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História e poesia afro-brasileira: reterritorialização · trazer para dentro do currículo escolar um modo alternativo de trabalhá-la ... possível neste plano ou plataforma

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HISTÓRIA E POESIA AFRO-BRASILEIRA: RETERRITORIALIZAÇÃO

DO/A NEGRO/A NO ESPAÇO ESCOLAR

Resumo: Este artigo se envolve com a história e cultura afro-brasileira e africana e

importa-se em extrair deste tema algo que o vincule a poética que subjaz às

leituras das letras de capoeira. Estas serão o elemento provocador e didático, a

ferramenta de deslocamento da figura de um/a negro/a comumente apresentada

pela história da tradição. Usa-se a teoria deleuziana para o resgate das letras de

capoeira como instrumento para permitir outra compreensão ou perspectiva da

africanidade. A Lei nº11645/08 que suplanta a que lhe antecede, nº 10 639/031,

vinda das Diretrizes da Educação Básica, passa a incluir os povos indígenas e os

afrodescendentes dentro de uma estrutura, que se quer democrática. Determina a

exploração das culturas que habitam de modo múltiplo o território da escola,

contingentemente implicando a diversidade cultural do povo brasileiro. Entretanto, a

simples aplicação desta lei para o combate ao preconceito não se afigura eficiente.

Esta norma conscientiza uma atual história e cultura afro-brasileira e africana,

muito embora a tradução feita por muitas práticas educativas tornam-na uma

proposta inoperante.

Palavras chaves: deslocamento; filosofia da diferença; história-afro; letra de

capoeira.

Abstract: This article engages with the Afro-Brazilian and African history and culture

and care in extracting this topic something that bind the poetics that underlies at

readings of capoeira lyrics. These are provocative and didactic element, the offset

of the figure of a negro/a commonly presented by the history of the tradition. Use

the Deleuzian theory for the rescue of capoeira lyrics as an instrument to allow

another understanding or perspective of Africanism. Law No. 11645/08 that

1Fonte extraída das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná – 2008

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supplants the that you above, no. 10639/03, from basic education Guidelines, shall

include indigenous peoples and Afro-descendants within a structure, to be

democratic. Determines the operation of cultures that inhabit the territory of

Multimode school, contingently implying the cultural diversity of the Brazilian people.

However, a simple application of this law to combat the prejudice is not efficient.

This standard makes a current African and Afro-Brazilian history and culture,

although the translation done by many educational practices make it a dead

proposal.

Keywords: offset; philosophy of difference; history-afro; letter of capoeira.

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HISTÓRIA E POESIA AFRO-BRASILEIRA: RETERRITORIALIZAÇÃO

DO/A NEGRO/A NO ESPAÇO ESCOLAR

Autor: Dalton Luiz Gandin2

Orientadora: Claudia Madruga Cunha3

“Da palavra absorvida, da teoria sentida,

do ressentimento esquecido,

do cheiro de tinta no papel, brota o território novo,

assoviado pelo canto da sereia;

a interpretação excita o desejo, ela é bandeira

na conquista de terras inexploradas.”

(CUNHA, 2011)

A epígrafe acima inspira a forma como se tratar conceitualmente o que é

interpretação neste texto. No presente trabalho, se pretende valorar a diversidade e

trazer para dentro do currículo escolar um modo alternativo de trabalhá-la. Numa

perspectiva, abre-se a intenção de se deslocar a figura do/a negro/a que, muitas

vezes, se vê sendo apresentada pela tradição como um perfil menor. Manejar ou

lidar com esta questão de algum modo implica que os temas da diversidade não só

são bem vindos a revisar o currículo, mas também podem vir a se tornar práticas

da diferença, perante a obrigatoriedade vinda da lei nº 11.645/08.

