Mulher de 30 Anos - Honore de Balzac

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MULHER DE TRI TA A OS Honor de Balzac

A MOA o princpio do ms de abril de 1813, houve um domingo cuja manh prometia um desses dias radio sos em que os parisienses vem, pela primeira vez no ano, as ruas sem lama e o cu sem nuvens. Pouco antes do meio-dia, uma carruagem puxada por dois fogosos cavalos desembocava na rua de Rivoli pela rua Castiglione e parava por detrs de vrias outras, estacionadas junto da grade novamente aberta ao centro do terrao dos Feuillants. A veloz carruagem era dirigida por um homem de aspecto preocupado e doentio; seus grisalhos cabelos mal lhe cobriam o crnio amarelado e tornavam-no precocemente velho; entregou as rdeas ao lacaio que, a cavalo, seguia a carruagem, e desceu para tomar nos braos uma jovem, cuja beleza atraiu a ateno dos ociosos que passeavam no terrao. Ao se pr de p para fora da carruagem, a delicada mulher deixou-se complacentemente agarrar pela cintura e passou os braos em volta do pescoo do seu guia, que a deps no passeio sem amarrotar a guarnio do seu vestido de repes verde. Um amante no teria tido tanto cuidado. O desconhecido devia ser pai dessa criana, que, sem lhe agradecer, travou familiarmente seu brao e arrastou-o para o jardim. O velho pai notou os olhares maravilhados de alguns rapazes, e a tristeza de seu rosto desapareceu por um momento. Embora tivesse ultrapassado havia muito a idade em que os homens devem contentar-se com os falaciosos prazeres que a vaidade produz, ele sorriu. Pensam que voc minha mulher disse ao ouvido da jovem, recompondo-se e caminhando com uma lentido que a desesperou. Parecia mais envaidecido pela filha e gozava, tal vez mais do que ela, os olhares que os curiosos lanavam aos pezinhos bem calados, deliciosa cintura desenhada por um corpinho de rendas e ao vioso pescoo que um colarinho bordado no ocultava por completo. Os movimentos do andar erguiam por instantes a saia da jovem e deixavam ver acima das botinas a forma de uma perna finamente modelada por uma meia de seda transparente. Por isso, mais de um transeunte passou adiante do par, a fim de admirar ou tornar a ver o rosto juvenil e moldurado por finos cabelos castanhos, e cuja brancura era realada tanto pelos reflexos do cetim rosa de seu elegante chapu como pelo desejo e impacincia que transpareciam no semblante dessa encantadora criatura. Uma doce malcia animava seus belos olhos negros e amendoados, de sobrancelhas bem arqueadas e compridas pestanas. A vida e a mocidade ostentavam os seus tesouros naquele rosto vivido e naquele busto, gracioso ainda, no obstante o cinto ento usado sob o peito. Insensvel s homenagens, a jovem olhava com uma espcie de ansiedade para o palcio das Tulherias, a meta, sem dvida, do seu alvoroado passeio. Faltavam quinze para o meio-dia. Apesar da hora matutina, algumas senhoras, que teriam desejado mostrar- se em lindas toilettes, voltavam do palcio, no sem lhe dirigir um olhar aborrecido, como se estivessem arrependidas de haver chegado demasiado tarde para apreciar um espetculo almejado. Algumas palavras, que haviam escapado ao mau humor dessas formosas passeantes desapontadas e que a jovem desconhecida ouvira, inquietaram-na sobremodo. O ancio observava, com um olhar mais curioso que zombeteiro, os sinais de impacincia e receio que se refletiam no gracioso rosto da sua companheira, e fazia-o talvez com demasiado cuidado para no se lhe notar qualquer inteno paternal. Esse domingo era o dcimo-terceiro do ano de 1813. Dois dias depois, apoleo partia para aquela fatal campanha, durante a qual ia perder sucessivamente Bssieres e Duroc, ganhar as memorveis batalhas de Lutzen e de Bautzen, ver-se trado pela ustria, Saxnia, Baviera, por Bernadotte, e disputar a terrvel batalha de Leipzig. A magnfica parada comandada pelo imperador devia ser a ltima daquelas que excitaram por tanto

tempo a admirao dos parisienses e dos estrangeiros. A vetusta guarda ia executar pela ltima vez as sbias manobras, cuja pompa e preciso maravilharam, algumas vezes, at mesmo esse gigante, que se preparava ento para o seu duelo com a Europa. Um sentimento triste levava as Tulherias uma populao brilhante e curiosa. Cada um parecia adivinhar o futuro, e talvez pressentia que mais de uma vez a imaginao teria de retraar o quadro dessa cena, quando esses tempos hericos da Frana adquirissem, como hoje, cores quase fabulosas. Vamos mais depressa, meu pai! dizia a moa com ar travesso, arrastando o velho. Ouo os tambores. So as tropas que entram nas Tulherias respondeu o velho. Ou que desfilam ... Vejo toda a gente voltar! replicou a jovem com um mau-humor infantil que fez o pai sorrir. A parada s comea ao meio-dia e meia disse o velho, quase correndo atrs da impaciente filha. Vendo-se o movimento que ela imprimia ao brao direito, dir-se-ia que assim acelerava o passo. A sua mozinha, bem enluvada, amarrotava impacientemente um leno e semelhava-se ao remo de um barco que sulca as ondas. O ancio sorria por momentos, mas de vez em quando certa preocupao entristecia-lhe o rosto magro. Seu amor por aquela encantadora criatura tanto o fazia admirar o presente como temer o futuro. Parecia dizer intimamente: Ela feliz hoje; ser sempre?. Porque os velhos geralmente tendem a turvar com seus pesares o futuro dos jovens. Quando o pai e a filha chegaram ao peristilo do pavilho em cujo topo flutuava a bandeira tricolor e por onde os passantes seguem do jardim das Tulherias para o Carrousel, os guardas gritaramlhes: o se passa mais! A jovem ps-se na ponta dos ps, e pde ver uma profuso de damas enfeitadas que atravancavam os dois lados da velha arcada em mrmore por onde de via passar o imperador. Bem v, meu pai, viemos muito tarde! A expresso de tristeza que se lia no seu rosto traa a importncia que lhe merecia assistir quela revista. O melhor, Jlia, irmos embora; decerto voc no vai querer ser pisada. Fiquemos, meu pai. Daqui eu ainda posso ver o imperador; se ele tivesse morrido durante a campanha, eu jamais poderia v-lo. O pai estremeceu ao ouvir essas palavras egostas; a filha tinha lgrimas na voz; ele fitou-a e julgou notar sob as plpebras baixas algumas lgrimas causadas menos pelo desespero que por um desses primeiros desgostos, cujo segredo fcil a um velho pai adivinhar. De sbito, Jlia ruborizou e soltou uma exclamao, cujo sentido no foi compreendido nem pelas sentinelas, nem pelo ancio. A esse grito, um oficial que ia do ptio para a escada voltou-se vivamente, avanou at a arcada do jardim, reconheceu a jovem por um momento oculta pelos grandes bons de plo dos granadeiros e revogou imediatamente, para ela e para o pai, a ordem que ele prprio dera; depois, sem dar a mnima importncia aos murmrios da elegante multido que enchia a arcada, atraiu docemente para si a encantadora mocinha. J no me admiro da clera nem da impacincia de Jlia, pelo fato de voc estar de servio disse o ancio ao oficial, num tom entre srio e zombeteiro. Senhor duque tornou o jovem, se desejam conseguir um bom lugar no nos percamos em conversas. O imperador no gosta de esperar, e eu fui encarregado pelo marechal de dar o aviso.

Enquanto falava, tomava com certa familiaridade o brao de Jlia e levava-a rapidamente para o Carrousel. Jlia notou com espanto uma multido enorme que se comprimia no pequeno espao entre as pa redes cinzentas do palcio e os marcos unidos por correntes que cercavam grandes quadrados ensaibrados no meio do ptio das Tulherias. O cordo de sentinelas, formado para deixar uma passagem livre ao imperador e ao seu estado-maior, s a muito custo continha a massa impaciente e ruidosa como um enxame. Ser mesmo uma maravilha? perguntou Jlia, sorrindo. Cuidado! advertiu o oficial, que agarrou Jlia pela cintura e, erguendo-a com fora e rapidez, levou-a para junto de uma coluna. Sem esse brusco movimento, a sua irrequieta parenta seria pisada pelo cavalo branco, ajaezado com uma sela de veludo verde e ouro, que o mameluco de apoleo segurava pela rdea, quase sob a arcada, a dez passos atrs de todos os cavalos que esperavam os oficiais superiores, companheiros do imperador. O jovem colocou o pai e a filha perto do primeiro marco da direita frente da multido, e, por um sinal de cabea, recomendou-os aos dois velhos granadeiros, entre os quais se achavam. Quando o oficial voltou ao palcio, a felicidade e a alegria transpareciam no seu rosto, alterado um momento pelo susto do perigo que Jlia correra; esta tinha-lhe apertado a mo misteriosamente, fosse para lhe agradecer a proteo que acabava de lhe prestar ou para lhe dizer: Enfim, vou v- lo! Inclinou at meigamente a cabea em resposta saudao respeitosa que, assim como ao pai, lhe fez o oficial antes de desaparecer com presteza. O velho, que parecia ter deixado de propsito os dois jovens juntos, permanecia numa atitude pensativa, um pouco atrs da filha; observava-a, porm, de soslaio e tentava inspirar-lhe uma falsa segurana, mostrando-se absorto na contemplao do esplndido espetculo que o Carrousel oferecia. Quando Jlia dirigiu ao pai o olhar de um discpulo com receio do mestre, o velho respondeu-lhe at com um sorriso de benevolente alegria; mas o seu olhar perscrutador seguira o oficial at a arcada e no perdera um gesto sequer daquela rpida cena. Que belo espetculo! exclamou Jlia em voz baixa, apertando a mo do pai. O aspecto pitoresco e grandioso que o Carrousel apresentava naquele momento fazia com que essa exclamao fosse repetida por milhares de espectadores, em cujos rostos se estampava a mais viva admirao. Uma outra ala da multido, to compacta como aquela em que se achavam o ancio e sua filha, ocupava, numa linha paralela ao palcio, o estreito espao que fica ao longo da grade do Carrousel. Essa multido acabava de desenhar nitidamente, pela variedade das toilettes das senhoras, o imenso quadriltero que formam as construes das Tulherias e a grade recm-colocada. Os regimentos da velha guarda que iam ser passados em revista enchiam esse vasto terreno, onde formavam em frente ao palcio imponentes linhas azuis de dez filas de fundo. Um pouco mais longe do recinto e no Carrousel, achavam-se tambm em linhas paralelas vrios regimentos de infantaria e cavalaria, prontos a desfilar sob o arco triunfal que orna o centro da grade e no topo do qual se viam, ento, os magnficos cavalos de Veneza. A banda de msica dos regimentos, colocada sob as galerias do Louvre, estava escondida pelos lanceiros polacos de servio. Grande parte do quadrado coberto de areia achava-se vazio como uma arena preparada para os movimentos desses corpos silenciosos, cujas massas dispostas com a simetria da arte militar refletiam os raios solares nos focos triangulares de dez mil baionetas. A brisa, agitando os penachos dos soldados, fazia-os ondear como as rvores fustigadas numa floresta sob um vento impetuoso. Esses velhos grupos, mudos e brilhantes, ofereciam mil contrastes de cores, devido diversidade dos uniformes, dos ornamentos, das armas, das agulhetas. Esse quadro imenso, miniatura de um campo de batalha antes do combate, achava-se poeticamente emoldurado, com todos

