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Historia Dos Treze Honore de Balzac

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  • HISTRIA DOS TREZE

  • Titulo original: Histoire des Treize: Ferragus, La duchesse de Langeais, La fille auxyeux dorEstes livros foram publicados separadamente na Coleo L&PM Pocket.

    Traduo: Ferragus (William Lagos), A duquesa de Langeais (Paulo Neves) e A menina dos olhos de ouro (Ilana Heineberg)Capa: Ivan Pinheiro Machado sobre gravura de Balzac, 1840, (Rue des Archives). Reviso: Renato Deitos, Bianca Pasqualini e Larissa Roso

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    B158h Balzac, Honor de, 1799-1850 Histrias dos treze [recurso eletrnico] : Ferragus, A duquesa de Langeais, A menina dos olhos de ouro / Honor de Balzac ; [apresentao e introduo de Ivan Pinheiro Machado ; tradutores William Lagos, Paulo Neves e Ilana Heineberg]. - Porto Alegre, RS : L&PM, 2011. recurso digital Traduo de: Histoire des Treize: Ferragus, La duchesse de Langeais, La fille aux yeux dor Apndice: Cronologia A comdia humana. Estudos de costumes. Cenas da vida parisiense Formato: ePub ISBN 978-85-254-0854-9 (recurso eletrnico) 1. Romance francs. 2. Livros eletrnicos. I. Lagos, William. II. Neves, Paulo. III. Heineberg,Ilana, 1975-. IV. Ttulo.

    10-6334. CDD: 843 CDU: 821.133.1-3

    das tradues, L&PM Editores, 2008

  • Todos os direitos desta edio reservados a Newtec EditoresRua Comendador Coruja, 326 Floresta 90.220-180 Porto Alegre RS Brasil / Fone: 51.3225.5777 Fax: 51.3221-5380Pedidos & Depto. Comercial: [email protected] conosco: [email protected]

  • Apresentao

    Comdia humanaA comdia humana o ttulo geral que d unidade obra mxima de Honor de Balzac e

    composta de 89 romances, novelas e histrias curtas.[1]Este enorme painel do sculo XIX foiordenado pelo autor em trs partes: Estudos de costumes, Estudos analticos e Estudosfilosficos. A maior das partes, Estudos de costumes, com 66 ttulos, subdivide-se em seissries temticas: Cenas da vida privada, Cenas da vida provinciana, Cenas da vida parisiense,Cenas da vida poltica, Cenas da vida militar e Cenas da vida rural.

    Trata-se de um monumental conjunto de histrias, considerado de forma unnime uma dasmais importantes realizaes da literatura mundial em todos os tempos. Cerca de 2,5 milpersonagens se movimentam pelos vrios livros de A comdia humana, ora como protagonistas,ora como coadjuvantes. Genial observador do seu tempo, Balzac soube como ningum captar oesprito do sculo XIX. A Frana, os franceses e a Europa no perodo entre a RevoluoFrancesa e a Restaurao tm nele um pintor magnfico e preciso. Friedrich Engels, numa carta aKarl Marx, disse: Aprendi mais em Balzac sobre a sociedade francesa da primeira metade dosculo, inclusive nos seus pormenores econmicos (por exemplo, a redistribuio da propriedadereal e pessoal depois da Revoluo), do que em todos os livros dos historiadores, economistas eestatsticos da poca, todos juntos.

    Clssicos absolutos da literatura mundial como Iluses perdidas, Eugnie Grandet, O lriodo vale, O pai Goriot, Ferragus, Beatriz, A vendeta, Um episdio do terror, A pele de onagro,Mulher de trinta anos, A fisiologia do casamento, entre tantos outros, combinam-se com dezenasde histrias nem to clebres, mas nem por isso menos deliciosas ou reveladoras. Tido como oinventor do romance moderno, Balzac deu tal dimenso aos seus personagens que j no sculoXIX mereceu do crtico literrio e historiador francs Hippolyte Taine a seguinte observao:Como William Shakespeare, Balzac o maior repositrio de documentos que possumos sobre anatureza humana.

    Balzac nasceu em Tours em 20 de maio de 1799, em uma famlia pequeno-burguesa que seemancipara economicamente a partir das oportunidades geradas pela sociedade ps-RevoluoFrancesa. Com dezenove anos convenceu seus pais a sustentarem-no em Paris na tentativa detornar-se um grande escritor. Obcecado pela idia da glria literria e da fortuna, foi para acapital francesa em busca de peridicos e editoras que se dispusessem a publicar suas histrias num momento em que Paris se preparava para a poca de ouro do romance-folhetim,fervilhando em meio proliferao de jornais e revistas. Consciente da necessidade doaprendizado e da sua prpria falta de experincia e tcnica, comeou publicando sobpseudnimos exticos, como Lord Rhoone e Horace de Saint-Aubin. Escrevia histrias deaventuras, romances policialescos, aucarados, folhetins baratos, qualquer coisa que lhe desse osustento. Obstinado com seu futuro, evitava usar o seu verdadeiro nome para dar autoria a obras

  • que considerava (e de fato eram) menores. Em 1829, lanou o primeiro livro a ostentar seu nomena capa A Bretanha em 1800 , um romance histrico em que tentava seguir o estilod e Sir Walter Scott (1771-1832), o grande romancista escocs autor de romances histricosclssicos, como Ivanho. Nesse momento, Balzac sente que comeou um grande projeto literrioe lana-se fervorosamente na sua execuo. Paralelamente enorme produo que detona a partirde 1830, seus delrios de grandeza levam-no a bolar negcios que vo desde grficas e revistasat minas de prata. Mas fracassa como homem de negcios. Falido e endividado, reage criandoobras-primas para pagar seus credores numa destrutiva jornada de trabalho de at dezoito horasdirias. Durmo s seis da tarde e acordo meia-noite, s vezes passo 48 horas sem dormir...,queixava-se em cartas aos amigos. Nesse ritmo alucinante, ele produziu alguns de seus livrosmais conhecidos e despontou para a fama e para a glria. Em 1833, teve a anteviso do conjuntode sua obra e passou a formar uma grande sociedade, com famlias, cortess, nobres,burgueses, notrios, personagens de bom ou mau carter, vigaristas, camponeses, homenshonrados, avarentos, enfim, uma enorme galeria de tipos que se cruzariam em vrias histriasdiferentes sob o ttulo geral de A comdia humana. Convicto da importncia que representava aidia de unidade para todos os seus romances, escreveu sua irm, comemorando: Saudai-me,pois estou seriamente na iminncia de tornar-me um gnio. Vale ressaltar que nesta imensagaleria de tipos, Balzac criou um espetacular conjunto de personagens femininos que comodizem unanimemente seus bigrafos e crticos tem uma dimenso muito maior do que o conjuntodos seus personagens masculinos.

    Aos 47 anos, massacrado pelo trabalho, pela pssima alimentao e pelo tormento dasdvidas que no o abandonaram pela vida inteira, ainda que com projetos e esboos para pelomenos mais vinte romances, j no escrevia mais. Consagrado e reconhecido como um grandeescritor, havia construdo em frenticos dezoito anos este monumento com quase uma centena delivros. Morreu em 18 de agosto de 1850, aos 51 anos, pouco depois de ter casado com acondessa polonesa ve Hanska, o grande amor da sua vida. O grande intelectual Paulo Rnai(1907-1992), escritor, tradutor, crtico e coordenador da publicao de A comdia humana noBrasil, nas dcadas de 1940 e 1950, escreveu em seu ensaio biogrfico A vida de Balzac:Acabamos por ter a impresso de haver nele um velho conhecido, quase que um membro dafamlia e ao mesmo tempo compreendemos cada vez menos seu talento, esta monstruosidadeque o diferencia dos outros homens.[2]

    A verdade que a obra de Balzac sobreviveu ao autor, s suas idiossincrasias, vaidades,aos seus desastres financeiros e amorosos. Sua mente prodigiosa concebeu um mundo muitomaior do que os seus contemporneos alcanavam. E sua obra projetou-se no tempo como um dosmomentos mais preciosos da literatura universal. Se Balzac nascesse de novo dois sculosdepois, ele veria que o ltimo pargrafo do seu prefcio para A comdia humana, longe de serum exerccio de vaidade, era uma profecia:

    A imensido de um projeto que abarca a um s tempo a histria e a crtica social, a

  • anlise de seus males e a discusso de seus princpios autoriza-me, creio, a dar minhaobra o ttulo que ela tem hoje: A comdia humana. ambicioso? justo? o que, uma vezterminada a obra, o pblico decidir.

    Ivan Pinheiro Machado

    [1]. A idia de Balzac era que A comdia humana tivesse 137 ttulos, segundo seu Catlogo do que conter A comdia humana,de 1845. Deixou de fora, de sua autoria, apenas Les cent contes drolatiques , vrios ensaios e artigos, alm de muitas peasficcionais sob pseudnimo e esboos que no foram concludos.

    [2]. RNAI, Paulo. A vida de Balzac. In: BALZAC, Honor de. A comdia humana. Vol. 1. Porto Alegre: Globo, 1940. Rnaicoordenou, prefaciou e executou as notas de todos os volumes publicados pela Editora Globo.

  • FERRAGUS,O CHEFE DOS DEVORADORES

  • INTRODUO

    Crimes e intrigas numa Paris assoladapor tragdias e paixes

    Balzac denominou Histria dos Treze a trilogia composta pelos romances Ferragus, Aduquesa de Langeais e A menina dos olhos de ouro. Estes livros so completamente autnomos,com histrias e personagens totalmente distintos. Em comum, apenas a existncia de umasociedade secreta, Os Treze Devoradores, espcie de seita composta por treze amigos, cujoobjetivo de se ajudarem mutuamente e secretamente , colocando a amizade acima dequalquer preceito moral e at mesmo da lei. Esse tipo de sociedade, quase um ideal romntico,ocupava o imaginrio do pblico parisiense em meados do sculo XIX, e as histrias envolvendoseitas secretas tinham enorme sucesso na poca. Balzac, muito mais do que seguir uma moda,criou trs obras-primas. No prefcio a Ferragus, Balzac valoriza a questo das sociedadessecretas e, especialmente, a sociedade Os Treze Devoradores. Ferragus o chefe da seita e umdos personagens principais do romance. A presena da sociedade constante, quer pelaparticipao do protagonista, quer pela terrvel perseguio movida pelos confrades ao ingnuobaro de Maulincour. Em A duquesa de Langeais, a participao dos Devoradores localizada ebem menos evidente do que em Ferragus, e subentende-se que Montriveau um dos membros daseita. O mesmo ocorre no terceiro romance da trilogia, A menina dos olhos de ouro; Balzac faz oleitor acreditar que o protagonista, Henri de Marsay, tem amigos que o ajudam sempre eincondicionalmente. Inclusive o prprio Ferragus reaparece numa cena rpida ao final de Amenina dos olhos de ouro.

    Na verdade, Balzac, com seu gnio marqueteiro, procurou chamar a ateno para os seuslivros ao dar vazo a uma moda da poca. Consta do folclore balzaquiano que ele prprio, comalguns amigos, fundou sua sociedade secreta em meados da dcada de 1830. Batizada comoCheval Rouge, essa sociedade (que pouco durou e nada realizou de marcante) destinava-se ainfluir na imprensa e na crtica literria. Ferragus foi publicado em 1833 em formato de folhetimdirio pela Revue de Paris, atingindo um xito impressionante, a ponto de mobilizar os milharesde leitores na expectativa de cada novo captulo. Note-se que neste livro Balzac j vislumbrava apossibilidade de construir uma obra que no seu conjunto formasse um enorme painel dasociedade do seu tempo. E no por acaso que Ferragus iniciou a srie de romances e novelasclassificadas por ele como Cenas da vida parisiense. O escritor francs Blaise Cendrars (1887-

  • 1961), em prefcio a uma edio de 1949, escreveu: Ferragus o prottipo do romancebalzaquiano e, cronologicamente, o primeiro dos seus grandes livros. Desde a primeira pginaBalzac esboa o plano psicolgico, anatmico, fsico, mecnico e econmico desta Parismoderna que ocupou tanto espao em sua obra, no cessando de crescer como um monstruosotumor, cidade tentacular que impregna inconscientemente e suga seus habitantes, patologia estaque Balzac acompanhou e soube diagnosticar como poucos. Ao recomendar ao jovem aspirantea escritor Raymond Radiguet a leitura urgente de Balzac, sugeria que comeasse exatamentepor este livro.

