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HISTÓRIA, LITERATURA E BIOGRAFIA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ÊXITO EDITORIAL DE ISABEL ALLENDE NO BRASIL DOS ANOS 1980 LÍLIAN FALCÃO DE ARAÚJO 1 Resumo: Esta comunicação analisa as possíveis relações entre biografia e o “sucesso editorial” do primeiro romance da chilena Isabel Allende, publicado no Brasil em 1984. Pretende-se examinar a construção do sucesso de Isabel Allende nos anos 1980, por meio da análise de sua biografia histórica e das representações do Chile, do socialismo, da ditadura militar chilena e da referência ao feminismo que constam em seus escritos. Tomamos como ponto de partida e fontes seu primeiro romance La Casa de los Espirítus (1982) e a autobiografia Mi País Inventado (2003). Recorrendo aos estudos de Giovanni Levi e Benito Bisso Schmidt sobre biografia histórica e de Carlo Ginzburg sobre micro história, esta pesquisa busca produzir uma compreensão mais aprofundada sobre o percurso biográfico de Isabel Allende, elucidando os mecanismos e estratégias empregados pela autora que resultaram na transformação do seu livro de estreia num best-seller coroado de êxito no mercado editorial. Trata-se de situar também as disputas do campo literário latino-americano, bem como as dificuldades e possibilidades de sucesso de uma mulher escritora na América Latina naquele contexto histórico. O que esta comunicação se propõe a abordar, em última instância, é a seguinte questão: como se pode explicar o êxito editorial de um romance através de uma pesquisa desenvolvida no campo da história? Quais as relações entre um romance bem-sucedido do ponto de vista editorial e comercial e a biografia da autora, bem como seu contexto de produção? Palavras-chave: Isabel Allende, La Casa de los Espíritus, biografia histórica, literatura. 1. Introdução A presente comunicação surgiu no bojo de nossa discussão no mestrado em história (na Unifesp), no qual temos como problemática central explicar como e porque a obra literária A Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende, se tornou um best-seller no Brasil, após seu lançamento em abril de 1984. Neste trabalho pretende-se examinar a construção do sucesso de Isabel Allende nos anos 1980, por meio da análise de sua biografia histórica e das representações do Chile, do socialismo, da ditadura militar chilena e da referência ao feminismo que constam em seus 1 Mestranda em história pelo Programa de Pós-graduação em história da Unifesp-Guarulhos.

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HISTÓRIA, LITERATURA E BIOGRAFIA:

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ÊXITO EDITORIAL

DE ISABEL ALLENDE NO BRASIL DOS ANOS 1980

LÍLIAN FALCÃO DE ARAÚJO1

Resumo: Esta comunicação analisa as possíveis relações entre biografia e o “sucesso editorial”

do primeiro romance da chilena Isabel Allende, publicado no Brasil em 1984. Pretende-se

examinar a construção do sucesso de Isabel Allende nos anos 1980, por meio da análise de sua

biografia histórica e das representações do Chile, do socialismo, da ditadura militar chilena e

da referência ao feminismo que constam em seus escritos. Tomamos como ponto de partida e

fontes seu primeiro romance La Casa de los Espirítus (1982) e a autobiografia Mi País

Inventado (2003). Recorrendo aos estudos de Giovanni Levi e Benito Bisso Schmidt sobre

biografia histórica e de Carlo Ginzburg sobre micro história, esta pesquisa busca produzir uma

compreensão mais aprofundada sobre o percurso biográfico de Isabel Allende, elucidando os

mecanismos e estratégias empregados pela autora que resultaram na transformação do seu livro

de estreia num best-seller coroado de êxito no mercado editorial. Trata-se de situar também as

disputas do campo literário latino-americano, bem como as dificuldades e possibilidades de

sucesso de uma mulher escritora na América Latina naquele contexto histórico. O que esta

comunicação se propõe a abordar, em última instância, é a seguinte questão: como se pode

explicar o êxito editorial de um romance através de uma pesquisa desenvolvida no campo da

história? Quais as relações entre um romance bem-sucedido do ponto de vista editorial e

comercial e a biografia da autora, bem como seu contexto de produção?

Palavras-chave: Isabel Allende, La Casa de los Espíritus, biografia histórica, literatura.

1. Introdução

A presente comunicação surgiu no bojo de nossa discussão no mestrado em história (na

Unifesp), no qual temos como problemática central explicar como e porque a obra literária A

Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende, se tornou um best-seller no Brasil, após seu

lançamento em abril de 1984.

Neste trabalho pretende-se examinar a construção do sucesso de Isabel Allende nos anos

1980, por meio da análise de sua biografia histórica e das representações do Chile, do

socialismo, da ditadura militar chilena e da referência ao feminismo que constam em seus

1 Mestranda em história pelo Programa de Pós-graduação em história da Unifesp-Guarulhos.

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escritos. Tomamos como ponto de partida e fonte para tal análise o primeiro romance de Isabel

Allende – La Casa de los Espíritus - publicado pela primeira em vez na Espanha e depois no

Chile pela editora Plaza y Janés, ambos em 1982, e a seguir em vários outros países da América

Hispânica. No Brasil foi publicado somente em 1984 pela Difel (hoje um dos selos do grupo

editorial Record). A segunda fonte central para nossa análise é o livro Mi País Inventado, de

Isabel Allende. Este livro consiste numa autobiografia publicada pela primeira vez em 2003, na

Espanha, pela Editora Areté; é uma narrativa de suas memórias, carregada de nostalgia em suas

recordações do Chile de sua infância e juventude. Como a maior parte das informações sobre a

autora, incluindo sua autobiografia, são posteriores ao seu sucesso, entendemos que a narrativa

e as memórias de sua trajetória se mesclam aos elementos que a tornaram famosa e que foram

usados para divulgá-la mundo afora.

