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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
História Oral, Ética e política: um debate necessário1
Luiz Henrique dos Santos Blume2
Este artigo pretende apresentar alguns questionamentos e indagações em pesquisas com
fontes orais. Desde 2004 venho lidando com narrativas orais, especialmente de pescadores
artesanais e marisqueiras. Dentre estes, alguns pescadores que são lideranças das colônias de
pescadores Z-34, Z-19, Z-62, e também mulheres que aprenderam as artes da pesca com seus
maridos, vizinhas, familiares.
Este diálogo com os pescadores e marisqueiras de Ilhéus insere-se numa perspectiva de
construir outras histórias, buscando nas muitas memórias de sujeitos sociais excluídos da região de
Ilhéus e Itabuna outras perspectivas historiográficas na região sul da Bahia.
No entanto, isto não tem sido fácil, pois além das lutas para considerar experiências de
homens e mulheres pobres na sua luta cotidiana pela sobrevivência, é preciso ainda enfrentar
resistências no interior da universidade, onde vários campos de luta política e acadêmica tem se
colocado contrários à presença física, política, ou mesmo de forma a não dar visibilidade às
experiências desses sujeitos. Dessa forma, tem sido preciso justificar e defender pesquisas com
fontes orais, que se diferenciam de padrões, normas e pressupostos técnico-científicos no interior da
universidade.
Estas dificuldades de diálogo deram-se, seja pela incompreensão da viabilidade “científica”
dessas fontes, seja pelos preconceitos arraigados na universidade, seja por posições políticas
institucionalizadas que deixam de fora dos saberes acadêmicos o cotidiano e o conhecimento das
pessoas comuns. Para alguns estreitos nichos de produção científica, tais sujeitos poderiam fornecer
apenas informações aos pesquisadores acadêmicos.
Dificuldades em transitar pelas instâncias e comissões internas de avaliação da UESC -
Universidade Estadual de Santa Cruz, na qual sou professor e pesquisador, serviram para formular
um questionamento mais intenso e complexo acerca das dimensões éticas, políticas, acadêmicas e
institucionais das relações entre a pesquisa realizada por historiadores que lidam com fontes orais,
1 Este texto foi escrito inicialmente como parte de alguns apontamentos para servir como provocação para uma
apresentação ao ST proposto por mim e pelo prof. Dr. Leno José Barata Souza, que por motivos particulares não
poderá comparecer ao simpósio. Agradeço-lhe gentilmente as contribuições e correções no texto.
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
especialmente com grupos e populações tradicionais, populares, e as perspectivas hegemônicas de
ciência e produção de conhecimento na universidade.
É preciso fazer este debate, articulando-se às recentes discussões envolvendo associações de
pesquisadores das diversas áreas afins às ciências humanas e sociais e a CONEP, que resultaram na
elaboração de minuta de resolução contemplando, ainda que minimamente e parcialmente, as
discussões realizadas pelas entidades que compõem o Fórum das Ciências Humanas e Sociais.
Assim, trago muito mais apontamentos de minha experiência enquanto pesquisador com
fontes orais – entrevistas, na busca de um sentido ético-político para as pesquisas que envolvam a
metodologia da História Oral e os sujeitos com os quais dialogamos, postulando finalmente, a
História Oral também como um exercício de alteridade e de igualdade. Por fim, pretendo tecer
algumas reflexões a partir da experiência de organizar um acervo de fontes orais como parte de um
projeto de iniciação ao ensino no curso de Licenciatura em História da UESC.
O lugar social da pesquisa: de onde falo
Entendo que é importante situar de qual perspectiva de história oral partem minhas
preocupações. Além de ser um método e uma técnica de investigação em ciências humanas e
sociais, entendo que a história oral é também um lugar de militância política e acadêmica, uma
forma de repensar os postulados de uma História “radical”, tratando-a
“como una práctica que cuestiona los fundamentos de la disciplina, a la vez que abre caminos
convergentes entre investigación y activismo político.” [POZZI & NECOECHEA, 2008, p. 01]
Em pesquisa anterior (BLUME, 2011)3, trouxe como problemas iniciais os modos de vida e
trabalho de pescadores artesanais e os impactos nesta modalidade de pesca, com as novas formas de
organização da pesca e dos mercados de abastecimento em Ilhéus. Desde as primeiras conversas
com pescadores e marisqueiras em Ilhéus, seguidas de leituras e discussões, algumas possibilidades
de análise surgiram com os avanços e recuos concernentes ao processo de construção das
problemáticas da pesquisa.
