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1 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 REVISTA DO MESTRADO DE HISTÓRIA (Universidade Severino Sombra) Volume 9 - n° 10

História Social - caminhos de um campo histórico. Revista do Mestrado, USS. 2007

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Artigo publicado na 'Revista do mestrado' da Universidade Severino Sombra, em 2007.Neste artigo, o autor desenvolve idéias que foram apresentadas no capítulo "História Social", do livro O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2009. 6a. edição).Referências:“História Social – caminhos de um campo histórico” in Revista do Mestrado de História – Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra, USS. ISSN: 1519-3276. vol.9 – n°10, 2007, p.194-220.http://www.uss.br/web/arquivos/Revista_Mestrado_vol_9-10.pdf

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1Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

REVISTA DOMESTRADO DE HISTÓRIA

(Universidade Severino Sombra)

Volume 9 - n° 10

3Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 20072 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

ISSN 1415-9201

Revista do Mestradode História

Volume 9 - n° 10

Edição produzida por

Miridan Britto FalciRosângela de Oliveira DiasJosé D’Assunção Barros

Universidade Severino Sombra

Presidente da FUSVEe Reitor da USSAmérico da Silva Carvalho

Vice-Reitor da USSAntônio Orlando Izolani

Coordenadora do Programa deMestrado em HistóriaSurama Conde Sá Pinto

Conselho EditorialAna Maria da Silva MouraEduardo ScheidtCláudia Regina Andrade dos SantosJosé Jorge SiqueiraLúcia Helena Pereira da SilvaPhilomena GebranSurama Conde Sá Pinto

Conselho ConsultivoCarlos Eugênio Líbano SoaresCristina Maria Teixeira MartinhoEulália L. LoboFrancisco Carlos Teixeira da SilvaJoão José ReisJosé Flávio SombraManolo FlorentinoMaria Gabriela DávilaMaria Lígia Coelho PradoSilvia Petersen

Editores ResponsáveisJosé D’Assunção Barros

Miridan Britto FalciRosângela de Oliveira Dias

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Revista do Mestrado de HistóriaRevista Semestral da Universidade Severino Sombra

Revista do Mestrado de História / Mestrado em História /Universidade Severino Sombra – v.i (1998) – Vassouras 1998Anual (v.I 1998), (v.2 1999), (v.3 2000), (v.4 n.1-2, 2001-2002),(v.5, 2003), (v.6 2004), (v.7 2005), (v.8 2006), v.9 (2007)ISSN 1415-92011.Brasil – História – Periódicos. I. Universidade Severino Sombra.

CDD981.005

Todos os direitos reservados (Lei 9.610/98)

5Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 20074 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

S U M Á R I O

Apresentação....................................................................... 7

ARTIGOS

O Fim da História .............................................................. 11Keith Jenkins

O Brasil na Criação da Ordem Militar da Torre e Espada, amais alta Condecoração Portuguesa ............................... 23Humberto Nuno de Oliveira

Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil: uma Análise daContribuição Historiográfica de Robert Conrad ............. 45Valéria Zanetti; Maria Aparecida Papali; Maria José Acedodel Olmo

História e Rádio: Um Campo de Estudos Promissor .....71Lia Calabre

O Corpo entre a Linguagem e o Silêncio: o CasoNietzsche...........................................................................93Gabriel Giannattasio

O Prefeito da Varinha de Condão: A Engenharia Políticade Paulo de Frontin na Prefeitura do Distrito Federal(1919)............................................................................... 129Surama Conde Sá Pinto

O Relato Hagiográfico como Fonte Histórica............. 161Ana Paula Lopes Pereira

Panorama do Pensamento Urbanístico na Cidade do Rio deJaneiro ao longo do Século XIX........................................171Lúcia Silva

História Social: Caminhos de um Campo Histórico ....192José D’assunção Barros

7Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 20076 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

APRESENTAÇÃO

A Revista do Mestrado em História da USS tem buscado apresentar,desde o momento de sua criação, uma reflexão diversificada e atualizadasobre as grandes questões históricas, bem como um debate teórico e umaprodução de conhecimento em História direcionada para objetoshistoriográficos específicos. Seu objetivo maior é a criação de espaçospara o desenvolvimento da crítica histórica e de sua historiografia, recebendotrabalhos de profissionais de várias partes do Brasil e do exterior.