2Graduado em Filosofia pela Universidade Católica do Paraná - UCPr; Especialista em Filosofia do Direito pela universidade Católica do Paraná - UCPr; Especialista em Antropologia Filosófica pela Universidade do Paraná - UFPR e Especialista em Pedagogia para o Ensino Religioso pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná- PUC-PR. Professor da rede Publica Estadual de Ensino do Paraná; trabalha atualmente com a disciplina de História no Colégio Estadual Silveira da Motta em São José dos Pinhais/PR. 3Profª. Drª. Claudia Madruga Cunha, Universidade Federal do Paraná - UFPR.

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Explicitada a inquietação que brota destes comentários e que surge do fato

de se estar partilhando um plano onde uma educação de base é tratada se tomou a

seguinte atitude: alterar, mudar, deslocar neste plano, a figura do/a negro/a. Fez,

em primeiro lugar um trabalho de investigação teórico-conceitual para posterior

construção de material didático, que tem por objeto ou por intenção trazer outra

representação do/a negro/a, especialmente, para o meio escolar. O objeto desta

proposta, que adentra o espaço escolar, quer atravessar a escola na tentativa de

no interior do plano educacional flexibilizar um perfil do/a negro/a no qual ele/a é

apresentado/a resumido/a e delimitado/a. Fez-se necessário trazer a noção de

deslocamento pinçada da filosofia da diferença, para com esta poder mostrar que é

possível neste plano ou plataforma escolar permitir espaços de fuga naquilo que é

enquadramento do/a negro/a e da sua negritude. Quer se romper com uma

identidade coisificada do negro apresentada comumente pela História do Brasil,

Império e Colônia, no ambiente formativo da escola.

Palavras iniciais

Opera-se com este anseio de mudar a perspectiva como se vive a memória

e a história do/a negro/a, ao capturar da filosofia conceitos, que vindos de autores

que tracionam a diferença e seus elementos, sobrepondo planos de entendimento

a outros aportes narrativos. Traça-se com Deleuze, Guattari (1995) e seus

intérpretes outra percepção do diferente, especialmente se traz o/a negro/a

liberto/a das comparações com outras raças e etnias. Usa-se tais autores para dar

vazão a outras - possibilidades, experimentações, experiências - do que pertence

ao negro/a como algo singular. As letras de capoeira evocam a experiência daquilo

que se toma do/a negro/a e advém do ritmo e da palavra, dos signos explicitados,

ritmados que, enquanto plasticidade, ajudam a manejar a negritude, deslocando-a

dos limites de um território da tradição chamado branquidade.

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Este manejo de inserção da poesia de capoeira no contexto escolar tem

como metodologia a realização de oficinas que se fazem valorando a participação

dos/as professores/as de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Língua

Portuguesa, Educação Artística, e através de outros/as trabalhadores/as em

educação e estudantes/as do ensino médio da rede Pública de Ensino do Estado

do Paraná. Ao trazer a letra da capoeira, território da arte enquanto cultura e da luta

como reação, adentra-se a escola com a negritude na poesia. Neste sentido

interpreta-se o ser negro/a ao ponto de des-locar ou espraiar deste plano, mapa,

em que ele/a aparecem narrados/as em uma história que os resume a escravidão.

As interpretações possíveis das letras de capoeira deslocam esta história e

permitem que apareça no ambiente escolar outro passado do/a negro/a feito de

alegrias e sofrimentos, de luta e de resistências.

A letra vibrada, a poesia cantada fende um plano ou mapa escolar e certa

história se desloca, ampliando espaços de resistência e expressão lúdica, que

dizem da negritude do negro/a. Vibra sua figura, do/a negro/a, de outro modo. E

nesta vibração um passado é revivido, percebido, dissimulado, atualizado, vivido. É

a roda do tempo que se move na roda de capoeira; é o negro/a girado/a, ritmado/a,

dançado/a, revivido/a, naquilo que é experimentado por todos/as independente da

cor e da raça, na luta, na dança, na cantoria, no som dos instrumentos musicais.

Soam o berimbau, o atabaque e o pandeiro; ritmam-se os velhos e os novos ritmos

entre os corpos e os corações que já não tem mais cor, nem forma, nem raça,

apenas ritmo, entoação, frenesi, negritude!