O questionamento feito às fontes pode ser sintetizado da seguinte forma: quais as

relações entre um romance bem-sucedido do ponto de vista editorial e comercial e a biografia

da autora, bem como seu contexto de produção? E disto surge mais dúvidas como: será que a

legitimidade que a literatura da Allende alcançou deu-se devido ao seu parentesco com Salvador

Allende, o que lhe garantiu fama antes de que sua escrita ganhasse tal dimensão?

Entendemos que isso implica em situar o que foi a via chilena para o socialismo ou o

socialismo em democracia, como foi chamado o programa de governo do Salvador Allende e

da Unidade Popular, que deram destaque ao Chile e ao próprio Allende, naquele contexto de

Guerra Fria. Porém, a base de nossa pesquisa será por meio do estudo da biografia histórica e

micro história, o que explicaremos mais à frente. Com isso, queremos dizer que a trajetória da

escritora se conecta a do Salvador Allende, ainda que um não tenha influenciado diretamente

em suas respectivas vidas, e que estudar a biografia histórica da Isabel Allende por meio de tal

recorte nos permite pensar nos limites e possibilidades de uma mulher ser escritora na América

Latina.

A obra La Casa dos Espíritus é um romance “fantástico”2 e narra a história do Chile do

início do século XX (data imprecisa, por volta de 1910) até o início da ditadura militar chilena

2 Utilizamos esse termo, partindo da noção de Tvzvetan Todorov no texto Narrativas fantásticas, do livro

Estruturas narrativas, que propõe que o fantástico surge como forma de transgressão à “lei natural” ou ao que

seria o “real” para aqueles personagens, mudando o pensamento, a ordem e a vida daqueles que estão a sua volta.

Ao longo do texto, identificaremos algumas especificidades da narrativa fantástica na América Latina, dentre elas

a de realismo mágico e a de realismo maravilhoso, para que possamos entender a associação do romance de Isabel

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em 1973, a partir do olhar de mulheres de quatro gerações da família del Valle-Trueba: Nívea,

Rosa, Clara, Blanca, Alba. Duas figuras são centrais para encadear a narrativa das quatro

mulheres –a avó e a neta – Clara Trueba e Alba Trueba, respectivamente. Por meio do diário

de sua falecida avó clarividente, Alba Trueba reconta a história de sua família começando pela

lembrança da família Del Valle e de Nívea, sua bisavó. As memórias de Clara Del Valle

remetem a seu casamento com Esteban Trueba – o patriarca tradicional que tenta dominar as

figuras femininas – sua vida como Clara Trueba, o nascimento dos filhos – dentre eles, Blanca

Trueba – e a vida de sua neta, Alba, remontando a várias fases da história do Chile.

Situar os gêneros literários nos quais tal literatura é classificada se faz necessário, pois

tem implicações na sua vendagem e circulação. A vinculação com o gênero fantástico, mais

especificamente com o realismo mágico, torna-se um tema importante em nossa pesquisa

devido ao “boom” literário latino-americano da década de 1960-19703.

A escritora Isabel Allende nasceu no Peru, mas ainda criança foi para o Chile, onde veio

a se tornar jornalista. Antes de começar com os romances, escreveu contos infantis e textos para

o público feminino na revista Paula4. No momento em que escreve a sua primeira obra literária,

vive na Venezuela, lugar escolhido como exílio após ter sido colocada na lista negra pelo regime

Allende com outros autores de correntes literárias do gênero “fantástico”. É importante esclarecer que nossa

preocupação em situar tais correntes surge no afã de entender a construção do sucesso da autora e que é necessário

entender que havia um campo literário anterior de sucesso na América Latina, ao qual a obra dela foi associada,

para não fragilizarmos o entendimento da dimensão do sucesso da Allende. 3 Durante as décadas de 1960-1970, ocorreu o chamado boom da literatura latino-americana. Essa expansão foi

um fenômeno comercial proporcionado pela qualidade literária dos escritos, pela difusão e financiamento pelas

editoras, principalmente europeias, da literatura da América Latina para além dos seus países, ficando conhecida

nos Estados Unidos e países da Europa. Além disso, consistiu num momento de agrupamento de escritores e

intelectuais em torno do programa político da Revolução Cubana, politizando a arte com uma produção que se

vale do gênero chamado de realismo mágico para se expressar. A Revolução Cubana foi um evento histórico que

fez com que o olhar do mundo se focasse naquele momento para esta parte do globo e isso também contribuiu para

maior difusão da cultura e literatura dessa região geográfico-cultural. O postboom é a fase posterior na história da

literatura latino-americana, após meados de 1970, onde há menor difusão da literatura latino-americana e poucos

novos autores tem sucesso com a sua produção literária. Ver em: COSTA, Adriane Vidal, O boom da literatura

latino-americana, o exílio e a Revolução Cubana, in: Intelectuais, política e literatura na América Latina: o

debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa (1958-2005), 2009. Tese

(Doutorado em história). UFMG: Belo Horizonte, 2009, p. 131-185. Isabel Allende é situada nessa fase, pois foi

uma das poucas entre os literatos que teve ampla difusão e comercialização para além do seu país de origem nessa

fase posterior ao boom, isto pensando na década de 1980. 4ISABEL ALLENDE, página pessoal da autora, disponível em <www.isabelallende.com> acesso em 25-07-2017.

