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1 Igreja e Primeira República A implementação do registo civil obrigatório Joana Bento Torres

História do Registro Civil em Portugal - JOANA TORRES

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Registro Civil em Portugal.

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Igreja e Primeira República

A implementação do registo civil obrigatório

Joana Bento Torres

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Antecedentes

O registo civil e paroquial foi um tema sobejamente discutido ao longo do século XIX,

ainda que o seu debate seja mais intenso a partir da segunda metade do mesmo século. Na

realidade esta era uma questão que se inseria noutras tantas relacionadas com a “intromissão” da

Igreja na esfera temporal, nomeadamente nos momentos cruciais da vida do homem, na sua

educação em escolas religiosas e sua formação moral, pelo facto de ser a Igreja a tutelar da

mensagem cristã e da sua transmissão... Estava-se então perante uma sociedade altamente

imbuída nos princípios e valores cristãos, presa à instituição que lhe garantia o alcance daquilo a

que se chamava a salvação das almas. O registo paroquial impunha-se como a garantia de que o

cristão, no decorrer da sua vida, marcada pelo seu nascimento e morte, cumpria todos os

sacramentos que lhe permitiam alcançar a “vida eterna”. Era, portanto, um registo de enorme

relevância, para o cristão.

Contudo, para o não católico, o registo paroquial era impraticável, o que o colocava numa

situação de desigualdade e desfavorecimento, uma vez que o registo do seu nascimento,

casamento ou morte só se podia processar e reconhecer pela Igreja católica. Esta é uma das

razões que leva à instituição do registo civil no decreto de 16 de Maio de 18321, por Mouzinho

da Silveira. Segundo o artigo 69º «o registo civil é a matrícula geral de todos os cidadãos pela

qual a autoridade pública atesta e legitima as épocas principais da vida civil dos indivíduos, a

saber: os nascimentos, casamentos e óbitos.». Assim se alcançava uma igualdade de direitos

entre católicos e não católicos, estes últimos podendo agora legalizar as suas “situações”2, sem

ter de recorrer a uma fé que não era a sua. Este registo ficou, a partir do decreto de 18 de Julho

de 1835, a cargo dos administradores dos concelhos, que passaram a deter “a redacção e a guarda

dos livros do registo civil para os não católicos”3.

Após este primeiro passo, surgiram novos decretos, códigos civis e administrativos que

regulamentaram o registo civil e paroquial, acrescentando paulatinamente ao Estado novas

responsabilidades nestes domínios. Com efeito, além dos decretos de 1832 e 1835 já

mencionados, em 1836, um código administrativo «determinava (artigo 255º) que o registo civil

[sic] dos católicos continuasse a ser feito pelos párocos, enquanto o governo não publicasse os

modelos [...] e não determinasse a época em que devia passar»4. Em 1842, há um novo código

administrativo que reiterava o anterior, o que nos leva a concluir que as primeiras proposições

1 “Registo Civil”, in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, p. 257

2 Leia-se o registo de nascimento e óbito, uma vez que a possibilidade de registar o casamento para os não católicos

só estará acessível com a formulação do código civil de 1867. 3 Nuno D’Alcochete, Considerações acerca do valor dos assentos paroquiais anteriores à lei do Registo Civil de

1911, Lisboa: União Gráfica, 1964, p.7 4 Idem, p.7

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não haviam tido evolução. Estas teriam então lugar a 8 de Outubro de 18595, por uma portaria

que lançava os novos formulários do registo paroquial a implementar em todos os bispados, pela

decisão, exposta no decreto de 19 de Agosto desse ano, de uniformizar este registo. Ainda assim,

nota-se, novamente, alguma morosidade na implementação destas leis, pois a 2 de Abril de 1862

sai um novo decreto que ordena a aplicação do anterior decreto no território de Portugal

Continental e Ilhas6.

Em 1867 assiste-se à regulamentação do registo do matrimónio civil para os não

católicos. Este momento torna-se deveras importante para o caminho a percorrer até ao registo

civil para todos os cidadãos, pois dá-se um rompimento com a sua conotação religiosa e

sacramental atribuída ao casamento. Assim, no registo civil, o casamento emerge como um

contrato entre duas pessoas, sem origem ou qualquer intervenção do Deus católico. Vozes

contrárias defendiam que o casamento civil «contrariava a carta constitucional»7 e que «punha

em causa a instituição familiar, por rebaixar a condição da mulher e abrir as portas ao divórcio»8.

Porém, apesar da existência de duas posições aparentemente antagónicas, que lutavam uma pela

aprovação do casamento civil e outra pela sua proibição, a verdade é que, na sua maioria, aqueles

que davam voz à oposição ou ao apoio do casamento civil acreditavam ambos que isso traria: a

manutenção da dignidade do contrato matrimonial; a salvaguarda da condição da mulher e a

protecção da instituição familiar (em parte pela não aprovação do divórcio).

No artigo de Fernando Catroga9, estas ideias são expostas de forma clara: os que se

negavam a aceitar este casamento civil, e aqui se incluem pessoas obrigatoriamente ligadas à

Igreja e ao catolicismo, desconfiavam desta resolução jurídica, pois achavam, como referi atrás,

que reduziria a condição da mulher, equiparando as que optassem por este casamento a

concubinas (pois, no fundo, a Igreja não conseguia reconhecer neste contrato qualquer validade

sem o sacramento que “esta concedia”); ao mesmo tempo, defendiam que este casamento

acabaria por proporcionar o divórcio, o que, deste modo, contrariava a constituição portuguesa,

já para não falar que ia contra o eterno casamento católico.

No caso dos apoiantes do casamento civil viam nele a regulamentação de uniões de facto

entre não católicos, o que dotava todos os cidadãos dos mesmos direitos; paralelamente, havia a

doação à mulher de uma condição mais equiparada à do homem, não só por se tornar uma

contraente ao lado de outro contraente, mas também porque salvaguardava os seus direitos nas

situações de união de facto (que se “convertiam” depois em casamento, e esta condição sim

5 Idem, p.7

6 Esta decisão só será alargada às colónias no decreto de 9 de Abril de 1863. Idem, p.7

7 Maria Moura, A guerra religiosa na Primeira República, vol. II, cap. VIII, Coimbra, s.n., 2004, p. 516

8 Fernando Catroga, «A Laicização do casamento e o feminismo republicano.», in A mulher na Sociedade

Portuguesa, Coimbra: Faculdade de Letras, 1986, p. 5 9 Idem, pp. 5-8

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resguardava os seus direitos enquanto esposa); e, por fim, não estava em causa a aprovação do

divórcio, pelo menos não nesta primeira fase de discussão, até porque muitos não concordavam

com este. Nesta posição encontravam-se figuras como «Alexandre Herculano, Vicente Ferrer

Neto Paiva, Oliveira Marreca, Levy Maria Jordão e José Júlio»10

.

