempre que oEstado intervém na atividade particular” 28 , explica Raimundo Faoro.

    A lista de reivindicações realçava elementos como a reforma eleitoral e aampliação da participação política, a descentralização administrativa como formade reduzir o poder imperial ou a abolição da escravatura.

    A pressão pela adoção de um sistema federativo alinhava-se com o rechaçoao centralismo decisório, visto como autoritário e anacrônico. O movimentoabolicionista, por seu turno, respirava os sopros de liberdade que vinham donorte, na esteira da Guerra Civil norte-americana. Entre estas correntesideológicas figuravam, ainda, defensores da república, que viam na monarquiaum elemento de atraso que colocava o Brasil em desvantagem em relação a seusvizinhos. A este caldo de cultura se juntaram os militares, descontentes com ogoverno desde o final da Guerra do Paraguai, em 1870, momento a partir do qualemergiram como lideranças políticas relevantes e decisivas. 29

    De todos estes, talvez o grupo melhor articulado e que maior pressão vinhaexercendo sobre o governo imperial era o federalista. Sua forte mobilização levouo regime vigente a propor diversas reformas tendentes a conferir autonomia paraMunicípios e Províncias, mas a reação veio tarde. Em junho de 1889, o Presidentedo Conselho de Ministros de Dom Pedro II, o Visconde de Ouro Preto, discutia naCâmara dos Deputados projetos que, além de tratarem da autonomia federativa,também buscavam reforçar liberdades, mas seu discurso era constantementeinterrompido por gritos de ‘abaixo o Imperador’ e ‘viva a República’.Definitivamente, os movimentos federalista e republicano já tinham dado osbraços e caminhavam juntos em direção à derrubada da monarquia. 30

    O golpe de estado liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, em 15 de

    novembro de 1889, foi o ápice de uma onda revolucionária que se vinhaconstruindo especialmente entre as elites urbanas e rurais, mas que contava comtímido apoio popular. Em verdade, a queda do Imperador passou despercebidapor muitos durante alguns dias, e mesmo semanas, em regiões mais distantes dacapital.Foi mais uma transição feita de cima para baixo .

    27 NOGUEIRA, Octaciano. Op. cit ., p. 24.28 FAORO, Raymundo. Op. cit ., p. 567.

    29 LEAL, Aurelino. Op. cit ., p. 199-200. BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p.205-210.

    30LEAL, Aurelino. Op. cit ., p. 196-197.

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    Apesar de uma forte participação de Deputados entre as lideranças domovimento, quem assumiu o protagonismo imediatamente após a transiçãorepublicana foi o chefe do Governo Provisório, Marechal Deodoro da Fonseca,rapidamente restabelecendo a hierarquia institucional conhecida da tradiçãobrasileira, com o Poder Executivo como centro decisório. E os primeiros atos donovo governo cuidaram de lhe conferir legitimidade jurídica, iniciando-se oprocesso de elaboração de sucessivos decretos por meio dos quais todo o Estadobrasileiro foi redesenhado. Nas palavras de Bonavides e Paes de Andrade, foiproduzida uma espécie de “(...) Constituição de bolso, emergencial, para reger opaís, evitar o caos e decretar bases fundamentais da organização políticaimediatamente estabelecida.” 31

    Na virada do Século XIX para o XX, é notável a força do constitucionalismonorte-americano no pensamento político brasileiro. O modelo de organizaçãoestatal forjado após o golpe de 15 de novembro de 1889 foi claramente inspiradona tradição norte-americana, assim como a nova Constituição adotada pelo

    regime, em 1891, em grande medida reprodução da existente naquele país e quede maneira emblemática renomeou a nação para Estados Unidos do Brasil .32 Imediatamente foi alterado o regime de governo, adotando-se uma repúblicapresidencialista, e a forma de organização político-administrativa, de um Estadounitário para uma federação, reconhecendo-se autonomia aos Estados-membros,novo nome dado às antigas Províncias (estas medidas inaugurais foram previstasno Decreto n.º 1, de 15/11/1889).

    Igualmente por Decreto do Governo Provisório (Decreto n. 78-B, de21/12/1889) foi convocada uma Assembleia Constituinte, a se reunir no dia15/11/1890, após eleições realizadas sob novas regrasque, entre outras medidas

    reformadoras,adotaram o sufrágio universal masculino, abolindo o voto censitário(mas mantendo a proibição de voto aos analfabetos). Note-se que, em preparaçãoà Constituinte, foi editado o Decreto n. 29, em 03/12/1889, nomeando comissãode juristas à qual foi incumbida a tarefa de elaborar um “projeto de Constituiçãoda República dos Estados Unidos do Brasil”. Não havia mais espaço paraqualquer tentativa de retorno à monarquia.

    Neste meio tempo, o país seguiu sendo regido por atos cuja legitimidade sepautava na Teoria do Poder Revolucionário , concebida por Robespierre em 1793para justificar a apreensão do poder constituinte pela Convenção. 33 Durante operíodo de vazio constitucional, o Estado brasileiro foi reorganizado por meio de

    uma produção legislativa vertiginosa, que rapidamente demoliu todo o edifício jurídico institucional da monarquia, adentrando em temas tão variados como aorganização administrativa dos Estados-membros, a separação entre Igreja eEstado, a adoção de um novo Código Penal ou uma lei de falências. 34

    31 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 210.32 Constituição Federal de 1891 disponível em:

    www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm33 Composta por representantes extraordinários do povo, a Convenção se reconhecia como sua

    parte virtuosa capaz de identificar e materializar suas vontades, assegurando a unidade nacionale a continuidade da Revolução. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição . Para uma críticado constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 148-149.

    34 LEAL, Aurelino. Op. cit ., p. 203. Aurelino Leal é um dentre vários autores que, sustentando

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    Quando a Assembleia Constituinte se reuniu, recebeu do Governo Provisórioum anteprojeto de Constituição elaborado por uma comissão de juristas eamplamente revisado por Ruy Barbosa, uma das principais lideranças políticas eintelectuais da época. Este jamais escondeu a influência do constitucionalismonorte-americano que o impulsionou nasprofundasalterações que fez no textorecebido da aludida comissão, imprimindo-lhe suas feições. 35

    Fato curioso é que este projeto foi publicado na forma do Decreto n.º 510, de22/06/1890, apresentado como uma Constituição Provisória , da qual algunsdispositivos entraram imediatamente em vigor (especialmente os que diziamrespeito à organização do Poder Legislativo, modelo que orientou as atividades daAssembleia Constituinte que ainda seria eleita). 36 Note-se que o Governoapresentava o conjunto de normas como uma Constituição , e não um projeto(intenção expressa no preâmbulo do referido Decreto), e que o Congresso, pormeio daquele ato, era chamado a “(...) aprovar a dita Constituição.” (grifou-se) 37

    O anteprojeto de Constituição não inovava substancialmente em relação aomodelo de Estado que já houvera sido desenhado por meio de Decretos e, ao finaldos debates na Assembleia, restou pouco modificado, sendo a nova Constituiçãopromulgada em 24/02/1891. 38