    Neste magnfico romance, considerado quase como um romance noir, um policial de tramacomplicada, vemos Balzac em grande estilo, combinando crimes, paixes violentas, intrigas esociedades secretas. Com um suspense sempre crescente, Ferragus apresenta poderosospersonagens da galeria balzaquiana, como madame Desmarets e seu marido, o devotado Jules, oimpulsivo e apaixonado baro de Maulincour, alm do prprio Ferragus, o misteriosopersonagem que protagoniza as inmeras peripcias do romance. Como pano de fundo, como bemdisse Blaise Cendrars, a presena impressionante da cidade de Paris quase como um ser vivo,interagindo com os personagens por meio das suas sombras, suas ruelas sinistras e enlameadas eseus fiacres soturnos que cruzam as madrugadas.

    I.P.M.

  • Ferragus,o chefe dos devoradores

    A Hector Berlioz[1]

    [1] . O famoso compositor Hector Berlioz (1803-1869) era amigo de Balzac. Na poca tinha trinta anos. Dizia-se que ambospretendiam transformar Ferragus em um libreto de pera, mas o projeto no foi adiante porque Berlioz iniciou Les Troyens , talveza mais longa das peras j escrita. (N.T.)

  • PREFCIOHonor de Balzac

    Havia em Paris, durante a poca do Imprio, treze homens igualmente movidos pelosmesmos sentimentos, dotados de uma grande energia que lhes possibilitava permanecerem fiisao mesmo pensamento, igualmente honrados entre si, de tal modo que seriam incapazes de setrarem uns aos outros, mesmo quando seus interesses se achavam em campos opostos; eram, aomesmo tempo, habilidosos politicamente para dissimular os sagrados laos que os uniam, fortes osuficiente para enfrentar todas as leis, suficientemente ousados para empreender tudo e felizes obastante para quase sempre alcanar sucesso em seus desgnios; haviam corrido os maioresperigos, mas calavam suas derrotas; eram inacessveis ao medo e no tremeram nem diante dosprncipes, nem frente ao carrasco, nem perante a inocncia; aceitavam-se inteiramente uns aosoutros, tais como eram, sem dar ateno aos preconceitos sociais; sem dvida, eram criminosos,mas certamente homens notveis por algumas dessas qualidades que se encontram nos grandeshomens, e haviam sido escolhidos entre os melhores. Enfim, para que nada faltasse poesiasombria e misteriosa desta histria, esses treze homens permaneceram desconhecidos, ainda quetenham posto em prtica as idias mais bizarras que sugerem imaginao a fantstica pujanaatribuda falsamente a Manfred, a Fausto e a Melmoth;[1] e todos hoje em dia se encontramdomados, ou pelo menos dispersos. Colocaram-se pacificamente sob o jugo das leis civis, domesmo modo que Morgan,[2] o Aquiles dos piratas, transformou-se de rapinante em colonotranqilo e gozou sem o menor remorso, luz da lareira domstica, os milhes reunidos entre osangue derramado, claridade vermelha dos incndios.

    Depois da morte de Napoleo, um acontecimento que o autor no deve mencionar aindarompeu os laos dessa vida secreta e to curiosa como o mais negro dos romances da sra.Radcliffe.[3] A permisso bastante estranha para relatar sua maneira algumas das aventuraspelas quais esses homens passaram, desde que respeitando algumas convenes, s lhe foi dadarecentemente por um desses heris annimos pelos quais a sociedade inteira foi inadvertidamentesubjugada e em quem ele pareceu descobrir um vago desejo de celebridade.

    Esse homem, aparentemente ainda jovem, com cabelos louros e olhos azuis, cuja voz doce eclara parecia anunciar uma alma feminina, tinha um rosto plido e maneiras misteriosas,conversava com grande amabilidade, fingia ter apenas quarenta anos e poderia pertencer s

  • classes sociais mais elevadas. O nome que ele usava parecia ser um nome suposto; sua pessoaera desconhecida na sociedade elegante. Quem ele? Ningum sabe.

    Talvez, ao confiar ao autor as coisas extraordinrias que revelou, o desconhecido quisessev-las reproduzidas de alguma forma e alegrar-se com as emoes que fariam nascer no coraodas multides um sentimento semelhante ao que animava Macpherson[4] quando o nome deOssian, sua criatura, era pronunciado em todas as lnguas. E essa era, certamente, para oadvogado escocs, uma das emoes mais vivas que sentiu, uma das sensaes mais raras, pelomenos, que algum possa provocar em si mesmo. E permanecer assim annimo no uma obra degnio? Escrever O itinerrio de Paris a Jerusalm[5] tomar parte na glria humana de umsculo inteiro; mas dar a seu prprio pas um novo Homero no o mesmo que usurpar umatributo divino?

    O autor conhece demasiadamente bem as leis da narrativa para ignorar os compromissosque este curto prefcio o leva a assumir; mas ele tambm conhece o bastante da Histria dosTreze para ter certeza de jamais se encontrar abaixo do interesse que deve inspirar esteprograma. Dramas com sabor de sangue, comdias cheias de terror, romances em que rolamcabeas secretamente cortadas, tudo isso lhe foi confiado. Se algum leitor no estivesse saciadodos horrores friamente servidos ao pblico nos ltimos tempos, o autor poderia lhe revelarcalmas atrocidades, tragdias familiares surpreendentes, bastando que o desejo de conhec-laslhe fosse manifestado. Mas ele escolheu as aventuras mais suaves, aquelas em que cenas puras sesucedem tempestade das paixes e nas quais a mulher irradia virtudes e beleza. Para a honrados Treze, episdios desse tipo tambm se encontram em sua histria, que talvez um dia tenha ahonra de ser considerada no mesmo p das aventuras de piratas, essa gente parte, tocuriosamente enrgica, to atraente apesar de seus crimes.

    Um escritor deve evitar converter seus relatos, quando eles descrevem fatos verdadeiros,em uma espcie de caixa de surpresas ou fazer os leitores passearem, maneira de algunsromancistas, durante quatro volumes, de subterrneo em subterrneo, at mostrar a eles umcadver ressequido e dizer, guisa de concluso, que esteve a lhes provocar constantemente omedo de uma porta oculta por detrs de alguma tapearia ou de um morto abandonado pordescuido sob as tbuas do assoalho. Apesar de sua averso aos prefcios, o autor achouconveniente introduzir estas palavras no incio deste fragmento. Ferragus um primeiro episdioque se prende por laos invisveis Histria dos Treze , cuja energia naturalmente adquirida anica coisa que pode explicar alguns de seus aspectos aparentemente sobrenaturais. Ainda queseja permitido aos narradores ostentar uma espcie de vaidade literria, ao se tornaremhistoriadores eles devem renunciar aos benefcios que produz a aparente estranheza dos ttulossobre os quais se fundamentam hoje os breves sucessos. Desse modo, o autor explicar aqui,sucintamente, as razes que o obrigaram a aceitar ttulos aparentemente pouco naturais.

    Ferragus , segundo um velho costume, um nome adotado por um dos chefes dosDevoradores. No dia de sua eleio, esses chefes decidem continuar aquela, dentre as dinastiasdevoradorescas, cujo nome mais lhe agrada, do mesmo modo que fazem os papas no incio de

  • seus reinados, com relao s dinastias pontifcias. Assim, os Devoradores tm Trempe-la-SoupeIX [Tempera-Sopa], Ferragus XXII, Tutanus XIII ou Masche-Fer IV [Masca-Ferro], do mesmomodo que a Igreja tem os seus Clemente XIV, Gregrio IX, Jlio II, Alexandre VI etc. Tudo bem,mas o que so os Devoradores? Dvorants ou Devoradores o nome de uma das tribos deCompanheiros ou Compagnons que surgiram da grande associao mstica formada entre osoperrios da Cristandade com o objetivo de reconstruir o templo de Jerusalm. A Companhia,ou a Compagnonnage, ainda floresce entre o povo da Frana. Suas tradies, ainda poderosasem crebros pouco esclarecidos de pessoas que no tm instruo suficiente para quebrar seusjuramentos, poderiam servir para poderosas empresas, se algum gnio conseguisse assumir ocontrole destas diversas sociedades. De fato, todos os seus instrumentos so quase cegos; nelas,de cidade em cidade, existe para os Companheiros, desde tempos imemoriais, uma Obade, umaespcie de hospedaria mantida por uma Me, uma velha meio bomia, que no tem nada a perdere que sabe de tudo o que se passa na regio, devotada, seja por medo, seja em conseqncia deum longo hbito, tribo que ela aloja e alimenta. Enfim, esta gente muda, mas permanecesubmetida a costumes imutveis e pode ter olhos em todos os lugares e executar por toda parteuma ordem sem discutir, porque o mais velho dos Companheiros ainda se encontra em uma idadeem que se pode acreditar em alguma coisa. Alis, o corpo inteiro professa doutrinas muitoverdadeiras, bastante misteriosas, que permitem eletrizar patrioticamente todos os adeptos, desdeque elas sejam minimamente desenvolvidas. Isso porque a fidelidade dos Companheiros s suasleis to apaixonada que as diversas tribos travam entre si combates sangrentos s para defenderalgumas questes de princpios. Felizmente, para a ordem pblica atual, quando um Devorador ambicioso, ele constri manses, faz fortuna e abandona a Companhia. Haveria muitas coisascuriosas a revelar sobre os Companheiros do Dever, os rivais dos Devoradores, e sobre todas asdiferentes seitas de operrios, sobre seus costumes e suas fraternidades, sobre osrelacionamentos que existem entre eles e a Maonaria; mas os detalhes ficariam deslocados sefossem includos aqui. O autor somente ajuntar que, sob a antiga monarquia, no era incomumencontrar-se um Trempe-la-Soupe a servio do Rei, contratado por 101 anos para remar em suasgals; mas de l dominando sempre sua tribo e consultado religiosamente por ela; e depois, se eleconseguisse fugir de sua tripulao de remadores, teria plena certeza de encontrar ajuda, socorroe respeito em todos os lugares. Ver seu chefe preso nas gals no significa para sua fiel tribonada mais que um desses infortnios pelos quais a Providncia responsvel, mas que nodispensa os Devoradores de obedecer ao poder criado por eles para governar sobre eles. umexlio momentneo de seu rei legtimo, mas que nem por isso deixa de ser seu rei. Eis aquiportanto, completamente dissipado, o prestgio romanesco anexado ao nome de Ferragus e ao dosDevoradores.