Além destes nomes, com clara visibilidade pública, não podemos olvidar o partido

republicano ou a maçonaria, que lutavam por medidas que fizessem com que o cidadão fosse

totalmente livre nas suas escolhas, sem imposições, e onde o Estado laico seria o seu único

regulador “passivo” (pois só agia contrariamente à vontade do indivíduo, se as escolhas deste

embatessem no interesse comum).

Mais de dez anos depois, em 1878, assiste-se ao fechar de um primeiro ciclo do registo

civil: o registo para os não católicos fica totalmente regulamentado pelo decreto de 28 de

Novembro desse ano.

Esta determinação denota claramente a dificuldade e demora na aplicação das leis

aprovadas sobre esta matéria, desde o decreto de 1832, de Mouzinho da Silveira até este último

decreto de 1878. Esta dificuldade e detença poderá explicar-se talvez por dois prismas: por um

lado, este seria um tema sensível e que havia de ser guiado com cautela, tentando-se

possivelmente um ponto de equilíbrio entre os desejos dos liberais e a susceptibilidade da Igreja

nos poderes temporais (espirituais para esta instituição) que assumia para si; por outro lado,

poderemos ainda não estar perante orgãos decisórios que consigam conceptualizar totalmente

uma sociedade sem intervenção directa daquela que era a religião do Estado, e como tal se

inseria na sua orgânica, desde há muito tempo.

Esta última questão é pertinente, pois nota-se que a monarquia constitucional oscila entre

a sua herança monárquica secular, ligada intrinsecamente à Igreja, e o pensamento liberal tão

patente na guerra civil de 1820 e presente na carta constitucional, que marca a sua segunda

ascendência. Talvez com esta visão de conjunto se consiga perceber as hesitações e demoras no

avanço do registo civil; a “monarquia” ia resistindo quanto podia, mas a “constitucional”

imponha-se como uma bola de neve, que vai crescendo e que não pára, mesmo que a retardemos.

Era assim que acontecia com o pensamento liberal e republicano que se vinha impondo desde as

primeiras décadas do século XIX. Estes movimentos acreditavam num Estado sem religião,

dessacralizado; num Estado que salvaguardava e, como tal, centralizava os interesses de todos os

cidadãos; num Estado que integrava a vida do cidadão e a regulava, pois dessa regulação

dependia o rumo do país.

Neste sentido, o registo civil era fundamental para o Estado, pois com ele conseguia

exercer «tarefas de domínio e consensualização (educação nacional, serviço militar obrigatório,

10

Vítor Neto, O Estado, a igreja e a Sociedade, Lisboa, INCM, 1998, p. 236

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segurança nacional, lançamento de impostos [e fiscalidade])»11

, que eram fundamentais para o

crescimento (neste caso de Portugal) da sua organização interna, que se espelhava depois na sua

política externa.

Este era o grande suporte ideológico dos defensores do registo civil, que ainda se

apoiavam em factos práticos para sustentarem os seus argumentos, como acontecia com os

assentos paroquiais, que sendo muitas vezes lacunares, omissos e, por vezes, sujeitos ao arbítrio

do padre para proceder ao dito registo, não garantiam o registo seguro dos dados de todos os

cidadãos.

Concluímos que muitos argumentos contribuíam para a passagem do registo para as mãos

do Estado; argumentos pesados que se erguiam aos da Igreja por invocarem um bem maior, que

seria o da nação. Contudo, de que seriam ideias e argumentos sem consequências práticas?

Apesar de toda a hesitação que esteve patente às medidas que aqui fomos aludindo, sem elas não

havia uma preparação, ainda que lenta, para as reformas introduzidas pela Primeira República.

Estes foram, de facto, os primeiros passos para uma desvinculação progressiva dos cidadãos da

Igreja. O «cristão cedia o lugar ao cidadão»12

, moldava-se uma sociedade civil.

O surgimento da Primeira República: constituição do Governo Provisório

A Primeira República é instaurada a 5 de Outubro de 1910.

O seu Governo Provisório formulou os primeiros decretos com força de lei, de modo a

fazer valer as suas ideias republicanas, já enunciadas em programas anteriores, como os de 1868

e 1891.

Uma das principais ideias que sobressai nestes programas do partido republicano, e que

também se reflectiu nas determinações do Governo Provisório, era a da necessidade de estancar a

excessiva intervenção da Igreja na vida pública, sendo este, segundo os republicanos, o grande

motivo pelo qual a sociedade e o país se encontravam num tal estado de decadência e atraso.

Assim fala Afonso Costa referindo-se à lei de separação das Igrejas do Estado: «Está

admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da medida será tão salutar que

em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da

desgraçada situação em que caiu.»13

.

11

Citação de Fernando Catroga in Maria Moura, op. cit., p. 516 12

Maria Moura, op. cit, p. 515 13

Citação do periódico O Tempo, nº12, de 27 de Março de 1911, in J. A. Moreira Almeida (1988)

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Deste modo, os próximos decretos que enumerarei no Quadro I denotam esta atitude

anticlerical, procurando “ferir” a Igreja Católica em Portugal, retirando-lhe os seus principais

meios de sustentabilidade e hegemonia social.

Quadro I

Data Medidas

8 de Outubro de 1910 Expulsão os Jesuítas e encerramento de conventos.

18 de Outubro O ensino da doutrina cristã é abolido, bem como o juramento

religioso em actos oficiais.

22 de Outubro Proibição do ensino da doutrina cristã no ensino primário.

26 de Outubro Abolição dos dias santificados.

3 de Novembro Promulgação da lei do divórcio.

25 de Dezembro Promulgação da lei da família, com a instituição do casamento

civil.

31 de Dezembro Regulação das associações religiosas, proibindo-se a utilização

pública de hábitos.