    Embora pautado em ideais liberais e organizado segundo o modeloconstitucional norte-americano, a realidade institucional do Estado brasileiro noperíodo que se convencionou chamar República Velha (de 1889 a 1930) continuouapontando em sentido oposto. Nas palavras de Raymundo Faoro, o dogma doabstencionismo estatal mal resistiu ao primeiro mês de vida republicana. 39

    Instaurou-se um regime pautado em paradoxos. De um lado, atendia

    reivindicações antigas como a descentralização administrativa, o fim do votocensitário e a extinção do Poder Moderador. Ao mesmo tempo, mantinha umcontrole rígido sobre o governo e as pessoas, cerceando abertamente liberdadesindividuais e manifestações contrárias a seus interesses. Os primeiros anos daRepública foram conduzidos por Presidentes centralizadores e autoritários, o quecausou grande desconforto entre as elites e as lideranças regionais que haviamapoiado o golpe, ensejando uma crescente campanha voltada a retirar, ou ao

    as vantagens de governos fortes, dotados de amplo poder decisório, elogia a postura do GovernoProvisório de Deodoro: “A vantagem dahi decorrente foi inapreciável. Ninguém se deve desperceberde que, em momentos de reconstrucção política e jurídica de um paiz, recorrer ao PoderLegislativo importa em travar as rodas do carro, em empecer a obra conservadora que é precisooppôr às exaltações do liberalismo. Pelo número de seus membros, o Parlamento é, não raro, umórgão de confusão e, sem exceção, uma machina preguiçosa, de movimentos difíceis, de molasemperradas.”

    35 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 217.36CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 22-23. O Projeto ainda foi ligeiramente alterado pelo Decreto n.

    914-A, de 23/10/1890, sendo esta a versão encaminhada à Assembleia Constituinte.37

    LEAL, Aurelino. Op. cit ., p. 220-221. CERQUEIRA, Marcelo. Op. cit ., p. 22.38 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 224.39 FAORO,Raymundo. Op. cit ., p. 576-577.

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    menos atenuar, o caráter militar do regime. 40O Presidente era, na prática, “(...)um monarca sem coroa, um rei sem trono.” 41

    A centralização do poder e o autoritarismo presidencial foram traçosconstantes (e acentuados com a Reforma Constitucional de 1926, durante ogoverno Arthur Bernardes, na qual a autonomia federativa foi limitada e foramincorporados elementos nacionalistas e centralizadores 42 ), assim como aparticipação ativa do Estado no domínio econômico.O intervencionismo estatal sefazia presente nas relações federativas, sendo comum o embate entre podercentral e governos locais. A liberdade individual era frequentemente tolhida,comsucessivas decretações de estado de sítio em razão de numerosos conflitosque se avolumavam (por exemplo, o governo Arthur Bernardes, de 1922 a 1926,foi inteiramente conduzido sob estado de sítio 43 ). O poder político e o podereconômico mantinham relações um tanto promíscuas, numa interferênciarecíproca pautada em larga dependência da atividade produtiva em relação aoEstado. Em síntese:

    A democracia oligárquica da República Velha vestia a fantasia do liberalismo, masfalseava o voto, amparava-se nos ‘coronéis’ do interior, proibia as associaçõesindependentes e reprimia a imprensa. Os andrajos da ideologia oficial importada malcobriam as engrenagens de um aparato público que articulava os interesses dedistintas oligarquias estaduais sob o comando dos financistas, exportadores e donosde fazendas do complexo cafeeiro paulista. 44

    Igualmente merecedora de transcrição é a análise de Antônio Paim:

    O elemento mais característico de nosso período republicano (...) é, sem dúvida, aascensão do autoritarismo político. Durante largo período, trata-se apenas de práticaautoritária. Nessa fase, elimina-se a representação, mediante o expediente depromover o reconhecimento dos mandatos parlamentares, a partir do Governo CampoSales, mas se mantendo intocada a Constituição. Sucedem-se os desrespeitos àsliberdades consagradas pela Carta Magna, seguidos sempre da preocupação de salvaras aparências desde que o Parlamento era instado a votar os estados de sítio. Talvez ahistória política brasileira na República Velha é que tenha inspirado a tese segundo aqual, no Brasil, a prática nada tem a ver com a teoria. De fato, ao longo das quatroprimeiras décadas republicanas, tivemos um arcabouço constitucional flagrantementecontrariado pela atuação dos governantes. 45

    Interessante notar que, na visão de autores da época como Oliveira Viana, oautoritarismo era necessário para permitir a transição da sociedade brasileira de

    40LEAL, Raymundo. Op. cit ., p. 219.41 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 249.42 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 236-237.43 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 254.44 MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Liberdade versus Igualdade . O Mundo em

    Desordem. 1914-1945. Vol. I. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 295-296.45 PAIM, Antônio. Oliveira Viana e o pensamento autoritário no Brasil. in VIANA, Francisco José

    de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras . Brasília: Senado Federal, 1999. p. 11.

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    um modelo patriarcal e verticalizado para um verdadeiro liberalismo. Comoexplica Antônio Paim, esta linha de pensamento defendia que o país precisava“(...) de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político sejacapaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se transformarem liberal.” 46 Tinha-se certo, portanto, que o modelo de governo forte ecentralizador não era algo incompatível com o desenho constitucional vigente,antes ao contrário, figurava verdadeira condição para que o liberalismo sematerializasse.

    No plano das relações econômicas, se, de um lado, mantém-se vivo opredomínio da exportação de produtos primários como base da atividadeeconômica nacional (ainda atrelado a um conjunto de suportes estatais), inicia-seum tímido processo de industrialização ainda na década final do Século XIX.Processo que se desencadeia pautado em estímulos oficiais, financiamentopúblico e garantia de mercado por meio de medidas protecionistas. 47

    Na década de 1920, as fortes oscilações no preço do café afetaram o delicadoequilíbrio de poderes vigente, levando os grandes plantadores a pressionarem ogoverno no sentido de ampliar as medidas de proteção, socializando as perdasfinanceiras decorrentes do seu insucesso comercial. As oligarquias que até entãocontrolavam os governos central e dos principais Estados passaram a serfortemente contestadas, assim como todo o modelo político e econômico vigente:

    (...) o princípio federativo tornou-se na verdade a lei do mais forte, a lei dos clãs. Nadamais natural, portanto, que as revoltas se sucedessem, tanto do lado das facções quese viam alijadas, como daquelas que não se conformavam em assistir aodesvirtuamento dos preceitos constitucionais. 48

    A crise batia forte às portas da primeira república brasileira. O autoritarismopresidencial e a centralização que comprometia a autonomia federativa eramcausas de queixas generalizadas. A elas se unia o inconformismo de váriasregiões contra o domínio exercido pelos Estados mais ricos, que se alternavam nogoverno (Minas Gerais e São Paulo, em acordo de alternância conhecido como

    política do café com leite ). A instabilidade econômica crescente decorrente daderrocada do cultivo cafeeiro, que se aprofundou com a crise de 1929, levou asituação política do país ao ponto de ebulição que culminou com a ruptura doregime vigente. 49

    Novamente o discurso do liberalismo veio a tona. O reformismo preconizadopelos líderes revoltosos resgatava antigas promessas de contenção do poderestatal, repúdio ao autoritarismo, respeito às liberdades individuais, garantia delisura no processo eleitoral, autonomia federativa, redução da força política dasoligarquias cafeeiras. 50 Mas, como explicam Bonavides e Paes de Andrade, “(...) omovimento, fazendo-se vitorioso, introduziu unicamente medidas paliativas,

    46 PAIM, Antônio. Op. cit ., p. 28.47 FAORO, Raymundo. Op. cit ., p. 575-576.48

    BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 254.49 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 261-262.50 MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Op. cit. , p. 295-296.