Tal como nos números anteriores, a presente revista procurouagregarartigos relacionados à área Concentração do Programa –História Social – e mais especificamente às suas Linhas de Pesquisa:História Cultural e História Política, para além de artigos recionadosa aspectos teóricos, metodológicos, e à historiografia propriamentedita. Os artigos foram selecionados através de sistema de pareceristas.

Neste número da Revista, que em sintonia com os critériosdivulgados pela CAPES busca evitar a endogenia da produção edivulgação do conhecimento histórico, apresentamos apenas trêsartigos de professores da Instituição. Os demais articulistaspertencem a outras Universidades e Centros de Pesquisa, eremeteram suas contribuições de acordo com as normas parapublicação fixadas ao final deste número, para submissão ao corpode pareceristas, com exceção dos dois artigos internacionais comos quais abrimos a presente edição, cujos articulistas foramconvidados a apresentar artigos especialmente para esta edição.

Apresenta-se aqui uma programação diversificada na qualbusca-se representar o alargamento das fronteiras do conhecimentoe o aprofundamento de questões historiográficas, e que nos aproximada interdisciplinaridade tão almejada nas reflexões da História.Iniciamos com o artigo do bem conhecido historiador inglês KeithJenkins, que autorizou a tradução para o português de um de seusmais recentes artigos publicados na Inglaterra. O artigo, desenvol-vido em torno de uma reflexão historiográfica intitulada “O Fim daHistória”, foi originalmente publicado na The Philosophers’Magazine, e traduzido pela historiadora Gisele Iecker de Almeida.

O segundo artigo internacional – “O Brasil na Criação daOrdem Militar da Torre e da Espada” – é de autoria de HumbertoNuno de Oliveira, historiador português que, entre outrasespecialidades, tem-se dedicado ao estudo da História Diplomática

CONFERÊNCIAS

Construindo Políticas Públicas: Cultura e Patrimonio Cul-tural .................................................................................. 223Déa Ribeiro Fenelon*

RESENHAS

Futebol por Todo o Mundo, de Marcos Alvito e Victor Andradede Melo (orgs).................................................................... 243Rosângela Dias

Teorias da História (Uma Proposta de Estudos), de Astor An-tônio Diehl.......................................................................... 257Diogo da Silva Roiz*

Normas Editoriais .......................................................... 263

9Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 20078 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

A R T I G O S

e da Heráldica, além de atuar como professor na UniversidadeLusíada de Lisboa.

O conjunto dos demais artigos distribui-se entre os camposda História Cultural e da História Política, direcionando-se a tempo-ralidades e espacialidades diversificadas. Assim, entre as discus-sões historiográficas sobre domínios históricos e novas abordagensde fontes que se abrem aos historiadores, apresentam-se nestaedição tanto discussões relacionadas à contemporaneidade, comoo artigo de Lia Calabre sobre “História e Rádio - um campo deestudos promissor”, como textos que se referem a temporalidadesmais recuadas, como é o caso do ensaio sobre “Fontes Hagiográficas”escrito por Ana Paula Lopes Pereira. De igual maneira, há lugarpara discussões historiográficas propriamente ditas, como o artigode José D’Assunção Barros sobre a “História Social”, ou como oartigo sobre a contribuição de Robert Conrad para a historiografiada escravidão, de autoria de Zanetti, Papali e Del Olmo.

A interface entre História e Filosofia nos é trazida por GabrielGiannattasio, com seu artigo “O Corpo entre a Linguagem e oSilêncio: o Caso Nietzsche ”. O âmbito historiográfico dos estudosurbanos nos é trazido por Lúcia Dias, com seu artigo sobre o“Panorama do Pensamento Urbanístico na Cidade do Rio de Janeiroao longo do Século XIX”, enquanto Surama Conde Sá Pinto nostransporta aos tempos da Primeira República para analisar “AEngenharia Política de Paulo de Frontin na Prefeitura do Dis-trito Federal”.

A seção final nos traz a brilhante conferência de Déa RibeiroFenelon intitulada “Construindo Políticas Públicas: Cultura ePatrimonio Cultural”, na qual se aborda uma questão mais do queatual: as atuações do Estado e da sociedade na construção daspolíticas públicas de cultura.