21 de Janeiro de 1911 Proibição do culto católico na capela da Universidade de

Coimbra.

1 de Fevereiro Determina-se o fim do Centro Académico de Democracia Cristã.

18 de Fevereiro Instituição do Registo Civil obrigatório. Encerramento dos

registos paroquiais.

20 de Abril Promulgação da Lei de Separação entre o Estado e a Igreja. Os

bens da igreja são nacionalizados.

A instituição do registo civil obrigatório

Os primeiros decretos que pressuponham a promulgação do registo civil:

Antes do Governo Provisório tornar obrigatório o registo civil, decretou normas que

veiculavam novos direitos aos cidadãos, e que tornavam incontornável a criação de uma nova

forma de registo que não o paroquial.

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Falo na lei do divórcio, a 3 de Novembro de 1910, e da família, a 25 de Dezembro de

1910, que instituíam o divórcio e o casamento civil14

, respectivamente, contrariando totalmente

os valores católicos: o valor sacramental e sagrado do matrimónio e a impossibilidade de

dissolver uma união assumida perante Deus, que Ele próprio havia instituído.

Vejamos mais ao pormenor estes decretos de lei. O decreto de 3 de Novembro de 1910

determina que o casamento era dissolvido por morte ou por divórcio (capítulo I, artigo 1º),

ambos possuindo a mesma validade jurídica (artigo 2º). Este divórcio podia ser litigioso ou de

mútuo acordo (artigo 3º), sendo que o divórcio litigioso só podia ser pedido em determinados

casos (capítulo II, artigo 4º), eram eles: o adultério de um dos cônjuges; a condenação do

cônjuge a uma pena maior; as ofensas (físicas e verbais) graves; o abandono do domicílio por

mais de três anos; a incapacidade ou doença mental e física; qualquer motivo após dez anos de

matrimónio.

O decreto de 25 de Dezembro de 1910 compreendia antes de mais a definição de

casamento estabelecida nos primeiros dois artigos do capítulo primeiro: «O casamento é um

contracto celebrado entre duas pessoas de sexo differente, com o fim de constituirem

legitimamente familia.»15

e «Este contracto é puramente civil e presume-se perpetuo, sem

prejuizo da sua dissolução por divorcio, nos termos do decreto com força de lei de 3 de

novembro de 1910.»16

.

Efectivamente, com estas novas normas legislativas tinham de ser criados mecanismos

legislativos e administrativos para possibilitar o seu cumprimento. E é neste momento que surge

a necessidade pragmática de instituir o registo civil. Com certeza que a vontade e a ideia de

tornar o registo civil obrigatório para todos os cidadãos não surge após a promulgação destas

leis. Contudo, é nesta altura que a feitura da lei se torna inevitável, senão atentemos ao seguinte

artigo da lei da família:

Torna-se clara esta ideia de que a lei do registo civil era um projecto, provavelmente já em

formulação, e que era essencial para a efectivação destas leis.

No entanto, esta noção de que o Governo Provisório se orientava com um determinado

objectivo e para um dado fim é-nos mais perceptível se tornarmos a olhar para o Quadro I.

14

A lei da família envolvia a regulamentação de outras questões, como a protecção dos filhos, legítimos ou

ilegítimos, a consagração dos direitos dos filhos ilegítimos… 15

Lei da família: sobre o casamento, como contracto civil e protecção aos filhos: decretos do Governo Provisório,

Lisboa: Liv. Pop. de Francisco Franco, 1910, capítulo I, artigo 1º 16

Idem, capítulo I, artigo 2º

«Capitulo I

Artigo 3º- Todos os portuguezes celebrarão o casamento perante o respectivo official

do registo civil, com as condições e pela forma estabelecida na lei civil, e só esse é

válido.

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Neste, nota-se claramente uma evolução que desemboca na Lei da Separação, uma vez que esta

consagrará todos os outros decretos de lei anteriores. Assim, no primeiro mês, o Governo

Provisório leva a cabo medidas que pretendem mostrar a força real do novo regime temporal,

apagando a intervenção da Igreja num Estado agora laico. Para isso, expulsa os jesuítas, abole os

feriados santificados e reprime a faceta educadora da Igreja no ensino. Ulteriormente, proceder-

se-á a um afastamento progressivo da Igreja do quotidiano da população, pelas leis de divórcio e

da família que incutem valores que contrariam os [valores] católicos e pela proibição da

utilização de hábito fora do local de culto. A lei do registo civil insere-se neste contexto, na

tentativa de esbater a presença eclesiástica na vida das populações. A lei da separação vai acabar

por considerar todas as situações que iam sendo reguladas em relação à Igreja, sendo então um

facto que “encerra” um processo gradual de separação.

A obrigatoriedade do registo civil e a sua extensão funcional:

O registo civil obrigatório em Portugal institui-se com o decreto de lei de 18 de Fevereiro

de 1911. O decreto é composto por 12 capítulos e 365 artigos, o que evidencia a minúcia com

que é redigido, contemplando detalhadas disposições acerca do modo como deve ser aplicada a

lei.

Deste modo, este decreto começa, no artigo 1º do capítulo I, com a determinação da

funcionalidade do registo civil, que surge como o garante da «individualidade jurídica de cada

cidadão» perante o Estado, o que lhe garantia os seus «direitos civis», concedidos apenas por

esse mesmo Estado17

. No segundo artigo surge o termo que diferencia este decreto de todos os

outros: «obrigatoria». Obrigatória era assim a «inscrição no registo civil dos factos essenciaes

relativos ao individuo e á familia, e á composição da sociedade, nomeadamente dos nascimentos,

casamentos e óbitos»18

, bem como «os reconhecimentos e legitimações dos filhos, os divorcios,

declarações de nullidade e annullações de casamento, e outros actos ou factos relativos ao estado

civil.»19

.

Nos capítulos II, III, V e XI está exposta a orgânica das conservatórias e de todo o

aparelho que devia sustentar o registo civil. Os capítulos IV, VI, VII, VIII, IX, X e XII

regulamentam o registo civil em si, nas suas competências directas de registo dos momentos

fulcrais da vida da população [portuguesa]. Mas aprofundemos um pouco mais as disposições

desta lei, de modo a compreendermos o modo como foi implantada e a estrutura necessária para

a pôr a funcionar.