2 Doutor em História Social. Professor Adjunto “B” na UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz. 3 Trabalho realizado como parte da pesquisa para a elaboração da tese de Doutorado em História “Viver de tudo que tem
na maré”: tradições, memórias e vivências de marisqueiras em Ilhéus, BA, 1960-2008, apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da PUCSP em 25.07.2011.
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
Ao lidar com narrativas orais, movido por um interesse que revela também uma experiência,
ainda que de segunda mão, através das histórias de minha família de pescadores, minhas memórias
podem também revelar desejos, que são possíveis apenas na forma de sonhos e utopias. Esta forma
de perceber a memória como reativação e experimentação dos sonhos de criança, que só são
possíveis na memória, trouxe-me às zonas cinzentas da minha experiência familiar. Ao revisitar
estas zonas, em choque com as realidades atuais, o desejo não realizado na infância, da permanência
de minha família na comunidade da Caçandoca, zona rural do município de Ubatuba, litoral norte
de São Paulo, levou-me até às histórias das marisqueiras e pescadores, em Ilhéus.
Assim, este diálogo se fez num tenso e às vezes contraditório sentido de historiador que, ao
ouvir as narrativas das marisqueiras e pescadores, em Ilhéus, reporta-se à infância. Hoje, revisito as
minhas memórias, nas histórias de família, projetando imagens de sonhos ucrônicos de uma
comunidade de pescadores presentes nas minhas lembranças pessoais. Este fato, que poderia levar-
me à acusação de “psicologismo”, poderia ser, de outra forma, uma motivação originária para a
elaboração desta investigação.
Dessa forma, revisitando as minhas lembranças pessoais e familiares, em diálogo com as
narrativas orais de pescadores artesanais, penso em trazer ao debate as permanências e mudanças
nos modos de vida de pescadores artesanais de Ilhéus, atravessadas por conflitos e vivências do/no
presente; na luta por espaços e lugares nos mercados de abastecimento de Ilhéus: feiras, ruas; nas
políticas públicas destinadas à pesca e, em especial, na pesca artesanal.
Estas reminiscências trazem logo de início um debate sobre a questão da intersubjetividade
no lidar com fontes e narrativas orais. Qual é o limite tênue entre autobiografia e as memórias
narradas por sujeitos na pesquisa? Para problematizar tais questões, trago algumas reflexões de
Luísa Passerini. A autora apresenta alguns significados da intersubjetividade. O primeiro é
responder à pergunta “quem são os sujeitos da História, e como se explicita sua capacidade de
decisão?” (PASSERINI, 2006, p. 04). Outra questão é buscar o que chama de “terceira área de
significados de subjetividade”, qual seja, a subjetividade dos historiadores e da intersubjetividade.
Conforme a autora, a partir das reflexões da teoria feminista, os pesquisadores “vem explorando e
avaliando as relações entre os sujeitos, no sentido da contribuição do sujeito individual, e no sentido
da fundação do pacto social”. (PASSERINI, op. Cit.)
Ao problematizar a construção da fonte oral, atravessada por relações entre sujeitos, a autora
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
traz o tema da intersubjetividade sem cair num esquema puramente idealista ou psicologizante.
Neste caso em questão, este conceito serve para situar a minha relação enquanto pesquisador com
os narradores, e os narradores e aquilo que me contam:
“A fundação da memória oral reside, precisamente, no fato de que a investigação assume um tecido
de narrações preexistentes à entrevista como expressão de uma intersubjetividade a despeito da qual,
os investigadores devem encontrar um modo de concordar e de registrá-la.”[ PASSERINI: 2006, p
14]
Além disso, trata-se de perceber de que forma estes pré-textos ganham forma e organizam
sentidos, no diálogo entre pesquisador e entrevistados, no momento da entrevista, lugar de encontro
de sujeitos posicionados, mediados por relações de classe, etnia, gênero e outras. Tais narrativas
constroem significados e sentidos ao mesmo tempo em que se estabelecem, entre entrevistador e
entrevistado, pesquisador e narradores, relações de confiança, ética, buscando transitar para além
dos limites colocados por uma tradição historiográfica que ainda se pauta na relação objetividade-
subjetividade, almejando a transposição de tais limites através do estabelecimento da co-autoria.