os seus acessrios e detalhes bizarros, pelas altas edificaes majestosas, cuja imobilidade parecia imitada pelos chefes e soldados. O espectador involuntariamente comparava esses muros de homens aos muros de pedra. O sol da primavera, que lanava profusamente sua luz sobre os muros brancos, construdos na vspera, e sobre os muros seculares, iluminava plenamente aqueles inmeros rostos crestados que atestavam os perigos passados e aguardavam gravemente os perigos futuros. Os coronis de cada regimento passavam de momento a momento frente desses homens hericos. Por trs das colunas cerradas das tropas matizadas de prata, de azul, de prpura e de ouro, os curiosos podiam ver as bandeirolas tricolores presas nas lanas de seis infatigveis cavaleiros polacos, que, semelhantes aos ces conduzindo um rebanho por um campo, voltejavam incessantemente entre as tropas e os curiosos a fim de impedir que estes invadissem o pequeno espao de terreno que lhes era concedido junto grade imperial. Todos aqueles movimentos levavam a crer que se estava no palcio da Bela Adormecida. A brisa da primavera, agitando o plo dos bons dos granadeiros, atestava a imobilidade dos soldados, assim como o surdo murmrio da multido acusava o seu silncio. De raro em raro, o rudo de um tambor, um leve toque dado por inadvertncia numa caixa e repetido pelos ecos do palcio imperial, assemelhava-se aos troves ainda longnquos que anunciam a tempestade. Aquela multido espera continha um entusiasmo indescritvel. A Frana ia apresentar suas despedidas a apoleo, na vspera de uma campanha cujos perigos eram previstos pelo ltimo dos cidados. Tratava-se agora, para o imprio francs, de ser ou no ser. Tal pensamento parecia animar a multido civil e a militar, que se apinhava, igualmente silenciosa, no recinto onde pairavam a guia e o gnio de apoleo. Esses soldados, esperana da Frana, esses soldados, sua ltima gota de sangue, eram tambm objeto da inquieta curiosidade dos espectadores. Entre a maior parte dos assistentes e dos militares, dizia-se um adeus que seria talvez eterno; porm, todos os coraes, mesmo os mais hostis ao imperador, dirigiam ardentes votos ao cu pela glria da ptria. Os homens mais cansados da luta travada entre a Europa e a Frana haviam todos depostos os seus dios ao passar sob o arco do triunfo, compreendendo que, no dia do perigo, apoleo era toda a Frana. O relgio do castelo bateu meia hora. este momento, cessou o rumor da multido, e o silncio tornou-se to profundo que poderia ouvir-se a voz de uma criana. O ancio e sua filha, que pareciam viver pelos olhos, distinguiram ento um rudo de esporas e um tinir de espadas que ecoaram sob o sonoro peristilo do castelo. Um homenzinho bastante gordo, de uniforme verde, calas brancas e botas de montaria, apareceu de sbito, tendo na cabea um chapu de trs bicos to prestigioso como a sua prpria pessoa; flutuava-lhe no peito a larga fita vermelha da Legio de Honra, e da cintura pendia-lhe um espadim. O homem foi visto por todos, e ao mesmo tempo, de todos os pontos da praa. o mesmo instante, rufaram os tambores, as duas orquestras comearam por uma frase cuja expresso guerreira foi repetida por todos os instrumentos, desde a flauta mais suave at o maior dos tambores. A esse belicoso apelo, as almas estremeceram, as bandeiras saudaram, os soldados apresentaram armas num movimento unnime e regular que agitou as espingardas desde a primeira ltima fila do Carrousel. As vozes de comando repetiram-se de fila em fila como um eco. Gritos de Viva o imperador! foram levantados pela multido entusiasmada. Enfim, tudo estremeceu, tudo se moveu, tudo se agitou. apoleo montara o cavalo. Esse movimento dera vida quelas massas silenciosas, voz aos instrumentos, vo s guias e s bandeiras, emoo a todos os rostos. As paredes das altas galerias daquele velho castelo pareciam gritar tambm: Viva o imperador!. o foi algo de humano, foi uma magia, um simulacro do poder divino, ou melhor, uma fugidia imagem desse fugidio reino. O homem cercado de tanto

amor, dedicao, entusiasmo, votos, para quem o sol dispersara as nuvens do cu, permaneceu no seu cavalo, trs passos frente do pequeno esquadro dourado que o seguia, tendo o gro-marechal sua esquerda, e direita o marechal de servio. Em meio a tantas emoes que ele excitara, nenhum trao do seu rosto parecia alterado. Oh! meu Deus, sim. Em Wagran no meio do fogo, em Moscou entre os mortos, ele est sempre tranqilo como o Batista. Essa resposta a inmeras interrogaes era dada pelo granadeiro, que se achava ao lado da jovem. Jlia conservou-se durante um momento absorta na contemplao daquele rosto, cuja serenidade indicava to grande segurana de poder. O imperador avistou a senhorita de Chatillonest e inclinou-se para Duroc, dizendo-lhe uma curta frase que fez sorrir o gro-marechal. As manobras comearam. Se at ento a mocinha partilhara a sua ateno entre o rosto impassvel do imperador e as linhas azuis, verdes e vermelhas das tropas, neste momento ocupou-se quase exclusivamente, em meio a movimentos rpidos e regulares executados pelos velhos soldados, de um jovem oficial que corria a cavalo entre as linhas moventes e voltava com uma atividade infatigvel para o grupo, frente do qual brilhava o simples apoleo. Esse oficial montava um admirvel cavalo negro e distinguia-se entre aquela luzidia multido pelo belo uniforme azul-celeste dos oficiais de ordenana do imperador. Os bordados de sua farda brilhavam to vivamente ao sol, e o penacho da barretina, estreito e comprido, lanava tais reflexos, que os espectadores por certo o compararam a um fogo-ftuo, a uma alma visvel encarregada pelo imperador de animar, de conduzir esses batalhes, cujas armas ondeantes faiscavam chamas quando, a um sinal nico dos seus olhos, se quebravam, se reuniam, se agitavam como as guas de um sorvedouro, ou passavam pela sua frente como as vagas longas, retas e altas que o oceano em clera atira sobre as praias. Terminadas as manobras, o oficial de ordenana, correndo a toda brida, parou junto ao imperador para esperar as suas ordens. esse momento, achava-se ele a vinte passos de Jlia, em frente do grupo imperial, numa atitude assaz parecida com a que Grard deu ao general Rapp no quadro da Batalha de Austerlitz. Foi ento permitido mocinha admirar o seu bem-amado em todo o seu esplendor militar. O coronel Victor dAiglemont, com apenas trinta anos, era alto, bem-feito, esbelto; e os seus felizes dotes fsicos eram dignos de admirao, principalmente, quando empregava sua fora em subjugar um cavalo, cujo dorso elegante e gil parecia vergar-se sob o seu peso. O rosto msculo e trigueiro possua esse encanto inexplicvel que uma perfeita regularidade de feies comunica a semblantes juvenis. A fronte era larga e alta. Os olhos de fogo, sombreados por espessas sobrancelhas e orlados de compridas pestanas, desenhavam-se como duas ovais brancas entre duas linhas negras. O nariz oferecia a graciosa curva de um bico de guia. O vermelho dos lbios era realado pelas sinuosidades do inevitvel bigode preto. Suas faces amplas e fortemente coloridas ofereciam tons castanhos e amarelos que denotavam extraordinrio vigor. Seu rosto, um desses em que a bravura estampou seu distintivo, oferecia o tipo que o artista hoje procura quando pensa representar um dos heris da Frana imperial. O cavalo, coberto de suor e cuja cabea agitada revelava extrema impacincia, as duas patas dianteiras afastadas e colocadas numa mesma linha, agitava as longas crinas da sua bela cauda, e a sua dedicao oferecia uma imagem material da que o seu dono manifestava pelo imperador. Vendo o bem-amado to ocupado em procurar os olhares de apoleo, Jlia experimentou um sentimento de cime, pensando que ele ainda no havia olhado para ela. De sbito, o soberano pronuncia uma palavra. Victor esporeia os flancos do cavalo e parte a galope; mas a sombra de um marco projetada na areia assusta o animal, que se espanta, recua e empina to bruscamente que o cavaleiro parece estar em perigo. Jlia solta um grito, empalidece; todos fitam-na com curiosidade; ela no v ningum: os seus olhos esto

fixos no cavalo demasiado fogoso que o oficial castiga enquanto corre a transmitir as ordens de apoleo. Esses quadros estonteantes absorviam Jlia de tal modo que, sem perceber, se agarrara ao brao do pai, a quem revelava involuntariamente seus pensamentos pela presso mais ou menos viva dos seus dedos. Quando Victor escapou de ser derrubado do cavalo, a mocinha agarrou-se ainda mais violentamente ao pai, como se ela mesma estivesse em perigo de cair. O velho contemplava com dolorosa e sombria inquietao o rosto da filha, e sentimentos de piedade, de cime e at de pesar deslizaram em todas as suas rugas contradas. Mas quando o brilho inusitado dos olhos de Jlia, o grito que soltara e o movimento convulsivo dos seus dedos acabaram de lhe desvendar um amor secreto, por certo ele teve algumas tristes revelaes do futuro, por que seu rosto tomou ento uma expresso sinistra. esse momento, a alma de Jlia parecia ter-se confundido com a do oficial. Um pensamento mais cruel que todos aqueles que haviam assustado o ancio crispou lhe as feies do rosto doloroso, quando viu dAiglemont trocar, ao passar na sua frente, um olhar de inteligncia com Jlia, que tinha os olhos midos e estava vivamente corada. E bruscamente levou a filha para o jardim das Tulherias. Mas, meu pai dizia ela , ainda h na praa do Carrousel regimentos que vo manobrar. o, minha filha, as tropas j esto desfilando. Parece-me que se engana, meu pai. O senhor dAiglemont deve t-las mandado avanar... Mas, minha filha, sinto-me mal e no quero demorar-me. Jlia no teve dificuldade em acreditar no pai, quando olhou para seu rosto abatido por inquietaes paternais. Sofre muito, meu pai? perguntou Jlia com indiferena, to grande era a sua preocupao. Cada dia que passa no para mim um favor? respondeu o ancio. Vai ainda afligir-me falando da sua morte? Estava to alegre! Quer fazer o favor de afugentar suas mrbidas idias? Ah! exclamou o pai, soltando um suspiro. Criana cheia de mimo! Os melhores coraes so s vezes bem cruis. Consagrar-lhe a nossa vida, no pensar seno em voc, preparar seu bem-estar, sacrificar nossos gostos s suas fantasias, ador-la, dando lhe at nosso sangue, isso no significa nada? s vezes voc aceita tudo com indiferena. Para obter sempre seu sorriso e seu amor desdenhoso, seria necessrio ter o poder de Deus. Pois ento chega um outro! Um amante, um marido que nos leva seu corao. Jlia, atnita, fitou o pai, que caminhava lentamente, lanando-lhe turvos olhares. Voc se oculta at de ns tornou o velho , e talvez de voc mesma... Que diz, meu pai? Parece-me, Jlia, que voc tem segredos para mim. Voc est amando tornou vivamente o ancio, notando o rubor que subira ao rosto da filha. Ah!, eu esperava v-la fiel a seu velho pai at a minha morte; esperava conserv-la junto de mim, feliz e radiante! Admir-la como estava agora. Ignorando seu destino, teria podido acreditar num futuro tranqilo para voc; mas agora impossvel ter esperana de felicidade na sua vida, porque voc ama mais o coronel do que o primo. J no posso ter dvidas. E por que me havia de ser proibido am-lo? indagou ela com viva expresso de curiosidade. Ah!, minha Jlia, voc no me compreenderia replicou o pai suspirando. Mas diga tornou Jlia com um gesto de amuo.