17

Código do registo civil: decreto com força de lei de 18 de Fevereiro de 1911, Coimbra: F. França Amado, 1911,

capítulo I, artigo 1º 18

Idem, capítulo I, artigo 2º 19

Idem, capítulo I, artigo 3º

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Assim sendo, o registo civil ficava sob a alçada do Ministério da Justiça (artigo 15º) e

devia ser coordenada por uma Direcção Geral («Conservatoria Geral»), nomeada pelo ministério

(artigo 15º). Até à formação deste departamento, era o secretário geral que devia organizar o

registo civil, sendo identificado com a designação de conservador geral (artigo 16º).

Era igualmente estabelecido que todas as capitais de distrito tinham de ter uma

Conservatória do registo civil (artigo 21º), sendo que no caso de Lisboa e Porto, haveria uma por

bairro (quatro e duas, respectivamente). Fora destes centros, era indicado que existisse um oficial

do registo civil para cada concelho, de modo a que o registo civil chegasse a todas as freguesias

dos concelhos (artigo 25º). Para os casos de locais mais distantes, o artigo 27º previa a criação de

postos de registo civil.

No que respeita às funções dos funcionários do registo civil estabelecidas no capítulo três

do decreto, para além das funções mais “básicas”, realçaria o artigo 44º que reiterava a

obediência dos funcionários, tendo estes de se «conformar com as instrucções emanadas de

qualquer dos seus superiores» e o artigo 47º que ordenava os funcionários a nunca se absterem

ou recusarem o desempenho das funções que tinham a seu cargo.

Em relação aos livros dos registos, pelo valor que ganham com a provação desta lei, é-

lhes consignado todo um capítulo para que nada se perdesse e a informação estivesse sempre

assegurada. Com efeito, cada conservatória ou posto do registo civil devia ter um duplicado de

todos os livros que possuía (artigo 55º). Além disso, todos os livros de registos estavam sujeitos

aos mesmos modelos (artigo 59º), o que uniformizava para sempre a informação

verdadeiramente importante para o Estado a ser assentada e a maneira como esta devia ser

exposta.

Nascimento:

No que toca ao registo do nascimento, o decreto do registo civil dedica todo o capítulo VI

ao seu tratamento, através de 53 artigos (artigo 121º-174º). Nestes artigos o registo do

nascimento de uma criança devia ser feito por pessoas que eram, aos olhos do Estado,

testemunhas válidas do nascimento ocorrido (artigo 121º). Quem quer que fosse essa testemunha

devia dar conta do nascimento sete dias úteis após o parto (artigo 123º). O registo devia ser feito

na repartição correspondente ao local de nascimento/residência.

Para lavrar o registo era necessária a presença de duas testemunhas que substituíam a

figura dos padrinhos do baptismo católico. Aliás, no próprio artigo 138º, há esta analogia,

devendo estes padrinhos «protecção e assistencia ao menor, na falta dos paes».

Na escolha do nome da criança, o Governo Provisório tecia algumas considerações neste

decreto. Efectivamente, os artigos 142º, 143º e 144º anotavam a necessidade de não se confundir

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um nome próprio com apelidos, nomes de coisas, qualidades ou animais; e a impossibilidade de

se colocarem como parte integrante do nome «referencias honorificas ou nobiliarchicas (...) nem

titulos ou honras».

Casamento/ Divórcio:

O casamento civil e o divórcio são tratados no capítulo VII, ao longo de 68 artigos (artigo

177º- 245º). Como já se havia enunciado com o decreto de 25 de Dezembro de 1910, o decreto

do registo civil surge como a possibilidade de concretização daquele.

Nota-se nos primeiros artigos uma preocupação com a preservação da liberdade

individual de cada indivíduo em contrair matrimónio, como transparece nos artigos 179º, 180º e

181º. Nos artigos seguintes (182º, 183º, 184º, 185º e 186º) são analisadas e reguladas situações

em que o casamento é de algum modo sensível, como o casamento entre menores e entre pessoas

à partidas interditas a contraí-lo, como parentes próximos.

Ultrapassados os primeiros obstáculos emocionais e/ou burocráticos, o casamento devia

ser celebrado no «concelho ou bairro em que qualquer dos nubentes tiver o seu domicilio»20

.

Contudo, antes de passar ao acto propriamente dito, havia que fazer chegar à repartição do

registo civil uma declaração com os dados dos nubentes (artigo 188º e 189º), de maneira a afixar

em edital (artigo 190º-193º), na própria repartição, o intento dos nubentes em casar. O objectivo

deste edital era possibilitar à população a denúncia de eventuais casos de impossibilidade de

realização do contrato em causa. Assim sendo, só após um período de dez dias, os nubentes

estavam em condições para se casarem (artigo 194º e 196º).

Esta cerimónia devia fazer-se na presença de pelo menos oito pessoas de maior idade,

cujos nomes deviam ser contabilizados no registo de casamento (artigo 201º); num dia a escolher

pelos nubentes (artigo 213º). Durante a celebração notarial, os contraentes deviam afirmar a sua

vontade em casar («É de minha livre vontade realizar o casamento com F»), sendo estas

afirmações reiteradas pela declaração em voz alta do funcionário, que procedia ao casamento,

que dizia «Em nome da lei e da Republica Portugueza, declaro F e F unidos pelo casamento».

Claramente, apesar da manutenção do cerimonial católico, a Lei e a República Portuguesa

substituíam o Pai, Filho e Espírito Santo.

Depois da feitura do registo, caso fosse desejo dos casados, estes já podiam celebrar uma

cerimónia de casamento religiosa (artigo 202º).

Bem, e após o casamento, se as partes não se envolvessem naquela que se esperava uma

união eterna, como salvaguarda o decreto de 25 de Dezembro de 191021

, então havia sempre a

20

Idem, capítulo VII, artigo 187º 21

Lei da família…(1910), capítulo I, artigo 2º

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possibilidade do divórcio, aspecto já abordado anteriormente. De qualquer modo, este decreto

serve de complemento ao anterior, uma vez que explicita as regras no registo deste divórcio.

Com efeito, «a sentença autorizando o divorcio definitivo» seria averbada «á margem do

respectivo assento do casamento»22

.

Morte:

O registo de óbito impunha-se como uma prioridade após a morte de um qualquer

indivíduo. O primeiro artigo (artigo 246º) do capítulo VIII, dedicado exclusivamente a esta

temática, estabelece a impossibilidade do sepultamento antes do registo de óbito, devendo o

registo fazer-se num período nunca superior a vinte e quatro horas do falecimento.