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militar de Augusto Pinochet, após o fim trágico do governo de seu tio e ex-presidente socialista

do Chile, Salvador Allende5, morto no momento do golpe militar chileno, em 1973.

O seu primeiro romance a consagra na literatura latino-americana devido ao sucesso que

fez, pouco depois de sua publicação. Hoje a obra está na 34ª edição no Brasil6, tendo sido

adaptada para o cinema em coprodução entre Estados Unidos, Alemanha, Dinamarca e

Portugal, dirigido por Bille August em 1993. O livro também recebeu tradução em diversos

países do continente americano e europeu e foi publicado também no Japão e China. A escrita

jornalística e a forma de comunicação de Allende influenciam no perfil de seu primeiro livro,

assim como nos demais.

Os livros seguintes foram: De amor e de Sombra (1984) e Eva Luna (1987) e daí em

diante Allende continuou escrevendo e diversificando os tipos de textos, entre romances

históricos, de aventura, autobiográficos e outros, totalizando hoje vinte e três romances e três

filmes baseados em seus livros, sendo seu livro mais recente, Muito Além do Inverno, publicado

em 2017 no Brasil. Para dar uma dimensão do seu sucesso, na página da autora na internet7

lemos que seus romances foram traduzidos para 37 idiomas e tiveram mais de 57 milhões

exemplares vendidos.

Allende é vista como uma das primeiras mulheres a conseguir destaque na literatura

latino-americana no século XX e “teve voz” e sucesso igual aos literatos8; o que veio

acompanhado de fortes críticas, pelo texto dito popular, por não ter uma maior elaboração

estilística.

5 A partir deste momento do texto, quando nos referirmos ao Salvador Allende, citaremos o nome inteiro, para

diferenciar das referências constantes à escritora. 6As edições deste livro vendidas pelas livrarias Saraiva Cultura já estão na 34ª edição, ainda que no site do Grupo

Editorial Record só conste até a 30ª edição. Conseguimos fazer uma breve entrevista com e-mail com um dos

funcionários da Bertrand Brasil, Marcelo Vieira, e ele nos informou que está na 44ª edição e que já teve mais de

63 mil exemplares vendidos até 2014. Porém, ressaltou a dificuldade de obter os arquivos que informam isto com

precisão, pois houve um incêndio “recente” (2015) em parte do acervo do Grupo Editorial Record, ao qual pertence

o selo Bertrand Brasil. 7ISABEL ALLENDE, página pessoal da autora, disponível em <www.isabelallende.com> acesso em 25-07-2017. 8São vários os lugares em que se repete de alguma forma esta observação. No texto da Estelle Gacon, somos

informados que um dos primeiros editores da Isabel Allende, Mario La cruz, da Plaza & Janes, havia dito que não

havia até então uma mulher no “boom da literatura latino-americana”(2012, p. 579) lugar que ela com certeza

ocuparia; já Bela Josef, umas das pesquisadoras da história da literatura da América Hispânica, identifica um

número menor de mulheres escritoras e que elas foram tendo maior espaço no século XX, Isabel Allende é uma

das que tem maior sucesso, com seu primeiro livro se tornando best-seller. No Chile, há outras literatas

reconhecidas internacionalmente, antes mesmo da Allende fazer sucesso, como a poeta Gabriela Mistral, mas não

haviam tido tanto sucesso de “vendas” e reconhecimento do público.

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2. A conjuntura histórica do Chile de 1970-1990 e a trajetória biográfica de Isabel

Allende.

Pensar a trajetória biográfica da escritora chilena se faz importante para nós, pois nos

traz elementos para compreender o impacto da ditadura militar chilena em sua vida e como

reverberou em sua narrativa literária, ao mesmo tempo que nos permite refletir sobre que

mecanismos acessou para conquistar um espaço no mercado editorial e se configurar como uma

autora de “best-sellers”. Ou seja, a apresentação/reflexão sobre a história de vida de Isabel

Allende visa mirar mais de uma face do problema, pensando um movimento dialético entre

sociedade e indivíduo, tendo como intenção “verificar o caráter intersticial (...) da liberdade que

dispõem os agentes e para observar como funcionam normalmente os sistemas normativos (...)

que jamais estão isentos de contradições” (LEVI, 1996: 17); compreendendo

Que não se pode analisar a mudança social sem que se reconheça previamente a

existência irredutível de uma certa liberdade vis-a-vis as formas rígidas e as origens

da reprodução das estruturas da dominação (LEVI, 1996: 17).

A partir das palavras de Giovanni Levi, queremos dizer que há um lugar ambíguo no

qual o ser humano em sua complexidade tem uma parcela de irredutibilidade no social, mas por

outro lado é contingenciado pela mesma sociedade em que está inserido. Identificar os

interstícios nesse caso significa identificar por meio das fontes a rede complexa de relações na

qual a Isabel Allende está inserida e em que medida a ação individual dela nessa teia provoca

uma mudança em dado contexto, assim como o modo com que é vinculada, de acordo com as

fontes e com a bibliografia selecionada, a Salvador Allende pode ter modificado sua

possibilidade como escritora na América Latina.