Ao trabalhar as narrativas, estamos lidando com processos reais, com sujeitos, homens e
mulheres, pescadores artesanais e marisqueiras, que estão disputando mercados, mantendo os
modos de vida e trabalho nas artes da pesca artesanal em Ilhéus. Dessa forma, a luta de classes não
fica ausente da explicação histórica. Estes processos reais se tornam visíveis, quando diferentes
tradições e gerações de pescadores se posicionam, no presente, ao narrar suas dificuldades atuais, ao
mesmo tempo em que defendem a manutenção dessas tradições das artes da pesca. Projetam futuros
possíveis, com mais qualidade de vida, apostando na organização da venda dos mariscos em grupo,
como no caso das marisqueiras do bairro Teotônio Vilela. Ou ainda, através da realização de
mutirões para a construção da sede da AMMA – Associação das Marisqueiras do Alto do Mambape,
ou então, procurando medir força com os pesquisadores da UESC, como foi o caso da marisqueira
Dulciene, conhecida como “Cica”, que no nosso primeiro encontro recusou-se a gravar uma
entrevista, embora tenha feito várias críticas às ações da colônia de pescadores, aos pesquisadores
da UESC, e outras observações importantes.
Nas narrativas desses pescadores, percebi embates pela manutenção de modos de viver e
trabalhar das artes da pesca que preservam saberes, práticas e locais de exploração como os
mangues e rios de Ilhéus. Estas artes da pesca tecem redes de organização e produção dos
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
pescadores e marisqueiras, constituindo-se enquanto sujeitos de modos de vida e trabalho da pesca
artesanal, e ainda os situam nos embates cotidianos pela manutenção e reorganização destes modos
de vida. Pude perceber diferentes interesses nos grupos que articulam redes de apoio e lutam por
seus direitos, seja nas colônias de pescadores, seja nas associações de marisqueiras, ou nos embates
e disputas com órgãos governamentais e instituições acadêmicas que lidam com a pesca artesanal.
Dessa forma, os sujeitos lidam com a cultura nos processos de organização e preservação de
saberes. Ao mesmo tempo, constroem outras redes, fortalecem-se enquanto grupos, na venda,
exploração do pequeno mercado de mariscos na cidade. Na lida cotidiana pela sobrevivência, têm
embates com a própria categoria de pescadores artesanais, uma vez que percebem a escassez dos
ambientes naturais de coleta e cata dos mariscos. Constituem grupos que se articulam, procurando
inserir-se enquanto sujeitos nesta rede de interesses da pesca artesanal.
Assim, estas marisqueiras e pescadores artesanais, vivendo nas margens da cidade de Ilhéus,
nas áreas de mangue, beira dos rios, nas áreas de invasão do mar, tornam visíveis seus modos de
vida e trabalho. Estas artes da pesca estão presentes no processo de ocupação de mangues, na
exploração do ambiente natural, nos embates por visibilidade e espaços de representação. Tais
embates podem se dar no âmbito do Estado (colônias, cooperativas, federações, órgãos
governamentais como a BAHIAPESCA, SEAP, UESC) ou nas associações e organismos não
governamentais, tais como AMMA (Associação de Marisqueiras do Alto do Mambape), APESMAR
(Associação de Pescadores e Marisqueiras do São Miguel), CÁRITAS (órgão da Igreja Católica
Brasileira para a promoção de projetos sociais com grupos de populações de baixa renda) e CPP
(Conselho Pastoral dos Pescadores da Bahia).
