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história das seitas e sociedades secretas bernard michal e jean renald Tradução de Amigos do Livro

história das seitas e sociedades secretas · e início, uma seita é um grupo de pessoas que partilham uma mes-ma doutrina, ou que se destacam de uma religião. Todavia, as sei-tas

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história das seitas e sociedades secretasbernard michal e jean renaldTradução de Amigos do Livro

índice

PARTE 1 – Seitas de Carácter Religioso ou Filosófi co …………… 9Introdução ……………………………………………………… 111. A Origem das Seitas e das Heresias ……………………… 132. As Seitas da Antiguidade Pagã …………………………… 243. As Seitas Emanadas da Bíblia …………………………… 34

Os assideus …………………………………………………… 34Os saduceus e os fariseus …………………………………… 36Os essénios …………………………………………………… 38

4. As Seitas da Cristandade Antiga e Medieval ……………… 45O Maniqueísmo ……………………………………………… 45Os cátaros …………………………………………………… 51Os templários ………………………………………………… 59

5. As Seitas do Islão …………………………………………… 69Os xiitas ……………………………………………………… 69Os ismaelitas ………………………………………………… 71Os haschichins ………………………………………………… 72Os Drusos …………………………………………………… 72 O Sufi smo …………………………………………………… 73

6. As Seitas do Extremo Oriente ……………………………… 75O Amidismo ………………………………………………… 77O Zen ……………………………………………………… 78Sociedades Secretas Chinesas …………………………… 81

A Tríade …………………………………………………… 81O Lótus Branco …………………………………………… 84Os boxers ………………………………………………… 84

7. As Seitas da Igreja do Oriente ……………………………… 89Os velhos crentes …………………………………………… 91Os sabatistas, os saltadores e os skoptsys …………………… 93Os klystis ……………………………………………………… 94Os dukhobors ………………………………………………… 94

8. As Seitas Derivadas do Protestantismo ………………… 97Os anabatistas ………………………………………………… 98Os quakers …………………………………………………… 101O Exército de Salvação ……………………………………… 111Os mórmones ……………………………………………… 113Os Adventistas do Sétimo Dia ……………………………… 121As Testemunhas de Jeová ………………………………… 125Os Amigos do Homem …………………………………… 127A Ciência Cristã …………………………………………… 128O Pentecostalismo ………………………………………… 133Os antonistas ……………………………………………… 135O Cristo de Montfavet ……………………………………… 137

9. A Franco-Maçonaria ……………………………………… 14010. Os Rosa-Cruzes …………………………………………… 170

PARTE 2 – Sociedades Secretas Políticas …………………… 191Introdução …………………………………………………… 19311. Os carbonários …………………………………………… 19512. L’Onorata Società: A Máfi a ……………………………… 21913. O Ku Klux Klan …………………………………………… 26514. A Santa Vehme …………………………………………… 291 15. A Congregação …………………………………………… 31016. A Mão Negra ……………………………………………… 32917. A Ustacha ………………………………………………… 361

Parte 1

Seitas de carácter religioso ou filosófico

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Introdução

De início, uma seita é um grupo de pessoas que partilham uma mes-ma doutrina, ou que se destacam de uma religião. Todavia, as sei-tas e as sociedades secretas podem tomar as formas mais diversas.

Além das seitas religiosas, que tendem para o misticismo, encontramos as seitas iniciáticas, místico-políticas ou puramente fi losófi cas, sem esquecer as que são exploradas por charlatães.

É frequente fazer-se uma certa confusão entre seitas e heresias. Estas últimas nascem do desvio da doutrina, enquanto as seitas nem sempre se desenvolvem a partir de uma fé e nunca se espalham para fora dos limites de um pequeno núcleo de eleitos.

Nesta primeira parte, vamos estudar as seitas da Antiguidade pagã, como o Pitagorismo e a religião dos mistérios; as seitas emanadas da Bíblia (assideus, essénios...); as seitas da Cristandade antiga e medieval (Maniqueísmo, cátaros, templários...); as seitas do Islão (os assassinos...); as seitas do Extremo Oriente (Zen, Budismo Amidismo, boxers...); as seitas da Igreja do Oriente (velhos crentes e dukhobors...); e as seitas derivadas do Protestantismo (mórmones, testemunhas de Jeová, pentecostalistas, adven-tistas, cristãos cientistas, antonistas...).

Esta primeira parte compreende igualmente um estudo sobre a Franco-Maçonaria e outro sobre os rosa-cruzes, dois agrupamentos que podemos considerar como sociedades «secretas» de carácter iniciático e fi losófi co.

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1.

A origem das seitas e das heresias

Religiões. Heresias. Seitas secretas. Três estádios no caminho da cruz da fé? Na sua fúria de viver e no seu medo do aniquilamento na morte, o homem tudo misturou: origem dos tempos, apocalipse,

deuses, Deus, misticismo delirante, submissão fatalista a mitos, ateísmo, revoltas, reformas, ciências, intuições, verdade universal, sabedoria, poder oculto, poderes de uma elite, superstições e, para acabar, um ceticismo ra-zoável, um ceticismo de expectativa. Nunca se sabe!

O homem é religioso por temor, por angústia, a angústia que lhe su-gere a sua posição de vítima. Agarra-se ao desconhecido que o ultrapassa, a esse poder misterioso que maneja os cordéis da vida, de que ele julga de-pender, a que pede proteção a troco de uma fi delidade canina, ou com que assina uma aliança contra os outros, os que não fazem parte do clã. Para se garantir contra a possibilidade de erro, o homem diviniza tudo, as forças que o constrangem, o vento, a tempestade, a chuva, todas as intempéries, assim como as forças que lhe são favoráveis, como o Sol.

O primitivo, o homem de Neandertal, há cem mil anos, enterra os seus mortos de um modo especial, munindo-o de provisões e objetos de pri-meira necessidade, para a grande viagem até ao além. O culto dos mortos é a primeira manifestação de um sentimento religioso. Os sacrifícios são a primeira forma de submissão ou de troca. Sacrifi ca-se o que se tem de mais precioso, uma criança ou um boi. As oferendas são presentes. Imagina-se o deus e as suas tendências, para fazer uma escolha digna dele, e suscetível de agradar-lhe. O homem lisonjeia os deuses quando não se apaga por com-pleto, como um escravo assustado ante a sua cólera.

A menos que o homem nasça religioso, passa a sê-lo por necessidade. No entanto, Platão fala do sentido do divino que habita a alma. A alma, princípio espiritual situado na inteligência, lança o homem para as esferas

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superiores: ergue-se naturalmente, não por medo nem por interesse, para esse mundo de onde emana. Um mundo que compete à inteligência defi nir. Um reino sobre o qual impera o deus do Bem, e ao qual se opõe o reino do Mal; ou então — mas isto é mais difícil de apreender — um poder ima-terial, princípio primeiro de todas as coisas, luz, fonte de vida, realidade impalpável onde a alma, após a morte do corpo, se reencontrará libertada. A verdade está em cima. Posidónio diz:

«O homem é o contemplador e o exegeta dos céus.»

As religiões passam por uma curva de vida feita à imagem da nossa. Nascem, desenvolvem-se, desgastam-se, envelhecem e desaparecem. O pen-samento humano segue o mesmo processo. Agarra-se ao que julga ser uma realidade, segue um rumo lógico de evolução em direção a um objetivo de-terminado; dá nascimento a outras conceções que, também elas, caminham numa direção sempre desconhecida. Quanto mais se escava o túnel, mais longo ele se torna e mais espessas são as sombras que o habitam. Quanto mais o saber forma o homem, menos ele sabe. Desmascarada como falsa a realidade de partida, desmorona-se o castelo das ideias, e é preciso recome-çar com base noutras «realidades». Um físico contemporâneo diz:

«Às segundas, quartas e sextas-feiras, penso que a luz é ondu-latória. Às terças, quintas e sábados, penso que é corpuscular. E ao domingo vou à missa.»