Trazendo as palavras de Benito Bisso Schmidt (SCHMIDT , 2012), a biografia histórica

é uma área de conhecimento dentro da macro área “história” e por isso, enquanto tal, precisa

seguir certos procedimentos de pesquisa, amparada em fontes e visa o entendimento de algum

processo histórico/do passado. Além disso,

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Uma biografia não se justifica por si só, mas pelo que ela pode contribuir para o

avanço das discussões próprias ao conhecimento histórico. (...) Por vezes, a

importância da atuação do indivíduo biografado em determinado contexto histórico

parece legitimar a investigação sobre sua vida, já que, sem a compreensão de suas

experiências, seria impossível compreender/ explicar certos processos e

acontecimentos (LEVI, 1996: 17).

Diante do que foi exposto, o uso da biografia como estudo de caso ou como

representativa de uma comunidade maior não pode se sobrepor ao lugar do biográfico como

indivíduo que constrói sua própria história, ou seja, há um “campo de possibilidades”

(SCHMIDT , 2012: 196) e buscaremos o movimento histórico dela nesse “campo”.

Apesar de haver muitas narrativas sobre a Allende, espalhadas pela internet, em vídeos,

blogs, livros e outros, optamos pelo blog e página pessoal da autora “isabelallende.com” para

divulgação de sua obra e história de vida (com versões em inglês e espanhol) e uma história

resumida e autorizada de si auxilia na nossa orientação da trajetória da autora.

Partindo do conceito de memória de Jacques Le Goff, temos a seguinte frase “a memória

como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um

conjunto de funções psíquicas graças às quais o homem pode atualizar impressões ou

informações passadas, ou o que ele representa como passadas (LE GOFF, 2013: 387)”. Usar

das memórias da biografada implica em entender que ela está num emaranhado de relações no

momento da escrita de suas memórias e distante daquilo que rememora, tendo elementos que a

mesma recorda, outros que são esquecidos, outros que prefere silenciar e ainda aqueles que se

confundem por questões psíquicas e neurológicas. Portanto, fazemos uso de sua narrativa

memorialística tendo em vista que esta é parcial, incompleta e difusa, mas que ainda assim,

pode iluminar questões e contribuir na elucidação de processos históricos.

Numa síntese da trajetória de vida que nos é apresentada, vemos que a Isabel Allende

nasceu no Peru, em 1942, mas voltou muito criança junto com a mãe para o Chile, onde viviam

seus avôs, após a separação de seus pais - Francisca Llona e Tomás Allende, primo-irmão de

Salvador Allende. Seu pai abandonou a família e apenas seu tio Salvador Allende, dentre os

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parentes da família paterna, se preocupou com ela e sua mãe e manteve algum contato nos anos

posteriores9.

Suas referências de Chile na infância são muito vagas, pois viveu em constante mudança

de país, devido ao fato de seu padrasto ter sido diplomata. Morou na Bolívia, vários anos no

Líbano, até que veio a guerra civil e ficou perigoso o país. Foi enviada pela mãe e pelo padrasto

de volta ao Chile para morar com avô, isto por volta de 1958, quando tinha seus 15 anos. Sempre

em constante peregrinação, considera que sua atividade mais constante foi a escrita em diários

quando criança e juventude, material este desconhecido do público, mas cuja repetição em

entrevistas e reportagens sobre a mesma funciona como uma forma de encadeá-la no lugar da

“narradora”.

Ao voltar ao Chile, não muda sua relação de estranhamento com as moradias, afinal

foram anos longe dali. Seu avô é que a auxilia a ler e escrever num espanhol correto de novo,

pessoa com a qual tinha maior proximidade, mas que sempre se chocava por Allende defender

ideias que remetiam ao nascente feminismo, sendo ele muito machista.

Teve um período curto de morada na Europa, acompanhando seu marido Miguel Frias

e depois voltam ao Chile. Tendo conseguido espaço no jornalismo, decide-se por essa profissão

e começa a despontar na mídia chilena. Influenciada pelo feminismo com o qual havia entrado

em contato na Europa, começa a escrever na revista feminina Paula, na coluna intitulada Los

Impertinentes10 e em artigos diversos; considera esta revista como um espaço para discutir

questões como o aborto, uso da pílula anticoncepcional, coisas que ainda eram um tabu no Chile

e não aceitas, assim como o feminismo. Após seu início no mundo jornalístico, consegue espaço

também num jornal para crianças chamado Mampato, de Santiago, bem como inicia sua carreira

na televisão como entrevistadora em um programa humorístico entre 1970-1975 (RODDEN,

2004: xv-xvi).

Isabel Allende ainda demorará alguns anos para começar a se empenhar na escrita de

seu primeiro livro, e seu sucesso como produtora de uma revista feminina não ultrapassará as

fronteiras do Chile desta época e seu rosto será conhecido na mídia televisiva que está surgindo,

9Reforçamos que estamos fazendo referência sempre a literata Isabel Allende Llona, pois há a Maria Isabel Allende

Bussi, chamada de Isabel Allende, que é a filha do Salvador Allende e atualmente, 2017, é senadora no Chile. É

comum a confusão nas pesquisas feitas em mídia impressa ou on line, por isso nossa necessidade de explicitar

isso; caso venhamos a referir a Isabel, filha do Allende, especificaremos. 10 ISABEL ALLENDE, página pessoal da autora, disponível em <www.isabelallende.com> acesso em 25-07-2017.