Ao trazer para a narrativa certas queixas e reclamações, os pescadores e marisqueiras tornam
visíveis para outros interlocutores sua luta cotidiana pela manutenção de seus modos de vida e
cultura. Assim, as narrativas dos pescadores artesanais e das marisqueiras deverão ser entendidas
como construção de memória como direitos. Em outro sentido, é preciso perceber as transformações
pelas quais passa a cultura. Esses embates revelam tradições em disputa, indicando tendências para
a modernização das práticas de pesca, na direção de organizarem-se para o consumo e a produção
de mercadorias. De certo modo, os modos de vida e trabalho artesanais também procuram inserir-se
no mercado capitalista moderno, porém, sem perder a possibilidade de manter o controle e o
domínio desta produção e comercialização do pescado, alternando ritmos de vida e trabalho, na casa
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e no mangue, na praia e na feira.
Estas afirmações pressupõem que a pesquisa realizada em História Oral, na nossa
compreensão, deve ter a perspectiva de ir além do âmbito institucional, acadêmico, da objetividade
da pesquisa, mas, na intersubjetividade destas experiências, aprofundar e reavaliar posições
políticas dos intelectuais de esquerda dos anos 1970 e 1980, que tentaram em vão serem portadores
de um sentido para a História e para os movimentos sociais.
Dessa forma, as pesquisas que lidam com fontes orais procuram também ser um instrumento
para a formulação de um sentido ético-político para a História Oral, estabelecendo um diálogo com
os sujeitos e, dessa forma, contribuir para a construção da memória popular.
História Oral como um “experimento em igualdade”:
A perspectiva apresentada por Alessandro Portelli nos traz uma inquietação ética,
metodológica e política: fazer do lugar da entrevista, na História Oral, um experimento em
igualdade. Esta também tem sido a perspectiva apresentada nos estudos de História Social e de
história oral, em particular dos trabalhos de KHOURY (2006), PASSERINI (2006), PEIXOTO
(2013), PORTELLI (1997, 2010a, 2010b), SALVATICI (2006), SCHWARZSTEIN (2008).
Estes autores advogam a perspectiva da história oral enquanto um experimento em
igualdade, em que os sujeitos narradores e os sujeitos pesquisadores encontram um espaço de
diálogo e, a partir das diferenças, construam perspectivas de igualdade social. Neste sentido, não
cabe uma metodologia que engesse procedimentos metodológicos para a entrevista, representados
por roteiros pré-estabelecidos ou questionários estruturados em que se esperam determinadas
respostas às situações-problema para a tabulação de dados quantitativos e qualitativos.
De resto, como salienta Portelli (1996, 2010a, 2010b), o pesquisador não deve sair a campo
com uma “agenda” pré-estabelecida esperando apenas por corroborações junto aos narradores orais.
Pelo contrário, sem abrir mão do método, deve permanecer aberto ao insuspeito, ao “indizível” e ao
silêncio que possibilitam problematizações que atualizam as perspectivas de história social.
Assim, é preciso trazer elementos nestas pesquisas que busquem partir de uma perspectiva
ética e política de produzir um experimento em igualdade, incorporando com legitimidade as
dimensões históricas que os sujeitos-narradores trazem no momento da entrevista.
Então, as entrevistas com os sujeitos-narradores têm como ponto de partida as pesquisas já
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
realizadas ou também o que chamamos de “entrevista de abertura” para construirmos roteiros de
entrevistas sem nos limitarmos e∕ou nos condicionarmos às orientações elaboradas.
Como na lição política que Portelli recebeu de mineiros negros do Kentucky, Estados
Unidos, quando a Sra. Cowans, mulher do pastor e ex-mineiro Cowans, afirmou: “sempre existe
uma barreira, não importa se parecerem gentis, não importa se falarem direito. Você sempre vai ser
negra. Sempre existe uma linha”. (2010a, p. 33-34).
Concordando com o autor, entendemos ainda que nós, historiadores orais, não somente
“estudamos” os “informantes”, mas “aprendemos com eles e permitiriam por sua vez serem
“estudados” de volta” (PORTELLI: 1996, p. 22).