Do diferente de História

A ideia é trazer a capoeira para movimentar certo plano rígido, instituído

por uma tradição, que permeia a escola. E com o seu ritmo agilizar ou flexibilizar

nesse ambiente um/a outro/a negro/a, que se instaura a partir da experiência

musicada e poética de “perceber” e vive-la, construir uma memória sobre a

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negritude que guarda dela outros elementos ou aspectos. A roda da capoeira

instaura algo que age para compor outro perfil, mais elevando, forte, altivo, deste

grupo cultural na História. O ritmo na capoeira permite desfrutar do/a negro/a e de

seu passado de outro jeito. Afinal, no que se refere à educação das relações étnica

raciais de história e cultura- afro- brasileira e africana, tem-se a impressão de que

as ações que as articulam não tem imprimido algo positivo. Nenhum ritmo novo,

nenhum movimento.

Esta ausência motiva alcançar o objetivo de propor e de problematizar a

questão da raça, como algo que pode ser expresso e percebido, para além do

simples igualar de umas a outras etnias, de ordem social e cultural já pré-existente.

Muitas ações, que se realizam no interior da escola, mais fragilizam esta temática

do que a contemplam satisfatoriamente. Parece que nada se acrescenta de

diferente ao se pretender revisitar este tema. Algumas propostas surgem e tratam

de uma História que não chega a se desfazer de um conteúdo, que apresenta o/a

negro/a como certa consciência comprometida com um olhar do passado, no

processo educativo de base.

Na verdade algumas ações acabam por alimentar as teorias historicistas que

sustentam certa “forma” de se pensar a história, como se ela fosse uma única

história, de um único povo. Com isso a reúnem a algo identitário, que não dá conta

de no seu interior lidar com outras perspectivas, tais como trabalhar: a história de

outros povos que não o povo europeu; com outra narrativa que não a do

colonizador; com outros modelos de evolução e de avanço como algo mais amplo

que os fatos históricos e seus heróis. Enfim trabalhar com a diferença que inclui as

muitas histórias que narram o passado de todas as minorias, sejam elas os/as

negros/as, os/as índios/as, as mulheres, os/as homossexuais, outros/as.

Entretanto, a tradição sendo construtora de memórias e de identidades

coletivas engessa alguns aspectos sutis à esta concepção conceitual. O que faz da

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história algo duro e por consequência influencia a prática dos professores/as e

suas narrativas sobre o passado. Tais aspectos devem ser alterados,

especialmente no que refere à verticalização temporal de uma memória identitária.

A valoração da memória ideal, subjugando e subestimando as histórias

locais, como coubesse a todas “as histórias” partilhar de um mesmo processo

linear do tempo, acaba por exigir um trabalho que desloca determinados conceitos

no interior dessa área de estudo. A História tem sido conceituada nos manuais

didáticos como ciência que estuda o passado. Segundo Braik (2010), História se

define como o conhecimento produzido pelos pesquisadores sobre os homens do

passado. Como disse o autor

“mostrando como viviam e o que realizaram os povos que nos precederam [...]

história não é soma dos acontecimentos do passado, mas o resultado das várias

pesquisas feitas sobre esse passado. [...] o esforço intelectual para compreender e

explicar como era a vida em outros tempos” (BRAIK, 2010, p.11).

Este entendimento, com foco explícito numa compreensão que não foge à

linearidade do tempo, reúne-se com o de outro historiador, Bloch (1997, p.55) que

conceitua a “História como estudo do homem no tempo”. Este autor também vai

dizer que a História tem o tempo como matéria prima, uma vez que sua perspectiva

valora a temporalidade e não o lugar, nem o espaço geográfico e nem a

territorialidade do fato. Sob o foco desta teorização, a História tende, portanto, a se

verticalizar, construindo uma memória identitária, na qual se nega outras memórias

ou possibilidades historiográficas. Logo, esta sobrevalorização do tempo tende a

produzir um sistema arborescente4, que faz com que a história seja conceituada

pela tradição e representada como única gênese de todas as histórias humanas.