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mas a escritora e entrevistadora é ainda uma figura local. Quando começa a escrever La Casa

de los Espíritus, está no exílio na Venezuela e tem diante si uma ditadura vigorando em sua

“terra natal” e um tio e ex-presidente do Chile, Salvador Allende, morto, e ainda que ela não

fosse envolvida com “política”, o sonho com a mudança no seu país por meio da proposta

socialista do ex-presidente, havia sido destruído pelo golpe militar em 1973.

Voltando um pouco temporalmente, cumpre-nos traçar alguns pontos da história do

Chile, do início do governo de Salvador Allende e do golpe militar, haja vista que ao analisar o

tema, poderemos refletir sobre o modo como a violência aparece na memória, na trajetória de

vida e na literatura da Isabel Allende, indicando uma visão sobre o Chile da década de 1970 e

também entender porque ser associada ao seu tio lhe permitiu outro espaço no mundo afora,

após seu primeiro livro ser publicado, em 1982.

A valorização que a figura de Salvador Allende (ex-presidente socialista chileno)

conquista no próprio Chile e mundo afora começa a ser construída anteriormente ao sucesso de

Isabel Allende ( de 1982 em diante), pois o primeiro tem seu destaque ligado a proposta política

de atingir o socialismo de modo pacífico e democrático – o socialismo pela via democrática –

cuja tentativa de pôr em prática tem início quando é eleito como presidente, como representante

pela Unidade Popular (UP) em 1970, no Chile. Ademais disso, há um contexto macro-regional

e global que interfere diretamente na construção deste momento da história do Chile, de pós

Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria.

Observamos que o século XX é marcado por uma sequência de golpes de estado no

mundo. Para o historiador inglês Eric Hobsbawn, a “predominância de regimes militares, (...)

unia Estados do Terceiro Mundo de diversas filiações constitucionais e políticas. (...) É difícil

pensar em quaisquer repúblicas que não tenham conhecido pelo menos episódicos regimes

militares depois de 1945” (HOBSBAWN, 1995: 140-141), ou seja, considera que se tornaram

comuns as ditaduras militares, inclusive na Europa, mas na América Latina faziam até parte da

tradição. Deste modo, podemos tomar a violência deste período, decorrente de regimes

repressivos, como uma tendência em muitos países da América latina. Tal “tendência” é

fomentada no bojo da guerra fria, que é marcada pela polarização ideológica e disputa

econômica entre capitalismo e socialismo, sob a liderança dos EUA e URSS, respectivamente.

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Até a década de 1970, o Chile se caracterizava pela estabilidade política, seguindo um

regime democrático e pluripartidário de cerca de 40 anos, com tradição política de alternância

no poder, voto feminino desde 1949 e sufrágio universal em 1970. Um país urbanizado (75%

de população urbana), com 80% com escolaridade de nível básico e médio (AGGIO, 1993: 16-

18), diferente em todos esses aspectos de outros países do mesmo recorte geográfico cultural.

Na descrição do historiador latinista Peter Winn (WINN, 2010), era um país dependente

do capital externo via Estados Unidos, para maquinário e tecnologia; com concentração dos

meios de produção, de comunicação e dos bancos nas mãos da elite chilena, ou seja, havia um

descompasso entre política e economia se considerarmos que a estrutura política tendia a um

caráter progressista com relativa participação popular, enquanto a economia era atrasada e

dependente de investimento externo11. Chegando a década de 1970, a economia estava

estagnada, mas com a expansão do acesso à educação e da cidadania política, aumentavam as

exigências das classes populares e ao mesmo tempo, começava a se consolidar a chamada classe

média chilena, urbana e letrada.

O presidente anterior a Salvador Allende, foi Eduardo Frei da Democracia Cristã (DC),

partido considerado de centro no espectro político. Nas eleições de 1970, vence Salvador

Allende com cerca de 36% dos votos, pela Unidade Popular (UP), partido de esquerda,

socialista, cujo programa político propunha a transição para o socialismo através da democracia.

Apesar de expressivo apoio da população nas eleições (36%), isso não garantiu governabilidade

por muito tempo, diante de um congresso conservador e de divisões no meio das forças armadas

Cabe observar que o mesmo foi eleito com a promessa de levar o país ao socialismo de

modo pacífico, mas antes de chegar a isso já tinha uma trajetória na política. Salvador Allende

Gossens era médico e sua militância começa na faculdade de medicina; foi um dos que

fundaram o PS – Partido Socialista – e senador por esse partido (três vezes entre 1945-1970),

havia sido também deputado (1937), Ministro da Saúde (1938) e presidente do partido (AGGIO,

1993: 16).

11 Apesar de Winn e Aggio – os dois historiadores que estamos utilizando aqui para discutir a história do Chile no

período do golpe militar – terem perspectivas diferentes em relação ao programa político de Salvador Allende e

os anos de seu governo, a visão sobre a dependência econômica do Chile e a concentração de renda e dos meios

de produção nas mãos da elite é algo observável na discussão de ambos.