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    ligeiras, superficiais, enfim, remédios cuja aplicação demonstrava não haverninguém chegado à raiz do problema.” 51

    III. CONSTITUIÇÃO DE 1934 E CARTA DE 1937: DIREITOS SOCIAIS EM UMESTADO INTERVENTOR

    Nos meses de outubro e novembro de 1930teve curso um golpe de estadoque levou à deposição do então Presidente Washington Luis, substituído porGetúlio Vargas, líder revolucionário que governou o país pelos 15 anos seguintes.Omovimento sedicioso sustentou-se em segmentos sociais diferentes, comolideranças políticas regionais do Nordeste e do Sul, militares de alta e baixapatente, pensadores liberais e, pouco após a tomada do poder, também emmovimentos autoritários (como o Movimento Integralista Brasileiro, associação denatureza fascista). 52 E a natureza autoritária e centralizadora do novo governologo ficou evidente, assim como a influência ideológica vinda dos novos regimes

    de orientação fascista que se espalhavam pela Europa. 53 Ilustrativo é o Decreto n. 19.398, de 11/11/1930, que instituiu o Governo

    Provisório sob o comando de Getúlio Vargas e determinava, entre outras medidas,o fechamento de todos os Legislativos nacionais, concentrando suas funçõesnoPoder Executivo (artigo 2º); destituía os Governadores de Estado, substituindo-ospor interventores nomeados por Vargas (art. 11); conferia ao Governo Provisório opoder de alterar dispositivos constitucionais (art. 4º); suspendia garantiasconstitucionais dos cidadãos (art. 5º); e criava um Tribunal Especial para

    julgamento de crimes políticos (art. 16). 54 Não deixando margem a dúvidas acerca de sua veia autoritária, entre

    novembro de 1930 e julho de 1934, Getúlio Vargas governou o país por meio deDecretos, não reconhecendo na Constituição de 1891, formalmente ainda emvigor, limites para sua autoridade. Mais uma vez a Teoria do PoderRevolucionário foi lembrada e invocada para legitimar as decisões do chefe domovimento que se afirmava revolucionário.

    Segundo Antônio Paim, a expressão autoritarismo instrumental , cunhada porWanderley Guilherme dos Santos, ilustra de maneira ótima o modelotradicionalmente adotado no Brasil: o autoritarismo é um instrumento transitórioa que cumpre recorrer a fim de instituir no país uma sociedade diferenciada,capaz de dar suporte a instituições liberais autênticas. Justifica-se, assim, a

    junção de discursos liberais e centralizadores, em uma paradoxal combinação deelementos excludentes. 55

    51 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 262.52 CASTRO, Araújo. Op. cit ., p. 25.53 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 263. A herança política recebida por

    Getúlio Vargas, oriundo do Estado do Rio Grande do Sul, vem de Julio de Castilhos e Borges deMedeiros, líderes locais que controlaram o governo durante mais de três décadas e que sempre

    devotaram “o mais solene desprezo pelo liberalismo”. PAIM. Op. cit ., p. 11-12.54 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 275 e 284-285.55PAIM, Antônio. Op. cit. , p. 27.

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    Foi neste contexto que se iniciou a construção de uma ampla legislaçãosocial, direcionada principalmente aos trabalhadores urbanos, um grupo aindapequeno em um país predominantemente rural (durante o período da RepúblicaVelha, houvera apenas medidas isoladas, como a Lei de Acidentes de Trabalho,de 1919, ou a Lei Eloy Chaves, que criou o instituto de previdência dosferroviários 56 ).Em uma sucessão de atos, o Governo Provisório criou o Ministériodo Trabalho (Decreto 19.433, de 26/11/1930), instituiu órgãos administrativospara solução de conflitos individuais e coletivos, organizou sindicatos e crioumedidas atinentes a limitação da jornada de trabalho, regras de segurança ehigiene nas fábricas e sistemas deprevidência social, entre outras:

    Nascera do Governo Provisório de Vargas e da Revolução de 30, menos um Estado liberal doque um embrião de Estado social, a que Vargas com a sensibilidade de seu oportunismoatualizante e de seu gênio político precursor, imprimia velocidade histórica. O Estado socialgerminou, pois, sob a égide de seu poder, debaixo de uma controvérsia ideológica. Sem Vargas eleteria padecido de um retardamento imprevisível, provavelmente de várias décadas. 57

    Finalmente, após grande pressão de diferentes correntes (concentradasespecialmente em São Paulo), que exigiam o restabelecimento da normalidadeinstitucional e da ordem constitucional, e acuado pela crise econômica que seespalhava pelo país em consequência do crash de 1929, o governo Vargasprocurou atenuar sua veia autoritária. 58 Em maio de 1932, por meio do Decreton. 21.402,foi convocada eleição para compor Assembleia Constituinte em maio de1933 (o grande lapso temporal foi justificado pela necessidade de reorganizar osistema eleitoral).O mesmo ato nomeou comissão para redigir o anteprojeto deConstituição e o Decreto n. 22.040, de 01/11/1932, desenhou com minúcias oprocedimento legislativo a ser observado pela Constituinte. 59

    A Assembleia Constituinte foi instalada em 15/11/1933 e promulgou a novaConstituição em 16/07/1934. Seus trabalhos foram realizados em um ambientebastante conturbado, no qual não havia liberdade de imprensa e o governoexercia constante controle, ameaçando a Assembleia de intervenção. 60Aindaassim, pode-se considerar que a Constituição de 1934 foi elaborada em umperíodo de relativa abertura democrática (para os padrões da época,naturalmente), materializando a preocupação vigente em restabelecer o equilíbriodas relações institucionais e romper com o modelo autoritário implantado.

    56 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 264-265.57 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 266.58 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 285.59 POLETTI, Ronaldo. Constituições Brasileiras: 1934 . Vol. III. Brasília: Senado Federal, 2001. p.

    21-25. Hans Kelsen, em resposta a consulta que lhe foi formulada acerca da legitimidade daAssembleia Constituinte, posto que convocada por meio de Decreto do Governo Provisório,sustentou as prerrogativas de um governo formado por meio revolucionário, que exprimia,portanto, a vontade popular, fundamento último de validade de todas as normas. KELSEN, Hans.A Competência da Assembleia Nacional Constituinte de 1933/1934. in SOLON, Ari Marcelo.Teoria da Soberania como Problema na Norma Jurídica e na Decisão. Porto Alegre: Sergio AntonioFabris, 1997. p. 211-219.