4Segundo Deleuze e Guattari (1995, p.26). “os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos

que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memorias organizadas”.

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História oficial e diversidade cultural

Percebe-se que a história oficial demanda um trabalho na escola que tende

a traduzir uma história geral de heróis e de vencedores, sempre afeita sob um

agenciamento. Isso contribui em criar uma memoria do que passou forjada,

imposta por relações de força, de poder, que muitas vezes não se explicitam nos

fatos narrados. O esforço aqui é de visualizar uma possibilidade contrária ao que

está explicitado em meio a determinadas articulações historicistas. Afinal tal aporte

não diretamente declara seus objetivos, nem mostra que aí subjaz uma leitura

unilateral da história; assim como, uma interpretação do passado de uma raiz-

nascente, que articula uma história paradigmática ocidental de sujeitos -

homens/mulheres - de cultura de “raça branca”. A Lei nº11645/08 se junta a essa

história enquanto traz uma representação dogmatizada da realidade sociocultural

das minorias étnicas.

A Lei, citada anteriormente, nº11645/08, sendo uma política de proposição

vertical, não coloca os/as negros/as como construtores/as de subjetividade, mas

sim numa representação que os propõe como objeto de ações que vêm emancipá-

los/as. Ao resgatar ou manter uma análise que desde outros tempos os/as faz

cativos/as, não permite ao negro/a afrodescendente uma auto - percepção que o/a

inclua na sua identidade apropriando-se da sua alteridade. Silenciada esta cultura,

distinta da “cultura negra folclórica”, tal como se aprende na história oficial, não

potencializa outros modos de existir, operar, sobreviver deste povo. Logo, pode-se

dizer que a obrigatoriedade de trabalhar a cultura afro-brasileira e africana mudou o

discurso, mas no papel social, no contexto escolar, o/a negro/a continua o/a

mesmo/a. O/a negro/a na escola tem sido abordado/a como figura que não faz

resistência ao pensamento e à cultura da branquidade, entendido aqui como

qualidade de branco5.

5 Citado como qualidade de branco; Cf. HOLANDA, Aurélio Buarque. Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, 1951, p. 194.

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Os livros didáticos, ao documentarem o Brasil ou os “brasis” colônia,

monarquia, configuram os/as negros/as sempre como objeto daqueles que os/as

fizeram cativos/as, peças de mão-de-obra para o mercado ou como anseio,

republicano e democrático daqueles/as munidos/as de sentimentos libertários.

A história contada a partir dos vencedores delimita um território, no qual

apenas alguns se representam como legítimos pertencentes desta narrativa sobre

o passado apenas do povo branco. Este contexto demanda uma territorialização6

quando apresenta, no Brasil Colônia e no Brasil Império, o/a negro/a situado/a

enquanto personagem desqualificado. Tal configuração remonta uma subjetividade

que se coaduna com um tipo que se habilita a exercer apenas atividades braçais.

Também lhe impõem a preguiça intelectual e crendices ou práticas pagãs, fora do

território da cristandade, de pertença à vida de vadios, à malandragem e ao

banditismo.

Nesse contexto descreve uma narrativa que age como territorialização

quando circunscreve uma história oficial do Brasil Colônia e do Brasil Império sob

limites que se busca romper. Este rompimento busca o desencadeamento, a

desterritorialização ou o deslocamento de certa concepção que se ancora numa

tradição unilateral da história, tal que minimiza a atuação do/a negro/a no passado

e por consequência no espaço escolar.

A própria escola e aqueles/as que trabalham com esta perspectiva

mostram-na como um horizonte que permite outro manejo. Trazer a historia e a

cultura afrodescendente para dentro da historia do Brasil Império e Colônia através

das letras de capoeira se mostra um trabalho no qual algo ou alguém “pode afectar

6A territorialização para Deleuze e Guattari (1995) é refundar um território (p.114), da terra ao

território (p.113) ou em outras palavras “criar” um novo território.