    Quanto aos Treze, o autor sente-se ainda fortemente apoiado sobre os detalhes destahistria quase romntica para abdicar ainda de um dos mais belos privilgios do romancista deque tem notcia e que, no Chtelet[6] da literatura, poderia ser adjudicado a alto preo e impor aopblico tantos volumes quantos lhe deu a Contempornea[7]. Todos os Treze eram homens

  • provados pela vida, tal como foi Trelawny, o amigo de Lord Byron que, segundo dizem, foi ooriginal de O corsrio; todos fatalistas, gente de coragem e de poesia, mas aborrecidos pela vidacorriqueira que levavam, conduzidos a gozos asiticos por foras que, tanto mais excessivas porse acharem adormecidas por longo tempo, se revelavam ainda mais furiosas. Certo dia, um deles,depois de haver relido A Veneza salva [8], depois de haver admirado a unio sublime de Pierre ede Jaffier, comeou a sonhar com as virtudes caractersticas daquelas pessoas que eram alijadaspara fora da ordem social, com a probidade dos condenados, com a fidelidade dos ladres entresi, com os privilgios de poder exorbitante que esses homens sabem conquistar ao confundirtodas as idias em uma s vontade. Aqui ele encontrou um homem maior que os homens. Elepresumiu que toda a sociedade deveria pertencer quelas pessoas que, devido a seu espritonatural, em razo de seus conhecimentos adquiridos e em virtude de sua fortuna, se poderiam unirem um fanatismo to clido que fundiria em um nico jato todas essas foras diferentes. A partirdesse momento, imenso em ao e intensidade, sua pujana oculta, contra a qual a ordem socialno teria defesas, venceria todos os obstculos, reuniria todas as vontades em uma s e daria acada um deles o poder diablico de todos. Esta sociedade parte dentro da sociedade e hostil sociedade, no admitindo quaisquer das idias da sociedade, no reconhecendo quaisquer desuas leis, submetendo-se to-somente conscincia de suas prprias necessidades, obedecendoapenas a seu devotamento, agiria inteiramente em favor de um nico de seus associados quandoqualquer deles reclamasse a assistncia de todos; esta vida opulenta de flibusteiros de luvasamarelas e esta unio ntima de gente superior, fria e escarninha, sorridente e reprobatria nomeio de uma sociedade falsa e mesquinha; a certeza de que tudo poderia ser dobrado por fora deum capricho, que uma vingana poderia ser urdida com habilidade, que seria possvel viver comtreze coraes; e depois, a felicidade contnua de gozar de um segredo de dio diante doshomens, de estar sempre armado contra eles e de poder retirar-se para dentro de si mesmo comuma idia superior quela que experimentavam as pessoas mais notveis; esta religio de prazere de egosmo fanatizou treze homens, que reiniciaram a Sociedade de Jesus em benefcio dodiabo. Somente isso j foi horrvel e sublime. Depois, o pacto foi firmado; e a seguir, ele durou,precisamente porque parecia ser impossvel. Houve ento em Paris treze irmos que sepertenciam mutuamente e que fingiam desconhecer-se quando em sociedade; mas que sereencontravam e se reuniam todas as noites como conspiradores, no escondendo sequer umpensamento dos outros e usando conjuntamente uma fortuna semelhante do Velho daMontanha[9]; tendo os ps em todos os sales, as mos em todos os cofres-fortes, os cotovelos narua, as cabeas sobre todas as orelhas e sem o menor escrpulo, sacrificando tudo no altar de suafantasia. Nenhum chefe os comandava, ningum podia arrogar-se tal poder; somente a paixomais viva e a circunstncia mais exigente passavam para o primeiro plano. Foram treze reisdesconhecidos, mas realmente reis e, mais do que reis, juzes e carrascos que, depois de abriremsuas prprias sendas a fim de percorrerem a sociedade de alto a baixo, desdenharam de assumirqualquer posio de mando dentro dela, porque dentro dela podiam tudo. Se o autor ficarconhecendo as causas de sua abdicao, ele as contar.

  • [1]. Personagens de Lord Byron (1788-1824), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Charles Robert Maturin (1782-1824)que tm em comum o fato de haverem concludo um pacto com potncias demonacas que lhes deram poderes sobre-humanos.(N.T.)

    [2]. Sir Henry Morgan (1635-1688), aventureiro ingls que durante cinco anos pilhou as colnias espanholas das Antilhas e daAmrica Central, sendo depois nomeado governador da ilha da Jamaica, onde terminou sua vida pacificamente. (N.T.)

    [3]. Ann Radcliffe (1764-1823): escritora inglesa, autora de romances gticos, como As memrias de Udolfo, no final dos quaistodos os acontecimentos aparentemente sobrenaturais do enredo tinham um desfecho racional. (N.T.)

    [4]. James Macpherson (1736-1796), literato escocs, cuja celebridade se deve publicao dos Poemas de Ossian, que ele fingiuhaver traduzido dos escritos de um antigo bardo celta. Ossian, por sua vez, uma figura histrica, filho de Fingal, rei dos Morven,uma tribo irlandesa. Liderou uma confederao contra as invases romanas de Stimo Severo e de Caracala, conseguindo manter aindependncia da ilha. (N.T.)

    [5]. Obra do clebre escritor francs Franois-Ren Chateaubriand, publicada em 1811.

    [6]. A Place du Chtelet era o lugar de Paris em que, na poca, realizavam-se os leiles pblicos. (N.T.)

    [7]. Elselina Vanayl de Yongh, chamada Ida de Saint-Elme, atriz e escritora cuja celebridade se deve publicao de Memrias deuma contempornea, em 1827, redigida a partir de suas anotaes por Armand Malitourne (1797-1866), historiador e amigo deBalzac. Aproveitando o sucesso do livro e sob o pseudnimo de A contempornea, ela publicou uma srie de relatos escandalososque obteve grande sucesso. (N.T.)

    [8]. Tragdia do dramaturgo ingls Thomas Otway (1652-1685). Nesse drama, a cumplicidade que une os dois heris exemplar.Em Iluses perdidas, Vautrin pergunta a Rubempr se ele compreendeu esta amizade profunda que liga Pierre e Jaffier e, em Opai Goriot, ele se gaba a Rastignac por saber de cor A Veneza salva. (N.T.)[9]. Apelido atribudo a Hassan Ben-Sabbah, que fundou no sculo XI a seita hertica dos Assassinos (do rabe hashishi,comedores de haxixe), estendendo seu poder sobre parte da Prsia e da Sria. (N.T.)

  • FERRAGUS,O CHEFE DOS DEVORADORES

    Mas agora j lhe permitido comear a narrativa de trs episdios que, nesta histria,seduziram-no mais que todos, pelo sabor parisiense de seus detalhes e pela magnfica estranhezade seus contrastes.

    H.B.Paris, 1831

  • CAPTULO I

    Madame Jules

    Existem em Paris algumas ruas de to m reputao quanto a que pode ser atribuda a umhomem que cometeu alguma infmia; existem tambm ruas nobres, ao lado de ruas simplesmentedecentes; um pouco mais alm, estendem-se ruas jovens, sobre cuja moralidade o pblico aindano teve tempo de se decidir; e h ruas assassinas; ruas mais antigas que as mais velhas dasvivas ricas; ruas simpticas, ruas sempre limpas, ruas sempre sujas, ruas operrias,trabalhadoras, comerciais. Em uma palavra, as ruas de Paris tm qualidades humanas, e seuaspecto geral nos impe certas idias contra as quais nos sentimos indefesos. Existem ruas que separecem com ms companhias, onde voc no ia querer morar, e outras ruas para as quais vocse mudaria com a maior boa vontade. H algumas ruas, como a Rue Montmartre, com uma belacabea, mas que terminam em um rabo de peixe.[1] A Rue de la Paix larga e comprida, mas nodesperta nenhum dos pensamentos nobres e elegantes que podem tomar de surpresa uma almasensvel que estiver caminhando pela Rue Royal, ao mesmo tempo em que certamente lhe falta amajestade que se encontra na Place Vendme. Se voc decidir passear pelas ruas da le de Saint-Louis, no se espante ao ser tomado por uma tristeza angustiante, que provocada pela solido,pelo aspecto melanclico das casas e pela viso das grandes manses desertas. quase como seessa ilha fosse o cadver coletivo dos antigos coletores de impostos do rei, uma espcie deVeneza parisiense. A Place de la Bourse ruidosa, ativa, prostituda a todos os visitantes; s bela luz do luar, s duas horas da madrugada; durante o dia, uma sntese da Paris buliosa;durante a noite, torna-se um devaneio sobre a Grcia Antiga. A Rue Traversire-Saint-Honorpode ser perfeitamente chamada de uma rua de m reputao. composta por fileiras de casinhasfeiosas e estreitas, mas com duas entradas, nas quais, de andar em andar, encontram-se todos osvcios, todos os crimes, todas as degradaes da misria. Aquelas ruas estreitas expostas aovento norte, em que o sol somente se atreve a espiar trs ou quatro vezes por ano, so verdadeirasruas assassinas, em que se mata impunemente. Hoje em dia, os policiais sequer aparecem por l;mas antigamente, o Parlamento teria mandado convocar o chefe de polcia para censur-lo porpermitir que acontecesse l aquele tipo de coisas. Provavelmente, teria emitido um mandado depriso contra a rua inteira, como fez h pouco tempo para confiscar as perucas dos eclesisticosda igreja de Beauvais. Enquanto isso, monsieur Benoiston de Chteauneuf[2] demonstrou que amortalidade nessas ruas era pelo menos o dobro da que ocorria nas outras. Vamos finalizar estaintroduo citando o exemplo da Rue Fromenteau, uma rua ao mesmo tempo mortfera e imoral.

  • Estas observaes, incompreensveis para quem no more ou conhea bem Paris, sero semdvida aprovadas pelos homens que se dedicam ao estudo e ao pensamento, poesia e ao prazerintelectual e que sabem recolher, enquanto passeiam por Paris, os prazeres contnuos que flutuama cada momento ao longo de suas muralhas; sero compreendidas por aqueles para quem Paris o mais delicioso dos monstros: aqui se vem as belas mulheres; logo ali, os velhos e os pobres;em um ponto, tudo novo e reluzente, como as moedas cunhadas no incio de um reino; maisadiante, elegante como as mulheres que se vestem no rigor da moda. Realmente, um monstrocompleto!... Os stos cheios de guas-furtadas so uma espcie de cabeas, cheias de cincia ede engenhosidade; seus primeiros andares, estmagos felizes; suas lojinhas, verdadeiros ps: delas que saem todos os transeuntes, toda essa gente to ocupada e cheia de compromissos... Ecomo a vida do monstro ativa! Mal o rudo da passagem das ltimas carruagens que chegam dosbailes cessa em seu corao, j seus braos se espreguiam em Barrires[3] e ele comealentamente a se mexer. Todas as portas bocejam, giram em suas dobradias, como as pinas deuma grande lagosta, invisivelmente empurradas por trinta mil homens ou mulheres, cada um dosquais forado a viver em menos de dois metros quadrados, mas que tem uma cozinha, umaoficina, uma cama, filhos, talvez um jardim, onde a claridade quase no chega, mas tudo quepode ver. Quase sem que se perceba, as articulaes comeam a estalar, o movimento setransmite ao corpo todo e a rua fala. Ao meio-dia, tudo j est vivo, as chamins fumegam, omonstro come; depois, comea a rugir e a sacudir suas mil patas. Que lindo espetculo!... Emesmo assim, ah, Paris! Quem no conseguiu admirar tuas paisagens sombrias, os curtos instantesem que brilha a luz, teus becos infindveis e silenciosos, quem no pde escutar teus sussurrosentre a meia-noite e as duas da manh ainda no teve a menor oportunidade de conhecer sequerum pouco de tua verdadeira poesia, nem contemplar teus contrastes, to grandes e to estranhos!...Todavia, sempre se encontra um certo nmero de conhecedores, pessoas que no caminhamimersas em seus prprios pensamentos, mas que sabem como se deliciar com Paris, queconhecem to bem sua fisionomia que percebem nela at mesmo uma verruga, um sinal denascena, o menor rubor. Para os outros, Paris sempre uma maravilha monstruosa, um espantosoconjunto de acontecimentos, de mquinas e de idias, a cidade em que transcorrem cem milromances, a verdadeira cabea do mundo. S que para estes, Paris triste ou bela, feia ou linda,viva ou morta; para eles, Paris uma criatura completa: cada ser humano, cada detalhe de umprdio so apenas um fragmento do tecido celular dessa grande cortes, de quem conhecemperfeitamente a cabea, o corao e os fantsticos costumes. Todos eles tambm so amantes deParis: ao chegarem a uma determinada esquina, levantam o nariz em direo ao mostrador de umrelgio que sabem muito bem encontrar-se l; so perfeitamente capazes de dizer a um amigo queficou sem cigarros: Olhe, siga por aquela passagem, esquerda h uma tabacaria, fica bem aolado daquela confeitaria cujo proprietrio arranjou uma linda mulher.... E, no entanto, viajaratravs de Paris um luxo muito caro para esses poetas... Como podem evitar perder algunsminutos para assistir aos pequenos dramas, aos desastres, s fisionomias, aos pequenos acidentesque nos assaltam a todo momento quando atravessamos esta movimentada rainha das cidades,