Os homens batem-se para defender aquilo a que chamam a sua fé e os seus conhecimentos. A batalha é encarniçada e, na maioria das vezes, de má fé. Nada há de mais agressivo que um iniciado quando se põe a vitu-perar outro iniciado que não partilhe as suas ideias. Que pena cheia de fel, a de Clemente de Alexandria, quando põe a ridículo os mistérios gregos!

«Agora, porque é tempo, atacarei as vossas orgias repletas de deceções e de vaidades. Se pertenceis ao número dos iniciados, mais fácil vos será reconhecer o ridículo das fábulas pelas quais professais tanta veneração. Por que motivo hesitaria eu em de-clarar abertamente o que escondeis, por que motivo coraria ao dizer o que não tendes vergonha de adorar? Comecemos por Afrodite. A deusa nascida da espuma das ondas, ou, se preferis,

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a fi lha de Tálassa, a amiga de Cíniras, de quem o poeta diz que ama aquilo de onde saiu, numa alusão à mutilação de Urano e a essa força lasciva que, mesmo separada do corpo, conseguiu violentar as ondas. Nos mistérios dessa volúpia marinha, um grão de sal atesta da origem da deusa, e o falo é o emblema que ensina aos místicos (iniciados) a arte do adultério; e eles levam a Vénus uma moeda, como amantes a uma cortesã.»

Mais adiante, Clemente de Alexandria ataca Prosérpina:

«Se quereis, contar-vos-ei como Prosérpina colhia fl ores, des-creverei o calathus que deixou cair quando Plutão a raptou, a terra entreaberta e os porcos de Eubuleus tragados com a deusa, em memória do que, durante as Tesmofórias, se abrem covas na terra para nelas precipitar pequenos leitões. É preciso ver a va-riedade de festas em que as mulheres vão à cidade para celebrar esta fábula, Tesmofórias, Scirofórias, Arrefórias, e quantos pro-cessos encontram para deplorar o rapto de Prosérpina! Todas estas cerimónias se fazem com exclusão dos homens, mas os mistérios de Dioniso são estranhos à humanidade.»

E o panfl eto termina com uma alusão aos mistérios de Elêusis:

«Outrora a modéstia aconselhava aos homens que lançassem o silencioso véu da noite sobre os prazeres; atualmente a in-continência revela-se aos iniciados na noite sagrada (220 d.C.) e o fogo que o daduque1 transporta acusa as nossas fraquezas. Extingue essa chama, ó hierofanta2! Daduque, envergonha-te dos teus archotes, pois através deles Iacchus é comprometido. Deixa à noite o cuidado de esconder o espetáculo dos misté-rios, devolve à orgia a homenagem das trevas, que o fogo não consentiria em desempenhar o papel de revelador daquilo que se encarregou de punir!»

Que um cristão ridicularize os mistérios, seja, mas entre pagãos de uma mesma época as querelas em torno de conceções religiosas revestem-se de

1 Portador de archote.2 Primeiro ofi ciante.

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proporções mais graves. Sócrates morreu devido a isso. Na prisão, consola os seus discípulos, reafi rma-os na sua crença, precisamente aquela que vale ao mestre ser condenado à cicuta. Reafi rma que a alma é imortal, que é preciso acreditar nisso, que é «um risco a correr»!

O paganismo antigo, severamente atacado, defende-se. Quando não se morre nas masmorras de Atenas, sob a acusação de ser um perigo para a juventude e para a fé pagã, é-se exilado. A religião ancestral abre brechas ante a onda de esperança trazida por Pitágoras. A mística do céu inspira fi -lósofos e historiadores. Até nas suas tumbas, os mortos conquistados para a nova fé deixam mensagens. Um jovem, morto aos 20 anos, dirige-se à mãe através do seu mausoléu:

«Não chores. Porque hás de fazê-lo? Deves antes venerar-me, pois agora sou um astro divino que aparece ao fi m da tarde.»

Ao lado deste túmulo, um outro mármore diz:

«Nesta tumba jaz o corpo de uma jovem, Antófora de Ceres, chamada pelas inexoráveis Parcas. Mas a sua alma, por favor dos Imortais, habita entre as estrelas e tomou lugar no coro sagrado dos Bem-Aventurados.»

Os progressos da civilização, da ciência, da educação, da instrução da vida corrente, fazem evoluir as religiões. Da Igreja dos pitagóricos nasce-ram o Gnotismo, o Judaísmo, o Essenismo, o Maniqueísmo, o Cristianismo. De Pitágoras nasceu Pascal. Pitágoras o sereno, o iluminado, o escutado e o venerado, o angustiado em luta com os dois infi nitos. Como do Catarismo nasceu a Igreja Luterana.

Todas as religiões soçobram no hábito e acabam por cansar. Cansam na medida em que os seus adeptos perdem fervor. A fé estiola, perde di-namismo. Deixa de ser contagiosa, como era na origem. O homem tem necessidade de ressuscitar-se a si mesmo, de morrer e reviver. São-lhe ne-cessárias as pulsações da novidade, a pimenta de uma metamorfose, para retomar o seu caminho em direção aos cumes da perfeição. Os pagãos can-saram-se dos seus deuses míticos, de costumes turbulentos. Lançaram-se sobre o monoteísmo, que tem a vantagem da simplifi cação e de fi xar num ponto único, pelo menos temporariamente, a necessidade de acreditar. O Cristianismo perdeu o seu impulso da Idade Média. Demasiados pontífi ces

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se serviram dele para construir uma Igreja autoritária, dominadora, exclu-siva, impondo-se pela força e já não pela persuasão e pelo exemplo. Esta Igreja perde a sua tradição. Uma necessidade de ascetismo, de pobreza, de solidão, apodera-se daqueles que desejam salvar as suas almas de um mun-do corrupto e fútil. Os supermísticos rompem com os restos de uma grande crença. Nos cepos dos antigos credos, enxertam novos rebentos. Pregam como profetas, como iluminados. São a voz de Deus que grita no deserto das civilizações recentes. Vituperam. Retomam por sua conta o hino essé-nio, o hino dos ascetas retirados do mundo ímpio, transmitido até nós por um dos mais escaldantes manuscritos do Mar Morto:

«Não me deixaste quebrar cobardemente a nossa Aliança. Mas colocaste-me como uma robusta torre, como um bastião es-carpado. E fundaste sobre o rochedo da minha edifi cação, e alicerces eternos servem de fundamento, e todas as minhas paredes se tornaram muralhas intransponíveis que nada po-derá abalar... Porque serão mudos, os lábios da mentira, pois todos os que me atacam, quando Julgamento, Tu os declararás culpados, distinguindo por mim entre o justo e o culpado.»

Muitos homens semelhantes a São João Batista surgiram em todas as épocas perturbadas. Os Calvinos, os Luteros, são produtos de uma revolta e de uma sede de ascetismo generalizada. Martinho Lutero exclama:

«Quando te tornarás verdadeiramente um justo e farás o bas-tante para que Deus te conceda a sua graça?»

As Santas Escrituras bastam a um sábio. A escolástica degenera-se nas querelas. Retoma a fé tal como ela era durante a Idade Média. O austero São Bernardo inspira-o. Não se perde em vãs dissertações sobre a autoridade de Roma, que rejeita.

«Quando Nosso Senhor e Mestre diz: Faz penitência!, quer que a vida inteira dos seus fi éis seja uma penitência permanente.»