    60 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 282-283 e 289. Nota que merecedestaque é o fato de a Assembleia de 1933/1934 ter sido a única na história brasileira a exercerfunção constituinte exclusiva e se dissolver após a promulgação constitucional.

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    Seu texto sofreu forte influência do constitucionalismo social , presente naConstituição de Weimar, de 1919, e na breve Constituição republicanaespanhola, de 1931, e incorporou os avanços trazidos pela legislação socialeditada nos anos iniciais do governo Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo, foipermeada de elementos típicos do pensamento fascista (como a presença de 40representantes classistas indicados pelo Governona Assembleia Constituinte jáindicava 61 ), manifestos na aproximação entre Estado e classes trabalhadoras e nouso do Direito como instrumento de controle social. 62De toda sorte, é consideradao marco inicial do Estado Social brasileiro.

    A Constituição de 1934 é ambígua na medida em que, em meio a um cenáriode instabilidade e tendências autoritárias, tenta elevar valores democráticos e de

    justiça social, aglutinando a pluralidade de forças sociais presentes no espectropolítico:

    Todos os desejos estavam contemplados. A Constituição consagrava as liberdades políticasclássicas e as estendia, assegurando o direito de voto às mulheres e o sufrágio secreto.

    Reafirmava o federalismo e as autonomias estaduais, atendendo aos reclamos dos partidosrepublicanos paulista e mineiro. Instituía um conjunto de direitos sociais e trabalhistasimpensáveis no antigo regime. Mandava nacionalizar, progressivamente, os bancos, empresas deseguros e minas. Determinava ao poder público estimular ‘a educação eugênica’, incentivar ‘a lutacontra os venenos sociais’ e socorrer ‘as famílias de prole numerosa’. 63

    Em poucos anos, contudo, o frágil equilíbrio democrático ruiu e o governoVargas escancarou seu lado autoritário. Em 10/11/1937 o Presidente promoveuuma ruptura institucional, dando início ao período denominado de Estado Novo(mesma expressão usada por Salazar em Portugal).Imediatamente fez outorgaruma nova Constituição, pensada de forma a conferir suporte jurídico ao regimeditatorial, nacionalista e militarista. 64

    O Estado Novo foi concebido a partir de múltiplas influências vindas daItália de Mussolini, da Espanha de Franco e, principalmente, de Portugal eSalazar, todos regimes autoritários de orientação ideológica fascista.A relaçãoestabelecida no Brasil entre o governo e os trabalhadores (de proximidade quasecúmplice), contudo, se diferenciava de todos estes, criando um traço identitárioúnico para o que pode ser chamado de Getulismo e deu origem à Era Vargas 65 .

    Note-se que Francisco Campos, jurista que elaborou a Constituição de 1937,esforçava-se por negar-lhe a natureza autoritária e a influência de ideologias

    fascistas:

    61 Determinação contida no Decreto n. 22.653, de 20/04/1933, que conferia ao Ministério do Trabalho a escolha de 20 representantes de empregados e outros 20 de empregadores, incluindofuncionários públicos e profissionais liberais. CERQUEIRA. Op. cit., p. 8 e 25-26.

    62 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 276 e 289. Constituição Federaldisponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm

    63MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Op. cit. , p. 301.

    64BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 339-340. MAGNOLI, Demétrio;BARBOSA, Elaine Senise. Op. cit. , p. 306-307.

    65 MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Op. cit ., p. 309.

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    Poderia haver ao lado ou à sombra da Constituição de 1937 ideologias ouindividualidades fascistas. (...) Mas a Constituição de 1937 não é fascista, nem éfascista a ditadura cujos fundamentos são falsamente imputados à Constituição. Onosso regime, de 1937 até hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal, sem odinamismo característico das ditaduras fascistas, ou uma ditadura nos moldesclássicos das ditaduras sul-americanas.

    (...)

    Impunha-se, portanto, transformar as instituições políticas antes que elas fossemdestruídas. Foi o que fez a Constituição de 1937. Ela refletiu as contingências domomento. Impunha-se armar o Estado contra a agressividade dos partidos daextrema, tanto mais quanto estes partidos pretendiam, valendo-se das franquiasliberais do regime, atacá-lo nos seus fundamentos. Eles pretendiam usar da liberdadeprecisamente para destruí-la. 66

    A Carta de 1937 alterava as relações federativas, fortalecendo a União. Entreoutras medidas, autorizada o Presidente a nomear interventores e a transformarEstados em territórios sob administração da União. A divisão de poderes tambémera afetada, permitindo ao chefe do Executivo criar leis ou rever decisões daSuprema Corte, por exemplo. Criava, ainda, a figura do Estado de Emergência,situação que permitia ao Presidente exercer plenos poderes, dispensando ofuncionamento do Legislativo. 67

    No plano dos direitos sociais, a Carta reproduzia os direitos contemplados naConstituição anterior e ainda acrescentava novos. Este esforço por fortalecer osistema de proteção social era necessário ao projeto de poder do governo Vargas,que se valia dele como instrumento para controle social. Alguns dispositivosconstitucionais evidenciam tal uso do Direito, característica presente na ideologia

    fascista orientada para a construção de um corporativismo estatal.A afirmação do trabalho como ‘dever social’ (art. 136), o controle estatal

    sobre os sindicatos (art. 138), a proibição de greve e lock-out, definidos como“recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com ossuperiores interesses da produção nacional” (art. 139), ou a organização daatividade produtiva em corporações colocadas sob assistência e proteção doEstado (art. 140) são exemplos da forte presença ideológica de modelos voltados a

    66 CAMPOS, Francisco. A Constituição de 1937 e sua Vigência. in PORTO, Walter Costa.Constituições Brasileiras: 1937 . Vol. IV. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 41-42.

    67 Constituição Federal de 1937 disponível em:

    www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm . Merece menção o eloquentePreâmbulo acrescentado à Constituição, no qual se nota a preocupação do regime em justificarseus atos de força. Veja-se seu trecho inicial:

    “Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamenteperturbada por conhecidos fatores de desordem resultantes da crescente agravação dos dissídiospartidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e daextremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se emtermos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil;

    Atendendo ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se toma dia adia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente;

    Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de meios normais depreservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo;

    (...)”

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    fortalecer a concentração de poderes no Estado eo exercício derigoroso controlesocial.

    Mais algumas notas sobre a Constituição de 1937 merecem destaque. Énotável como seu texto foi pouco aplicado, a exceção dos dispositivos quelegitimavam o regime autoritário, 68 embora tenha chegado mesmo a ser objeto deemendas elaboradas pelo Presidente (as ‘Leis Constitucionais’, repudiadasinclusive por Francisco Campos, que entendia faltar ao chefe do Executivo onecessário poder constituinte). 69 Outro dado significativo era a previsão, em seuart. 187, da realização de plebiscito (na verdade, referendo) para sua ratificação, oque nunca aconteceu, levando diversos juristas (inclusive apoiadores de primeiromomento) a afirmar a inexistência de Constituição.