A partir do diálogo inicial com alguns pescadores artesanais e marisqueiras, percebi uma
intrincada rede de relações sociais presentes na pesca artesanal em Ilhéus. De início, pretendia ter
como foco principal as organizações dos pescadores artesanais presentes na cidade, as colônias de
pescadores. Entre o momento que iniciei esta pesquisa, em julho de 2004, até 2011, outras formas
de organização e associação entre os pescadores artesanais e marisqueiras foram criadas.
Naquele início da pesquisa, a referência de organização dos pescadores artesanais era a
colônia de pescadores Z-34, do bairro do Malhado. A partir do contato e do diálogo com os
pescadores e marisqueiras, percebi que além das colônias de pescadores existentes em Ilhéus, as
marisqueiras hoje se organizam para poderem manter as suas atividades de marisqueiras e
pescadoras artesanais, atuando como suas representantes, seja no âmbito da comercialização dos
mariscos, seja como interlocutoras junto aos órgãos representativos do Estado, como o Ministério
da Pesca, BAHIAPESCA, CEPLAC, EBDA, universidades e outras entidades.
A criação de outras organizações de pescadores artesanais, tendo à frente as mulheres
marisqueiras, revela mudanças na relação entre os pescadores artesanais de Ilhéus. Nos diálogos
com estas marisqueiras e pescadores, percebi tensões e oposições dos sujeitos que apontam para
diferenças nas formas de organização e a procura de alternativas à representação tradicional dos
pescadores artesanais, através das colônias de pescadores.
Estas, geralmente lideradas por homens, têm se mantido durante décadas como as únicas
representações legais e institucionais dos pescadores artesanais. Porém, a partir da Constituição de
1988, as mulheres passaram a ter o direito de se “colonizarem”, para obterem os benefícios dos
pescadores artesanais. Em períodos anteriores, somente os homens, geralmente os maridos, eram
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
“colonizados”, cabendo às mulheres e crianças o trabalho de auxiliares na pesca e produção dos
peixes.
Ao conversar com estas mulheres que praticavam a arte da pesca da mariscagem, percebi o
quanto este modelo patriarcal de organização familiar e de organização das colônias estava
mudando. Apesar das marisqueiras em geral afirmarem que aprenderam as artes da pesca com seus
maridos, outras já tinham experiências de lidar com a pesca artesanal. Porém, a sua participação na
pesca artesanal modificou-se, principalmente nestes últimos anos, e passaram então a assumirem a
condição de marisqueiras – pescadoras artesanais.
A pesquisa, que tinha, inicialmente, uma perspectiva de buscar dialogar com as lideranças
das colônias de pescadores e com pescadores artesanais, passou a ter como principais interlocutoras
as marisqueiras de Ilhéus. A partir das conversas4 que tive com Dona Júlia, Dona Tertulina, Dona
Eliúdes, Dulciene, Lúcia, Rosemeire, Maria Helena, pude perceber movimentos de mudança e de
resistência destas mulheres, ao defenderem o seu direito à aposentadoria, seguro-defeso,
organização de cooperativas, escolarização e, principalmente, ao trabalho como marisqueiras,
definindo-se como pescadoras, participantes ativas desse mundo do trabalho da pesca artesanal.
A partir desses diálogos, foi possível perceber outros elementos, que não estavam presentes
nos objetivos iniciais desta pesquisa: a luta pela sobrevivência empreendida por estas mulheres e
outros pescadores artesanais que narram suas dificuldades na pesca e mariscagem, mas fazem
questão de afirmar que a pesca e os mariscos lhes proporcionaram criar os filhos, auxiliando os
maridos ou mesmo assumindo a condição de “chefes de família”.
