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22 Ricardo Cravo Albin Dorival Caymmi Photo: Mario Thompson A extraordinária capacitação brasileira de incorporar, de deglutir, de ruminar as mais várias culturas – a meu ver, de resto, a contribuição mais original do Brasil para a história das civilizações , neste milênio – vai encontrar, justamente no nosso cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador e estimulante. Devo observar que as músicas populares de outros países como Alemanha, França, Portugal, Espanha, Rússia, Itália, toda a Escandinávia e tantos outros (à exceção dos Estados Unidos, onde o jazz se desenvolveu com vigor diferenciado) são muitíssimo mais discretas e – aí sim – avaliadas em modesto patamar cultural. Por quê? Porque a elas faltam as labaredas rejuvenescedoras tanto da miscigenação, quanto as de um país jovem. Não será apenas por incorporar a palavra popular que a MPB pode exibir, com tamanho luxo, sua melhor e mais nobre configuração: a interface da solidariedade que ela pro- põe. E – mais que isso – o que ela, concretamente, vem reali- zando ao longo deste último século. Mas, dirão alguns, não haverá exagero da parte de exege- tas apaixonados em atribuir a um conjunto de canções e artis- tas do povo tal nível de importância sócio-cultural ? Sim, até poderia haver, se a esse conjunto que hoje tem o simpático apelido de MPB faltasse um dado revitalizador chamado miscigenação. Pois sempre é útil lembrar-se que nossa música popular é fruto direto – e indissociável – do encontro interracial que culminou no país mulato que somos nós. A meu ver, a história da música popular brasileira nasce MPB A provocação da integração Foto: Mario Thompson

História da Música POPULAR Brasileira

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Ricardo Cravo Albin

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pson A extraordinária capacitação brasileira de incorporar, de

deglutir, de ruminar as mais várias culturas – a meu ver, deresto, a contribuição mais original do Brasil para a história dascivilizações , neste milênio – vai encontrar, justamente nonosso cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador eestimulante.

Devo observar que as músicas populares de outros paísescomo Alemanha, França, Portugal, Espanha, Rússia, Itália,toda a Escandinávia e tantos outros (à exceção dos EstadosUnidos, onde o jazz se desenvolveu com vigor diferenciado)são muitíssimo mais discretas e – aí sim – avaliadas emmodesto patamar cultural. Por quê? Porque a elas faltam aslabaredas rejuvenescedoras tanto da miscigenação, quanto asde um país jovem.

Não será apenas por incorporar a palavra popular que aMPB pode exibir, com tamanho luxo, sua melhor e maisnobre configuração: a interface da solidariedade que ela pro-põe. E – mais que isso – o que ela, concretamente, vem reali-zando ao longo deste último século.

Mas, dirão alguns, não haverá exagero da parte de exege-tas apaixonados em atribuir a um conjunto de canções e artis-tas do povo tal nível de importância sócio-cultural ? Sim, atépoderia haver, se a esse conjunto que hoje tem o simpáticoapelido de MPB faltasse um dado revitalizador chamadomiscigenação.

Pois sempre é útil lembrar-se que nossa música popular éfruto direto – e indissociável – do encontro interracial queculminou no país mulato que somos nós.

A meu ver, a história da música popular brasileira nasce

MPBA provocação da integração

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Cartola

botas de seus maridos. Refiro-me à maestrina e compositoraChiquinha Gonzaga, filha de marechal do Imperador, queteve a coragem de abandonar um casamento e montar casaprópria onde ousava ensinar não só piano, mas até violão, con-siderado maldito. E cito também uma rara pioneira –damaculta (era cartunista e pintora), Nair de Teffé, (a RIAN), casa-da com o Presidente Marechal Hermes da Fonseca, que teveigualmente o topete de abrir o Palácio do Catete em 1912para saraus de MPB, onde pontificavam poetas e músicospopulares, como Catulo da Paixão Cearense e AnacletoMedeiros.

Mesmo assim, os muitos sofrimentos impostos aos músi-cos e poetas do povo espraiavam-se pelas ruas das cidades doBrasil. Sofrimentos que – como me testemunharam pioneirosdo samba e do choro, como João da Bahiana, Pixinguinha,Donga e Heitor dos Prazeres – culminavam com o fato deserem presos nas ruas apenas pelo pecado de portarem umviolão,“coisa de capadócio, de desocupado, da negralhada”. Oude serem obrigados a entrar pela porta dos fundos do HotelCopacabana Palace (Rio) por serem músicos e “ainda por

no exato momento em que, numa senzala negra qualquer, osíndios começam a acompanhar as mesmas palmas dos negroscativos e os colonizadores brancos se deixam penetrar pelamagia do cantarolar das negras de formas curvilíneas. Esseamálgama maturado sensual e lentamente, por mais de qua-tro séculos, daria uma resultante definida há cerca de cemanos, quando é criado, no Rio, o choro e quando surgem omaxixe, o frevo e o samba.

Daí para cá, esses últimos cem anos, abertos tanto pelaAbolição da Escravatura (1888) quanto pela Proclamação daRepública (1889), assistiram à consolidação de uma revolu-ção cultural que nos redimiu: a dramática ascensão e formati-zação da civilização mulata no Brasil. E com ela, a consolida-ção de sua filha primogênita, a mais querida e a mais abran-gente, a MPB.

A história desses cem anos é, também, a história dos pre-conceitos e dos narizes retorcidos da cultura oficial, encastela-da na burguesia e na aristocracia oligárquica. Duas exceções àregra geral do preconceito devem ser registradas, até porqueenvolvem duas mulheres, logo elas que viviam sob o jugo das

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cima negros”, isso lá por volta dos anos 20, mesmo depois deos Oito Batutas de Pixinguinha terem excursionado, e comsucesso, a Paris , centro da cultura e da insolência comporta-mental do “années folles”.

Na verdade, acredito que, apenas no século XIX, a histó-ria da música popular fixaria os primeiros grandes nomesdaqueles que iriam formar as bases do que é hoje considerada,com pompa e circunstância, a música popular brasileira.Ressalte-se, desde logo, que música popular constituía umacriação que é contemporânea ao aparecimento das cidades.Deve-se deixar claro que música popular só pode existir ouflorescer quando há povo. Nos três primeiros séculos de colo-nização houve tipos definidos de formas musicais: os cantospara as danças rituais dos índios e os batuques dos escravos, amaioria dos quais também rituais. Ambos fundamentalmen-te à base de percussão, como tambores, atabaques, tantãs, pal-mas, apitos, etc. Finalmente, as cantigas dos europeus coloni-zadores que tinham berço nos burgos medievais dos séculosXII a XIV. Fora desse tipo de música, o que preponderavaera, com certeza, o hinário religioso católico dos padres.Ainda a registrar os toques e as fanfarras militares dos toscosexércitos portugueses aqui sediados, que foram os primeirosgrupos orquestrais ouvidos, ao ar livre, no Brasil.

Uma música reconhecível como brasileira começaria aaparecer quando a interinfluência desses elementos produzis-se uma resultante. Isso ocorreu, com mais clareza e maiorconfiguração histórica, quando as populações das cidadescomeçaram a se ampliar e a ocupar um espaço físico majoritá-rio. Nesse quadro geopolítico despontaram Salvador, Recife eRio de Janeiro, todas com forte influência negra. Essas popu-

lações, espalhadas pelas cidades, demandavam novas formasde lazer, ou uma produção cultural. E essa produção se fezrepresentar no campo da música popular pelos gêneros ini-ciais de lundu e de modinha. O lundu – basicamente negro noseu ritmo cadenciado – ostentava a simplicidade do povo nosseus versos quando cantado, comentando na maioria dasvezes a vida cotidiana das ruas. Já a modinha - basicamentebranca na sua forma de canção européia - exibia versos empo-lados para cantar o amor derramado às marmóreas musas,quase sempre inatingíveis. Dentro dessa configuração, come-çam a aparecer os primeiros que assumiram a chamada músi-ca popular com prioridade. Ou seja, com a exclusividade deabraçar uma qualificação musical capaz de ser cantada, outocada, ou até dançada, fora dos salões da aristocracia. Nasruas, nas praças, nos coretos ou nos guetos mais pobres.

Um dos primeiríssimos personagens de música populardentro desse contexto foi Xisto Bahia, que retomou a tradiçãode Domingos Caldas Barbosa, cujas modinhas irônicas leva-das à corte portuguesa no século XVIII se tinham transfor-mado em árias pesadonas quando D. João VI aportou no Rioem 1808, fugido da avalancha promovida por NapoleãoBonaparte na Europa. Nessa época, alguns poetas românti-cos começaram a escrever versos para serem musicados nãoapenas por músicos de escola mas por simples tocadores deviolão. Um desses, e dos mais prolixos, foi o Lagartixa, apelidocom que se tornou popular o poeta Raymundo Rebello, cujasmúsicas logo ganharam os violões anônimos das ruas.

Acredito que Xisto Bahia foi um dos mais completoscompositores exclusivamente populares do início da MPB doBrasil. Xisto, violonista, compositor e ator, começou sua car-reira em Salvador, onde nasceu em 1842, atuando para umatímida classe média, que então já se esboçava. No Rio logodepois, chegou a ser co-autor de Arthur Azevedo e foi aplau-dido pessoalmente pelo imperador. Com o fim do Império,Xisto entrou em desgraça e morreu pobre e abandonado.Tragédias, as da pobreza e do esquecimento, que cairiamcomo maldição por sobre a grande maioria dos vultos damúsica do povo, a partir daí.

No século XIX, a música ouvida pelas elites era, em geral,as óperas, as operetas e a música leve de salão. Os negros ou osbrancos amestiçados das camadas baixas executavam eouviam, via de regra, os estribilhos acompanhados por sons

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de palmas e violas. A reduzida classe média – que começou ase incorporar no segundo império – ouvia apenas os gêneroseuropeus, ou seja, música leve dos salões das elite: a polca, che-gada ao Brasil em 1844, a valsa e ainda a schotish, a quadrilha,a mazurca. Dentro dessa realidade, eis que aparece um raio deluz e de invenção, o mulato Joaquim da Silva Callado. Ele cria-ria o primeiro grupo instrumental de caráter refinadamentecarioca e popular no Brasil: o choro, palavra que inicialmenteindicava apenas uma reunião de músicos e só depois o nomede gênero musical.A criação do choro representa um momen-to mágico de interação da mistura de raças no Brasil, porquefruto do gênio e da criatividade do mulato brasileiro. O novogênero, uma música estimulante, solta e buliçosa, era executa-da à base de modulações e de melodias tão trabalhadas queexigiam de seus executantes competência e talento. E, muitasvezes, um virtuosismo que a maioria não possuía. A ponto talque os editores nem queriam mais editar Callado, que chega-ria, contudo, a ser condecorado pelo Imperador com a Ordemda Rosa (1879), morrendo logo depois vitimado por uma dasmuitas epidemias que grassavam no Rio de cem anos atrás,insalubre e sem esgotos sanitários.

Dentre todos os pioneiros, todavia, duas chamas indivi-duais logo se destacariam dos demais: Chiquinha Gonzaga eErnesto Nazareth.

De 1877 até pouco antes de sua morte, a primeira grandeautora de música popular no Brasil fez 77 peças teatrais e 2mil composições, entre as quais jóias como o tango “CortaJaca”e a modinha “Lua branca”. Chiquinha ainda teve corageme tempo para abraçar as causas mais nobres de sua época,como o abolicionismo, saindo muitas vezes de porta em portapara recolher donativos. A revolucionária Francisca tambémdeitou modas, desenhou seus próprios vestidos, fumou charu-tos, tornou-se notícia, caiu na maledicência popular. Mas fezde sua vida um ato de pioneirismo e coragem até hoje insupe-ráveis.

A pedido do cordão carnavalesco “Rosa de ouro”,Chiquinha compôs em 1899 a primeira marcha carnavalescapara o carnaval, o “Abre alas”. Foi ainda a fundadora da SBAT(1917) e morreu no Rio com 89 anos, cercada por uma áureade mito, um ícone tanto de transgressão social quanto da con-solidação da música popular.

De tão grande importância quanto Chiquinha - e talvez

até maior sob uma ótica estritamente musical – ErnestoNazareth era filho de modesta família da pequena classemédia. Aluno aplicado de piano, ele lançou o primeiro tangobrasileiro,“Brejeiro” que, no fundo, era quase um choro. Assimse iniciou uma carreira que o transformaria no compositormais original do Brasil, no dizer de Mário de Andrade: épopular e erudito ao mesmo tempo. Nazareth, contudo, des-prezava música popular e era obrigado a tocá-la em lugaresplebeus, como ante-salas de cinemas – onde aliás, era ouvidopor gente do porte de Darius Milhaud, que nele se inspiroupara compor algumas de suas peças. Rui Barbosa era outropersonagem famosíssimo que sempre ia ouvi-lo no cinemaOdeon.

Dentro dessa linha dos primeiros compositores popula-res para a classe média então emergente, quero registrar aindaum outro que considero de capital importância: Catulo daPaixão Cearense. Seu prestígio se consolidaria, de fato, nosprimeiros anos do século, com o advento das gravações mecâ-nicas. Pelos velhos discos da casa Edison, na voz do cantorMário, o prestígio de Catulo não pararia de crescer. Para quese tenha uma idéia da sua influência, ele foi o primeiro a intro-duzir o violão – instrumento então considerado maldito – noantigo Instituto Nacional de Música, em rumorosa audição(1908) corajosamente promovida pelo Maestro AlbertoNepomuceno.

A mais conhecida composição de Catulo,“O luar do ser-tão”(1910, gravada pelo Mário para Casa Edison), é usual-mente considerada o hino nacional dos corações brasileiros. Afamosa peça trouxe a glória definitiva a seu autor e tambémum “grave desgosto”, como chegou a confidenciar ao pianista epesquisador de MPB Mário Cabral: a acirrada disputa com oviolonista João Pernambuco, que se considerou desde logo oautor da música, fato veementemente contestado por Catulo.Aliás, João Pernambuco foi não só extraordinário músico, mastambém autor de obra curta mas interessantíssima, na qual sedestaca pelo menos um outro clássico, o choro “Sons deCarrilhão”.

Enquanto Catulo era o grande sucesso na CapitalFederal do país, um Rio ainda acanhado e que dava os primei-ros passos para se modernizar como grande cidade (“quandoo Rio se limpava da morrinha imperial”, no dizer de CarlosDrummond de Andrade), apareceu em 1912 um menino de

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Caetano Veloso

calças curtas tocando flauta melhor que gente grande. Essemenino virtuoso viria a ser o herdeiro de toda tradição musi-cal inaugurada e cultivada por Nazareth, Chiquinha, Callado,Patápio e Catulo, e também seria - pelo menos ao meu ver - oestruturador e o patriarca de toda a música que viria depoisdele: Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha.

Autor de vasta obra, em que pontifica uma das mais céle-bres páginas do cancioneiro, Carinhoso (com versos de Joãode Barro, o Braguinha), Pixinguinha criou inúmeros conjun-tos musicais dos quais se destacou “Os Oito Batutas”, o pri-meiro a excursionar fora do Brasil (1922, Paris), levando nabagagem o choro, o samba e o maxixe, todos eles temperadoscom o melhor da alma brasileira mulata e travessa. O MaestroAlfredo Viana foi também o primeiro músico brasileiro, jáconsagrado como flautista, compositor e chefe de orquestra, afazer arrojados arranjos orquestrais para as marchinhas esambas de carnaval em plena Época de Ouro da MPB (déca-da de 30).

O samba iria nascer da música à base de percussão e depalmas, produzida por esses negros e que podia atender pelosnomes de batucada, e até lundu ou jongo. A palavra de origemafricana (Angola e Congo), provavelmente corruptela da pala-vra “semba”, pode significar umbigada, ou seja, o encontro las-civo dos umbigos do homem e da mulher na dança do batu-que antigo. Pode também significar tristeza, melancolia(quem sabe da terra africana natal, tal como os blues nosEstados Unidos). A palavra samba, de resto, foi publicada pelaprimeira vez (3/2/1838) por Frei Miguel do SacramentoLopes Gama na revista pernambucana Carapuceiro: definiaentão mais um tipo de dança, sem maior interesse.

Além das rodas de capoeira e de batucada, quase semprerealizadas nas ruas e praças das imediações, ficaram célebresos festejos nas casas das hoje celebradas Tias Baianas, dasquais se destacava a Tia Ciata – a mulata Hilária Batista deAlmeida, dentre todas a mais festejada.

Justamente nas casas das Tias Baianas registram-se não

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só o nascimento do samba mas também osprimeiros nomes da sua história. O maisantigo deles todos pode ser considerado omestiço José Luiz de Moraes, apelidado deCaninha porque quando menino vendiaroletes de cana na Estrada de Ferro Centraldo Brasil.

Ainda nessa fase heróica de nascimentodo samba há que ser assinalado o nome deHeitor dos Prazeres. Nascido em plenaPraça XI , onde também morreria, o sam-bista Heitor iniciou-se, a partir de 1936,como pintor primitivo, condição em que seconsagraria nacional e internacionalmente.A ponto de certa vez, seus quadros, mostra-dos em Londres, terem recebido da RainhaElizabeth a pergunta consagradora:“Quemé este pintor extraordinário?” Heitor, queseria premiado na primeira Bienal de SãoPaulo, passou boa parte da vida como contí-nuo do antigo Ministério da Educação eCultura, emprego vitalício que lhe fora atri-buído pelo poeta Carlos Drummond, seuconfesso e público admirador.

O samba só veio a ser registrado comogênero musical específico quando o quartodesses pioneiros, o Ernesto Joaquim Mariados Santos, o Donga, filho de Tia Améliamas também freqüentador dos folguedos de Tia Ciata, gravouuma música feita por ele e pelo cronista carnavalesco do Jornaldo Brasil Mauro de Almeida, (o Peru dos Pés Frios), baseadaem motivo popular que ambos intitularam “Pelo Telefone”.

Ao começo da década dos vinte, um outro personagemmuito interessante personificou o gênero que então se conso-lidava: José Barbosa Silva, na história do samba imortalizadocomo Sinhô. Nascido em pleno centro carioca (RuaRiachuelo), desde molecote freqüentando as rodas de boêmiada cidade, Sinhô entrou para a história do cancioneiro popu-lar como o primeiro sambista profissional. Sua popularidadeatingiu a níveis tão altos que a simples cognominação de “Reido Samba” demonstrava com clareza o enorme prestígio deque desfrutou entre 1920 e 1930, ano em que morreu. O

maior de todos os sucessos de Sinhô foi o“Jura”, gravado simultaneamente por AracyCortes, a maior estrela do teatro musicadodos anos 20 e 30, e por um jovem cantor daalta sociedade carioca, Mário Reis, lançadona música por Sinhô, de quem ele era alunode violão.

Nessa época, os anos 20, as revistasmusicais dos muitos teatros da PraçaTiradentes eram o maior centro comunica-dor e divulgador da música popular antesdo advento do rádio.

O samba só viria, contudo, a ser defini-tivamente estruturado – em sua formacomo é hoje conhecido – por um grupo quehabitava o Estácio de Sá, famoso bairro debaixa classe média carioca na segunda meta-de da década de 20. Esse grupo de composi-tores, boêmios e malandros, que hiberna-vam de dia e floresciam à noite nos bote-quins “Café Apolo” e “do Compadre”, tinhapor líder o compositor Ismael Silva. Ogrupo do Estácio entraria para a história daMPB como consolidador do ritmo e damalícia do samba urbano carioca, até entãomuito influenciado pelo maxixe em suaestrutura formal – como “Pelo telefone” equase todas as obras de Sinhô.

Ismael Silva, a quem deve ser atribuída a responsabilida-de histórica de ter sido um dos estruturadores do samba urba-no carioca tal como viria a ser conhecido e apreciado nos anossubseqüentes, tem ainda o crédito de ter sido o fundador daprimeira escola de samba, a “Deixa falar” (1928), que ele orga-nizou junto com Rubem Barcelos, Bide, Baiaco, Brancura,Mano Edgar e Nilton Bastos, inventor do surdo dentro daescola. A “Deixa falar” – que sairia apenas nos carnavais de 29,30 e 1931 – tinha tanto na forma quanto na timidez de seunúmero de desfilantes a estrutura dos blocos carnavalescos.

As escolas de samba, na verdade, só se expandiriam coma criação das duas outras que se seguiram à Deixa Falar: aMangueira de Cartola e a Portela de Paulo da Portela e deHeitor dos Prazeres, que vieram a tomar a forma definitiva de

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escolas de samba. E a aglutinar sambistas relevantes em seuredor, com comovedora e permanente fidelidade a suas cores.

A partir dos anos 30, registra-se a história da saga glorio-sa do rádio no Brasil, inaugurado pelo gênio de EdgardRoquette Pinto, ( um herói modesto e cativante que ainda pre-cisa ser avaliado melhor ao comecinho deste século) e desen-volvido pela esperteza política do estadista Vargas. O rádio (apartir de 1923) e a gravação elétrica (a partir de 1928) fizeramflorescer a época de ouro da MPB, os anos 30, em que irrom-pem talentos nos quatro cantos do país, especialmente no eixoRio-S.Paulo. Dele saem para o mundo Ary Barroso eZequinha de Abreu, e, especialmente, Carmen Miranda, umafogueira tropical que fez crepitar a Hollywood bem compor-tada e rigorosamente padronizada dos anos 40.

Foi exatamente em 1945, como que a saudar o fim doconflito, que surge uma figura de rara importância dentro docancioneiro do povo. E que sustentaria o ritmo e as origensbrasileiras pelos anos de crise para a MPB que o fim da guer-ra indiretamente traria: a avalanche de músicas norte america-nas ou as importadas pelos Estados Unidos e despejadas emtodo o mundo, sobretudo no Brasil.

O fenômeno, aliás, é de fácil compreensão quando se ana-lisa o fato de que os Estados Unidos saíram da SegundaGrande Guerra como país vitorioso e em fase de expansãomundial, propulsionada pela exportação internacional emmassa de seu poderoso parque industrializado, atrás do qualvinha a indústria da diversão. A indústria do lazer representa-va a consolidação cultural norte-americana no mundo: os fil-mes, os discos e a música popular, com todos seus modismos,ainda mais sedutores pelas engenhosas campanhas de marke-ting com que eram promovidos, remetendo-os quase sempreà juventude.

Essa figura excepcional a que me refiro e que teve decisivaparticipação dentro da afirmação de uma cultura nacionalmais ligada às fontes do Brasil, foi Luiz Gonzaga.

Graças à força telúrica e à veemência vocal de LuizGonzaga, o baião não somente se manteria nos anos 50 – adécada do samba-canção – como determinaria o aparecimen-to de dezenas de intérpretes e compositores, o principal dosquais, Jackson do Pandeiro, exibiria um tal sentido rítmicopara cantar côcos (gênero musical nordestino de andamentobem mais acelerado que o baião) que nunca foi igualado, nem

antes dele (gente como Manezinho Araújo, Jararaca eRatinho ou Alvarenga e Ranchinho), nem depois (gentecomo João do Vale, Alceu Valença, Xangai, Jorge do Altinho,Elomar ou o recentíssimo Chico César).

Voltando ao sucesso de Carmen na América, antecede elede poucos anos a história do movimento da bossa-nova nomercado mundial, que consolida, de uma vez por todas, oprestígio internacional da MPB. A ponto de ejetar nomescomo Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes para asestratosferas do olimpo musical do mundo.

A bossa-nova, aliás, foi antecedida – e até provocada , decerto modo – pela enxurrada dos sambas-canções que inun-dou a década de 50, transformando a MPB num rio “noir” delágrimas, fossa e dores de cotovelo, muitas dessas músicasescritas por talentos fulgurantes como Antônio Maria,Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran ou até Caymmi,Braguinha e Ary Barroso, que se destacavam da mediocrida-de “noir” em que patinava o gênero lacrimejante.

Ao final dos 50, a Bossa Nova nasceu como uma reaçãoao processo de estagnação em que se encontrava a músicapopular nos anos 50, invadida por ritmos estrangeiros, emespecial os boleros, as rumbas e as canções americanas comer-ciais, além dos ritmos para consumo cíclico da juventude,como o chá-chá-chá, o rock, o twist e o merengue. Havia aindauma enxurrada de versões e de sambas canções brasileiros, debaixo nível, onde falta de talento e vulgaridade eram elemen-tos constantes.

A bossa-nova, portanto, surgiria não apenas como umareação a esse estado de coisas, senão também como integran-te da febre pelas novidades que se abriam para o desenvolvi-mento do país. O governo JK prometia cinqüenta anos emcinco e começava a construir Brasília, a abrir estradas de roda-gem e a implantar parques industriais pesados. O Brasil viviaum clima de euforia nos 3 últimos anos da década dos 50, doqual sairiam também movimentos renovadores no campo devários outros segmentos artísticos: no cinema, o começo dochamado cinema novo; na poesia, os poetas concretistas; namúsica erudita, os decafonistas; nas artes plásticas, a nova figu-ração. Em música popular, esse processo geral de renovaçãoencontraria seu caminho com a bossa-nova.

Historicamente, pode-se determinar o aparecimento for-mal da bossa-nova em 1958 quando se juntaram três persona- F

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para melhor combater a burrice da censura oficial, esmagado-ra e intolerável entre 1968 e 1985, se bem que seus arreganhostivessem começado a partir de 1964. A intervenção militar, deresto, provocou uma imediata mobilização de setores musicaisuniversitários (ou pré-universitários) e que tinham epicentrono CCP (Centro de Cultura Popular) da UNE (UniãoNacional dos Estudantes). Ali se reuniam compositores comoCarlos Lyra, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, aolado de cineastas como Gláuber Rocha, Carlos Diegues,Joaquim Pedro e Leon Hirschman, os últimos já integrados àrevolução do “cinema-novo”, que usava a MPB com veemênciae paixão, em suas trilhas sonoras. Esse também foi um tempode amadurecimento e reflexões desses jovens músicos e letris-tas da classe média, em relação ao caldeirão musical que aindase escondia nos morros e favelas cariocas. E aí são revaloriza-dos personagens que andavam esquecidos como Cartola eNélson Cavaquinho, da gloriosa Mangueira, ou Zé Keti daPortela.

Mas como não sublinhar o triunfo em venda de discosque foi a volta do samba de raiz, a partir de Martinho da Vila,

gens em três setores distintos da criação musical: JoãoGilberto – o ritmo, Antonio Carlos Jobim – a melodia e har-monia, e Vinícius de Moraes -– a letra. O mais importantedeles (para a bossa-nova, que fique claro), João Gilberto, eraum violonista baiano que trazia dentro do violão toda a malí-cia, a manemolência e até a languidez descansada de sua terra.Foi ele o criador do ritmo da Bossa Nova, com uma batidadiferente e pouco usual de tocar violão, que conferia ao ritmoum sabor de samba mais lento, mais adocicado, ou mais “agua-do” - como ironizavam alguns dos algozes do novo movimen-to. O primeiro encontro dos três mosqueteiros da bossa-nova(abril, 1958) se daria no LP “Canção do amor demais”, emque a cantora Elizeth Cardoso cantava doze músicas da novadupla, Vinícius e Tom. Em dois desses números aparecia oviolão de João Gilberto, o principal dos quais era o samba inti-tulado “Chega de saudade” (o outro era “Outra vez”).

A história dos festivais dos anos 60 dá parto a estrelasincandescentes como Chico Buarque, Edu Lobo, MiltonNascimento, Caetano, Gil , Ivan Lins, Gonzaguinha, JoãoBosco, todos alinhados – eu até ousaria dizer estimulados –

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Daniela Mercury

populares de grande porte, sejam as tradicionais, sejam asnovas. Umas e outras assumiram nesta década uma dimensãonunca vista antes. E elas se celebram e se constituem a partirda música popular, ou seja, aquelas canções que têm autoresdefinidos (já que a música folclórica se estriba na tradição doanonimato). As festas ou espetáculos para grandes massase/ou platéias nascem nas franjas da sociedade e atingem avários níveis, provocando uma solidariedade social muito rara.E muito valiosa, portanto, para um país de enormes contradi-ções e diferenças sociais como o Brasil.

As escolas de samba do Grupo Especial do Rio fazem,especialmente a partir dos anos 90, o espetáculo mais arreba-tador do mundo: seus cerca de 50.000 desfilantes são aplaudi-dos por 80.000 pessoas em duas noites e vistos via tevê, pordezenas de milhões no Brasil e em várias partes do planeta.

Estudiosos afirmam que a indústria do lazer é a que maiscresce no mundo. E também a que mais gera empregos e a queapresenta o maior faturamento. Uma em cada 16 pessoasempregadas no planeta trabalha em atividades ligadas ao lazer.Calcula-se que só no Brasil a indústria da diversão estará rece-bendo investimentos de cerca de US$ 5 bilhões de dólares atéo ano 2.000. O turismo musical emerge neste contexto, comouma das atividades a priorizar. No mundo todo, o turismogera em torno de 212 milhões de empregos, além do fato deque se trata do setor de menor investimento por empregogerado. Portanto, o velho dito popular que define o Brasilcomo “o país do carnaval e do futebol” deve ser repensado emtermos econômicos.

Por quase quatro séculos o carnaval carioca respirouapenas o entrudo português. Somente na segunda metadedo século XIX tomou ares europeus, não exclusivamentelusitanos.

Até a terceira década do século XX o Carnaval evoluiusem a intervenção do poder público.

Com a falência das tradicionais bases de sustentação eco-nômica da festa, formadas pela solidariedade de grupos, jor-nais patrocinadores e Livros de Ouro, o Carnaval passou aser gerenciado pelo Poder Público, de forma paternalista epolítica. Por isso, a festa jamais trouxe benefícios econômicosà cidade.

Mesmo a transformação dos desfiles das Escolas deSamba em grande espetáculo pago, não produziu retornos

Beth Carvalho, Alcione, Clara Nunes e Paulinho da Viola, noiniciozinho da década seguinte, os anos 70, apesar de todo seupeso de chumbo do regime militar? Como não registrar,mesmo com alguma eventual insegurança, a chegada do rockbrasileiro nos anos 80, com jovens poetas patéticos comoCazuza e Renato Russo dando seqüência aos pioneiros RitaLee, Raul Seixas e Tim Maia?

Toda a história desse século inicial de MPB, argamassadapela paixão e tendo como pilares as fraldas da sociedade, desá-gua agora neste comecinho de século.