    Diante deste contexto, percebe-se que a década de 1930 foi marcada porambiguidades. Ao mesmo tempo em que o país teve que viver sob um regimeautoritário, experimentou o nascimento e a expansão de um sistema de proteçãosocial que, em grande parte, está em vigor até hoje. Os direitos sociais foramconcebidos em um contexto no qual serviam aos propósitos de um governopreocupado em exercer controle sobre a sociedade, mas, ao mesmo tempo,permitiram uma melhoria significativa nas condições de vida de uma parcelaenorme do povo brasileiro.

    Finalmente, em outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto e, diante danecessidade de restabelecer a normalidade democrática e o controle sobre o poderestatal, no ano seguinte uma nova Constituição foi elaborada.

    IV. PARA ONDE CAMINHA O BEM-ESTAR SOCIAL: UMA FRÁGIL

    DEMOCRACIA (1946) E UMA LONGA EXPERIÊNCIA AUTORITÁRIA (1967)Desde o início de 1945, Getúlio vinha adotando medidas para uma gradual

    abertura democrática, como as reformas eleitorais e administrativas implantadaspela Lei Constitucional n. 9, de 28/02/1945, que modificou amplamente o textoconstitucional preparando o país para a realização de eleições. O inconformismocom o regime, disseminado dentre as elites políticas, fez com que este grupo nãovislumbrasse em tais ações uma efetiva intenção do ditador em abandonar ogoverno:

    As forças políticas se dividem. Setores populares, sindicais, o PC [Partido Comunista]e o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] lutam pela ‘Constituinte com Getúlio’;enquanto liberais e progressistas ligados ao PSD [Partido Social Democrata] e à UDN[União Democrática Nacional] pediam ‘Todo poder ao judiciário’. Prevaleceram estesúltimos, como se sabe. 70

    Em 29/10/1945, um golpe de estado fortemente apoiado por liderançasmilitares pos fim à Era Vargas.

    68

    BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 342.69 CAMPOS, Francisco. Op. cit., p. 42.70 CERQUEIRA, Marcelo. Op. cit ., p. 26.

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    No regime constitucional vigente não havia a figura do Vice-Presidente e oLegislativo nacional nunca se reuniu. Assim, a linha sucessória estabelecida naCarta de 1937 conferiu a chefia do Poder Executivo interinamente ao presidentedo Supremo Tribunal Federal, Ministro José Linhares.Assim que assumiu ocargo, o novo governante promoveu reformas constitucionais tendentes a aboliras feições mais autoritárias da Carta de 1937,como a extinção do Tribunal deSegurança Nacional, a suspensão do estado de emergência e a concessão depoderes constitucionais ao Congresso que seria eleito (Leis Constitucionais n. 12a 16, todas de novembro de 1945), além de convocar eleições gerais para o dia 02de dezembro de 1945. 71

    Merece destaque, ainda, como uma espécie de réquiem da ditadura,o artigo2ª da Lei Constitucional n. 15, de 26/11/1945, que conferiu ao Presidente a sereleito a possibilidade de exercer todos os poderes inerentes à legislatura ordináriaque coubessem à União, expedindo os atos legislativos que julgasse necessários,enquanto não estivesse promulgada a nova Constituição. 72

    O pleito correu em clima de relativa euforia diante da perspectiva derestabelecimento da normalidade democrática, embora ainda persistissemanimosidades entre grupos rivais. De toda sorte, houve razoável participaçãopopular no processo eleitoral, manifestando-se diversas correntes polarizadasentre a defesa da pessoa de Getúlio Vargas e sua linha política e uma francaoposição ao regime até então vigente. Dente as notas mais significativas arespeito deste pleito, tem-se a permanência de diversas figuras de destaque nogoverno Vargas na vida política nacional (inclusive ele próprio, eleito Senador),não tendo havido um movimento significativo no sentido de romper com a linhadominante até então. Outro dado curioso foi a participação do Partido

    Comunista, pela primeira vez legalmente autorizado a concorrer, que elegeu 14deputados e 1 senador. 73 A Assembleia foi instalada no dia 05/02/1946 e iniciou os trabalhos

    destacando uma comissão de 37 parlamentares incumbidos de elaborar o projetode Constituição. Pela primeira vez na história nacional o documento base nãonasceu no Poder Executivo, mas na própria Constituinte, que trabalhou a partirdo texto de 1934. 74

    A Constituição de 1946 teve clara orientação democrática, refletindo apreocupação dominante em restaurar o equilíbrio institucional e a autonomiafederativa, assim como conter os excessos do Poder Executivo. Além de resgatarvários elementos da Constituição de 1934, especialmente no que tange àorganização do Estado, seu texto incorporou diversos elementos típicos daideologia dominante nos anos 1940 e 50, orientada para a implementação do

    71 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 351-352.72 CERQUEIRA, Marcelo. Op. cit ., p. 28.73 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 354-356. Merece notícia o fato de o

    novo Presidente eleito ser o último Ministro da Guerra do governo Vargas, o então General EuricoGaspar Dutra (aliás, nas duas eleições seguintes reforça-se a continuidade da linha políticainiciada por Getúlio Vargas, com a sua própria eleição em 1950 e a de seu sucessor, JuscelinoKubitschek, em 1955).

    74 BALEEIRO, Aliomar; LIMA SOBRINHO, Barbosa. Constituições Brasileiras: 1946 . Vol. V.Brasília: Senado Federal, 2001. p. 14.

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    bem-estar social, que preconizava a intervenção do Estado na ordem social eeconômica segundo o modelo de Bretton Woods (Estado como vetor dodesenvolvimento econômico e social).Enfim, gerou-se um texto bastante avançadoe consentâneo com os ideais apregoados na Europa do pós-guerra. 75

    Promulgada no dia 18/09/1946, previu a ampliação dos mecanismos deintervenção na ordem econômica, estabelecendo limites ao direito de propriedade(art. 147) e a realização de uma reforma agrária (art. 156), por exemplo. Tambémreafirmou os direitos sociais, em lista ainda maior do que a de 1934, com ocuidado de dissociá-los da natureza autoritária e controladora imprimida peloregime anterior. 76 Por outro lado, como dito anteriormente, a transiçãodemocrática não foi acompanhada de uma efetiva ruptura ideológica. O mitoconstruído durante a Era Vargas de que os direitos sociais eram algo como umadádiva conferida por um grande e zeloso pai não foi desfeito, ao contrário. Restouincorporado pelo discurso da maioria das lideranças políticas, que, “(...) ao invésde trilharem o duro caminho do esclarecimento e da penetração dos mecanismos

    de decisão democrática pelo tecido social, preferiram o caminho fácil dopopulismo, no estilo inaugurado por Vargas.” 77 Quanto a este último aspecto, importante destacar que a evolução dos

    direitos sociais nas Constituições brasileiras deve ser analisada muito mais sob oprisma de sua índole, dos fins que por seu intermédio foram pretendidos, do quesob o aspecto textual. De fato, entre as Constituições de 1934, 37, 46 e asseguintes, não há diferenças substanciais de redação, aparentando até certoimobilismo em face das sensíveis mudanças conceituais e reais que afetaramestes institutos ao longo de décadas. Por outro lado, na leitura de Bonavides ePaes de Andrade, “(...) são largas as mudanças e podem ser aferidas em toda a

    sua extensão, uma vez postas em conexidade com os capítulos da lei social,pertinentes à ordem econômica, à família, à educação e à cultura (...)”, 78 além,por óbvio, das tintas ideológicas presentes em cada regime.