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e ser afectado”, por aquilo que movimenta como disse Cunha (2012, p.15)

interpretando Spinoza. A história trabalha com o sentido do que passa antes e

depois, na vida das culturas, lugares, pessoas, mundos; refere ao momento vivido

que leva tudo a outro modo, pelos movimentos organizados temporalmente nas

culturas.

No contraponto do que está comumente instituído na escola, busca-se

pensar a história não como um acontecimento linear no tempo. Não se pretende

revisar a história, tal a retomada de uma linha ascendente. Apenas se deseja

provocar outras significações sobre o passado, traduzindo o que acontece no

espaço escolar ao modo de séries sequenciais. As letras, o som dos instrumentos

musicais, a cantoria, a dança, o jogo, a roda, remetem as séries! Series são

sobreposições não necessariamente lineares, através das quais se busca operar

com uma sequência que se repete sem ser necessariamente linear e que coloca

em funcionamento ou atividade, determinado conteúdo da História. As series

adentram este texto para dizer do modo como se organizou as oficinas de

capoeira. São experimentações onde o/a negro/a e a sua negritude ativam

sequências que permitem imagens e interpretações diversas. A diversidade é fruto

do que pode ser analisada pela via poética, mesmo se tratando de um conteúdo da

história, no caso aqui expresso nas letras de capoeira.

O lúdico associado a letra, expressão, ritmo, dança, instrumentos musicais,

une-se ao poético e permite perceber a ampla contribuição cultural que alarga o/a

negro/a e o seu papel na história brasileira.

Como se disse vem da História oficial, narrada nos livros didáticos, uma

concepção totalitária do tempo. Tempo passado sobre a terra, dos fatos

acontecidos e sua interpretação sobre um território. Nesta perspectiva não há a

possibilidade de que concomitantemente a interpretação do fato se faça um

deslocamento do território, embora uma consequência desloque ambos no tempo.

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Na concepção filosófica deleuziana, sobre a qual se apoiam as reflexões deste

texto, o conceito do tempo inclui um movimento que autor chama

desterritorialização. Este conceito implica dizer de outro modo o tempo, que é

passagem simultânea do passado e do futuro no presente. Assim o antes, o

durante e o depois implicam uma espécie de devir, que se atualiza no próprio

movimento do presente, não como uma mudança, mas como o que está sendo.

De outro tempo

Nesse sentido pode-se dizer que o/a professor/a de História, quando lida

com as questões pertinentes à negritude, ressignifica os fatos que se passam no

tempo. Deixa aflorar um perceber, um devir a negritude, no modo como a

conceitua. Trabalhar a poesia negra cria possibilidades de que se faça um

acontecimento que revive e revisa as questões do/a negro/a afrodescendente.

Força uma interpretação e outros entendimentos possíveis sobre o vivido por este

povo; diz de outro modo sobre seu passado, das coisas vividas que não se

expressam a olho nu. Permite um reviver de um passado, que não é aquele tantas

vezes contado. Consente que o passado se faça momento atual, quando ativa

narrativas que convocam outra dinâmica em sala de aula, dando ao conteúdo

diferente sentido do tempo.

Explicita-se que o sentido se constrói na perspectiva da diferença pela

valorização do lugar, onde acontecem as coisas, algo que se desenha de modo

horizontal. Como disse Nascimento (2010), ao tratar do tempo em Deleuze, “trata-

se de valorizar uma pragmática dos encontros que nos impulsione a um

alargamento da sensibilidade na apreciação de cada multiplicidade concreta”

(p.22).

Castro (2007) sobre essa teoria destaca certo envolvimento com uma

perspectiva que quer pensar o tempo a partir de múltiplos significados. Quando

Deleuze coloca o problema da diferença em si, como inicio da investigação

filosófica, alerta os profissionais da História para algo análogo. Ora se a filosofia

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não deve começar por aquilo que já passou, mas sim pelo momento, pelo agora, a

história também encontra o seu sentido quando diz do presente. Logo, teorizar a

diferença e o outro envolve o conceito do tempo. No se tratar na história do/a

negro/a no Brasil, Colônia e Império, pode-se pensar esse tema a partir de relações

temporais em diversos lados e de pertença a outra dimensão do tempo. A letra de

capoeira que vira a cantoria, a dança, o ritmo, a roda, a interpretação, coloca em

devir a negritude do/a negro/a.