Pois bem, minha filha, escute-me. As moas sonham muitas vezes com uns seres nobres encantadores, criaturas perfeitamente ideais, e assim forjam quimeras acerca dos homens, dos sentimentos e do mundo; depois atribuem inocentemente a um carter as perfeies com que sonham e nele confiam; amam no homem da sua escolha esse ente imaginrio; porm, mais tarde, quando j no podem fugir desgraa, a aparncia enganadora que embelezaram, o seu primeiro dolo, enfim, transforma-se num esqueleto odioso. Jlia, eu preferia que voc amasse um velho a v-la amar o coronel. Ah!, se voc pudesse adivinhar o que acontecer daqui a dez anos, faria justia minha experincia. Conheo Victor: a sua alegria sem esprito, alegria de caserna, no tem talento e perdulrio. um desses homens que o cu criou para comer e digerir quatro refeies por dia, dormir, amar a primeira que lhe aparece e bater-se. o compreende a vida. O seu bom corao, porque o tem, lev-lo- talvez a dar a bolsa a um desgraado, a um camarada; porm, um indiferente, e no possui essa delicadeza de corao que nos torna escravos da felicidade de uma mulher; e ignorante, egosta... e muita coisa mais. Mas, meu pai, ele necessariamente h de ter esprito e inteligncia para ter chegado a ser coronel. Minha querida, Victor permanecer coronel toda a sua vida. Ainda no encontrei ningum que fosse digno de voc tornou o ancio com certo entusiasmo. Calou-se por um momento, contemplou a filha e acrescentou: Mas, minha pobre Jlia, voc ainda muito jovem, muito fraca, muito delicada para suportar os desgostos e as responsabilidades do casamento. DAiglemont foi estragado com mimos pelos pais, assim como voc por sua me e por mim. Como esperar que vocs dois possam se entender, com vontades diferentes cujas tiranias sero inconciliveis? Ser ou vtima ou tirano. Qualquer dessas alternativas produz igual soma de males na vida de uma mulher. Contudo, voc meiga e modesta, curvar-se- a princpio. Enfim, voc tem continuou com a voz alterada uma delicadeza de sentimentos que ficar desconhecida, e ento o acabou, as lgrimas embargaram-lhe a voz. Victor retomou, aps uma pausa h de ferir as singelas qualidades de sua alma juvenil. Eu conheo os militares, minha querida filha; vivi nos exrcitos. raro que o corao dessa gente possa triunfar dos hbitos produzidos, ou pelas desgraas em meio s quais vivem, ou pelos azares de sua vida aventureira. Quer ento, meu pai replicou Jlia num tom meio srio, meio zombeteiro , contrariar meus sentimentos, casar-me a seu gosto e no ao meu? Casar-lhe a meu gosto! exclamou o pai com um gesto de surpresa. Eu, de quem logo voc no mais ouvir a voz to amigavelmente zangada. Sempre reconheci que os filhos atribuem a um sentimento pessoal os sacrifcios que lhes impem os pais! Case com Victor, minha Jlia. Um dia voc deplorar amargamente a sua nulidade, a sua falta de ordem, o seu egosmo, a sua falta de delicadeza, a sua inpcia em amor e mil outros pesares que voc sofrer por sua causa. Ento lembre-se de que sob estas rvores a voz proftica de seu velho pai ressoou em vo aos seus ouvidos! O velho calou-se. Tinha surpreendido a filha meneando a cabea com ar de dvida. Ambos se dirigiram para a grade onde a carruagem os esperava. Durante esse trajeto silencioso, a jovem examinou furtivamente o rosto do pai, e pouco a pouco foi-se tornando sria. A profunda dor gravada na fronte inclinada do ancio causou-lhe vivssima impresso. Prometo-lhe, meu pai disse Jlia com uma voz meiga e alterada , que no tornarei a falar de Victor, sem que veja destrudas as prevenes que nutre contra ele. O velho fitou a filha com pasmo. Duas grossas lgrimas deslizaram-lhe ao longo das faces enrugadas. o pde beijar a filha vista da multido que os rodeava, porm

apertou-lhe ternamente a mo. Subindo carruagem, todos os pensamentos melanclicos haviam desaparecido completamente. A atitude um pouco triste de sua filha o inquietava bem menos que a alegria inocente, cujo segredo escapara a Jlia durante a revista. os primeiros dias do ms de maro de 1814, pouco menos de um ano depois dessa revista do imperador, uma calea rodava pela estrada de Amboise a Tours. Ao deixar a abbada verde das nogueiras sob as quais se ocultava o correio de Frilliere, o carro seguiu com tal rapidez que depressa chegou ponte construda sobre o Cise, na embocadura desse rio com o Loire, e ali parou. Acabava de quebrar-se um tirante, devido ao movimento impetuoso que o cocheiro, sob a ordem de seu patro, imprimira aos quatro possantes cavalos. Assim, por obra do acaso, as duas pessoas que se achavam na calea tiveram ocasio de contemplar um dos mais belos recantos que as sedutoras margens do Loire apresentam. direita o viajante abrange com um olhar todas as sinuosidades do Cise, que se arrasta, como uma serpente prateada, pela erva dos prados aos quais os primeiros rebentos da primavera davam ento as cores da esmeralda. esquerda surge o Loire em toda a sua magnificncia. Os raios do sol cintilavam sobre aquela vasta extenso dgua. A cada passo se sucediam ilhas verdejantes como as pedras engastadas de um colar. Do lado oposto do rio, os mais lindos campos da Touraine desenrolam os seus tesouros numa extenso imensa. Ao longe, o olhar s encontra como limites as colinas do Cher, cujos cimos desenhavam naquele momento linhas luminosas sobre o transparente azul do cu. Atravs da tnue folhagem das ilhas ao fundo do quadro, Tours parece, como Veneza, emergir do seio das guas. Os campanrios da sua velha catedral elevam-se nos ares, onde se confundiam ento com as criaes fantsticas de algumas nuvens esbranquiadas. Alm da ponte sobre a qual parara o veculo, o viajante descobre na sua frente, ao longo do Loire at Tours, uma cadeia de rochedos, que por uma fantasia da natureza parece ter sido colocada para servir de dique ao rio, cujas vagas minam incessantemente a pedra, espetculo que sempre maravilha o viajante. A aldeia de Vouvray acha-se como que enterrada nos desfiladeiros desses rochedos, que comeam a formar um cotovelo em frente da ponte do Cise. De Vouvray at Tours, as medonhas sinuosidades dessa colina so habitadas por uma populao de vinhateiros. Em mais de um local existem trs patamares de casas, abertas na rocha e reunidas por perigosas escadas talhadas na prpria pedra. Por cima de um telhado, uma moa de saia vermelha corre ao seu jardim. A fumaa de uma chamin se eleva entre as cepas e as parras nascentes de uma vinha. Homens cavam campos perpendiculares. Uma velha tranqilamente sentada sobre um pedao de rochedo fia sombra de uma amendoeira, e v passar os viajantes a seus ps, sorrindo do susto deles. As fendas do solo preocupam-na tanto quanto as runas de um velho muro, cujos alicerces so retidos apenas pelas razes retorcidas de um manto de hera. O martelo dos tanoeiros faz ressoar as cpulas das adegas. Enfim, a terra est por toda a parte cultivada e fecundada, l onde a natureza recusou terra indstria humana. Assim, nada comparvel, no curso do Loire, ao rico panorama que a Touraine apresenta aos olhos do viajante. O trplice quadro dessa cena, cujos aspectos so apenas esboados, oferece alma um desses espetculos que ela inscreve para sempre na sua recordao; e, quando um poeta o desfrutou, evoca-o muitas vezes em sonhos para reconstruir seus fabulosos efeitos romnticos. o momento em que a calea chegou ponte do Cise surgiram algumas velas brancas entre as ilhas do Loire, dando assim nova harmonia quele aprazvel lugar. O odor dos salgueiros que orlam o rio mesclava seus perfumes penetrantes aos da brisa mida. Os pssaros faziam ouvir seus prolixos concertos; o canto montono de um guardador de cabras juntava-lhes um tanto da sua melancolia, enquanto os gritos dos marinheiros anunciavam uma agitao distante.

Lnguidos vapores, caprichosamente parados ao redor das rvores esparsas, imprimiam uma ltima graa nessa paisagem. Era a Touraine em toda a sua glria, a primavera em todo o seu esplendor. Essa parte da Frana, a nica que os exrcitos estrangeiros no deviam perturbar, era no momento a nica que se achava tranqila: dir-se-ia que ela desafiava a invaso. Uma cabea coberta por um gorro de quartel apareceu portinhola da calea assim que esta parou; em seguida, um impaciente militar saltou para a estrada disposto a invectivar o cocheiro. A percia com que esse nativo da regio consertava o tirante partido tranqilizou o coronel conde dAiglemont, que voltou para junto do carro, estendendo os braos como para esticar os msculos adormecidos; bocejou, admirou a paisagem, e tocou no brao de uma jovem cuidadosamente envolta numa capa forrada de peles. Acorde, querida disse o militar com a voz um tanto rouca ; olhe essa terra. E magnfica! Jlia ps a cabea fora da calea. Um capuz forrado de peles de marta cobria-lhe a cabea, e as pregas da capa em que se envolvia ocultavam-lhe to bem as formas que apenas se lhe via o rosto. Jlia dAiglemont j no se parecia com a jovem que h pouco corria alegre e feliz revista das Tulherias. O rosto, sempre delicado, havia perdido as cores rosadas e frescas. Os cabelos negros, um pouco desfrisados pela umidade da noite, faziam sobressair a brancura mate da tez, cuja vivacidade parecia adormecida. Seus olhos, contudo, tinham um brilho sobrenatural; mas, abaixo das plpebras, certos tons violeta se faziam notar sobre o rosto fatigado. Examinou com olhar indiferente os campos do Cher, o Loire e as suas ilhas, Tours e os altos rochedos de Vouvray; depois, sem querer olhar para o vale encantador do Cise, recolheu-se ao fundo da calea e disse, num tom de voz que acusava extrema fraqueza: Sim, admirvel. Ela havia, como se v, para a sua desgraa, triunfado sobre o pai. o gostaria de viver aqui, Jlia? Oh!, aqui ou ali disse com indiferena. Voc sente alguma coisa? perguntou-lhe o coronel dAiglemont. Absolutamente nada respondeu com momentnea vivacidade. Contemplou o marido sorrindo e acrescentou: Sinto vontade de dormir. Ouviu-se de repente o galope de um cavalo. Victor dAiglemont largou a mo da esposa e voltou a cabea para o cotovelo que a estrada forma naquele lugar. o momento em que Jlia deixou de ser vista pelo coronel, a expresso de alegria que ela dera ao rosto plido desapareceu por completo. o experimentando nem o desejo de tornar a ver a paisagem nem a curiosidade de saber quem era o cavaleiro que galopava com tal mpeto, voltou a encostar-se ao canto da calea, e seus olhos fixaram-se sem curiosidade na garupa dos cavalos. Tinha um ar to estpido como pode ser o de um campons breto ouvindo o sermo do seu vigrio. Um rapaz montando um cavalo puro-sangue surgiu de repente de um pequeno bosque de choupos e de espinheiros em flor. um ingls disse o coronel. Meu Deus! Sim, meu general replicou o cocheiro. E da raa daqueles que querem comer a Frana, segundo dizem por a. O desconhecido era um desses viajantes que se encontravam no continente quando apoleo mandou prender todos os ingleses, como represlia ao atentado cometido contra o direito das gentes pelo ministrio de Saint-James, na ocasio da ruptura do Tratado de Amiens. Submetidos ao capricho do poder imperial, nem todos esses prisioneiros ficaram nas residncias onde tinham sido encontrados, nem naquelas que