Esses últimos anos configuram e dão seguimento, comuma certa eloqüência, a todo o legado da MPB, que é hoje, edisso eu não tenho a menor dúvida, o produto número um dapauta de exportação cultural com que conta o país.

Estamos melhores ou piores, em música popular?Afastando-me do pecado do maniqueísmo e da tentação dacrítica individualizada, eu diria que a MPB, vai, como quasesempre esteve, muito bem, obrigado, apesar de alguns pesares.

Inicialmente, há que se sublinhar um fato histórico queconsidero relevante e que é a expansão dos festejos (ou festas)

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financeiros para o Estado, por falta de tratamento profissional.Na década de 80, o carnaval carioca perdeu quase por

inteiro a diversificação que o caracterizava desde o início doséculo, reduzindo-se praticamente à sedução esmagadora dodesfile principal das Escolas de Samba.

A indústria do Carnaval na cidade do Rio de Janeirocomeça a funcionar efetivamente quando as quadras de ensaiodas Escolas de Samba recebem os concorrentes do concursodos sambas-enredo, a partir de agosto-setembro. Nesta época,também os barracões iniciam os trabalhos plásticos dos pre-parativos do Carnaval. A partir do mês de janeiro, a indústriado Carnaval esquenta nas quadras de ensaios e barracões,entrando em pleno funcionamento.

Não existe ainda um entrosamento mais eficaz entre osresponsáveis pela movimentação da indústria do Carnaval:Poder Público (Embratur, Riotur, Turisrio), Escolas deSamba (LIESA) e Agências de Turismo (ABAV). Não hácomunicação entre essas entidades capazes de planejar, porexemplo, visitas turísticas no pré-Carnaval.

Vale dizer que as alas de compositores, tanto do GrupoEspecial (Grupo I ), quanto do Grupo de Acesso (Grupo II)gravam CDs, a cada ano, e que chegaram a vender cerca quaseum milhão de cópias. Assim também procede o GrupoEspecial das escolas de samba de S. Paulo, com vendagemmais discreta e prestígio mais modesto, se bem que em faseascensional.

Quanto às festas e espetáculos de massa e que se consoli-daram nesses últimos anos, como deixar de citar a sedução deParintins (um espetáculo monumental em plena selva amazô-nica) e a energia das micaretas e carnavais de inverno, hoje emquase todos os estados nordestinos?

Pois é a música popular, a mais pura música popular, pro-duzida pelos trios elétricos e grupos de frevos, maracatus esambas, que lhes dá essência, substância e conformação de fol-guedo.

Quanto aos ritmos com que sempre contou o país –aliás, nunca celebramos como deveríamos este extraordináriotesouro capaz de engrandecer qualquer povo – vão elessendo bem aproveitados. Como não exultarmos com a voltado forró a partir de 97/98, pilotado por Alceu Valença, ElbaRamalho e Lenine, trazendo todo o cadinho energético donordeste e que tem como epicentro Pernambuco ? É por issoe por intermédio deles que voltam agora os cocos, as embola-das, os xotes, os xaxados, os baiões e as toadas, além das ciran-das, maracatus e frevos.

Também revitalizam-se, a partir do Rio, as resistênciasesgrimidas pelos pagodes e pelos sambas de Martinho da Vila,Ivone Lara, Zeca Pagodinho, Lecy Brandão, Beth Carvalho eAlcione, antepondo-se ao baixo nível do pagodinho chinfrime mauricinho, imposto pelas gravadoras à mídia.

Nesses últimos anos, os líderes da geração de 60 conti-nuam a mil, criando espetáculos e discos especialmente sedu-tores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, MíltonNascimento, João Bosco, Ivan Lins, Djavan, com os quais cor-rem o Brasil e, quase sempre, o exterior.

As duplas caipiras, de larga penetração junto à massa,ganharam a adesão da mídia, reconciliando pontas que se afas-tavam. Desse modo, Xitãozinho e Xororó, Zezé de Camargoe Luciano ou Leandro e Leonardo, dupla tragicamente desfei-ta pela morte do primeiro em junho de 1998, passam a rece-ber as simpatias amplas, gerais e irrestritas que antes lhes pas-saram subtraídas, ou exclusividade tributadas a talentos maisrobustos como Sérgio Reis, Renato Teixeira, Pena Branca eXavantinho ou Almir Sater .

Também a partir dos anos 90, especialmente no qüinqüê-nio 93-98, detectam-se sintomas de novas absorções e mistu-ras na Bahia, celeiro primordial da capacidade brasileira deaglutinar e digerir culturas diversas.A partir do que se conven-cionou chamar de “axé-music”, irrompem talentos individuaisdo porte de Daniela Mercury e Carlinhos Brown, que desa-

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Paulinho da Viola

guaram na sucessão de bandas de aceitação comercial inegá-vel, como É o tchan, Mel, Netinho, Cheiro de Amor etc, suces-soras legítimas do modismo internacional que foi a lambada,poucos anos antes.

Mas como falar-se em música popular sem que seja reser-vado um lugar de honra para o músico do Brasil? Pois é o ins-trumentista brasileiro consagrado no mundo desdePixinguinha, o flautista de gênio, que bem pode ser considera-do o patriarca da MPB, até por ser o primeiro (junto com OsBatutas) a excursionar à Europa para mostrar o samba e ochoro, recém-criados pelo nosso gênio mulato (Paris 1922).

Quando o músico brasileiro excursiona para fora dopaís, ele é quase sempre absorvido e, por vezes, fica por lá.Aqui no Brasil, contudo, há uma queixa histórica de que elenão é tão prestigiado quanto poderia e deveria . De há muitoouço lamentos de grandíssimas figuras que vão de WaldirAzevedo, Jacob e Pixinguinha a Sivuca, Altamiro Carrilho,Luiz Bonfá e até Tom Jobim e Baden Powell, ou mesmojovens como Leo Gandelman, César Camargo Mariano,Carlos Malta, Hélio Delmiro, Nonato Luiz ou Guinga eRildo Hora. Todos se queixaram das poucas oportunidadesde tocar, de gravar, divulgar e exibir música instrumental noBrasil. Ao menos, em relação a outros países por onde eles

excursionam com certa freqüência.Mas, afinal, por que acontece isso com uma música tão

estimulante?Vários, por certo, são os fatores das queixas dos músi-

cos, a começar pela demasiada sedução da música cantada,com letristas e poetas tão antenados em nossa realidade,anseios e sonhos.

Por sinal, ainda sobre esse assunto quase crônico, querolembrar o que Radamés Gnatalli comentou comigo certamanhã, quando fui buscá-lo em casa para levá-lo ao Museu daImagem e do Som para um histórico depoimento para a pos-teridade. Ele estava recebendo dois jovens estudantes, embusca de suas partituras e ensinamentos. O Mestre foi curto,grosso e dramaticamente verdadeiro: “– Olhem aqui, meusfilhos, para tocar minhas músicas, vocês vão ter que importardos Estados Unidos. Aqui nunca editei nada.” Isso foi no finaldos anos 60. Hoje a situação já melhorou bastante, mas aindaassim, os esforços para editar mais partituras continuam.

Portanto, nutrir-se melhor este personagem essencial daMPB, que é o músico, sempre vale e valerá a pena.

Como estão valendo – e cada vez mais neste começo deséculo – os selos (mais, ou menos, independentes) que gra-vam preferencialmente CDs de músicos em estúdio, ou extraí-

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Milton Nascimento

Um dado significativo que ocorreu a partirdos anos 90 foi o aumento progressivo do percen-tual de discos com artistas brasileiros.

Ao contrário do que muitos de nós acreditá-vamos e contra o que sempre nos batemos, a pro-porção de registros fonográficos com repertório eartistas nacionais ultrapassou a 50% em 1995 eagora chega quase a 70% de tudo que é gravadono país.

Bondade da indústria multinacional de dis-cos para com a cultura brasileira ou magnanimi-dade para com os músicos, autores e intérpretesque fazem música no Brasil e empregam o portu-guês como língua de expressão? Nem uma, nemoutra. Pura e simplesmente uma lei de mercado,eu diria uma deliciosa imposição do consumidor

brasileiro, que prefere ouvir o som de seu próprio país e confir-mar sua poderosa identidade nacional.

Com isso, a exportação de música brasileira também temcrescido, especialmente para a América Latina.

dos de gravações realizadas ao vivo em espetácu-los públicos.

Quanto à indústria do disco no Brasil, nãohá como deixar de comemorar-se um salto verti-ginoso de vendagens nesses últimos trinta anos.Para que se tenha uma idéia mais precisa, vejam-se esses números, fornecidos pela ABPD(Associação Brasileira de Produtores de Disco):em 1972 venderam-se 15.492.652 unidades dediscos, em 1984 o número subiu para43.996.565 e em 1996 para 94.859.730 unida-des de disco em todo o país. O que vale dizer umaumento muitíssimo significativo.

Todo o faturamento do disco no Brasilenvolveu uma soma de quase 1 bilhão de dólaresao começo do novo século, mesmo com criseseconômicas, sendo o setor responsável por 8 mil empregosdiretos e 55 mil indiretos, em áreas como shows, radiodifusão,comércio varejista, gráficas, editoras e “ designers”, os chama-dos segmentos correlatos.

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Os ritmos mais consumidos do Brasil no exterior,de 1996 para cá, são a bossa-nova, a chamada músicaautoral (Chico, Caetano, Gil etc) erroneamente apeli-dada pelas gravadoras de MPB, rock, pagode, axé-music e música sertaneja.

Quanto aos Festivais de Música – não necessariamenteaqueles competitivos e atrevidos dos anos 60, que bem quepoderiam voltar, por que não? – mas os encontros de genteligada à música para troca de informações, “workshops”,ensino, cursos e audições devem também merecer uma refe-rência especial e calorosa.

A partir dos Festivais de Inverno de Ouro Preto, tantoos eruditos (dirigidos por José Maria Neves) quanto ospopulares (supervisionados por Toninho Horta), o Brasildesabrocha em Festivais de Música, na década de 90, espe-cialmente no Estado do Paraná, onde se realizam váriosencontros de artistas, liderados pela solidez e respeitabilida-de do Festival de Londrina.Há festivais em vários outrosestados, muitos deles impulsionados pela ação cultural daFUNARTE, que também editou uma valiosa coleção delivros sobre música, seus compositores e intérpretes.

Aliás, em relação à rubrica livros sobre MPB, os anos 90foram generosos: nunca se editou tanto sobre o tema, hojeobjeto de interesse acadêmico pelas universidades e “scho-lars” de vários níveis. Longe já lá se vão os tempos do pionei-rismo dos poucos interessados que éramos nós na década de60, pesquisadores do porte de Ary Vasconcelos, VascoMariz, Lúcio Rangel, Sérgio Porto, Sérgio Cabral, MaríliaTrindade Barbosa, Eneida, Edison Carneiro, Mozart deAraújo, Almirante, Guerra Peixe, Renato de Almeida,Albino Pinheiro, e mais uns poucos gatos pingados. De1995 para cá, os livros e as teses sobre temas ligados ao uni-verso da MPB cresceram 200%, segundo fontes daFUNARTE.

Os anos finais do século XX, portanto, foram animado-

res para a MPB. Fica agora muito claro que uma geraçãonova e novíssima começou a chegar para fecundar o final doscem anos mais importantes para o nosso cancioneiro, o dolo-roso, veloz, traumático e riquíssimo século XX.

O melhor desse começo de milênio é que todas as gera-ções musicais convivem numa razoável harmonia. Afinal,todas elas lapidaram o legado precioso de Nazareth,Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, Noel, Ary, Caymmi eBraguinha, Chico, Milton e Caetano, Martinho, Cartola,Paulinho da Viola e Noca da Portela, na certeza de que –mesmo com alguns desvios insensatos e certos atalhos inú-teis – a música popular do Brasil jamais perderá seu prumo.Até porque o alicerce de seus pioneiros e seguidores é sólidoe sedutor o bastante para faze-la continuar a surpreender omundo no século cujos passos iniciais agora são dados.

Os anos finais do século XX, portanto, foram animado-res para a MPB. Fica agora muito claro que uma geraçãonova e novíssima começou a chegar para fecundar o final doscem anos mais importantes para o nosso cancioneiro, o dolo-roso, veloz, traumático e riquíssimo século XX.

O melhor desse começo de milênio é que todas as gera-ções musicais convivem numa razoável harmonia. Afinal,todas elas lapidaram o legado precioso de Nazareth,Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, Noel, Ary, Caymmi eBraguinha, Chico, Milton e Caetano, Martinho, Cartola,Paulinho da Viola e Noca da Portela, na certeza de que –mesmo com alguns desvios insensatos e certos atalhos inú-teis – a música popular do Brasil jamais perderá seu prumo.Até porque o alicerce de seus pioneiros e seguidores é sólidoe sedutor o bastante para faze-la continuar a surpreender omundo no século cujos passos iniciais agora são dados.

Ricardo Cravo Albin tem formação em Direito, Ciências e Letras.

A sua paixão pela música popular brasileira, porém, o levou por outros

caminhos profissionais no Rio de Janeiro, cidade que adotou: historiador

de MPB, crítico e comentarista. Representa o Brasil em conclaves inter-

nacionais sobre cultura popular e música, sendo especialmente solicitado

por emissoras de rádio e tevê da Europa para entrevistas e emissões dire-

tas. Continua exercendo ativamente nestes 25 anos as funções de autoria

(roteiro) e direção de espetáculos e/ou discos sobre a história da música

popular brasileira. Atualmente, supervisiona o Dicionário Cravo Albin

de MPB, com cerca de 5000 verbetes.

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Paulo Dias

Comunidades do Tambor

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41Olodum

Entre os povos bantos da África Central, tambor é ngoma. Não

só o instrumento, porém, metonimicamente, a dança e o canto

que o tambor põe em ação e, por extensão, toda a comunidade

que se reúne em torno do instrumento para a celebração ritual e

prazerosa. Ngoma atravessou o Atlântico, junto com seus guar-

diães tornados escravos, malungos do Congo-Angola e das ter-

ras de Nagô e Jêje. “Chora ngoma, ê Angola”, canta hoje o velho

capitão de Moçambique numa festa do Rosário em Minas, lem-

brando a dolorosa travessia do Atlântico. E no Brasil a ngoma,

comunidade do tambor, cria elos firmes entre o passado e o pre-

sente da gente afro-brasileira, os viventes e os antepassados, a

Senhora do Rosário e Mãe Iemanjá...ngoma aqui reinventada de

corpo, alma, beleza e mistérios

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da Colônia e do Império vieram a configurar um grandeleque de manifestações dramático-musicais-coreográficasque atualmente presenciamos por todo o Brasil entre o sába-do de Aleluia e o Carnaval. Entre a infinidade de estilos regio-nais das danças-músicas negras, é possível perceber algunsnúcleos de sentido principais: os Batuques, executados infor-malmente nos terreiros recônditos e voltados à celebração damemória das próprias comunidades; as Congadas, conjuntosrituais de dança e música ligados à tradição das Irmandadescatólicas Negras, os Candomblés, grupos organizados deculto às divindades afro-brasileiras; e o Samba Urbano, que sedesenvolveu nas primeiras décadas do século XX a partir deuma confluência de tradições.

Essas Comunidades do Tambor, como gostamos dechamá-las, representam distintas formas de expressão dosnegros no Brasil surgidas em resposta às conjunções históri-co-sociais peculiares em que evoluíram as populações afro-descendentes. Não obstante suas especificidades, essasComunidades do Tambor compartilham quase sempre dosmesmos atores sociais e de um universo espiritual comum. E

esde os tempos da colônia o som vibrante dos tam-bores afro-brasileiros ecoa por aqui, em terreiros defazendas, pelas ruas das vilas ou nos adros de igre-

jas, com seu poder de arrancar os homens à dispersão forçadaem que vivem. Noticiados por cronistas e viajantes a partir doséculo XVI, as festas e rituais dos africanos são quase sempreobjeto de descrições levianas e preconceituosas. Sons “monó-tonos”, danças “lascivas”, ritos “bárbaros” eram alguns dos qua-lificativos utilizados por estes escritores e moralistas, semdúvida um tanto assustados com as multidões de negros queessas festas mobilizavam – multidões que sempre podiamrebelar-se contra a minoria branca. Paradoxalmente, a festanegra também constituía uma atraente opção de lazer paramuitos brancos proprietários de escravos, como acontecia nasfazendas e engenhos isolados.“As senhoras chegavam muitasvezes para a roda, assim como os homens, e assistiam com pra-zer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dosnegros”, escreve Freire Alemão, em 1859 sobre um batuqueque presenciara em Pacatuba, Ceará.

Os desdobramentos desses eventos musicais dos negros

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uma parte essencial desse universo comum é o ritmo, umcerto repertório de padrões rítmicos que se reproduz, emdiferentes conjuntos instrumentais, através do imenso terri-tório do Brasil e das Américas negras, criando laços simbóli-cos de parentesco com a África distante. Linhagens rítmicasque, mais resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto,atualizam-se a todo instante pelas mãos que tocam e pelospés que dançam.

Os Batuques de Terreiro hoje dançados por todo o Brasiltêm suas raízes nos eventos com dança e música que promo-viam os escravos fixados na zona rural principalmente –fazendas, engenhos, garimpos – mas também em algumasáreas urbanas, realizadas nos poucos momentos de lazer deque dispunham. Os batuques marcam a presença da culturabanto, trazida pelos africanos vindos de Angola, do Congo ede Moçambique para diferentes rincões do Brasil. São for-mas vivas dos Batuques o Carimbó paraense; o Tambor deCrioula do Maranhão, o Zambê do Rio Grande do Norte eo Samba de Aboio sergipano; em Minas, celebra-se oCandomblé, no Vale do Paraíba paulista, mineiro e fluminen-se, o Jongo ou Caxambu; na região de Tietê, em São Paulo,dança-se o Batuque de Umbigada, entre muitas outras mani-festações...Sem falar dos primos estrangeiros, como oTambor de Yuca cubano, ou o Bellé da Martinica, em tudosemelhantes aos nossos batuques.

Nas fazendas distantes dos tempos do cativeiro, as festasde terreiro realizadas nas folgas semanais e dias feriados con-centravam a vivência dos escravos enquanto grupo, já que nodia-a-dia eles trabalhavam dispersos no eito. Tudo aconteciaafricanamente através do canto e do corpo em movimento, aosom dos tambores. Era momento de louvar ancestrais, deatualizar a crônica da comunidade, de travar desafios capazesde amarrar com a força encantatória da palavra proferida. Osversos metafóricos entoados nessas rodas só ofereciam aobranco um sentido mais literal, inócuo. Fato que deixava per-plexos os observadores brancos: tratava-se de diversão oudevoção? O mistério permanece até hoje, assim como osvelhos tambores de tronco escavado, afinados a fogo, e vene-rados como verdadeiras divindades: Gomá, Dambí, Dambá,Quinjengue... As danças, individuais ou coletivas, mostram-se ora sensuais, descrevendo a corte amorosa que culmina nocontato da umbigada – como no Batuque de Tietê e no

Tambor de Crioula, por exemplo – ora de caráter sagrado,mimetizando os gestos dos Pretos Velhos, os antepassadosafricanos que morreram na escravidão – é o caso doCandomblé dançado nas Irmandades mineiras do Rosário, edo Jongo carioca e paulista.

Desde sempre condenados pela Igreja como permissivose temidos pelos patrões como perturbadores da ordemsocial, a maior parte dos batuques de terreiro mantêm-semarginais, ainda nos dias de hoje, em relação à sociedadedominante, execetuando-se aqueles que conseguem umapenetração no mundo do turismo e do espetáculo – é o casodo Tambor de Crioula e do Carimbó. Com a vinda das popu-lações negras para as cidades, essas danças ancestrais passa-ram da roça às periferias urbanas. Conservando seu caráterintra-comunitário, ainda hoje realizam-se à noite em terreirospouco iluminados ou barracões fora das cidades. A fronteirastênues entre o sagrado e o profano ainda caracterizam algu-mas dessas rodas, assim como o segredo contido nos versosda cantoria desorientam os que vêm de fora. Entenda quempuder, quem souber. Lamentavelmente, esse patrimônio cul-tural brasileiro de alta beleza e profundo refinamento, fonteviva de história, religião, arte e identidade para muitas comu-nidades afro-descendentes, vem sendo sistematicamenteignorado pela “grande cultura” e pelos meios de comunicaçãode massa.

Ao contrário dos Batuques, os Congos ou Congadas tive-ram relativa aceitação da classe dominante branca , conformeatesta Antonil já no século XVIII, sendo consideradas “diver-são honesta” para os escravos. Além de importante ocasiãopara os catequistas de imiscuir conteúdo cristão edificantenos seus enredos, como a gesta adaptada de Carlos Magnonarrando as lutas entre a Cristandade e a Mourama infiel.

As congadas originaram-se dos séquitos de atores, músi-cos e dançarinos que acompanhavam seus Reis Congos,representantes das linhagens nobres da África na diásporabrasileira, por ocasião das festas religiosas e oficiais.

Esses cortejos eram formados por membros dasIrmandades Católicas de negros banto-descendetes – SãoBenedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia –, insti-tuições que historicamente asseguraram ao negro algumaparticipação numa sociedade que os rejeitava como cidadãos,e se constituíram em importantes repositórios de tradições

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afro-brasileiras. Foi através dos grupos rituais ligados àsirmandades católicas – os congos ou congadas – que africa-nos e seus descendentes passaram a participar das festaspúblicas desde os tempos da Colônia.

Maracatús, Taieiras, Catumbis, Moçambiques, Catopês,Vilões, Marujos são algumas denominações das diferentesformas regionais das congadas de cortejo. Algumas delasainda preservam uma parte dramática, em que se encenamembaixadas e lutas entre reis africanos; é o caso dos Congosde sainha do Rio Grande do Norte, das Congadas paulistasde Ilhabela e São Sebastião e do Ticumbi de Conceição daBarra, no Espírito Santo.

Particularmente em Minas Gerais, as Irmandades deNossa Senhora do Rosário ainda desempenham papel fun-damental na organização da vida religiosa entre os afro-des-cendentes. Aí o movimento do Congado parece crescer acada ano, reunindo suas festas milhares de pessoas vindas dediferentes localidades. Há grande diversidade de congadasnesse Estado, em termos do estilo musical e coreográfico, doinstrumental e da indumentária, reflexo talvez da antiga divi-são dos africanos por etnia no seio das Irmandades.

Esses grupos são chamados guardas, pois têm por funçãopuxar coroa, isto é, acompanhar os Reis Congos. Carregamtambores artesanais com duas péles tensionadas por cordas etocados com baquetas: as caixas. O respeito que têm os conga-deiros das Irmandades mineiras pelos seus instrumentos vemde sua importância germinal para a tradição do Rosário:segundo a lenda, foram os tambores feitos pelos escravos afri-canos que conseguiram tirar Nossa Senhora do Rosário apa-recida nas águas com a força de seus batuques, após as vãs ten-tativas dos brancos. Assim teria se iniciado o festejo à Santa etoda a tradição do Reinado.“Madeira santa”, como dizem.

A religião afro-brasileira conhecida como Candomblé(BA), Xangô (PE), Tambor de Mina (MA) ou Batuque(RS) - nasceu dos aportes míticos e rituais de diferentesetnias ou nações africanas, com influência preponderante dossudaneses jejes e nagôs. Trazidos da África Ocidental(Nigéria e Benin atuais) para as capitais do Nordeste a partirdo final do século XVIII, os sudaneses trabalhavam geral-mente como domésticos e negros ao ganho, tendo relativafacilidade para se reunirem segundo sua etnia. Esses escravosurbanos puderam, desse modo, rearticular no Brasil a sua

religião tradicional, na qual os iaôs, sacerdotes iniciados, sãopossuídos pelas divindades durante o transe místico. Orixás,inquices ou voduns, nome que recebem as divindades segun-do a nação ou origem étnica do candomblé, representam for-ças naturais e sociais.

Não obstante o preconceito e as constantes perseguiçõespoliciais de que foram vítimas nas primeiras décadas do sécu-lo passado os terreiros de Candomblé souberam preservarentre suas paredes uma série de práticas culturais africanas,como as línguas rituais, um panteão e sua mitologia, instru-mentos, ritmos e cancioneiro, culinária, objetos de culto. Maisdo que isto, perpetuou-se entre os adeptos dessa religião umacosmovisão africana, que enxerga o mundo como uma teia deforças vitais em interação, as quais devem manter-se equilibra-das através de ritos específicos. Evidentemente, o culto aos ori-xás aqui sofreu diversas adaptações e reinterpretações, tornan-do-se afro-brasileiro. O ritual predominante jeje-nagô mistu-rou-se a outras expressões religiosas africanas e ameríndias,gerando formas de culto miscigenadas como os Candomblésde Caboclo e, mais recentemente, a Umbanda.

Permanece o conceito de nação – cultural, e não maisétnico – relacionado sobretudo à língua ritual, aos repertó-rios dos cânticos e aos estilos musicais. Nas festas ou toquespúblicos e privados dos Candomblés, a importância dos tam-bores e seus percussionistas rituais, os ogãs, é decisiva parachamar as divindades a se incorporarem em seus cavalos ebailar o seu mito entre os mortais. Os ogãs conhecem grandevariedade de toques das diversas nações do candomblé –Keto, Angola, Jêje – e podem dominar um repertório de cen-tenas de cânticos. Traços musicais peculiares aos candomblésJêje-Nagô, como as escalas de cinco notas (pentatônicas) per-manecem praticamente restritos às casas de culto, enquanto osom dos Candomblé Congo-Angola, junto com os batuquese cortejos de origem banto, participam de um universo meló-dico e rítmico extra-religioso conhecido e reconhecível publi-camente por todo o Brasil, entre os quais se coloca o samba.A música religiosa nagô só pode ser ouvida em ambientepúblico e profano através dos afoxés do carnaval de Salvador, chamados “candomblés de rua” , e algumas de suas referênciarítmicas e melódicas transparecem na sonoridade dos blocosafro como Ilê aiyê e Olodum.

As grandes cidades brasileiras foram o ponto de encontro

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de todas as ingomas, Comunidades do Tambor, e o Carnaval,a data fundamental para esse congraçamento. As Escolas deSamba são o exemplo por excelência da confluência e fusãodos muitos elementos da fala afro-brasileira. A cidade do Riode Janeiro, capital do Brasil a partir de 1763, concentrou aolongo de sua história uma grande população de africanos,principalmente os bantos vindos do Congo e de Angola; essecontingente de negros engrossou, após a Abolição, com a che-gada dos libertos, atraídos para aquela metrópole pela espe-rança de conseguirem trabalho. Não só negros, mas tambémmestiços e brancos pobres migraram das fazendas valeparai-banas, de Minas Gerais, do sertão nordestino, de toda parte.

Nos morros e subúrbios do Rio misturaram-se tradi-ções culturais tão diversas, mas ao mesmo tempo tãounas: expressavam alegria e devoção, continham a forçado desafio e a reverência aos ancestrais, significadas atra-vés do corpo, da voz e do tambor. Eram coisas de negro,herança forte daqueles que, vindos de longe, compartilha-vam de um mesmo destino subproletário nos bairrosperiféricos e nas favelas. Assim, foram-se agregando emmosaico as muitas memórias afetivamente conservadas.De um lado, o terreiro: o ritmo dos tambores de mão, acantoria improvisada dos velhos batuques como oCaxambu carioca e o Samba-de-Roda baiano, a ritualida-de dos cultos como a Cabula e a Macumba, a malícia cor-poral dos jogos como a Pernada e a Capoeira. De outro, arua: os Cucumbis cariocas, os Ranchos de Reis baianos,os Maracatús nordestinos, as Congadas mineiras, todasaquelas danças de cortejo características das festas deambulatórias do Catolicismo Popular, trazendo porta-bandeiras, reis e sua corte, mascarados, baianas, baterias

de tambores portáteis percutidos com baquetas. E ogosto pelo colorido, pelo brilho e pelo luxo, que finca raí-zes no Barroco Católico da Península Ibérica, e uma dis-posição peculiar em alas a compor o grande desfile pro-cessional.

O Carnaval, data maior da profanidade, veio a ser o calen-dário disponível para a celebração pública da festa dos negrosnas metrópoles. Nos anos 20 do século passado surgem asEscolas de Samba, fala negra amplificada para muito além dopequeno terreiro da comunidade, de e para as grandes massashumanas das cidades. Pelejando para legitimar sua voz juntoà sociedade dos brancos e obter a visibilidade sonhada. AÓpera popular urbana vai para meio da avenida, com orques-tras de centenas de tambores, instrumentos com pele de nái-lon produzidos em série por uma indústria que se especializa.De repente, os desanimados cordões da classe média brancaabrem alas, de uma vez por todas, para as evoluções mágicasdo Samba crioulo. As avenidas viram sambódromos, e oSamba, espetáculo de massas e mídias.

Este texto foi escrito originalmente para apresentar aexposição multimídia “Comunidades do Tambor”, montadano SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante o evento“Percussões do Brasil”, em 1999.

Paulo Dias, nascido em São Paulo em 1960, é músico e etnomusicó-

logo. Desde 1988 dedica-se à pesquisa da música tradicional brasileira,

sobretudo à de raízes africanas, trabalho que vem sendo divulgado através

de publicações, vídeo-documentários, CDs e exposições. Fundou e dirige

a Associação Cultural Cachuera!, voltada à documentação, estudo e

divulgação da cultura popular tradicional brasileira.

e-mail: [email protected]

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Cristina Magaldi

No final do século XIX, a seção de atrações teatrais nos jornais do

Rio de Janeiro oferecia aos Cariocas um número grande de opções.

Em abril de 1888, por exemplo, residentes da capital podiam

escolher entre a “premiére” da zarzuela La Gran Via, de Chueca e

Valverde no teatro Lucinda; a paródia em versão de revista,

entitulada O Boulevard da Imprensa, por Oscar Pederneiras no

teatro Recreio Dramatico; a tradução da comédia Tricoche e

Cacolet, de Meihac e Halevy no teatro Santana; a revista Notas

Recolhidas, de A. Cardoso de Menezes no teatro Sant’anna; ou um

concerto de orchestra organizado por Arthur Napoleão, no

Cassino Fluminense. Em julho do mesmo ano, cariocas que

gostavam da música de concerto podiam ouvir Mendelssohn,

Haydn, Mozart, e Beethoven num concerto regido por Cavalier

Darbilly apresentado no teatro São Pedro de Alcântara. Em

agosto, uma companhia italiana abria a temporada de ópera no

teatro D. Pedro II apresentando várias óperas de Verdi e de outros

mestres do bel canto italiano1.