  • vestida somente de cartazes e que no dispe de um nico canto para si mesma, por aceitar comtanta complacncia todos os vcios da nao francesa!... Quem foi que no passou pelaexperincia surpreendente de sair de casa pela manh, com a inteno de caminhar at uma dasextremidades de Paris e no conseguir sair do centro at a hora do jantar? Ah, so esses quesabero melhor desculpar este prlogo errante que, ainda assim, pode ser considerado como umanica observao profundamente til e nova, tanto quanto uma observao consegue ser nova emParis, onde nunca acontece nada de novo, nem mesmo a esttua inaugurada ontem, sobre cujopedestal um rapazinho atrevido j grafitou seu nome... Pois muito bem, existem aqui certas ruas,ou o final de algumas ruas, existem aquelas casas que a maior parte das pessoas da alta sociedadedesconhece, esses prdios em que a maioria das mulheres que pertencem s classes superioresno poderia entrar sem que pensassem e dissessem delas as coisas mais cruelmente injuriosas.No importa que essa mulher seja rica, tanto faz que ela possua uma carruagem, no faz diferenaque ande a p ou disfarada ao percorrer qualquer um dos desfiladeiros deste labirintoparisiense, ao ingressar a, ela compromete irremediavelmente sua reputao de mulher honesta.E se, por acaso, ela chega a tais lugares depois das nove horas da noite, ento as conjecturas queum observador talvez crie em sua cabea podem originar as conseqncias mais assustadoras. Edepois, se essa mulher jovem e bonita, se ela entra em alguma casa de qualquer dessas ruas, sea referida casa tem um corredor longo, mido e fedorento; se somente ao final do corredorbruxuleia a luz plida de uma lmpada a leo; mais ainda, se sob essa iluminao insuficiente sedivisa o rosto horrvel de uma velha de dedos descarnados, no resta mais dvida e safirmamos isto porque nosso desejo sincero proteger as mulheres jovens e belas , essa pobrecriatura est perdida. Est nas mos do primeiro homem que a conhea e que a encontrecasualmente nestes pntanos parisienses. E existe ainda uma determinada rua em Paris na qualesse encontro pode tornar-se o drama mais assustadoramente terrvel, um drama de amor e desangue, uma tragdia bem ao gosto da escola moderna... Infelizmente, essa condenao, essadramaticidade, somente ser compreendida por poucas pessoas, do mesmo modo que essas peasdo teatro contemporneo; e realmente uma grande pena contar uma histria a um pblico que sa compreende pela metade, que incapaz de alcanar todas as suas conseqncias. Mas quem essa pessoa que pode afirmar com plena convico que sempre foi entendida por todos? Todosns acabamos por morrer desconhecidos. Esse o destino de todas as mulheres e tambm o detodos os escritores.

    s oito e meia de uma certa noite, na Rue Pagevin, naquele tempo em que no existia umas parede dessa Rue Pagevin em que no estivesse escrita alguma obscenidade, indo na direoda Rue Soly, a rua mais estreita e mais difcil de atravessar que existe em Paris, sem excetuar aesquina menos freqentada das ruas mais desertas; no comeo do ms de fevereiro, mais oumenos uns treze anos atrs,[4] aconteceu que um rapaz, por um desses acasos que acontecemapenas uma vez na vida, dobrou a p a esquina da Pagevin com a inteno de entrar na Rue desVieux-Augustins, virando por engano para o lado direito, precisamente onde fica a Rue Soly. Foinesse instante que esse rapaz, domiciliado na Rue de Bourbon, percebeu de repente uma mulher

  • alguns passos sua frente, que ele viera seguindo distraidamente e sem a menor inteno, notandoque ela apresentava uma vaga semelhana com aquela que ele considerava a mais bela mulher deParis, uma criatura de comportamento to irrepreensvel quanto seu corpo era sedutor, pela qualse encontrava secretamente apaixonado, embora sem a menor esperana, porque sabia que eracasada. Nesse momento, seu corao deu um salto no peito, um calor insuportvel subiu desdeseu diafragma e percorreu todas as suas veias, enquanto sentia um calafrio descendo pela espinhae as veias de sua testa comeavam a latejar. O infeliz amava, era jovem, conhecia muito bemParis; esse mesmo conhecimento no lhe permitia ignorar quanta infmia poderia recair sobreuma mulher elegante, rica, jovem e bela, caminhando sozinha logo por ali, ainda mais com umandar to furtivo como o de uma criminosa. Mas logo ela, naquela zona imunda e a essa hora danoite!... O amor que o jovem sentia por aquela mulher poderia parecer extremamente romntico,especialmente em se tratando de um oficial da Guarda Real. Se ainda fosse um oficial daInfantaria, seu comportamento talvez pudesse ser explicado; mas era um oficial superior daCavalaria, justamente a arma do exrcito francs cujos oficiais eram afamados pela rapidez comque faziam suas conquistas, que se orgulhavam tanto de seus casos amorosos como de sua prpriafarda!... Todavia, a paixo daquele oficial era sincera e seria compreendida como um grandeamor por muitos jovens de corao mais sensvel. Ele amava aquela mulher justamente porqueera virtuosa, ele adorava sua virtude, sua decncia graciosa, sua visvel santidade; eram essesjustamente os tesouros mais apreciados por sua paixo nunca declarada. Essa mulher lhe pareciarealmente digna de inspirar um desses amores platnicos, que surgem como flores brotadas derunas sanguinolentas atravs da histria violenta da Idade Mdia; digna de ser secretamente ainspiradora de todas as aes hericas de um jovem oficial; um amor to elevado e to puroquanto o cu de um azul imaculado; um amor sem esperana, mas que nos prende firmemente,porque o amor que no nos pode enganar, nem iludir; um amor cheio de gozos reprimidos,sobretudo nessa idade em que o corao mais cheio de ardor, a imaginao mais aguada e osolhos de um homem percebem o mundo sua volta da forma mais clara. comum encontrar emParis os efeitos noturnos mais singulares, estranhos e inconcebveis. Somente os homens que secontentam em observ-las de longe sabem como as mulheres se tornam fascinantes por entre asbrumas do nevoeiro. Em um momento, aquela criatura que est sendo seguida de longe, por acasoou deliberadamente, parece esbelta e delicada ao extremo; no instante seguinte, se ela estiverusando meias brancas, surge a impresso de que suas pernas so finas e elegantes; depois ascostas, mesmo quando envolvidas por um xale ou um casaco de pele, revelam-se jovens evoluptuosas de permeio s sombras; mais adiante, a claridade incerta que brota das vitrinas deuma lojinha ou desce de um lampio sobre a calada revestem a desconhecida de um brilhofugidio e quase sempre enganador, mas que desperta a imaginao em um relance e logo aincendeia e projeta para alm de qualquer possibilidade real e verdadeira. ento que todos ossentidos se alvoroam, tudo assume uma colorao mais viva, animada pelo entusiasmoincontrolvel; a mulher assume um aspecto totalmente novo; seu corpo parece transbordar debeleza; por alguns instantes deixa de ser uma mulher, mais um feitio irresistvel, um fogo-ftuo

  • que nos arrasta por um ardente magnetismo at uma residncia perfeitamente respeitvel, em quea pobre senhora, com medo da ameaa representada por nossos passos, pelo som ressonante denossas botas contra o pavimento, se atira casa adentro e nos bate com a porta no nariz, sem aomenos nos relancear um olhar... Foi nesse momento que o claro vacilante projetado pelajanelinha de um sapateiro a iluminou de sbito, precisamente da cintura aos quadris, revelandocom exatido as formas da mulher que caminhava frente do jovem. Mas no podia haverdvida! Somente ela tinha um corpo assim to bem torneado! Somente ela dispunha do segredodesse andar recatado que inocentemente salienta ainda mais a beleza de um talhe to atraente. Eraela, sem sombra de dvida: aquele era o xale que usava pela manh, aquele era o chapu develudo que o oficial contemplava todas as manhs quando a vigiava em segredo inocente. Suasmeias de seda cinzenta no mostravam a menor mancha, seus sapatos no apresentavam qualquersalpico da lama das ruas. O xale estava bem apertado contra o busto, desenhava vagamente seusdeliciosos contornos e o rapaz conhecia muito bem seus ombros claros, por t-los contempladomais de uma vez nos bailes; conhecia muito bem todos os tesouros que o xale encobria. Umhomem perspicaz, ao ver a maneira com que uma parisiense se envolve em seu xale, pelo jeitopeculiar com que levanta e baixa os ps antes de pisar novamente na calada, perfeitamentecapaz de adivinhar o segredo de seu misterioso destino. Existe alguma coisa impondervel,adivinha-se um tremor palpitante, uma leveza indefinvel tanto nela como em seu andar: a mulherparece pesar menos, ela avana de uma forma deslizante, melhor ainda, como se flutuasse taluma estrela, como se voasse com as asas do pensamento e fosse trada pelas dobras eoscilaes de sua roupa drapejante. O rapaz apressou o andar, ultrapassou a mulher e viroudepressa o rosto para ver suas feies... Ora!... Ela desaparecera em um corredor, cuja porta,dotada de um postigo para ver quem estava na rua, ainda estalava contra o batente e cujacampainha ainda retinia. O jovem retornou, segurou a folha antes que se fechasse totalmente e viua mulher subindo por uma escada no final do corredor, enquanto recebia as obsequiosassaudaes de uma velha, naturalmente, a porteira, uma escada retorcida cujos primeiros degrausestavam perfeitamente iluminados. E a senhora subia rapidamente, agilmente, como se estivessecheia de impacincia.

    Impaciente por qu? indagou-se o jovem mentalmente, enquanto recuava para encostaras costas parede do lado oposto da rua. E ficou perscrutando, o pobre-coitado, todos os andaresdo prdio, com a ateno de um agente de polcia encarregado de vigiar um suspeito.