A Igreja de Roma insurge-se. Condena a heresia. E trata-se realmente de uma heresia. Lutero rejeita os ritos e os sacramentos. Conserva apenas três: o batismo, a comunhão e a confi rmação. Ante esta revolução, a Igreja

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Anglicana é agitada. Rompe com Roma, ou Roma rompe com ela. Mas con-serva o rito católico, enquanto vai buscar a Lutero os princípios fundamen-tais da sua doutrina. A Cristandade, agarrada aos Evangelhos, divide-se, até na Rússia, onde a Igreja Ortodoxa ganha a sua independência. A here-sia é a consequência natural da usura de um poder. Ela própria engendra grupúsculos de crentes tentados pela aventura da insubmissão. A Reforma, abrindo a porta às liberdades de pensamento, não pode falar em nome de todos os cristãos. Está ela própria sujeita ao desviacionismo. Formam-se seitas a partir dela. Os anabatistas recusam o batismo às crianças que não tenham idade para o tomar com pleno conhecimento de causa. Os batis-tas são anabatistas dissidentes. O movimento do Pentecostes parte de Los Angeles, atravessa o Atlântico e desembarca na Noruega. Os quakers são difíceis de situar. Não têm sacerdotes, nem organização, nem sacramentos. Quase não têm uma profi ssão de fé. Quanto aos mórmones, são os melhor organizados. Têm missionários que pregam, pelo mundo fora, a Trindade, a redenção pela obediência aos preceitos evangélicos, os profetas, a revela-ção. Salt Lake City é para eles o que Meca é para os muçulmanos.

O Budismo também tem os seus heréticos. O Islão igualmente. O mis-ticismo, que não existe na natureza do Profeta, faz heréticos. Al-Hallaj é condenado à morte e executado por ter dito:

«Eu sou a Realidade, isto é, Deus.»

Deus criou o homem à sua imagem, diz ele, e o homem pode pois encon-trar essa imagem em si. Ora pelos seus carrascos, tal como fez Jesus Cristo:

«Perdoa-lhes, ó Senhor, pois se lhes tivesses revelado o que me revelaste, não fariam o que fazem, e se me tivesses escondido o que lhes escondeste, eu não teria necessidade de suportar este sofrimento.»

O Profeta não considerou necessário abrir mosteiros. Os sufi s, místi-cos persas, agrupam-se em torno de um chefe esclarecido. Uma confraria surge à luz: a dos dervixes, isto é, dos pobres, vivendo da caridade. Após um período de iniciação, recebem o hábito da confraria: um manto rasga-do, um cinto e um bordão. Nas suas casas, viviam de pouca alimentação e muitas preces. A confraria vai enxamear pelo mundo árabe. A mais cé-lebre fi lial é a de Quadiryya, em Bagdade. A de Rifayya é conhecida pelas

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suas práticas mágicas e pelo seu fanatismo. Os dervixes giradores são ir-mãos da seita. A sua dança giratória representa o movimento das estrelas e dos planetas. A mais revolucionária é a confraria de Baktachi, que conta mulheres entre os seus membros.

O Cristianismo é modesto no que respeita a heresias e seitas, com-parado ao Islão. Eis outros movimentos desviados da origem: os Drusos, que aguardam o regresso do mestre Alhakim, desaparecido em circuns-tâncias misteriosas; os assassinos, comedores de haxixe, cujas ambições, mais territoriais que religiosas, se apoiam no crime. Uma das particula-ridades das seitas muçulmanas é o facto de terem ressonâncias políticas. É preciso não esquecer que o Alcorão é um código religioso, seguido por um código civil, o fi gh, ou conhecimento da lei, que trata de questões jurídicas e de problemas concernentes ao culto, ao ritual, à indumentá-ria, às saudações; os ulemás, que reúnem os doutores do Direito e do Alcorão, são consultados quando se trata de tomar decisões que interes-sem à conduta do país. Esta tendência política encontra-se noutras seitas, cuja criação foi motivada por aspirações de ordem fi losófi ca, social e mo-ral. As reuniões dos seus membros têm ares de conspiração. Fazem-nas o mais secretamente possível. Os participantes são pouco numerosos. As questões tratadas e as decisões tomadas são absolutamente secretas. Para delas fazer parte, é preciso dar provas de solidariedade, de dedicação e de conhecimentos fundamentais sobre a doutrina e o ideal procurado. Em muitos casos, os candidatos são submetidos a várias provas de morali-dade e de conduta, e são necessários padrinhos, como é, por exemplo, o caso da Franco-Maçonaria. Os iniciados reconhecem-se por certos sinais. As autoridades que dirijam um país onde uma tal seita exerça a sua ação consideram-na, regra geral, perniciosa à ordem pública e condenam-na sem apelo. Uma tal seita só pode ser antissocial. As suas intenções de fa-zer mal não são evidentes, mas sobre ela impendem graves suspeitas, de modo que não é declarada e a lista dos seus membros permanece secreta.

Uma seita, mesmo secreta, pode ser especifi camente fi losófi ca, ou mística, ou «satânica». No nosso mundo, em que se assiste ao naufrágio da fé em proveito de convicções científi cas, existem ainda indivíduos que se votam ao diabo, esperando dele honras, riquezas, prazeres materiais. Duvidar da existência de discípulos de Satanás, no século xx, é não que-rer acreditar na existência dos inquietos que consultam magos e adivinhos. Esses, possivelmente, vão todos os domingos à missa — o que não impede que na véspera tenham arrastado as suas angústias até ao cubículo de uma

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cartomante, misturando o gosto das cartas maculadas a esse gostozinho a incenso queimado que tem a água benta.

A indecisão, a «desorientação» do homem moderno leva-o a aderir a seitas, quanto mais não seja para fazer parte de uma elite. Para combater o aborrecimento, gosta de rodear-se de segredos. É o único a sabê-lo... Fala confi dencialmente... Tem grandes apoios... Prevê que... E quando alguém lhe pergunta quais são as suas fontes, responde:

— Nada posso dizer.Porque nada sabe. Faz bluff . É devorado pelo snobismo.Outro, mais sério, não fala, e esse teria muito para dizer. É possuidor

de segredos capazes de semear o pânico por todos os escalões da sociedade. Ontem, chamava-se Einstein ou Oppenheimer. Os dirigentes da NASA ou do Pentágono transportam consigo pastas repletas de explosivos: são nú-meros, cálculos, relatórios, planos de que dependem as vidas de milhões de seres humanos. Silêncio também por parte dos cientistas que trabalham na descoberta do remédio que nos desembaraçará do cancro. Silêncio igual-mente por parte dos sábios que, por nada no mundo, revelariam um quarto do que sabem a um ministro do Exército. E silêncio sobre as relações que a Igreja mantém com as religiões dissidentes do Cristianismo. O silêncio é de rigor quando protege o público. A menos que seja culpado, que signifi que cumplicidade, verdade abafada, associação no crime.

Inquietamo-nos a propósito de ideias que vêm a lume. São lançadas das páginas de um romance de fi cção científi ca, mas progridem perigosamente. O autor descreve uma civilização do futuro, dirigida por homens possuidores de uma inteligência supra-humana: a ditadura dos cérebros. Esses cérebros existem, independentes de qualquer assembleia governativa. Elevaram-se a si mesmos, graças à sua natureza mística. Constituem um grupo à parte. Reuni-los em torno de uma tribuna, sob uma cúpula qualquer, e dar-lhes ple-nos poderes, seria loucura, pois tal signifi caria destruí-los e deixar de receber deles a luz, para o resto dos mortais transformados em cães fi éis, ansiosos por uma carícia, lambendo os beiços gulosos à espera de um subaçúcar espi-ritual, submissos, não ousando mais erguer os olhos para os «idolizados». A formação do cérebro de cada indivíduo, a sua realização fora do condiciona-mento social, a sua libertação da respetiva vagem profana, é preferível. Assim se chega à iniciação, a iniciação que acorrenta aos mistérios, aos ritos de um novo culto, mas que dá uma aptidão para melhor compreender os problemas superiores da vida e que encaminha para o «conhecimento».

A iniciação é a estrada aberta para um estado mais puro. A palavra

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vem do latim initium, que signifi ca «começo» e, por alargamento da ideia, «entrada», expressão que se deve aproximar do verbo grego eisôtheo, «faço entrar», que dá nascimento ao «esoterismo». Entrar onde? Num meio isola-do, não contingente, onde, arrastados por mitos e ritos carregados de sím-bolos, nos abrimos para um estado supraindividual, para a subconsciência, para o poder, para a efi ciência. Sai-se das trevas para se chegar à plena luz. Purifi camo-nos para atingir a iluminação. Tornamo-nos fi nalmente aquele que sabe, que pode saber.