Por fim a seção de resenhas apresenta textos de RosângelaDias e Diogo da Silva Roiz sobre duas obras recentementepublicadas.

Miridan Britto FalciRosângela de Oliveira Dias

José D’Assunção BarrosEditores da Revista do Mestrado em História, da USS

11Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200710 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

O FIM DA HISTÓRIA **

Keith Jenkins∗

Abstract

The article approaches the possibilities of a post-modern historiography, after the great narratives offailed ideologies. Dealing again with some of the pointsdiscussed in “Re-thinking History”, the always polemicKeith Jenkins gets to the point of suggesting anabandonment of history. Through the concepts ofargumentations, texts and narrative substances foundin the works of Frank Ankersmit, Jenkins reconsidersthe questions of sources’ factuality, the historians’politics when granting them meaning and therelationship between reality and representation, mediatedby the researcher. His considerations suggest a newdirection to the future of historiography and alert usof reflections to be made at the present moment.

Keywords: F. Ankersmit, postmodernism, historiography, end of history

Resumo

O artigo aborda as possibilidades de umahistoriografia pós-moderna, posterior às grandesnarrativas de ideologias falhas. Retomando algunsdos temas presentes em “A História Repensada”, osempre polêmico Keith Jenkins chega a sugerir umabandono da história. Através dos conceitos deargumentações, textos e substâncias narrativas

* Keith Jenkins é professor de Teoria da História na University ofChichester, Reino Unido. É autor do livro A História Repensada(São Paulo: Contexto, 2001).

** Originalmente publicado em The Philosophers’ Magazine, edição20, pp.46-8, Outono de 2002.(Traduzido do original em inglês porGisele Iecker de Almeida)

13Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200712 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

novamente, ainda que como farsa; a pequena narrativa, com letraminúscula, foi há muito tempo conservadora, preocupada com seupróprio bem, não-mundana, “acadêmica”. E então pareceu a alguns,como costumava parecer a mim, como se o pós-modernismo tivesseque inventar seus próprios gêneros. Mas qual a necessidade disso?Se críticas pós-modernas têm mostrado que o passado é totalmentepromíscuo, que ele vai com qualquer um, se ele vai obedecer a qualquer“leitura”, se ele vai apoiar todo mundo no geral, mas ninguém emparticular, se a condição de todo conhecimento histórico além daargumentação e da crônica foi fatalmente lastimada por ceticismos,relativismos e neo-pragmatismos pós-modernos de qualquermaneira, então, porque deveríamos nos importar com a históriapós-moderna? Qual seria a utilidade de um discurso tãoprofundamente problematizado e ultrapassado?

Não vimos nada como a historiografia ocidental dos séculosXIX e XX em qualquer outra época ou lugar. Conseqüentemente,não existe justificativa para que o pós-modernismo carregue consigoas estranhas maneiras encontradas pela modernidade de historicizaro passado. Portanto, proponho que podemos esquecer a história.Aqui quero explicar a contribuição para o meu argumento dotrabalho de Frank Ankersmit sobre argumentações, textos esubstâncias narrativas, teorizações que mudam o foco dos aspectosinvestigativo e arquivístico do trabalho do historiador para amoldagem, estetização, tropos e aspectos performativos e“textuais” da historização do passado, uma mudança que ele pensaque a maioria dos historiadores profissionais abominam contemplar.

Ankersmit detalha estas mudanças em seus livros NarrativeLogic (1983) e History and Tropology (1994), mas o ponto principalde seus argumentos talvez seja mais acessível em dois ensaios –“Resposta a Zagorin” e “The Linguistic Turn, Literary Theoryand Historical Theory”. Sobre a relação entre argumentações etextos, Ankersmit afirma que o tribunal dos fatos está disponívelno nível das argumentações, mas não no nível dos textos ounarrativas, e que a tarefa do historiador é, portanto,necessariamente selecionar, o que outorga significado.

encontrados na obra de Frank Ankersmit, Jenkinsreconsidera as questões da factualidade das fontes,da política do historiador ao dar sentido a estas e darelação que se forma entre realidade e representação,mediada pelo pesquisador. Suas ponderaçõessugerem uma nova direção ao futuro dahistoriografia e alertam para as reflexões que devemser feitas no presente momento.