    Era uma dessas casas que existem aos milhares em Paris, uma casa encardida pelo tempo,de aspecto vulgar, estreita, ainda com os vestgios desbotados de uma pintura amarelada, comquatro andares, cada um com trs janelas. A lojinha do trreo e os cmodos do poro pertenciamao sapateiro. As venezianas do primeiro andar estavam fechadas. Aonde iria a senhora? O rapazteve a impresso de escutar o tilintar de uma campainha no apartamento do segundo andar. Defato, uma luz moveu-se em uma pea cujas duas janelas estavam perfeitamente iluminadas, mesmoatravs das persianas, iluminando subitamente a terceira abertura, cuja obscuridade sugeria umapequena pea, sem dvida a sala de visitas ou de refeies do minsculo apartamento. Mal a

  • silhueta de um chapu feminino desenhou-se vagamente contra as vidraas, a porta fechou-se, ajanela da pea de entrada escureceu novamente e depois as duas seguintes retomaram sualuminosidade avermelhada. Nesse momento, o rapaz escutou um grito:

    Cuidado, pateta!No instante seguinte, sentiu uma batida no ombro. Voc cego ou no olha em volta? resmungou uma voz grosseira.Era a voz de um operrio que carregava em um dos ombros uma longa prancha. O operrio

    seguiu em frente, sem dar mais ateno a ele. E esse operrio pareceu um enviado da providnciadivina, que recebera a misso de advertir o curioso:

    Mas em que voc veio se meter? Cuide de seu servio, como sempre fez, trate de suasobrigaes militares e deixe esses parisienses se divertirem com seus insignificantes casosamorosos...

    O jovem cruzou os braos; depois, sabendo que ningum podia v-lo, deixou que lgrimasde raiva e de humilhao escorressem pelas faces, sem fazer o menor esforo para enxug-las.Como a simples viso daquelas sombras que se moviam diante das duas janelas iluminadas lhefazia mal, correu os olhos casualmente pela parte superior da Rue des Vieux-Augustins e, bemadiante, divisou um fiacre estacionado junto a uma parede em que no se via nem porta de casa,nem o reflexo da vitrina de qualquer loja.

    Era ela? No era ela? Era uma questo de vida ou morte para um jovem apaixonado. E oapaixonado ficou esperando. Permaneceu ali durante um sculo que durou vinte minutos. Aseguir, a mulher desceu a escada, saiu para a rua e ele pde reconhecer perfeitamente o rostodaquela a quem amava em segredo. O pior que queria permanecer em dvida. A desconhecidadirigiu-se at o fiacre e entrou na parte de trs.

    Esta maldita casa no vai sair da. Posso voltar para investigar melhor murmurou ojovem entredentes, enquanto corria atrs do veculo a fim de dissipar suas ltimas dvidas, asquais, para sua grande contrariedade, logo desapareceram por completo.

    O fiacre parou na Rue de Richelieu, diante da entrada de uma floricultura, perto da Rue deMnars. A senhora desceu, entrou na loja, mandou a balconista entregar o dinheiro devido aococheiro e saiu a p, aps ter comprado algumas plumas de marabu[5]. Marabu para seus cabelosnegros!... Sendo morena, encostara as plumas em sua cabea para examinar o efeito. O oficialimaginava poder adivinhar a conversa entre a cliente e as floristas.

    Madame, no existe coisa que sente melhor para as morenas. As pessoas de cabelosnegros costumam ter os traos do rosto muito bem delineados, e as plumas de marabuacrescentam a sua roupa um toque de delicadeza que chama a ateno pelo contraste. A senhoraduquesa de Langeais[6] costuma dizer que essas plumas do mulher uma certa impreciso, umaspecto ossinico, como ela diz, justamente o toque perfeito para seu encanto.

    Tudo bem. Mande levar na minha casa em seguida.A seguir, a senhora caminhou rapidamente para a Rue de Mnars e entrou em sua casa.

    Quando a porta da manso em que ela morava se fechou, o jovem apaixonado, perdidas todas as

  • suas esperanas, duplamente infeliz porque perdera com elas as suas iluses mais queridas, saiua caminhar pelas ruas de Paris como se estivesse embriagado, chegando eventualmente prpriacasa, sem saber como percorrera todo o caminho. Atirou-se em uma poltrona, colocou os pssobre a guarda da lareira e, com a cabea entre as mos, deixou que suas botas secassem atchamuscar a sola. Estava passando por um momento terrvel, um desses momentos em que, aolongo da vida humana, o carter se modifica e aps o qual a conduta dos melhores homens irdepender do resultado feliz ou infeliz do primeiro ato que praticarem. Providncia ou Fatalidade,dependendo do ponto de vista.

    O rapaz pertencia a uma boa famlia, embora no tivesse ingressado na aristocracia hmuito tempo. Todavia, restam to poucas famlias antigas na nobreza de hoje que todos os jovensaristocratas so aceitos como pertencentes antiga nobreza sem a menor contestao. Seu avtinha comprado um cargo de conselheiro no Parlamento de Paris e depois, por mrito, tornara-sepresidente do Conselho. Seus filhos haviam herdado belas fortunas, ingressaram no funcionalismopblico e, depois de forjarem boas alianas, foram recebidos na Corte. A Revoluo expulsou afamlia da Frana: s permaneceu uma viva velha e teimosa, que no quis emigrar, que chegou aser lanada na priso, condenada pena de morte, mas salva pelo golpe de Nove de Termidor,[7]quando seus bens lhe foram devolvidos. No devido tempo, por volta de 1804, ela mandou buscarseu netinho, Auguste de Maulincour, o nico sobrevivente do ramo dos Charbonnon deMaulincour, que foi criado pela boa viva com o cuidado trplice de me, de mulher da nobreza ede viva teimosa. Depois, quando chegou a Restaurao, o jovem, na ocasio com dezoito anos,entrou para o quartel da Maison Rouge[8], acompanhou os prncipes at Gand[9], foi promovidoa oficial por seus servios na Guarda Real, de onde saiu para servir nos regimentos de combate,foi depois convocado novamente para a Guarda Real e nela se encontrava agora, com apenas 23anos, como chefe de esquadro de um Regimento de Cavalaria, uma excelente posio, graas influncia da av, que podia estar velha, mas sabia muito bem como essas coisas funcionavam ecomo lidar com elas. Esta dupla biografia o resumo tanto da histria geral como da particular,salvo pequenas variantes, de todas as famlias que haviam emigrado durante a revoluo, quepossuam dvidas ou bens e, sobretudo, velhas parentes ricas cheias de habilidade para lidar coma sociedade. A sra. baronesa de Maulincour cultivava a amizade do velho administrador daspropriedades do bispado de Pamiers, antigo comendador da Ordem de Malta. Era uma dessasamizades eternas, fundamentadas em laos de sessenta anos, dessas que ningum consegue abalar,porque, bem no fundo dessas relaes, existem os segredos dos coraes humanos, cujaadivinhao seria admirvel quando se tem tempo para pensar neles, mas to aborrecidos quantodifceis de explicar em vinte linhas, embora pudessem originar facilmente um texto para quatrovolumes e demonstrarem ser to interessantes quanto Le Doyen de Killerine,[10] uma dessasobras to comentadas pelos moos, que lhes fazem crticas favorveis ou contrrias sem nunca asterem lido. Auguste de Maulincour pudera ento fixar residncia no Faubourg Saint-Germaingraas sua av e aos bons ofcios do administrador do bispado e bastava que sua nobrezadatasse de dois sculos para que assumisse as atitudes e as opinies daqueles cujos ancestraisdatam do tempo dos nobres guerreiros de Clovis.[11] Esse jovem plido, alto e esbelto

  • desmentia sua aparncia um tanto delicada por ser um homem de honra e de verdadeira coragem,que j se batera em duelo sem hesitar, por uma bagatela qualquer, um sim ou um no dito nomomento errado... Mesmo que no tivesse realmente participado de qualquer batalha, j trazia lapela a cruz da Legio de Honra. Como se pode perceber, era um desses equvocos ambulantesda Restaurao, embora suas outras qualidades o tornassem um dos que mais merecessemindulgncia. A juventude dessa poca no foi igual juventude de qualquer outra. Ela seencontrava entre as lembranas do Imprio e as recordaes da Emigrao da aristocracia, entreas velhas tradies da Corte e os estudos constantes em que se aplicava a burguesia, entre areligio e os bailes fantasia, entre duas ideologias polticas, entre Louis XVIII, que s tinhaolhos para o presente, e Charles X,[12] que olhava demais para o futuro distante; acima de tudo,sentia-se obrigada, por uma questo de honra, a respeitar a vontade do rei, por mais que a realezase equivocasse. Essa juventude vacilante em tudo, ao mesmo tempo cega e clarividente, no eraabsolutamente tomada em considerao pelos velhos, que seguravam firmemente as rdeas doEstado, enquanto a monarquia restaurada poderia ter sido salva pela aposentadoria desses antigosfuncionrios e sua substituio por esta jovem Frana, cujo acesso ao poder a teria renovado, pormais que os velhos tericos polticos, os retornados da Emigrao, faam pouco dela at os diasde hoje. Auguste de Maulincour era uma vtima das idias que dominavam ento as mentes dessamocidade, como se ver a seguir. O administrador do bispado, ento com 67 anos, um homem dendole espiritual, que muito vira e muito vivera, capaz de contar muitas histrias com vivacidadee um certo grau de ironia, era um homem de honra e cavalheiresco, mas que acalentava, comrelao s mulheres, as opinies mais detestveis: ao mesmo tempo as amava e desprezava. Ahonra das mulheres, os sentimentos femininos? Ora, tudo isso no passava de conversa mole,bagatelas e iluses de comediantes! Quando se achava perto delas, esse velho monstrochauvinista acreditava nelas, nunca as contrariava, dava-lhes o devido valor e as elogiava. Masquando se encontrava no meio de seus amigos, se algum comeasse uma discusso sobre seusmritos, o administrador sustentava a tese de que enganar as mulheres, manter vrios namoros aomesmo tempo e coisas assim, deveria ser a principal ocupao dos jovens, que simplesmenteestavam desperdiando os bons tempos da juventude ao tentarem se meter nos negcios deEstado. at desagradvel ter de esboar um retrato to antiquado e antiptico. Mas no existegente assim por toda parte? Literalmente, no uma imagem to desgastada como a descrio dasqualidades de um granadeiro do primeiro Imprio? Mas ocorre que o administrador do bispadoteve uma grande influncia sobre o destino de monsieur de Maulincour e, portanto, necessriodescrev-lo; sua maneira, ele lhe dava lies de moral e queria convert-lo s doutrinas dogrande sculo da galanteria. A av viva e rica era uma mulher terna e piedosa, oscilando entre ainfluncia do administrador e os mandamentos de Deus. Era um modelo de graa e de doura,mas dotada de um persistente bom gosto que triunfava sobre tudo em seu devido tempo. Ela teriapreferido conservar no neto as mais belas iluses da vida: educara-o dentro dos melhoresprincpios, transmitira a ele toda a delicadeza de sua prpria alma, resultando que ele setransformara em um homem tmido, um verdadeiro bobalho aos olhos de seus camaradas de

  • armas. A sensibilidade do rapaz, conservada pura, no se desgastou exteriormente, e elepermaneceu to inocente, to cheio de melindres que se sentia profundamente ofendido por atos epalavras a que a sociedade no dava a menor importncia. Todavia, ele se envergonhava de tantasuscetibilidade e procurava escond-la sob a capa de uma falsa segurana, sofrendo em silncio;fazia troa, junto com os outros, de coisas que ele sabia secretamente ser o nico que admirava.Desse modo, enganou a si mesmo porque, segundo um dos caprichos to comuns do destino,encontrou no alvo de sua primeira paixo, logo ele, um homem de doce melancolia, crente naespiritualidade do amor, uma mulher que tinha horror ao romantismo, porque este surgira entre osalemes. O jovem comeou a duvidar de si mesmo, tornou-se um sonhador e deixou-se envolvertotalmente por seus pesares, enquanto se lamentava por no ser compreendido por ningum.Depois disso, uma vez que prprio do ser humano desejar mais violentamente as coisas maisdifceis de alcanar, continuou a adorar as mulheres por sua ternura ardilosa e sua delicadezafelina, cujo segredo pertence s a elas e do qual provavelmente querem conservar o monoplio.De fato, embora as mulheres se queixem tanto de serem mal-amadas e incompreendidas peloshomens, ainda assim, gostam muito pouco daqueles cujas almas tm certas qualidades femininas.Toda a sua superioridade consiste em fazer os homens acreditarem que so inferiores a elas nacapacidade de amar; abandonam assim sem grande hesitao um amante jovem, quando ele inexperiente o bastante para querer priv-las dos temores com que gostam de se enfeitar, essesdeliciosos tormentos dos cimes falsos, esses torvelinhos da esperana enganada, as esperas vs,enfim, todo o cortejo de desventuras femininas to bem cultivadas; elas tm horror aos homensvirtuosos como Grandisson.[13] Que h de mais contrrio sua natureza que um amor tranqilo eperfeito? Elas querem emoes, uma felicidade sem tormentas deixa de ser felicidade para elas.As almas femininas suficientemente fortes para aceitar um amor infinito constituem anglicasexcees e encontram-se entre as mulheres com a mesma raridade que os homens de coraocompassivo. As grandes paixes so to raras quanto as obras-primas. Contudo, fora desse amor,no h seno arranjos convenientes, irritaes passageiras, desprezveis como tudo quanto pequeno.