tiveram primeiro a liberdade de escolher. A maior parte dos que habitavam ento a Touraine havia sido para a transferida de diversos pontos do imprio, onde sua permanncia parecera comprometer os interesses da poltica continental. O jovem prisioneiro, que passeava naquele momento o seu tdio matinal, era uma vtima do poder burocrtico. Havia dois anos que uma ordem emanada do Ministrio das Relaes Exteriores o arrancara ao clima de Montpellier, onde a ruptura da paz o surpreendera enquanto procurava curar-se de uma doena de peito. Logo que o jovem reconheceu um militar na pessoa do conde dAiglemont, apressou-se a evitar-lhe os olhares, voltando assaz bruscamente a cabea para os prados do Cise. Todos esses ingleses so insolentes como se o mundo lhes pertencesse murmurou o coronel. Felizmente, Soult vai dar-lhes o merecido castigo. Quando o prisioneiro passou em frente da calea, lanou ali um olhar; no obstante a rapidez, pde admirar a expresso de melancolia que dava um encanto indefinvel ao rosto pensativo da condessa. H muitos homens cujo corao se comove poderosamente pela simples aparncia de sofrimento numa mulher, para eles, a tristeza parece ser uma promessa de constncia no amor. Inteiramente absorta na contemplao de uma almofada, Jlia no prestou ateno nem ao cavalo nem ao cavaleiro. O tirante fora rapidamente consertado com toda a solidez. O conde subiu para o veculo. O cocheiro tratou de recuperar o tempo perdido e conduziu com rapidez os dois viajantes por um caminho ao longo dos rochedos, em meio aos quais amadurecem os vinhos de Vouvray e de onde se erguem bonitas casas. Vem-se, ao longe, as runas da to clebre abadia de Marmoutiers, retiro de so Martinho. Que pretender de ns esse difano milorde? exclamou o coronel, voltando a cabea a fim de assegurar-se de que o cavaleiro, que desde a ponta do Cise seguia a calea, era o jovem ingls. Como o desconhecido no cometia a menor inconvenincia pela qual pudesse ser censurado, o coronel contentava-se em lanar-lhe um olhar ameaador, mas no pde, apesar da sua involuntria inimizade, impedir-se de notar a beleza do cavalo e o garbo do cavaleiro, O rapaz possua um desses rostos britnicos, cuja cor to suave, a pele to fina e branca, que somos tentados por vezes a supor que pertencem ao corpo delicado de uma donzela. Era louro, alto e magro. otava-se no seu traje esse requinte de cuidado e asseio que distingue os elegantes da grave Inglaterra. Dir-se-ia que ele ruborizava mais de pudor que de prazer ao aspecto da condessa. Uma vez apenas Jlia ergueu os olhos para o estrangeiro, mas foi por assim dizer obrigada pelo marido, que queria faz-la admirar as pernas de um cavalo de raa pura. Os olhos de Jlia encontraram, ento, os do tmido ingls. A partir desse momento, o cavaleiro, em vez de seguir ao lado da calea, caminhava a alguns passos de distncia. A condessa mal olhou para o desconhecido o notou nenhuma das perfeies que lhe eram atribudas, e encostou-se de novo ao fundo da calea, depois de ter feito um leve movimento de plpebras, concordando com a opinio do marido. O coronel adormeceu novamente, e os dois esposos chegaram a Tours sem terem trocado uma s palavra e sem que o panorama encantador, sempre renovado, atrasse uma s vez o olhar de Jlia. Enquanto o marido dormitava, a senhora dAiglemont contemplou-o vrias vezes. uma delas, um solavanco fez-lhe cair sobre o regao uma medalha que usava, suspensa ao pescoo por um cordo de luto, e apareceu-lhe de sbito o retrato do pai. Ento as lgrimas, at ali contidas, correram-lhe pelas faces. O ingls viu, talvez, os traos midos e brilhantes que o pranto deixou por um momento no rosto plido da condessa, mas que o ar prontamente secou. Encarregado pelo imperador de transmitir as suas ordens ao marechal Soult, que devia defender a Frana da invaso dos ingleses no Barn, o coronel dAiglemont aproveitava aquela misso para subtrair a mulher aos perigos que ento

ameaavam Paris e a conduzia a Tours para a casa de uma velha parenta. Logo a carruagem cruzou a ponte, na Grande-Rua, e parou em frente do antigo palcio onde, havia tempos, residia a condessa de Listomre-Landon. A condessa era uma dessas lindas velhas senhoras de tez plida, cabelos brancos, que tm um sorriso fino e se vestem e se penteiam seguindo uma moda desconhecida. Retratos setuagenrios do sculo de Lus XV, essas mulheres so quase sempre carinhosas e meigas, como se ainda amassem; menos piedosas que devotas e ainda menos devotas do que parecem; bastante perfumadas, falando bem, conversando melhor, e rindo mais de uma recordao do que de um gracejo. O modernismo as desagrada. Quando uma idosa criada de quarto anunciou condessa (pois cedo reaveria seu ttulo) a visita de um sobrinho que no via desde o comeo da guerra da Espanha, ela depressa tirou os culos, fechou a Galeria da antiga corte, seu livro favorito; depois, encontrou certa agilidade para chegar escadaria no momento em que os dois subiam os degraus. A tia e a sobrinha lanaram uma outra rpido olhar. Bom dia, minha tia exclamou o coronel abraando a condessa com precipitao. Trago-lhe uma jovem para cuidar. Venho confiar-lhe o meu tesouro. A minha Jlia no vaidosa nem ciumenta; tem a doura de um anjo... Mas espero que no se estrague aqui... Atrevido! respondeu a condessa, lanando- lhe um olhar brincalho. Com uma graa amvel, se ofereceu para beijar Jlia, que permanecia pensativa e parecia mais embaraada que curiosa. Vamos, pois, travar conhecimento, minha queridinha? perguntou a condessa. o se assuste muito comigo; sempre que me encontro com gente nova, procuro no ser velha. Antes de entrar no salo, a condessa, segundo o hbito da provncia, dera ordens para o almoo dos seus dois hspedes; porm, o conde interrompeu a eloqncia da tia, dizendo-lhe muito seriamente que s podia dispensar-lhe o tempo que o postilho levaria para mudar os cavalos. Portanto, dirigiram-se imediatamente sala de jantar, e o coronel teve apenas o tempo necessrio para narrar tia os acontecimentos polticos e militares que o obrigavam a pedir-lhe abrigo para sua jovem esposa. Entrementes, a tia olhava alternadamente para o sobrinho, que falava sem ser interrompido, e para a sobrinha, cuja palidez e tristeza pareceram-lhe causadas por aquela separao, e dizia intimamente: Ah! Estes amam-se de verdade. Adeus, minha querida disse ele beijando a mulher, que o seguira at o ptio. Oh!, Victor, deixe-me acompanhar-lhe um pouco mais longe pedia Jlia, carinhosa , no queria deixar-lhe... Voc pensa nisso? Bem, adeus replicou Jlia , j que voc quer assim. A carruagem desapareceu. Voc ama muito o meu pobre Victor? perguntou a condessa sobrinha, interrogando-a com um desses olhares perscrutadores que as velhas lanam s jovens. Ai!, minha senhora respondeu Jlia, no preciso amar um homem para despos-lo? Essa ltima frase foi acentuada por um tom de ingenuidade que traa ao mesmo tempo um corao puro ou mistrios profundos. Ora, seria bem difcil a uma mulher, amiga de Duclos e do marechal de Richelieu, no procurar adivinhar o segredo daquele casal. A tia e a sobrinha, ainda junto ao porto, achavam-se entretidas a ver a calea que se afastava. Os olhos da condessa no exprimiam o amor como a marquesa o compreendia. A boa senhora era uma provenal, e suas paixes tinham sido violentas.

Deixou-se, ento, fascinar pelo patife do meu sobrinho? perguntou sobrinha. A condessa estremeceu involuntariamente, porque o tom e o olhar da velha senhora pareciam-lhe anunciar um profundo conhecimento do carter de Victor. A senhora dAiglemont, inquieta, mostrou uma dissimulao inbil, primeiro refgio dos coraes ingnuos e sofredores. A senhora de Listomre contentou-se com as respostas de Jlia; mas pensou com prazer que sua solido ia ser distrada por alguma intriga amorosa que a divertiria. Quando a condessa dAiglemont se achou num grande salo forrado de tapearias emolduradas por frisos dourados, sentada em frente de um bom fogo, abrigada da corrente de ar por um biombo chins, a sua tristeza no conseguiu dissiparse. Era difcil poder nascer a alegria entre decoraes antigas e mveis seculares. Contudo, a jovem parisiense sentiu certo prazer naquela profunda solido e no silncio da solene provncia. Depois de ter trocado algumas palavras com aquela tia, a quem escrevera apenas uma carta logo aps o casamento, ficou silenciosa como se estivesse ouvindo uma pera. Foi s passadas duas horas de um sossego digno da Trappa que Jlia notou a sua indelicadeza para com a tia; lembrou-se de que s lhe havia dirigido respostas frias e indiferentes. A velha senhora tinha respeitado o capricho da sua sobrinha com esse instinto cheio de graa que caracteriza a gente de outro tempo. esse momento, a velha marquesa tricotava. Tinha-se ausentado, com efeito, por diversas vezes, para se ocupar de um certo quarto verde, onde a condessa devia instalar-se e onde os criados da casa colocavam a bagagem; mas voltara depois para seu lugar numa grande poltrona, e olhava de soslaio para a jovem sobrinha. Envergonhada por se ter abandonado sua irresistvel meditao, Jlia tentou fazer-se perdoar zombando de si mesma. Minha querida filha, ns conhecemos a dor das vivas respondeu a tia. Seria preciso ter quarenta anos para adivinhar a ironia que os lbios da velha senhora exprimiam. o dia seguinte, a condessa achava-se com melhor disposio; conversou. A senhora de Listomre no mais desesperou de tornar socivel aquela esposa novata, que primeiro considerara como uma selvagem e estpida; falou-lhe sobre as belezas da regio, dos bailes e das casas que podiam freqentar. Todas as perguntas da marquesa foram, durante esse dia, outras tantas ciladas que ela, por antigo hbito da corte, no pde deixar de fazer sobrinha, a fim de lhe adivinhar o carter. Jlia resistiu durante alguns dias a todos os pedidos que lhe fez a tia para procurar distraes fora de casa. o obstante o desejo que tinha a velha senhora de mostrar orgulhosamente a sua linda sobrinha, acabou por renunciar a apresent-la sociedade. A condessa achara um pretexto para sua solido e tristeza no desgosto que lhe causara a morte do pai, pelo qual ainda estava de luto. Passados oito dias, a velha senhora encheu-se de admirao pela doura anglica, a graa modesta, o esprito indulgente de Jlia, e interessou-se desde ento profundamente pela misteriosa melancolia que consumia aquele corao. A condessa era uma dessas mulheres que nasceram para ser amveis e que parecem trazer a felicidade consigo. A sua companhia tornou-se to agradvel e preciosa senhora de Listomre que esta se apaixonou pela sobrinha e desejava nunca deix-la. Um bastou para estabelecer entre as duas uma amizade eterna. A velha senhora notou, no sem surpresa, as mudanas que se operaram na fisionomia da senhora dAiglemont. As cores vivas que lhe abrasavam o rosto desvaneceram se insensivelmente e a tez ia se tornando plida. Enquanto perdia seu esplendor primitivo, Jlia ia ficando menos triste. Por vezes a boa senhora despertava na sua jovem parenta mpetos de alegria, logo contidos por um pensamento importuno. Adivinhou ela que no era a recordao do pai, nem a ausncia de Victor, a causa da profunda melancolia que lanava um vu na existncia da sua sobrinha; depois acorreram-lhe suspeitas to ms que lhe foi difcil determinar a verdadeira causa do mal, pois a verdade talvez s se encontra por acaso. Um dia, enfim,