    As largas promessas transformadoras incorporadas à Constituição, contudo,foram frustradas por um conjunto de obstáculos jurídicos e políticos quetornaram muito difícil sua vida: “Ninguém percebeu que a Constituição por si sónão poderia garantir os princípios expressos em seu texto. Não se percebeusobretudo que essa ambiguidade se tornaria insustentável por muito tempo.” 79

    A Constituição materializava a preocupação em consolidar o liberalismopolítico e o Estado de Direito, combinados a uma ideologia anti-individualista,que assinalava o protagonismo estatal em matéria de desenvolvimento econômicoe social. Tinha, contudo, que conviver de um lado com governos populistas, quemantinham uma relação estreita, de falsa cumplicidade com as classes

    75 WACHTEL, Howard M. Os Mandarins do Dinheiro. As origens da nova ordem econômicasupranacional. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 37-48.Constituição Federal de 1946 disponível em:www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm

    76 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 409-410.77

    BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 410.78BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 321-322.79BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 410.

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    trabalhadoras e, de outro, com uma elite fortemente conservadora e refratária aum modelo de bem-estar social pleno.

    A consequência inevitável foi o progressivo esvaziamento da força normativaconstitucional. Dois episódios ilustram o afirmado.

    O texto de 1946 trazia um vasto conjunto de normas classificadas comoprogramáticas, cujo conteúdo não contemplava comandos concretos, masprogramas de ação, objetivos a serem perseguidos pelo Estado. A títuloexemplificativo, refira-se o disposto no artigo 147 que condicionava o uso dapropriedade ao bem-estar social, 80 demandando a elaboração de lei que definisseo conteúdo deste conceito indeterminado e indicasse hipóteses concretas quepermitissem sua aplicação. A resistência em conferir efetividade à Constituiçãofoi endossada pela teoria jurídica que cuidou de incorporar e difundir a teoria danorma programática , de origem italiana. Segundo esta tese, normasconstitucionais de semelhante natureza não vinculam seus destinatários,dependendo de complementação legislativa e ações administrativas cuja adoção éuma faculdade das respectivas instâncias.

    O enorme debate instalado no início dos anos 1960 acerca da realização dareforma agrária é convenientemente ilustrativo. O artigo 156 determinava aadoção de políticas voltadas a fixar o homem no campo, garantindo acesso à terrae priorizando o desenvolvimento das áreas mais pobres do país. 81 Mais de quinzeanos após a promulgação do texto constitucional, nenhuma medida maisabrangente houvera sido tomada no sentido de conferir efetividade a estedispositivo. E, toda vez que alguma organização social se mobilizava demandandoações concretas, a reação dos grupos conservadores era imediata e, não raro,extremamente violenta, em regra rotulando tais iniciativas como manifestaçõescomunistas.

    Outro exemplo da baixa força normativa constitucional (e das instituiçõesestatais em geral) se extrai da sequência de fatos que se seguem à renúncia doPresidente Jânio Quadros (que tomou posse em fevereiro de 1961 e renunciou em25 de agosto do mesmo ano). Dispostos a não permitir a posse do Vice-Presidente, João Goulart, ao argumento de que este seria alinhado com correntesda esquerda comunista, os ministros militares mobilizaram as Forças Armadas eengendraram um golpe de estado.

    Buscando conter a espiral de violência que fazia avizinhar uma guerra civil,construiu-se uma solução conciliatória, emendando-se o texto constitucionalpara alterar o regime de governo do presidencialismo para o parlamentarismo(por meio da Emenda Constitucional n. 04, de 02/09/1961, cujo teor foisubmetido a referendo popular, acabando por ser revogada pela EC n. 06, de23/01/1963). Em outras palavras, diante de uma barreira constitucional,alterou-se a Constituição para atender a interesses momentâneos. 82

    80 Art. 147. Ouso da propriedade será condicionado ao bem-estarsocial. A lei poderá, comobservância do disposto no art. 141, § 16, promovera justa distribuição da propriedade, com igualoportunidade paratodos.

    81

    Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendoplanos de colonização ede aproveitamento das terras públicas.Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles,oshabitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.

    82 Excelente relato dos fatos que envolvem esta grave crise, que por pouco não resultou em

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    Este último caso ilustra o ambiente de fortes instabilidades políticas com oqual a Constituição de 1946 conviveu durante seus 21 anos de vida, onde adisputa pelo poder frequentemente seguia rumos estranhos ao jogodemocrático. 83 De fato, entre 1950 e 1964 houve uma sucessão de conflitosinternos e tentativas de golpe de estado, até a bem sucedida derrubada dogoverno João Goulart, em 01 de abril de 1964, em um movimento liderado pelasForças Armadas e apoiado por amplas camadas da sociedade. 84

    O novo regime prometia conter a guinada à esquerda e a ameaça de expansãodas forças comunistas , refletindo o discurso então vigente nas Américas que atudo procurava justificar. Era preciso, ainda, controlar as instabilidades sociais,as grandes greves e manifestações, a crise econômica e o surto inflacionáriovividos pelo país. 85 Tudo isto com forte suporte norte-americano, cuja influênciano hemisfério sul se refletia nas escolhas ideológicas e político sociais. Oliberalismo econômico voltou a ser defendido publicamente como uma alternativanecessária, criticando-se abertamente regras que autorizavam o controle sobre

    remessas de lucros para o exterior ou estatização de empresas que explorassematividades de interesse nacional.É difícil, contudo, identificar um direcionamento ideológico claro que

    caracterize os primeiros anos do regime militar. Além do discurso comum docombate à subversão, às ameaças da esquerda comunista ou à criseinflacionária, não havia consenso entre as lideranças sobre qual rumo imprimirao país. Ao mesmo tempo em que se glorificava a livre iniciativa, as liberdadesindividuais eram tolhidas. O movimento que justificava o golpe como único meiopara proteger a Constituição, logo tratou de recortá-la. Como explica LeonardoAugusto Barbosa:

    O caráter contraditório e ambíguo do ato institucional aponta, ainda, para ainexistência de clareza acerca dos rumos que o movimento militar deveria adotar apartir da deposição de Jango. (...) A par da ânsia punitiva e de ‘diretrizes desaneamento econômico-financeiro traçadas por alguns ipesianos’, tudo o mais seriaimprovisado. O que fazer? Como organizar uma transição a curto prazo para um novogoverno civil? 86

    Mesmo sem um rumo definido, diversas mudanças na orientação ideológicae na organização do Estado brasileiro foram implementadas imediatamente após

    uma guerra civil e evidenciou a cisão da sociedade e das Forças Armadas entre correntes golpistase legalistas, encontra-se em TAVARES, Flávio. 1961: O Golpe Derrotado . Luzes e sombras domovimento da legalidade. Porto Alegre: L&PM, 2011.