Chiquinha Gonzagae a música popular no Rio de Janeiro

do final do século XIX

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de artistas e intelectuais, que começavam a olhar para a cultu-ra afro-brasileira com uma curiosidade quase científica. Aoaparecer no palcos cariocas e fazer furor com a população,danças “remexidas” como fandangos, fados, batuques, e jon-gos, eram na maioria das vezes apresentadas como intermezzos

ou no final de peças teatrais como elemento cômico. Destaforma, contrastando com árias de ópera e canções líricas decunho Europeu, o elemento negro era caracterizado comoexótico e deviante da cultura européia “civilizadora.”

A música popular que emergiu no final do século XIX,portanto, refletia a síntese das músicas apresentadas nos tea-tros da capital, e era o resultado das aspirações artistícas, inte-lectuais, e políticas da nova burguesia brasileira.

O início da carreira musical de Chiquinha Gonzaga(1847-1935) serve como exemplo. Reconhecidamente umadas personalidades mais importantes da música brasileira nofinal do século XIX e começo do século XX, Chiquinha foialuna do imigrante português Arthur Napoleão, um pianistavirtuoso e prolífico compositor de peças de salão. Napoleão,que fez do Rio de Janeiro a sua moradia desde 1868, atuoutambém no comércio e publicação de música, e como organi-zador de concertos de música clássica na capital brasileira. Asua atuação nos meios musicais e artísticos cariocas era reco-nhecida não somente nas altas rodas sociais, mas tambémpelo imperador, que lhe concedeu a Ordem da Rosa.Chiquinha iniciou sua carreira seguindo as pegadas de seuprofessor; ela atuou como pianista em salões e escreveu umgrande número de composições para piano no estilo europeuque eram tocadas em reuniões sociais e familiares das classesmédia e alta Carioca. Napoleão se engarregou da publicaçãoe distribuição das primeiras composições de Chiquinha,como as valsas para piano Plangente e Desalento, que apare-ceram numa colecão de danças para piano, Alegria dosSalões, ao lado de peças de Strauss, do Italiano Luigi Arditi, edos franceses Henri Hertz e Joseph Ascher.

Ao mesmo tempo que Chiquinha Gonzaga publicavavalsas, ela também se ocupava escrevendo peças para o tea-tro, como tangos e habaneras no estilo das danças trazidas aoRio de Janeiro por companhia espanholas de zarzuela (e comsucesso em Paris). Mesmo assim, seus tangos Seductor eSospiro, publicados por Arthur Napoleão na década de1880, apareceram em coleções para piano ao lado de peças

sta proliferação de atrações teatrais e musicais tradu-ziam o caráter nitidamente cosmopolita do Rio deJaneiro nas últimas décadas do século. Gêneros e

estilos musicais de várias partes do mundo chegavam à cida-de em grandes números, e especialmente aqueles em voga emParis. Os compositores brasileiros deste período que hoje sãocaracterizados como “populares” saíram dessa tradição urba-na e eminentemente cosmopolita; suas obras refletem os gos-tos de uma classe média emergente que procurava um meio-termo entre a tradição operistica e de concerto européia, e asmúsicas das ruas da capital, particularmente aquela derivadada tradição afro-brasileira. No final do século, portanto, alinha divisória entre a música popular, música tradicional emúsica “erudita” ainda não estava totalmente delineada; amúsica “não erudita” era aquela que circulava em grandesnúmeros e por publicações baratas, arranjadas e simplificadaspara atender um número grande de consumidores. Mas estadistinção não se aplicava claramente ao gênero ou estilo musi-cal: um tango, uma valsa ou uma canção operistica em italia-no agradavam igualmente ao público carioca.

As danças em voga nos palcos do Rio de Janeiro nesteperíodo eram as mesmas danças de sucesso nos teatros pari-sienses, como a polca, o tango, e a habanera – as duas últimaschegavam à capital brasileira pelo circuito Espanha-Paris-Rio2. Portanto, a popularidade do tango neste período nãorefletia necessariamente uma tendêcia para a nacionalizaçãoda música popular, mas refletia o gosto da burguesia cariocaque acatava amplamente as modas musicais provenientes deParis. Fora do teatro, estas danças entravam nas salas de visi-tas da burguesisa através do piano, e lá subiam de status comomúsica digna de admiração e respeito.

Nos palcos do Rio de Janeiro a música e dança européiasconfluiu com estilizações locais da música negra que permea-va as ruas da cidade. É importante ressaltar que o elementonegro dessa emergente música popular não era advindo dasautênticas rodas de batuques e de capoeira Afro-brasileiros,mas de adaptações desta música para o palco, feitas para agra-dar uma burguesia predominantemente branca, cujo gostomusical era constantemente regido por ditames parisienses.Na realidade, a inclusão de danças de origem Afro-brasileiranos teatros cariocas refletia o momento político do pais, aeminente abolição da escravatura, e um interesse particular

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extraídas da ópera Carmem e de uma ver-são estilizada da zamacueca chilena escri-ta pelo violinista Cubano José White.

Em 1885, Chiquinha Gonzaga escre-veu a música para a opereta A Corte naRoça, com texto de Palhares Ribeiro. Apeça foi apresentada no teatro PríncipeImperial como “opereta em 1 ato de cos-tumes brasileiros”. A ação da opereta sepassava na “fazenda das Cebolas, emQueimados” e tinha a participação de“roceiras e roceiros”. Para a opereta Chi-quinha escreveu umas “composições ocunho caracteristico da música de estilobrasileiro” anunciava o critico do Jornaldo Commercio3. Mas o seu lundú e cateretê final,“apimen-tados” como o descreveu o anúncio do jornal, servira paracaracterizar o “roceiro” – aquele que vivia fora da zona urba-na – e não a música dos cariocas cosmopolitas. Para estes,cantou-se no intervalo árias de ópera italiana e cançonetasfrancesas, bem urbanas e cosmopolitas.

Um ano mais tarde Chiquinha Gonzaga atingiu o seumaior sucesso quando compôs algumas peças para a revistaA Mulher-Homem, escrita por Valentim de Magalhães eFilinto de Almeida e posto em cena “com todo luxo” em janei-ro de 1885 no teatro Sant’anna4. A revista baseava-se numescândalo que se passou em 1885, quando um homem vesti-do de mulher tentou conseguir emprego de doméstica. Emvolta deste evento principal, A Mulher-Homem tambémcomentava, parodiava, e satirizava eventos políticos recentes,principalmente a lei dos sexagenários que emancipava escra-vos com mais de sessenta anos. Mas apesar da revista tercomo fio condutor um texto totalmente localizado, os seus32 números de música incluiam um coquetel de árias e aber-tura de óperas, como a abertura da ópera La Gioconda de A.Ponchielli e a marcha da opera Le Prophète de Meyerbeer5.No final da peça aparecia o número cômico: um jongo escri-to por Henrique de Magalhães entitulado “Jongo dos pretossexagenários”. Como era de costume, cariocas ouviam estesnúmeros “apimentados” como peça de fechamento, que ale-gravam e divertiam uma platéia predominantemente burgue-sa. O elemento afro-brasileiro era desta forma distanciado da

realidade, visto como interessante comtanto que fosse exótico.

Dois meses depois da abertura d’AMulher Homem, um novo número finalfoi adicionado à revista, entitulado “Ummaxixe na Cidade-Nova.” Para este qua-dro final, Chiquinha Gonzaga eHenrique de Magalhães escreverammúsica para caracterizar a zona pobre dacidade, especificamente a parte chamadacidade nova, onde um maxixe era umevento dançante da classe baixa com aparticipação de negros, mulatos, e imi-grantes portugueses. Na revista, o maxixeincluía danças como “fados e jongos de

negros.” Um crítico local descreveu as novas peças como“composições que têm um toque especial…que pode ser vistonos seus requebros rítmicos.” O crítico conclui ressaltandoque “talvez haja um elemento lascivo nestas danças, mas nãose pode negar a graça e o encanto que vêm naturalmente donosso caráter e do nosso povo6.” Embora o maxixe tenha sidoapresentado ao público como cena final, com o objetivo espe-cífico de fazer a população rir e se exaltar, talvez tenha sidoesta aceitação do crítico local um primeiro indicativo de queo elemento afro-brasileiro, e não as árias e cançonetas euro-péias, podia caracterizar uma suposta “brasilidade” na músicapopular.

NOTAS1Todas estas atrações foram anunciadas no Jornal do Commercio, de

abril a agosto de 1888.2Paulo Roberto Peloso Augusto, “Os Tangos Urbanos no Rio de

Janeiro: 1870-1920, Uma Análise Histórica e Musical,” Revista Música

8/1-2 (maio/nov, 1997): 106.3Jornal do Commercio, 23 de Janeiro de 1885.4Jornal do Commercio, 16 de fevereiro de 1886.5A denominação dos números de música aparece no Jornal do

Commercio, de 13 de janeiro de 1886.6Jornal do Commercio, 15 de fevereiro de 1886.

Cristina Magaldi é professora de história de música na Towson

University, Universidade Estadual de Maryland, EUA.

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Hermínio Bello de Carvalho

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São Pixinguinha

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Cada cultura ou religião tem seus mitos e fundamentos.

Faço parte de uma confraria quase religiosa que cultua um

Santo de pele negra, que tinha por hábito – e talvez

missão – enternecer e melhorar a vida dos homens com

sua arte divinal. Falo de Alfredo da Rocha Vianna Junior,

mais conhecido por Pixinguinha. Para mim, seu devoto,

será sempre São Pixinguinha.

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trumentista, arranjador. Dificil. Mais realista e objetivo é ocrítico Ary Vasconcellos:“Se você tem 15 volumes para falarde toda a música popular brasileira, fique certo de que épouco. Mas se dispõe do espaço de uma palavra, nem tudoestá perdido; escreva depressa: Pixinguinha”.

Tocou desde criança em tudo que era lugar, em teatros ecirco, e na verdade aperturas financeiras não as conheceu porfalta de trabalho. Quando seu pai morreu em 1917 (ano emque era gravado o samba “Pelo telefone”), Pixinguinha já sesustentava. Dois anos depois estreiaria no Cine Palais o con-junto que celebraria uma época da nossa música: Os OitoBatutas. Lá estava Pixinga, lá estavam Donga, China eNelson Alves – negros como ele. Na Companhia Negra deRevistas foi que conheceu Beti, que tomaria como suamulher para toda a vida. Negro: era negro numa sociedaderacista que contestaria sua ida a Paris com seus companhei-ros em 1922, para representar o Brasil. Imagine, que desafo-ro! Mas sua genialidade venceria todos esses preconceitos.Villa-Lobos era um de seus admiradores, e o musicólogo-compositor Basilio Itiberê ensinaria que o contraponto dePixinguinha (e é só ouvir suas gravações com o flautistaBenedito Lacerda) era coisa de mestre. E já que falamos emBenedito Lacerda, convém lembrar que sua parceria comPixinguinha era meramente simbólica. Pixinga precisava dedinheiro e projeção, que o duo – e mais a parceria que foiconsagrada contratualmente – acabou lhe garantindo.

Único luxo a que se permitia: beber. E bebericava seusagrado uisquinho de segunda a sexta no “Gouveia”, naTravessa do Ouvidor – onde existe hoje sua estátua embronze. Era o templo onde seus amigos iam adorá-lo, ele ReiMago. Lá estavam João da Bahiana e Donga, e tambémAntonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, que o conside-rava um santo e um gênio e foi lá um dia pedir-lhe a bênção.

Não dá para dizer qual a música mais bonita dePixinguinha: se “Carinhoso”,“Ingênuo”,“Sofres porque que-res”,“Rosa”,“Lamentos”. Porque ele foi um escultor de belasmelodias que, hoje, continuam modernas – com aqueletoque de eternidade que os gênios conferem àquilo que

a verdade veio ao mundo na Cidade de SãoSebastião do Rio de Janeiro em 23 de abril de1897 (e não em 98, como durante algum tempo

se acreditou), dia em que, aliás, se celebra um SantoGuerreiro de nome Jorge. Também, já se vê, não era à tôaque Di Cavalcanti o chamava de “Meu irmão em São Jorge,meu irmão Pixinguinha!”.

(Posso afirmar, embora alguns afirmem que é delírio, quesou testemunha de um belo retrato de Pixinga feito por Di.Estava lá, em seu atelier na rua do Catete, onde o pintor erameu vizinho).

Quando acharam por bem criar o Dia do Choro, outradata não poderia ser escolhida: a do nascimento dessehomem que nasceu para enobrecer o gênero, dar-lhe forma-to e linguagem própria, cheia de melodias ondulantes e ricasde modulações. Quem na vida já não se pegou assoviandoo “Carinhoso”? Pois é.

Antes de conhecer fisicamente Pixinguinha, eu ouviaPixinguinha nas rádios e, sobretudo, o vi, em carne e osso,uma primeira vez, tocando no carnaval na antiga GaleriaCruzeiro, vizinha ao Café Nice, na Avenida Rio Branco.Década de 40.

Depois, pra valer mesmo, foi na década de 50 que oconheci – e aí o grande acontecimento se deu na casa deJacob do Bandolim, em Jacarepaguá. Pixinga já triscado nosuísques, tocando como gostava seu saxofone perolado, osdedos que eram feito estalactites de tão longos e bonitos etransparentes, as unhas alabastradas e a máscara africanaesculpida em estanho ou ônix ou num piche platinado – eaqueles dedos corriam o corpo do instrumento e deleextraíam sons absurdamente maravilhosos. Já abandonara aflauta, por essa época. Problemas de embocadura: a bocafibrilava, os lábios já não obedeciam ao contato da flauta – eo sax entrou na sua vida, definitivamente. Mas Beti, suamulher, não se conformava. Afinal, tinha o sopro mais boni-to entre todos os flautistas.

Aliás, essa é uma das grandes dúvidas de seus biográfos:como enquadrá-lo em sua multiplicidade: compositor, ins-

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fazem. Inventou também belas introduções para melodiaspor vezes pobres que lhe entregavam para orquestrar. Emtudo que tocava (e tocar, aí, tem o duplo sentido) virava ouropuro. Seu sentido de arranjador precedeu o que modernistascomo Radamés Gnattali fariam depois. Fez trilhas paracinema, depois de esgotar seu talento como arranjador eautor de todo tipo de música para os teatros de revista daépoca.

Podemos dizer um pouco mais : ele tinha um agudo sen-tido pictórico, diria mesmo cinematográfico, ao elaborar cer-tas músicas. Ele fazia um humor descritivo em obras como“O gato e o canário”, “Marreco quer água”, “Um a zero”.Nessa última, sua narrativa musical corresponde aos doscomentaristas de futebol, descrevendo as firulas e os mágicospasses dos jogadores. Gênio. Erik Satie não faria melhor.

Sim, acho que deveria falar de nossa relação pessoal. Elafoi inaugurada com um surpreendente pedido para quefosse seu parceiro num Festival Internacional de Música –nascendo ali o “Fala, baixinho” e uma série de composiçõesque ampliariam os elos de nossa amizade, consolidada nosmuitos encontros que marcava no Bar Gouveia, ou para par-tilhar com ele a carne assada ao molho de ferrugem (“ferru-ginosa”, corrigia) preparada magistralmente por sua mulher,Beti. Lembrá-lo em minha casa, passando uma tarde comi-go, é algo que me comove às lágrimas.

Tive a honra também de ter produzido seus últimos dis-cos: o “Gente da Antiga” (com Clementina de Jesus e João daBahiana) e “Som Pixinguinha”, ambos na Emi-Odeon. Eainda pude levá-lo ao estúdio para gravar com a DivinaElizeth Cardoso um samba que fizemos – o “Isso é que éviver”.

Quando Mário de Andrade quis saber tudo sobre feiti-çaria, candomblé e adjacências para escrever “Macunaima”,não só consultou Pixinguinha, como o tornou personagemdaquela rapsódia: é o Olelê Rui Barbosa, Ogan bexinguento,tocador de atabaques. (Não, pelo que se sabe, Pixinguinhanunca tocou atabaques, e no final da vida era um católico fer-voroso).

E tão fervoroso que, vou lhes contar agora, que naqueledia acordou cismarento : imagino tenha se persignado, lem-brando com prazer a visita que Jacob do Bandolim, amigo edevoto, lhe fizera há alguns dias. Preparava-se para ser padri-nho de um batismo numa igreja em Copacabana, e deixararecado para que eu comparecesse. Mostrou-se surpresoquando apareci, antes, em sua casa, sem avisar, apenas coma saudade apertando o coração. Tocou, que milagre! a flautaque há tanto tempo abandonara. Despedimo-nos.

“Morreu como um santo”, repetiriam todos, horasdepois, quando se despediu de todos nós em 15 de fevereirode 1972, em plena Igreja Nossa Senhora da Paz, emIpanema.

Bibliografia :

Pixinguinha, Vida e Obra (Ed. Funarte, 1978) (Lumiar Edit. 1997).

Filho de Ogum Bexinguento (Marilia T.Barbosa/Arthur Filho. Ed.

Funarte, 1978 e Ed. Griphus, 1997).

Hermínio Carvalho

Na área de rádio e televisão, produziu, a partir de 1958, centenas de

programas para a Rádio MEC (“Violão de ontem e de hoje”,

“Reminiscências do Rio de Janeiro”,“Orquesta de Söpros”) e, também, já

ná década de 70, para a TVE. Podemos destacar as séries televisivas

“Água Viva”, “Mudando de Conversa”, “Lira do Povo” e “Contra-Luz”.

Como diretor-roteirista de espetáculos, sua carreira foi pontuada por

diversos sucessos: o musical “Rosa de Ouro” (1965), que lançou

Clementina de Jesus e Paulinho da Viola; o concerto (1968) que reuniu

Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro.

Podemos ainda citar os shows “ Festa Brasil” (Europa, EE.UU.e

Canadá); “Face à Faca (1974), Com Simone ; “ Te pego pela palavra”

(1975), com Marlene;“ Caymmi em Concerto” (1985),“Chico Buarque

de Mangueira” (1998)e outros espetáculos com Luiz Gonzaga,

Herivelto Martins, Radamés Gnattali & Camerata Carioca. Em 1999

dirigiu os espetáculos “Clássicas” (com Zezé Gonzaga e Jane Duboc) e

“Sessão Passatempo”, com Carol Saboya. Preparou em 2002 o musical

“O samba é minha nobreza”.

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54Haroldo Costa

Carnaval: dos ticumbís, cucumbís, entrudo esociedade carnavalescas aos dias atuais

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Defendo com ardor e a mais profunda convicção que o

nosso Carnaval representa hoje a mais fiel tradução das

nossas heranças, contradições, perplexidades e perspecti-

vas. E é aí que moram a sua originalidade e constante

mutação, além da irresistível sedução que exerce sobre

todos os que ele faz contato em qualquer grau.

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Pereira, corporificado no português José Nogueira deAzevedo Paredes, que numa segunda-feira de carnaval saiuàs suas com um enorme bumbo, seguido por outros patrí-cios com tambores menores, fazendo uma enorme algazarrae arrastando animados seguidores que logo se transforma-vam numa pequena multidão. O Zé Pereira transformou-senum emblema do carnaval carioca – e por extensão brasilei-ro – que perdura até hoje. Tal foi a sua popularidade que asrevistas teatrais incorporaram a bonachona figura e deram-lhe até um tema musical, adaptado da composição francesaLes Pompiers de Nanterre ( Os bombeiros de Nanterre) efoi um enorme sucesso na revista encenada no Teatro Fênix,em 1870, com o título de Zé Pereira Carnavalesco, cantadopor Francisco Correia Vasques, grande estrela da época :

E viva o Zé Pereira

Pois que a ninguém faz mal

Viva a bebedeira

Nos dias de Carnaval !

Na espontaneidade das ruas nasceram também os cor-dões, contando com a participação da população negra que,até então, tinha uma participação secundária nos festejos. Asua origem remonta às confrarias religiosas como a de N.S.do Rosário, que abrigava escravos e libertos. Assim foramaparecendo os primeiros grupos dos Ticumbís, reproduzin-do personagens e desenvolvimento coreográfico próprios dacultura do Congo. Outro elemento dos cordões foram osCucumbís, palavra originada em cocumbe, comida servidanas festas da circuncisão dos filhos dos negros congos, nomecom o qual os grupos também ficaram conhecidos.Naquelas ocasiões a dança era um ritual que marcava doismomentos importantes, o que acabamos de citar, e as ceri-mônias fúnebres.

Os cucumbís foram passando do sagrado para o profanoe com o ritmo proporcionado pelos ganzás, xequerê, choca-lhos., adufes, agogôs e marimbas, foram surgindo gruposcomo Cucumbis Lanceiros Carnavalescos, Triunfo dosCucumbis Carnavalescos. Iniciadores dos Cucumbis e deze-

or que será que o carnaval carioca é tão especial e tãooriginal ? Por que as escolas de samba adquiriram aforça e o prestígio que hoje desfrutam dentro e fora

do país? Esta é uma história que vem de longe e ainda estásendo escrita.

Os primeiros sons ligados ao carnaval chegaram ao Riode Janeiro não em forma de ritmo ou melodia, mas sim de gri-tos de raiva e risos de deboche, era o Entrudo. Palavra origi-nada no latim Introito, usada para definir o início do períododa Quaresma. Emigrantes provenientes das ilhas daMadeira, Açores e Cabo Verde, aqui chegados a partir de1723 e que se espalharam de Porto Alegre – então com onome de Porto dos Casais – até o Espírito Santo, trouxeramo hábito do Entrudo, muito popular em Portugal e suas colô-nias. Mas foi no Rio onde ele criou raízes, tendo sido citado edescrito pelos viajantes e cronistas da época, como Jean-Baptiste Debret, que o eternizou em desenhos, registrandoaté a bisnaga, apetrecho indispensável na brincadeira, seassim se podia chamar.

A brutalidade do Entrudo não conhecia limites. As pes-soas jogavam umas contra as outras polvilho, pó-de-mico,fuligem, goma, limões feitos de cera e contendo qualquerlíquido, até urina. Das sacadas bacias de água eram entorna-das sobre os passantes, que não podiam nem parar para recla-mar, porque senão a situação piorava. Houve alguns casosgraves como o do arquiteto francês Grandjean de Montigny,que fazia parte da missão artística francesa trazida porD.João VI, que morreu em conseqüência de uma pleurisiacontraída durante o carnaval.

A polícia tentava coibir os exageros do Entrudo, mas eradifícil. Mesmo com a falta dágua, que era uma constante doverão carioca, tonéis e tonéis eram carregados pelos escravospara encher as vasilhas que os senhores e as sinhás usavamnos três dias da folia.

As autoridades publicavam portarias regulamentadoras,mas não havia jeito. A cada carnaval o Entrudo era mais vio-lento, até que em 1857 foi formalmente posto fora da lei.Mesmo assim, a despeito da proibição legal, ele ainda resistiualguns anos até desaparecer definitivamente, tragado poroutras novidades que surgiam. Como o Zé Pereira, porexemplo.

Foi na rua São José, 22, no centro do Rio, que nasceu o Zé

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Assim como os cordões traziam as células da presençaafricana, os Ranchos, outro capítulo importante na históriado nosso carnaval, trouxe as presença e herança portuguesas.No início faziam parte do ciclo das festas natalinas e da festaem louvor à N.S. da Penha, que até hoje é realizada duranteo mês de outubro. Se no interior da igreja era celebrado o Te-Deum, na área externa, entre barraquinhas com bebidas ecomidas podia-se ouvir sambas e marchas que eram uma pré-via do carnaval. E lá se podia encontrar Pixinguinha, Sinhô,Donga, João da Baiana, Caninha e outros expoentes musicaisdo Rio do início do século 20.

Foi neste contato que os ranchos foram tomando outroformato e adquirindo nomes como Recreio da Flores,

nas de outros. Pouco a pouco o nome cucumbi foi sendosubstituindo pelo genérico cordão que proliferava na cidadeinteira. Muitos se tornaram famosos, mas nenhum como oRosa de Ouro, para quem, atendendo um pedido da direto-ria, a maestrina Francisca Edwiges Neves Gonzaga, que pas-sou para a história como Chiquinha Gonzaga, compôs amarcha que tornou-se musica-símbolo do carnaval brasileiro:

Ó abre alas, que eu quero passar

Eu sou da lira não posso negar,

Rosa de Ouro é quem vai ganhar

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Kananga do Japão, Ameno Resedá, Flor do Abacate, impon-do-se como uma das forças básicas do nosso carnaval. Àmedida que foram crescendo foram se tornando mais opu-lentos e importantes. Seu cortejo era impressionante commúsicos de bandas militares e cantores operísticos.Arrebanhavam famílias inteiras e desfilavam para milharesde pessoas que se acotovelavam ao longo da Avenida Central,depois Rio Branco, sob calorosos aplausos e grande animaçãopopular. Muitos cronistas carnavalescos descreveram os des-files dos ranchos como procissão medieval ou teatro líricoambulante. Os enredos que eram apresentados tinham títu-los como A Divina Comédia, de Dante Alighieri; Aida, deVerdi; Salomé, de Oscar Wilde e Rainha de Sabá.

Dividindo a preferência do povo e da imprensa existiamas Sociedades Carnavalescas ou Grandes Sociedades, comoficaram conhecidas. As pioneiras foram os ZuavosCarnavalescos, depois denominada Tenentes do Diabo, aGrande Congresso das Sumidades Carnavalescas, dissolvidamais tarde para formar a Sociedades de Estudantes deHeidelberg, e os Democráticos. A principal característica dassociedades é que os fundadores e diretores eram escritores,

profissionais da imprensa, médicos, enfim, pessoas bem dife-rentes das que fundaram cordões e ranchos. Mas, ao contrá-rio do que se poderia pensar, estes grupos tinham um gran-de compromisso social e político com o momento em queviviam. Em 1876, os Estudantes de Heidelberg, que deram onome de Universidade à sua sede, saíram às ruas esmolandopara conseguir o suficiente para poder comprar a carta dealforria para um menor escravo que tinha salvado de morrerafogada uma menina branca na praia de Icaraí.

No carnaval de 1888, poucos meses antes da abolição daescravatura, um jornal publicou o seguinte:

“O grupo dos Pelicanos, heróica fração do beneméritoclube dos Fenianos, sempre generoso e nobre, mais uma vezfez realçar os seus reconhecidos méritos e elevados sentimen-tos nobilitando de modo imorredouro o grandioso aconteci-mento de hoje com a restituição de um homem ao estadolivre. Não é a primeira vez que os eméritos foliões se reco-mendam aos louvores ou encômios. O escravo alforriadopelo ilustre clube tem vinte anos, chama-se Teodoro e acom-panhará os seus benfeitores na vitoriosa passeata carnavales-ca de hoje. Um Bravo! à heróica falange.”

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Os três grandes clubes, Tenentes do Diabo, Democráticose Fenianos, no período carnavalesco anterior à abolição, com-pravam escravos para aforriá-los depois apresentá-los nos seusdesfiles, em cima dos carros, com um estímulo e uma lição.

O mesmo se deu em relação aos ideais republicanos. Associedades cerraram fileiras em torno dos que lutavam paraderrubar a monarquia e as armas usadas foram a sátira e asalegorias. Fato igual aconteceu com relação a adoção do votofeminino e à luta contra a ditadura do Estado Novo (duranteos anos 30 e 40).

Como se pode constatar estas organizações, que tambémse dedicavam ao culto da música e letras, foram peças funda-mentais para grandes conquistas da nossa história política.Esta é uma das originalidades do nosso carnaval.

Herdeiras dos ranchos e das grandes sociedades, as esco-las de samba, que surgiram no carnaval carioca nos primeirosanos de década de 30, incorporam elementos das duas for-mas e criaram um modelo novo e irresistível. Nascida nobairro do Estácio de Sá e logo se espraiando pelo morro daMangueira e os subúrbios de Oswaldo Cruz e Madureira,estas agremiações são a síntese de todas as manifestaçõesacontecidas desde a chegada dos primeiros navios negreirose dos festejos dos primeiros cucumbis.

As escolas de samba são, creio firmemente, uma fatalida-de histórica. Elas são a síntese do país e do nosso povo.Felizmente não nasceu com forma definitiva e acabada. Aolongo dos anos aconteceram modificações, o que é natural,mas sem lhes tirar a essência e mantendo a condição de teste-munha do seu tempo e espelho das ansiedades e expectativasdos seus componentes. Uma das instituições mais democrá-ticas de que se tem notícia, as escolas não limitam emnenhum grau o ímpeto da sua adesão. Entre os seus desfilan-tes, que hoje chega ao espantoso número de 4.000, emmédia, e só no grupo mais importante são 14 escolas, estãopessoas de raças, profissões e origens as mais diversas, que seirmanam para desfilar 90 minutos cantando e dançando.

Em todo este período, desde o primeiro desfile-concur-so realizado no dia 7 de fevereiro de 1932, as escolas têmcrescido como agremiações, ou grêmios recreativos como éa sua denominação oficial, muitas delas dedicam-se à reali-zação de um trabalho social de grande impacto, usando oesporte e os estudos profissionalizantes como cunha para

abrir os caminhos da plena cidadania para um apreciávelcontingente de jovens.

Dando continuidade a este lado original do nosso carna-val, que o diferencia de qualquer outro, as escolas de sambastêm exercido um magnífico papel no resgate de personagense episódios da nossa história, muitos até desconsideradospela história oficial. Quantas figuras marginalizadas, quantosmomentos importantes na formação do nosso país, ignora-dos pelos livros didáticos, ganharam sua devida dimensãoatravés dos enredos das escolas e seus sambas. Aleijadinho,Chica da Silva, Dona Beja, o baile da Ilha Fiscal, DelmiroGouveia, a revolta dos malês, Zumbi dos Palmares, MonteiroLobato, Villa Lobos, a crítica aos vários planos econômicosdos quais já fomos vítimas, a mitologia afro-brasileira, as alter-nativas em torno da versão do descobrimento do Brasil,enfim, as escolas de samba passaram a ser um fórum para sediscutir e conhecer o Brasil. E tudo isto sem pretensões aca-dêmicas, com linguagem e visualização artísticas de fácilcompreensão porque, afinal, tudo é feito em canto e dança.