A iniciação não é a divulgação de segredos passados, na sombra, de boca a orelha. Nada se ensina ao iniciado, senão a subir a um cume de onde a vista sobre o conhecimento do homem, como espírito, é clara, simples, direta. É um face a face com a crença perdida, a reintegração num sistema espiritual onde o homem não era humano, mas totalmente espírito.

Os processos da iniciação não se alteram com o tempo. Os que os an-tigos, ou primitivos, ainda hoje utilizam, passam pelo mesmo mecanismo. Primeiro, é preciso morrer. É preciso matar o homem de carne, o anjo caí-do do céu nos pântanos terrestres, o deus punido, moribundo. Depois, é preciso devolver-lhe a vida, ressuscitá-lo após tê-lo feito passar pelo crivo, lavado, desinfetado. E em seguida é preciso iluminá-lo.

Plutarco fala-nos assim desta morte:

«A alma, no momento da morte, experimenta a mesma im-pressão que os que são iniciados nos grandes mistérios (os de Elêusis ou de Mitra); ao princípio são corridas ao acaso, peno-sos desvios, marchas inquietantes e sem fi m através das trevas. Depois, antes do fi m, o terror atinge o auge: são os arrepios, os tremores, os suores frios, o medo.»

Entre os Gregos e os Egípcios, o iniciado começava por submeter-se a um longo período de jejum e oração, durante o qual perdia uma grande parte das suas faculdades físicas. Era assim que, esgotado, o faziam passar por diversas provas morais e físicas. A variedade de provas desta primeira fase dependia da seita iniciática, do país e do clima, das épocas e das religiões. Geralmente, o iniciado era precipitado num subterrâneo onde reinava a escuridão. Homens invisíveis batiam nas peles esticadas de tambores, faziam ressoar trombetas, lançavam uivos de animais selvagens. Outros homens, vestidos como espanta-lhos, perseguiam a vítima, batiam-lhe, apertavam-na, empurravam-na, atur-diam-na com maldades sem nome. Se estava frio, metiam-na nua na neve.

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Se estava calor, expunham-na ao sol e, queimavam sarmentos perto do seu corpo, trémulo e coberto de suor. Por vezes, o recipiendário era tatuado; ou então mutilado. Muitos não resistiam a este tratamento. Era o terror exercido sobre o iniciado que lhe dava a impressão da morte.

Em seguida, no entanto, escreve Plutarco, «uma luz maravilhosa oferece-se aos olhos, passa-se por lugares puros e por pradarias onde res-soam cânticos e danças; palavras sagradas e aparições divinas inspiram o respeito religioso. Então o homem, tornado perfeito e iniciado, liber-tado e podendo passear-se sem limitações, celebra os Mistérios». Aqui, Plutarco faz alusão à terceira fase da iniciação. O candidato é revestido de túnicas de linho — por vezes 12 — e, conduzido pelos sacerdotes ou pelo hierofanta em pessoa ao santuário, colocado face à divindade. Por vezes, saído do subterrâneo, é levado a uma sala onde toda uma parede é coberta por uma sumptuosa tapeçaria. A tapeçaria rasga-se, ouvem-se cânticos, luzes móveis varrem a cúpula do templo, a estátua do deus sur-ge. O candidato fi ca face a face com o deus, e conhece o êxtase.

Em certas seitas, o êxtase é conseguido através da ingestão de bebidas excitantes ou alucinogénias. Os olhos do iniciado veem luzes, sóis brancos, fogos de artifício. Eleva-se acima da terra, remonta à vida. Ressuscita. Após o que é convidado a seguir os sacerdotes até um local secreto, onde é dou-trinado, onde o revelam. Que dizem os confi dentes? Aristóteles diz:

«Nada se aprende, experimenta-se.»

Nada há sem dúvida a aprender, senão pôr-se em condições de viver de um modo sensível os mistérios e os ritos. Este primeiro passo na iniciação será seguido por muitas outras elevações, em graus cada vez mais altos. Há uma hierarquia nos mistérios.

Há quem, a propósito de iniciação, fale de lavagem ao cérebro, técnica que as autoridades dos países totalitários utilizam com grande maestria. Quando o cérebro é assim formado, não pode voltar atrás. Nunca se des-mentirá. A ciência moderna, que se coloca ao serviço dos atormentadores, poderia bem tornar-se útil. Porque não se aplica ao estudo dos recônditos esquecidos do cérebro humano, utilizando-os na descoberta de mundos verdadeiramente melhores? Um sábio diz que, durante a vida, o homem só faz trabalhar um décimo dos recursos do seu cérebro. A descoberta de ama-nhã, para maior bem ou maior mal do universo, está defi nida: a conquista das restantes nove partes escondidas das nossas moléculas cinzentas...

Suplício da gota de água (Roland Cat).

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2.

As Seitas da Antiguidade Pagã

Os mistérios pagãos, da mais antiga origem (quarto milénio) à mais recente, continuam a ser, para os contemporâneos, mistérios. Os escritos e a arqueologia arrancaram-nos às trevas do tempo. Foi

possível, com paciência, classifi cá-los e, sobretudo, compará-los, estabele-cer entre eles laços reveladores de que o homem primitivo, como o que nasceu durante o apogeu da civilização antiga, se inquieta ante a vida, e ante a morte, e tem necessidade de se reassegurar. Prometeram-lhe a imor-talidade, um mundo melhor, a troco de uma conduta ascética e pura, ou, na maior parte das vezes, da adesão ao culto de um deus ou de uma deusa. Para ser admitido numa seita ou numa comunidade religiosa fechada, o neófi to deve ser iniciado. Ensinam-lhe os mitos e as evocações a recitar. Implicam-no num sistema mais ou menos bem defi nido, de que lhe escon-dem as engrenagens e o objetivo real, um pouco como a um ingénuo víti-ma de uma partida. Impõem-lhe o silêncio, se não quer comprometer-se e comprometer as suas possibilidades de ser salvo. O silêncio, os silêncios, criaram os mistérios. E foram esses infelizes silêncios o que nós herdámos. Os silêncios sumérios e babilónios. Os silêncios egípcios e cretenses. Os silêncios gregos e romanos. Sabemos tudo o que os rodeia, tudo o que os envolve numa capa por vezes rebrilhante. Só nos falta a iniciação.

A Mesopotâmia é a terra dos mistérios. Muitos lá nasceram, outros foram lá buscar as suas fontes. Os adivinhos e os magos tiram os seus co-nhecimentos do céu. Adoram as estrelas, o Sol e a Lua. O astro da noite chama-se Sin. É venerado em Ur. Os sacerdotes chamam-lhe o «Senhor da coroa». Simboliza a ressurreição: «... revive após a sua queda. E reluz após o seu obscurecimento». A Lua representa o princípio ativo. O Sol, o princípio passivo. Ver-se-á que nas outras civilizações estes princípios se encontram invertidos. Shams é a deusa do Sol, cujo «templo» é guardado

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pelos homens-escorpiões. Porquê esta feminização? Porque o Sol, todas as manhãs, dá luz ao mundo.

Vénus é designada sob o nome de Ishtar. No seu templo, os mistérios elevam a prostituição às alturas de um sacramento. O falo é o ideograma de Ishtar. Na Babilónia, deifi cam-se os imortais, a que os Romanos chamarão Marte e Mercúrio, Saturno e Júpiter. Os signos astrológicos corresponden-tes à natureza dos indivíduos surgem nesta altura. O Sol é feminino, entre os hititas. O grão-sacerdote é o rei. O seu palácio é pois o templo do Sol.