Lavrado o registo, o funcionário passava, como no caso do nascimento e casamento, um

boletim, que servia como comprovativo do registo de óbito (artigo 255º), o que desencadeava o

processo de enterramento. O enterramento não podia efectuar-se noutro qualquer sítio que não os

cemitérios públicos (artigo 256º), dentro do qual deixava de haver restrições para a escolha de

espaços (artigo 257º), uma vez que o decreto ordenava o derrube de todos os muros ou

separações, existentes até então, entre católicos e não católicos (artigo 258º). Por outro lado,

tornava-se possível a cremação do cadáver em alternativa à inumação (artigo 264º). Ainda assim,

havia certas restrições, podendo apenas dar-se a cremação em cemitérios com crematórios

(previamente inspeccionados pelo «conselho superior de hygiene»), com autorização do registo

civil (artigo 265º).

Na fase de enterramento, podiam realizar-se funerais, ainda que estes estivessem

consignados ao espaço do templo e cemitério. Para além disso, o funeral só se faria por vontade

expressa anteriormente pelo falecido, ou por vontade da sua família.

Disposições em relação ao registo paroquial:

Foram alguns os artigos dedicados à regulamentação do registo paroquial que terminava

com a assunção do registo civil. Nota-se alguma preocupação por parte dos legisladores em

considerar e discriminar toda uma série de situações que pudessem ocorrer na transferência

daquela que havia sido, ao longo da história, uma função quase exclusiva da Igreja.

Na verdade, era preciso considerar que a montagem desta nova capacidade do Estado não

dependia apenas da criação de legislação, organismos, instalações e recrutamento de pessoas

capazes de aplicar o novo “tipo” de registo; era fundamental que os livros dos registos até então

activos “cessassem funções”, ou seja, que a Igreja prescindisse daquela que era uma função sua.

22

Código do registo civil…(1911), capítulo VII, artigo 231º

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No quarto artigo a disposição do Estado está em proibir a utilização de outros assentos,

nomeadamente os paroquiais, enquanto provas de registo de qualquer acto da vida do cidadão,

ocorridos a posteriori da promulgação deste decreto. Pelo contrário, todos os que haviam feito

registos nas suas paróquias antes deste decreto viam a sua situação salvaguardada (artigo 7º),

pois os padres que detivessem os livros dos assentos paroquiais estavam autorizados a passar

certidões (artigo 12º), que eram, apenas nestes termos, reconhecidas.

Os livros de assentos deviam, pela nova lei, ser «encerrados» para que não registassem

mais nenhum dado (artigo 8º). Ainda assim, os livros ficavam, numa fase inicial, na posse dos

párocos, excepção feita aos que não cumprissem com a anterior ordenação (artigo 8º). Todos os

que não cumprissem estas determinações viam as suas penas expostas nos artigos 9º e 14º.

Para além destes artigos, outros existem ao longo do decreto que determinam questões

mais pontuais relacionadas com hábitos estabelecidos pelo culto da Igreja católica, como os

baptismos, matrimónios e funerais. Os artigos 310º e 312º do capítulo X indicam a forma como o

Estado resolve estes costumes cultuais e evidenciam, por um lado, que os interesses do Estado

vinham à frente dos interesses de qualquer religião, e, por outro, que parecia haver uma procura

de equilíbrio e de respeito do Estado para com a Igreja católica ou para com as crenças dos seus

fiéis.

A lei do registo civil obrigatório. Motivações e Efeitos

Apesar da maior parte da população portuguesa ser católica, e de esta realidade se

espelhar nos núcleos governativos, principalmente durante o regime monárquico, começam a

surgir bastantes vozes que se impõem contra o domínio da Igreja na sociedade e no Estado.

Contudo, o propósito deste tópico é tentar agora compreender como os apoiantes do registo civil

se foram organizando e movimentando, no sentido de efectivar uma separação da Igreja do

Estado, em parte pela aprovação da lei do registo civil, nos últimos momentos que antecederam

este acontecimento. Daí querer tratar a acção da Associação do Registo Civil, que apesar de agir

em conformidade com outros grupos de acção constituiu-se com o intuito de fazer emergir um

princípio que a ela própria identificava.

Associação do Registo Civil:

Esta associação surgiu pela primeira vez em 1876, com o nome de Associação Promotora

da Lei do Registo Civil, marcando como seu principal objectivo promover o cumprimento de lei

do registo civil de 1832. Contudo, esta acaba por terminar dois anos após a sua criação.

Page 13: História do Registro Civil em Portugal - JOANA TORRES

13

Ainda assim, o princípio que invocava veio a ressurgir mais tarde, a 5 de Agosto de 1895,

com a Associação de Beneficência Propagadora da Lei do Registo Civil, que se propunha, como

refere Manuel Roque de Azevedo, «fazer propaganda da lei de 1878, lutar pela

institucionalização do registo civil obrigatório, retirando à Igreja estas funções»23

.

Os seus sócios fundadores foram: António Ferreira Chaves, Augusto Rato, Carlos Cruz,

Eduardo Pinto, João Gonçalves, Jorge Boaventura, Jorge Francisco, José Costa Lemos, Raúl Gil,

Vasco Gamito24

.

A sua sede passou pela Rua do Arco do Marquês de Alegrete, nº 13, 1º; pela Rua dos

Douradores, nº 222, 1º; pela Travessa dos Remolares, nº 30, 2º; pela Calçada do Marquês de

Tancos, nº 2, R/c (21 de Abril de 1912) e pelo Largo do Intendente, nº 45, 1º (31 de Janeiro de

1913)25

, morada última até à sua extinção em 1937.

Tal como os locais em que se instalou, a sua dinâmica também se foi alterando ao longo

do tempo, conforme a realidade envolvente se ia transformando. Reflexo disto é a designação

que adopta em 1912 – Associação do Registo Civil –, acompanhada pela aprovação de novos

estatutos. Esta mudança é compreensível, uma vez que pela promulgação da lei do registo civil, a

sua função já não podia manter-se nos mesmos moldes; o objectivo da Associação Propagadora

da Lei do Registo Civil havia sido alcançado a 18 de Fevereiro de 1911. São os próprios

membros da associação que debatem esta questão entre si, e que está patente, segundo Luís Vaz,

ao longo das actas da direcção de 191126

. Nestas actas estão presentes, pela tese do mesmo autor,

alguns dos argumentos que levariam esta associação a remodelar-se e a continuar. São eles, por

exemplo, as reclamações de pessoas que traziam ao seu conhecimento o não reconhecimento e

cumprimento da lei do registo civil e da separação.