Jlia fez brilhar aos olhos da tia espantada um esquecimento completo do casamento, uma loucura de criana travessa, uma candura de esprito, urna digna da infncia. Que esse esprito delicado, e por vezes to profundo, que distingue as jovens francesas. A senhora de Listomre resolveu, ento, sondar os mistrios daquela alma, cuja extrema naturalidade equivalia a uma dissimulao impenetrvel. Aproximava-se a noite, as duas senhoras estavam sentadas junto de uma janela que dava para a rua. Jlia tornara-se de novo pensativa. Passava nesse momento um cavaleiro. A tem uma das suas vtimas disse a velha marquesa. A senhora dAiglemont encarou a tia, manifestando um espanto misturado com certa inquietao. um jovem ingls, um fidalgo, Artur Ormond, filho mais velho de lorde Grenville. A sua histria interessante. Veio a Montpellier em 1802 esperando que o ar desse lugar, para onde foi mandado, pelos mdicos, o curaria de uma doena de peito da qual podia morrer. Como todos os seus compatriotas, foi preso por Bonaparte na ocasio da guerra, porque esse monstro no pode nunca deixar de guerrear. Como distrao, o ingls comeou a estudar a sua doena, que julgavam mortal. Insensivelmente, tomou gosto pela anatomia, pela medicina, apaixonou-se por essas artes, o que extraordinrio num homem de qualidades; mas tambm o regente dedicou-se qumica! Em resumo, o senhor Artur fez espantosos progressos, mesmo para os professores de Montpellier; o estudo consolou-o do cativeiro, e ao mesmo tempo ele se curou radicalmente. Diz-se que esteve dois anos sem falar, respirando raramente, dormindo numa estrebaria, bebendo leite de uma vaca da Sua e alimentando-se de agries. Desde que se encontra em Tours, no procurou ningum, orgulhoso como um pavo, mas a minha querida fez decerto a sua conquista, pois de fato no por minha causa que ele passa debaixo das nossas janelas duas vezes por dia desde que voc est aqui... Com certeza, ele a ama. Essas ltimas palavras despertaram a condessa como por magia. Sorriu de um modo que surpreendeu a marquesa. Longe de testemunhar essa satisfao instintiva que qualquer mulher, por mais severa que seja, sente ao saber que h algum infeliz por sua causa, o olhar de Jlia foi apagado e frio, O seu rosto indicava um sentimento de repulsa, quase de horror. Essa proscrio no era aquela que uma mulher amorvel fulmina sobre o mundo inteiro em proveito de um nico ente: ela sabe ento rir e gracejar; no, Jlia tinha, nesse instante, a atitude de algum que sente ainda a recordao de um perigo que a fez sofrer muitssimo. A tia, convencida de que a sua sobrinha no amava o sobrinho, ficou estupefata ao descobrir que tambm no amava outro. Tremeu ao ter de reconhecer em Jlia um corao desiludido, uma jovem a quem a experincia de um dia, de uma noite talvez, havia bastado para avaliar a nulidade de Victor. Se ela o conhece, tudo est dito pensou ; o meu sobrinho vir talvez a sofrer os inconvenientes do matrimnio. Propunha-se converter Jlia s doutrinas monrquicas do sculo de Lus XV; mas algumas horas mais tarde soube, ou antes, adivinhou a situao bastante vulgar na sociedade a que a condessa devia a sua extrema melancolia. Jlia, que de sbito se tornara pensativa, retirou-se para o quarto mais cedo que de costume. Depois de a criada de quarto t-la ajudado a se despir, a jovem senhora conservou-se perto da lareira, recostada numa poltrona de veludo amarelo, mvel antigo, to favorvel para os aflitos como para os venturosos; chorou, suspirou, pensou; depois puxou para junto de si uma mesa pequena, procurou papel e ps-se a escrever. As horas passaram rapidamente, a confidncia que Jlia fazia nessa carta parecia custar-lhe muito, cada frase provocava longas meditaes; de repente, a jovem prorrompeu em lgrimas. esse momento, os relgios davam duas horas. Inclinou para o peito a cabea to pesada como

a de um agonizante; depois, quando a ergueu, Jlia viu aparecer de sbito a tia, como uma personagem que se tivesse despregado da tapearia que cobria as paredes. Que tem, minha filha? indagou a velha marquesa. Por que vela at to tarde, e por que chora aqui sozinha, na sua idade? Sentou-se sem cerimnia perto da sobrinha e devorou com os olhos a carta comeada. Escrevia a seu marido? Por acaso sei onde ele est? replicou a condessa. A tia pegou o papel e leu. Trouxera consigo os culos, havia nisto premeditao. A inocente criatura deixou-a ler a carta, sem fazer o mnimo reparo. o era nem por falta de dignidade nem por qualquer sentimento de culpa secreta que lhe roubasse toda a energia. o; a tia encontrou-a ali num desses momentos de crise em que a alma est como afrouxada, em que tudo se torna indiferente, o bem como o mal, o silncio como a confiana. Semelhante a uma jovem virtuosa que acabrunha o amante de improprios, mas que noite se encontra to triste, to abandonada, que o deseja e quer um corao onde deponha os seus sofrimentos, Jlia deixou violar, sem proferir uma palavra, o sigilo que a delicadeza imprime numa carta aberta, e ficou pensativa enquanto a marquesa lia. Minha querida Lusa, por que se h de reclamar tantas vezes o cumprimento da promessa mais imprudente que se possam fazer duas jovens ignorantes? Muitas vezes voc se pergunta, escreve-me, indagando por que h seis meses no respondo s suas perguntas. Se no compreende meu silncio, hoje conhecer talvez a causa, sabendo os mistrios que estou traindo. Os teria sepultado no fundo do meu corao, se voc no me avisasse do seu prximo casamento. Vai casar, Lusa. Esta notcia fez-me tremer. Pobre criana, case; depois, dentro de alguns meses, um dos seus mais amargos pesares ser causado pela recordao do que j fomos, quando uma noite, em Ecouen, subindo as montanhas mais altas, contemplamos o formoso vale que tnhamos a nossos ps para admirar o sol poente, cujos reflexos nos envolviam. Sentamos-nos num rochedo e camos num devaneio a que sucedeu a mais doce melancolia. Voc foi a primeira a pensar que aquele sol distante nos falava do futuro. ramos ento curiosas e tontas! Voc recorda todas as nossas extravagncias? Beijemo-nos como dois amantes, dizamos. Juramos ambas que a primeira que casasse narraria fielmente outra esses segredos do himeneu, essas alegrias que as nossas almas juvenis nos afiguravam to deliciosas. Essa noite ser o seu desespero, Luisa. aquele tempo voc era nova, formosa, despreocupada, se no feliz; um marido ir torn-la, em poucos dias, o que eu j sou: feia, doente e velha. Dizer-lhe como me sentia altiva, vaidosa e feliz por desposar o coronel Victor dAiglemont seria uma loucura! E como havia de dizer agora? J nem me lembro sequer de mim. E poucos instantes, a minha infncia tornou-se como um sonho. A minha atitude durante o dia solene, que consagrava um vnculo cuja extenso ignoro, no foi isenta de censuras. Meu pai mais uma vez tentou reprimir a minha alegria, que se tornava inconveniente, e as minhas palavras, que revelavam malcia, justamente por que no a tinham. Fazia mil criancices com o vu nupcial, o vestido e as flores. Quando me vi sozinha, noite, no aposento a que fora conduzida com grande aparato, pensei pregar uma pea a Victor e, enquanto o esperava, sentia palpitaes de corao semelhantes s que noutro tempo se apoderavam de mim nesses dias solenes de 31 de dezembro, quando, sem ser vista, me introduzia no salo em que estavam reunidos os brinquedos. Meu marido procurou-me ao entrar no quarto, e o riso sufocado que fiz ouvir sob as musselinas que me serviam de esconderijo foi a ltima nota dessa suave alegria que animou os brinquedos da nossa infncia.... Quando a velha marquesa terminou a leitura dessa carta que, em vista do seu comeo, devia conter observaes bem tristes, colocou lentamente os culos sobre a mesa e,

segurando a carta, fitou a sobrinha com seus olhos verdes, cujo brilho no fora amortecido pelos anos. Minha filha disse , uma senhora casada, escrevendo deste modo a uma menina, falta s convenincias... Era o que eu pensava respondeu Jlia, interrompendo sua tia , e tinha vergonha de mim, enquanto a senhora lia... Se mesa uma iguaria no nos agrada, no devemos por isso enjoar as outras pessoas, minha filha replicou a velha senhora com bondade , principalmente quando, desde Eva at ns, o casamento foi considerado uma coisa to excelente... J no tem me? perguntou a marquesa. A condessa estremeceu, depois ergueu docemente a cabea e disse: Tenho lamentado mais de uma vez a sua falta, de um ano para c. Mas fiz mal em no seguir os conselhos de meu pai, que no queria Victor para genro. Olhou para a tia, e um frmito de alegria lhe secou as lgrimas quando viu o ar de bondade que animava aquele velho rosto. Estendeu a mo marquesa, que parecia pedir-lhe; e, quando seus dedos se estreitaram, as duas mulheres acabaram por se compreender. Pobre rf! acrescentou a marquesa. Essas palavras foram para Jlia um ltimo raio de luz. Pareceu-lhe ouvir ainda a voz proftica do pai. As suas mos ardem! Esto sempre assim? perguntou a bondosa velha. H apenas sete ou oito dias que a febre me deixou respondeu Jlia. Tinha febre e nada me dizia! H um ano que a tenho disse Jlia com certa ansiedade pudica. Assim, meu anjinho tornou a tia , o casamento no tem sido para voc mais que um longo sofrimento? A condessa no ousou responder; mas fez um gesto afirmativo que traa todas as suas angstias. E infeliz, ento? Oh!, no, minha tia. Victor me ama com idolatria, e eu o adoro; ele to bom! Sim, ama-o; mas foge dele, no verdade? Sim... Algumas vezes. Ele me procura constantemente. Quando se v sozinha, no lhe perturba a idia de que ele a surpreenda? verdade, minha tia. Mas amo-o muitssimo, asseguro-lhe. o se acusa, em segredo, de no saber ou no poder partilhar os seus prazeres? o lhe acode, por vezes, a idia de que o amor legtimo mais difcil de ser vivido do que uma paixo criminosa? Oh! E isso mesmo disse Jlia chorando. Adivinha, pois, tudo onde s encontro enigmas? Os meus sentidos esto adormecidos, no tenho idias; em suma, vivo dificilmente. Minha alma acha-se oprimida por uma indefinvel apreenso que paralisa meus sentimentos e me lana num torpor contnuo. Sinto me sem voz para queixar-me, sem palavras para exprimir minha dor. Sofro e tenho vergonha de sofrer, vendo Victor feliz com o que me mata. Tudo isso so criancices, insignificantes! exclamou a tia, cujo rosto emagrecido animou-se de repente por um alegre sorriso, reflexo das alegrias da sua mocidade. E a senhora tambm se ri! disse com desespero a condessa. Fui assim mesmo replicou prontamente a marquesa. Agora que Victor a deixou s, no se sente melhor e mais tranqila; sem prazeres, mas sem sofrimentos? Jlia abriu os olhos espantados.