Palavras-chave: F. Ankersmit, pós-modernismo, historiografia,fim da história

É possível que tenhamos atingido o “fim da história.” E issoé “boa coisa”. Realmente, não existe motivo algum que nos impeçade dar adeus a este fenômeno totalmente casual para vivermosfelizes entre os imaginários consoantes com o pensamento pós-moderno contemporâneo e recente, um pós-modernismo isentode todo fundamento histórico, mas que pode nos fornecer todos osrecursos intelectuais necessários para pensar de maneira orientadaao futuro e – espero – de maneira emancipadora e democratizante.Esta, pela menos, foi a conclusão a que cheguei em Why History?Ethics and Postmodernity.

Esta conclusão desafia as histórias pós-modernas, quehistoricizam o passado de maneira mais diversa que históriasmodernistas (por exemplo, a historiografia pós-estruturalista,pós-feminista, pós-colonialista ou pós-marxista), e que sãoabertamente partidárias, apontando e registrando seu ponto devista em algum momento “confessional”. Enquanto essas“histórias que saíram” são um avanço com relação às históriasmodernistas, que afirmam – em diferentes graus quandoquestionadas – não tanto criar histórias do passado mas encontrá-las nele, estas histórias pós-modernistas não enfrentam realmenteos desafios propostos pelo pós-modernismo.

Existem dois tipos reconhecíveis de histórias: a antiga meta-narrativa com letra maiúscula (como os Hegelianismos eMarxismos) se encontra agora muito arcaica para funcionar

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Geralmente, concorda-se que não existe a tal coisa chamada “fatohistórico”, e isto parece ser verdade no sentido de que “fatos”obtém esta classificação através de muita interpretação, pesquisae designação. Mas, feito este trabalho, o resultado não é que nãohá fatos, mas que há milhões deles. Consequentemente, a situaçãoencontrada pelo historiador não é uma de não-existência oucarência, mas sim de abundância ou plenitude. Dessa forma, oproblema do historiador é selecionar, distribuir, “pesar”, dar sentido(que nunca se encontra ali previamente), sempre para apenasalguns dos “fatos”, em combinações problemáticas relativas a umasérie de interesses que sempre os combina em contextos arbitráriose casuais. Assim, diz Ankersmit, “escrever textos históricos requerdo historiador uma política com relação à argumentação” e “otexto é um resultado desta política”.

Os historiadores têm cuidado com suas argumentações, dizAnkersmit, porque estas argumentações “determinam a ‘imagem’da parte do passado que eles visam apresentar a seus leitorescomo uma proposta de como compreender aquele passado”. Eassim imediatamente vemos o problema de tentar verificar tal‘imagem’ ou ‘proposta’ como ‘objetiva’ ou ‘verdadeira’: a imagemou proposta (geralmente em forma narrativa) pertence a umacategoria diferente em relação às argumentações singulares, detal forma que prová-la é impossível. Pois enquanto argumentaçõesindividuais de tipo cognitivo podem ser verificadas através derastros discretos de evidência para checar se correspondem,imagens ou propostas não podem ser verificadas desta formasimplesmente porque o passado não tem em si imagens oupropostas de si mesmo anteriores a esta combinação para verificá-las. Assim, devemos concordar com Ankersmit (e Hayden White)que a “história” é sempre tão imaginada quanto encontrada, ehistoricizações são “inexpurgavelmente relativistas”, estéticas, não-cognitivas, posicionadas. Ankersmit conclui que dizer coisasverdadeiras sobre os rastros do passado no nível da argumentaçãoé fácil – qualquer um pode fazer isso – mas dizer coisasverdadeiras, coisas cognitivas, sobre os rastros do passado no nível