Apesar dos novos estatutos de Abril de 1912 terem sido revistos a 22 de Novembro de

1915, estes tornam-se úteis para percebermos esta mutação discursiva quando comparando com

um pequeno artigo da Associação Propagadora da Lei do Registo Civil de 1 de Novembro de

1910, publicado no Lucta27

, e que evidencia os propósitos desta associação.

A primeira diferença que notamos, como já mencionei anteriormente, é que os projectos

que se queriam atingir em 1910 já estavam alcançados em 1915. Paralelamente, com a lei da

separação e a lei do registo civil definidas, faltava definir mentalidades, que travavam por vezes

o cumprimento destas leis. Pretendia-se continuar no combate ao «clericalismo e o fanatismo

23

Manuel de Azevedo, Subsídios para a história do registo civil. Lisboa: s. n., 1985, p. 7 24

Luís Gonçalves Vaz, A Associação do Registo Civil e Livre Pensamento, Lisboa, s. n., 1999, p. 23 25

Luís Vaz, op. cit., p. 23 e Manuel de Azevedo, op. cit.., p. 7 26

Luís Vaz, op. cit., p. 23 e Manuel de Azevedo, op. cit.., p. 25 27

ADL, Associação do Registo Civil, caixa 6, livro 1 e 2

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14

religioso, em prol do livre pensamento»28

. Daí o destaque que é dado à formação da população

pelas escolas, conferências e sessões de propaganda, ligadas ao registo civil e ao livre

pensamento. É com este novo rumo que a associação altera novamente a sua denominação em

1915 para Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento.

A acção de propaganda movida por esta associação é um dos seus mais importantes e

diversificados campos de acção. Esta passava pela promoção de diversas conferências

formativas, pela publicação de algumas destas conferências, pela criação de periódicos

informativos/boletins29

, pela organização de manifestações e sessões comemorativas, pela

colaboração com a imprensa... Começando pelas conferências e colóquios, estes eram muitas

vezes organizados em colaboração com outras associações e instituições que cediam os seus

espaços30

para a sua realização. São vastos os temas destas conferências, ainda que se foquem na

separação da Igreja do Estado e do Livre Pensamento. O seu número também era elevado, ideia

que perpassa ao corrermos alguns jornais coevos, que davam conta dos dias, horas e locais em

que estas ocorreriam. Apenas como exemplo destaco a conferência A Cremação de Cadáveres,

apresentada por Magalhães Lima em 191231

. Esta conferência pretendia claramente despertar a

população para os benefícios da cremação, para o problema do espaço nos cemitérios, para os

benefícios que esta poderia trazer para a saúde pública, tentando fazer com que estes argumentos

se sobrepusessem aos ditos irracionais da religião católica, que negava a cremação por

pressupostos religiosos. Este assunto foi sobejamente discutido e divulgado por esta associação

não só pela impressão desta conferência, mas pela publicação de outros textos explicativos em

boletins e jornais.

Em relação às manifestações e sessões comemorativas, a Associação do Registo civil

intensifica-as por alturas festivas, como o seu aniversário de existência, ou a promulgação de leis

e seu aniversário, ou ainda o apoio a determinada posição e acção de membros do governo.

Assim, percebemos que as suas manifestações tinham uma componente de celebração,

mas também que havia muitas vezes uma motivação pela afirmação anticlerical, “pró” livre

pensamento. Este é o caso da manifestação anticlerical de 2 de Agosto de 1909 promovida pela

Junta Liberal, mas apoiada pela Associação do Registo Civil, ou a manifestação anticlerical de

14 de Janeiro de 1912, esta já organizada pela Associação do Registo Civil de apoio ao ministro

da Justiça, António Maceira.

28

«Igreja, Igrejas e Culto», in Nova História Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. XI, Da

Monarquia para a República. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 492 29

Manuel de Azevedo faz menção ao Almanaque do Registo Civil; e ao boletim mensal O Livre Pensamento.

Manuel de Azevedo, op. cit.., p. 16 30

É o caso dos «Centros Escolares Republicanos, os Grémios de Instrução Liberal, as Cantinas Económicas, as

Juntas Paroquiais.». Luís Vaz, op. cit., p. 175 31

Magalhães Lima, A cremação de cadáveres: conferência realisada na Associação do Registo civil no dia 21 de

Maio de 1912. Lisboa: Imp.Lucas, 1912

Page 15: História do Registro Civil em Portugal - JOANA TORRES

15

Perpassando todas estas movimentações de propaganda da Associação do Registo Civil,

estava a imprensa, que dava voz aos eventos que a associação ia desenvolvendo, mas também

aos seus comunicados32

. Apesar de não podermos diminuir a energia e vitalidade desta

associação, não devemos igualmente subvalorizar o papel e a força da imprensa, que potenciava

a uma maior escala todas as acções da Associação do Registo Civil.

Apesar de muito mais se poder mostrar sobre a Associação do Registo Civil, o principal a

reter é que, de facto, esta associação teve um papel importante na difusão de novas ideias,

ligadas à compreensão da essencialidade da promulgação da lei do registo civil obrigatório, mas

que vão muito mais além desta última. No fundo, a promulgação desta lei era o seu ponto de

chegada, mas simultaneamente de partida, isto é, o registo civil obrigatório era um grande

objectivo a conquistar pela difusão de uma nova ideia de Estado e sociedade descrentes, sendo ao

mesmo tempo um veículo de desconexão do Estado da Igreja e do cidadão do cristão.

Por fim, um pequeno comentário de Eduardo Pinto33

que corrobora esta eficácia da

actuação da Associação do Registo Civil:

Manifestações e reacções de apoio e contra a lei do Registo Civil. A busca de um equilíbrio.

A lei do registo civil era bastante discutida e polarizada nos sentimentos que despertava,

como já pudemos ver nos Antecedentes deste trabalho. Ora, no final do século XIX e no

princípio do século XX, estes sentimentos foram crescendo de visibilidade, em grande parte pela

adesão de muitos às ideias republicanas, que cada vez mais faziam sombra a um rei acusado de

não desenvolver o país, de não defender os seus interesses (lembremo-nos do ultimato) e de

alimentar um parlamento corrupto.