Enfim, meu anjo, adora Victor, no assim? Mas preferiria ser sua irm a ser sua mulher, e no se d bem com o casamento. E isso mesmo, minha tia. Mas por que sorri? Oh!, tem razo, pobre criana; no h nada de alegre em tudo isto. O seu futuro seria bem negro se eu no a tomasse sob minha proteo e se a minha velha experincia no soubesse adivinhar a causa bem inocente dos seus desgostos. Meu sobrinho no merecia ser to feliz, o tolo! o reinado do nosso bem-amado Lus XV, uma jovem esposa que se encontrasse na situao em que a vejo depressa teria castigado o marido por proceder como um reles mercenrio. Os militares s ordens desse tirano imperial so todos uns vis ignorantes. Tomam a brutalidade por galanteria, conhecem tanto as mulheres como sabem am-las; julgam que, por terem de ir ao encontro da morte no dia seguinte, esto dispensados de terem, na vspera, cuidados e atenes conosco. outros tempos sabia-se to bem amar como morrer com propsito. Minha querida sobrinha, hei de ensin-lo a voc. Porei termo ao triste desacordo, bastante natural, que os levaria a odiarem-se mutuamente, a desejarem o divrcio, caso no morresse antes de ser dominada pelo desespero. Jlia escutava a sua tia com pasmo e assombro, surpreendida por encontrar nas suas palavras uma sensatez que pressentia melhor que compreendia e deveras assustada por ouvir de uma parenta cheia de experincia, embora sob forma mais suave, a opinio formulada por seu pai a respeito de Victor. Ela teve, talvez, uma ntida intuio do futuro e sentiu o peso das desgraas que haviam de acabrunh-la, pois rompeu em pranto, e lanou-se nos braos da outra dizendo: Seja minha me! A tia no chorou, porque a Revoluo deixou poucas lgrimas nos olhos das mulheres da antiga monarquia. Outrora, o amor e, mais tarde, o Terror familiarizaram-nas com as peripcias mais pungentes, de modo que conservam em meio aos perigos da vida uma dignidade fria, uma afeio sincera, mas pouco expansiva, que lhes permite manteremse sempre fiis etiqueta e a uma nobreza de porte que os novos costumes tolamente repudiaram. A velha marquesa abraou a jovem, beijou-a na fronte com uma ternura e uma graa que muitas vezes se encontram mais nas maneiras e nos hbitos dessas mulheres do que no seu corao; consolou a sobrinha com palavras meigas, prometeulhe um futuro feliz, embalou-a com promessas de amor, enquanto a ajudava a se deitar como se ela fosse sua filha, uma filha querida, cuja esperana e tristeza partilhava; revia-se nova, inexperiente e linda em sua sobrinha. A condessa adormeceu feliz por ter encontrado uma amiga, uma me a quem doravante tudo poderia confiar. a manh seguinte, quando a tia e a sobrinha se beijaram com essa cordialidade e esse ar de inteligncia que atestam um progresso no sentimento, uma harmonia mais perfeita entre duas almas, ouviram os trotes de um cavalo, voltaram a cabea ao mesmo tempo e viram o jovem ingls que passava vagarosamente, segundo o seu costume. Parecia ter feito certo levantamento sobre a vida das duas mulheres solitrias, e nunca deixava de passar enquanto almoavam ou jantavam. O cavalo retardava o trote sem necessidade de aviso; depois, durante o tempo que levava a percorrer o espao ocupado pelas duas janelas da sala de jantar, Artur lanava um olhar melanclico, quase sempre desdenhado pela condessa, que no lhe prestava a mnima ateno. Mas, habituada a essas curiosidades mesquinhas que se do s mais pequeninas coisas, a fim de animar a vida de provncia, e das quais dificilmente se ocupam os espritos superiores, a marquesa divertia-se com o amor tmido e srio to tacitamente expresso pelo ingls. Aqueles olhares peridicos tinham-se tornado um hbito para ela, e todos os dias assinalava a passagem de Artur com novos gracejos. Tomando lugar mesa, as duas senhoras olharam simultaneamente para o ilhu. Os olhos de Jlia e de Artur encontraram-se dessa vez com tal preciso de

sentimento que a jovem ruborizou. Imediatamente, ele apressou o cavalo e partiu a galope. Que devo fazer? perguntou Jlia tia. Quem vir esse ingls aqui pode supor que sou... Sim respondeu a tia, interrompendo-a. E ento posso dizer-lhe que no passeie por aqui? o seria faz-lo pensar que perigoso? E, de resto, pode impedir-se um homem de passar por onde lhe apetea? Amanh, deixaremos de fazer as refeies nesta sala; quando j no nos vir aqui, o jovem cavaleiro h de cessar de am-la pela janela. Eis, minha querida criana, como procede uma mulher que tem experincia da vida. Mas a desgraa de Jlia devia ser completa. Logo que as duas senhoras se levantaram da mesa, chegou o criado de Victor, inesperadamente. Vinha de Bourges a todo galope, por atalhos, e trazia para a condessa uma carta de seu marido. Victor, que havia abandonado o imperador, anunciava esposa a queda do regime imperial, a tomada de Paris e o entusiasmo que se declarava a favor dos Bourbons em todos os pontos da Frana; mas, no sabendo como penetrar em Tours, rogava-lhe se dirigisse a toda pressa a Orleans, onde esperava encontrar-se com passaportes para ela. Esse criado, antigo militar, devia acompanhar Jlia de Tours a Orleans, caminho que Victor julgava ainda livre. A senhora no tem um instante a perder disse o criado ; os prussianos, os austracos e os ingleses vo fazer sua juno em Blois ou em Orleans... Em poucas horas, a jovem condessa fez seus preparativos e partiu numa antiga sege que a tia lhe em prestou. Por que no vem conosco a Paris? perguntou Jlia na despedida, beijando a marquesa. Agora que os Bourbons voltam ao poder, encontraria l... Sem esse regresso inesperado, teria ido da mesma forma, minha pobre criana, porque meus conselhos so necessrios a voc e a Victor. Vou, pois, preparar-me para encontrar-me com vocs brevemente. Jlia partiu acompanhada pela sua criada de quarto e pelo velho militar, que galopava ao lado da sege, velando pela segurana da sua patroa. noite, quando chegaram ao ponto onde deviam trocar os cavalos, um pouco adiante de Blois, Jlia, inquieta por ouvir um carro que a seguia desde Amboise, ps-se portinhola, a fim de ver quais eram os seus companheiros de jornada. A claridade da lua permitiu-lhe avistar Artur de p, a trs passos de distncia, com os olhos fixos na sege. Os seus olhares encontraram-se. A condessa recuou vivamente para o fundo da carruagem, mas com um sentimento de medo que a fez palpitar. Como a maior parte das jovens realmente inocentes e sem experincia, via uma falta no amor que involuntariamente inspirara a um homem. Sentia um horror instintivo, que lhe dava talvez a conscincia da sua fraqueza perante to audaciosa agresso. Das mais fortes do homem esse terrvel poder de atrair a preocupao de uma mulher cuja imaginao, naturalmente mutvel, se assusta ou se ofende com uma perseguio. A condessa recordou-se do conselho da tia e resolveu no tornar a mostrar-se durante a viagem, mas, a cada parada, ouvia o ingls, que passeava entre as duas seges; e, na estrada, o rudo importuno do carro que a seguia ressoava incessantemente a seus ouvidos. Pensou que logo que se reunisse ao marido, Victor saberia defend-la contra essa singular perseguio. Mas, e se esse rapaz no me amasse? Essa foi a ltima reflexo que ela fez. Ao chegar a Orleans, a sua sege de posta foi detida por ordem dos prussianos, levada para o ptio de uma estalagem e guardada por soldados. A resistncia era impossvel. Os estrangeiros explicaram aos trs viajantes ,por meio de sinais imperiosos, que tinham recebido ordem de no deixar sair ningum do

carro. A condessa chorou durante duas horas, prisioneira entre soldados que fumavam, riam e por vezes fitavam-na com insolente curiosidade; finalmente, viu-os afastaram-se com certo respeito, ouvindo um galopar de cavalos. Eram oficiais superiores que chegavam tendo frente um general austraco, que se acercou da sege. Senhora disse o general queira receber nossas desculpas; houve um engano, pode continuar a viagem sem receio, e aqui tem um passaporte que lhe evitar qualquer outra contrariedade... Jlia, toda trmula, pegou no papel e balbuciou umas palavras vagas. Via, junto do general e com o uniforme de oficial ingls, Artur, a quem, sem dvida, devia aquela pronta libertao. Alegre e melanclico ao mesmo tempo, o jovem ingls voltou a cabea, e no ousou olhar para Jlia seno de soslaio. Graas ao passaporte, a condessa dAiglemont chegou a Paris sem outro contratempo. A encontrou o marido, que, desligado do juramento de fidelidade ao imperador, havia recebido o mais lisonjeiro acolhimento da parte do conde dArtois, nomeado general-chefe do reino por seu irmo Luis XVIII. Victor teve um posto eminente na guarda pessoal, que correspondia ao grau de general. Todavia, em meio s festas que assinalaram o regresso dos Bourbons, a pobre Jlia sofreu um profundo desgosto que muito devia influir na sua vida: perdeu a marquesa de Listomre-Landon. A velha senhora morreu de alegria e da gota que lhe subiu ao corao, vendo novamente em Tours o duque de Angoulme. Assim, a nica pessoa que, por conselhos sensatos, poderia tornar mais perfeito o acordo entre a mulher e o marido, essa pessoa morreu. Jlia sentiu toda a extenso dessa perda. o havia mais ningum entre ela e o marido; mas, jovem e tmida, devia preferir o sofrimento queixa. A prpria perfeio do seu carter opunha-se a que ela ousasse subtrair-se aos deveres ou tentasse procurar a causa de suas dores, porque faz-las cessar seria coisa muito delicada. Jlia teria medo de ofender seu pudor de moa. Uma palavra sobre o destino do senhor dAiglemont sob a Restaurao. o se encontram muitos homens cuja profunda nulidade um segredo para a maior parte das pessoas que os conhecem? Uma posio elevada, um nascimento ilustre, atribuies importantes, certo verniz de polidez, grande reserva no procedimento ou prestgio da fortuna so para eles como guardas que impedem os crticos de penetrar a sua existncia ntima. Essa gente se parece com os reis, cuja verdadeira estatura, carter e costumes nunca podem ser bem conhecidos nem justamente apreciados, porque so vistos de muito longe ou de muito perto. Essas personagens de mrito factcio interrogam em vez de falar, possuem a arte de dispor os outros em cena para evitar posar diante deles; depois, com grande habilidade, movimentam cada um pelo fio das suas paixes ou dos seus interesses e zombam assim de homens que lhes so realmente superiores, fazem deles fantoches e julgam-nos pequenos por que os rebaixaram at as suas pessoas. Obtm ento o triunfo natural de um pensamento mesquinho, porm fixo, sobre a mobilidade dos grandes pensamentos. De sorte que, para apreciar esses crebros ocos e pesar-lhes os valores negativos, o observador deve possuir um esprito mais sutil que superior, mais pacincia que alcance de vista, mais finura e tato que elevao e grandeza nas idias. o obstante, por maior habilidade que empreguem esses usurpadores em defender seus pontos fracos, -lhes bem difcil enganar as esposas, as mes, os filhos ou o amigo da casa. Esses, porm, quase sempre lhes guardam o segredo sobre um assunto que de algum modo toca honra comum, e muitas vezes at os ajudam a impor-se sociedade. Se, graas a essas conspiraes domsticas, muitos tolos passam por homens superiores, compensam o nmero de homens superiores que passam por tolos, de sorte que o estado social tem sempre a mesma massa de capacidades aparentes. Pensem agora no papel que deve representar uma mulher de esprito e de