Com os Egípcios, dos astros passamos para os animais. Este povo tem deuses locais. Heliopólis, no Baixo Egito, venera Rá, símbolo da justiça e da ordem, representado com uma cabeça de falcão. Hermopólis adora Th ot sob a forma de um íbis ou de um macaco. Se Rá é solar, Th ot é lunar. As deusas Mut, Bastet e Sekmet aparecem respetivamente sob a forma de abu-tre, de gata e de leoa. Mênfi s adora o boi Ápis. Os oito deuses satélites de Amon (Tebas) são frequentemente representados por rãs ou serpentes.

No Egito, a infl uência dos deuses locais faz-se sentir sobre o conjun-to da nação, segundo a voga do momento. Heliopólis faz concorrência a Tebas, Rá trava uma luta implacável contra Amon. Para acabar, Amon identifi ca-se com Rá e passa a ser chamado Amon-Rá. Nada mais sim-ples para satisfazer o amor-próprio regional. Mas, de 1370 a 1352 antes de Cristo, o rei Amen-hotep IV cria um cisma. Rompe com o culto de Amon e entra em guerra contra os sacerdotes do culto tebano. Substitui Amon pelo disco solar, Aton. Faz dele um deus único, que dá vida aos seres e às coisas. O disco solar tem mãos, é o símbolo hieroglífi co que representa a vida. O rei monoteísta entende impor a nova religião pela força. Persegue os ado-radores de Amon. Mas o egípcio médio sente-se espoliado. Adorar apenas um deus seria o mesmo que conduzir um carro com uma só roda. O salmo a Amon é notável pela sua fé:

«Ó Deus único e fora do qual não existem outros, Tu, Tu sozi-nho, criaste a Terra segundo o Teu coração. Com os homens, os rebanhos, todos os animais. Tudo o que corre sobre a Terra com patas, tudo o que voa no céu com asas, os países da Síria e da Núbia, os países do Egito. Indicas a cada homem o seu lugar, satisfazes as suas necessidades; todos têm que comer, e estão contados os dias da sua existência.»

O monoteísmo, que não satisfazia as inteligências superiores, morre ao

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mesmo tempo que Amen-hotep IV. Os sacerdotes de Amon devolvem ao povo o seu carro de duas rodas, e mais.

A moral egípcia é o maat, que prega a justiça e a ordem, como nume-rosas morais antigas. Mas o maat separa-se das morais que recomendam a confi ssão dos erros. No Egito, uma máxima diz: «Quem confessa ter peca-do demonstra falta de solidariedade para com a comunidade.»

Ante o tribunal de Osíris, o morto deverá dizer:

«Não cometi injustiças para com os homens... Não deixei que houvesse fome. Não causei lágrimas. Não matei. Não mandei matar... Não estraguei o pão dos deuses. Não tirei o que per-tencia aos manes. Não forniquei... Não falsifi quei as medidas... Não tirei o leite da boca das crianças...»

Deste modo, o morto evita ser tragado pelo «Comedor de Mortos».Os mistérios de Ísis são celebrados no lago do templo de Sais. Pouco se

sabe sobre o desenrolar desta festa, a não ser que a deusa aparece vestida de luto, à procura dos membros dispersos do seu esposo Osíris, cujos assassi-nos foram lançados às águas lodosas do Nilo. Ísis é a deusa superior. É assim que o escritor romano Apuleio a representa, falando pela sua própria boca:

«Eis-me, a mãe da Natureza, a senhora de todos os elementos, a criadora do tempo, concentração de tudo o que há de divi-no, a primeira entre os deuses. O mundo inteiro venera-me sob diversas formas, através de diversos cultos e sob diversos nomes: os Frígios chamam-me a Grande Mãe; os Atenienses, Minerva; os Cipriotas, Vénus... Mas os Egípcios, detentores da sabedoria mais antiga, prestam-me homenagem através do meu verdadeiro culto, chamam-me pelo meu verdadeiro nome: a rainha Ísis.»

Apuleio foi iniciado nos mistérios de Ísis. O seu testemunho teria po-dido ser útil. Infelizmente, utiliza frases duvidosas e suspensões em todos os trechos que atraem a curiosidade do leitor. O neófi to é banhado, levado aos pés da deusa e, «tendo em conta várias coisas demasiado augustas para que possam ser divulgadas, o sacerdote convida-o a fazer jejum durante dez dias. Ao cabo da quaresma, é recebido...

O sacerdote vestiu-me (tradução 1602) uma veste de linho branco e

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levou-me pela mão até ao coração do templo. Talvez desejasses muito saber, ó leitor estudioso, o que então foi dito e feito. Di-lo-ia, se me fosse permi-tido dizê-lo...»

Apuleio declara em seguida que viu o Sol à meia-noite, e os deuses do céu e do inferno... e que os adorou face a face.

No frontão do templo de Ísis, está escrito: «Eu sou o que foi, é, ou será, e ainda nenhum mortal levantou o meu véu.»

O que Apuleio, por respeito à palavra dada, cala, diz-nos Plutarco. Os sacerdotes de Ísis usam todo o corpo rapado, vestem túnicas de linho, não comem legumes, nem carne de porco, nem peixes do mar, nem sal, e bebem pouco vinho. Mas Plutarco nada mais sabe.

O culto de Ísis aparenta-se ao de Mitra. Mitra é importado da Mesopotâmia para Creta e obtém em Roma um êxito sem precedentes na história dos mistérios. Ultrapassa o de Elêusis, na Grécia, que tinha um carácter demasiado aristocrático. Mitra é popular. Atrai os imperadores e o último dos centuriões. É para os patrícios e para os escravos. Os seus propa-gandistas são precisamente os escravos evoluídos, contabilistas, gerentes de bens ou precetores. O deus ariano da luz é um amuleto de felicidade. A sua efígie dá saúde, riqueza, tranquilidade. Para os soldados que combateram nos quatro cantos do universo e que por todo o lado encontraram adeptos da seita, Mitra representa um dos seus, um combatente que nunca desarma ante as forças do mal. A sua luta contra o touro é o mais exaltante dos mitos; o deus perseguiu o animal na planície, pegou-o pelos cornos e cravou-lhe a espada no fl anco. O sangue brotou, fertilizando o solo e transformando-se em vinho. No dia do julgamento fi nal, o touro sagrado voltará à terra, e Mitra salvará todos aqueles que celebraram o seu culto.

Os sectários de Mitra não erguem templos ao seu ídolo. Reúnem-se em subterrâneos ou em caves retangulares. De cada lado, no sentido do comprimento, são dispostos genufl exórios onde tomam lugar os fi éis, vol-tados para a nave central, onde se desenrola a cerimónia. Quando um novo membro é recebido, é colocado sobre um tambor um pão seco, previa-mente exposto ao sol. O candidato pega nele e come-o. Este gesto signifi ca que reconhece em Mitra o dispensador da sua alimentação. Os sacerdotes comunicam-lhe em seguida uma palavra de passe, que lhe permitirá, onde quer que se encontre, dar-se a conhecer. Dirá, por exemplo:

«Comi no tambor e bebi no címbalo; aprendi o segredo da religião.»

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Que segredo? Uma vez mais, faltam-nos informações. Os neófi tos, aturdidos pelos tambores e pelos címbalos, drogados, diz-se, num estado segundo, escutam as revelações que lhes são feitas pelos sacerdotes e pro-metem conservar o segredo. Então vendam-lhes os olhos, ou amarram-lhes as mãos com uma corda de tripa entrançada, e submetem-nos às provas do calor, do frio, da água, do gládio e da corrida a pé. Em seguida, são liberta-dos das suas amarras, procede-se às abluções e, subitamente, o véu que lhes escondia a estátua do deus é levantado. Banhado em feixes de luz móveis, de todas as cores, Mitra aparece. É o êxtase. Neste momento, é oferecida ao neófi to, na ponta de uma espada, uma coroa de ouro. O neófi to aceita a espada, recusa a coroa e diz:

«Mitra é a minha coroa.»