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Concorrendo a presidência da república desde 1952, somente em 1970 que ele vence

pela UP. A extrema direita procura desestabilizar seu governo, mas a UP firma um acordo com

a DC – Democracia Cristã – que era maioria no Congresso Nacional e sua vitória é confirmada,

assumindo assim o poder. Para Winn (WINN, 2010: 75), Salvador Allende foi uma

personalidade hábil aos moldes de um reformador e que tinha profundo conhecimento das

instituições políticas do Chile. Mas isso não seria suficiente considerando um Congresso

conservador, o domínio dos meios de comunicação e produção pela direita e a conspiração dos

EUA. Tendo vencido as eleições presidenciais em 1970, pela UP, Salvador Allende manteve

no discurso a proposta de fazer tal transição, mas como era um projeto novo para a política

carecia ainda de medidas concretas e efetivas para sua realização.

Como foi após a Revolução Cubana de 195912, essa eleição despertava um duplo

movimento; de um lado um fôlego para as ideias ligadas ao socialismo e ao comunismo na

América Latina; de outro lado, a constante vigilância da CIA, agência de espionagem dos

Estados Unidos e financiamento deste país às forças armadas e setores pró-

capitalismo/militarismo e neoliberalismo. Cada vez mais cercado e barrado nas propostas

distributivas de renda e terra, como a reforma agrária; atacado pela proposta socialista, com

auxílio de um “medo do comunismo” disseminado pela mídia, Salvador Allende teve que lidar

com o boicote dos Estados Unidos e sua influência nas forças armadas.

Nessa conjuntura, “os olhos do mundo estavam voltados para o Chile”, países da

América Latina e da Europa estavam atentos no processo político chileno pelo duplo

movimento de ser um país subdesenvolvido que havia conseguido estabilidade política, num

regime democrático com sufrágio universal e, pela ideia da “via chilena para o socialismo”, nas

palavras do historiador brasileiro Aggio (AGGIO, 1993), ou seja, a proposição de fazer

transição para o socialismo dentro de um regime democrático. Em 11 de setembro de 1973, os

militares tomam o Palácio La Moneda, o presidente socialista é deposto e morto e tem início a

ditadura do general Augusto Pinochet.

12 A Revolução Cubana é colocada como um marco para pensar as ditaduras militares, pois impulsionou o debate

e as lutas políticas em torno do socialismo e do comunismo no continente ao mesmo tempo que deixou mais alerta

o EUA, pois tornou mais concreta a possibilidade de instaurarem-se mais regimes comunistas na América Latina.

Ressaltamos algumas datas iniciais das ditaduras militares em países do Cone Sul – Argentina, 1966 e 1976;

Bolívia, 1964; Brasil, 1964 – dentre outros (PRADO, 2010: 115-137).

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Disto e dos demais fatores ditos acima, resultou aquilo que fez com que este país

continuasse em cena na mídia internacional. Com o golpe militar se encerra essa tentativa de

chegar ao socialismo pela via democrática (ao menos no Chile), e o mundo se chocou ao ver

um país com histórico de estabilidade política tornando-se uma ditadura militar sangrenta em

1973 (uma das mais violentas da América Latina), pondo fim a utopia do socialismo em

democracia.

Com o início do regime militar, começa o movimento de saída do Chile em busca de

exílio político em outros países. Para a historiadora Carmen Norambuena Carrasco

(CARRASCO, 2010), de 1973 a 1980, foi um período de saída massiva de chilenos para o

exílio, sendo os principais lugares Argentina, Venezuela e Estados Unidos (mas outros também,

como o México e o Brasil). Segundo pesquisas dessa historiadora, os principais motivos para

emigrar nesse período foram: perseguição direta do governo e/ou por serem ex-presos políticos,

uns 50% daqueles que saíram. Outros motivos são asilo político, expulsão, perda de trabalho

(também por motivos políticos), dentre outros (CARRASCO, 2010: 183-184).

Isabel Allende e família serão um dos afetados pelo processo antidemocrático, são

diversos os motivos que fazem com que ela e sua família entre na lista negra do regime militar

do general Augusto Pinochet, logo no início da ditadura. Dentre os fatores, temos seu

parentesco com o ex-presidente Salvador Allende, morto no momento em que o Palácio La

Moneda é tomado; bem como porque seu padrasto fora embaixador no governo de Salvador

Allende e por fim, a família de Isabel Allende havia abrigado pessoas perseguidas

politicamente. Isso a leva a buscar exílio junto com sua família, o que marcará a sua vida e será

um tema que perpassará suas primeiras obras, pois considera inevitável falar da violência da

ditadura. A escritora pode ser classificada no grupo dos que pediram asilo político e a opção de

sua família foi a Venezuela por ser um país democrático nos idos de 1975.

A Venezuela já havia passado por mais de um período ditatorial, desde sua

independência em 1811. Somente em 1958, após um levante popular apoiado pela marinha, que

volta a democracia de modo estável neste país (entre os períodos ditatoriais havia curtos

períodos de tentativa de reestabelecimento da democracia). Assim, em 1975, era um dos

principais países da América Latina a receber exilados chilenos, dentre eles Isabel Allende

(BACK, 2012: 51-52). Nos primeiros anos na Venezuela consegue trabalho como jornalista,

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mas após um curto período na Espanha, numa separação temporária de seu marido, retorna a

Venezuela e não consegue nada na sua área, indo trabalhar numa escola na parte administrativa.