    No meio dos secretos desastres de seu corao, enquanto procurava uma mulher pela qualpudesse ser compreendido, uma busca que, diga-se de passagem, a grande tolice amorosa denossa poca, Auguste encontrou-a em um mundo bastante afastado do seu, na segunda esfera dasociedade, o mundo do dinheiro, em que os grandes banqueiros ocupam a primeira classe, umacriatura perfeita, uma dessas mulheres que refletem um ar indefinvel de santidade e de sagrado,que inspiram tanto respeito que o amor precisa ser apoiado por uma longa familiaridade antes deousar declarar-se. Auguste entregou-se ento totalmente s delcias da mais comovente eprofunda das paixes, um amor que se contentava em contemplar e admirar. Foi sacudido porincontveis desejos reprimidos, nuances de paixes to vagas e to profundas, to arredias e toavassaladoras que sequer possvel encontrar um termo de comparao que as possa explicar.Elas recordam perfumes, lembram nuvens, evocam raios de sol, sugerem sombras, tudo aquiloque na natureza pode brilhar por um momento e ento se desvanecer, avivar-se como uma chama

  • derradeira e ento morrer, deixando como nico rastro as emoes que perduram por longotempo no fundo do corao. Enquanto uma alma jovem o bastante para conceber o romantismo,o amor pelas esperanas inalcanveis, enquanto souber ver na mulher mais do que uma mulher, amaior felicidade que pode alcanar um homem amar o suficiente para sentir mais alegria aotocar uma luva branca, ao roar de leve uma madeixa macia, ao escutar um frase ditacasualmente, ao lanar um olhar sem ser observado do que ao gozar da posse mais ardente quelhe daria um amor correspondido. So assim as pessoas repelidas, as feias e infelizes, os amantesinconfessos, as mulheres e homens tmidos, somente estes conhecem os tesouros que encerra otimbre da voz do ente amado. Tendo sua fonte e seu princpio na prpria alma, as vibraes do arcarregado de fogo colocam to violentamente os coraes em comunicao e transmitem tolucidamente os pensamentos, so to pouco mentirosas, que uma nica inflexo corresponde svezes a um desenlace. Quanto encantamento no desperta no corao do poeta a inflexoharmoniosa de uma doce voz? Quanta inspirao ela desperta! Quanto consolo ela transmite! Oamor j est no tom de voz, muito antes que seja confessado pelo olhar. Auguste, um poeta maneira dos amantes (h poetas que sentem e h poetas que exprimem, e os primeiros so os maisfelizes), havia saboreado todas essas alegrias do amor romntico, to grandes e to fecundas. Elapossua a garganta mais sedutora que pudesse desejar a mulher mais ardilosa para conseguiriludir e conquistar vontade; ela tinha aquele tipo de voz que faz lembrar uma sineta de prata, todoce aos ouvidos, que s se torna estridente para um corao que perturba e faz sofrer, umcorao que acaricia ao mesmo tempo que inquieta. E logo essa mulher ia de noite Rue Soly,perto da Rue Pagevin; e seu surgimento furtivo nas janelas de uma casa de m fama acabara deestilhaar a mais magnfica das paixes!... Era o verdadeiro triunfo das opinies e conselhos doadministrador.

    Se ela trai o marido, ns dois nos vingaremos disse Auguste para si mesmo.E quanto amor ainda estava encerrado naquele se!... A dvida filosfica de

    Descartes[14] uma simples cortesia com a qual sempre se deve honrar a virtude... Nessemomento, o baro de Maulincour recordou-se de que essa mulher iria a um baile em uma casapara a qual tinha convite permanente. Vestiu-se s pressas, partiu, chegou, procurou a amadadisfaradamente pelos sales. Ao v-lo to empenhado na busca, madame de Nucingen[15] disse:

    No consegue encontrar a esposa de monsieur Jules, no mesmo? No adianta continuarprocurando, porque ela ainda no chegou...

    Bom dia, minha querida!... exclamou uma voz.Auguste e madame de Nucingen viraram-se de repente. E ali se achava madame Jules,

    vestida de branco, simples e nobre, trazendo na cabea precisamente as penas de marabu que ojovem baro a vira escolher na floricultura. A voz de seu amor perfurou o corao de Auguste. Seele tivesse conquistado anteriormente o mnimo direito de demonstrar a ela seu cime, atransformaria em pedra com aquele nome horrendo: Rue Soly!.... Mas ele era um estranho, eainda que repetisse mil vezes aquelas palavras infamantes aos ouvidos de madame Jules, ela teriaperguntado a ele com espanto o que pretendia dizer com aquilo. Assim, somente pde contempl-

  • la com um ar estpido.Para essa gente maldosa que faz troa de tudo, talvez seja um grande divertimento conhecer

    o segredo de uma mulher, saber que sua castidade apenas aparente, que seu rosto calmoesconde pensamentos inconfessveis, que se desenrola um drama espantoso sob sua fronte pura.Mas existem certas almas a quem esse espetculo s pode causar real tristeza, enquanto muitosque dele riem, ao voltarem para casa, longe de seus amigos escarnecedores, sozinhos com suaconscincia, maldizem a sociedade e desprezam tal mulher. Tal era a situao de Auguste deMaulincour na presena de madame Jules Desmarets. No podia haver situao mais bizarra. Noexistia absolutamente entre eles qualquer relacionamento seno as relaes que se estabelecem nasociedade entre pessoas que trocam entre si algumas palavras sete ou oito vezes a cada inverno, eagora eis que ele pretendia exigir satisfaes pela quebra de uma felicidade que ela totalmenteignorava e a julgava sem lhe dar a conhecer a acusao.

    E muitos foram os jovens que se encontraram em situao semelhante, caindo em si aochegar em casa, desesperados por haverem rompido para sempre com uma mulher que adoravamem segredo e que agora condenavam e desprezavam igualmente em segredo... Quantos monlogosforam proferidos, escutados somente pelas paredes de um quarto solitrio, quantas tempestadesnasceram e se desfizeram sem sequer sarem do fundo dos coraes, quantas cenas admirveis domundo moral para cuja representao seria necessrio o talento de um grande pintor... MadameJules Desmarets foi procurar um lugar para sentar-se, enquanto seu marido fazia a volta no salo.Mas assim que se assentou, comeou a sentir um certo constrangimento e, embora conversassecom a vizinha, lanava olhares furtivos para Jules Desmarets, seu marido, o corretor de cmbiodo baro de Nucingen.[16] Vamos rever a histria desse casamento:

    Monsieur Desmarets tinha sido, durante os cinco anos que precederam seu casamento, oauxiliar de um corretor de cmbio e, na poca, sua nica fortuna eram as magras comisses de umauxiliar de corretagem. Todavia, ele era um desses homens a quem o infortnio ensinarapidamente os fatos da vida e que perseguem seus objetivos com a mesma tenacidade de uminseto que corre em direo toca, um desses jovens obstinados que se fazem de tolos diante dosobstculos e acabam por vencer seus adversrios pelo cansao e pelo exerccio de uma pacinciade J. Podia ser muito moo, mas possua todas as virtudes republicanas das classes pobres:comia e bebia com moderao, empregava seu tempo com avareza, deixava de lado os prazeresfceis. Somente esperava. A natureza lhe havia concedido, alm disso, as imensas vantagens queobtm um aspecto fsico agradvel. Sua testa era calma e pura; os traos de seu rosto eramtranqilos, mas expressivos; a maneira com que tratava os outros era simples, ao passo que tudonele revelava uma existncia laboriosa e resignada, cheia daquela grande dignidade pessoal quese impe em qualquer situao e daquela secreta nobreza de corao que resiste a todas asdificuldades. Havia nele, alm disso, uma modstia natural e sem subservincia que inspiravauma espcie de respeito em todos que o conheciam. Contudo, ele era um solitrio no meio deParis, que s via a sociedade de relance, durante os breves momentos em que atravessava o salo

  • de seu patro, nos dias em que este dava uma festa. Havia nesse jovem, como na maior parte daspessoas que vivem dessa maneira, paixes surpreendentemente profundas, paixes demasiadovastas para darem importncia aos pequenos incidentes da vida. Alm do mais, sua prpriapobreza obrigava-o a levar uma vida austera, e ele mantinha suas fantasias sob controlededicando-se firmemente ao trabalho. Depois de empalidecer de exausto sobre os livros decontabilidade, ele se permitia esquecer as cifras por um breve perodo de repouso, esforando-setodo o tempo para adquirir esse conjunto de conhecimentos que hoje so necessrios paraqualquer um que se deseje fazer notado na sociedade, no comrcio, no frum, na poltica ou nasletras. O nico recife contra o qual podem naufragar essas belas almas estudiosas sua prpriahonestidade. Ao encontrarem uma moa pobre, enamoram-se dela, casam e seguem pelo resto daexistncia a debaterem-se entre o amor e a misria. Suas mais belas ambies esvaem-se emcontato com a caderneta de despesas domsticas. Jules Desmarets bateu em cheio nesse escolho.Uma tarde, ele viu em casa do patro uma jovem criatura da mais rara beleza. Os infelizesprivados de afeto e que consomem as mais belas horas da juventude em longos trabalhos so osque mais rpido se entregam ao destruidora de uma paixo sobre seus coraes desertos emal conhecidos por eles mesmos. Ficam to seguros de estar transmitindo um amor to profundo,todas as suas foras se concentram a tal ponto ao redor da mulher de quem se enamoraram, juntodela experimentam sensaes to deliciosas, que freqentemente nem percebem que nodespertam nada, que no recebem coisa alguma em troca. De todos os egosmos, esse o maislisonjeiro para a mulher que sabe adivinhar essa aparente imobilidade da paixo e as feridas queesto to profundas que levam muito tempo para surgir superfcie humana. Essa pobre gente,esses anacoretas vivendo no seio de Paris, tem todas as caractersticas dos ermites, o quesignifica que tambm podem cair nas mesmas tentaes; todavia, to comum que sejamenganados, trados, mal interpretados, que raramente lhes permitido colher os doces frutosdesse amor que, para eles, sempre como uma flor cada do cu. Um sorriso dessa mulher e umanica inflexo de ternura em sua voz foram suficientes para Jules Desmarets conceber uma paixosem limites. Felizmente, o fogo concentrado dessa paixo secreta revelou-se ingenuamentetambm no corao daquela que a inspirava. Ambos se amaram ento religiosamente. Pararesumir tudo em uma s palavra, eles se deram as mos, sem constrangimento, no meio dasociedade, tal como o fariam duas crianas, irmo e irm, que tentassem atravessar uma multidoe descobrissem que todos lhes abriam alas por admirarem o que percebiam entre eles. A pobregarota encontrava-se em um desses terrveis estados civis em que o egosmo coloca certascrianas; no tinha o sobrenome do pai, no fora devidamente registrada, e seu nome prprio,Clmence, alm de sua prpria idade, haviam sido reconhecidos por meio de um instrumentopblico. Quanto a seus bens, no tinha praticamente nada. Jules Desmarets sentiu-se o homemmais feliz do mundo ao ficar a par dessa situao. Se Clmence pertencesse a alguma famliaopulenta, ele teria imediatamente perdido a esperana de conseguir obter-lhe a mo; mas ela erauma pobre filha ilegtima, uma filha do amor, o fruto de alguma terrvel paixo adulterina:

  • casaram-se em seguida. Comeou ento para Jules Desmarets uma srie de acontecimentosfelizes. Todos invejavam a sua felicidade, e aqueles que tinham cimes dele comearam logo aacus-lo de ser apenas afortunado, sem reconhecer suas virtudes ou sua coragem. Alguns diasdepois do casamento de sua filha, a me de Clmence, que sempre se apresentara como suamadrinha, disse a Jules Desmarets que deveria comprar um cargo de corretor da Bolsa,prometendo que daria um jeito de lhe arranjar o dinheiro necessrio. Naquela poca, esses cargoscustavam um preo bem mais moderado do que o exigido nos dias que correm. Naquela tarde, noprprio escritrio de seu patro, um rico capitalista lhe props, mediante a recomendaodaquela senhora, o negcio mais vantajoso possvel, adiantando a ele os fundos necessrios paraa aquisio de tal privilgio, de tal modo que, no dia seguinte, o feliz auxiliar de contabilidadetivera condies de adquirir a agncia de cmbio de seu patro. Em quatro anos, Jules Desmaretstornou-se um dos membros mais ricos de sua corporao, graas a um nmero considervel detimos clientes que se vieram acrescentar aos que lhe deixara seu predecessor. Ele inspirava umaconfiana ilimitada, e era impossvel deixar de reconhecer, na maneira como os bons negcioscaam em suas mos, alguma influncia oculta de sua sogra, a no ser que fosse uma proteosecreta que atribua divina Providncia. Depois de trs anos, Clmence perdeu sua madrinha. Aessa altura, monsieur Jules, como o chamavam para estabelecer uma distino entre ele e seuirmo mais velho, que ele conseguira estabelecer como tabelio em Paris, j possua cerca deduzentas mil libras de renda. No existia em Paris outro exemplo de felicidade igual quetranscorria dentro de seu lar. Durante cinco anos, esse amor excepcional s fora perturbado poruma calnia da qual monsieur Jules tirara uma retumbante vingana. Um de seus antigos colegasde servio atribura a fortuna de Jules sua esposa, explicando que esta se devia a uma altaproteo comprada mediante alto preo. O caluniador foi morto em duelo. A paixo profunda dosdois esposos um pelo outro, to forte que resistira ao casamento, alcanava na sociedade o maiorsucesso, mesmo que fosse motivo de contrariedade para muitas mulheres. O belo casal erarespeitado e todos os recebiam com alegria. As pessoas gostavam sinceramente de monsieur emadame Jules, talvez porque no haja coisa mais agradvel de ver que pessoas felizes; mas elesno permaneciam muito tempo nos sales de festas e escapavam bem depressa deles, ansiosospor voltar a seu ninho, voando rapidamente como dois pombos desgarrados. O ninho em questoera uma grande e bela manso na Rue de Mnard, em que o bom gosto artstico temperava o luxovulgar que a comunidade financeira continua tradicionalmente a ostentar, na qual os dois espososrecebiam seus convidados com magnificncia, mesmo que as obrigaes sociais no tivessemgrande significado para eles. Ainda assim, Jules via-se forado a suportar as exigncias dasociedade, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, uma famlia tem necessidade dela; mas tantoele como sua esposa sentiam-se, no meio das festas, como duas plantas de estufa merc datempestade. Por uma questo de delicadeza, que nele era perfeitamente natural, Jules tivera omaior cuidado em ocultar de sua esposa tanto a calnia como a morte do caluniador que tentaraperturbar a felicidade deles. A esposa de Jules, apesar de sua criao, sentia-se inclinada por suanatureza artstica e delicada a amar o luxo. Apesar da lio do duelo, algumas mulheres

  • imprudentes cochichavam entre si que essa madame Jules devia achar-se constantementeconstrangida. Os vinte mil francos que lhe dava seu marido para seu vesturio e outras fantasiasno poderiam, segundo os clculos dessas faladeiras, ser suficientes para suas despesas. De fato,encontravam-na freqentemente mais elegante em casa do que quando se vestia para uma festa emsociedade. Ela gostava mesmo era de se enfeitar para seu marido, como uma maneira de lhe fazernotar que, para ela, ele era mais importante que a sociedade inteira. Amor verdadeiro, amor puro,sobretudo um amor feliz, tanto quanto pode ser um amor publicamente clandestino. Jules, domesmo modo, sempre enamorado, mais apaixonado a cada dia que se passava, completamentefeliz quando se achava ao lado de sua esposa, adorando seus menores caprichos, inquietava-se svezes de no achar nenhum, como se isso fosse o sintoma de alguma espcie de enfermidade.Auguste de Maulincour tivera a infelicidade de se lanar justamente contra aquela paixo eenamorar-se daquela mulher ao ponto de perder a cabea. Entretanto, mesmo que trouxesse emseu corao um amor to sublime, nunca caa no ridculo por causa dele. Seguia risca todos oscostumes dos militares; todavia, mesmo quando bebia uma taa de champanha, conservava em seurosto um ar sonhador, um silencioso desdm para com a existncia, essa fisionomia nebulosa que,pelos motivos mais variados, apresentam algumas pessoas que nunca demonstram emoes maisvvidas, ou por insatisfeitas com suas vidas vazias ou por serem hipocondracas e acharem quesofrem de tuberculose ou terem o prazer de apregoarem-se portadoras de alguma doenacardaca. Sem falar que amar sem esperana e mostrar desgosto perante a vida tornaram-se hojeatitudes sociais. Ora, a tentativa de conquistar o corao de uma rainha talvez fosse maisesperanosa que um amor to fortemente desenvolvido por uma mulher que estava perfeitamentefeliz com seu amor presente. Desse modo, Maulincour tinha razes mais do que suficientes parapermanecer grave e entristecido. Uma rainha poder talvez ser atingida atravs da vaidade de seupoder e sua prpria posio to elevada que se torna rarefeita e a faz vulnervel; mas umaburguesa devota e feliz como um ourio defendido por seus espinhos ou uma ostra protegida porsua carapaa spera.

    Nesse momento, o jovem oficial se encontrava prximo quela sua amante que mal sabia desua existncia e muito menos suspeitava estar sendo duplamente infiel. Ali estava a ingnuamadame Jules, sentada com naturalidade e tanta candura como se fosse a mulher menos falsa domundo, to doce quanto cheia de uma serenidade majestosa. A que abismos chega a naturezahumana? Antes de tentar iniciar uma conversao, o baro olhou atentamente para a mulher e seumarido. Que reflexes teriam passado por sua cabea? Ele reviveu mentalmente todos os poemasdas Noites de Young[17] nesse nico e triste instante.

    Enquanto isso, a msica retumbava nos grandes sales iluminados por mil velas; o baile eraoferecido por um banqueiro, uma daquelas festas insolentes por meio das quais a sociedade doouro em barra procurava superar os sales do ouro em p em que se divertia a gente de classe,a aristocracia orgulhosa do Faubourg Saint-Germain, sem prever que um dia os banqueirosinvadiriam o Palais du Luxembourg e se assentariam no trono.[18] Os conspiradores danavamento, to despreocupados com as futuras quedas do poder quanto com as futuras bancarrotas dos

  • bancos. Os sales dourados do sr. baro de Nucingen apresentavam aquela animao particularque a sociedade de Paris, alegre pelo menos na aparncia, empresta s festas da cidade. nelasque os homens de talento transmitem aos tolos algumas migalhas de seu esprito, enquanto ostolos partilham com eles em abundncia o ar feliz que os caracteriza. por essa troca que tudo seanima. Mas uma festividade parisiense sempre recorda um pouco uma queima de fogos deartifcio: esprito, seduo, prazer, tudo brilha de forma extraordinria e apaga-se torapidamente como os foguetes queimados. No dia seguinte, todos j se esqueceram de suas frasesespirituosas, de sua vaidade sedutora e de seus prazeres fortuitos.

    Pois ento assim..., concluiu Auguste para si mesmo. Todas as mulheres so como oadministrador do bispado as descreve? fora de dvida que todas estas que esto danandoneste salo tm uma aparncia muito menos irrepreensvel que a da sra. Jules Desmarets. Masacontece que justamente esta que visita a Rue Soly... S de pronunciar mentalmente o nome daRue Soly seu corao parecia murchar dentro do peito, mas era como uma idia fixa, como umsintoma que revela uma doena incurvel.

    Madame perguntou. A senhora no dana nunca? a terceira vez que o senhor me faz essa pergunta desde o comeo da estao dos bailes

    de inverno... respondeu ela com um sorriso. Mas a senhora no me havia respondido at hoje... L isso verdade... Eu bem sabia que a senhora era falsa, como todas as mulheres...Madame Jules comeou a rir. Escute, cavalheiro, se eu dissesse a verdadeira razo, ela pareceria ridcula. No acho

    que exista qualquer falsidade em no confessar segredos dos quais a sociedade tem o costume defazer troa...

    Todo segredo exige, antes de ser revelado, minha senhora, uma amizade da qual semdvida eu no sou digno. Mas a senhora s poderia ter segredos nobres... Julga-me ento capazde zombar de coisas respeitveis?...

    Mas claro que sim disse ela. O senhor como todos os outros: os homens riem denossos sentimentos mais puros, portanto o senhor os caluniar, como fazem os demais. Para falara verdade, no tenho segredos. Tenho todo o direito de amar meu marido diante de toda asociedade, falo isso abertamente, tenho orgulho deste sentimento; caso o senhor faa a menorbrincadeira depois de saber que eu s dano com meu marido, formarei o pior conceito de seucarter, cavalheiro.

    Quer dizer que, depois que se casou, danou apenas com seu marido? Sim, cavalheiro. Desde ento, seu brao foi o nico sobre o qual me apoiei e nunca mais

    senti o contato de outro homem. Mas nem seu mdico lhe tirou o pulso...? Viu s? Eu sabia. O senhor j comeou a fazer troa. No, minha senhora. Ao contrrio, eu a admiro, porque a compreendo. No obstante, a

  • senhora nos deixa ouvir a sua voz, permite que a vejamos... Em uma palavra, permite que nossosolhos a admirem...

    Ah, essa a minha maior tristeza! interrompeu-o. Sim, eu at gostaria que fossepossvel a uma mulher casada viver com seu marido como se fosse sua amante; porque ento...

    Mas nesse caso por que a senhora andava a p e disfarada, duas horas atrs, pela RueSoly?

    Rue Soly? Mas que rua essa? indagou ela, parecendo surpresa.Sua voz to pura no deixava transparecer a menor emoo, no se modificou a expresso

    de nenhum dos traos de seu rosto, ela no enrubesceu, permaneceu perfeitamente tranqila. A senhora quer me dizer que no subiu ao segundo andar de uma casa situada na Rue des

    Vieux-Augustins, perto da esquina da Rue Soly? No havia um fiacre esperando pela senhora bempertinho dali? A senhora no seguiu nessa carruagem at a Rue Richelieu, no parou nafloricultura para escolher essas plumas de marabu que agora lhe adornam a cabea?