De outro lugar

Para deslocar a figura do/a negro/a na escola, faz ainda uso dos conceitos

deleuzianos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização para mover

novas linhas de leituras do/a negro/a fora do enquadramento de um pensamento

identitário. Entende-se que há sentido em se apropriar de filósofos/as ou

pensadores/as da singularidade ou da diferença e transformar os seus

pensamentos em método ou doutrina universal, pensando o mundo como eles/as.

O que se pretende na captura de suas teorias é tê-la como ferramentas ou lentes

que pode ser usadas ou não, para o que pede a letra, a poesia cantada ou

recitada, da capoeira como elemento provocador, no contexto educacional, de uma

educação imanente (cf. Revista Filosofia - Ciência e Vida, ano 2, nº14, p.12).

Os conceitos, capturados da filosofia de Deleuze e Guattari (1992, p.113.) e

outros/as autores/as, como se pode dizer, “molhados/as” pelo pensamento da

diferença, de territorialização, desterritorialização e reterritorialização utilizados

neste material perfazem, também, mapas invisíveis, inspirando subjetividades.

Estas funcionam como mapas mentais e mostram, numa analogia, a história como

processo de construção de uma figura do/a negro/a que vem da tradição. Tal

representação traz o feitio de um patamar subjetivo que se refere ao ambiente

escolar.

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Essa reterritorialização do/a negro/a no espaço escolar tem como elemento

a letra capoeirana, que conta a história do Negro/a Capoeira e dos seus irmãos e

das suas irmãs da África, das suas crenças, como a moral e a ética, e das práticas

enquanto capoeira e cidadão. Como bem diz Melo (2007, p.05), “As formas de

ensinar sobre história e cultura da África e afro-brasileira deve surgir dos próprios

elementos e práticas oriundas dessa cultura tão rica. [...] – narrativas, poesias,

causos e orientações orais.”

Do outro poético: as letras de capoeira.

Nas oficinas de capoeira, se pode perceber a possibilidade de movimentar

este cenário de constituição de subjetividades singulares quando se traz para

escola uma contribuição da cultura afro-brasileira. Essa ação implica criar no/a

estudante/a de História uma disposição ou simpatia que o tenciona ao encontro de

outra perspectiva para relacionar-se com a memória cultural deste povo-afro. Com

as letras, as poesias, os instrumentos musicais, a cantoria, a dança e a roda de

capoeira, agregam-se certos movimentos culturais. Estes tornando possível uma

contribuição que rompe todo um campo subjetivo composto por vários elementos

vindos da tradição. E estes últimos na escola, ainda impedem uma ocupação

criativa, que possibilite que se incluam outras culturas, num exercício da diferença.

Faz-se, necessário buscar flexibilizar ou deslocar, os arranjos que trazem a

cultura afro-brasileira agrilhoada a um passado que convém revisar. Logo, o

conceito de desterritorialização vem ao encontro do desejo de movimentar novos

elementos em prol da utilização de instrumentos culturais, a exemplo do berimbau,

do tabaque, do bandeiro, das letras, de toda uma poética que se plastifica no

espaço da roda de capoeira, que na escola encaminha uma reterritorialização da

cultura afro-brasileira. No objetivo de atualizar as consciências dos coletivos que

habitam o ambiente escolar quer-se engrandecer o papel do/a negro/a, o que leva

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a que necessariamente se o/a desvincule de um caráter submisso/a imposto por

uma narrativa unilateral da história.

É bem vinda, portanto, oportunidade de trabalhar ou de contar ou de viver a

trajetória e manifestação cultural deste povo, expressando sua negritude através da

poesia capoeirana. Através das letras de capoeira, a poesia vinda deste povo

adentra, por excelência, o contexto escolar como elemento provocador de outro

território subjetivo, no qual a história dá espaço a arte para ser recriada.