Depois de ter realizado as entrevistas, percebi o quanto a questão da sobrevivência e da luta
pelos modos de vida e trabalho tradicionais dos pescadores artesanais em Ilhéus fizeram-me
repensar as ideias iniciais sobre a pesca artesanal, pescadores e políticas públicas para a pesca. Mais
do que apresentar uma disputa entre “modernização” e “tradição”, as narrativas indicam tensões
4 Entrevistas realizadas com as marisqueiras: Maria Eliúdes Oliveira da SILVA (30.04.2007); Júlia Dias de CASTRO
(60 anos); Tertulina da Silva MOTA (59 anos); Maria Helena Castro dos SANTOS (32 anos), nos dias 12/11/2005 e
11.09.2008; Rosemeire Maria MARQUES (13.09.2008); Sônia Roseno dos SANTOS (36 anos); Jucélia Jesus de
SOUZA (30 anos); Maria Luciene Santos de SOUZA (Lúcia), (44 anos); Milena Santos PEREIRA (18 anos), em
17.09.2008. E ainda a entrevista realizada por Fabiana Andrade, com RODRIGUES, Antônio José (38 anos); SANTOS,
Dulciene Costa – “Cica” (42 anos), em 09.01.2009.
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
entre os pescadores artesanais em Ilhéus, na indicação de caminhos e perspectivas de futuro para a
pesca artesanal.
A história oral radical acabou?
A História Oral, desde a “revolução dos paradigmas”, em fins dos anos 1970, vem sendo um
importante instrumento de renovação metodológica e teórica da História Social. Apesar de ainda
despertar entre os historiadores de formação mais tradicional grande desconfiança, a História Oral,
sobretudo por ter sido identificada com uma “história vista de baixo” e em muitos casos ainda não
obter o status de história acadêmica (PORTELLI, 2010b), tornou-se epistemologia importante para
as pesquisas em História Social que tomam como fontes históricas as narrativas orais. Conforme
KHOURY, avançamos muito nas pesquisas que lidam com fontes orais. No entanto, é preciso
entender que a entrevista é um encontro e não uma observação. Segundo a autora, “ainda estamos
longe de tornar visível o diálogo como trabalho e trabalho político, que cruza e atravessa
fronteiras sociais e culturais” (2006, p.43).
Outras experiências que procuraram aliar militância política com perspectivas de história
social “radical” também fazem parte de um escopo de praticantes de história ora. O historiador sul-
africano Sean Fiel, da Universidade do Cabo, trouxe importante contribuição do Centre for Popular
Memory, criado em 1997 na universidade, como uma das possibilidades de aliar uma perspectiva
socialmente crítica com o refinamento das investigações em história oral.
Em comunicação no X Congresso Internacional de História Oral, em 2010, em Praga, na
República Tcheca, questionou se uma perspectiva radical de História Oral teria chegado ao fim,
tornando-se uma história “respeitável” perante o universo acadêmico (FIELD, 2012).
Para o autor, os primeiros trabalhos de História Oral na África do Sul remontam à luta contra
o apartheid, regime segregacionista que existiu por quase 50 anos naquele país. A História Oral era
uma ferramenta acadêmica legítima para a luta contra o apartheid. No governo de Nelson Mandela
(1999-2004), criou-se a Comissão da Verdade e da Reparação, presidida pelo bispo anglicano e
militante histórico antiapartheid Desmond Tutu. Isto deu um novo impulso à História Oral e o valor
dos testemunhos por uma “nova história sul-africana”. Entre os anos 2000-2010, houve uma nova
retomada da História Oral, fora da academia. Ocorreram experiências no ensino de história em
escolas públicas e particulares, nas quais a disciplina História Oral passou a ser oferecida nos
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
currículos escolares do Ensino Médio, que fazem histórias locais, de comunidades e grupos
populares. Atualmente na África do Sul existem Centros de Memória Popular que realizam este
trabalho com as escolas secundárias.
A expansão da História Oral como disciplina escolar e sua popularização trouxe alguns
problemas: como a História Oral pode se tornar refém de uma história nacionalista, visto que a
história da África do Sul pós-apartheid é uma história de glorificação do CNA e da luta anti-
apartheid. Como avançar nas problemáticas e continuar com uma história oral radical? A questão
hoje posta aos historiadores e pesquisadores que militam no campo da história oral é com quem
falamos?
Concordamos com o pesquisador Leno Barata Souza, para quem a história oral, enquanto
metodologia de investigação social avançou em pesquisas que buscam compreender melhor modos
de viver e de significar os espaços urbanos por parte de moradores e trabalhadores. Entrevistar
pessoas é um passo que se mostra tão importante como coletar fontes impressas, tendo em vista que
em vários momentos da investigação, apenas pelas narrativas orais conseguimos lançar novas
perspectivas sobre o cotidiano das classes populares, como as vivenciadas pelos moradores das
ribeiras e águas fluviais da cidade de Manaus (SOUZA, 2012).