Nos dias atuais o barracão é o grande caldeirão da alqui-mia carnavalesca, onde tudo se transforma e cria vidas atravésdas mãos dos artesãos que misturam suor, cola, prego e ferra-gem para materializar visões e delírios. Diferente de um ate-lier ou oficina, o barracão mergulha numa magia que é com-partilhada pelos que lá trabalham e compreendida pelos queo visitam.

O fenômeno escolas de samba extrapolou primeiro oslimites do Rio e, depois, os limites do Brasil. Hoje existemescolas em cidades tão diferentes como Los Angeles, Porto,Oslo, Toquio ou Londres, adotando não só o nosso ritmocomo também a sua essência.

Do bombo do Zé Pereira ao bumbo que marca o tempoforte na bateria das escolas, muita coisa aconteceu. O nossocarnaval, através delas, tem sido a trilha sonora da história dopaís, registrando, adotando, transformando, modificando ges-tos e modos, comportamentos e aparências. E mais, dão aomundo um exemplo de beleza, fraternidade e tolerância.

Haroldo Costa é ator, produtor cultural e autor dos livros Fala,

Criolo; Salgueiro, Academia de Samba; É Hoje (com o caricaturista

Lan), Na Cadência do Samba e 100 Anos de Carnaval do Rio de Janeiro.

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Beate Kittsteiner

Altamiro Carrilho

A Doce Presença doChorinho no AmbienteMusical Alemão

Ao contrário do samba e da bossa-nova,

o chorinho é ainda relativamente

desconhecido na Europa. O choro

(chorinho) surgiu por volta de 1870

quando os brasileiros começaram a

abrasileirar danças européias da moda,

como a valsa, a polca e a escocesa. O Rio de

Janeiro era um verdadeiro cadinho cultural. Lá

viviam imigrantes oriundos de diversos países

europeus, que haviam trazido consigo as tradições

musicais de suas pátrias.

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anos 20, foram introduzidos os típicos instrumentos de per-cussão, como por exemplo, o pandeiro, o reco-reco, ou opequeno surdo. Em seguida, acrescentou-se uma guitarra desete cordas, que possibilita uma melhor reprodução dos con-trabaixos, ou baixarias. Eu própria, com a minha formaçãojazzística, além de tocar a flauta, introduzi no meu grupo dechoro em Munique o saxofone. O cavaquinho é tocado pelobrasileiro Fábio Block, cujo pai já era um famoso chorista; aguitarra é tocada pelo alemão Dieter Holisch, que possui umrefinado sentido para a música brasileira; no contrabaixotemos o virtuoso espanhol Manolo Diaz. Nosso grupo éainda integrado por dois percussionistas: o brasileiro especia-lista em pandeiro Borel de Sousa e o alemão, criado no Brasil,Ulrich Stach, excelente percussionista que em nosso grupotoca a timba.

Como nossos principais inspiradores, poderíamos citar ocompositor Zequinha de Abreu, cujo Tico Tico no Fubá éconhecido no mundo inteiro. Dele também tocamos entreoutras composições Não me toques. Apreciamos também,enormemente, o legendário compositor, saxofonista e flautistaPixinguinha, cuja música não só possui uma incrível frescuracomo também é extremamente comovente. Dele sempre toca-

uitos comparam o choro – e o seu significadopara a recente música brasileira com o rang-timeamericano e a importância deste para o jazz. Por

sua vez, costuma-se observar que o choro primitivo se aproxi-ma da música clássica, ao passo que o choro mais recenteapresenta analogias com o jazz, principalmente quanto ao seupotencial para a improvisação.

Uma importante característica do choro, que o diferenciade diversas formas das música atuais, dominadas por umatendência reducionista, onde a melodia exerce um papelsecundário, é que o choro, com seu amplo arco melódico,apresenta surpreendente variação harmônica. Assim, um dosgrandes atrativos do choro é o fato de que nele se pode pro-duzir uma rica gama de variações- improvisações, de formasemelhante ao que ocorre no jazz. Os solistas, nos grupos dechoro, dirigem-se mutuamente melodias que cada um seesforça em superar, mediante variações, numa espécie dedesafio musical. Muitos choros antigos demonstram estacaracterística em seus títulos, como por exemplo, caiu, nãodisse? ou cuidado colega.

Originalmente, os instrumentos utilizados para tocar ochoro eram a flauta, o violão e o cavaquinho. Mais tarde, nos

Sobre essa base musical de tradição européia veio

acrescentar-se a influência africana, trazida pelos escravos,

na época já em pleno processo de fusão cultural. Da mistura

das duas influências musicais, ou seja, européia e africana,

resultou o choro, com seu ritmo sincopado de sabor

africano e suas harmonias com nítida afinidade européia.

A música derivada dessa mistura é mais suave e delicada

que o samba, prestando-se a uma rica variedade de

combinações melódicas.

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Jacob do Bandolim

mos o célebre chorinho, Carinhoso, imenso sucesso, junta-mente com outras composições suas, como Um a Zero, OsCinco Companheiros, Teu Aniversário e Vamos Brincar.Tenho ainda grande veneração pelo velho mestre de cavaqui-nho Waldir Azevedo, cuja composição brasileirinho se tornoumundialmente conhecida. Nosso grupo toca várias de suascomposições, além dessas, Cavaquinho Seresteiro, ChoroNovo em Dó, Lembrando Chopin(esta última, como diz otítulo, em homenagem a Chopin, a quem muito admirava) eHomenagem a Chiquinha Gonzaga. Chiquinha Gonzaga éoutra fonte de inspiração nossa: mulher revolucionária em sua

época (1847-1935), não somente em matéria de músicacomo também de costumes, e o seu famoso choro-polca.Atraente, consta no nosso repertório. Um compositor dosanos quarenta que muito apreciamos é Jacó do Bandolim, ver-dadeiro virtuoso do bandolim, e de quem tocamos, entreoutras composições, Doce de Coco e Vale Tudo. Entre os cho-ristas contemporâneos, temos especial admiração pelo flautis-ta Altamiro Carrilho.

Beate Kittsteiner é Musicóloga, saxofonista e flautista do seu grupo

Tocando de Munique.

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ode parecer que os idealizadores da iniciativa preo-cupam-se com moinhos de vento. A música popularbrasileira é apreciada por públicos variados, dos

Estados Unidos ao Japão. Tom Jobim está entre os grandescompositores de canções do século XX. Entretanto, a preo-cupação é compartilhada por muita gente que estranha amaneira como a mídia difunde uns poucos tipos de música,impondo barreiras à diversidade estética do país, numaépoca em que se alardeia o fim dessas mesmas barreiras, gra-ças às tecnologias de comunicação. Vale a pena, então, reme-morar as saídas para a música brasileira imaginadas nos últi-mos 85 anos por músicos, críticos e intelectuais. Pensadas eexperimentadas entre nós, elas encontram correspondência,naturalmente, em outras, concebidas na Europa e nasAméricas.

Tomemos como marcos históricos o carnaval de 1917,quando uma canção gravada em disco, intitulada “PeloTelefone”, se tornou sucesso nas ruas – depois entrou para ahistória como o primeiro samba gravado – e a Semana deArte Moderna de 1922, que sacudiu o meio artístico paulis-tano com concertos, leituras, exposição de obras de pintura earquitetura. Os dois constituirão o ponto de partida para opequeno inventário que segue. O leitor perceberá que asalternativas tiveram repercussão desigual, que algumaspodem ser combinadas e outras não. Alguns nomes são men-cionados, mas seria simplificar demais o quadro associar umasaída a essa ou aquela figura histórica. Elas também não cor-respondem a grupos de obras que seriam sua exemplificação.Pois a complexidade e a singularidade de cada evento musicalnão são redutíveis à ilustração de um movimento artístico ouprojeto político.

1 – Atualização mimética. Acertar o passocom a produção artística européia foi a saída vislumbrada pormuitos artistas brasileiros, numa época em que Paris era acapital mítica da civilização. A intimidade de alguns músicoscariocas com a música francesa de sua época surpreendeu ocompositor Darius Milhaud, quando de sua chegada ao Riode Janeiro, precisamente naquele ano de 1917. Em suasmemórias (Ma vie heureuse), conta que veio conhecermelhor a música de Eric Satie na casa do professor de pianoLeão Veloso!

PUm pequeno selo

fonográfico surgiu em

São Paulo, recentemente,

na União Metropolitana

dos Estudantes. Seu lema

é “fazendo a música que

o Brasil merece”. O que se

deduz do catálogo de

títulos e artistas produzidos

pelo selo é que as rádios e

redes de televisão aberta

não distribuem a música

que o Brasil merece. O lema

é um veredicto sobre o

mercado de música e a

síntese de uma proposta:

travar um combate

desigual, quixotesco, para

retirar da sombra músicos,

repertórios e tradições que

merecem ser ouvidos.

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A solução conheceu sucesso duradouro no Brasil e atraiunumerosos artistas. Com ela identificaram-se os composito-res Luciano Gallet, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone.Quem melhor a formulou teoricamente foi Mário deAndrade, outro participante da Semana de 1922. Segundoele, a elaboração de uma música artística propriamente brasi-leira seria possível a partir da utilização consciente dos traçosnacionais que emergiam, com naturalidade, nas músicaspopulares. Assim, sairíamos do estágio do mimetismo e amúsica brasileira estaria apta a figurar nos programas de con-certo, ao lado das grandes tradições nacionais européias.

O sucesso de Heitor Villa-Lobos em Paris, nos anos1920, confirmava o acerto da tese que combinava nacionalis-mo e modernismo, integração ao mundo civilizado ocidentale mergulho nas particularidades brasileiras. A obra de Villa-Lobos era interpretada pelos críticos europeus como expres-são do vigor primitivo e opulência natural de um país jovem– portanto, como autêntica expressão do Brasil. Além disso,os tangos, polcas e maxixes, que não despertavam interesse

Encontram-se elementos desse anseio de atualização naSemana de Arte Moderna. A conferência que o escritorGraça Aranha (recém-chegado da Europa) proferiu na oca-sião trazia, didaticamente, notícias dos nomes mais pronun-ciados no modernismo parisiense – Igor Stravinski, Satie, oGrupo dos Seis. Cumpria, pois, o papel de difundir, entrenós, a própria idéia de uma “música moderna”.

O mimetismo costuma ser vulnerável à crítica. Um exem-plo da observação irônica da importação de modernismos é amarcha A-B-surdo, composta por Lamartine Babo e NoelRosa em 1931. Parodiando a poesia moderna e a febre defuturismo que sucedeu a visita de Marinetti, eles cantaram:

É futurismo, menina É futurismo, meninaIsso não é marchaNem aqui nem lá na China.

2 – Reconhecimento da feição nacional.

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Oswald de Andrade

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no meio acadêmico brasileiro, começavam a ser vistos sobnova luz. Na Revue Musicale, Milhaud falava de seu esforçopara capturar a bossa das síncopas nas peças dos composito-res brasileiros, dentre eles o “genial” Ernesto Nazareth.

3 – Euforia da técnica. As inovações tecnológi-cas, na primeira metade do século XX, transformaram radi-calmente a relação da maioria dos homens com a música.Gravação sonora e radiodifusão desvincularam a audição doconvívio entre músicos e ouvintes, no mesmo espaço e tempo.A música mecanizada gerou tanto visões sombrias quantootimistas da técnica. Os que depositaram confiança no pro-gresso viram também com entusiasmo o surgimento dasmúsicas da era industrial, capazes de expressar a velocidade eexcitação do mundo moderno. Surpreende-se essa atitude noeditorial da revista Klaxon (1922) celebrando o cinema comoa arte representativa da época, os Oito Batutas e o jazz-band.

4 – Antropofagia. “Wagner submerge ante os

cordões de Botafogo”, proclamou Oswald de Andrade noManifesto Antropófago, em 1928. A Antropofagia voltou-secontra a atualização mimética e a atitude reverente diante dasobras prestigiadas pelo universo acadêmico. A expressão “cul-tura brasileira” começou a ser entendida como algo bem maisamplo do que a produção dos setores letrados, nessa propos-ta híbrida de nativismo, primitivismo e febre modernista derenovação. Misturando agressividade e humor, a antropofa-gia prega a devoração do colonizador, isto é, a incorporaçãode seu poder num festim selvagem, inspirado nos rituais dosnativos tupis.

Trata-se, então, de repor os termos da relação entre amúsica brasileira e a música dos centros da civilização ociden-tal. Abandona-se a atitude temerosa diante do estrangeiro,que não será simplesmente rejeitado. Promove-se, em lugardisso, a absorção de suas qualidades.

Há fartos exemplos de devoração das tradições européiasna música praticada por brasileiros, antes e depois da formu-lação teórica da antropofagia. No século XIX, a partir do triode flauta, cavaquinho e violão, os chamados “chorões” trans-formaram a música das danças européias, como a polca,gerando novos estilos. Mais tarde, no âmbito do movimentodenominado “Tropicália”, canções antigas do repertórioromântico brasileiro juntaram-se a cantigas de sabor rural eàs modernas guitarras elétricas, identificadas com uma novamoda estrangeira – o rock’n roll.

5 – Educação das massas. Nessa propostacivilizatória, enfatiza-se o papel social do artista e o apoio doEstado. Daí resultam ações de grande alcance para distribuiros benefícios da educação e formar, antes de mais nada, oouvinte.

Tal foi a aposta de Villa-Lobos quando dirigiu aSuperintendência de Educação Musical e Artística, no antigoDistrito Federal. O fascínio do compositor pelas grandiosasmanifestações corais encontrou eco no espírito disciplinadordo regime implantado por Getúlio Vargas, em 1930. O fimda Primeira República, em meio aos percalços do comérciode café e a crise internacional de 1929, enfraqueceu a crençanos valores liberais. Nesse contexto, espetáculos com milha-res de vozes simbolizavam a vitória dos interesses coletivossobre o individualismo.

Noel Rosa

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O plano de educação musical deVilla-Lobos ambicionava uma verdadei-ra reforma da mentalidade, alcançadamediante a formação de um público e deprofessores. Esse seria o antídoto eficazpara os venenos da vitrola e do cinema,aos quais Villa-Lobos, como outros emsua época, atribuía a degeneração dogosto musical.

6 – Vanguarda e artemalsã. O avanço das formas de distri-buição massificada de música gerounovos ídolos e novos estilos. Pouco lugarrestou para o compositor que, após longoperíodo de formação especializada, com-põe artesanalmente, por escrito, obrascomplexas, de difícil execução pelosintérpretes e difícil assimilação pelosouvintes. A dupla frustração, com o regi-me político totalitário do Estado Novo,de um lado, e com a lógica do mercado,de outro, fez alguns artistas acirrarem suaatitude de rejeição, não apenas às sonori-dades rotineiras, espalhadas nos arespelos aparelhos de rádio, mas à própriasociedade.

Na atmosfera sombria da Segunda Guerra Mundial,Mário de Andrade fez reflexões amargas sobre a arte musicalno Brasil. Ainda que mantivesse, em geral, convicções otimis-tas acerca da música brasileira, deixou entrever, na voz de seuspersonagens d’O Banquete, que a atitude radical das van-guardas despontava como uma resposta aos problemas deseu tempo. Diz um dos personagens, o compositor Janjão,num trecho do diálogo:

O melhor jeito de me utilizar, de acalmar a minha cons-ciência livre, imagino que será fazer obra malsã... Malsã, secompreende: no sentido de conter germes destruidores eintoxicadores, que malestarizem a vida ambiente e ajudem abotar por terra as formas gastas da sociedade.

As alternativas desse breve inventário apresentaram-seem contextos históricos particulares, vinculadas a determina-

das formas de perceber os problemas da cultura brasileira.Por isso, não têm valor de receita, não podem ser convertidasem ações. Um eixo importante do debate sobre a música noBrasil – a relação de oposição entre nacional e estrangeiro –foi deslocado desde a Antropofagia. Ainda assim, as questõesevocadas não ficaram obsoletas. A necessidade de conhecermelhor os diversos idiomas musicais praticados no Brasil e abusca da excelência artística sem desdenhar a educação con-tinuam em pauta.

Elizabeth Travassos é doutora em Antropologia Social pelo Museu

Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Leciona

Folclore e Etnomusicologia na Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO).

É autora de Os mandarins milagrosos. Arte e etnografia em Mário de

Andrade e Béla Bartók (1997) e Modernismo e música no Brasil (1999).

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Villa-Lobos

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DOS REIS DO RÁDIOÀ BOQUINHA DA GARRAFA

Tom Tavares

Quando oficialmente aconteceu a primeira transmissão

de rádio no Brasil, oitenta projetores de som espalhados

pela antiga capital federal veicularam o discurso do

Presidente da República, Epitácio Pessoa, em seu último

ano de governo. Depois do som do poder, foi a vez do

poder do som: e pôde ser ouvida a protofonia da ópera

“O Guarani”, do compositor campineiro Antônio Carlos

Gomes, transmitida diretamente do Teatro Municipal do

Rio de Janeiro.

Carmen Miranda

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udo isso se deu no dia 7 de setembro de 1922,durante as comemorações dos cem anos da inde-pendência, espaço de tempo em que a federação

viveu crises políticas sucessivas, distinguida por uma econo-mia frágil, já devedora da Inglaterra, transferência de umarealeza anacrônica para a real farsa de uma nova repúblicaque cedo se mostrou velha.

Quando este setembro chegou, a despeito dos desman-

dos praticados pelos condutores do país, também era tempode contabilizar alguns bons motivos para expressar esperan-ça, otimismo. E um desses motivos era a produção musical.Tínhamos uma boa herança do som da flauta de JoaquimAntônio da Silva Calado e ainda contávamos com o piano deChiquinha Gonzaga. Estávamos há vinte anos da gravaçãodo primeiro disco contendo música popular brasileira (“IstoÉ Bom”, de Xisto Bahia, realizado pela Casa Edison) e setemeses depois da Semana de Arte Moderna, evento em que amúsica brasileira se fez representar através de Ernani Braga,Fructuoso Vianna e Heitor Villa-Lobos.

No início da terceira década do século passado, o Brasil jáfazia das suas artes.

Despontavam, nesse período, alguns dos mais importan-tes artistas da nossa história: Pixinguinha excursionava pelaFrança e gravava com Os Oito Batutas na RCA-Victor daArgentina; ao bandolim, Luperce Miranda integrava o JazzLeão do Norte, em Recife; o som do piano de Ari Barrosoenchia a sala de espera do Cinema Íris, localizado no Largoda Carioca; Josué de Barros retornava ao Brasil depois de rea-lizar as primeiras gravações de música brasileira na Europa;

Francisco Alves fazia sua estréia no Teatro São José, ao ladodo já famoso Vicente Celestino; e Ernesto Nazareth desfru-tava do sucesso de composições como “Brejeiro”, “Odeon” e“Apanhei-te Cavaquinho”.

E havia mais: em São Paulo, Zequinha de Abreu fazia ospares dançarem ao som de “Tico-Tico no Farelo” que, depois,se transformou no mundialmente famoso “Tico-Tico noFubá”. Mais ao sul, em Porto Alegre, Radamés Gnattali toca-

va piano no Cine Colombo, ao tempo em que produzia suasprimeiras partituras tendo como referência elementos musi-cais eminentemente brasileiros.

Assim, quando Roquette Pinto inaugurou a nossa pri-meira emissora, a Rádio Sociedade, no dia 20 abril de 1923,o acervo composicional desenvolvido em terras brasileiras jáera vasto e variado o suficiente para atender à demanda daclientela alcançada por aquele novo meio de comunicação. Adeficiência não era, pois, no campo da criação. Era na área dagravação, uma vez que os estúdios existentes não dispunham,ainda, de recursos técnicos ideais para captação e reproduçãosonora. E, se os discos gravados em 78 rotações não ofere-ciam fidelidade, tampouco os microfones, tampouco os trans-missores e, menos ainda, os raríssimos receptores. Mas, davapro gasto. E o rádio caiu no gosto do povo. O povo entrou naonda do rádio.

Rapidamente, novas emissoras foram criadas, envolvidasnuma saudável disputa pela audiência através da qualidade.Não apenas pela capacidade dos produtores e apresentado-res. É que os homens do rádio de então, talvez até mesmo porfalta de opções outras, estruturaram toda a programação

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baseada na música. E, aí sim, por sorte e competência, a músi-ca era boa.

Dessa forma, estabelecia-se uma relação em que eramatendidos todos os interesses: a gravadora via divulgado oseu trabalho; o artista, ao ser veiculado pela emissora, expan-dia o seu campo de ação; e o rádio, em desenvolvimento,carente em material para preencher a sua programação, ali-mentava-se do rico e variado filão musical. É bem verdadeque a Rádio Jornal do Brasil distinguia a criação erudita.Mas, também é verdade que as demais se fartassem em vei-cular a fina-flor da nossa jovem música de então. Jovemmúsica de Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, MárioReis, Ari Barroso, Carmen Miranda, Sílvio Caldas, Donga.Jovem música cheia de novos rítmos, do lundú, do maxixe,do choro, da marcha, do samba, que, graças à inexorabilida-de do tempo, cedo integraria o repertório do que se conven-cionou chamar de “velha guarda”.

Complementando o acervo sonoro recebido das gravado-ras, ainda nos anos 20 as emissoras começaram a veicularmúsica ao vivo, executada ali mesmo, em seus estúdios detransmissão. E, mais uma vez, se comprova a qualidade do

artista daquele período: só faz ao vivo quem tem competên-cia para tal. Havia, pois.

A partir do surgimento da Rádio Nacional, em 1936, opúblico passou a disputar, também, um lugar para ver os pro-gramas de rádio. Isto mesmo: ver o rádio.

Chegavam os programas de auditório que dividiam o seutempo entre apresentações de instrumentistas, cantores con-sagrados e, também, novos valores, chamados de “calouros”,contribuindo para o aumentar a já extensa relação das nossasatrações musicais.

Nesse tempo, o rádio experimentava a sua primeiratransição. Pouco a pouco, os locutores foram perdendo oposto de comando dos programas, agora ocupado, princi-palmente, por cantores e compositores, contratados comexclusividade. A Rádio Mayrink Veiga exibia CarlosGalhardo, Sílvio Caldas; a Tupi apostava em DircinhaBatista; a Rádio Educadora se encontrava nas “HorasLamartinescas”; a presença de Almirante era patente naTamoio; Ari Barroso brilhava na Cruzeiro do Sul. A RádioNacional, por seu turno, colocava no ar com um time depeso, em que se destacavam Francisco Alves, Linda Batista,

Sílvio Caldas Nelson Gonçalves

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Nuno Rolando, Manezinho Araújo, Nelson Gonçalves eOrlando Silva.

Líder absoluta em audiência nos anos 40 e 50, a Nacionalchegou a ter, sob contrato, 15 maestros, mantendo, ainda, noseu elenco, dois conjuntos regionais e grande orquestra for-mada por 144 membros. De quebra, empregava solistas daqualidade de Jacob do Bandolim, Abel Ferreira, LuperceMiranda, Luiz Americano, Dilermando Reis, Garoto eChiquinho do Acordeon. Não satisfeita com tanto, aindaatropelou o nosso regime presidencialista ao fazer deMarlene, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Ângela Maria eDóris Monteiro, as Rainhas do Rádio, vozes de ouro na trilhasonora dos anos românticos da metade do século vinte.

A partir de 1950, a disputa pela audiência aumentou,ainda mais, com o advento da televisão no Brasil.Nasceram as tevês Tupi, Nacional, Rio, Paulista,Continental, Excelsior e Record, as mais importantes destafase de implantação. Esse novo veículo de comunicaçãoganhou os lares brasileiros usando como atrações os mes-mos grandes nomes do rádio. E, se a programação era ver-dadeiramente diversificada, com novelas, notícias, filmes,era inegável a liderança dos programas musicais. Dessaforma, também a tevê nasceu, aprendeu a andar, cresceuancorada na música brasileira: não só a vigente mas, tam-bém, a resultante dos novos movimentos que balançaram opaís entre os anos cinquenta e sessenta: Bossa Nova, JovemGuarda e Tropicalismo.

Havia espaço para todos na telinha quando os Festivais deMPB (iniciados pela TV Excelsior em 1965, imitados pelaRecord e, depois, pela TV Globo) selecionavam o repertório a

ser cantado pela nação. Tom Jobim, Vinícius de Morais, BadenPowell, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Chico Buarque, MPB4, Nara Leão, Wilson Simonal, Roberto Carlos, Edu Lobo,Elis Regina, Caetano Velloso, Gal Costa, Gilberto Gil, OsMutantes, Tom Zé, Sérgio Ricardo, Dori Caymmi, NelsonMota, Luiz Bonfá, Antonio Adolfo, Milton Nascimento,Guarabira, Paulinho da Viola, Marcos Valle, Sueli Costa, IvanLins, Beth Carvalho, Antonio Carlos e Jocafi, Gonzaguinha,Egberto Gismonti e Jorge Benjor foram alguns dos grandesnomes que surgiram nessa época.

Os programas musicais, a exemplo de “O Fino da Bossa”(Tv Record),“Um Instante Maestro” (Tv Tupi),“A GrandeChance” (Tv Tupi), “Vamos S’imbora” (Tv Record), “EstaNoite Se Improvisa” (Tv Record),“Rio Hit Parade” (Tv Rio)dominavam o horário nobre. A juventude podia escolherentre “Todos os Jovens do Mundo” (Tv Record),“Os BrotosComandam” (Tv Continental),“Festa do Bolinha” (Tv Rio),“Jovem Guarda” (Tv Record), “Jovem Urgente” (TvCultura),“Poder Jovem” (Tv Tupi),“Brasa 4” (Tv Itacolomi-BH), e outros mais.

Esta ebulição continuou até, pelo menos, o final dos anossetenta, saindo de cena ao tempo em que desapareciam astevês Paulista, Tupi, Excelsior, Continental, emissoras engoli-das pelas grandes redes, que têm na Globo o seu paradigma.

O processo de desmanche passou, obviamente, pelademissão de conjuntos regionais, orquestras inteiras, regen-tes, em resumo, todas as cabeças musicais que não se ren-dessem aos ditames do mais novo diretor artístico das emis-soras: o mercado. Para a vaga deixada pelos reis e rainhas dorádio, os donos da mídia elegeram os seus astros ideais:

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luminosos reis da submissão, da subserviência, cordeirosideologicamente áridos.

Era o fim de uma relação plural, culturalmente exitosa,entre as indústrias da música e das comunicações. A partirdaí, as grandes redes se impuseram como grandes exércitos alotear alemanhas derrotadas, descumprindo frontalmente alegislação que lhes permite o funcionamento. As emissorasde rádio e tevê praticamente jogaram no lixo a lei das conces-sões, aliando-se a empresários cuja sensibilidade musical serestringe ao fascínio pelo tilintar das moedas.

Dito assim, beira a fantasia, pode parecer mentira.Lamentavelmente, é verdade.

Houve um tempo em que a música, projetada através doalto-falante, identificava, no formato cônico deste acessório,um dos seus símbolos. Era o desenho representativo do cres-cimento, da evolução, da expansão, da liberdade.

Hoje, os meios de comunicação procedem de modo a nãocontemplar a diversidade, desestimulando, sabotando o livre

Donga

Gilberto Gil

desenvolvimento do pensamento artístico, comprimindotudo e todos num mesmo embrulho, empurrado em direçãoà boquinha da garrafa.

Tom Tavares – Compositor e Regente, Professor da Escola de

Música da Universidade Federal da Bahia

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TRANSFORMAÇÕES DO

NO SÉCULO XX

Carlos Sandroni

samba vem sendo reconhecido, nas últimas déca-das, como a expressão musical mais tipicamentebrasileira. Mas a palavra “samba” designa, no

Brasil, muitas coisas diferentes. Sua acepção mais comumrefere-se ao gênero musical desenvolvido no Rio de Janeiro aolongo do século XX.

O samba carioca tem inúmeras variantes, mas uma dife-rença especialmente importante tem sido sublinhada peloshistoriadores do gênero entre o samba que se fez nos anos1910 e 1920 e o que foi feito dos anos 1930 em diante. Noinício do século XX, quem falava em “samba” no Rio eramsobretudo as pessoas ligadas à comunidade de negros e mes-

tiços emigrados da Bahia, que se instalara nos bairros próxi-mos ao cais do porto, a Saúde, a Praça Onze, a Cidade Nova.Essas pessoas cultivavam muitas tradições de sua terra natal:era uma gente festeira, que gostava de cantar, comer, beber edançar. Chamavam suas festas de “sambas”. E usavam amesma palavra para designar uma modalidade musical-coreográfica de sua especial predileção, que consistia noseguinte. Formava-se uma roda, para o centro da qual iaalguém que começava a dançar e dançando escolhia um par-ceiro do sexo oposto. (A maneira pela qual esta escolha eracomunicada ao parceiro é importante: trata-se da “umbiga-da”, ou choque de umbigos, gesto coreográfico que, acredita-

SAMBA CARIOCA

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mais tradicionais do carnaval da cidade, como a Mangueira, aPortela e a Salgueiro. Essa criação se deu no final dos anos1920 e início dos 1930, concomitantemente aliás à criação dorespectivo concurso carnavalesco.

Por que o samba do Estácio foi tão influente? É difícil res-ponder de forma cabal a essa pergunta, mas um fator pareceter sido importante. Os compositores do Estácio rapidamen-te atraíram a atenção de uma figura de enorme sucesso nomundo da música profissional: o cantor Francisco Alves. Nofinal dos anos 1920, época em que começou a gravar sambasde Bide e Ismael Silva, Chico Viola (como também eraconhecido) já era a estrela mais brilhante no firmamento dorádio e do disco no país. Associando-se à turma do Estácio,catapultou-a para um patamar de prestígio que só mais tardeseria alcançado pelo pessoal da Mangueira e dos outros redu-tos de samba. Não é de estranhar que estes tenham vistonaquela um modelo a ser imitado.

Os testemunhos sobre os desfiles de escolas de samba nosanos 1930 indicam que eles não tinham muito em comumcom o que se vê hoje no Sambódromo. Cada escola cantavatrês sambas, e não apenas um como a partir de 1940. Estesnão eram “sambas-enredo” pois o desfile não representava umenredo, isto é, não contava uma história nem desenvolvia umtema geral. Cada samba consistia de um refrão cantado emcoro, depois do qual um solista improvisava versos.Evidentemente não havia amplificação, e os solistas tinhamque ter voz potente o bastante para ser ouvida em meio àbateria. (Esta tinha muito menos integrantes que as de hoje,mas mesmo assim precisava tocar baixinho nas partes dossolistas.)