Em certas circunstâncias mal conhecidas, o neófi to deve simular um as-sassínio. O sacerdote utiliza um gládio vermelho de sangue. Evidentemente, trata-se de um simulacro, mas o imperador Comodo, no dia da sua receção, matou verdadeiramente alguém.

A iniciação comporta 12 graus. Sete são seguros. O primeiro tem o nome de «Corvo». Sendo o corvo considerado um comedor de cadáveres, o título signifi ca que o místico morre para a vida comum de toda a gente e ressuscita na seita, para uma vida nova e imortal. Este primeiro passo na religião de Mitra liberta o candidato de toda a ligação com qualquer outro culto. De Corvo, passa-se a Oculto, depois a Soldado e a Leão. Aqui começa a iniciação em profundidade. Quanto mais o místico avança em grau, mais sobe em espiritualidade. Depois de Leão, torna-se Persa, depois Correio do Sol, depois Pai. Em seguida, plana em esferas muito elevadas. Há o Pater Sacrorum («Pai dos sacrifícios»), o Pater Patrum, ou Patratus. Entre si, os sectários de Mitra chamam-se «irmãos».

Num manuscrito conservado na Biblioteca Nacional francesa, reco-nheceu-se uma oração do culto de Mitra. Faz alusão à transmigração das almas, aos males que o homem conhece aqui em baixo e que são negli-genciáveis; permitem à alma subir os degraus que conduzem ao céu. E eis a oração que o neófi to deve recitar ao terminarem as cerimónias da sua receção:

«Salve, Senhor, amo da água, salve, soberano da terra, salve, príncipe dos espíritos! Senhor, voltado à vida, passo nesta

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exaltação e nesta exaltação morro; nascido do nascimento que dá a vida, estou libertado na morte e passo para a via por ti ordenada, segundo a lei que estabeleceste e o sacramento que instituíste.»

A razão do êxito dos mistérios de Mitra reside nesses ritos faustosos, copiados, mais tarde, pelo Cristianismo, mas também na sua tendência para o monoteísmo. O que desagradava aos Egípcios agrada aos Romanos, fatigados de velhas mitologias e de deuses de pedra ou de mármore.

Durante anos, Mitra permanece como a besta negra dos cristãos. Os zeladores cristãos não cessam de persegui-la com as suas críticas. Tomam à letra a cerimónia do gládio vermelho de sangue e acusam a seita de crimes rituais. Os cristãos são menos misteriosos, senão de melhor fé. O facto é que a rivalidade termina com vantagem para o Cristianismo.

Fala-se de crimes e sacrifícios humanos. Estes existiram. São-nos ofereci-dos pelos mistérios fenícios e cartagineses. Saturno-Cronos, durante vários séculos, vai exigir que lhe sejam imoladas, todos os anos, centenas de crian-ças, que são lançadas, vivas, na fornalha de Baal.

As crianças eram carregadas com todos os pecados dos homens. Ao queimá-las, queimavam-se os pecados. Era uma maneira de purifi carem-se. Mais tarde, as crianças foram substituídas por cordeiros.

A Grécia é o país das lendas e dos segredos; os de Cronos, os de Zeus, os de Dioscuros, os de Hera e os de Dioniso, os de Afrodite e de Atena, os de Sagra e das Graças.

Os de Dioniso celebram-se de noite, e de que maneira! Os próprios Romanos fi caram escandalizados. Dioniso é um deus trácio, se bem que já fosse muito venerado no século III a.C., no Sul da Grécia. Representa a fertilidade, as árvores, nomeadamente a vinha e o vinho. Esta personagem, «gascã» em muitos aspetos, por estranho que pareça, representa a virilida-de. O touro é o seu símbolo, o vinho a sua paixão, as alegrias extáticas o seu passatempo. O seu culto reveste-se de formas orgíacas. Se se contam as mulheres entre as fi leiras dos discípulos de Mitra, entre as de Dioniso contam-se os homens. Se estão presentes, é na qualidade de fi gurantes. Na realidade, são as mulheres que participam dos mistérios. Cantam, gritam enoi a plenos pulmões, agitam archotes, organizam rondas e perseguições nos bosques. Estes excessos terminam com o sacrifício de um animal, que

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é degolado, decepado, e cujos membros são grelhados numa fogueira, e depois comidos. Deste modo, a força do deus passa para os músculos dos participantes. Não é por acaso que Dioniso aparece representado, em mui-tos vasos gregos e romanos, rodeado por sátiros impudicos e ninfas de-senfreadas. Dioniso não é um deus distante, como acabamos de ver. Gosta de misturar-se com a multidão que lhe presta culto. Apolo, pelo contrário, gosta que os seus admiradores se conservem a uma distância respeitosa.

Deve-se aos mistérios de Dioniso, que se celebram durante o décimo primeiro mês, o nascimento do drama antigo. Depois dos bacanais, as nu-merosas representações dramáticas atraem as multidões e os autores...

O êxtase procurado nas festas de Dioniso, tornado Baco em Roma, não é do estilo ofi cial, em 186 a.C. Não agrada. As recrutas não são romanas, para começar. Contam-se entre elas cerca de 30 mil prisioneiras da segunda guerra púnica. Mais tarde, matronas, e digníssimas matronas, começaram a tomar parte nos bacanais. Tito Lívio relata que os mistérios de Baco caem sob a alçada de uma interdição. É feito um inquérito. Há em Roma sete mil suspeitos. A cidade de Tarento, que se colocou sob a égide de Baco, tem de retratar-se, e pôr Zeus no lugar do deus trácio. O inquérito, as prisões, as condenações, tomam o aspeto de uma perseguição. São precisos nada menos que cinco anos para dar um pouco de decoro à península. Tito Lívio lamenta ver os Romanos submergidos em conceções místicas, e outras, da Grande Grécia:

«Dir-se-ia que os deuses ou os homens foram subitamente trocados. Não só na intimidade dos lares, mas também no Capitólio e até no fórum, abandonam-se os ritos romanos.»

Evidentemente, Mitra não é romano.

Em Roma, os pitagóricos foram perseguidos muito antes de chegar a vez dos adoradores de Baco. No século vi antes de Cristo, o Pitagorismo insta-la-se no Sul da Itália. Ensina que a alma é fechada num corpo pelo pecado. Para se libertar, é preciso que passe sucessivamente pela prisão dos corpos de outros homens ou de animais. Pitágoras tem fi nalmente a sua Igreja em Roma, os seus fi éis agrupados em seita secreta, reunindo-se num subterrâ-neo, sobre o qual foi construída a basílica da Porta Maggiore. O catecismo pitagórico é feito de perguntas e respostas:

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— Quem é Pitágoras? — Pitágoras é Apolo curador, ou Apolo hiperbóreo, ou fi lho de Hermes.E mais adiante:— O que são as ilhas dos Bem-Aventurados? — O Sol e a Lua.Perguntas e respostas têm necessidade de comentários. Estes são feitos

no próprio local. A discussão não é abandonada à fantasia dos catequistas. A Igreja tem ordem e método. Cada um fala por sua vez. Quando o sacer-dote diz: «O mestre falou», cessam os discursos. Heródoto não resiste à tentação de comparar os usos sacerdotais dos Egípcios e dos pitagóricos. Encontra entre eles uma grande semelhança.

«Platão foi buscar a Pitágoras a doutrina da imortalidade da alma», es-creve Clemente de Alexandria, «e Pitágoras foi buscá-la aos Egípcios.» Não se pode falar de Igreja pitagórica sem se falar no próprio Pitágoras, um dos espíritos mais fulgurantes da sua época. Vem ao mundo em Samos, no ano 572 a.C. A sua adolescência decorre em Iónica. Escuta Fericide de Sicos, grande astrónomo, e torna-se discípulo de Anaximandro. Depois viaja: da Fenícia, passa para o Egito, onde os sacerdotes de Mênfi s e de Heliopólis o iniciam nos ritos dos seus altares. Passa então algum tempo na Babilónia, na companhia dos magos. Por fi m, instala-se em Crotona. Tem 40 anos. Funda uma seita meio religiosa, meio científi ca, a que se dá o nome de Escola Itálica.