Que se faça então na escola o vivido do/a negro/a que nela desfile o “Zumbi

dos Palmares”, “o meu berimbau”, “o trabalho negro no Brasil”, o “vamos jogar

capoeira”, sob o feitio e apresentação dos/as próprios/as estudantes/as, que

integram as oficinas. É deste modo que aqui se desloca uma figura ligada a

escravidão e ao sofrimento, a expropriação de si como sujeito para outro

personagem da história. A literatura capoeirana canta o/a negro/a como

personagem que na sua negritude não se figura como apenas o/a submisso/a.

Mostra um povo que lutou e grita por liberdade; traz a sua mágoa; a sua

possibilidade de vingança do destino; traz o/a herói/na que se apaixona.

Faz um exercício no qual o/a negro/a que desloca, desterritorializado/a,

descontrói uma figura, a retira do lugar que costuma ser apresentado/a na escola,

para reterritórializa-lo/a naquilo em que ele/a aparece reduzido/a, ressignificá-lo/a a

partir de exercícios de interpretação de textos poéticos. A seguir se listam algumas

das letras de capoeira que foram trabalhadas nas oficinas: “A história nos engana”

(MORAIS, CD GCAP, 1994, apud MELO, 2008); “O negro e sua história” (Jogo de

Dentro, CD Capoeira Angola tem fundamento. 2006, apud MELO, 2008); “Vou dizer

a meu sinhô” ( BOLASTE, 1989, p.120, apud, MELO, 2008) entre outras.

Sob o eixo das novas Diretrizes Curriculares do Paraná, se percebe a

possibilidade de apresentar o/a negro/a sob outras relações culturais, uma vez que

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o redirecionamento destas leis deixa em aberto outras possibilidades de trabalho

para o Ensino da História-afro.

A história captura o/a negro/a numa interpretação linear e cronológica e o/a

apresenta subsumido/a nesse horizonte, configurado/a pelo poder monárquico

numa compreensão que se estende com o fortalecimento do urbanismo e o

surgimento de pequenas indústrias. Como por exemplo: primeira fundição no Rio

de janeiro até a “libertação” do/a negro/a com a Lei Áurea de 1888, assinado pela

princesa Isabel, seguida da proclamação da República em 1889.

Nesse espaço-tempo da história, demarcado pelo Brasil Colônia e o Brasil

Império, o/a negro/a aparece figurado/a, territorializado/a como escravizado/a, peça

de mão de obra vendida e contrabandeada. Em outros momentos, na medida em

que foi sendo proibido o tráfico, a manutenção do modelo capitalista se expandiu

na Europa. Já desde aquele tempo essa compreensão foi se formando de acordo

com os interesses do mercado, adaptando-se como território de poder.

Ao mesmo tempo em que se proibia o tráfico e criava outras leis contra a

escravatura por pressão dos/as abolicionistas e dos/as próprios/as negros/as,

indígenas e brancos/as, se colocava no papel o direito à liberdade dos afros com a

assinatura da Lei Áurea. Esse contexto mostra que esses últimos se organizavam

compondo territórios de resistência, a exemplo da cultura quilombola.

Passa-se assim, nesse agenciamento histórico, a utilizar o/a imigrante como

mão-de-obra especializada e mais barata, acotovelando os negros/as para

periferias e morros das grandes cidades. Diante desse mapeamento da história

oficializada, a intenção aqui é de trazer a letra de capoeira, e dela a musicalidade,

a dança, a roda, o jogo e a luta; a poética do/a negro/a que, enquanto resistência

cultural, configura certo território, no qual se destaca uma africanidade convidada a

adentrar a sala de aula através de paisagens poéticas-narrativas-sonoras, não

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imprimindo aqui uma demarcação entre a narratividade, a poesia e o som.