As transformações do samba na primeira metade doséculo XX se deram em múltiplos planos: nos desfiles de car-naval, mas também nos estúdios de gravação. Estes diferentesplanos eram controlados por forças sociais distintas: simplifi-cando um pouco, pode-se dizer que, no desfile, quem manda-va eram pessoas como Cartola ou Paulo da Portela, perten-centes a camadas desfavorecidas da população; enquanto nosestúdios, mandavam os diretores artísticos das gravadoras, ouem última instância os próprios donos destas. O extraordiná-rio relevo da música popular brasileira produzida naqueleperíodo (e também posteriormente) está ligado sem dúvida aque domínios sociais tão distintos tenham podido se entrela-

se, recebia em uma das línguas do tronco banto o nome de“semba”, suposta origem de “samba”...). Os dois dançavam nocentro da roda enquanto todos cantavam curtos refrões,alternados com partes solistas também curtas e muitas vezesimprovisadas, e acompanhados por palmas e instrumentoscomo o pandeiro, o prato-e-faca, o chocalho. Em seguida, apessoa que havia começado deixava o centro da roda e seuparceiro escolhia segundo o mesmo procedimento um novopar, e assim sucessivamente até que todos tivessem dançadono centro.

Entre os freqüentadores destas festas baiano-cariocasestavam músicos em vias de profissionalização, como osdepois famosos Pixinguinha, Sinhô e Donga. Eles se inspira-ram, para suas composições, em muito do que ouviam por lá.Donga, filho de uma baiana festeira, não foi o primeiro a usaro nome “samba” como denominação de gênero para uma des-tas composições; foi o primeiro a obter enorme sucesso popu-lar ao fazê-lo, com o famoso “Pelo telefone”, de 1917. MasSinhô é que iria se notabilizar, durante os anos 1920, como o“Rei do Samba”, em composições como “Jura”,“Gosto que meenrosco” e “A Favela vai abaixo”.

Esta bem sucedida atividade de compositores profissio-nais iria modificar sensivelmente as conotações da palavrasamba no Rio de Janeiro, popularizando-a enormemente,alargando cada vez mais a faixa da população capaz de iden-tificar-se com ela.

No final dos anos 1920 são criadas as primeiras “escolasde samba”. A origem da denominação é incerta. O que pare-ce certo é que está ligada a um bloco carnavalesco do bairrodo Estácio de Sá, de nome “Deixa falar”. Este bloco teria sidoo primeiro a desfilar no carnaval ao som de uma orquestra depercussões formada por surdos (tambores graves), tambo-rins (tambores agudos) e cuícas (tambores de fricção), aosquais se juntavam os já mencionados pandeiros e chocalhos.Este conjunto instrumental foi chamado de “bateria” e presta-va-se ao acompanhamento de um tipo de samba que já erabem diferente dos de Donga, Sinhô e Pixinguinha.

O samba feito à moda do Estácio de Sá – cujos principaiscriadores foram Ismael Silva, Nílton Bastos, Bide e Marçal –firmou-se rapidamente como o samba carioca por excelência.Foi seguindo suas pegadas que gente como Cartola e Pauloda Portela criou as escolas de samba que viriam a tornar-se as

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obsessão nos arranjos da época, sendo declinada em todasas variantes possíveis, nas introduções, nas pausas do cantoe nos acordes finais. Ora, as gravações de samba de ca.1932 em diante – quando a importância dos ritmistas jáera sólida – não mostram nem vestígio da referida “pontua-ção”. É tentador pensar, pois, com Silva, que um elementotenha substituído o outro: as gravações já não precisariam

do martelar rítmico detrombones e tubas, dado queagora podiam contar comsurdos, pandeiros etc.

De fato, talvez a caracte-rística mais marcante dasgravações de samba dos anos1930 – ao menos por con-traste com as da década ante-rior, e até certo ponto, tam-bém da seguinte – seja a fortepresença de instrumentos debatucada. Ao contrárioporém do que acontecia nosdesfiles de carnaval, esta pre-sença acontecia de maneirareduzida: um surdo, um pan-deiro, um ou dois tamborins.(De cuíca, não conheçoexemplo nas gravações daépoca: o instrumento eraconsiderado demasiadobizarro, exótico, estranho,

como atestam inúmeros testemunhos.) Esta “batucada decâmara” foi acoplada de maneira feliz a um conjunto instru-mental do tipo dos que no começo do século se chamava de“choro”, isto é, base harmônica de violões e cavaquinho acres-cida de um ou dois solistas, como flauta, clarineta ou bando-lim. Esta nova síntese instrumental entre elementos prove-nientes de tradições afro-brasileiras e elementos vindos daspráticas musicais de camadas médias urbanas é que foi cha-mada, nos estúdios de gravação e nas rádios, de “regional”,abreviação de “orquestra regional”, para diferenciá-la daorquestra tida por “universal”, à base de cordas de arco.

Os primeiros concursos de escolas de samba acontece-

çar, como co-protagonistas de uma história até certo pontocomum a ambos.

No início dos anos 1930, sob o impacto das inovaçõesmusicais do Estácio, mas também das inovações tecnológicas– como a substituição do sistema dito “mecânico” pelo dito“elétrico” de gravação –, se redefinem as relações entre osamba de rua e o estúdio. Um dos aspectos mais importantesda nova sonoridade queresultaria desta redefinição éa presença, nas gravações,dos chamados “ritmistas”.Essa palavra – e não a pala-vra “percussionistas”, de ado-ção muito mais recente – erausada para se referir aosmúsicos populares, egressosdas escolas de samba, espe-cialistas em surdos, cuícas,tamborins e pandeiros. Aprimeira vez que tais músicosforam admitidos em estúdiono Rio de Janeiro, ao quetudo indica, foi por ocasiãoda gravação do samba “NaPavuna”, de Candoca daAnunciação e Almirante, em1930. É somente por volta de1932, no entanto, que a prá-tica se torna comum.

A presença dos ritmistasprovavelmente se relaciona, como sugeriu Flávio Silva, aoutra mudança importante, que diz respeito ao papel dos ins-trumentos de sopro nos arranjos. Nas gravações da década de1920, onde não havia percussão, o papel mais característicodos instrumentos de sopro – sobretudo os de timbre maisgrave, trombone, tuba – era fazer uma espécie de pontuaçãorítmica nos intervalos das frases dos cantores, baseada nacélula que Mário de Andrade batizou de “síncope caracterís-tica”, geralmente começando por uma pausa de semicolcheia.Esta “pontuação” pode ser ouvida por exemplo no início de“Jura”, de Sinhô:“Jura... jura... jura... pelo Senhor – pom, pompom pom, pom pom pom etc.” Mas ela foi uma verdadeira

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ram numa praça vizinha ao bairro do Estácio, a Praça Onze.Esta foi nas primeiras décadas do século XX, na expressãofeliz do sambista Heitor dos Prazeres, algo como uma“Pequena África”. De fato, a Praça Onze foi celebrada emprosa e verso como berço do carnaval popular do Rio deJaneiro. Isto se deve em grande parte à sua posição na geogra-fia urbana. A Praça formava um retângulo enquadrado àOeste pela rua Santana, ao Norte pela rua Senador Eusébio,ao Sul pela rua Visconde de Itaúna e a Leste pela rua GeneralCaldwell. Do lado da rua Santana, estava a extremidade docanal do Mangue, à volta do qual se havia construído, porvolta de 1870, a “Cidade Nova”, bairro popular, cheio denegros alforriados (a escravidão não terminou no Brasil

senão em 1888) e de imigrantes vindos do interior. A músicapopular do Rio na virada dos séculos XIX/XX (o choro, omaxixe) foi criada e tocada em grande parte por lá.

Do lado da rua Senador Eusébio, a Praça acompanhava otrecho final da Estrada de Ferro Central do Brasil, que traziaao centro da cidade enorme contingente de trabalhadoresvindo do subúrbio. Um pouco mais longe na mesma direção,havia os morros da Saúde e da Gamboa, também muitopopulares e habitados por muitos estivadores por sua proxi-midade com o porto. Do lado da rua Visconde de Itaúnaachava-se a casa de Tia Ciata. Baiana e mãe-de-santo, esta foifigura de proa na origem do samba e do culto dos orixás noRio de Janeiro.

Finalmente, do lado da rua GeneralCaldwell, a Praça abria-se em direção ao cen-tro da cidade, aos bairros ricos. Pois ela não erafreqüentada apenas pelos pobres dos bairrosque a circundavam, mas também pelos “dooutro lado”, ou porque estes procurassemexotismos, ou porque mantivessem relaçõespessoais com os do mundo popular. Esta“abertura” em direção a outras esferas geo-sociais levou o antropólogo Artur Ramos aconsiderar a Praça Onze como uma “válvulade escape entre o mundo dos negros e o dosbrancos”.

A Praça Onze era assim o lugar por exce-lência do carnaval dos pobres, do “pequenocarnaval”, como se dizia na época. O “grandecarnaval”, por outro lado, era o dos ricos, elestambém organizados em grupos carnavales-cos: os “ranchos” e “Grande Sociedades”.Estes desfilavam na atual avenida RioBranco, que era, do ponto de vista do simbo-lismo urbano, diametralmente oposta àPraça Onze. A avenida em questão foi aber-ta em 1903-4 e batizada de “avenida Central”pelo prefeito Pereira Passos. Consideradapelo historiador Jeffrey Needel, a justo títu-lo, como “a melhor expressão da BelleÉpoque carioca”, a nova avenida exprimia osdesejos da elite brasileira de ver “sua” capital

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mais parecida com a Paris de Haussman que com umacidade tropical e mestiça.

“A avenida foi planificada não somente com objetivosurbanísticos: ela foi concebida como uma proclamação.Quando, em 1910, seus edifícios foram terminados e seuconceito finalizado, uma magnífica paisagem urbana descor-tinou-se no centro do Rio. A capital federal possuía agora umboulevard de fato civilizado e um monumento ao progressodo país [...] A imaginação popular era dominada pelo con-junto dos edifícios públicos, na extremidade sul da avenida: oTeatro Municipal, o Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional ea Escola de Belas-Artes [...] Estas fachadas e as forças sociaisaí representadas tinham sido tão cuidadosamente planejadasquanto o próprio traçado da avenida.” (Needell, 1993)

O carnaval de elite, Avenida de elite. Os edifícios mencio-nados formavam juntos uma espécie de súmula da cultura eda arte letradas de estilo europeu: assim o Teatro Municipal,uma cópia do Opéra Garnier, de Paris, defronte à Escola deBelas-Artes onde se ministravam aulas no mais estrito respei-to ao cânon acadêmico.

Mas a história iria provar que a oposição entre a PraçaOnze e a avenida Central não era tão insuperável quantoparecia...

Durante os anos 1930 e 1940, as escolas de sambaganhavam cada vez mais prestígio, à medida que o samba,como gênero musical, se transformava numa espécie deemblema sonoro do Brasil (Vianna, 1996). A Praça Onze eas ruas que a circundavam desapareceram no fim dos anos30, na época das reformas no centro da cidade, quando foiaberta a enorme avenida Presidente Vargas (uma perpendi-cular ao norte da avenida Central). A partir de então, o localdo desfile das escolas de samba mudou quase que a cada car-naval, mas sempre atraindo cada vez mais turistas, classemédia e curiosos de todos os cantos do Rio.

Em 1953, um jornalista ousa pela primeira vez opinarque as escolas de samba tornavam-se – talvez – a principalatração do carnaval do Rio, mais importantes até que osranchos e Grandes Sociedades. E no fim dos anos 1950,duas mudanças importantes acontecem. Primeiro, as esco-las começam a convidar, para tratar do aspecto visual dodesfile (fantasias, carros alegóricos etc) profissionais for-mados pela Escola de Belas-Artes, e cuja experiência foi

adquirida nas cenografias de óperas do Teatro Municipal;depois, os desfiles passam a ser realizados na própria ave-nida onde estas instituições estavam instaladas: a avenidaCentral, agora rebatizada como Rio Branco.

Em trinta anos, o caminho percorrido foi enorme. Poisnão se pode imaginar nada mais contrário ao que teriamdesejado os construtores da ex-avenida Central: que sua jóiafosse servir um dia a desfiles de negros de morros e subúr-bios, tocando instrumentos de origem africana como a bizar-ra cuíca, e dançando à sua maneira. Caminho percorridotanto pela escolas de samba, que se organizaram e transfor-maram, quanto pela própria cidade, com som dos sambasgravados nos estúdios, como os de Ari Barroso e CarmenMiranda, abandonou seu modelo exclusivamente europeupara adotar a mestiçagem cultural como valor possível.

Bibliografia:

Cabral, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Lumiar, 1996.

Needell, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das

Letras, 1993.

Sandroni, Carlos. Feitiço decente – transformações do samba no

Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.

Silva, Flávio. Origines de la samba urbaine à Rio de Janeiro, disserta-

ção, Paris: EHESS, 1976.

Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar/UFRJ, 1996.

Carlos Sandroni – Nascido no Rio de Janeiro em 1958, Carlos

Sandroni é doutor em Musicologia pela Université de Tours, França e

Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Publicou os livros Mário contra

Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo:

Vértice, 1988) e Feitiço decente – transformações do samba carioca

1917-1933 (Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001) além de vários arti-

gos em publicações brasileiras e européias. Desde 2000, é professor-adjunto

do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia da UFPE. É presidente da Associação Brasileira de

Etnomusicologia (gestão 2001/2002). É também compositor, letrista e vio-

lonista, tendo canções gravadas por Clara Sandroni, Olívia Byington, e

Adriana Calcanhoto, entre outros. Sua versão Guardanapos de papel (feita

a partir da canção Biromes y servilletas, do uruguaio Leo Masliah) foi grava-

da por Milton Nascimento nos discos Nascimento e Tambores de Minas.

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A Rádio Nacional...

Sérgio Cabral

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m 1951, a tripulação de um avião da ForçaAérea Brasileira, daqueles que eram chama-dos de “fortaleza voadora”, dava início às pro-

vidências para a aterrissagem na cidade de CampoGrande, quando foi surpreendida por um “apagão” no aero-porto local. Voando desde Manaus, a tripulação sabia quea reserva de combustível não era suficiente nem para pro-curar o aeroporto mais próximo(situado a centenas de quilômetrosde distância) nem para esperarmuito tempo pela volta da luz.

O comandante do avião comu-nicou-se com o responsável pelaunidade da FAB de CampoGrande, a quem transmitiu odrama que estava vivendo. Acomunicação seguinte foi feita deCampo Grande para a Base Aéreade Santa Cruz, no Rio de Janeiro,que, por sua vez, entrou em conta-to com a Rádio Nacional, situadana Praça Mauá, no Centro do Rio,para pedir ajuda. Minutos depois,um locutor transmitia aos ouvin-tes de Campo Grande – portanto,a mais de dois mil quilômetros dedistância – a seguinte mensagem.

“Atenção, Campo Grande,Mato Grosso! Uma fortaleza voa-dora da FAB precisa aterrissar e ocampo de pouso está às escuras.Apelamos aos proprietários de

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automóveis que se desloquem imediatamentepara o aeroporto a fim de que a pista de aterris-sagem seja iluminada pelos faróis dos seus auto-móveis.”

O apelo foi repetido várias vezes, até que aRádio Nacional foi informada de que o proble-ma estava resolvido. Às 23h45, o avião pousavano aeroporto de Campo Grande iluminado

pelos faróis de centenas de automóveis.Enfim, um texto sobre a Rádio Nacional poderia limi-

tar-se a fatos como o descrito acima e que justificam a posi-ção dos que consideram a emissora o maior fenômeno decomunicação do Brasil, mesmo levando em conta outrosexemplos impressionantes, como o da velha revista OCruzeiro e o da atual TV Globo. Como não se pretendeneste espaço promover um desfile de histórias que ilustra-

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Orlando Silva

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riam ainda mais o poderio da Rádio Nacional, o assunto éencerrado com a informação de que, em 1949, o programa“No mundo da bola” promoveu a eleição do jogador defutebol preferido pelos ouvintes. Os votos eram enviadosnum envelope de comprimido para dor de cabeça, o patro-cinador do concurso. Os funcionários da emissora conta-ram, no final da eleição, mais de 19 milhões de envelopes,sendo que o craque vitorioso – o atacante Ademir, doVasco da Gama e da seleção brasileira – recebeu5.304.935 votos, marca que, em matéria de eleição, só seriasuperada em 1960, quando Jânio Quadros foi eleito presi-dente da República com pouco mais de 6 milhões de votos.

Fundada em 1936 e sendo transferida parao governo federal em 1941, a Nacionaldispensava a ajuda oficial, pois, duran-te mais de 20 anos, foi o veículo decomunicação com a maior receitapublicitária do país. Tal receitaera suficiente para pagar os salá-rios de 9 diretores, 240 funcioná-rios administrativos, 10 maes-tros, 124 músicos, 33 locutores, 55radiatores, 39 radiatrizes, 52 canto-res, 44 cantoras, 18 produtores de pro-gramas, 1 fotógrafo, 5 repórteres, 13 infor-mantes, 24 redatores e 4 editores de jornais fala-dos.

A programação era variada. A audiência feminina fica-va por conta das novelas, que, em estilo de folhetins, se pro-longavam por vários meses. Havia também os programashumorísticos, a cobertura dos acontecimentos esportivos,os programas de auditório, os (muitos, podem acreditar)programas culturais e os programas musicais. Estes últi-mos, provavelmente, são os que mais resistiram ao esqueci-mento a que foram condenados não só os programascomo os próprios radialistas, uma sina que parece confir-mar o que diziam os anunciantes contrários à publicidaderadiofônica nos tempos pioneiros, recusando-se a fazerpropagando em rádio: palavras o vento leva. Mas o pessoalda música não foi esquecido e, durante muitos anos, seusnomes permaneceram ligados à história da Rádio

Nacional. Falando, por exemplo, do cantor FranciscoAlves, um dos primeiros ídolos da música popular brasilei-ra, vem logo à lembrança a abertura do seu programa, aomeio-dia, quando a locutora dizia que, naquele momento,os ponteiros se encontravam. A morte de Francisco Alves,em setembro de 1952, num acidente de carro, paralisou oBrasil e levou pela primeira vez a Rádio Nacional a suspen-der a programação e passar 24 horas tocando apenas dis-cos do cantor.

Seria difícil apontar o maior ídolo entre as centenas decantores que passaram pela emissora, mas Orlando Silva,sem dúvida, foi o primeiro deles, pelo menos cronologica-

mente. Contratado pela Rádio Nacional logona sua fundação, com uma carreira de

somente dois anos, Orlando era umintérprete excepcional, para muitos,

o melhor que o Brasil já teve ( JoãoGilberto, um dos criadores daBossa Nova, vai mais longe: paraele, Orlando Silva era o melhorcantor do mundo de todos os

tempos). Seus discos e a própriaRádio Nacional se encarregaram de

espalhar sua voz por todo o país e nãodemorou muito para assumir a condição

de ídolo nacional. Nas grandes cidades, osempresários se viram obrigados a programar apresenta-ções do cantor nas praças públicas para que fosse visto pelomaior número possível de pessoas.

Dois nomes intimamente ligados aos tempos áureosda Rádio Nacional são os das cantoras Emilinha Borba eMarlene. Profissional desde os 14 anos de idade, Emilinhaapresentou-se em outras emissoras e nos cassinos da Urcae Copacabana, antes de ser contratada pela emissora em1945, ano em que foram lançados os grandes programasde auditório. Foi ela o grande destaque desse tipo de pro-grama. Os ouvintes sabiam que ela ia cantar, antes mesmode ser anunciada, pela gritaria de um público formadogeralmente de gente humilde, na maioria mulheres, quemadrugava na porta da Nacional para garantir um lugarno auditório (por serem, em grande parte, negras e mula-

Seria difícil apontar o maior ídolo entre as centenas de

cantores que passaram pelaemissora, mas Orlando Silva,

sem dúvida, foi o primeirodeles, pelo menos

cronologicamente. Contratado pela Rádio

Nacional ....

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comandado por César de Alencar (Emilinha) eo de Manuel Barcelos (Marlene). Marlene tam-bém caminha para os 80 anos, mas depois deEmilinha, em novembro de 2004.

A cantora Dalva de Oliveira foi um doscasos mais impressionantes de sucesso repenti-no na Rádio Nacional. Sua carreira já caminha-va para os 15 anos, quando se separou do mari-do, o compositor Herivelto Martins, o que a

levou a afastar-se do Trio de Ouro, liderado por Herivelto.Até a separação, estava longe de ser uma cantora de gran-de popularidade, uma vez que, tanto nos seus discos equanto nos seus shows, era apenas a voz feminina do Triode Ouro ou dos duetos que, eventualmente, fazia comFrancisco Alves. Mas, provocada por uma música lançadapor Herivelto Martins, Cabelos brancos, cuja letra nãohostilizava um ex-amor (“não falem dessa mulher pertode mim”, dizia a letra), Dalva deu início à sua carreira solocom um samba-canção cuja letra tinha tudo a ver com o

fim do seu casamento: Tudo acabado, de JotaPiedade e Osvaldo Martins. Nascia assim

uma polêmica que os ouvintes acom-panhavam como se fosse um folhe-

tim – também estimulada pelosdirigentes da Rádio Nacional –com uma expressiva vantagempara ela, que contando com a evi-dente simpatia do público, trans-

formava suas músicas em sucessosexcepcionais. Para se ter uma idéia,

num levantamento feito em 1951, odisco mais vendido era Tudo acabado; em

segundo lugar, Errei, sim (Ataulfo Alves) e, emterceiro, Que será? (Marino Pinto e Mário Rossi), as trêsgravadas por ela. No ano seguinte, foi eleita Rainha doRádio. A partir de 1953, porém, Dalva deixou de lado asua condição de ídolo da Rádio Nacional para dedicar-seàs viagens para o exterior. Cantou várias vezes em paísessul-americanos e na Europa. Quando encerrou a faseinternacional, seu prestígio no Brasil continuava grande,mas a popularidade já não era a mesma.

tas, não escaparam do apelido racista de “macacas de audi-tório”. Pouco depois de ser contratada, Emilinha passou acontar com um fã-clube, que produziu filiais em todo oBrasil. Esse fã-clube se mantém firme até hoje e não deixade homenagear a cantora todos os anos, no seu aniversário.Já se prepara para comemorar os seus 80 anos, em agostode 2003.

A soberania de Emilinha Borba na Rádio Nacional sófoi abalada em 1949, quando a cantora Marlene derrotou-a na eleição para Rainha do Rádio. Tal acontecimento ren-deu uma das rivalidades mais famosas da histó-ria do rádio e da nossa música. Baseadonessa rivalidade – sem dúvida, gosto-samente estimulada pela RádioNacional – o senador Caiado deCastro afirmou que a sociedadebrasileira era dividida entre emi-linistas e marlenistas, frase quelevou a revista Radiolândia afazer uma visita ao Congressopara saber quem era de um lado equem era do outro. Todos os parla-mentares consultados responderam, mas,sendo um eleitorado político, acabou vencendoa ala que votou nas duas.

Marlene é paulista e se chama, na verdade, VitóriaBonaiutti (seu nome artístico é uma homenagem à atrizalemã Marlene Dietrich). Também dispõe de um fã clubefiel e dedicado. Quando venceu o concurso para Rainhado Rádio, a Nacional tratou de garantir a audiência sepa-rando-a de Emilinha Borba, escalando cada uma num dosdois maiores programas de auditório da emissora, o

Em 1954, foi a vez de Caubi Peixoto, o último ídolo da época

áurea da Rádio Nacional. Seu empresário, o compositor

Di Veras, informou-se sobre os recursos utilizados pelos

empresários americanos para projetar seu

artistas.....

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Em 1954, foi a vez de CaubiPeixoto, o último ídolo da épocaáurea da Rádio Nacional. Seuempresário, o compositor Di Veras,informou-se sobre os recursos utili-zados pelos empresários americanospara projetar seu artistas e aplicou-os no lançamento de Caubi, um can-tor que, havia seis anos, cantava emcasas noturnas sem a menor reper-cussão. Contratou falsas fãs para“desmaiarem” no auditório quandoele cantava e fazia com que ele enver-gasse paletós com as mangas preca-riamente costuradas para dar aimpressão de que as admiradoresrasgavam as suas roupas. Alémdisso, toda vez que estivesse empúblico, deveria estar cercado de fal-sos fotógrafos espoucando flashes,como ocorre com as celebridadesartísticas.

Encorajado pelo êxito obtido noBrasil, Di Veras resolveu levarCaubi Peixoto para os EstadosUnidos, mas a experiência foi frus-trante. Nem mesmo a mudança doseu nome para Ron Cobby foi sufi-ciente para transformá-lo num can-tor popular na América do Norte.A solução foi manter as conquistas no Brasil, enviando deNova York para a Revista do Rádio e para a Radiolândiaprimeiras páginas de importantes jornais norte-america-nos com o nome de Ron Cobby na manchete. Mas eramapenas aquelas primeiras páginas vendidas por umapequena quantia, principalmente aos turistas, com man-chetes imaginárias contendo os nomes dos clientes.

Na década de 1960, com o crescimento da televisão ecom acontecimentos políticos no Brasil, a Rádio Nacionalnão tinha mais condições de manter o seu elenco e, aospoucos, foi perdendo a liderança para outras emissoras

que se adaptaram rapidamente aos novos tempos. Maslegou, sem dúvida, a mais bela história do rádio brasileiro.

Sérgio Cabral, carioca, 65 anos, jornalista desde 1957, trabalhou

em vários jornais e revistas do Rio de Janeiro e São Paulo (é um dos

fundadores do “Pasquim”), compositor, autor e diretor de espetáculos

musicais e escreveu, entre outros, os seguintes livros: “Antônio Carlos

Jobim, uma biografia”, “No tempo de Ari Barroso”, “Elisete Cardoso,

uma vida”,“Nara Leão, uma biografia”,“Pixinguinha, vida e obra”,“As

escolas de samba do Rio deJaneiro”, “No tempo de Almirante” e “A

MPB na era do rádio”.

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Caubi Peixoto

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Mário Adnet

Sou um músico gerado e nascido no Rio de Janeiro em1957, durante os “anos dourados” do governo de JuscelinoKubitchek, e fui certamente contagiado, e ainda continuo atéhoje, pelo otimismo desse período que muitos descrevemcomo um dos mais felizes da história do país, sobretudo paraa música brasileira.

Não se pode falar em Bossa Nova sem se falar, obvia-mente, em João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e Viníciusde Moraes, mas é de fundamental importância o ambientefavorável criado por Juscelino Kubitschek. E logicamente acontribuição de nossos grandes heróis irrequietos, entrecompositores, arranjadores, músicos e intérpretes que jávinham modernizando a música brasileira apesar dos tem-pos menos azuis (a lista é interminável).

Quando ouvimos falar em Bossa Nova, associamosimediatamente o rótulo a um movimento musical feito poruma pequena elite da zona sul do Rio de Janeiro. Alguns crí-ticos puristas diziam que era a música popular que passavadas casas para os apartamentos, minimizando, talvez sem sedar conta, a extensão do que realmente aconteceu. Na verda-de essa novidade não foi de última hora mas fruto de umprocesso de incubação que levou anos se manifestando iso-ladamente durante um longo inverno, até a chegada daquelaprimavera, o ambiente perfeito com jeito de Shangri-lá, quefoi a “Era JK”. Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius deMoraes foram, portanto, a ponta de um iceberg. E se pensar-

Era JK:ensaios deuma utopia

João Gilberto

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mamãe tinha um temperamento exatamente contrário aodele – uma mulher severa, rigorosa, filha de um alemãomuito disciplinado”. A cidade de Diamantina, assim como asoutras cidades de Minas daquele tempo, eram muito isola-das e tinham que se bastar em termos de cultura. Criavamseus próprios clubes literários e as escolas eram tambémnúcleos culturais. – “ Durante quase 200 anos, oito ou noveestabelecimentos de ensino, distribuídos por Diamantina,Mariana, Ouro Preto, Serro, concentraram a cultura deMinas Gerais. De modo que todos nós que ali vivíamos,tínhamos orgulho dos diamantinenses que já haviam passa-do por ali, e que, saindo de Diamantina, tinham conquistado,em outros pontos do país, glória ou fama. Sobretudo a políti-ca ensejava estas oportunidades; e também a literatura.”

João Nepomuceno Kubitschek, tio-avô de Juscelino, umdos primeiros ídolos do menino Nonô, chegou a vice-gover-nador do estado, mas se tornou famoso pela sua poesia, quegostava de declamar nas históricas noites de luar deDiamantina. “Ele estudava em São Paulo, juntamente com aplêiade de outros brasileiros muito ilustres na literatura, entreos quais o grande, o imenso Castro Alves, que cuidavam só deescrever ou de produzir versos”.

Aos seis anos de idade teve, pela primeira vez, a “sensa-ção de contato com uma pessoa importante” com a visitado “presidente” de Minas (como era chamado um governa-dor de estado na época), João Pinheiro à Diamantina, quechegou a cavalo depois de vários dias de viagem e foi rece-bido por sua mãe. O “presidente”, na sala de visitas de suacasa, prometeu que fundaria o primeiro grupo escolar deDiamantina, o que foi cumprido à risca ainda no mesmoano. Com isso D. Júlia foi a primeira professora nomeadae passou a receber um salário do estado, o que melhorouum pouco a vida da família. Juscelino foi um menino extre-mamente estudioso. Devorou os trezentos livros da biblio-teca, além de todos os outros da cidade, “sobre qualquerassunto”, que pedia emprestado. Estudou francês comuma francesa que tinha vindo de Paris com o marido, noinício do século passado, um minerador de diamante, quedepois de explorar as minas à exaustão e aumentar osestragos nas encostas da cidade, voltou à terra natal aban-donando a mulher no Brasil. Com ela, Juscelino traduziutodo o teatro clássico francês: Molière, Voltaire e Racine.

mos bem, a obra que fizeram é tão utópica e desbravadoraquanto a de JK. Vai muito além da zona sul do Rio e é maiordo que o Brasil, tanto que atravessou as fronteiras.