Concluindo: experiências de “praticar” história oral: o Laboratório de História Oral no
CEDOC-UESC.
Em 2013 elaboramos um projeto de ensino que foi contemplado com o edital de propostas
de apoio ao ensino de graduação na UESC. O projeto apresentado Laboratório de História Oral:
ensino e pesquisa com fontes orais, parte do pressuposto de que ensinar a ensinar e a pesquisar não
são habilidades estanques, mas fazem parte de uma perspectiva de um ensino de História crítico,
pois entende que não há dicotomia entre ensino e pesquisa e, principalmente, sem fontes não há
pesquisa histórica.
Além disso, traz a perspectiva de trazer outras memórias, e com isso, quando as narrativas
orais problematizam a pesquisa histórica documental e trazem novos sujeitos para a História, é
possível construir muitas histórias. Conforme FONSECA & SILVA (2011) é preciso entender que os
professores da educação básica são sujeitos produtores de conhecimento histórico e, dessa maneira,
as fronteiras do mundo acadêmico e o cotidiano escolar estão em movimento dialético. É necessário
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ouvir o professor de História, e fazer da experiência uma categoria central que possa superar e
quem sabe, aproveitando-se os conhecimentos históricos produzidos no cotidiano escolar, renovar-
se a prática e também as aulas de História na academia?
No entanto, os autores Silva e Fonseca alertam para a “mitificação” da prática, como se não
houvesse uma necessária práxis. É preciso não incorrer no erro da “mitificação da teoria”, espaço
reservado aos conhecimentos produzidos nos centros de pesquisa e universidades, e o “chão da
escola”, onde os professores apenas reproduziriam os conhecimentos e saberes “científicos”
apreendidos na universidade. Tal concepção descarta que a formação é um processo, “um percurso
formativo, de ensino e aprendizagem, desenvolve-se por meio de diferentes agentes e em diferentes
espaços educativos” (FONSECA & SILVA: 2011, p.25).
Dessa forma, é preciso não perder de vista que o princípio da natureza do trabalho docente é
a autonomia e a liberdade de exercício. Portanto, tomo as preocupações de FENELON para quem
não cabem mais “reformulações” e “propostas” salvadoras que excluam a participação dos
profissionais da educação básica e o principal sujeito do conhecimento: os estudantes. Conforme a
autora:
Se ao contrário, considerarmos que a História faz sentido como fonte de inspiração e de
compreensão, não apenas porque pode fornecer os meios de inter-relação com o passado, mas
também porque nos permite elaborar o ponto de vista crítico através do qual se pode ver o presente,
outras perspectivas de interesse pela história se abririam para todos nós profissionais e especialmente
para nossa situação no ensino e na pesquisa (2009, p.33).
A utilização de fontes orais no ensino de História na educação básica tem sido provocativa e
problematizadora. A historiadora argentina Dora Schwarztein (2008) tem sido uma das pioneiras na
articulação de pesquisa em História Social e experiências de investigação histórica no ensino
básico. Assim, trouxe uma importante contribuição, ao relatar e apresentar algumas questões a partir
da experiência do projeto “Historia oral en las escuelas de las zonas de acción prioritaria”, na
cidade de Buenos Aires.
Conforme a autora, as mudanças no ensino de História colocam aos profissionais do ensino
de História pelo menos quatro desafios: a necessidade de interessar aos alunos; ensinar uma história
com protagonistas, uma história viva, e que os alunos entendam que toda experiência humana é
relevante para o conhecimento histórico; dar resposta aos novos conteúdos, que coloquem a
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necessidade da aquisição de capacidades e atitudes como o espírito crítico e outras habilidades para
resolver os problemas que os alunos venham descobrir; fazer que os conteúdos sejam
compreensíveis.