sentimento na presena de um marido desse gnero; no se conseguem perceber existncias cheias de dores e dedicao cujos coraes ternos e delicados coisa alguma neste mundo poderia recompensar. Encontrando-se uma mulher forte nessa horrvel situao, sair dela por meio de um crime, como fez Catarina II, no obstante denominada A Grande. Mas, como nem todas as mulheres se encontram sentadas num trono, sofrem quase todas as desgraas domsticas, que, por serem obscuras, no so menos terrveis. Aquelas que procuram neste mundo consolaes imediatas aos seus males conseguem, apenas substitu-los por outros, quando querem conservar-se fiis aos seus deveres, ou cometem faltas, se violam as leis em proveito dos seus prazeres. Estas reflexes so inteiramente aplicveis histria secreta de Jlia. Enquanto apoleo se manteve no poder, o conde dAiglemont, coronel como tantos outros, bom oficial de ordenana, excelente para cumprir uma misso perigosa, porm incapaz de um comando de certa importncia, no excitou a mnima inveja, passou por um dos bravos que o imperador favorecia e foi o que os militares vulgarmente chamam um bom camarada. A Restaurao, restituindo-lhe o ttulo de marqus, no o encontrou ingrato; os Bouiions a Gand. Esse ato de lgica e de fidelidade fez mentir o horscopo que outrora o sogro tirara, predizendo que o genro permaneceria sempre coronel. o segundo regresso, nomeado general-de-diviso e tendo reconquistado seu ttulo de marqus, o senhor dAiglemont, com a ambio de chegar ao pariato, adotou as mximas e a poltica do Conservador; envolveu-se numa dissimulao que no ocultava coisa alguma, tornou-se grave, interrogador, de poucas falas, e foi tido como homem profundo. Usando sempre de uma extrema polidez, munido de frmulas, retendo e prodigalizando as frases j feitas que se cunham regularmente em Paris para dar em troco aos tolos o sentido das grandes idias ou fatos, as pessoas de suas relaes reputaram-no homem de gosto e saber. Teimoso nas suas opinies aristocrticas, foi citado como possuidor de esplndido carter. Se, por acaso, tornava-se descuidado ou alegre como fora noutro tempo, a significncia e a estultcia das suas frases tinham para os outros sutilezas diplomticas. Oh! Ele s diz o que lhe interessa pensavam as pessoas de categoria. Serviam-no to bem as suas qualidades como os seus defeitos. A sua bravura valera-lhe alta reputao militar, que coisa alguma desmentia, porque nunca tivera comando algum. Seu rosto msculo e nobre refletia pensamentos vastos, e s para a esposa era uma impostura. Ouvindo todo o mundo prestar justia aos seus talentos postios, o marqus dAiglemont acabou por se persuadir de que era um dos homens mais notveis da corte, onde, graas s aparncias, soube agradar e onde seus diferentes mritos foram aceitos sem protesto. Contudo, o senhor dAiglemont era modesto em sua casa, sentia instintivamente a superioridade da esposa, apesar de muito nova; e desse involuntrio respeito nasceu um poder oculto que a marquesa viu-se obrigada a aceitar, apesar de todos os seus esforos para afastar de si o pesado fardo. Conselheira do marido, ela dirigia-lhe os atos e a fortuna. Essa influncia antinatural foi para ela uma espcie de humilhao e a origem de muitos desgostos que sepultara no corao. Dizia-lhe seu instinto, to delicadamente feminino, que muito mais belo obedecer a um homem de talento que guiar um parvo e que uma esposa jovem, obrigada a pensar e a proceder como um homem, no nem mulher nem homem, abdica de todas as graas do seu sexo sem perder seus desgostos nem adquirir nenhum dos privilgios que as leis conferiram aos mais fortes. A sua existncia ocultava uma irriso bem amarga. o era ela obrigada a honrar um dolo oco? A proteger seu protetor, pobre ser que, por salrio de uma dedicao contnua, lhe oferecia o amor egosta dos maridos, s via nela uma mulher, no se dignava ou no sabia injria igualmente profunda inquietar-se com seus prazeres nem cuidar de sua tristeza e do seu definhamento? Como a maior parte dos

maridos que sentem o jugo de um esprito superior, o marqus salvava seu amorprprio deduzindo da fraqueza fsica a fraqueza moral de Jlia, que ele se comprazia em lastimar, pedindo contas ao destino por ter-lhe dado por esposa uma mulher doentia. Enfim, dizia- se vtima, quando era o carrasco. A marquesa, sobre carregada com todos os pesares daquela triste existncia, devia ainda sorrir ao seu imbecil senhor, ornamentar de flores uma casa de luto e ostentar felicidade num rosto empalidecido por secretos suplcios. Essa responsabilidade de honra, essa abnegao magnfica deram insensivelmente jovem marquesa uma dignidade de mulher, uma conscincia de virtude que lhe ser viram de escudo contra os perigos do mundo. Alm disso, para sondar a fundo aquele corao, talvez o sofrimento ntimo e oculto que coroava seu primeiro, seu ingnuo amor, a fizesse considerar com horror as paixes; talvez no conhecesse nem o arrebatamento nem as alegrias ilcitas mas delirantes que levam certas mulheres a esquecer as leis da prudncia, os princpios da virtude sobre os quais repousa a sociedade. Renunciando, como a um sonho, s douras, terna harmonia que a velha experincia da senhora de Listomre Landon lhe havia prometido, esperou com resignao o fim das suas penas, desejando morrer cedo. Desde seu regresso de Touraine, sua sade alterara-se cada vez mais, e a vida parecia-lhe medida pelo sofrimento; sofrimento, alis, elegante, doena quase voluptuosa na aparncia, e que podia passar aos olhos de pessoas superficiais por uma fantasia de mulher afetada. Os mdicos tinham condenado a marquesa a conservar-se deitada num div, onde se estiolava entre as flores que a rodeavam, murchando com elas. A sua fraqueza proibialhe os passeios e o ar livre; s saa em carruagem fechada. Sempre rodeada de todas as maravilhas do luxo e da indstria moderna, mais se assemelhava a uma rainha indolente que a uma enferma. Alguns amigos, talvez pelo seu infortnio e fraqueza, certos de a encontrarem sempre em casa e especulando sem dvida tambm sobre sua boa sade futura, iam levar-lhe notcias e inform-la dos mil acontecimentos insignificantes que tornam em Paris a existncia to variada. Sua melancolia, conquanto grave e profunda, era a melancolia da opulncia. A marquesa dAiglemont assemelhava-se a uma linda flor cuja raiz roda por um inseto nocivo. Aparecia algumas vezes nos sales, no por gosto, mas para obedecer s exigncias da posio a que aspirava seu marido. Sua voz e a perfeio do seu canto podiam permitir-lhe obter aplausos que geralmente agradam a uma jovem, mas para que lhe serviam xitos que ela no ligava a sentimentos nem a esperanas? O marido no gostava de msica. Enfim, sentia-se quase sempre contrafeita nos sales onde sua beleza lhe atraa homenagens interesseiras. Ali sua situao excitava certa compaixo cruel, uma curiosidade triste. Jlia sofria de uma inflamao geralmente mortal, que as mulheres confiam ao ouvido umas das outras e para a qual a nossa neologia ainda no achou nome. Apesar do silncio em que se escoava a sua vida, a causa do seu sofrimento no era segredo para ningum. Sempre jovem, no obstante o casamento, o mais rpido olhar a envergonhava. De sorte que, para evitar o rubor, mostrava-se sempre risonha, contente; afetava uma falsa alegria, dizia-se sempre bem ou afastava as perguntas acerca de sua sade com pudicas mentiras. Entretanto, em 1817, um fato contribuiu muito para modificar o estado deplorvel em que Jlia se afundara at ento. Teve uma filha e quis cri-la. Durante dois anos, as vivas distraes e as inquietas alegrias que do os cuidados maternais tornaram-lhe a existncia menos infeliz. Separou-se necessariamente do marido. Os mdicos prognosticaram-lhe melhor sade mas a marquesa no deu crdito queles pressgios. Como toda gente para quem a vida no tem encanto, via talvez na morte um desenlace feliz. o comeo do ano de 1819, a vida tornou-se-lhe mais cruel que nunca. o momento em que aplaudia a felicidade negativa que soubera conquistar, entreviu abismos medonhos; o marido, pouco a pouco, desabituara-se dela. Esse resfriamento de uma afeio j to morna e

egosta podia ser origem de mais um infortnio que o seu fino tato e a sua prudncia lhe faziam prever. Ainda que estivesse certa de conservar um grande poder sobre Victor e de haver obtido sua estima para sempre, temia a influncia das paixes sobre um homem to nulo e to vaidosamente irrefletido. Muitas vezes, seus amigos surpreendiam Jlia em longas meditaes; os menos perspicazes perguntavam-lhe a causa gracejando, como se uma jovem s pudesse pensar em frivolidades, como se no existisse quase sempre um sentido profundo nos pensamentos de uma me-de-famlia. De resto, tanto a desgraa como a verdadeira felicidade nos levam ao devaneio. s vezes, brincando com sua Helena, Jlia fitava-a com um olhar sombrio e cessava de responder a essas interrogaes infantis que causam tanto prazer s mes, para pedir conta do seu destino ao presente e ao futuro. Seus olhos enchiam-se ento de lgrimas quando, de repente, qualquer recordao lhe reavivava a cena de revista nas Tulherias. As palavras previdentes do pai ressoavam-lhe de novo ao ouvido, e a conscincia censurava-a por no as ter atendido. Dessa insensata desobedincia provinham todos os seus infortnios, e muitas vezes no sabia, entre todos, qual era o mais penoso. o somente os doces tesouros de sua alma permaneciam ignorados, como nunca conseguira fazer-se compreender pelo seu marido, nem mesmo nas coisas mais comezinhas. o momento em que a faculdade de amar se desenvolvia nela mais forte e ativa, o amor permitido, o amor conjugal extinguia-se em meio a graves sofrimentos fsicos e morais. Ademais, tinha pelo marido essa compaixo vizinha do desprezo, que destri com o tempo todos os sentimentos. Enfim, se as conversas com alguns amigos, se os exemplos ou se certas aventuras da alta sociedade no lhe tivessem mostrado que o amor pode causar imensa felicidade, seus desgostos ter-lhe-iam feito adivinhar as alegrias ntimas e puras que devem unir almas fraternais. o quadro que a memria lhe traava do passado, desenhava-se o rosto cndido de Artur cada dia mais puro e mais belo, mas rapidamente, pois no ousava demorar-se nessa lembrana. O amor silencioso e tmido do jovem ingls era o nico acontecimento que, depois do casamento, lhe havia deixado alguns vestgios suaves no corao sombrio e solitrio. Talvez todos os desenganos, todos os desejos frustrados que, gradualmente, entristeciam o esprito de Jlia remontassem, por um capricho natural da imaginao, a esse homem, cujos modos, sentimentos e carter pareciam oferecer tanta semelhana com os seus. Todavia, esse pensamento tinha sempre a aparncia de um capricho, de um sonho. Aps esse sonho impossvel, que morria sempre num suspiro, Jlia despertava mais infeliz e sentia mais suas dores latentes quando as ha via adormecido sob as asas de uma felicidade imaginria. s vezes seus queixumes assumiam um carter de loucura e de audcia, queria obter prazeres a todo custo; porm, mais freqentemente ainda, era presa de um terror estpido, escutava sem compreender, ou concebia pensamentos to vagos, to indecisos, que no encontraria palavras para os traduzir. Magoada nos seus mais ntimos desejos, nos costumes que em jovem sonhara, via-se obrigada a reter suas lgrimas. A quem havia de queixar-se? Quem a escutaria? Alm disso, ela possua essa extrema delicadeza de mulher, esse delicioso pudor de sentimento que consiste em calar uma queixa intil, em no desejar um triunfo que deve humilhar o vencedor e o vencido. Jlia tentava incutir sua capacidade, suas prprias virtudes ao senhor dAiglemont, e lisonjeava-se de gozar a felicidade que lhe faltava. Toda sua sabedoria de mulher era inutilmente empregada em atenes ignoradas por aquele cujo despotismo perpetuavam. Havia momentos em que o desgosto deixava-a como que embriagada, sem idias, meio louca; mas felizmente um sentimento de verdadeira piedade logo a reconciliava com uma suprema esperana; refugiava-se na vida futura, crena admirvel que a fazia aceitar de novo a sua dolorosa tarefa. Esses combates to terrveis, essas angstias ntimas eram obscuras, essas longas melancolias