No início dos anos 50, Tom Jobim dava duro nas noitesdo Rio para sustentar a família mas já mostrava a que veio,com suas melodias e harmonias avançadas. João Gilbertoainda não havia tido o estalo daquela batida sintética do vio-lão e Vinícius de Moraes era um diplomata que fazia umapoesia ainda um tanto erudita. Juscelino era governador deMinas e já tinha feito alguns ensaios para o futuro próximo,com a ampliação da cidade (planejada) de Belo Horizonte,incluindo aí a criação de um novo bairro inteiro, a Pampulha,

projetada por um jovemarquiteto, Oscar Niemeyer.Vê-se que JK já tinha umfaro fino para perceber e esti-mular novos talentos.

É interessante observar,sob o ponto de vista artísticomusical é claro, esses perso-nagens a começar pelo oentão presidente da repúbli-ca, cuja a afinidade comartistas e literatos fez comque aquele período fosse tãogeneroso com a música.

Juscelino nasceu emDiamantina em 1902, teveinfância e juventude pobre,ficou órfão de pai aos doisanos de idade e foi alfabetiza-do e educado pela mãe, aprofessora primária JúliaKubitschek de Oliveira. Opai, João César de Oliveiraera um homem inteligente,boêmio e, como todos oshabitantes da cidade, gostavade serenata. Era tambémexcelente dançarino e bomviolonista. “Em todas as fes-tas, ele era convocado;

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Esses dados sobre sua infância e adolescência parecemsuficientes para dar a pista da importância que teriam amúsica, a literatura, a poesia, a cultura de maneira geral, naformação do futuro presidente. E com certeza a herança dosexemplos de disciplina e rigidez da mãe, do tio político-poeta, da promessa cumprida do “presidente” de Minas, alémda simpatia, a alegria de viver e a boêmia, provavelmente her-dadas do pai. Mas sua trajetória não foi só alegria e boêmia.

Num último depoimento em 1976, pouco antes de suamorte, ele mesmo admitiria: - “É muito difícil um homemsair de Diamantina, filho de uma viúva, pobre, chegar à pre-sidência da República. É preciso ter um feitio muito especialde comunicação, senão não vence as dificuldades que eu tiveque vencer. Primeiro, tive que vencer as dificuldades debaixo, depois as médias, e, finalmente, as de cima. Eu tive queenfrentar todas, porque enfrentei as dificuldades decorrentesda situação política municipal, estadual, federal, militar; tudofoi um conjunto”. Ou terá sido uma orquestra?

De volta ao início dos anos 50, esse “feitio muito especialde comunicação” já havia levado Juscelino duas vezes à câma-ra dos deputados, à prefeitura de Belo Horizonte e ao gover-no de Minas.

Enquanto isso no Rio de Janeiro, Antônio Carlos Jobimcontinuava tentando resolver “as dificuldades de baixo”, JoãoGilberto nem isso e Vinícius de Moraes, bem mais velho, tal-vez estivesse passando pelas “médias”.

Também para Jobim a vida não era só boemia.Descobriu em pouco tempo que como pianista da noite nãochegaria a lugar algum e que ainda poderia ficar doente.Havia estudado com grandes mestres como Koellreuter,Tomás Teran e Lúcia Branco e para ser alguém, precisariatrocar a noite pelo dia. Com o incentivo da família, ele saiudo “cubo das trevas”, como se referia às boates, e passou aostrabalhos “diurnos”. Primeiramente arrumou um empregona editora Euterpe e, pouco depois, na gravadoraContinental, onde se tornou arranjador da casa, com a ajudado maestro e compositor Radamés Gnattali, um de seus ído-los. A partir de 1953 começou a ter suas músicas gravadas,além de fazer arranjos para artistas como Orlando Silva eDalva de Oliveira em final de carreira. Em 54, veio o primei-ro sucesso,‘Tereza da Praia’, com Billy Blanco, nas vozes semfirulas de Dick Farney e Lúcio Alves. Seu talento também

de orquestrador o levaria a projetos ousados como a‘Sinfonia do Rio de Janeiro’, que talvez tenha sido um ensaiopara ‘Orfeu do Conceição’, o primeiro trabalho comVinícius, que conheceu já nos anos JK, e, mais tarde,‘Brasília,Sinfonia da Alvorada’. Vinícius parecia estar descobrindoque a simplicidade da poesia era o grande segredo da expres-são da música popular. Aos poucos foi rompendo os laçoscom os meios acadêmicospara se tornar o nosso “poe-tinha”. Musicalmente TomJobim já era moderno etinha todas as característi-cas musicais que o torna-riam o “maestro soberano”,na feliz expressão cunhadapor Chico Buarque. Comome disse uma vez, numaentrevista gravada para orádio, existia uma necessi-dade de se limpar a música,seja nos arranjos, na forma,faltava uma linguagem maissintética. – “Meu piano éeconômico. Sempre tenteiser conciso com as notas,usando poucas e boas,numa tentativa de fazeralgo que significasse algumacoisa. Acho que essa minhapreocupação deu resultado.Essa coisa que eu fiz, vocêvê hoje em dia na música, osmúsicos procurando dizermuito com poucas notas.Antigamente o pianista, ovirtuoso, era aquele caraque fazia um monte dearpejos e escalas. Os músi-cos de sopro, muitos aindatocam muitas notas nosaxofone, no clarinete eassim havia essa tentativa

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para integrar o grupo vocal Garotos da Lua, contratado daRádio Tupi, a convite de Alvinho, seu amigo e integrante doconjunto. Naquele tempo ele soltava a voz à la OrlandoSilva, um de seus maiores ídolos. Chegou a gravar dois dis-cos de 78 rotações cantando assim. Um detalhe curioso éque uma das características das interpretações de OrlandoSilva é a brincadeira que ele fazia com as melodias, adiantan-do e atrasando, em relação ao acompanhamento, o que setornou mais tarde a marca registrada de João Gilberto. Adiferença é que como João tocava bem violão e era antes detudo um músico, tinha maior controle rítmico sobre a “brin-cadeira,” pois era o responsável pelo próprio acompanha-mento. Pode parecer mentira mas esse “achado” de João teriasido gestado justamente em Diamantina, durante os oitomeses em que passou confinado na casa de sua irmãDadainha, enquanto Juscelino estava em plena campanhapara presidente. Estaria tudo planejado e ensaiado ?…

Mário Adnet – Compositor, violonista, arranjador e produtor

carioca, Mario Adnet atua como profissional desde 1977. Em 1980 lan-

çou seu primeiro disco, em duo com o compositor e pianista Alberto

Rosenblit, e passou a atuar também como arranjador. Em 1984 lançou

seu primeiro disco solo,“Planeta Azul. Nos anos 90 passou a ser gravado

no exterior por intérpretes como Lisa Ono, Joyce, Charlie Byrd, Chuck

Mangione e outros. Ao mesmo tempo, produziu e apresentou progra-

mas de música nas rádios MEC e Alvorada, com entrevistas de artistas

da MPB. Em 1994 Tom Jobim incluiu em seu último disco (“Antônio

Brasileiro”) o arranjo de “Maracangalha” (Dorival Caymmi) feito por

Adnet, o que projetou seu trabalho como arranjador. Em seguida lançou

seu CD “Pedra Bonita”, com participação de Tom Jobim, e excursionou

pelo Japão ao lado de Lisa Ono. Em 98 passou a escrever perfis de artis-

tas da MPB para o Segundo Caderno do jornal O Globo. Em 1999 lan-

çou o CD “Para Gershwin e Jobim” que foi gravado entre o Rio e Nova

Iorque. Depois vieram “Villa-Lobos-Coração Popular” no final de 2000,

com canções do maestro em arranjos populares, “Para Gershwin e

Jobim-Two Kites” em 2001, além de produzir ao lado do saxofonista Zé

Nogueira, o álbum duplo “Ouro-Negro”, dedicado à obra do maestro

Moacir Santos. Entre 2001 e o primeiro semestre de 2002 esteve por

duas vezes no Japão como arranjador dos últimos CDs da cantora Lisa

Ono. Lançou no início de 2002 “Rio Carioca”, em homenagem à cidade

do Rio de Janeiro.

de dizer o essencial. O samba tinha mil percussionistas, osespaços estavam todos ocupados, a bateria mais parecia ummar durante uma tempestade. Era muita coisa tocando aomesmo tempo, daí a necessidade de ir limpando”...

O detalhe que faltava para a mudança a que Tom sereferia foi, com certeza, a batida também econômica do vio-lão de João Gilberto.

João Gilberto chegou ao Rio de Janeiro em 1950, vindode Salvador, onde era crooner da Rádio Sociedade da Bahia,

Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes

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Luiz Roberto Oliveira

ca das letras girava entre tristeza, desengano e amores nãocorrespondidos. Neste estilo impregnado de fumaça de cigar-ros e pileques talvez provenientes do pós-guerra europeu, umestado de espírito cinzento e nebuloso acrescentou ao nossorepertório jóias lindas e inesquecíveis — infelizmente, já umtanto esquecidas.

Ainda na juventude, Vinicius de Moraes começou a darmostras de suas vocações. Aluno dos padres jesuítas nocurso ginasial do colégio Santo Inácio, já era atraído pelapalavra e pelo texto. Em 1927, produziu talvez a única edi-ção de um pequeno jornal,“O Planeta”. Aos 15 anos, partici-pava, com os irmãos Paulo, Haroldo e Oswaldo Tapajós deum conjunto musical que se apresentava nas casas dos ami-gos e em festas colegiais. Suas primeiras letras são destetempo, em parceria com Haroldo e Paulo.

É curioso como alguns fatos da infância podem, até porcoincidência, antecipar tendências. Em dezembro de 1937, oExternato Mello e Souza, em Copacabana, promoveu umafesta para comemorar o encerramento do ano letivo. Um dosquadros das apresentações era a Orquestra Maluca, pequenogrupo instrumental formado por alunos do curso de admis-são ao ginásio. A regência da orquestra, cargo da mais alta res-ponsabilidade, foi confiada a ninguém menos que AntonioCarlos Jobim, então com 10 anos.

Em 1953, aos 40 anos, Vinicius de Moraes fez o samba“Quando tu passas por mim”, em que música e letra são, pelaprimeira vez, de sua autoria. Nas tertúlias do Clube daChave, em Copacabana, assim chamado porque cada sóciotinha a chave de um escaninho com uma garrafa de whiskyindividual,Vinicius ficou conhecendo Tom. Não ficaram ínti-mos: a relação manteve-se por algum tempo simplesmentecordial. E a roda que o poeta frequentava — literatos, críti-

O sol e o sal da zona sul

“Porque o samba nasceu lá na Bahia”. A esta afirmaçãode Vinicius de Moraes na letra do Samba da Bênção, feito emparceria com Baden Powell, eu acrescentaria, para polemizar:“...e a Bossa Nova também”. Seriam as lavadeiras de Juazeiropossuidoras da fórmula secreta?

O samba veio de uma junção de ingredientes: ritmos daBahia, com ancestrais africanos, trazidos por negros e mesti-ços para o Rio de Janeiro, foram combinados com as formasmelódicas e harmônicas praticadas na capital, de fortes raízesna cultura européia, tais como se ouvia em valsas, polcas eschottisches.

Nas reuniões em casa de Tia Ciata, mãe de santo baianaque morava no centro do Rio de Janeiro, foram ouvidos osprimeiros acordes do samba. Naquele começo do século XX,algumas das presenças frequentes eram Hilário Jovino,Sinhô, Germano Lopes da Silva, Pixinguinha, e Donga, queem 1916 teve sua música “Pelo Telefone” gravada em discopela Odeon. A História acabou consagrando Donga e seuparceiro Mauro de Almeida como autores do primeirosamba gravado, embora “Pelo Telefone” estivesse muito maispara maxixe do que para samba. Ainda por cima, a autoria deDonga também é questionada, sendo mais provável que amúsica tenha resultado de colaborações improvisadas dosparticipantes das rodas de samba promovidas por Tia Ciata.

Impulsionado pelo compositor Sinhô, o samba começoua ganhar aos poucos sua forma e seus intérpretes. Na décadade 30, deixando para trás a influência do maxixe, e com suaidentidade caracterizada, passou a fazer jus ao nome.

Com o passar dos anos, muitos compositores e intérpre-tes continuaram a enriquecer o cenário da música brasileira.Na década de 40, ganhou força o samba-canção, gênero deri-vado do samba, porém mais lento e romântico, em que a tôni-

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cos, artistas, embaixadores — impunha respeito pelo conteú-do e pela idade, e certamente contribuía para manter à distân-cia o músico de 26 anos, que tocava piano nos bares do bair-ro para acertar suas contas de fim de mês.

Vinicius carregou o time nas costas. De alma generosa,corajoso para sorver a vida sem se submeter a limites ou con-venções, o poeta multiplicou-se, emprestando seu talento auma geração inteira de compositores, muitos dos quaisteriam tido uma carreira bem mais difícil não fosse a preciosaparceria. Assim, o primeiro samba de Edu Lobo teve letra deVinicius. O estilo denso de Baden Powell encontrou seugrande parceiro. Carlos Lyra e o poeta ainda hoje embalamcorações apaixonados. Francis Hime ganhou letras lindas edesesperadas. Para Toquinho, Vinicius caiu do céu. Isto, semfalar em Ary Barroso, Capiba, Claudio Santoro, PauloSoledade, Antonio Maria, Adoniran Barbosa, Pixinguinha, euma série de outros, de ilustres a humildes — inclusive oautor destas linhas.

E também Vadico, o ignorado companheiro de NoelRosa em tantos sucessos do calibre de “Feitiço da Vila”. As cir-cunstâncias e a saúde de Vadico fizeram com que ele, semsaber, abrisse caminho para o maior de todos os parceiros deVinicius. Em 1956, o poeta, recém-chegado da Europa, tra-zendo na algibeira, letra e música, sua Valsa de Eurídice, pro-curava um compositor para as canções da peça teatral Orfeuda Conceição, de texto pronto e premiado — uma adaptaçãopara a favela carioca do mito grego de Orfeu, o músico daTrácia que desce aos infernos em busca de sua amadaEurídice. Vadico, compositor e pianista de mão-cheia, foi oprimeiro convidado. Mas não aceitou a tarefa, talvez pesadademais para uma saúde que já inspirava cuidados.

O segundo convidado ouviu pacientemente a longaexplanação de Vinicius sobre como deveria ser a música paraa peça, durante histórico encontro no Bar Villarino, no centrodo Rio. Seu único e famoso comentário ao final da prédica,ainda que de justo fundamento, retrata uma preocupação queo acompanharia durante um bom tempo, mesmo quando jánão houvesse razão para tal:“Tem um dinheirinho nisso?”

As músicas de Orfeu da Conceição foram os primeirostrabalhos da dupla Antonio Carlos Jobim e Vinicius deMoraes. A peça estreou no mesmo ano no Teatro Municipaldo Rio, com atores negros, direção de Leo Jusi e cenários de

Oscar Niemeyer. Ficava selado o início de uma grande ami-zade e um raro entendimento entre música e poesia, tendocomo conseqüência alguns anos da mais profícua e brilhanteparceria da música popular brasileira.

Tom e Vinicius navegavam basicamente em três estilos:o samba (que na época era o sambão, ou samba-batucada),o samba-canção, e a canção de câmara — esta, a meu ver, oponto mais forte e singular da parceria, sem pretender, noentanto, diminuir-lhes a qualidade nos outros gêneros.Assim foi que, em 1958, os dois parceiros convidaram acantora Elizete Cardoso para ser a intérprete de uma sele-ção de canções de câmara, sambas, uma valsa, e até umatoada, que seriam reunidas no LP Canção do AmorDemais, da gravadora Festa. Tom Jobim faria os arranjos e aregência da orquestra. Este disco foi um divisor de águas nahistória do nosso cancioneiro. As músicas e letras, de rarabeleza; os arranjos de Tom, delicados e de extremo bomgosto; a qualidade e o porte da cantora; tudo garantia umresultado excelente. Mas, um pouco pela sorte e muito pelavisão de Tom, um outro atributo haveria de marcar definiti-vamente a importância do projeto.

Naquela época, alguns jovens compositores cariocas,como Carlos Lyra e Roberto Menescal, insatisfeitos com oritmo do sambão, que consideravam quadrado e pesado,andavam em busca de uma nova forma para tocar samba noviolão. Outros músicos importantes já haviam esboçadocaminhos: Dick Farney, Lucio Alves, Garoto (AníbalAugusto Sardinha), e o pianista e compositor Johnny Alf,atualmente morando em S. Paulo e em plena forma. Mas foium baiano desconhecido que conquistou os louros da desco-berta sensacional. Tocando o samba de uma maneira comple-tamente nova, com uma batida mais econômica, num ritmosincopado, e articulando seu canto em surpreendente entro-samento com o violão, João Gilberto chegou para arrasar.Rapidamente passou a ser assunto nos meios musicais cario-cas, provocando o fascínio de muitos e repúdio de uma mino-ria. Um diretor da gravadora Odeon em S. Paulo, ao ouviruma gravação de João, quebrou o disco, indignado: “É esta anovidade que o Rio nos manda?”

Tom Jobim rapidamente percebeu que o baiano nãoestava para brincadeiras. E convidou João para tocar violãoem duas faixas de Canção do Amor Demais. Ouvindo-se o

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disco atentamente, não é difícil perceber o contraste e oencontro de duas vertentes no tempo. De um lado, a voz clás-sica de Elizete; numa linha divisória, as orquestrações deTom, camerísticas, lindas, mas ainda um pouco envolvidaspelos estilos vigentes; e do lado oposto, nas faixas Chega deSaudade e Outra Vez, a locomotiva que é o violão revolucio-nário de João Gilberto.

Tom e outros compositores mais jovens aderiram semhesitação ao novo ritmo de samba. É interessante notar que osamba evoluiu também geograficamente, progredindo naesteira da ocupação do Rio de Janeiro: dos subúrbios e docentro, em direção à zona sul. E dos morros para o litoral. Osamba do subúrbio cedia a vez à Bossa Nova de Copacabana.Aliás, o nome Bossa Nova, trazido à baila por circunstânciassem grande relevância, tornou-se mundialmente conhecido,apontando não somente para uma nova maneira de tocarsamba, mas refletindo uma atitude característica dos jovensda zona sul, que gostavam de freqüentar a praia e de se reunirpara cantar baixinho ao som do violão. As letras deixaram atristeza de lado, passando a curtir a beleza das garotas, o sol,o mar. Tom Jobim, que volta e meia mudava de residência,seguiu o mesmo movimento: nascido na Tijuca, transferiu-secom a família para Copacabana, e depois para Ipanema, onde,no apartamento da Rua Nascimento Silva, fez alguns de seusmaiores sucessos.

Com colaboração e participação de Tom Jobim, JoãoGilberto gravou na Odeon três LPs históricos: Chega deSaudade em 1959, O Amor, o Sorriso e a Flôr em 1960, eJoão Gilberto um ano depois. No auge da forma e do gás,João mostra quem é e a que veio. O terceiro LP tem, em cincofaixas, a sensacional participação do conjunto do organistaWalter Wanderley. Se você ainda não conhece, ouça depressaantes que acabe.

Quis o destino que a colaboração de Tom Jobim comseus dois companheiros se tornasse rarefeita até quase ainterrupção. Vinicius e Tom produziram até meados dadécada de 60; após isto, pouca ou nenhuma parceria.Embora menos próximos, continuaram grandes amigos. Aobra-prima Amparo, gravada em forma instrumental em1970, teve o nome mudado para Olha Maria quandoVinicius e Chico Buarque lhe deram letra, um ano depois.Em 1977, Tom e Vinicius se juntaram a Miucha e Toquinho

para um show no Canecão, no Rio, que ficou meses em car-taz, antes de temporadas em S. Paulo e no exterior.

João e Tom se afastaram também na década de 60, eanos mais tarde, uma tentativa de reaproximá-los levou-osao palco, mas nenhum dos dois ficou à vontade.Permaneceram o respeito e a admiração de um pelo outro.Até hoje, João inclui em seu repertório inúmeras composi-ções de Tom.

Numa fase mais madura, Tom Jobim resolveu dar maiorvazão a sua veia literária, talvez sentindo a lacuna deixada porVinicius, ou porque Chico Buarque não tivesse tempo parauma colaboração mais assídua. Criou excelentes letras.Águas de março, Luiza, Falando de amor, Passarim eGabriela são apenas alguns exemplos. Aliás, Tom sempre sesentiu à vontade nas letras, mesmo em começo de carreira,quando fez Outra Vez, As Praias Desertas, e Corcovado.

Mas o tempo passa, e dois destes três gênios já nos dei-

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xaram. Se me perguntassem por nomes de brasileiros mun-dialmente conhecidos e reconhecidos, sem hesitação citariaTom Jobim e Pelé. A música de Tom tem dois atributosinquestionáveis: a qualidade, que garante ao compositor aposição de maior entre os maiores da música popular brasilei-ra; e a universalidade, que a faz admirada nos cantos maisremotos do planeta. Outros compatriotas, não menos ilus-tres, não chegam a ter seu nome e seus méritos tão difundi-dos – e globalizados.

João Gilberto, aos 71 anos, mantém seu modelo de per-feição. Influenciou músicos pelo mundo afora. Ainda que emseu país possa, de vez em quando, ser mal compreendido, ou,o que é pior, mal recebido. É demais pretender impôr a umartista de sua dimensão o ônus de ter de se comportar comoo resto de nós. Criticá-lo ou até vaiá-lo em suas excentricida-des é não saber respeitar a enormidade de seu talento. João éum dos músicos mais íntegros e mais dedicados ao trabalho

que já vi. Para ele só existe o essencial: canto e violão. Até aforma como apresenta suas interpretações aponta para estenúcleo. Prova disto é seu desinteresse por adornos: para mui-tas músicas que canta nem introdução faz. Entra diretamen-te no tema, no que importa, repetindo a canção inteira váriasvezes, como num tremendo esforço para superar o insuperá-vel. Perguntado aonde teria ido buscar sua batida, respondeu:“Aprendi com os requebros das lavadeiras de Juazeiro”.

Poeta e diplomata, erudito, falando várias línguas,Vinicius foi aos poucos procurando uma forma de comunica-ção mais abrangente e popular. Funcionário do Itamaraty,com trânsito livre nos refinados salões da intelectualidade,íntimo de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, pas-sou a fazer canções de grande lirismo com Tom e CarlosLyra; ao lado de Baden Powell, enfronhou-se no denso uni-verso das heranças negras, criando um dos mais fascinantesconjuntos de peças de nosso cancioneiro, os afro-Sambas;mantendo a trajetória, desaguou na parceria com Toquinho,de melodias e letras bem mais simples, algumas quase ingê-nuas. Interessante é notar que ele também estimulou TomJobim a despir-se de maneirismos e meandros da erudição.No texto para a contracapa de Canção do Amor Demais,refere-se com carinho ao parceiro:

“...gostaria de chamar a atenção para a crescente simplici-dade e organicidade de suas melodias e harmonias, cada vezmais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata quetiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibili-dade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade doseu espírito, voltado para os valores permanentes na relaçãohumana.”

Com Vinicius começamos, e nele encerraremos. A eledirigimos nosso pensamento e nossas homenagens. O capi-tão do time e do mato Vinicius de Moraes, parceiro de tantoscompositores que fizeram de nossa música uma das melhoresdo mundo, cantou como poucos a beleza da mulher brasilei-ra, fez da vida sua maior poesia, e jamais será esquecido. Abênção, poeta. Saravá.

Luiz Roberto Oliveira é músico, diretor da produtora Norte

Magnético, administrador do site Clube do Tom (www.clubedotom.com),

curador do site oficial de Tom Jobim (www.tomjobim.com.br), e

parceiro de Vinicius.

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Luiz Carlos Maciel

Quando Pedro pedreiro, composição de Chico Buarque,foi lançada no início da década dos 60, revelou não só o talen-to do jovem compositor, até então um desconhecido, comoassinalou uma nova e poderosa tendência no processo demodernização da música popular brasileira que se iniciara nadécada anterior. A letra retratava o cotidiano de um operáriona construção civil, suas preocupações e suas esperanças;nela, a preocupação social ganhava o primeiro plano e apon-tava uma nascente consciência política.

Pedro Pedreiro é o resultado de um fenômeno histórico-social manifesto na experiência de toda uma geração de bra-sileiros que viviam, então, a sua juventude. Essa geração esta-va convencida que seu destino histórico era o de promover aemancipação do Brasil como nação, libertando-o do subde-senvolvimento, e de seu povo, assegurando-lhe justiça social euma vida mais humana. A música popular brasileira passava,a partir desse momento, a expressar esse projeto.

A nova postura rompia com a tradição lírica da músicapopular brasileira, em especial com sua vanguarda na época –a bossa nova original que passou a ser caracterizada pelamúsica do Barquinho, uma composição de Menescal eBôscoli típica da poesia graciosa, delicada, inegavelmentebela, embora politicamente inofensiva, que marcou os primei-ros tempos da nova música. Tudo é verão e o amor se faz/ num

barquinho pelo mar/ que desliza sem parar – diz a letra doBarquinho. Pedro pedreiro, penseiro/ esperando o trem/ Manhã

O CONTEÚDO POLÍTICO E A EVOLUÇÃO DA MPBChico Buarque:

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parece carece/ de esperar também/ para o bem de quem tem bem de

quem não tem vintém... – diz a letra de Pedro Pedreiro. O temade uma é o prazer das classes médias; o da outra é a labutacotidiana do proletariado.

A bossa nova nascera orientada por um propósito artís-tico sem compromissos, um ideal esteticista. Seu objetivo eracolocar a música popular brasileira na vanguarda musical doplaneta. Contudo, em extensa medida, ela obedecia à tradi-ção. O ritmo básico continuava a ser o samba, embora enri-quecido por recursos mais sofisticados, como as síncopascriadas por João Gilberto; as melodias eram líricas e ternas; e,finalmente, as letras ainda tinham como principal tema osproblemas das relações afetivas, as dores do amor, e preserva-vam o prazer no sofrimento que caracteriza tradicionalmen-te as canções românticas. As novidades, portanto, eram maisformais do que conteudísticas. Mas essas inovações formaiseram importantes e manifestavam um novo espírito, urbano,culto e mesmo sofisticado.

A modernização da música popular brasileira haviacomeçado nos anos 50, com o que se convencionou cha-mar de pré-bossa nova. Sua principal motivação foi a necessi-dade experimentada por artistas jovens – compositores,

intérpretes e instrumentistas – de fazer uma música populartão sofisticada quanto a que se fazia nos países desenvolvi-dos, em especial os Estados Unidos. Ela refletia o projetonacional da chamada era juscelinista, na qual o país, numavanço de cinquenta anos em apenas cinco, estava destinadoa ultrapassar os limites do chamado Terceiro Mundo, reali-zando finalmente sua vocação para ser uma potência cultu-ral e possivelmente econômica. De fato, artistas comoAntonio Carlos Jobim e João Gilberto estão entre os maio-res e mais importantes que a música popular internacionalproduziu no século vinte.

Evidentemente, a música popular brasileira tradicional jáera notável pelo lirismo de sua invenção melódica e, principal-mente, por sua vitalidade rítmica. A proposta fundamental,agora, era de enriquece-la com um avanço em termos de har-monia. Cantores da pré-bossa nova, como Dick Farney,Lucio Alves e Dolores Duran, já eram influenciados pelorequinte dos intérpretes da música popular norte-americana;e instrumentistas como o pianista Johnny Alf, pelas harmo-nias audaciosas do jazz moderno, especialmente o chamado

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O terceiro salto da nova música foi, finalmente, no senti-do da participação social e política – o momento da transi-ção do Barquinho para Pedro Pedreiro. Nem todos os artis-tas da bossa nova o acompanharam, dividindo o movimentopor um lado numa tendência tradicionalista, esteticista e,por outro, numa nova tendência política e participante.Num primeiro momento, houve inclusive um certo con-fronto entre os partidários das duas tendências, com ospolíticos chamando os esteticistas de “alienados” e estes qua-lificando os primeiros como “hipócritas”.

Os novos temas, da tendência participante, abordavamdiretamente os problemas do subdesenvolvimento e dapobreza num país do chamado Terceiro Mundo. As dificul-dades do cotidiano das populações menos favorecidas, que devez em quando surgiam na música popular tradicional, emgeral na forma de queixa ou lamento, recebiam agora um tra-tamento mais agressivo, simbolizada nos versos de uma com-posição tradicional, a Opinião, de Zé Keti que, em tom dedesafio, declarava que podem me bater/ podem me prender/ podem

até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião...

cool jazz que floresceu na West Coast norte-americana. Essaassimilação, devidamente digerida, haveria de resultar no queacabou sendo conhecido como bossa nova. A introdução deBolinha de papel, gravação de João Gilberto, por exemplo,parece mesmo um arranjo típico de Gerry Mulligan.

Mas não foi apenas no plano estritamente musical que severificou uma evolução. Ao contrário dos antigos artistas damúsica popular brasileira tradicional, vindos das camadasmais pobres da população brasileira, de instrução modesta einformação escassa, os novos artistas tinham freqüentementeformação universitária, eram informados e até cultos. Asletras das canções passaram a manifestar uma inédita inten-ção literária, fazendo com que muitos desses compositoresacabassem sendo considerados “poetas” até mesmo por crité-rios acadêmicos. Não foi por acaso que Vinicius de Moraes, oprincipal letrista da bossa nova, era um poeta consagradoconforme os padrões estéticos mais exigentes, sendo conside-rado mesmo um dos nomes mais importantes da poesia bra-sileira moderna. Vinicius foi um dos responsáveis por fazerda beleza e dos encantos da mulher brasileira um dos princi-pais temas da bossa nova.Ilu

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Falava-se também, como nunca antes, dos problemas docampo, principalmente no Nordeste, discutindo a posse daterra e reclamando a necessidade de uma reforma agrária – etambém acompanhando um movimento de protesto e reivin-dicação que, apesar de duramente reprimido durante a dita-dura militar, voltou a emergir e alcançar os nossos dias. OCarcará de João do Vale é a canção emblema desta tendência;a letra se refere a um pássaro predador do Nordeste que matapara comer. Carcará/ pega, mata e come/ carcará não vai morrer de

fome/ carcará/ mais coragem do que homem... – diz a letra.A canção de protesto que emergiu no Brasil, no início

dos anos 60, coincidiu com o surgimento da protest song

norte-americana. Não houve, contudo, uma influência dire-ta mas, antes, uma sincronia histórica. Sem nenhum tipo deprogramação ideológica, multiplicavam-se na época asmanifestações de rebeldia juvenil; essas manifestações iriamaumentar em número e intensidade no correr da década atéo clímax de 1968.