    No sa de casa esta tarde.Mentindo daquela maneira, impassvel e risonha, enquanto se abanava com o leque... Mas

    um homem que tivesse o direito de passar-lhe a mo pela cintura ou ao longo da espinhaprovavelmente a encontraria umedecida pelo suor do nervosismo. Foi nesse momento queAuguste melhor recordou as lies que o administrador do bispado lhe ministrara.

    Ento me perdoe, decerto era uma pessoa que se parece extraordinariamente com asenhora afirmou com o ar contrito de quem est acreditando que realmente se enganou.

    Cavalheiro acrescentou ela. Se o senhor capaz de seguir os passos de uma mulherpara surpreender os segredos dela, vai me permitir dizer que essa foi uma ao feia, de fato muitofeia, e vou lhe dar a honra de no acreditar no que me disse.

    O baro afastou-se e foi colocar-se junto da lareira, onde permaneceu com um jeitopensativo. Baixou a cabea, mas sob as sobrancelhas seu olhar se lanava disfaradamente sobremadame Jules, a qual, no se dando conta de que seria trada pelos espelhos, lanou-lhe dois outrs olhares em que se lia perfeitamente o terror. Madame Jules fez ento um sinal para seumarido, ele veio dar-lhe o brao e ajudou-a a levantar-se, para depois darem uma volta pelossales. Quando ela passou perto de monsieur de Maulincour, este, que conversava com um deseus amigos, disse em voz bem alta, como se respondesse a uma interrogao: Mas tenho certezade que essa mulher no dormir tranqilamente esta noite.... Madame Jules parou por ummomento, lanou-lhe um olhar imponente e cheio de desprezo e continuou seu caminho, sem saberque um tal olhar, caso fosse surpreendido pelo marido, poderia comprometer a felicidade e avida de dois homens. Auguste, por sua vez, tomado de uma profunda raiva que abafou nasprofundezas de sua alma, saiu da festa logo depois, jurando que haveria de chegar at o coraodaquela intriga. Antes de partir, procurou madame Jules, a fim de lanar-lhe mais um olhar; masela havia desaparecido. Que drama se desenrolava naquela jovem cabea eminentementeromntica, como todas as que nunca tiveram oportunidade de conhecer o verdadeiro amor emtoda a sua extenso real. E o pior que ele continuava a adorar madame Jules, somente sob uma

  • nova forma: agora ele a amava com a raiva do cime e com as delirantes angstias da esperana.Infiel a seu marido, ela se tornara vulgar. Auguste agora pressentia que poderia entregar-se atodas as felicidades do amor feliz, e sua imaginao abria agora a ele o imenso desfile dosprazeres da posse. Em outras palavras, havia perdido seu anjo, mas encontrara o mais deliciosodos demnios. Foi deitar-se, erguendo mil castelos no ar, justificando as aes de madame Julescomo se fossem algum ato de bondade romntica, no qual ele mesmo no acreditava por um smomento. A partir de ento decidiu devotar-se inteiramente, a comear do dia seguinte, buscadas causas, dos interesses, da maneira de desatar aquele n que escondia o mistrio. Era como sefosse ler um novo romance, melhor ainda, ingressara em uma tragdia, dentro da qual escolheradeliberadamente o seu papel.

    [1]. No alto da colina de Montmartre ergue-se a Igreja Sacr-Coeur (a bela cabea), mas a parte inferior do declive era ocupada napoca por prostbulos e bares de m fama (o rabo de peixe), particularmente o Chat-Noir, de que diziam que no dormia sem terprovocado um assassinato ou um suicdio. Foi na segunda metade do sculo XIX que Montmartre se tornou o centro da boemiaparisiense, onde se reuniam escritores e artistas. (N.T.)

    [2]. Louis-Franois Benoiston de Chteauneuf (1776-1856), economista e estatstico. (N.T.)

    [3]. As Barreiras ou as Barricadas, local onde chegavam do campo as carroas com leite, hortalias, carnes e outros produtos paraas mercearias e mercados pblicos. As barricas de peixes, vinho etc. (barils, barillets) eram utilizadas para fechar as ruasenquanto os carroes descarregavam, da o nome. (N.T.)

    [4]. Em 1820. (N.T.)

    [5]. Ave de grande porte e penas negras, que habita as regies quentes da ndia, da Arbia e da frica. (N.T.)

    [6]. Duquesa Antoinette de Langeais, personagem fictcio, que Balzac fez viver entre 1791 e 1825, morrendo em uma expediodurante a Histria dos Treze. Quanto ao adjetivo ossinico, ver nota da pgina 20. (N.T.)

    [7]. 27 de julho de 1794, quando Robespierre foi derrubado, pondo fim ao perodo do Terror, em que muitos aristocratas e deputadosda oposio foram levados ao cadafalso. (N.T.)

    [8]. Casa Vermelha, nome do quartel da guarda pessoal do rei Louis XVIII (1755-1824), composta inteiramente por jovens danobreza, que usavam uniforme vermelho. (N.T.)

    [9]. Cidade da Blgica, onde Louis XVIII e seu irmo, o conde dArtois, refugiaram-se em 1815 durante os Cem Dias de Napoleo.(N.T.)

    [10]. Romance escrito em 1753 por Abb Prvost (1697-1763). (N.T.)

    [11]. O primeiro rei dos francos (465-511 d.C). O bairro St.-Germain era o local em que os aristocratas franceses construam suasresidncias. (N.T.)

    [12]. Charles-Philippe de Bourbon (1757-1836), conde dArtois, irmo de Louis XVI e Louis XVIII, este ltimo sucedeu de 1824 a1830, quando uma insurreio colocou Louis-Philippe no trono. (N.T.)

    [13]. Protagonista do romance Sir Charles Grandisson, do romancista ingls Samuel Richardson (1689-1761): o prottipo dehomem virtuoso, em contraste com o conquistador Lovelace, criado pelo mesmo autor. (N.T.)

    [14]. Ren Descartes (1596-1650), filsofo e matemtico francs. (N.T.).

    [15]. Personagem fictcia, em solteira Dauphine Goriot, filha do pai Goriot. (N.T.)

    [16]. Personagem fictcio, o baro Frdric de Nucingen originalmente um judeu alemo ou polons cuja carreira brilhante traada em numerosos livros de A comdia humana. Balzac situa seu nascimento em 1763, e em 1846 ainda o mantinha vivo.(N.T.)

    [17]. Edward Young (1681-1765), poeta ingls. (N.T.)

  • [18]. Antiga residncia real, o Palais du Luxembourg hoje sede do Senado francs. Aluso ao reinado de Louis-PhilippedOrlans, duque de Valois (1773-1850), rei da Frana de 1830 a 1848. (N.T.)

  • CAPTULO II

    Ferragus

    O ofcio de espio muito divertido, quando praticado por vontade prpria e em benefciode uma paixo. Afinal de contas, como conceder a si prprio todos os prazeres do ladro, aomesmo tempo em que se conserva a honestidade... Mas preciso resignar-se a ferver de clera, arugir de impacincia, a gelar os ps na lama, a tremer de frio enquanto se queima por dentro, aalimentar-se to somente de falsas esperanas. preciso seguir em frente para um destinoignorado, apoiado somente em uma pequena pista, errar o alvo, resmungar em vo, recitar para simesmo elegias e ditirambos e lanar exclamaes de impacincia para um transeunte inofensivoque olhou admirado para voc. E ainda derrubar as pobres vendedoras de rua, espalhando asmas de seus cestinhos, correr, descansar, ficar parado diante de uma janela, fazer milsuposies... Mas esta a caa, a caa dentro de Paris, a caa com todos os seus acidentes e todoo seu aparato, com a exceo dos ces, das espingardas e dos brados dos batedores!... Nada sepode comparar a essa experincia, seno a vida dos viciados em jogos de azar. E necessrio terum corao cheio de amor ou pejado de vingana para se emboscar em Paris, como um tigre espreita do momento exato para saltar sobre sua presa e para sentir prazer na possibilidade deenfrentar todos os perigos da cidade, especialmente de certos bairros, acrescentando mais umpossvel alvo aos muitos que j l existem. No ser ento necessrio possuir mais de uma alma?No o mesmo que viver mil paixes, mil sentimentos contraditrios e simultneos?...

    Auguste de Maulincour lanou-se a essa existncia ardente com verdadeiro amor, porquepor meio dela experimentava todas as agruras e todos os prazeres. Andava disfarado Parisafora, vigiava todas as esquinas da Rue Pagevin ou da Rue des Vieux-Augustins. Corria como umcaador entre a Rue de Mnars e a Rue Soly e de novo entre a Rue Soly e a Rue de Mnars, semconhecer nem a vingana, nem o preo com que seriam punidos ou recompensados tantosdesvelos, tantas caminhadas e tantos artifcios!... Enquanto isso, no havia chegado ainda quelaimpacincia que corri as entranhas e faz escorrer o suor; em geral, caminhava tranqilo e cheiode esperana, pensando que madame Jules no se arriscaria durante os primeiros dias a retornarao local em que fora surpreendida. Desse modo, ele havia consagrado os primeiros dias adesvendar todos os segredos da rua. Como era ainda um aprendiz de espio, no ousavaquestionar nem a porteira, nem o sapateiro que instalara sua loja na casa em que se apresentaramadame Jules; em vez disso, esperava poder arranjar um posto de observao na casa localizada frente do apartamento misterioso. Assim, estudava o terreno, queria conciliar a prudncia e a

  • impacincia, a ansiedade de seu amor com a busca do segredo.Nos primeiros dias do ms de maro, no meio dos planos que arquitetava a fim de dar seu

    grande golpe, abandonando o tabuleiro urbano depois de uma dessas partidas assduas que, porenquanto, ainda no haviam resultado em lucro algum, ele retornava pelas quatro horas a suamanso, aonde fora chamado para resolver um assunto relativo ao servio da guarda, quando foiapanhado, na Rue Coquillire, por uma dessas chuvas violentas que fazem transbordarrepentinamente a gua das sarjetas e das quais cada gota, ao tombar sobre as poas dguaformadas ao longo da via pblica, dava um estalo to forte quanto uma badalada de relgio.Nessas ocasies, quem anda a p por Paris obrigado a parar imediatamente e refugiar-se sob otoldo de uma loja ou no interior de um caf, caso seja bastante rico para pagar sua hospitalidadeforada; ou, em caso de urgncia, sob o telhado de um porto de carruagens, o asilo da gentepobre ou malvestida. Por que ser que nenhum de nossos pintores no procurou ainda reproduzirem suas telas as fisionomias de um enxame de parisienses agrupados sob o prtico mido de umacasa a fim de escapar de um aguaceiro? Onde encontrar um tema mais sugestivo para um quadro?Inicialmente, ele pode encontrar um pedestre sonhador ou filosfico, que observa com prazer osriscos formados pelas gotas de chuva contra o fundo acinzentado da atmosfera, uma espcie decaneluras semelhantes aos jatos caprichosos dos filetes coloridos incrustados em vidro; ou osturbilhes de gua branca que o vento faz rolar como uma poeira luminosa contra as telhas dostetos; ou os caprichosos gargarejos que brotam por entre a espuma que escorre das calhascrepitantes; ou as mil e uma outras coisinhas, to insignificantes quanto admirveis, estudadascom delcia esttica pelos desocupados involuntrios, apesar das vassouradas de gua suja comque so brindados pelo proprietrio que tenta impedir o alagamento de sua casa. Depois existe opedestre conversador, que se lamenta pelo incmodo e fica batendo papo com a porteira, apoiadaem sua vassoura como um granadeiro sobre seu fuzil; e o transeunte indigente, caprich