O primeiro ponto é que textos históricos (e, obviamente,textos na capacidade de textos) consistem em váriasargumentações individuais, a maioria das quais oferece uma precisaou “verdadeira” descrição de alguma “circunstância” que existiuno passado. Estas argumentações “evidenciais” são “encontradas”no arquivo “histórico” e têm ao seu redor – quando corroboradas– a aura factual. Esta aura emerge na fase de pesquisa da práticahistórica, mas vem à tona em um texto repleto de aparatos deerudição (como notas de rodapé) que sugerem que o que estásendo representado é o passado como tal. Mas desde “O discursoda história” de Roland Barthes, ninguém realmente aceita a visãoda história como um discurso comprometido em buscar o passadoem algum tipo de estado pré-discursivo: o passado historicizado é“sempre já” textual. Pois, como comenta Tony Bennett, tudo oque já foi ou será tema de um discurso histórico é o que pode serextraído intertextualmente da documentação e de arquivosgenéricos, sendo este (em si mesmo discursivo) constructo quefunciona como o referente do historiador no que ele constitui “aúltima corte de apelação para a veracidade de argumentaçõeshistóricas (não textos, argumentações)”.

O primeiro ponto de Ankersmit é que enquanto esta “cortede apelação” existe (ainda que sempre problematicamente) nonível de argumentações singulares (ou a crônica), ela não existeonde mais interessa – no nível do texto: o passado historicizadopode ser sempre textual, mas nunca é literalmente um texto, o quesignifica, diz Ankersmit, que a história como prática discursivanunca foi e nunca será uma epistemologia, que objetividade everdade portanto não se encontram finalmente em discussão (enunca poderão estar em discussão) no nível do texto histórico.

O segundo ponto deriva disto. Com a possível excessão dealgumas áreas do passado com rastros quase inexistentes, oseventuais rastros e assim as argumentações evidenciais“verdadeiras” disponíveis à maioria dos historiadores possibilita-os de escrever muitas outras argumentações verdadeiras sobre opassado histórico além daquelas encontradas em seus textos.

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da evidência ao texto. Mas é evidente que isso é um equívoco. Nohistoricizar do passado – na maneira que ele é moldado, tropeizado,compreendido, narrado – tudo acontece no percurso em que adescrição se torna apresentação, deixando-nos com o insolúvelproblema de tentar adivinhar onde termina a apresentação ecomeça a realidade, onde termina a realidade e começa aapresentação. Tomemos a Grã-Bretanha dos anos 60 comoexemplo. Digamos que todo um grupo de historiadores concordecom a sua descrição, com os fatos dos anos 60. Então eles devemdecidir como apresentar os anos 60. Foi uma década de traumaou foram anos de banalidades? De alegria? Ou foi mesmo umadécada preguiçosa, uma década meio dorminhoca? Ou foramrealmente os anos dourados? A maneira que os anos da décadade 60 foram continua exatamente a mesma. Eles são sinteticamentefinitos. Mas as maneiras em que eles podem ser narradoshistoricamente são infinitas. E como poderíamos saber se os anos60 foram realmente dourados e não dorminhocos? Portanto, paraAnkersmit, substâncias narrativas se constituem precisamenteatravés do uso de nomes próprios como, O Iluminismo, ORenascimento, A Revolução Industrial, Os Anos Rebeldes. Elessão constituídos conceitualmente, analiticamente, sem levar emconta as reais condições do passado:

“substâncias narrativas são apenas ‘verdadeiras’analiticamente através das argumentações internasdo texto e nunca externamente (sinteticamente)verdadeiras porque não há um Iluminismo [porexemplo] ‘lá fora’ com o qual possa existir umacorrespondência antes da sua criação como umsubstantivo composto/próprio para seu grupo deargumentações.”

Se uma substância narrativa como O Renascimento se tornacorrente entre historiadores, então pode parecer como se realmenteexistisse um Renascimento lá fora que foi descoberto. Mas o querealmente está acontecendo é a aceitação geral de uma maneirade pensar proposta, de uma categoria analítica. Nada mais.

do texto é categoricamente impossível – ninguém pode fazê-lo.Pois textos não são entidades cognitivas, empíricas eepistemológicas, mas convites especulativos e ligados a propostaspara imaginar o passado no infinito. O slogan de Ankersmit é: “aargumentação é moderna, o texto é pós-moderno”.