    83 BALEEIRO, Aliomar; LIMA SOBRINHO, Barbosa. Op. cit., p. 24-26.84 BRANCO, Carlos Castello. Da Conspiração à Revolução. inOs Militares no Poder. De 1964 ao

    AI 5. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. p. 27-49.85 BALEEIRO, Aliomar; LIMA SOBRINHO, Barbosa. Op. cit., p. 28-29.86 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História Constitucional Brasileira . Mudança

    constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados,

    2012. p. 61. Em outra passagem, o mesmo autor destaca que o liberalismo econômico imprimidoao governo pelo General Humberto Castello Branco (chefe do Governo Provisório e primeiroPresidente militar) “(...) não era a ideologia da maioria dos civis ou do quadro de oficiais.”BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 71.

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    a deflagração do movimento golpista, cuidando o governo provisório em legitimarsuas decisões, mais uma vez, na Teoria do Poder Revolucionário, a mesma quefora invocada em 1889 e 1930.Como explica Carlos Castello Branco, nestemomento difundiram-se as doutrinas acerca do poder constituinte revolucionário,o que permitiu à intervenção militar despir-se da “(...) característica dos golpeshabituais para se transformar numa ação revolucionária, na medida em quegerou direito e reformou a Constituição.” 87

    A preocupação em conferir respaldo jurídico ao regime levou suas liderançasa discutir, imediatamente após o sucesso do golpe, os termos de um atonormativo capaz de justificar suas primeiras medidas. 88O primeiro AtoInstitucional não foi numerado, propunha-se a ser o único e de vigênciatemporária, subsistindo até a posse do novo presidente eleito no pleito previstopara o final de 1965. Editado em 09/04/1964, conferia poderes excepcionais aoschefes do movimento militar, autorizando-os a suspender direitos políticos,cassar mandatos eletivos, suspender garantias constitucionais como a

    estabilidade de servidores públicos civis e militares, entre outras medidasconsideradas essenciais à estabilização do país. Curiosamente, embora oPresidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, estivesse interinamente àfrente do Poder Executivo, o Ato Institucional foi assinado pelo Comando Supremoda Revolução , composto pelos Ministros Militares. 89

    Este Ato ainda modificou o procedimento para reforma constitucional,permitindo ao Presidente a iniciativa de Emendas, as quais seguiam um cursomais simples, podendo ser aprovadas por maioria absoluta (ao invés da maioriaqualificada de 2/3 dos parlamentares, regra aplicável às emendas de iniciativa doCongresso). Graças a este elemento facilitador, entre abril de 1964 e dezembro de

    1966, véspera da promulgação da nova Constituição, foram aprovadas 15Emendas Constitucionais, todas de iniciativa do Presidente e tendentes aimplantar uma nova ordem jurídica que reforçava os poderes do governo militar(além de mais 03 Atos Institucionais). 90 Embora formalmente não tenha sidorevogada, a Constituição de 1946 foi gradualmente desaparecendo, naufragandoante a produção legislativa do novo regime.

    Finalmente, quando quase se encerrava o ano de 1966, preocupado emrestabelecer sua imagem perante a sociedade brasileira e a comunidadeinternacional, o governo decidiu restaurar a ordem constitucional e, para tanto,

    87 BRANCO, Carlos Castelo. Op. cit., p. 49.

    88 O Preâmbulo do primeiro Ato Institucional, editado em 09/04/1964, traduz o conceito dePoder Revolucionário invocado pelo movimento militar: “A revolução vitoriosa se investe noexercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é aforma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, comoPoder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidadede constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte.Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória.Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco daNação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o únicotitular.”Portal de Legislação - Legislação Histórica -http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atos-institucionais#content

    89 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 53-55.90 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 56. BONAVIDES, PAULO; ANDRADE,

    PAES DE. Op. cit ., p. 429-430.

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    editou novo Ato Institucional (o de número 04, em 07/12/1966) conferindo aoCongresso Nacional poderes constituintes (no que se convencionou denominarPoder Constituinte Congressual ).91 Não houve, portanto, eleições para escolha derepresentantes com mandato específico para elaborar uma Constituição. Aliás,este mesmo Congresso estivera fechado entre 20 de outubro e 22 de novembro,após nova crise institucional que culminou com a cassação de mais algunsparlamentares, e caminhava a legislatura para seus dias finais (as eleiçõeslegislativas tinham sido realizadas em 15/11/1966 e os novos congressistastomariam posse em 15/03/1967). 92

    O processo constituinte teve início no Poder Executivo, que convocou umacomissão de juristas com a incumbência de elaborar um projeto de Constituiçãocapaz de “institucionalizar os ideais e princípios da revolução”, conforme expressono Ato Institucional n. 04. O trabalho da comissão, contudo, não agradou aogoverno e foi em grande parte rejeitado e substituído, cumprindo esta tarefa aCarlos Medeiros Silva (então Ministro da Justiça) e Francisco Campos (o mesmo

    que houvera preparado a Carta de 1937). 93 Estes cuidaram de afastar princípiosliberais ou o equilíbrio entre os Poderes, considerados anacrônicos e incapazes delidar com as crises política e social vividas pelo país. 94

    O Congresso Nacional recebeu o projeto de Constituição em 12/12/1966 e opromulgou em 24/01/1967, observando cronograma fixado pelo governo no AtoInstitucional n. 04. Nas instruções encaminhadas ao Legislativo junto com oprojeto foram estabelecidas diversas restrições, tendo chegado a ser indicadauma lista de dispositivos não emendáveis pelos parlamentares, além do prazopara o término dos trabalhos (que, se acaso não cumprido, implicaria na outorga da Constituição).Como destaca Marcelo Cerqueira, o regime militar começou a

    revogar a Constituição de 1946 já com seu primeiroAto Institucional e terminou oserviço em 1967, “(...) quando um Congresso limitado e intimidado pelascassações referendou o projeto de constituição proposto pelo primeiro presidentemilitar.” 95

    Semelhantes circunstâncias que marcaram o processo constituinte levamalguns autores a sustentar que o texto de 1967 teria sido, em verdade, outorgado,consistindo a atuação do Legislativo em mera formalidade incapaz de conferir àCarta a necessária legitimidade social. Assim é a incisiva colocação de Bonavidese Paes de Andrade: “Não houve propriamente uma tarefa constituinte, mas umafarsa constituinte.” 96

    A nova Constituição promoveu a centralização do poder, desequilibrando,mais uma vez, a federação e fortalecendo o Executivo nacional. Concedeu

    91 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 432-433.92 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 107.93 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 434-436.94

    BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 103.95 CERQUEIRA, Marcelo. Op. cit ., p. 8.96 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit ., p. 432.