Ao saber que seu avô está moribundo e que não poderá voltar ao Chile para vê-lo, começa a

escrever uma carta para ele, à noite, após o trabalho. Essa carta se converte no seu primeiro

romance – assim temos uma explicação que ela mesma, Isabel Allende, constrói em torno da

escrita de La Casa de los Espíritus, explicação esta que se repete nos jornais que a apresentam,

na entrevistas e etc.

Foi recusada por várias editoras, não só na Venezuela (CORTINEZ, 2002:1), e veio a

ser publicada pela Plaza & Janés Editores, de Barcelona, Espanha, graças à agente literária

Carmen Balcells, que foi umas das primeiras agentes de autores do chamado “boom latino-

americano” – romances do realismo fantástico de autores como Gabriel García Márquez e Julio

Cortázar. Segundo a pesquisadora estadunidense Verônica Cortinéz (especialista em literatura

hispano-americana13 e principalmente chilena), a agente literária Balcells viu na obra de

Allende uma possibilidade de retomar parte do sucesso do boom latino-americano da década

de 1960-1970 e para o qual faltavam novos autores que mantivessem o fôlego; tanto que Isabel

Allende é classificada no post-boom (CORTINEZ, 2002:1), fase posterior – década de 1980 –

da literatura latino-americana que se caracteriza por menor difusão nos meios internacionais e

uma queda no mercado consumidor de livros de literatura, mas ainda com alguns elementos do

realismo fantástico do “boom”.

O livro entra para a lista dos mais vendidos assim que é lançado nos mais diversos países

– na Espanha e na França, entre 1982-1983, no Brasil, em 1984, nos Estados Unidos, em 1985,

na Alemanha, em 1986 – e outros mais. Em 1987, separa-se de seu marido Miguel Frías e em

1988, casa-se com Willie Gordon, e vai morar em São Francisco, na Califórnia (EUA), quando

já havia publicado seu terceiro livro.

Diante disso que foi apresentado e da continuidade de sua trajetória como romancista,

na sua autobiografia se vê instada a justificar a relação que ainda tem com o Chile, mesmo

morando na Califórnia desde 1988. A escritora chilena define a sua relação com o Chile por

13 Observemos que literatura hispano-americana se refere somente a literatura de língua espanhola, diferente de

quando nos referimos a literatura latino-americana que engloba países de línguas diferentes, situadas num mesmo

espaço geográfico-cultural da América.

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meio da “nostalgia” e como tal é o que impulsiona a sua escrita, mas já não se entende mais

como chilena.

Si me hubieran preguntado hace poco de dónde soy, (…)que de ninguna parte, o

latinoamericana, o tal vez chilena de corazón. (…) porque mi marido, mi hijo (…) mis

libros y mi casa están en el norte de California, sino también porque no hace mucho

un atentado terrorista destruyó las torres gemelas del Word Trade Center (…) Esta

tragedia me ha confrontado con mi sentido de identidad; me doy cuenta que hoy soy

una más dentro de la variopinta población norteamericana, tanto como antes fui

chilena (ALLENDE, 2003: 13).

Logo a seguir, ela nos lembra que tanto o golpe militar no Chile em 1973, quanto o

ataque as torres gêmeas em 2001, ocorreram num fatídico 11 de setembro; afirmando também

que o do Chile foi um golpe orquestrado pela CIA. Para ela, ambos são similares nas suas

primeiras imagens, pelo pânico gerado e por ver em chamas no que era um marco em ambas as

cidades, o Palácio La Moneda e as Torres Gêmeas, no Chile e nos EUA, respectivamente. Ela

completa esse entrecho narrando que

Esse lejano martes de 1973 mi vida se partío, nada volvió a ser como antes, perdi a

mi país. El martes fatídico de 2001 fue también un momento decisivo, nada volverá a

ser como antes y yo gané un país (ALLENDE, 2003: 14).

Ela só se esquece que o país que vive atualmente e considera como “lar” foi o

responsável pelo seu primeiro desterro e grande trauma. Isso ela retomará no final do livro

apenas, se justificando por ser “uma esquerdista que vai morar nos Estados Unidos da América”

(ALLENDE, 2003: 14), não que haja uma incompatibilidade em ser de esquerda e viver nos

Estados Unidos, mas para Allende, no momento em que discorre sobre sua vida nesta

autobiografia (1995), pode ser complicado aceitar a contradição de ir para o país que financiou

a violência em sua terra natal. Cabe observar que a mesma se torna cidadã norte-americana em

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200314. Em poucos momentos cita Salvador Allende como parente e pessoa familiar e não

somente figura política. Como no trecho a seguir

Salvador Allende era primo de mi padre y fue La única persona de la familia

Allende(…). Era muy amigo de mi padrastro, de modo que tuve varias ocasiones de

estar con él durante su presidencia. Aunque no colaboré con su gobierno (…) Nunca

me he sentido tan viva (…) ni he vuelto a participar tanto en una comunidad o en el

acontecer de un país (ALLENDE, 2003: 176).

Só que não fazia ideia da popularidade da figura do Allende até chegar no exílio na

Venezuela. Segundo ela antes dos processos políticos que discorremos, da vitória de um

presidente socialista e do destaque que a figura do Salvador Allende teve, o Chile não era tão

conhecido para além das suas fronteiras, incluso na Europa, segundo a Isabel Allende. Mas após

isso e os demais acontecimentos políticos, o se tornou um país muito comentado nos círculos

intelectuais e jornalísticos, além do fato dos demais países da América Latina e da Europa

receberem muitos exilados chilenos.