Esta teoria de argumentações e textos é complementadapela teoria de Ankersmit de substâncias narrativas. Esta teoriaaproxima-se da asserção de Willard van Orman Quine, em “DoisDogmas do Empirismo”, que o discurso sempre ocorreacompanhado de argumentações “sintéticas” sobre a “realidade”e argumentações “analíticas” surgidas auto-referencialmente forade práticas linguísticas. Ankersmit nos dá como exemplo a lei deNewton que afirma que força é produto da massa e aceleração.Podemos dizer que esta argumentação é uma verdade sintética,pois concorda com o comportamento observado em objetos físicos.Mas também podemos dizer que é uma verdade analítica, já queparece verdadeira por definição, pois “força” significa apenas oproduto de massa e aceleração. E, para Ankersmit, isto éparadigmático da maneira que o significado é colocado na“realidade” de nosso mundo: neste caso, através do uso necessáriode ambos o conceito não-mundano, imaginário e analítico de força,massa e aceleração e a observação empírica do comportamentode objetos físicos. Significados são tanto imaginados (analíticos)quanto encontrados (sintéticos).

Consequentemente, o conhecimento histórico nunca éapenas do tipo cognitivo, empírico, sintético; a evidência “histórica”nunca dita completamente a categoria analítica pela qual é dotadade significado, portanto, sempre uma mistura do imaginário e doreal apresentada através de mediações que outorgam aos fatossua aura de real, o âmbito empírico do conhecimento históricoentra em colapso: a história não é uma epistemologia. Claro, dizAnkersmit, é fácil notar porque os historiadores se sentem atraídospela idéia de que a “evidência histórica” dita qual representação ohistoriador deveria produzir sobre o passado, pois apenas nestecaso poderia-se dizer que nada de interessante ocorre no caminho

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de classes; a tradição da pequena narrativa com letra minúsculase situou mais nos galhos, mas, ainda assim, continuouenfocando o tronco. O pós-modernismo modificou a direção eo objeto do olhar do historiador numa direção diferente daquelado tronco e os galhos (pode-se talvez adicionar os ramos e oscaules) para as folhas. Numa visão pós-moderna da história, oobjetivo já não é mais a integração síntese, totalidade,objetividade ou verdade dialética. Se queremos privilegiaralguma coisa, na visão pós-moderna, podemos privilegiar apenasas folhas. Diz Ankersmit que o pós-modernismo é o outono dahistória: as folhas caíram da árvore.

Acho que pode ser útil fazer um adendo à metáfora daárvore. Já que nunca houve realmente algo além das folhas,elas não se desprenderam de algum tipo de árvore. Nunca houveuma árvore. Nunca houve um tronco. Nem galhos. Nem ramos.Nem caules. O que sempre existiu são as folhas, e não temosidéia de onde elas vêm, o que significam ou porque existem(existiram). Mas desta existência fenomenal inferimos essênciasfantásticas, significados, teleologias, objetividades e verdadespara explicá-las. No varrer e amontoar das folhas, nas váriaspilhas em que tentamos colocá-las, temos tentado compreenderatravés delas, como fazemos com as folhas no chá1 , todo tipode previsão do futuro. Mas como dissolvemos tudo isso emeventualidade, neste relativismo que simplesmente é a condiçãohumana, restam-nos apenas as folhas.

O próprio Ankersmit tem nostalgia do passado históricoe historicizado, como fica claro em sua apreciação da micro-história ou folha-história no último capítulo de History andTropology. Mas para que esta nostalgia? Da perspectiva detrabalhar em direção a um futuro emancipador além doexperimento da modernidade, o jeito deve ser, como HaydenWhite afirmou, não entrar na história mas sair dela. Se forassim, qual o motivo para mais um monte de folhas mortas?Talvez devêssemos deixar as folhas em paz.

Então, resumindo, o historiador se depara com umaabundância de fatos para utilizar na construção de um texto,uma interpretação, uma imagem de parte do passado, umaproposta de compreender o passado de uma certa maneira. Jáque o tribunal dos fatos está disponível apenas no nível daargumentação, esta mesma interpretação não pode serverificada com relação a um passado independente. A aceitaçãogeral de uma substância narrativa, em si mesma uma misturade categorias analíticas com evidências sintéticas, pode levarao congelamento daquela substância e à ilusão de que elacorresponde a um passado independente. Mas isto é uma ilusão.Pois não há um passado-base através do qual possamoscomparar, por exemplo, diferentes imagens do Renascimentopara ver qual corresponde ao próprio passado, o próprio passadonão possui papel algum no discurso histórico. Do ponto de vistado conhecimento histórico, este referencial, este passadosintético é uma noção inútil. Tudo o que temos são textos,combinações do sintético e do analítico, e podemos comparartextos apenas a textos. Intertextualidade, e não o passado emsi, é o sempre problemático e interpretativo ponto final.