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    atribuições legislativas ao Presidente, 97 permitindo-lhe, ainda, exercer poderesexcepcionais para fazer frente a situações de instabilidade.Formalmente, osdireitos e garantias individuais continuavam presentes. Viram-se contidos,entretanto, por disposições expressas ou pela remissão a complementaçõeslegislativas. O mesmo se nota quanto aos direitos políticos, que receberam igualtratamento, além de ter sido confirmada a eleição indireta para Presidente,reproduzindo dispositivo inserido pelo Ato Institucional n. 02. 98

    No que tange ao controle sobre o domínio econômico, percebe-se umabrandamento do modelo adotado até então, facilitando-se a instalação deempresas estrangeiras e o trânsito de capitais, em um processo dedesnacionalização da atividade produtiva, sempre muito atrelada aos interessesnorte-americanos na região. 99 As relações trabalhistas foram diretamenteafetadas, pois o governo logo cuidou de desmobilizar as associações detrabalhadores, proibiu sua organização em partidos políticos (aliás, desde aedição do Ato Complementar n. 04, de 20/11/1965, só havia dois partidos

    políticos no país, representando situação e oposição, a ARENA e o MDB,respectivamente) e manteve rigoroso controle sobre os sindicatos.Quanto aos direitos sociais prestacionais, a realidade vivida durante os

    sucessivos governos militares foi de esvaziamento normativo, sendo estesenvolvidos por políticas assistencialistas que novamente os apresentavam comofavores estatais para a população mais carente.Não havia, por evidente, umcompromisso do governo com os direitos fundamentais, antes ao contrário.“Talvez significasse que os militares viam em tais direitos construçõesinofensivas, que sempre poderiam ser parcialmente suspensas ou excepcionadasnaquilo que interessasse ao regime (...)”, completa Leonardo Augusto Barbosa. 100

    Se havia alguma dúvida quanto a esta falta de compromisso com direitos eliberdades, a edição do Ato Institucional n. 05, em 13/12/1968, cuidou deafastá-la. Elaborado em resposta a crescentes manifestações sociais e nos meiospolíticos de contrariedade ao governo e à falta de liberdade, o AI 5é considerado omais cruel de todos, a medida que escancarou a face autoritária do regime.

    Sua longa exposição de motivos e seus 12 artigos determinavam, entreoutras medidas, a suspensão da garantia do habeas corpus para determinadoscrimes; conferiam amplos poderes ao Presidente da República paradecretarestado de sítio, intervenção federal, suspensão de direitos políticos e restrição aoexercício de qualquer direito público ou privado; permitiam, ainda, ao chefe doExecutivo cassar mandatos eletivos e determinar o recesso do CongressoNacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, além de

    97 Por meio da edição de Decretos-lei. Anteriormente, o Ato Institucional n. 02, de 27/10/1965, já houvera autorizado o Presidente a editar Atos Complementares destinados a regulamentar seupróprio texto.

    98 Constituição Federal de 1967 disponível em:

    www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm99 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 104-105.100 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Op. cit., p. 116.

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    exercer amplos poderes legislativos durante o período de fechamento doCongresso. 101

    Os meses que se seguiram foram de severa repressão a toda sorte demanifestação considerada contrária ao regime que, por seu turno, tratava derespaldar juridicamente suas medidas, mesmo que para tanto fosse necessáriosubtrair dispositivos da Constituição. Após o AI 5, outros 12 Atos Institucionaisforam editados pelo Presidente, Marechal Arthur da Costa e Silva, e pela JuntaMilitar que o sucedeu em 30/08/1969, após o derrame que afastou o titular docargo e a recusa dos ministros militares em dar posse ao Vice-Presidente, PedroAleixo, um civil.

    Fechando esta efervescente produção normativa, foi editada a Emenda n. 1,em 17/10/1969. Considerada por muitos (inclusive o regime da época) uma novaConstituição, a Emenda incorporou ao texto constitucional as medidasimplementadas pelo AI 5 e todos os demais Atos editados no período, reforçandotremendamente a autoridade do Presidente e as restrições a direitos e garantiasfundamentais. 102

    Em resumo, havia uma Constituição formalmente promulgada por umCongresso intimidado, na qual direitos sociais e políticos e liberdades individuaiseram previstos de forma condicionada e oferecidos pelo governo de acordo comsua conveniência. O modelo de bem-estar social continuava, em alguma medida,existindo no plano constitucional, muito embora sua aplicação prática fosseprecária e não houvesse espaço para reivindicar sua efetivação.

    V. CONSTITUIÇÃO DE 1988: RENASCIMENTO DO BEM-ESTAR SOCIAL

    Foram longos 21 anos de governos militares de orientação abertamenteautoritária. Durante este período, o país experimentou severas oscilações entreperíodos de profunda crise e forte expansão econômica, incomparávelcrescimento dos centros urbanos e esvaziamento do campo, além de umexpressivo fluxo migratório das regiões norte e nordeste em direção ao sul esudeste do país, formando amplos bolsões de pobreza. A desigualdade social

    101 Os textos integrais de todos os Atos Institucionais podem ser encontrados no Portal deLegislação do Governo Federal: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atos-

    institucionais#content102 BONAVIDES, PAULO; ANDRADE, PAES DE. Op. cit., p. 443-444. Embora haja dúvidas

    sobre a natureza da Emenda n. 1, seu preâmbulo afirmava textualmente sua finalidade dereformar a Constituição vigente: “(...) feitas as modificações mencionadas, todas em caráter deEmenda, a Constituição poderá ser editada de acordo com o texto que adiante se publica.” Outrodado que evidencia a sobrevivência da Constituição de 1967 foi a edição da EmendaConstitucional n. 11, de 13/10/1978. Elaborada no período de abertura democrática e fruto deum longo processo de negociação entre governo e oposição, esta medida revogou a Emenda n.1/1969 e todos os Atos Adicionais posteriores, restaurando o texto original aprovado em 1967.

    Texto integral das Emendas n. 1/1969 e n. 11/1978 disponível em: PORTO, Walter Costa (org.)Constituições Brasileiras: 1967. Vol. VI-a. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 122.

    Emenda Constitucional n. 11/1978:

    Art. 3° - São revogados os Atos Institucionais e Complementares, no que contrariarem aConstituição Federal, ressalvados os efeitos dos atospraticados com base neles, os quais estãoexcluídos de apreciação judicial.

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    alcançou níveis até então desconhecidos, fomentando um rápido recrudescimentoda criminalidade organizada e da violência urbana.

    A oposição ao governo foi radicalizada, travando-se, entre meados dos anos1960 e 70, conflitos sangrentos com grupos armados de ideologia socialista quese organizaram na forma de guerrilhas. O nível de violência institucionalfoiassustador, as detenções arbitrárias uma constante, assim como odesaparecimento de opositores e as torturase mortes nas prisões. Especialmenteapós a edição do Ato Institucional n. 5, o regime mostrou sua face mais cruel,escancarando sua veia autoritária. 103

    A transição democrática, uma abertura lenta e gradual (expressão oficialadotada na época), teve início em fins dos anos 1970, durante o governo doGeneral Ernesto Geisel. Merecem menção as principais medidas de distensão quesucessivamente foram atenuando o fechamento do regime militar, em umcomplexo processo de negociações.

    O primeiro ato de maior peso (tanto simbólico quanto efetivo) foi a edição damencionada Emenda Constitucional n. 11/1978, conhecida popularmente comoa emenda que revogou o AI 5 . Por seu intermédio, o texto original da Constituiçãode 1967