Após o regicídio, e com o golpe de Estado de 5 de Outubro de 1910, o país passava a ser

governado por um Governo Republicano, que pela sua matriz ideológica impunha mudanças

profundas. A República pressupunha uma igualdade entre todos os cidadãos, independentemente

das suas características individuais; procurava a afirmação de um Estado central e conhecedor

dos cidadãos que compõem o seu país, de modo a assegurar uma boa governação, pela defesa

dos seus direitos e pela obrigação do cumprimento dos seus deveres.

Assim, para cumprir este plano ideológico e governativo, o Estado tinha que se elevar em

relação à Igreja católica, antiga religião oficial da monarquia portuguesa, retirando-lhe poderes

32

Comunicado na Republica Portugueza, 11 de Abril de 1911. 33

Eduardo Pinto, Guia do registo civil… Lisboa: Tipographya do Comércio, 1897, p.4

«Que diga a egreja catholica quanto tem soffrido e está soffrendo com a bella propaganda

posta em pratica pela associação propagadora da lei do registo civil e suas congeneres.»

Page 16: História do Registro Civil em Portugal - JOANA TORRES

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que julgava do foro temporal, e que, portanto, não lhe deveriam pertencer. Na realidade, o

Governo Provisório mais não quis que relegar a Igreja para o lugar de qualquer outra religião,

sustendo-a no campo do íntimo de cada cidadão, sem “querer” olhar para a realidade de que

praticamente todo o país professava a fé católica.

Para além disso, Portugal era neste período um país extremamente rural, onde as notícias

corriam a um ritmo lento, e onde as ideias que perduravam eram as do padre da paróquia, da

aldeia, que se impunha como a figura mais sábia e mais ligada à divindade que todos haviam que

temer. De facto, o mundo rural esteve sempre um pouco à margem dos grandes acontecimentos

políticos que ocorriam nas maiores cidades do país. Aquele limitava-se a assimilar e adaptar-se a

uma realidade que não lhes tinha sido proposta, que não tinham escolhido e que muitas vezes não

sabiam sequer bem o que era. Deste modo, se alterações ocorrem, como esta mudança de regime

em 1910, o impacto não é imediato, pois não é vivenciado, mas escutado e comentado apenas.

Além disso, muitas vezes, os padres eram os que transmitiam estas novas, todas elas marcadas

pela sua visão do acontecimento e, dessa maneira, influenciando o modo como ocorria a sua

recepção: por vezes positiva, por vezes negativa.

É neste contexto que temos de tomar as manifestações de apoio e de contestação da lei do

registo civil, e com elas a lei do divórcio e da família (deixemos de fora a lei da separação para

não aumentar o nosso objecto de estudo), que vinham criar o casamento e o divórcio, para além

de introduzirem a obrigatoriedade de registar um nascimento ou óbito, sem que para isso fossem

necessários os sacramentos católicos.

No caso dos defensores da lei do registo civil, os seus principais argumentos prendiam-se

com a criação dos mesmos direitos para não católicos e católicos, dando-lhes a possibilidade de

“existir” enquanto cidadãos portugueses, com a ascensão do Estado enquanto sustentáculo

governativo, económico-financeiro, educativo e sócio-cultural, e, em última instância, com a

liberdade de cada cidadão. Acerca desta matéria, analisemos o artigo de Loff de Vasconcellos,

n’O Século, 9 de Setembro de 1910:

Do outro lado estava a Igreja católica que se sentia de repente esquecida, bem como os

princípios que defendia e que identificavam em boa parte a sociedade portuguesa, antes da

«O estado civil dos cidadãos é uma propriedade da nação e é, portanto, sob a égide do

Estado que elle deve ser regulado. A sociedade é interessada tambem n’aquelles tres

importantissimos factos, porque d’elles dependem a nacionalidade do cidadão, a

constituição da familia e o “rompimento dos laços que ligavam o homem á sociedade,

cessando de viver”(...) O poder ecclesiastico tem de ser considerado um intruso em

todos os actos.» «Então, collocando-se catholicos e não catholicos sob o mesmo pé de

egualdade, a lei será cumprida por todos, sem levantar clamores que a injustiça e as

desegualdades levantam(…)»

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implantação da República. O casamento como união contratual, o divórcio passível nesta nova

concepção de união, o encerramento dos assentos paroquiais, foram todos eles factores que

criaram um sentimento de repulsa do novo regime. Deus ia-se cada vez mais afastando do

imaginário patente aos mais importantes momentos do indivíduo: o baptismo, o matrimónio, o

funeral, eram agora secundários perante o registo do nascimento, do casamento, do óbito. O

divórcio como que passava a desautorizar um “mandamento” divino; a boca de Deus estava

tapada, ou melhor, os ouvidos do Homem fecharam-se à voz divina; e com ela se calava a Igreja.

O padre Gouveia Pinto numa carta ao clero português34

considerava que estas medidas

eram «implacáveis» e «humilhantes», dizendo que o Estado era «radical» e «anti-religioso», que

«opprime um culto – o culto da grande maioria da nação – apenas com o fim de nivelar com elle

os outros cultos… Não é obra de perseguição; é obra de liberdade…». Este autor no seguimento

do que aqui está transcrito, continua afirmando que o Estado quer controlar a Igreja, não só pela

limitação dos locais de culto, mas também pelo impedimento que faz da Igreja receber doações

de qualquer tipo.

Este aspecto monetário será de cabal importância, pois é uma das razões pela qual a

Igreja não vê com bons olhos o registo civil. Isto acontece, porque o registo civil tinha que ser

pago, como o eram os registos paroquiais; e passando aquele a ser obrigatório, os católicos viam-

se obrigados a despender o dobro do dinheiro. Ora, assim sendo, não havendo esta possibilidade

financeira de grande parte da população, a prejudicada nos seus rendimentos e ganhos seria a

Igreja, pois estes seriam indispensáveis à manutenção de certas paróquias mais desfavorecidas.