Pitágoras não duvida da sua missão divina. Tem consciência de ter sido enviado à terra para ajudar os seus semelhantes. Os amigos veem nele um messias, um profeta possuído pelo dom de Deus. De facto, é dotado de uma inteligência superior, aberta às coisas do espírito e da alma, assim como voltada para as matemáticas. Os homens são geralmente místicos ou cientistas. Pitágoras é ambas as coisas. Faz progredir, paralelamente, as teo-rias da alma e a geometria. E é através das descobertas astrológicas que vão permitir ao conhecimento babilónio um prodigioso salto em frente que Pitágoras faz por sua vez uma descoberta: a alma pertence à esfera celeste povoada de estrelas, de onde foi destacada para animar um corpo de ho-mem, devendo depois voltar ao seu domínio de eleição. É geómetra, mas o seu misticismo leva-o a ver nas fi guras e nos números qualidades espiri-tuais. Entre os corpos sólidos, o que tem a sua preferência é a esfera. Entre as fi guras planas, é o círculo. Nada é mais perfeito, pois a esfera é a mais idêntica a si mesma. Ora, Deus ama o que é semelhante. O que é disseme-lhante é menos belo.

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O amor dos círculos vai levá-lo a descobrir o movimento dos planetas e do Sol. Até então, os Caldeus imaginavam que as estrelas se situavam num mesmo plano, a igual distância da Terra. Não lhes passava pela cabeça que pudessem estar a milhares de quilómetros umas das outras, tanto em plano como em altura (ou profundidade). Pitágoras é o primeiro a emitir a teoria segundo a qual o movimento do Sol segue um círculo imenso: que o movimento é circular, uniforme e regular. Identifi cando a alma ao Sol, que se move, por si mesmo, Platão conclui:

«A alma não é outra coisa senão a substância que tem a facul-dade de mover-se por si mesma.»

Em consequência, a alma que se move por si mesma é o primeiro motor.

O mistério que se destaca pela sua qualidade é o da deusa Deméter, mãe da Terra, princípio da fertilidade, bênção das colheitas. Os pequenos ce-lebram-se na primavera, em Atenas; os grandes, em Elêusis, no templo de Deméter. Se bem que os mistérios sejam religião do Estado, duas famílias partilham a administração dos de Elêusis: os Eumólpidas e os Keryces. De entre os Keryces, escolhe-se o daduque portador do archote, cujo posto é vitalício. Dos Eumólpidas sai o hierofanta, primeiro ofi ciante, cargo igual-mente vitalício. Em contrapartida, a sacerdotisa de Deméter pertence à fa-mília dos Philleidas, que reside no templo.

A cerimónia inicia-se com uma procissão que desce de Atenas ao lon-go da via sacra e se desfaz, à tarde, diante do templo. Os não-iniciados são convidados a afastarem-se. A porta do templo só se abre para os místicos e para os epoptas, quando o portador do archote vai procurá-los.

Para saber como se desenrola a cerimónia, é preciso seguir a iniciação do rei. O rei é posto em condições de recebê-la, sendo-lhe a alma sepa-rada do corpo pela ingestão de uma bebida misteriosa. Uma droga, um alucinogénio que poderia colocá-lo em estado de embriaguez mística; ou mais simplesmente água da fonte de Elêusis, onde foi dissolvido um gás, que René Aleau sugere tratar-se de protóxido de azoto, chamado «gás do paraíso». O rei, recebido pelos sacerdotes, é conduzido ante a estátua de Deméter, que ele, maravilhado, considera como um sol branco. Após o êxtase, o iniciado real entra no santuário. É ele o único a poder fazê-lo,

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excetuando a sacerdotisa e o hierofanta. É um direito de príncipe. Aí o rei aprende que a sua alma é dupla, que uma parte veio de baixo e a outra de cima. Deve desembaraçar-se da de baixo e revestir-se com a de cima. Numa palavra, abandona o seu invólucro terrestre e sublima-se fora da matéria. Torna-se um puro espírito.

O ato fi nal da cerimónia coincide com a aparição de Vénus, segui-da pela união simbólica da sacerdotisa com o hierofanta. União simbó-lica, é verdade, pois, antes de presidir aos ritos, hierofanta e sacerdotisa tornaram-se impotentes bebendo uma mistura de vinho com uma dose muito bem calculada de cicuta. Os adversários dos mistérios de Elêusis apoderaram-se desta fase da cerimónia para a transformarem em escânda-lo. Pretendem que qualquer ideia de castidade é completamente excluída. Ironizam facilmente:

«Os mistérios de Elêusis não são a parte mais importante do teu culto? O povo ateniense e a Grécia inteira não acorrem para celebrar vãs cerimónias? Não é nesse retiro tenebroso que se dá o respeitável face a face do hierofanta e da sacerdo-tisa? Não é verdade que os archotes são apagados e que uma multidão incontável espera a sua salvação do que se passa na escuridão entre essas duas fi guras?»

Segundo outros textos menos parciais, está estabelecido que a cerimó-nia termina com um banquete ritual, no decurso do qual são representados dramas. O hierofanta toma a palavra.

Invoca o poder da deusa e tira conclusões morais. Os críticos têm tan-tas razões para declarar que os mistérios de Dioniso são aviltantes como para considerar os mistérios de Elêusis como manifestações enobrecedo-ras. Aristóteles conclui:

«Os iniciados nada aprendem de preciso, mas recebem im-pressões e são postos numa certa disposição, depois de para isso terem sido convenientemente preparados.»

A imprecisão dos mistérios é a sua primeira justifi cação para existir.

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3.

As Seitas emanadas da Bíblia

O Judaísmo, no decurso dos seus quatro mil anos de existência, se admitirmos que esta nação nasceu ao mesmo tempo que a nação fundada por Abraão, depois de ter deixado Ur, na Caldeia, não

cessou de sofrer modulações em torno de um mesmo tema, a fé num Deus único, a de Moisés, transmitida na Tora. A Tora contém a doutrina, a prá-tica, a religião e a moral. Mas a sua interpretação, mais ou menos estrita segundo as curvas políticas, sobrepondo-se por vezes a moral ao exercício da religião, na prossecução da santidade, deu azo ao aparecimento de sei-tas, tanto à margem da história judaica, como nela diretamente integradas, orientando-a para maior bem ou maior desgraça do povo. Entre estas sei-tas, é preciso contar as que exerceram um poder político, às claras (não oculto, portanto), os saduceus e os fariseus. O rei apoiava-se ora numa, ora na outra, como faria num regime democrático moderno. Outras seitas agiram como movimentos revolucionários, como os zelotas, e arrastaram o reino para sangrentas aventuras. Antes dos zelotas, existiam os assideus, ou hassidins, que ensinavam a não violência, mas que manejavam a espada por obrigação. Há ainda os místicos puros, os anacoretas, os solitários do deserto, os essénios, graças aos quais foram salvos os tesouros da biblioteca do Templo de Jerusalém e de que se descobriram em 1947, e mais tarde, milhares de tubos de terracota, contendo manuscritos relatando tudo o que até aqui ignorávamos a respeito da história judaico-cristã. Os manuscritos do Mar Morto estão longe de terem revelado todos os seus segredos.

Os Assideus

Não é exagerado falar de segredo a propósito destas seitas. Moisés deu ao

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seu povo as tábuas da Lei, os Dez Mandamentos gravados na pedra, para que fossem lidos e divulgados a todos os níveis da sociedade. Mas deixou também uma herança oral a 70 sábios, recomendando-lhes que não a des-virtuassem transcrevendo-a, ou ensinando-a à luz do dia. Assim, legou-lhes os conhecimentos que chegaram, de boca a orelha, até aos dirigentes das seitas, constituindo o seu fundo secreto. É esta a razão que nos permite clas-sifi car os saduceus e os fariseus na história das sociedades secretas.