Antes disso, no início do processo, um show musical eraapresentado em Copacabana, Rio de Janeiro, com o títuloOpinião e a presença de tres artistas de origens diversas. Oprimeiro era o próprio Zé Keti, um negro das favelas do Rioe compositor de sambas em estilo tradicional, popular; osegundo era outro negro pobre, João do Vale, mas vindo do

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Zé Kéti

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Nordeste e compositor de canções com os ritmos típicos desua região de origem; o elenco era completado por uma can-tora branca, Nara Leão, nascida na alta classe média, comeducação, gostos e informação sofisticados.

A importância de Nara na vertente participante da novamúsica popular brasileira, nos anos 60, não deve ser subestima-da. Dona de um fio de voz, em contraste com a voz poderosadas cantoras tradicionais, ele aprendera a cantar com os primei-ros bossanovistas, em especial o mestre de todos eles, JoãoGilberto. Tornou-se muito popular e o show Opinião foi, semdúvida, um marco na história da música popular brasileira.

Com o início da ditadura militar, em 1964, os teatros dasprincipais cidades brasileiras foram transformados em trin-cheiras da resistência democrática – e os shows musicaiseram a sua vanguarda. Liberdade, Liberdade, montado noRio de Janeiro, no teatro que acabou batizado com o mesmonome de seu show de lançamento, Opinião, e Arena contaZumbi, em São Paulo, pelo Teatro de Arena, foram doiseventos igualmente importantes. O compositor GeraldoVandré, que tivera uma de suas canções, Caminhando, censu-rada pelo governo militar, apresentava no seu show ao vivouma nova composição feita sobre os mesmos acordes da can-ção proibida; o artista tocava seu violão mas calava, baixandoa cabeça, deixando que a própria platéia cantasse em coro, aplenos pulmões, a letra de Caminhando.

A supressão das liberdades democráticas, pelo regimeautoritário, manifesta abertamente na atividade da censura atodas as formas de expressão, criava um clima de asfixia quetornava vitalmente necessária a invenção de alguma maneirade respirar. A música popular forneceu esse respiradouro.

Chico Buarque, em particular, sustentou um confrontocom a censura ditatorial durante praticamente toda sua car-reira, do início até o momento da redemocratização do país,já nos anos 90. Ele foi, sem dúvida, um dos mais censuradosartistas brasileiros, tanto como compositor quanto comoescritor e dramaturgo. Suas canções foram proibidas, suaspeças teatrais mutiladas. Para driblar a censura, foi inclusiveobrigado a criar um compositor popular chamado Julinho daAdelaide, a quem atribuía seus sambas mais populares. Masdeu ao poder ditatorial uma resposta incisiva em Apesar devocê, música que foi cantada por milhões de brasileiros emtodos os recantos do país, unidos pela esperança enunciada

na letra da canção de que “amanhã há de ser outro dia”...Como o resto de sua geração de brilhantes compositores

(Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, EduLobo etc), Chico ficou nacionalmente conhecido através dosfestivais de música realizados no final da década dos 60. ComA Banda, cantada por Nara Leão, ele ganhou o Festival daRecord, em São Paulo, e uma grande popularidade em todoBrasil. É uma marchinha simples, delicada e poética, cuja pos-sível referência ao protesto social é sutil demais. ... a minha

gente sofrida/ despediu-se da dor/ pra ver a banda passar/ cantando

coisas de amor... – dizia a letra.Chico ganhou também o Festival Internacional da

Canção, no Rio de Janeiro, com Sabiá, uma belíssima canção,feita em parceria com Antonio Carlos Jobim, que contudo foivaiada por razões políticas! A favorita do público era aCaminhando, de Geraldo Vandré, considerada um protestomais frontal contra o poder militar. A torcida pelas cançõesera apaixonada, ardente, insensata, como a do futebol.

A música popular sempre teve, através da História, umaimportância muito grande na vida brasileira. Cada uma desuas diferentes manifestações capta, não só algum aspectoessencial da própria alma do país, como também o espírito dotempo em que foi criada. O momento de passagem e, emseguida, o de convivência, da poética original da bossa nova edo advento do compromisso político marcaram fortemente aexperiência da geração. Mas, com o passar dos anos, as dife-renças se atenuaram, a oposição pareceu mais superficial doque significativa, e os artistas das duas tendências se reencon-traram em terreno comum – o rico e múltiplo universo damúsica popular brasileira.

Luiz Carlos Maciel é do signo de Peixes com ascendente Gêmeos.

Sua natureza por assim dizer quádrupla, o leva a muitas atividades difer-

entes. É roteirista, jornalista, escritor, professor, diretor, ator e sabe-se lá

mais o quê. Já trabalhou em jornal, em teatro, em cinema, em televisão,

etc. Publicou vários livros, sendo os dois últimos Geração em Transe, em

que trata do Tropicalismo no cinema, no teatro e na música popular e As

Quatro Estações, em que traça sua trajetória intelectual nas últimas qua-

tro décadas. No momento, tem no prelo, pela editora Record, O Poder do

Clímax - Fundamentos do Roteiro para Cinema e TV, no qual tenta reg-

istrar no papel a metodologia dos cursos de roteiro que vem dando há

muitos anos.

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Dado Villa-Lobos

A imagem clara que eu tenho, e

que permanece até hoje, do inicio

dos anos 80, é da cidade de Brasília

sitiada pelas forças armadas brasilei-

ras sob o comando do general

Newton Cruz, que em pessoa

comandava as operações de repres-

são às manifestações populares pelas

“diretas já”. O general empunhava

seu chicote à la Goering, tentando

em vão encerrar com o “buzinaço” na

av. L2 sul, arrancando à força as pes-

soas de seus carros enfeitados com

balões verdes e amarelos. O rebuliço

era geral, ecoando ao fundo o hino

nacional; era o entardecer de um dia

de Outono, um pôr-do-sol bíblico

anunciando o crepúsculo de um dos

períodos mais terríveis de nossa his-

toria contemporânea. Revelava-se

assim a aurora de um novo tempo,

novos ares, outros formatos, outras

pessoas…

A Explosão dasbandas de rock,blocos afro enovos ritmos

Paralamas do Sucesso

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“Sentado embaixo do bloco sem ter nada o que fazer,olhando as meninas que passam…” o trecho dessa canção de1982 de Renato Russo (uma analogia ao clássico de Jobim eMoraes “garota de Ipanema”?!) traduz precisamente o que eraBrasília no começo dos anos 80 para alguém que estava nocomeço de sua vida, num lugar sem muitas perspectivas, anão ser a certeza de que um dia você vai partir e deixar aque-le lugar. De fato eu estava sentado no pilotis do meu bloco naSQS 213 quando por acaso surgiram quatro “punks”, aliení-genas, assustadores, armados de seus colorjets que picharamo muro do meu prédio – Aborto Elétrico – , o que era aqui-lo? Qual a mensagem? Quem eram aqueles caras? Algumacoisa existia e estava representada ali. Era, mal sabia eu, asenha que abriria as portas para o sentido da vida naquelelugar, eram jovens se comunicando com outros jovens, eraexplícito, as coisas finalmente começavam a fazer sentido.

O Aborto Elétrico foi a primeira manifestação musicalna Brasília dos anos 80 que se diferenciava da chatice musicalque então vigorava amarrada às presas do conformismo, domarasmo cultural estabelecido há anos. Era impossível resis-tir à força e explosão de suas apresentações da mais puracatarse, catálise e aglutinação de novas idéias. A vontade deser jovem e estar bem consigo e fazer valer seu direito à indi-vidualidade intelectual, cultural, social, e poder então deixartudo isso bem claro através da música, dança, teatro, cinemaou artes plásticas, esses eram verdadeiros estandartes demotivação juvenil dispostos a propagar a força de uma nova

geração na busca da reconquista de seu espaço social perdidohá décadas.

Apresentações em praças públicas, bares, universidades,festivais de cinema, teatro e dança eram sistematicamenteorganizadas e acabavam despertando o interesse do público,sacudido pelo impacto de poder se relacionar, entender e par-ticipar do que então era colocado de forma direta, racional eemocional em sintonia com suas próprias vidas.– “Não temmais corinho vocal e vozes em falsete falando das belezasnaturais de um país imaginário, nem violãozinho com cordase orquestra, agora é energia e distorção, tambores rufando em4 por 4 e a voz gritando pra você: “Somos os filhos da revolu-ção, somos burgueses sem religião, nós somos o futuro danação, geração coca-cola…”,” Nas favelas, no senado, sujeirapra todo lado…Que país é esse?”

A seguir o caminho estava traçado, aberto e magnetiza-do, lá vem a perspectiva e a nítida sensação de prazer e von-tade de estar ali pra sempre. Não havia volta, vamos em fren-te, sempre em frente.

O que de fato ocorreu a partir dessa insurreição dacamada jovem e pensante dos grandes centros urbanos naépoca pode ser visto como um terremoto sem epicentro, semnome ou procedência, uma revolução cultural sem Mao ouQing, tampouco lideres carismáticos identificáveis. Apenasjovens artistas, citando aqui apenas o universo musical,transformando o país de norte a sul, como no Rio de Janeirocom a Blitz, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho; em São

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possibilitando assim o surgimento e consagração de inúme-ros artistas nesse farto caldeirão heterogêneo que é a culturabrasileira. Transformaram-se os hábitos, atitudes e posiçõesdo pensamento juvenil, finalmente votou-se para presidentee, entre altos e baixos, as pessoas começavam a acreditar nopaís. A redemocratização estava estabelecida, a missão esta-va cumprida, na verdade ela continua, por outros motivos,mas eu continuo por aí sentado embaixo do bloco…, pen-sando seriamente em começar a gritar de novo.

Dado Villa-Lobos, sobrinho-neto do famoso maestro compositor

Heitor Villa-Lobos, nasceu em Bruxelas na Bélgica. Chegou em Brasília

em torno de 1979, aos 14 anos. Formou sua própria banda Dado & o

Reino Animal e em 1983 assumiu as guitarras da Legião Urbana. Ao

longo dos anos, aprimorou sua técnica nas guitarras. Juntamente com

Bonfá, compôs e elaborou quase todos os arranjos do repertório da banda.

Produziu a parte musical do Filme Bufo & Spallanzani, no qual também

participa do vídeo clipe "Dentro de Ti" que pertence ao filme e tem voz de

Cássia Eller. Compôs a trilha do filme "O Homem do Ano".

Paulo, os Titãs, Ultraje a rigor, Ira!, Inocentes; em Salvador, oCamisa de Vênus, os blocos afro Olodum, Ilê Ayê; de Recifea Porto Alegre muitos outros vieram disseminando suas ori-gens, crenças, ritmos, rompendo todas as barreiras daexpressão cultural urbana, integrando o sertão ao asfalto, omar ao morro, disseminando através de sua onipotênciacaracterística os novos meios da produção cultural nessepaís, causando drásticas mudanças estruturais na indústriado disco e entretenimento. Com a invasão desses novosartistas nos meios de comunicação de massa, a realização deenormes festivais de música com artistas nacionais e interna-cionais como “Rock in Rio”,“Hollywood Rock,” entre outrosmais, a indústria fotográfica se prontificou de imediato àabsorção da promissora matéria-prima. Nunca até então sehavia produzido e lucrado tanto com as crescentes venda-gens de disco no Brasil. A indústria do disco passou a servista com a respeitabilidade e prestígio de quem alcançara asexta posição do mercado mundial.

As portas estavam definitiva e finalmente escancaradas,

Titãs

Legião Urbana Kid Abelha Barão Vermelho

Fotos: Prensa 3

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Martha Tupinambá de Ulhôa

Novos ritmos e nomes: Marisa Monte, CarlinhosMarisa Monte

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Rio de Janeiro, canto lírico e samba;

Salvador, culto a Ogun e carnaval de rua;

Recife, hip hop e maracatu. Marisa Monte,

Carlinhos Brown, Chico Science... Novos

nomes e novos ritmos na MPB? Novos

nomes, sim, mas sonoridades nem tão

novas assim. O que têm eles em comum? O

ecletismo e a mistura de gêneros e ritmos, o

que é tradicional para a cultura musical bra-

sileira, uma cultura que se caracteriza pela

absorção e reinterpretação de ritmos e for-

mas das mais variadas procedências étnicas

e sociais. O rap parece ser uma outra histó-

ria, talvez o único elemento absolutamente

novo no cenário da MPB.

Brown, Manguebeat, Rap.

Ana Carolina

Carlinhos Brown

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A carioca Marisa Monte encanta pela fluência com queinterpreta, de uma maneira refinada, desde sambas tradicio-nais a clássicos do repertório norte-americano. Incluem-seaí recriações que se tornaram emblemáticas, como“Chocolate”, de Tim Maia, gravado no disco Marisa Monteao Vivo, de 1988. Iniciando-se no canto lírico, MarisaMonte passa posteriormente a interpretar o repertóriopopular em casas noturnas, de onde parte para uma carrei-ra artística. Em seus shows e gravações introduz tambémcomposições próprias. Nessa categoria destaca-se a parceriacom Arnaldo Antunes, na intrigante “Amor I Love You”,sucesso de público registrado em Memórias, Crônicas eDeclarações de Amor, de 2000. Um outro campo de atua-ção de Marisa é a produção musical, seja da ala de composi-tores de uma escola de samba tradicional, como a VelhaGuarda da Portela, seja de discos de outros artistas, comoCarlinhos Brown no disco Omelete Man.1

O baiano Carlinhos Brown fascina pela exibição atléti-ca da sua percussão, que perpassa inclusive suas letras, esco-lhidas mais pela sonoridade do que pela semântica. Sua tra-jetória se inicia na percussão de rua, relacionada à cultura decarnaval, dos trios elétricos e da axé music. Mais uma pernade sustentação de Carlinhos está inscrita no próprio nomeartístico: a influência de James Brown, apontando a prefe-rência pelo soul/funk e pelo uso do corpo como instrumen-to performático. A outra base do tripé é a tradição musicalrelacionada a Ogun, orixá africano do ferro cultuado emCandeal Pequeno, território onde Carlinhos nasceu e cres-ceu. Foi lá que, em 1992, o artista criou a banda Timbalada,um grupo com mais de 100 percussionistas do bairro. Sãovários os códigos musicais que se misturam. É funk, rap,reggae, samba, rock e candomblé produzindo uma músicahíbrida, ao mesmo tempo pop, globalizada e também muitobaiana. Em 1996 é lançado Alfagamabetizado (um jogocom a palavra “alfabetizado” e o primeiro e o último caracterdo grego,“alfa” e “gama”), um disco bem recebido pela críticae pelo público. Ainda no mesmo ano é criada uma escolaprofissional para músicos de rua. Além da escola e daTimbalada, Carlinhos patrocina também uma banda depercussão feminina, chamada Bolacha Maria, e outra bandainfantil, a Lactomania.

O pernambucano Chico Science se destaca mas não é

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enquanto manifesto (Caranguejos com Cérebro, publicadoem 1992) conceitua o Manguebeat (a lama fértil e viva dosmangues potencializada pelos bits da cibernética). A sono-ridade emergente, a batida do mangue (Manguebeat) noentanto não é única, como mostram os trabalhos das ban-das Mundo Livre S.A. e Mestre Ambrósio, outros gruposrelacionados ao movimento.

São muitos ritmos, tradicionais e importados, locais etransnacionais. Nessa cena globalizada onde fica a especifi-cidade da música brasileira? A questão sugere uma reflexãosobre essa trajetória, com influências e adaptações de músi-ca estrangeira e, também, com a articulação de uma lingua-gem musical muito particular. O aspecto rítmico é semdúvida o elemento mais marcante dessa discussão. Mas oritmo é muito mais que uma seqüência de durações organi-zadas num motivo, reconhecível aqui e ali. Existem aspectosrítmicos muito sutis na música popular brasileira, responsá-veis por seu “molho” e sua “ginga”. Esse estilo brasileiro defazer música foi construído num longo processo históricode contatos, empréstimos e trocas entre gêneros brasileirose estrangeiros.

No século XIX a polca empresta a forma de dança agi-tada em pares enlaçados à tradição da dança de pares soltosdo lundu. Os ritmos que acompanhavam o lundu eram osritmos entrelaçados dos tambores de origem africana. Cadabailarino do par desafiante podia fazer uma coreografiaindividual e livre no lundu. A polca de compasso e coreogra-fia sincronizados e regulares é rearticulada na nova dançaque surge, o maxixe. Dança que estilizada na primeira déca-da do século XX pelo dançarino Duque nos salões de Paris,se espalha a outros países latino-americanos. No Brasil,muita música chamada de polca nessa época era na realida-de maxixe. Por trás dos primeiros sambas gravados tambémse escondia a nova dança.

O samba se consolida como gênero comercial na déca-da de 1930, numa cristalização que só seria contestadacerca de 30 anos depois. É quando o jazz empresta suas har-monias de acordes alterados à renovação do samba,empreendida pela bossa nova. Na segunda metade do sécu-lo, o rock, com o som de suas guitarras contribui para aemancipação da música popular de suas raízes tradicionais,através do curto mas influente movimento da Tropicália.

único dentre vários representantes do movimento musicalpulsante que surge da região dos mangues de Recife. Comuma passagem pelo hip hop e rock pós-punk o grupo deChico Science se junta a outros músicos de samba-reggaeformando a banda Chico Science & Nação Zumbi. Osegundo trabalho gravado do grupo, Afrociberdelia (1996)mostra bem o tipo de mistura que se tornou típica dosrepresentantes do movimento (rap, música eletrônica, rocke gêneros tradicionais de Pernambuco, tais como maracatu,coco, ciranda, etc.). Não é sem razão que Chico Science eNação Zumbi colocam três versões do original de JorgeMautner e Nelson Jacobina, “Maracatu Atômico” no CDmencionado. Maracatu pela relação com o local, o mangue;atômico pela referência à cultura pop global. O movimento

No século XIX a polca empresta a forma de dançaagitada em pares

enlaçados àtradição da

dança de paressoltos do lundu.

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Nenhum desses empréstimos, no entanto, interfere no“sotaque” musical do samba, da Bossa Nova e de outrasmanifestações da chamada MPB, em especial no que seconhece como “divisão”, ou seja, na maneira de distribuir asnotas entre melodia e acompanhamento, uma divisão quenem sempre respeita os tempos fortes do compasso. Nacanção, o uso dessa maneira frouxa de sincronizar permiteadequar o sistema de acentuações do português, que é irre-gular, à regularidade métrica dos compassos musicais. Esseaspecto rítmico, que chamo de “métrica derramada” distin-gue o estilo “brasileiro” na performance de vários gêneros demúsica popular (Ulhôa 1999).

O musicólogo Mário de Andrade comenta num estu-do sobre o lundu, escrito em 1928, sobre essa liberdade rít-mica que aparece não só no gênero mas também em cocos,emboladas e desafios da música tradicional nordestina. Sãoformas de metro livre e o que ele chamou de “processos silá-bicos e fantasistas de recitativo” (Andrade 1976: 80). Omestre está se referindo aos padrões de acentuação da lín-gua falada, que carregam para o canto popular tradicionalseu ritmo oratório. Essa métrica livre está muito presentenas incursões do pessoal do Manguebeat, assim como amétrica derramada é típica do samba e derivados.

Novos gêneros musicais se formam a partir da açãodeliberada de músicos ao privilegiar determinadas manifes-tações melódicas, rítmicas, tímbricas e harmônicas. Sãopráticas musicais, por seu lado fundadas e fundidas a práti-cas sociais histórica e geograficamente específicas. Umexemplo da ação desses agentes é a versão da já mencionadapolca pelos músicos de choro no final do século XIX.

Introduzida no Brasil em 1845, a polca tem um papelimportante na formação de gêneros urbanos no Rio deJaneiro, centro cultural da época. Apesar de utilizar essadenominação até os primeiros decênios do século XX, essadança boêmia em compasso binário de forte acentuaçãotética – com ênfase no primeiro tempo dos compassos – éaltamente estilizada na performance pelos músicos popula-res cariocas de choro. Essa estilização ocorre também, eprincipalmente, na dança de pares enlaçados que adapta oestilo de desafio coreográfico individual do lundu à quadra-tura da dança de salão. Essa adaptação, como mencionadoacima, vai contribuir para a criação do maxixe, dança e

Zeca Baleiro

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depois canção que aparece muitas vezes sob o nome depolca ou tango, e que será o precursor do samba.

Chama a atenção em especial o aspecto rítmico desseprocesso de incorporação, no qual a métrica angular dapolca, em contato com outros ritmos, como a habanera cari-benha e o lundu foi flexibilizada. Um dos aspectos dessa fle-xibilização é a estrutura de tempos fortes e fracos do com-passo, que permanece binário, como no modelo europeu,mas com o tempo forte deslocado do primeiro para osegundo tempo, como aparece mais tarde no samba. Essedeslocamento do tempo forte é bastante óbvio no samba-enredo, sendo enfatizado pelo toque do surdo de primeira,o tambor maior e mais potente da orquestra de percussão(bateria) que integra os desfiles da escola de samba.

Outro aspecto peculiar se relaciona à sincronizaçãoentre as partes musicais, novamente precisa no modeloeuropeu e maleável no caso brasileiro. Como comento emrelação à métrica derramada, os próprios limites do com-passo são flexibilizados na performance dos sambas.Nessas canções o número de sílabas do verso e seu padrãode acentuação nem sempre coincidem com o número detempos e localização de acento do compasso musical. Essaindependência entre melodia e acompanhamento aparecenas partituras sob a forma de síncopes internas e em anteci-pações do tempo forte atravessando a linha imaginária doscompassos.1 Ou seja, nesses casos a música segue a lógicaeuropéia do metro binário, mas a estrutura do compasso éreinterpretada, não pela oposição, fazendo algo completa-mente diferente, mas pela “assimilação da diferença”. 2

Os gêneros musicais “estrangeiros” são abrasileirados, senão na sua forma, no seu conteúdo. Foi assim com a polca,com o fox, com o bolero, com o jazz, mesmo com o rock, ouseja, se afirma a identidade pela mistura e pela sutileza aolidar com o outro. Talvez por isso a música brasileira popu-lar exerça um certo fascínio também para ouvintes das maisdiversas procedências culturais.

Se no século XIX a polca tem um papel importantepara a formação de gêneros de música urbana brasileiros, noséculo XX é o rock que vai ser central para a modernizaçãoda música popular. Essa modernização é assinalada pelaatuação de grupos que funcionam como verdadeira van-guarda em seus campos de produção específicos. De umlado, e num primeiro momento, a Jovem Guarda, lideradapor Roberto Carlos, modelo para a produção musical deampla aceitação popular e sucesso comercial. De outro, aTropicália capitaneada entre outros por Caetano Veloso,modelo de produção preocupada com originalidade e ela-boração artística. Para ambos os campos, os Beatles sãofonte de inspiração musical: para a Jovem Guarda o rockadolescente iê-iê-iê (uma clara alusão à canção She lovesyou); para a Tropicália a experimentação pós albumRevolver.

O rock não foi abrasileirado como a polca, pois foiintroduzido num espaço onde já estavam definidos os con-tornos de uma produção nacional. O uso da guitarra elétri-ca foi inclusive questionado pelo segmento da juventude

O rock não foiabrasileirado

como a polca, poisfoi introduzido

num espaço ondejá estavam

definidos oscontornos de umaprodução nacional.

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universitária engajada com a crítica social na época (décadade 1960). O uso de elementos do rock pelos tropicalistas,eles próprios membros dessa comunidade, representou umgesto de auto-crítica, inclusive do samba como o únicorepresentante legítimo de brasilidade. A partir daTropicália, os cancionistas MPB iriam incorporar gênerosos mais variados ao seu repertório, não somente de outrasorigens regionais (como o baião nordestino), mas tambémestrangeiros (como o reggae jamaicano). Nesse cenário aJovem Guarda foi considerada como “alienada” dos proble-mas sociais e políticos do país sob ditadura militar. Nasdécadas de 1960 e 1970, o uso de gêneros musicais específi-cos por certos compositores desse segmento (como ChicoBuarque de Hollanda ao compor sambas) tinha uma cono-tação de protesto.

Com a abertura política e eleições presidenciais emmeados da década de 1980 essa ligação com algum tipo deraízes étnicas como índice crítico se esgota. O apelo à iden-tidade nacional se dá no âmbito do próprio rock, agorareconhecido como Rock Brasileiro. Uma canção emblemá-tica dos anos 80 é Faroeste Caboclo do grupo LegiãoUrbana (EMI, 1987), que utiliza várias texturas de rockcomo trilha sonora para narrar a trajetória de um jovemnordestino que vai para a capital federal (Brasília) para seapaixonar, se envolver com a violência urbana e morrer emfrente às câmeras da televisão. O elemento de identificaçãoétnica e cultural é bastante sutil, pois sonoramente a cançãonão teria nada de particularmente “brasileiro” a não ser pelouso do português. Pois é exatamente esse uso da língua por-tuguesa que quero continuar a explorar.

Faroeste Caboclo já foi comparado pelo crítico de rockArtur Dapieve a Hurricane de Bob Dylan. De fato, assemelhanças são muitas, entre elas o tema, narrando umatrajetória heróica e o contorno melódico próximo da fala.No entanto, o modelo prosódico não é o do folk-rock nor-teamericano, mas o da tradição brasileira conhecida comorepente. Como menciona o próprio autor de FaroesteCaboclo, Renato Russo, em várias entrevistas, a canção foifácil de compor por usar o estilo declamatório de métricalivre típico dos desafios improvisados e cocos tradicionaisdo nordeste brasileiro. Nesse estilo de canto declamado, orepente, não observo a questão da métrica derramada, a não

ser na pouca ênfase para os tempos fortes de cada compas-so, uma vez que as frases longas de notas repetidas ou comintervalos de âmbito muito curto produzem um resultadosonoro de caráter horizontal e sem acentos métricos. Isso édiferente do samba que é claramente binário, mas tambémdiferente do rock em inglês. Esse rítmo prosódico é aqueleobservado por Mário de Andrade, como comentado acima.

Certos padrões rítmicos básicos distinguem a maioriados gêneros musicais difundidos pela mídia internacional.Um exemplo disso são os teclados eletrônicos para usocaseiro, que fornecem ao usuário um conjunto dos padrõesmais comuns na música pop (tais como rock, valsa, BossaNova, bolero, balada, reggae, salsa, entre outros). Essas sim-plificações estereotipadas não substituem, no entanto, o

Com a aberturapolítica e eleiçõespresidenciais emmeados da décadade 1980 a ligaçãocom algum tipo de

raízes étnicascomo índice

crítico se esgota.

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vigor e excitação de uma performance criativa, onde o músi-co interfere na construção da base ritmico/harmônica. Issoporque a máquina não consegue simular as indetermina-ções rítmicas próprias do discurso musical. E esse discursomusical pressupõe uma competência musical específica,uma familiaridade com normas gramaticais culturalmentedeterminadas.

Para ficar somente com um exemplo, basta pensar naBossa Nova, que soa “pasteurizada” quando tocada nosteclados eletrônicos com a base rítmica predeterminada.Ou que soa artificial e “dura” quando tocada por músicosnão familiarizados com a “ginga” brasileira. E esse elementosutil está, a meu ver, intimamente relacionado ao ritmo dalinguagem falada que se insere na prática musical.

O português brasileiro, como muitas outras línguas,usa o acento silábico como um meio de identificação fono-lógica. Um exemplo típico pode ser a palavra de três sílabascujo significado modifica dependendo da localização dasílaba tônica: “sabiá” (o pássaro), cujo acento cai na últimasílaba;“sabia” (passado do verbo saber), acentuado na penúl-tima sílaba; e “sábia” (pessoa possuidora de sabedoria), comênfase na antepenúltima sílaba. Um número grande daspalavras em português está na segunda categoria, ou seja,com acentuação na penúltima sílaba. Como adequar essatendência à métrica musical ocidental, cujos compassos seiniciam com um tempo forte? Simples, é só iniciar a cançãoantes do primeiro tempo do compasso.3 Ou seja, a mesmamaneira de acentuar deslocada mencionada acima e quecaracteriza o samba, estando também presente de umamaneira sutil na Bossa Nova.

Na performance de certos cantos, a linha melódicaexiste quase independente do tecido sonoro acompanhante.Esse é o caso dos gêneros estudados por Mário de Andradee, de certa maneira também, do rap que, como o próprionome diz, é poesia recitada sobre uma base ritmica. Masuma coisa é a métrica da língua inglesa, como aparece norap norte-americano, outra é a métrica da língua portugue-sa como pronunciada no Brasil.

A prosódia usada no Brasil é silábica, os versos sendoespecificados pelo seu número de sílabas (de uma a doze,geralmente, contadas até a última sílaba acentuada); cadatipo de verso tem um número fixo de sílabas, delimitados

Zélia Duncam

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pelo acento tônico final. Embora cada palavra possa ter suassílabas tônicas e átonas, é a lógica da sentença que prevale-ce. Dependendo da sua localização num verso ou frase, umapalavra ou sílaba acentuada pode ter seu acento negligencia-do, ou variar em termos de limites silábicos. Ou seja, agru-pamentos ritmicos são variados, formando frases de tama-nho e estrutura métricas diferentes.

É interessante notar que, em certas línguas européias,como no inglês, os padrões de acentuação são isócronos,isto é, usam uma mesma quantidade de tempo entre umasílaba e outra acentuadas. Portanto, pelo menos no caso dalíngua inglesa, a métrica parece ser organizada em “compas-sos” regulares. Quando Chico Science canta um hip hop emportuguês, como na música “Etnia”, do disco Afrociberdélia,usa a divisão métrica livre da tradição nordestina, e dessamaneira transforma e recria o gênero pela absorção parcialda diferença.

Uma sonoridade absolutamente nova aparece com orap, especialmente o paulista, que imprime nas suas letrasem português a regularidade própria da língua norte-ame-ricana. Suas bases ritmicas são também construídas de umamaneira radicalmente diferente do que aparece na MPB.Em vez da criação de um tecido sonoro composto pela inte-ração entre os instrumentistas, o aproveitamento de “sobras”dos samplers pirateados numa colagem mecânica. Em vezdo contorno melódico fluido do canto o metralhar ásperodo texto recitado.