Concordamos ainda com a autora, quando afirma: “La historia oral ofrece respuestas
complejas y estimulantes a la problemática de los nuevos enfoques en la enseñanza de la historia, a
la par que, con la necesaria preparación, es factible de ser aplicada en aula” (SCHWARZSTEIN:
2008, p.132).
Neste sentido, entendemos necessária a preparação dos estudantes para o trabalho com
fontes orais, aproveitando-se experiências como as do Laboratório de História Oral, implantado no
CEDOC- Centro de Documentação e Memória Regional da UESC. A participação dos estudantes
do curso de Licenciatura em História da UESC na organização do acervo de fontes orais do
CEDOC serve como exercício e laboratório de práticas de ensino e pesquisa com fontes orais no
ensino básico.
Nossa perspectiva é construir experiências de ensino e pesquisa no ensino básico, utilizando-
se das fontes orais. Tem como finalidade proporcionar exercícios para serem utilizados no ensino e
na pesquisa em História em que a experiência de docência esteja articulada à produção, análise e
interpretação de fontes orais como exercício da dimensão da pesquisa e da formação docente dos
estudantes do curso de História da UESC.
Fontes Orais: Entrevistas
CASTRO, Júlia Dias de (60 anos); MOTA, Tertulina da Silva (59 anos); SANTOS, Gileno Ferreira
dos (75 anos); SANTOS, Maria Helena Castro dos (32 anos); Teresa e Naiara (s/identificação).
Entrevista realizada por Luiz Henrique dos Santos Blume. Local e data: Residência de D. Júlia e Sr.
Gileno, no bairro Teotônio Vilela, Ilhéus, em 11.09.2008. Duração: 0:38:41. Gravado em áudio
.wma. (390MB).(15 págs.)
CASTRO, Júlia Dias de (60 anos); MOTA, Tertulina da Silva (59 anos); SANTOS, Gileno Ferreira
dos (75 anos); SANTOS, Maria Helena Castro dos (32 anos). Entrevista realizada por Luiz
Henrique dos Santos Blume e Fabiana de Santana Andrade, na residência de D. Júlia e Sr. Gileno,
no bairro do Teotônio Vilela, em Ilhéus, em 12/11/2005. Gravada em Fita Cassete. (Fita 1, Lado A e
Lado B; Fita 2, Lado A). Duração aproximada: 1:30. (30 págs.)
MARQUES, Rosemeire Maria. (47 anos) Entrevistado por Luiz Henrique dos Santos Blume. Local
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História Oral, ética e política: um debate necessário. BLUME, L.H.S.
e data: residência da marisqueira, no bairro São Miguel, Ilhéus, em 13.09.2008. Gravado em Fita
Cassete 1 (Lado A e Lado B) e áudio .wav, 16.5 MB. Duração 1:08:25.(34 págs.).
RODRIGUES, Antônio José (38 anos); SANTOS, Dulciene Costa – “Cica” (42 anos). Entrevista
realizada por Fabiana Andrade. Local e data: residência de Dona Sione, no bairro São Miguel, em
Ilhéus, BA, em 09.01.2009. Duração: 0:41:59. Gravado em áudio wav. (9,61MB) (20 págs.)
SANTOS, Sônia Roseno dos, (36 anos); SOUZA, Jucélia Jesus de, (30 anos); SOUZA, Maria
Luciene Santos de (Lúcia) (44 anos); PEREIRA, Milena Santos (18 anos). Entrevistado por Luiz
Henrique dos Santos Blume. Local e data: residência de Dona Maria Luciene Santos de Souza
(Lúcia), no Alto do Mambape, em 17.09.2008. Gravado em áudio .wav, 13.4 MB. Duração: 0:53:36.
(31 págs.)
SILVA, Maria Eliúdes Oliveira da. (68 anos) Entrevistado por Luiz Henrique dos Santos Blume e
Fabiana de Santana Andrade. Local e data: residência da marisqueira, no bairro São Miguel, em
Ilhéus, no dia 30.04.2007. Gravação em áudio .wav, 13.2 MB. Duração: 0:58. (21 págs.)
Referências bibliográficas:
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História & Perspectivas. Uberlândia: EDUFU, vol. 40, pp. 27-51, jan.-jun. 2009. disponível on-
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