eram desconhecidas; criatura alguma recolhia seus gemidos, seus olhares ternos, suas lgrimas amargas derramadas na solido. Os perigos da crtica situao a que insensivelmente chegara por fora das circunstncias revelaram-se em toda sua gravidade numa noite do ms de janeiro de 1820. Quando dois esposos se conhecem perfeitamente e esto muito habituados um ao outro, quando uma mulher sabe interpretar os gestos mais insignificantes de um homem e pode penetrar seus sentimentos ou as coisas que ele lhe oculta, sucede que brilha uma repentina claridade, devido s reflexes e reparos dados pelo acaso, ou tecidos a princpio descuidadamente. Amide, uma mulher desperta, de repente, beira ou no fundo de um abismo. Assim a marquesa, feliz por se achar s havia alguns dias, adivinhou o segredo da sua solido. Inconstante ou enfastiado, generoso ou cheio de compaixo por ela, seu marido no lhe pertencia mais. esse momento, Jlia no pensou em si nem nos seus sofrimentos, nem nos seus sacrifcios; s se lembrou de que era me e s considerou a fortuna, o futuro, a felicidade de sua filha, o nico ente de quem lhe vinha algum contentamento: a sua Helena, nico bem que a prendia vida. Agora desejava viver para preservar a filha do jugo medonho sob o qual uma madrasta sufocaria a vida daquela querida criana. A essa nova previso de um sinistro futuro, entregou-se a uma dessas meditaes ardentes que devoram anos inteiros. Da em diante, entre ela e o marido devia encontrar-se um mundo de pensamentos, cujo peso s ela suportaria. At ento, certa de ser amada por Vctor, tanto quanto ele podia amar, dedicara-se a uma felicidade que no partilhava; mas, presentemente, no tendo j a satisfao de saber que as suas lgrimas faziam a alegria do marido, sozinha no mundo, restava-lhe apenas a escolha dos infortnios. Em meio ao desnimo que, no sossego e silncio da noite, a deixava sem foras; no momento em que, levantando-se do div, ia contemplar a filha luz de um candeeiro, entrou o senhor dAiglemont, muito alegre. Jlia mostrou-lhe com admirao a filha, que dormia a sono solto; mas ele acolheu o entusiasmo da esposa com uma frase banal. esta idade, todas as crianas so graciosas. E depois de ter beijado com indiferena a testa da filha, cerrou as cortinas do bero, olhou para Jlia, pegou-lhe na mo e f-la sentar-se no mesmo div, onde ela acabava de remoer tantos pensamentos fatais. Est muito bonita esta noite, senhora dAiglemont! exclamou com aquela alegria insuportvel, cujo vazio a marquesa to bem conhecia. Onde passou a noite? perguntou Jlia, fingindo a mais absoluta indiferena. Em casa da senhora de Srizy. Pegara um objeto qualquer que estava sobre a lareira e examinava-o atentamente, sem ter notado os vestgios das lgrimas vertidas por sua mulher. Jlia estremeceu. As palavras seriam impotentes para exprimir a torrente de pensamentos que lhe escapou do corao e que ela teve de conter. A senhora de Srizy d um concerto na prxima segunda-feira e deseja muito que voc assista a essa festa. Como h muito voc no aparece na sociedade, o bastante para ela desejar ver-lhe em sua casa. uma excelente senhora e lhe estima muito. Me dar muito prazer aceitando seu pedido; quase respondi por voc... Irei respondeu Jlia. O som da voz, a acentuao e o olhar da marquesa tinham qualquer coisa de to penetrante, to particular que, apesar de sua indiferena, Victor fitou a mulher com espanto; porm, nada disse. Jlia adivinhara, num relance, que a senhora de Srizy era a mulher que lhe roubara o corao do marido.

Absorveu-se numa meditao desesperadora, e pareceu muito ocupada a olhar para o fogo. Victor revelava a atitude de um homem que, aps ter achado a felicidade noutra parte, s encontra tdio e fadiga em casa. Depois de ter bocejado vrias vezes, pegou um castial com uma das mos, com a outra procurou languidamente o pescoo de sua mulher, querendo abra-la; mas Jlia curvou-se e apresentou-lhe a fronte, onde ele deps o beijo de todas as noites, beijo maquinal sem amor, espcie de careta que lhe pareceu ento odiosa. Quando Victor fechou a porta, a marquesa deixou-se cair numa cadeira, trmula e banhada em lgrimas. E preciso ter experimentado o suplcio de alguma cena semelhante para compreender os sofrimentos que oculta, para adivinhar os longos e terrveis dramas que ocasiona. Aquelas palavras insignificantes e banais, aquele silncio entre os dois esposos, os gestos, os olhares, a maneira como o marqus se sentara junto da lareira, a sua atitude de querer beijar o colo da mulher, tudo servira para fazer daquela hora um trgico desenlace vida solitria e dolorosa de Jlia. a loucura que a acometeu, ela ajoelhou-se junto ao div, escondendo o rosto para no ver coisa alguma, e rogou a Deus, dando s palavras usuais da sua orao um acento ntimo, uma significao nova, que teriam dilacerado o corao do marido, se a tivesse ouvido. Durante oito dias esteve preocupada com seu futuro, presa da infelicidade, procurando um meio de no mentir ao seu corao, de recuperar seu imprio sobre o marqus e viver suficientemente para velar pela felicidade da filha. Resolveu, ento, lutar com a sua rival, tornar a aparecer e brilhar na sociedade, fingir pelo marido um amor que j no podia sentir, seduzi-lo enfim; depois, quando com os seus artifcios o tivesse sob seu poder, tornar-se-ia faceira para com ele como o so essas mulheres caprichosas, que sentem prazer em atormentar seus amantes. Essa odiosa artimanha era o nico remdio possvel para seus males. Desse modo, poderia tornar-se senhora dos seus sofrimentos, orden-los a seu bel-prazer e torn-los raros, subjugando o marido sob um despotismo terrvel. o sentia Jlia o mnimo remorso de lhe impor uma existncia difcil. De um salto, lanou-se nos frios clculos da indiferena. Para salvar a filha, adivinhou de sbito as perfdias, as mentiras das criaturas que no amam, os embustes da faceirice e essas atrozes astcias que tornam to profundamente odiosas as mulheres nas quais os homens supem, ento, corrupes inatas. A despeito de Helena, a sua vaidade feminina, o seu interesse e um vago desejo de vingana concordaram com o seu amor materno para induzi-la num caminho onde novas dores a aguardavam. Ela possua, porm, uma alma demasiada bem-formada, um esprito excessivamente delicado, e sobretudo muita franqueza para permanecer, por longo tempo, cmplice dessas fraudes. Habituada a ler em si mesma, ao primeiro passo no vcio porque assim podia ser chamado , o grito da sua conscincia devia abafar o das paixes e do egosmo. Com efeito, numa mulher nova, cujo corao ainda puro e onde o amor se conservou virgem, o prprio sentimento da maternidade submetido voz do pudor. E o pudor no a prpria mulher? Jlia, porm, no quis descobrir nenhum perigo, nenhuma falta na sua nova vida. Foi casa da senhora de Srizy. A sua rival esperava ver uma mulher plida, lnguida; a marquesa pintara-se, e se apresentou com todo o brilho de uma toilette que ainda mais lhe realava a beleza. A condessa de Srizy era uma dessas mulheres que pretendem exercer, em Paris, uma espcie de poderio sobre a moda e a sociedade; promulgava decretos que, acolhidos no crculo em que reinava, pareciam-lhe universalmente adotados; tinha a pretenso de impor os termos; era soberanamente sentenciosa. Literatura, poltica, homens e mulheres, tudo estava sujeito sua censura; e a senhora de Srizy parecia desafiar as das demais damas. A sua casa era, de todos os pontos de vista, um modelo de bom-gosto. o meio desses sales cheios de mulheres elegantes e formosas, Jlia triunfou sobre a condessa. Espirituosa, viva, alegre, teve em torno de si os homens mais distintos do

sarau. Para desespero das mulheres, a sua toilette era irrepreensvel, e todas lhe invejaram um feitio que foi geralmente atribudo ao talento de alguma modista desconhecida, porque as mulheres preferem acreditar mais na cincia dos tecidos que na graa e perfeio daquelas que so feitas de molde a real-los. Quando Jlia se levantou para ir cantar ao piano a romanza de Desdmona, os homens acudiram de todas as salas para ouvir aquela voz famosa, muda havia tanto tempo, e fez-se profundo silncio. A marquesa experimentou viva comoo, vendo todas aquelas cabeas aglomeradas junto das portas e todos os olhos cravados nela. Procurou o marido, lanou-lhe um olhar provocante e viu com prazer que naquele momento o seu amorprprio achava-se extraordinariamente lisonjeado. Radiante de seu triunfo, encantou o auditrio na primeira parte de Alpiedun salice. em a Malibran nem a Pasta jamais haviam interpretado uma romanza com tanto sentimento e maestria; mas, quando ia repeti-la, olhou para os grupos e distinguiu Artur, cujo olhar fixo no a abandonava. Estremeceu, e a voz alterou-se. A senhora de Srizy correu logo para a marquesa: Que tem, minha querida? perguntou. Oh!, to doente! Tremi ao v-la empreender uma coisa superior s suas foras... A romanza foi interrompida. Jlia, despeitada, no se sentiu com coragem de prosseguir, e teve de sofrer a prfida compaixo de sua rival. Todas as mulheres segredaram baixinho; depois, fora de discutir esse incidente, adivinharam a luta travada entre a marquesa e a senhora de Srizy, a quem no pouparam seus mexericos. Os estranhos pressentimentos que tantas vezes haviam agitado Jlia achavam-se subitamente realizados. Pensando em Artur, comprazia-se em acreditar que um homem aparentemente to meigo, to delicado, devia conservar-se fiel ao seu primeiro amor. s vezes, envaidecia-se por ser objeto dessa paixo, pura e verdadeira, de um rapaz cujos pensamentos pertencem exclusivamente sua bem-amada, cujos momentos lhe so todos consagrados, sem subterfgios, que cora do que faz corar a mulher, pensa como ela, no lhe d rivais, e se lhe entrega, sem pensar na ambio, na glria, na fortuna. Tudo isso ela sonhara de Artur por loucura, por distrao, e de repente julgou ver o seu sonho realizado. Leu no rosto quase feminino do jovem ingls os pensamentos profundos, as suaves melancolias, as resignaes dolorosas de que tambm ela era vitima. Reconheceu-se nele, a infelicidade e a melancolia so os intrpretes mais eloqentes do amor e correspondem-se entre dois seres que sofrem com incrvel rapidez A viso intima e a comunho dos fatos ou das idias so neles completas e justas. Por isso, a violncia do choque que recebeu a marquesa revelou-lhe todos os perigos do futuro. Demasiado feliz por achar um pretexto sua perturbao no seu estado habitual de sofrimentos, deixou-se de boa vontade subjugar pela engenhosa piedade da senhora de Srizy. A interrupo da romanza era um acontecimento de que todos falavam, interpretando-a cada um a seu modo. Uns deploravam a sorte de Jlia e lastimavam que uma senhora to notvel estivesse perdida para a sociedade; outros queriam saber a causa do seu sofrimento e da solido em que vivia. E, ento, meu caro Ronqueroiles! dizia o marqus ao irmo da senhora de Srizy. Voc invejava a minha felicidade, vendo a senhora dAiglemont, e censurava-me por lhe ser infiel? Pois acharia a minha sorte bem pouco desejvel, se estivesse como eu na presena de uma linda mulher durante um ou dois anos, sem ousar beijar-lhe