O cortinado abre-se sobre a seita dos assideus, cujas ideias proliferam, mesmo após o seu desaparecimento, e servem de contraponto às doutrinas dos fariseus e dos essénios. Pouco se sabe a respeito dos assideus, exceto que eram os mais pios dos judeus. São eles os primeiros a sofrer com o paganismo que se espalha por Israel sob o domínio sírio, e são eles os pri-meiros, sem dúvida, a encorajar a revolta de Judas Macabeu (o manto) e a derrubar os altares dos deuses estrangeiros. Terminada a guerra, expulsos os sírios e purifi cado o Templo de Jerusalém, os assideus fecham-se sobre si mesmos. Deixam de apoiar Judas Macabeu. Recusam-se a tomar parte na política. O que conta é a observância estrita da lei de Moisés. Permanecem conservadores e reprovam as tendências helenistas que se fazem sentir no país, advogando uma certa alegria de viver, pouco propícia à elevação espi-ritual. O papel dos assideus é manter o povo na tradição e preservá-lo das lutas fratricidas.

Os assideus pronunciam-se contra as efusões de sangue, para pode-rem, desligados das aventuras guerreiras de Judas Macabeu, prepararem-se melhor para a vinda do Messias e para a indicação de que o Messias só reinaria sobre a terra por um período de mil anos. Contestam-lhes o pa-triotismo, porque não hesitam em fazer a paz com os seus antigos inimigos, os Sírios. Não por neutralismo, ou por cobardia, mas por considerarem que a Judeia, um mini-Estado, não pode esperar fazer face à Síria, ao Egito e às ameaças do Império Romano. De facto, o apelo de Judas Macabeu à aliança com Roma virá dar-lhes razão.

Entretanto, surge um confl ito entre o rei da Síria e Judas Macabeu, devido à nomeação, pelo sírio, de um certo Alcimo para o cargo de grão-sa-cerdote, deixado vago pelo exílio e a execução de Menelaus, detestado por toda a população. Judas recusa ao rei o direito de imiscuir-se nos assuntos religiosos do país, e censura a Alcimo — o que deveria agradar aos assi-deus — o facto de ser helenizante. Um exército sírio invade uma vez mais a Judeia. Judas Macabeu prepara-se para o repelir, como já fez treze anos antes. Mas Alcimo serve-se do seu encanto para conseguir as boas graças

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dos assideus. Promete-lhes que apoiará os seus pontos de vista religiosos e que, se bem que favorável à helenização do país, respeitará o carácter estrito da sua observância da lei. Os assideus fi am-se mais na promessa de Alcimo do que nos protestos de independência dos Macabeus. A seita re-conhece solenemente Alcimo como grão-sacerdote legítimo. Judas tem de inclinar-se, mas os Sírios não se contentam com ver um homem nomeado por eles à cabeça do Templo, e exigem de Alcimo um penhor de lealdade, de subordinação. Não esqueceram que os assideus pregaram a guerra santa contra eles. Alcimo, sem que se saiba o motivo invocado, manda prender e matar 60 assideus. Uma vez que os Sírios querem vítimas, o grão-sacerdote escolheu os mais inofensivos. Os Macabeus teriam podido, isto é absoluta-mente certo, recomeçar a guerra.

A traição de Alcimo desfere um golpe terrível na seita dos assideus. A morte de 60 dos seus, ordenada por aquele que tinham entronizado, é o sinal do fi m. Para onde foram? Não voltamos a encontrar-lhes o rasto até à aparição da seita dos essénios.

Os Saduceus e os Fariseus

Em 135 a.C. reina João Hircão, que, por ambição mais do que por espírito religioso ou de independência, alarga de espada na mão as fronteiras do país. Como a lei lhe proíbe derramar o sangue do povo judaico, o seu exér-cito é composto por mercenários, e como a conquista territorial é contrária às doutrinas moisaicas, os fariseus, que herdaram os preceitos dos assideus, contestam o seu regime. João Hircão acabará por apoiar-se, portanto, nos saduceus, cujo nacionalismo agressivo só aspira à extensão territorial da pátria, e à sua modernização, o que signifi ca helenização.

Eis colocadas em oposição as duas seitas que vão infl uenciar profunda-mente a política do país, até ao reinado desastroso de Herodes.

Saduceus e fariseus estão de acordo quanto ao fundo da religião, uns e outros permanecem fi éis à Tora. Mas os saduceus são ao mesmo tempo liberais e nacionalistas; estão muito ligados à grandeza do Estado, enquanto os fariseus estão essencialmente presos à Tora. Os saduceus consideram que não se pode governar sem ter em conta a evolução económica e as relações com os países vizinhos, cuja infl uência não é de negligenciar. São partidários de um certo maquiavelismo político, sem se afastarem da alian-ça com Jeová, com a condição de que benefi cie a Judeia. Os fariseus não

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querem reconhecer qualquer outra constituição além da Tora. É unicamen-te na Tora que o Estado deve encontrar, interpretando-a, a política a seguir. Para os saduceus, só existe um deus, nacional, o deus de Israel. Deus não é sírio, nem grego, nem egípcio, é judeu. Neste plano, os fariseus não reco-nhecem a nacionalidade única de Deus. Acreditam num Deus universal, o Deus de todos os homens. Os saduceus subordinam o indivíduo ao poder da nação, são totalitários. Os fariseus dão o melhor lugar ao indivíduo; a alma individual tem prioridade sobre a alma coletiva da nação. A imor-talidade da alma, a sua sobrevivência, a sua posição no reino futuro, não passam para os saduceus de quimeras. Quanto ao fi m dos tempos, para que se preparam os fariseus (como os assideus), não é fundamental. Os fariseus recrutam-se entre as gentes simples, os saduceus nos meios comerciantes e de proprietários ricos.

No início do seu reinado, João Hircão apoia-se nos fariseus. O Sanhédrin (tribunal religioso) é composto exclusivamente por fariseus, por surpreendente que isto possa parecer quando se sabe que João Hircão é um chefe batalhador, e os fariseus pacifi stas por tradição. Não tardam a surgir confl itos entre o rei e o partido arcaico. No decurso de um repasto ofi cial, o fariseu Eleazar censura João pelo facto de este acumular as funções de grande sacerdote e governador. Não se oferecem sacrifícios no Templo com as mãos vermelhas do sangue dos combates. Este rigorismo atira Hircão para o campo dos saduceus. Ao fi m e ao cabo, se os fariseus são populares, os saduceus são poderosos.

A chegada destes últimos ao Sanhédrin consagra a política de expan-são de João e os desejos de helenização da classe superior da sociedade. Os fariseus apagam-se da cena política, ressalvam a sua responsabilidade à vis-ta da impureza crescente, protegem-se contra a corrupção afastando-se da população. Com o tempo, este divórcio não dura. Certos fariseus regressam a Jerusalém. Fazem concessões. A doutrina que professam tornou-se arcai-ca, não pode permanecer eternamente atrasada. Outros, rigoristas, obsti-nados, agarrados à tradição, vão talvez dar nascimento à seita dos essénios. Os fariseus estão divididos em dois campos.

O regresso dos fariseus ao poder será favorecido pelo cansaço do povo, ante a atitude combativa e altiva dos saduceus. Com eles reina a violência. A revolta da Festa dos Tabernáculos, afogada em sangue, dá má consciência ao rei.

Ao morrer, Hircão aconselha sua mulher, Salomé Alexandra, a recon-ciliar-se com os fariseus e chamá-los ao poder. Os saduceus são expulsos do

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Sanhédrin. Os fariseus recuperam os seus lugares, mas consentem em «mo-dernizar» o ritual. Entre as reformas, separam o poder civil do religioso, criando dois Sanhédrin, o político e o religioso. A paz, sob o cetro de uma mulher, permite aos judeus viverem enfi m felizes, sem o receio de verem cair sobre eles os exércitos dos seus inimigos (aplacados), ou o apocalipse.