Esta indecisão radical é, para Ankersmit, parte integralpara a compreensão da liberdade política e possibilidadesfuturas. Para haver liberdade deve existir escolhas,oportunidades para decisões. Pois se houvesse apenas umainterpretação do passado, não haveria mais uma interpretação,mas a verdade. E esta teria então que ser aceita por todosmenos aqueles contentes em ser do contra e em ser tratadosde acordo. Politicamente, não é o relativismo relaxado quedeveríamos temer, mas pessoas, instituições e estados queafirmam conhecer a verdade das coisas no que é na realidadeirredutível a uma questão de interpretação.

E é esta indecisão radical, digo eu, que leva ao fim dahistória. Ankersmit compara a história a uma árvore: a tradiçãometanarrativa com letra maiúscula enfocou o tronco, utilizando-o para definir a essência da árvore, como o progresso ou a luta

21Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200720 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

Andrew Hussey, Paris underground (Penguin)Lucy Iragaray, Speculum of the other Woman (Cornell)Lucy Iragaray, To Be Two (Athlone)Lucy Iragaray, Democracy Begins Between Two (Routledge)Keith Jenkins, Why History? Ethics and Postmodernity (Routledge)Keith Jenkins (ed.), The Postmodern History Reader (Routledge)Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna (José Olímpio)Lois McNay, Foucault and Feminism (Polity)Christopher Norris, The Truth About Postmodernism (Blackwell)Christopher Norris, Deconstruction and the Unfinished Project ofModernity (Athlone)Richard Rorty, ‘Filosofia como um tipo de escrita’ em seuConsequências do Pragmatismo (Instituto Piaget)

BIBLIOGRAFIA:

ANKERSMIT, F.R. Narrative Logic. A Semantic Analysis of theHistorian’s Language. Estados Unidos: Kluwer, 1983.__________. History and Tropology: The Rise and Fall of Metaphor. Berkeley: University of California Press, 1994.__________. The Linguistic Turn, Literary Theory and HistoricalTheory. Historia, vol. 45, no 2, 2000. pp. 271 -311.__________. Resposta a Zagorin. Topoi, Rio de Janeiro, março 2001.pp. 153-173.__________. História y Tropologia: Ascenso y caída de la metáfora.México: Fondo de Cultura Economica, 2004.JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2001.QUINE, Willard van Orman. Dois Dogmas do Empirismo. In RYLE,STRAWSON, AUSTIN & QUINE. Coleção Os Pensadores. São Paulo:Abril Cultural, 1980, p. 231-248.

LEITURA RECOMENDADA

Ankersmit, Frank. Narrative Logic. Dordrech: Kluwer, 1996.Frank Ankersmit, History and Tropology (University of CaliforniaPress)Jean Baudrillard, Simulacros e simulação (Antropos)Jean Baudrillard, Selected Writings (Polity)Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo (Contraponto)Jacques Derrida, Espectros de Marx (Relume-Dumará)Michel Foucault, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber(Graal)Michel Foucault, Vigiar e Punir (Vozes)Michel Foucault, The Foucault Reader (Penguin)Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem (Loyola)Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade (MartinsFontes)David Harvey, Condição Pós-Moderna (Loyola)Andrew Hussey, The Game of War: The Life and Death of GuyDebord (Plimlico)

23Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200722 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

O BRASIL NA CRIAÇÃO DA ORDEM MILITAR DATORRE E ESPADA, A MAIS ALTA CONDECORAÇÃOPORTUGUESA

Humberto Nuno de Oliveira*

Resumo

Há duzentos anos, recém desembarcado no Brasilo regente D. João instituía – ou recriava – a Ordemda Espada, embrião da Ordem Militar da Torre eEspada, Valor, Lealdade e Mérito que, embora criadapara fazer face a necessidades conjunturaisespecíficas, a breve trecho se transformou na maisimportante – e consequentemente mais desejada –das condecorações militares portuguesas. Neste anodo duplo centenário da sua instituição importarelembrá-la na sua antecessora tardo-medieva, nosseus objectivos iniciais e, ao mesmo tempo, bosquejara conjuntura que envolve o Brasil na sua instituição.