Muitos padres, além de Gouveia Pinto, se insurgiram contra estas medidas,

nomeadamente pela Pastoral de 22 de Fevereiro de 1911 (elaborada a 24 de Dezembro de 1910),

que era mandada ler nas missas de domingo, declarando as medidas do Governo Provisório

como opressoras da Igreja, que rompiam com os seus direitos. Esta postura activa e

intervencionista da Igreja valeu-lhe duras críticas e sanções do ministro da justiça, Afonso Costa,

que interditou a leitura da Pastoral dos bispos, impondo o beneplácito.

Mas estas não foram as únicas críticas tecidas à conduta, às posições ideológicas e às

críticas que a Igreja ia fazendo à lei do registo civil obrigatório, à lei da família ou à lei do

divórcio. Senão vejamos:

34

F. Gouveia Pinto, A Lei da Separação ao Clero Católico. Porto: Typ. Fonseca & Filho, 1911

«Blasfema o clero que o casamento civil é uma mancebia!... Mente!... O casamento feito pela lei do registo civil tem o mesmo valor, para todos os effeitos, que o realisado pela lei canonica. São ambas as fórmas leis do paiz não

postergadas. Rosna também o clericalismo que um cadaver enterrado pela fórma civil se eguala a um cão!(...) Chegados ao cemiterio lá vão os cadaveres de rebolão para a valla comum embrulhados, com o seu catholicismo apostolico, n’uma serapilheira nojenta cosida a pontos de barbante!!! E atrevem-se estes senhores a apregoar caridade, amor e carinho?!...»

Guia do registo civil, pp.4-5

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Este é um texto forte e altamente crítico à postura da Igreja. Questiona o seu sentido de

caridade, de humildade, no fundo, chama-a de hipócrita, já que esta apenas olhava para a

formalidade e cumprimento dos preceitos do direito canónico, ignorando os sentimentos

interiores que deviam acompanhá-los. Para além disso, responde aos argumentos da Igreja

voltando para o Estado a grande responsabilidade sobre estes assuntos: não devia ser a Igreja a

validar estes eventos, mas o Estado.

Notamos até agora que se deram movimentos de ataque entre católicos e republicanos; no

entanto, estes não mostram toda a dimensão destes embates. Maria Lúcia Moura enuncia alguns

casos mais localizados, em zonas periféricas em relação a Lisboa, de situações de conflito entre

párocos e oficiais do registo civil, entre populares e párocos, e populares e oficiais do registo35

.

Apesar de tudo, gradualmente se começam a evidenciar vozes que impõem algum

equilíbrio entre os interesses eclesiásticos e da República Portuguesa. O próprio ministro Afonso

Costa que afirmou: «Está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da

medida será tão salutar que em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o

catolicismo»36

; agora alterava essa postura, provavelmente em busca de um sossego e paz social

que não havia conseguido com uma frase tão anti-católica, e que teria despertado ainda mais os

ódios da Igreja.

Sem dúvida que há uma alteração, que é acompanhada por vozes moderadas que iam

ganhando o seu espaço, por exactamente defenderem o Estado laico, o registo civil, mas

35

Maria Moura, op. cit., pp. 533-544 36

Citação do periódico O Tempo, nº12, de 27 de Março de 1911, in J. A. Moreira Almeida (1988)

«São passados cinco anos de República! (…) Organizou-se um combate contra a República, ainda antes de aparecer a Lei da Separação. Essa Lei tem quase cinco anos e o que é facto é que as igrejas funcionam como antigamente. (…) O

Estado republicano, apesar de não ter religião sua, é respeitador e é responsável pelo respeito de todos os cidadãos, de todos os habitantes do território português, pelas convicções religiosas de cada um, quer seja a convicção religiosa católica, que é a que vem de mais longe, quer seja outra qualquer.»

(Afonso Costa. Discursos parlamentares 1914-1926, pp.116-117

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acreditarem na não ofensa da religião que cada um professa. Os textos de Braz da Serra37

e de

Loff de Vasconcellos38

, são exemplos dessas posições de “centro” num tempo repleto de

extremos.

Estes dois textos reflectem esta conciliação, sem no entanto esconderem que a separação

da Igreja do Estado é fundamental e inquestionável, e que o registo civil não é uma função da

Igreja, devendo esta abdicar dos benefícios que deles retirava, para o transmitir ao Estado.

Não é certo que este equilíbrio que se busca se encontre e exista sempre, mas é uma

situação que tende a efectivar-se, pelo menos no domínio do registo civil. Com a passagem

definitiva de todos os livros de assento paroquiais para os estabelecimentos do registo civil e

percebendo a Igreja a não inversão desta certeza, a situação vai-se normalizando e o registo civil

vai, com o tempo, fazer parte de um hábito da população. Não é um processo rápido, mas vai

ocorrendo paulatinamente.

A República Portuguesa estava implantada. O Registo Civil obrigatório era uma

realidade.

37

ADL, Associação do Registo Civil, caixa 7, livro s/ nº (1913) 38

ADL, Associação do Registo Civil, caixa 6, livro 1

«Ora a verdadeira liberdade de pensamento em que consiste? Em deixar a cada um o criterio que melhor lhe pareça em materia religiosa. Eu posso ser livre pensador acreditando em Deus e aceitando como boa qualquer especie de moral das religiões que conheço.(...) A religiosidade ou a irreligiosidade pertencem ao fôro intimo das consciencias.(…) E sobre tudo tenhâmos muita conta em ir preparando as futuras gerações para um [sic] éra de verdadeira paz social pela liberdade e pela fraternidade entre todos os homens.»

A Verdade de Thomar, 21 de setembro de 1913

« Diz-se que, em Portugal, o registo civil significa uma hostilidade á religião catholica: e assim é, com effeito, se considerarmos, como muitos ainda consideram, que hostilizar o clericalismo é offender a religião.(…) Esta instituição affecta, effectivamente, grandemente os interesses moraes, politicos e economicos

do clero portuguez: na ordem moral, porque lhe subtrae a influencia derivada da sua intervenção em actos importantes da vida do cidadão; na ordem politica, porque lhe cerceia, evidentemente, por aquelle facto, um numero consideravel de votos no suffragio popular; e, na ordem economica, porque com a instituição obrigatoria do registo civil, lá se lhe vae embora uma grande parte das benesses e dos pingues rendimentos provenientes de taes actos, embora alguns d’elles possam ser repetidos na egreja, pelos catholicos convictos.(…)

O Século, 13 de Setembro de 1910