La estricta censura de prensa impidió a la mayoría de los chilenos dentro del país

darse cuenta de que ese movimiento de solidaridad existía. Yo había pasado año y

medio bajo esa censura y no sabia que afuera el nombre de Allende se había

convertido en un símbolo, por eso al salir de Chile me sorprendió el respeto

reverencial que mi apellido provocaba (ALLENDE, 2003: 198).

Com isso podemos ver que, não há um esforço da escritora chilena (como se identificava

na época) e hoje em dia estadunidense, em se associar a figura de seu tio, para além do que

lembra e opta por trazer na sua narrativa de memórias, recordações e nostalgia, mas o inevitável

elo com esta figura emblemática e torná-lo personagem principal de seu primeiro romance

potencializam o espaço que é dado a ela, segundo a percepção da autora. Mas essa “não

associação” é anterior ao sucesso mundial da autora, afinal Isabel Allende chega na Venezuela

em 1975, quando ainda não havia começado a escrever romances; e quando seus livros

14ISABEL ALLENDE - Página pessoal da autora. História. Disponível em: <http://www.isabelallende.com/>

acesso em 25-07-2017.

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começam a ser publicados e vendidos mundo afora, o seu discurso e o discurso da mídia

associarão cada vez mais “tio famoso” e sobrinha.

Isabel Allende se entende enquanto uma mulher feminista e preocupada em falar da

violência da ditadura militar em seu país, mas tanto no seu feminismo quanto no modo de

retratar a violência mesclando ao romance dos personagens, aparecem contradições. No que diz

respeito ao relato do golpe militar e da ditadura chilena, vemos que é banalizado o drama da

realidade chilena ao dar solução romantizadas para cenas emblemáticas de tortura, por exemplo.

De outro modo aparece o feminismo, que como comentamos no tópico anterior, é um olhar

burguês sobre o ser mulher e que constrói um imaginário empoderado apenas para as mulheres

desta classe social, ficando as mulheres indígenas, camponesas e de classes sociais mais baixas

num patamar estereotipado de mulheres submissas e sem voz. Ou seja, é uma figura cercada de

contradições e nesse sentido, temos que colocá-la na ambiguidade de sua imagem e do que

efetivamente ela constrói com sua escrita e como se posiciona.

Considerações finais

Assim, essa análise inicial conjunta da autobiografia e das condições sociais de

publicação de seu primeiro romance, bem como do contexto histórica da época não desvelou

uma associação tão grande entre as duas figuras, Isabel e Salvador (Allende), por parte da autora

na época em questão de publicação de seu primeiro romance, porém que Salvador Allende tem

um simbolismo forte para a comunidade internacional de modo geral e este se mostrou um dos

elementos mais marcantes para o destaque que a autora conquistou no mercado editorial, bem

como pode ter auxiliado a ultrapassar as “fronteiras invisíveis” que haviam para mulheres serem

escritoras na América Latina.

A biografia histórica da escritora nos levou a reafirmar a dimensão que o golpe militar

tem na sua vida, narrativa e na sua inserção no meio literário, influenciando que ela, uma mulher

latino-americana, tivesse espaço como escritora e fosse publicada por uma editora seja na

América Latina ou na Europa. Sua trajetória se liga a figura de seu tio mais no âmbito político,

as ações da UP, do Salvador Allende enquanto presidente e defensor da “via chilena ao

socialismo” e os desdobramentos da ditadura militar ensejam um conjunto que reações que até

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parecem em cadeia, devido à dimensão do impacto de uma ditadura nos moldes que foi a de

Augusto Pinochet (pela violência, duração, etc.). Isso nos trouxe possibilidades de análise, mas

conclusões ainda deveras parciais com a quantidade de fontes que foi possível analisar no

presente artigo.

Apesar dessas parcas evidências, a própria fala da autora já insinua o que formulamos

como problema central, seu tio e ex-presidente do Chile havia se tornado um símbolo de uma

luta democrática e pacífica pelo socialismo, distribuição das riquezas e igualdade social. Por

isso, podemos dizer que o sobrenome Allende antecede a pessoa da escritora, não determinando

seu sucesso, mas abrindo caminho para sua fala ou para sua narrativa. Acrescente-se aqui que

esse caminho que se abre se dá na Europa, onde aceitaram publicar seu primeiro romance; algo

que não foi possível na Venezuela que era onde estava naquele momento.

Em relação a autobiografia, podemos dizer que no momento em que a Isabel Allende

escreve sua autobiografia, seu sucesso já está garantido; as disputas globais entre socialismo e

capitalismo não são mais foco de atenção; e as ditaduras na América Latina já acabaram. Por

isso, pode ser que o interesse da mídia que acerca e da própria Allende em responder sobre essa

associação já havia diminuído. A autora já estava consagrada nos meios literários, da cultura de

massa.

O que nos leva a pensar que o próximo passo, para aprimorar a pesquisa aqui feita é

problematizar a co-relação de forças externas ao discurso (interno) do romance e aos elementos

que a escritora pode agregar enquanto indivíduo de dado contexto histórico.

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ISABEL ALLENDE – Página pessoal da autora. In: <http://www.isabelallende.com/> acesso

em: 25 de julho de 2017

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