Do viver a alteridade

A Lei nº 11.645/08 traz seus avanços, entretanto ela implica uma estrutura

rígida quando se impõe sobre o contexto educacional. Trabalhar sobre essa

demanda torna-se aprazível e pertinente ao se mover através das fissuras dessa

composição onde uma imagem tradicional do negro/a - peça para trabalho escravo

nas fazendas no período colônia e monarquia – ainda se apresenta sob matizes de

múltiplos disfarces no território institucional, no contexto de ensino aprendizagem

da História. Nesse território se sobressitua uma arte poética da capoeira aos

conteúdos da disciplina como projeto de inserção na escola.

Esse estudo se faz com a pretensão de se tornar uma intervenção que

possa contribuir para que os/as trabalhadores/as em educação e os/as

estudantes/as tenham a possibilidade de sobrepor diferentes telas ou mapas de

pensamentos para a composição de uma visão da atuação do/a negro/a na história

brasileira tendo como meio a letra, a poesia de capoeira.

As oficinas vêm fazer parte de um movimento cultural, entre outros, para

contribuir com o agrandamento da cultura afro-brasileira, buscando nas frestas da

Lei, nº 11.645/08 o/a negro/a fazer algo diferente, fugindo do pensamento

tradicional de História. Esta figura é sensibilizada quando, numa ação

concomitante, se propõe um território sobre outro. O espaço, o que pertence à

escola, vem se alargar para a cultura negra afrodescendente que, nesse ambiente,

ainda se mostra quase inexistente. Essas oficinas se fazem atividades de

deslocamentos no empenho de trazer uma história de perspectivas abertas, rompe

com o pensamento linear e também convida para este movimento os/as

professores/as de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Língua Portuguesa,

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Educação Artística, outros/as trabalhadores/as em educação e os/as

estudantes/as.

Cada letra de capoeira corresponde a um texto que vem sendo trabalhado,

junto ao canto, a roda, a dança, a luta e o jogo. Uma poética que propõem

diferentes estilos de feitio para cada exercício da oficina. Embora, algumas dessas

afecções se apresentam ainda atravessadas pela cultura da branquidade o que se

trabalha mais fortemente é o/a negro/a. Pois nota-se que, ainda, se imprime a

necessidade de se reterritorializar elementos da cultura-afro, não só através dos

elementos que configuram a capoeira, mas de outras contribuições trazidas da

africanidade.

Para além da conclusão

Esse trabalho não pretende trazer um final, uma solução para o tema da

história e da cultura afro-brasileira e africana. Apenas apresenta um sobrevôo de

uma intervenção na escola. Usa-se a filosofia da diferença explicitada na teoria

deleuziana para dar sentido ao modo como se resgata nas letras de capoeira o

vivido da negritude em diferente modo de percebê-la. A poesia e o ritmo são os

instrumentos provocadores de um território subjetivo novo no plano da escola, no

qual a história dá espaço à arte de ser recriada, para permitir outra compreensão

ou perspectiva da africanidade. As oficinas como atividades de deslocamentos

traçam outras perspectivas da história rompendo com o pensamento linear e

podem ser realizadas com todos/as os/as trabalhadores/as da educação.

Nesse esforço permanente se busca, na reterritorialização da história de um

povo afro-descente, deslocar o/a negro/a através de uma plástica poética que

amplie seus espaços de resistência e sua expressão lúdica para o agrandamento

da sua figura. Traz um retorno que revisita, revive a história do/a negro/a no Brasil

Império e Colônia, contada no território da escola.

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Esse manejo, por fim, dispõe de um plano ou mapa interpretativo do/a

negro/a diferente, e através da poética, mostra que algo subjaz às leituras das

letras de capoeira, algo ainda não vivido na escola. Defende este artigo um

território onde a letra e o ritmo, a poesia, a roda, a luta, a dança, a cantoria, e os

musicais, como o berimbau, o atabaque, o pandeiro etc., e todos os elementos da

capoeira, possam estimular uma não unidade referencial no ensino da história.

Busca, portanto, alargar a História dando a esta disciplina outro ritmos, que novo

movimenta outras narrativas sobre o passado, entre corpos e corações.

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Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/36224401/A-Poesia-Oral-Da-Capoeira-

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