O rap é introduzido no Brasil por equipes de bailesoul e se desenvolve sobretudo em São Paulo. As letras sãodeclamadas sobre bases tiradas de discos de funk e even-tuais scratches. A partir do final dos anos 80, rappers sur-gem em todo país (Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre,Belo Horizonte, Recife) mas São Paulo permanece comoo centro de uma produção independente do gênero. Ogrupo mais conhecido de rap, os Racionais MCs despe-jam sobre essas bases um discurso denunciador da condi-ção do jovem negro e pobre dos bairros marginalizados deSão Paulo. Conquistam um público expressivo para seusshows (alguns com cerca de 10.000 pessoas) e empreen-dem campanhas de conscientização da juventude sobretemas como drogas, violência policial e racismo. Seu discomais importante é Sobrevivendo no Inferno, uma produ-

ção independente de 1998 que vendeu mais de um milhãode cópias.

Mas é sobretudo na métrica que o rap paulista se dis-tingue da produção de MPB dominante. O rap contrastacom a tradição da métrica derramada ao imprimir às pro-duções em português o padrão de acentuação isócrona doinglês, e se apresenta como um elemento estranho às for-mas de expressão musical consolidadas. O rap contrastainclusive com as tradições de cantos recitados nordestinos,de divisão silábica mas sem padrões regulares de acentua-ção. Por isso a constatação de que o rap se coloca à margemda MPB. Os rappers se colocam em oposição ao “brasileiro”da música popular e tentam construir para o gênero umespaço com suas próprias normas de funcionamento.

No entanto, na terra do manguebeat o rap tem sidoincorporado e integrado a sonoridades e gingas locais.Grupos como Faces do Subúrbio declamam letras no ritmo

O rap éintroduzido no

Brasil porequipes de baile

soul e sedesenvolve

sobretudo em São Paulo.

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Nação Zumbi

dos desafios de embolada por sobre bases utilizando per-cussão de pandeiro, instrumento tradicional. No Rio deJaneiro, MV Bill, o rapper de maior expressão grava commúsicos de samba. Ou seja, raízes continuam a se misturarcom tendências estrangeiras reinventadas e novos nomessurgem para revigorar o velho som da música popular. DeMarisa Monte ao rap é o Brasil que canta e dança seu ritmoplural e original.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Andrade, Mário de. “Lundu do escravo” [1928]. In Música doce

Música. 2 ed. São Paulo: Livraria Martins Editora; Brasília: INL, 1976, p.

74-80.

Hollanda, Heloisa Buarque de.“The law of the cannibal or How to

deal with the idea of “difference” in Brazil” http://acd.ufrj.br/pacc/litera-

ria/paper1helo.html [1998, com consulta em 03/09/2002]

Sandroni, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no

Rio de Janeiro (1917-1933) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Editora

UFRJ, 2001.

Ulhôa, Martha Tupinambá de. “Métrica Derramada: prosódia

musical na Canção Brasileira Popular “ Brasiliana 2 (maio de 1999):

48-56.

NOTAS

1 O leitor pode encontrar exemplos de métrica derramada (com o

nome de “contrametricidade”) em transcrições de gravações de sambas no

estudo de Carlos Sandroni (2002).

2 O termo é de Heloisa Buarque de Hollanda (1998), para caracte-

rizar essa preferência pela absorção constante, apesar de parcial da dife-

rença nos discursos de identidade no Brasil.

3 É o fenômeno conhecido em música como “anacruse”, ou seja, a

frase musical começa antes e termina depois do primeiro tempo do

compasso.

Martha Tupinambá de Ulhôa é professora titular de musicologia do

Instituto Villa Lobos e do Programa de Pós-Doutorado em Música na

Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). Primeira secretária da

ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em

Música) e Vice-presidente da IASPM-LA (Associação Latino-

Americana de Estudos da Música Popular). Como pesquisadora do

CNPq tem se dedicado ao estudo da música brasileira popular.

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Fruto da semente tropicalista plantada em 1968, emmovimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, amúsica brasileira contemporânea tem hoje sotaque planetá-rio. Referência mundial de padrão estético desde que a BossaNova agregou ao samba elementos do jazz, a partir de 1958,a música brasileira interage cada vez mais com os sons univer-sais sem perder as suas características básicas. João Gilbertovoltou ao Carnegie Hall, em junho, para celebrar os 40 anosdo célebre concerto que popularizou naquele palco america-no, em escala mundial, a velha bossa, mas a MPB – siglaque carimba a produção fonográfica nacional desde os anos60 – já representa aos olhos do Mundo muito mais do que osamba sincopado de João Gilberto, Tom Jobim e Cia.

Terra natal de João Gilberto, a Bahia é também o maiorceleiro dessa interação da música brasileira contemporâneacom o Mundo. Foi lá que o batuque de blocos afro como

Mauro Ferreira

Martinho da Vila

Olodum se fundiram com a batida do reggae e criaram osamba-reggae, ritmo que é a célula-máter da música generica-mente rotulada como axé-music. Analisada com preconceitodentro de seu próprio país de origem, por ser produto da ins-piração de compositores negros, a axé-music teve sua forçadiluída no Brasil pela indústria fonográfica – que desgastou orepertório dos compositores baianos em sucessivos e deslei-xados discos ao vivo – mas seu ritmo impera nas ladeiras daBahia e o som de seus tambores ecoa nos quatro cantos doMundo. Astros como Paul Simon e Michael Jackson járecrutaram o batuque do Olodum. E Daniela Mercury – acantora que propagou com mais ênfase a música baiana apartir dos anos 90 – desenvolve sólida e progressiva carreirainternacional.

A Bahia ainda dá as cartas no mercado nacional – selevada em conta a origem de ícones da MPB como Caetano

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A contemporaneidade da música brasileira

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Veloso, Gilberto Gil e João Gilberto, além do sucesso popu-lar dos intérpretes de axé-music, como a cantora IveteSangalo – mas o sotaque planetário da música brasileira sefaz ouvir em cada canto do Brasil. No Recife, o falecidoChico Science fez história nos anos 90 quando, a bordo deseu grupo, a Nação Zumbi, reprocessou o maracatu, ritmonativo, com linguagem pop. Nascia o Mangue Beat, ouMangue Bit, como também é chamado o movimento maisinfluente da música brasileira na última década. A reboquedo sucesso de Science, outros grupos aprofundaram a suareceita – caso do Mundo Livre S/A – e a cena musical do

Recife foi revitalizada, com o aparecimento de muitas bandase repercussão em todo o Brasil e até no exterior.

Fenômeno semelhante ao de Pernambuco, mas aindarestrito ao Espírito Santo, aconteceu mais recentemente emVitória, a capital do Estado. O grupo Casaca arrasta multi-dões estimadas em 30 mil pessoas para ver seus shows. Areceita, no caso, é tocar o congo (tradicional ritmo capixaba)com a mesma linguagem pop com que Chico Science deuum banho de loja no maracatu. Atenta ao fenômeno capixa-ba, a gravadora multinacional Sony Music contratou o grupo

Chico César

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Casaca e está lançando em escala nacional o segundo disco dabanda, na esperança de projetar a versão pop do congo emtodo o Brasil. Enquanto isso, o Maranhão se torna a Jamaicanacional e de lá exporta o reggae de grupos como Tribo de Jah.

Por conta desses fenômenos locais, segmentação e plu-ralidade se tornaram as palavras-chaves da música brasileiracontemporânea. O mercado musical trabalha hoje com dife-rentes fatias de público. Se o samba ainda dá o tom nos quin-tais do Rio de Janeiro, com muita repercussão nos pagodesarrmados em São Paulo, a música gaúcha continua restritaao Rio Grande do Sul, Estado caracterizado pela autosufi-

Chico Science

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ciência e independência do seu mercado local. E é essa plura-lidade permite o aparecimento de compositores como oparaibano Chico César e o pernambucano Lenine. Ambostemperam as matrizes dos ritmos nordestinos com molhopop eletrônico e, não por acaso, Chico César e Lenine sãodois dos artistas mais bem-sucedidos no exterior. Tambémfaz sucesso no exterior uma cantora carioca que soube comoninguém soar universal cantando samba, balada, pop e qual-quer ritmo. Seu nome? Marisa Monte, uma das campeãs devendas no mercado fonográfico brasileiro.

Na ala pop, fortalecida no mercado contemporâneodesde 1982, quando o estouro da Blitz abriu o mercado parao rock nacional, a repercussão externa é bem menor. Talvezpelo fato de a maioria dos grupos reproduzir em seu som aestética universal do rock. Mas é inegável a importância nacena nacional de grupos como Titãs, Barão Vermelho eParalamas do Sucesso, esta a primeira banda a mesclar ritmosbrasileiros com reggae e rock, já em 1986.

Os grupos de rock desempenharam, a partir dos anos80, o papel revolucionário feito pela estupenda geração reve-lada nos anos 60, quando despontaram nomes como ChicoBuarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Milton Nascimento(estrela quase solitária no céu mineiro), Martinho da Vila e osjá citados Caetano e Gil. Hoje, estes compositores produzemde forma menos profícua e, não raro, dedicam-se a projetosrevisionistas, mas é essencial a importância deles para a cons-trução e solidificação da música brasileira contemporânea.

Aos olhos do Mundo, o Brasil é cada vez mais reconheci-do pela sua produção nacional. E este reconhecimento já nãose limita ao visual exótico de Carmen Miranda ou à batida daBossa Nova, que bebeu nas águas do jazz americano e, porisso, foi rapidamente assimilada nos Estados Unidos. A músi-ca brasileira contemporânea hoje tem identidade própria e, aoincorporar sotaque pop, esta rica música nacional, longe de sediluir, fica cada vez mais forte para conquistar o mundo.

Mauro Ferreira, 37 anos, é jornalista, crítico e pesquisador musical.

Atua no mercado desde 1987. Foi repórter e crítico de MPB do jornal

carioca O Globo de 1989 a 1997, ano em que foi convidado a ingressar

no jornal carioca O DIA, onde assina até hoje a coluna Estúdio, sobre

novidades do meio musical. Paralelamente, Mauro faz críticas de discos

para a revista IstoÉGente, de circulação nacional.

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"Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada."Brasil Pandeiro, canção que o compositor Assis Valente(1911-1958) escreveu na década de 40, previu que a MúsicaPopular Brasileira possuía vibração e malemolências paraseduzir não apenas os Estados Unidos como tam-bém outros países. Valente não estava errado: desdeos tempos de Carmen Miranda (que, por ironia dodestino, se recusou a gravar Brasil Pandeiro), exporta-mos da sonoridade cool da bossa nova, dos vocais sus-surrantes de João Gilberto e Tom Jobim ao heavymetal tribalista de Sepultura e Max Cavalera; as ino-vações sonoras de Tom Zé e Caetano Veloso às expe-riências de Bossa Nova com música eletrônica de BebelGilberto – filha e herdeira musical de João Gilberto.

O Brasil, no entanto, possui mais ritmos, gênerosmusicais e artistas para mostrar para o resto do mundo.Apesar de serem rotulados como world music, essanova geração de popstars pode ser apreciada por pes-soas nos Estados Unidos, Mongólia, Tanzânia – e nin-guém poderá dizer que eles são brasileiros a não ser pelasbatidas maravilhosas e a ginga das canções que estão sendoexecutadas. Muitos desses artistas são razoavelmente conhe-cidos pelo público internacional. É o caso da diva MarisaMonte, cujos álbuns venderam mais de cinco milhões decópias no Brasil. Alguns críticos internacionais podem rotu-lá-la como "exótica" ou "folclórica", mas Marisa Monte é umacantora excepcional e sabe escavar algumas das pérolas deartistas veteranos do samba.

É impossível não se emocionar com as releituras delapara as canções de Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola,além do belo álbum de Argemiro Patrocínio (integrante da

Sérgio Martins

Perspectivas para a nova MPB

Max de Castro

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Velha Guarda da Portela, cujo disco de estréia foi produzidopor Monte). A cantora carioca mistura com propriedadeingredientes como beleza, carisma, talento e marketing.Marisa Monte é apenas uma das enormes revoluções musi-cais que têm acontecido no Brasil nos últimos anos. A come-çar pela música pop, que passou por sensíveis mudançasdesde a década de 60. A Jovem Guarda, primeiro grandemovimento musical adolescente, se esmerou em traduzir ascanções de bandas inglesas e americanas da época.

Nos anos 70, artistas do quilate de Tim Maia, RaulSeixas e Novos Baianos misturaram a linguagem internacio-nal (soul music, rock) com ritmos brasileiros. Outros adeptosdessa macumba sonora são sucesso até hoje. O Trio Mocotó,

que acompanhou Jorge Ben no início da carreira,colhe louros pelo recém-lançado Samba Rock. Boa

parte dos shows atuais do grupo são em águas inter-nacionais. Como por exemplo no Womad, festival

organizado pelo cantor inglês Peter Gabriel e quereúne os artistas que realmente valem a pena serem

conhecidos pelos adeptos da world music. A receitafoi aprimorada na década seguinte pelo grupo

Paralamas do Sucesso em discos como Selvagem?, de1986. Os artistas brasileiros de hoje adicionaram outro

elemento a essa salada sonora: a sofisticação.O desenvolvimento das técnicas de estúdio e a cria-

tividade dos nossos músicos nos coloca numa posição aquilômetros de distância do exótico. "Se eu quiser vatapá,

eu vou para o Brasil. Se tiver de comer hambúrguer, ficonos Estados Unidos mesmo", declarou certa vez Jon

Pareles, crítico do jornal americano New York Times e brasi-lianista de primeira hora. Certamente mister Pareles estátendo de mudar de opinião, face às brilhantes bandas de rockbrasileiras. O quarteto mineiro Pato Fu, por exemplo, foiincluído numa edição internacional da revista americanaTime no ano passado como uma das dez bandas surgidasfora dos Estados Unidos e que merecem audição imediata. Alista é engrossada por pesos-pesados do quilate deRadiohead e Portishead, grupos de alta rotação no mercadode música internacional. Os discos do Pato Fu, por sinal, esta-rão sendo lançados nos Estados Unidos e na Europa aindaeste ano. No início da década passada, o estado dePernambuco nos presenteou com o manguebit, uma colagem

Luciana Mello

Rita Ribeiro

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Jair de Oliveira

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de heavy metal, punk, música eletrônica e os tambores toni-truantes do maracatu. A revolução foi iniciada por ChicoScience & Nação Zumbi, que lançou dois grandes discos eexcursionou por diversos países da Europa. Em 1997,Science morreu num desastre automobilístico. Mas a NaçãoZumbi continua ativa, lançando álbuns como RadioS.AM.B.A, que recebeu loas do crítico americano BenRatliff. "Se eles lançassem seus álbuns por qualquer selo deheavy metal americano, conquistariam o mundo", declarou.O alter ego da Nação Zumbi é o Mundo Livre S/A. Elessão liderados por Fred 04 (que tem este apelido porque usaóculos, ou seja, é "quatro olhos") e mistura punk rock e JorgeBen. Fred escreve letras sensacionais, perfeitos "sambas

punk" sobre os problemas sociais de Recife.O Mundo Livre S/A. gerou também Otto, ex-percus-

sionista do combo, que tem recebido aclamações da impren-sa internacional. Seu álbum de remixes, Changez Tout, foieleito como um dos melhores discos do ano passado peloNew York Times. Do Recife há de se louvar também artistascomo Lenine, Mestre Ambrósio e o DJ Dolores, que tratoude "eletronizar" a música do Recife. A Belo Horizonte quegerou o Clube da Esquina de Milton Nascimento e maisadiante o Pato Fu também é responsável por uma boa revo-lução pop. O quinteto Skank foi um dos grandes sucessos damúsica pop dos últimos anos. Venderam mais de 4,5milhões de cópias com uma sonoridade deliciosa, que mistu-ra ritmos jamaicanos com o folclore do estado de MinasGerais. Hoje eles estão voltados para o rock. O Pato Fu émais criativo. Os vocais de Fernanda Takai podem ser defi-nidos como uma espécie de "Astrud Gilberto" da músicapop. A música do grupo foge de rótulos. Varia entre heavymetal, pop e um tanto de MPB. Outro talento surgido

desse estado é o Berimbrown. Eles se definem como"congopop" e misturam música negra norte-america-

na com tambores de Minas Gerais. O Rio de Janeiro,por seu turno, também contribuiu com grandes ban-

das. O Rappa começou na década passada como umgrupo de reggae, mas hoje faz de tudo um pouco: reggae,

música eletrônica, samba e afins. São bastante conheci-dos pelo seu trabalho à frente de comunidade pobres do

Rio de Janeiro.O grande talento da música brasileira dos últimos

anos, no entanto, vem de São Paulo. Max de Castro, 30anos, foi aclamado na mesma edição da revista Time queaclamou o Pato Fu. Só que o cantor e guitarrista apare-

ceu na capa, dividindo oespaço com a colombia-na Shakira e a islandesaBjork. Max de Castrotem dois discos no mer-cado (Samba Raro eOrchestra Klaxon) quesão o fino da músicabrasileira. As compo-sições dele agregam

Paula Lima

Daniel Carlos Magno

Pedro Mariano

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des influências. Nessa categoria, há de se louvar também oinvestimento da Petrobrás no álbum Ouro Negro, tributoao maestro brasileiro Moacir Santos. Ele, que vive nosEstados Unidos desde 1967, criou uma espécie de afo-samba-jazz que tem deixado os americanos malucos. OuroNegro reuniu a nata da música instrumental brasileiracomandada pelo saxofonista Zé Nogueira e pelo violonis-ta Mario Adnet. Juntos, eles traduziram e recriaram as par-tituras originais de Moacir Santos num álbum duplo quetrouxe como convidados o pianista João Donato e os can-tores Milton Nascimento, Joyce e Ed Motta. Ouro Negrotambém foi incluído na lista do New York Times como umdos grandes álbuns do ano passado e freqüenta a prateleirado trompetista americano Wynton Marsalis – que, mara-vilhado pela música de Moacir Santos, pensa até emchamá-lo para uma parceria. O mesmo país caiu de joelhosà frente de duas herdeiras da bossa nova. A primeira éBebel Gilberto. Seu álbum Tanto Tempo, lançado há doisanos, é o disco brasileiro mais vendido no mercado ameri-cano desde Getz/Gilberto, colaboração entre o saxofonis-ta americano e João Gilberto na década de 60. LucianaSouza é filha do cantor Walter Santos, conterrâneo de JoãoGilberto (ambos nasceram na cidade baiana de Juazeiro) eque na década de 80 criou o selo de música instrumentalSom da Gente.

As novas divas possuem trabalhos distintos. BebelGilberto recria canções da bossa nova sob uma perspectivaeletrônica – sua versão de Samba da Benção (clássico deBaden Powell e Vinícius de Moraes) é magistral. Cai no gostodo americano médio que adora ouvir uma canção relaxanteapós o trabalho. Luciana Souza é mais ousada e bastante res-peitada entre o circuito de jazz. Sim, Assis Valente, Tio Samainda está querendo conhecer a nossa batucada. Mas tem seimpressionado com a máquina de ritmos e criatividade daMúsica Popular Brasileira.

Sérgio Martins, 35 anos, é subeditor de Artes & Espetáculos da

revista Veja. Passou também pela redação da BIZZ, uma das principais

publicações musicais do Brasil, da revista Época e colaborou para os

matutinos Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde.

Também escreveu um artigo sobre Música Popular Brasileira para a edi-

ção americana da revista Time.

samba, ritmos eletrônicos, bossa nova e soul music queencantaram os críticos americanos. Mais do que isso, Maxde Castro reassume algumas tradições que andavam emfalta na música brasileira. Como por exemplo, as melodias eas harmonias. "Os movimentos musicais seguintes acaba-ram por privilegiar a letra em detrimento do ritmo", atesta deCastro. Isso não quer dizer que sua música seja "alienada"(para usar um discurso batido de certas facções da músicabrasileira). Max de Castro sabe falar de temas como discri-minação racial e problemas sociais com uma delicadeza quefaz qualquer brutucu do cinema americano se debulhar emlágrimas. Max de Castro pertence à Trama, gravadora inde-pendente brasileira que tem mudado o conceito de se fazermúsica no país.

Ao invés de optar pelos ritmos da moda, ela aposta emnovos talentos da composição. "Queremos descobrir nosnovos Chicos, Miltons e Caetanos", dispara João MarcelloBôscoli, presidente da companhia. Ao lado do empresárioAndré Sjzaman, eles mostraram não apenas o talento deMax de Castro como Simoninha, irmão de Max de Castro.Simoninha tem um estilo diferente do irmão. Atua maiscomo um crooner, em canções que emulam soul music ebaladas apaixonantes. O vocalista também atuou como dire-tor artístico da companhia e lançou o último disco do violo-nista Baden Powell. A Trama tem revelado artistas comtalento e sofisticação para ganhar o resto do mundo. São oscasos de Jairzinho Oliveira e Luciana Mello, rebentos docantor Jair Rodrigues. Mello inclusive transferiu-se paramajor, a Universal. Outro talento da companhia é o cantorPedro Mariano, filho de Elis Regina e do pianista e arranja-dor César Camargo Mariano, e uma das vozes mais docessurgidas nos últimos anos no Brasil. Os artistas da Tramatêm despertado interesse internacional.

Os DJs Marky e Patife (ambos são do cast de músicaeletrônica da companhia) são presença constante nas festasmais badaladas da Inglaterra e a Trama ainda fechou con-trato com o cantor e compositor Ed Motta. A Trama abriuespaço para que o público brasileiro se deliciasse comoutros artistas d’antanho. Nos últimos dois anos foramrelançadas obras-primas de astros do samba-jazz (o saxo-fonista J.T. Meirelles e o baterista Edison Machado), que atoda hora são citados por Max de Castro como suas gran-

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Desde a segunda metade dos anos 90,tenho presenciado cenas surpreendentesem shows de artistas brasileiros promovi-dos em Tóquio: a presença maciça dejovens japoneses, vestidos à maneira de seusídolos de dia a dia, muitas vezes importadosde alguma parte do mundo. O público apa-rentemente pouco tem a ver com a música ea cultura brasileiras. Jovens do tipo rara-mente visto nesses shows durante a décadade oitenta, quando houve uma apresenta-ção intensiva da MPB em nosso mercado.

O primeiro encontro do Japão com amúsica brasileira teve lugar em remoto anode 1964, quando Sérgio Mendes e NaraLeão excursionaram por aqui, fazendoparte de um show de moda patrocinadopor uma empresa privada, e dando abertu-ra ao posterior processo, lento mas firme, deinfiltração da bossa nova entre os japoneses.

Olhares EstrangeirosMana Kuniyasu

A difusão em maior escala iniciou-se apartir de 79, com o belo espetáculo de ElisRegina e Hermeto Pascoal que entusiasma-ram o público amante de jazz norte-ameri-cano, participando do Live Under the Skyrealizado em Tóquio, a versão japonesacompacta do Festival de Jazz de Montreux.E a década seguinte foi fortemente marcadapela leva da MPB que enviou seus porta-vozes para mostrarem o trabalho, tais comoGal Costa, Djavan, Clara Nunes, JoãoBosco, Joyce, Gilberto Gil, MiltonNascimento, Ivan Lins e muitos outros. Aprimeira e a única apresentação do maestroAntônio Carlos Jobim teve lugar em 86. Oterceiro e o último tour de Elizete Cardosoaconteceu em 87. No fim da década a pró-pria leva se diversificava extendendo-se aopagode, o choro e o samba de velha guarda.

Uma das características desse período Fot

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em algum lugar, independentemente da capacidade doslocais de show. As cadeiras nos teatros eram dos poucos bra-sileiros residentes no Japão e dos japoneses um pouco maisnumerosos, amantes da música brasileira que acompanha-vam com cuidado escassas notícias vindas do Brasil.

Porém, essa situação pouco estimulante para quem que-ria que a música se difundisse em maior escala e naturalidadesofreu mudanças a partir da última década. Hoje muitosartistas e músicos brasileiros atraem para suas apresentaçõesuma massa de jovens com aparência roqueira, hip-hopper,rapper, clubber e enfim, que não distinguem a música dessesartistas das demais importadas dos Estados Unidos, da euro-pa ou de qualquer outra parte do mundo. E o público é, mui-tas vezes, puramente japonês quando se trata de shows pro-movidos por agentes japoneses. Isto é, há um relativo distan-ciamento entre os canais de promoção dos shows, aquelesdesenvolvidos pelos japoneses e outros pelos dekasseguis, osbrasileiros de descendência japonesa que começaram a che-gar e residir no país após a época de economia de bulha, dasegunda metade dos 80 aos primeiros anos dos 90, formandograndes comunidades.

Várias explicações podem ser apontadas para essamudança do tipo de público nos shows promovidos pelosagentes japoneses: a aproximação dos artistas e músicos japo-neses aos elementos musicais brasileiros tal como no caso docantor e compositor de rock Kazufumi Miyazawa; a maiorfacilidade de acesso às informações culturais brasileiras possi-bilitada pela presença das comunidades brasileiras no país; eo amadurecimento do mercado fonográfico japonês. Mas arazão decisiva que trouxe a maior infiltração da música brasi-leira, seria a transformação da própria música que passou ater a cara “planetária”, no sentido da afirmação do cantor ecompositor Lenine.

Os artistas da atual geração de ponta da música brasilei-ra levam a vantagem de ser “antropofágica” de nascença.Absorvem diversos elementos, seja da música universal sejada brasileira, e criam seus sons inteiramente originais, commaior naturalidade. Quem reconheceu a importância dodireito de ser assim vantagioso e lutou para garanti-lo foramos artistas mais velhos, principalmente do movimento tropi-calista que, por sua vez, também usufruiram do rico acervomusical brasileiro até então constituído. E muitos deles, ativos

de difusão da música brasileira seria que o interesse dopúblico geral era mercadologicamente formado em cone-xão com algum outro fator adicional, de preferência trazidodos Estados Unidos, uma referência mais familiar para opúblico. Assim, muitos artistas brasileiros chamaram aatenção inicial dos japoneses por terem trabalho de colabo-ração com os músicos europeus ou norte-americanos, ofenômeno que, na verdade, já havia sido observado junto àbossa nova dos anos 60, apresentada ao Japão pelas mãosdos jazzistas previdentes.

Do jazz à música brasileira, rumou esse interesse dopúblico no decorrer dos anos. Ainda que sob o rótulo inevitá-vel de “world music” que antecede a qualquer nome específicode país, região, raça ou cultura, a procura por horizontes des-conhecidos de música sempre foi intensa até constituir umamassa apreciadora de elementos musicais tipicamente brasilei-ros. Aliás, o interesse básico pela música brasileira dos japone-ses nunca tomou outra direção, o fato que explica sua relativaindiferença em relação ao rock brasileiro oitentista, apesar daintensidade com que ele se mostrava na terra de origem.

Nesse período, a platéia dos shows dos artistas da MPBrealizados nas grandes cidades do Japão era composta maisou menos pelas mesmas pessoas. Era até interessante olharpara o público e sempre encontrar alguns espectadores, e emnúmero não muito pequeno, com quem penso que já cruzei

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pops universais na sociedade japonesa, mais aberta para omundo, onde se procura dar maior enfoque à individualidadee não à unidade, um valor tradicionalmente respeitado. Ouniverso musical do ponto de vista deles, onde a música bra-sileira está sendo inserida, é livre de barreiras de gênero ou demovimento. Nele há apenas a exposição e a expansão de duasdas propriedades humanas, a criatividade e a espontaneidade,que simplesmente entusiasmam as pessoas com seus traba-lhos de variedade infindável.

E a face pluralista da música brasileira atual sem dúvidase apresenta como uma referência importante e preciosa, nãoapenas para nós japoneses mas também para todos quevivem e amam a música neste planeta, por possuir força sufi-ciente para procurar equilíbrio com a tendência de unifica-ção de valores que cada dia mais se intensifica em nome daglobalização. Uma força que não pode ser exercida por qual-quer cultura musical, uma vez que para isso é indispensávelter a firmeza nos seus próprios valores constituintes, ou seja,a tradição. E a música brasileira tem isso e muito. Felizmentepara ela, e para nós ouvintes.

Mana Kuniyasu - Nascida no Japão, residiu em São Paulo de 75 a

83, devido ao contrato de trabalho do pai. Formou-se em Ciências Sociais

pela Universidade de São Paulo e trabalha atualmente como jornalista,

tradutora e intérprete em Tóquio.

no cenário, continuam exercendo influências diretas para osque estão a vir. Graças ao clima cultural do Brasil que se des-carta do excesso de peso dado à diferença de idade ou de gera-ção, o que se observa então é uma cadeia alimentar extrema-mente complexa e rica na qual os agentes se influenciam entresi, ou se devoram, pelo bom que cada um possui.

Por outro lado, existe a descentralização geográfico-eco-nômica da função emissora da música no Brasil, que está con-tribuindo para diversificar essa cadeia alimentar. As localida-des anteriormente consideradas como culturalmente margi-nais, tais como Salvador e Recife, se tornaram emissoras dasinformações musicais formadas a partir da forte tradiçãolocal. A música fornecida por essas cidades sem passagempelos grandes centros nacionais, o eixo Rio-São Paulo, chegacom mais frescor à mesa dos ouvintes do mundo inteiro àespera de pratos novos. Esta tendência descentralizante con-tinuará recebendo impulso, da expansão das redes locais einternacionais de comunicação de alta velocidade.

E o terceiro fator fortificante dessa cadeia alimentar é adiversificação da criação no seio da música, como se vê noscasos do choro e samba tradicionais que, além de nunca mor-rerem. parecem estar rejuvenecidos por contar com os apre-ciadores e seguidores surgidos nas novas gerações. A mesmacoisa pode ser dita em relação aos veteranos da bossa novaretomando suas carreiras com novas gravações.

Todos esses fenômenos ou tendências fornecem, juntos,o ambiente para a cohabitação das vertentes mais diversifica-das possíveis da música no Brasil. Ou seja, o livro de cardápioestá repleto de pratos que podem satisfazer ouvintes de qual-quer gosto, tanto no interior do Brasil como no exterior. Eainda, há o espetacular fato de cada um desses pratos ser aespecialidade de um determinado mestre. A era não estásendo regida por um movimento, como afirmam algunsmúsicos do Rio de Janeiro, a cidade onde a multiplicidade devertentes parece ser mais nítida.

A ausência de um movimento centralizador no cenáriomusical brasileiro e a conseqüente diversidade e pluralismofazem com que nós, os ouvintes japoneses, lembremos de umfato talvez ordinário para os outros povos: que o contextosocial, racial ou cultural é um elemento constituinte de indiví-duos e não de conjuntos de pessoas. Certamente é isso queatrai os jovens que nasceram e cresceram ouvindo o rock ou