Palvras-chave: Ordem da Torre e Espada / Falerística / Brasil

Abstract

Two hundred years, just after disembarked in Brazilregent John instituted - or recreated - the Order ofthe Sword, embryo of the Military Order of theTower and Sword, Valour, Loyalty and Merit.Created to face specific conjunctural necessities, itsoon watched its transformation into the mostimportant - and consequently most desired - of all

.

* Humberto Nuno de Oliveira é Professor de História Diplomática daUniversidade Lusíada de Lisboa; Director dos Serviços Editoriais,Comunicação e Imagem da Fundação Minerva (UniversidadeLusíada); membro da Academia Lusitana de Heráldica, da Sociedadede Geografia de Lisboa, da Sociedade Histórica da Independênciade Portugal, e PHD in Military and Diplomatic History ..

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Comemora-se, assim, neste ano de 2008 tão repleto decomemorações luso-brasileiras, a do duplo centenário da OrdemMilitar da Torre e Espada3 , a primeira ordem criada no Rio deJaneiro e que assim liga o Brasil de modo indissociável à históriafalerística portuguesa e à da mais importante condecoraçãoportuguesa, porque apesar de brasileira na instituição, portuguesase manteve durante toda a permanência da corte no Brasil, nãosendo então atribuída a naturais brasileiros4 .

Foram pois, como se verá, circunstâncias muito especiaisque levaram o príncipe regente D. João a criar, ou recriar, a Ordemda Espada, cuja origem como ordem de cavalaria remonta aoreinado de D. Afonso V. Este rei, com efeito, haveria instituído,como era moda na época, e apanágio das suas preocupaçõesemblemático-simbológicas (Oliveira, 1998), uma ordem decavalaria de duração efémera, destinada a recompensar os feitosgloriosos cometidos durante as conquistas em território muçulmanono norte de África e que lhe valeram o cognome de “Africano”.

Não existe porém confirmação documental coeva a respeitodesta fundação, embora ela venha referida, por vezes de modo poucopreciso, em inúmeras obras a partir do século XVI. Se esta Ordem,tema de escritos vários, na ausência de um acto fundacional terá sidodevida a uma intenção, a um qualquer comentário proferido, a umalenda recente, ou a uma efectiva realidade, não o podemos saber.

A primeira referência, de 1552, à “Ordem de Espada” édevida a João de Barros que na sua Ásia, Década I, nos diz:

“na qual guerra de Africa teve tanto contentamento,por as boas venturas que nella houve, queempreendeo, (se lhe os negócios do governo doReyno deram lugar,) ir tomar per sua pessoa aCidade de Fez, e todo o seu Reyno, pera que tinhaordenado huma Ordem chamada de Espada”. (LivroII, Cap. II, p. 149)

A referência de 1595 de Fr. Hieronimo Roman nas suasRepublicas del Mundo é particularmente importante porquanto,a fazer fé neste frade espanhol da Ordem de Santo Agostinho,que residiu em Portugal, no Convento da Graça em Lisboa, durante

Portuguese military decorations. In this doublecentenarian year it is interesting to recall its late-medieval predecessor order, its initial objectives andalso to remind the conjuncture that involves Brazilin its institution.

Keywords: Order of the Tower and the Sword / Phaleristics / Brazil

Pouco se escreve na historiografia de expressão portuguesa,particularmente em Portugal, e cremos que outro tanto ocorreráno Brasil1 , sobre a temática falerística2 , trata-se, assim, ao invésde outros países, de uma área de estudo que não vem merecendoa devida e desejada atenção. Exceptuam-se naturalmente os jáantigos trabalhos de Henrique de Campos Ferreira Lima, e algumasoutras, poucas, visitações, igualmente distantes, nas excelentesRevista Militar e Jornal do Exército. Sem falsa modéstiapensamos presentemente integrar um recente esforço de alteraçãode tal panorama (Estrela 2005, 2006a e 2006b, Furtado 2008,Oliveira 2005, 2006 e 2007 e Oliveira e Furtado 2008).

A transferência da Corte de Portugal para o Brasil, háduzentos anos, quando as tropas invasoras francesas comandadaspor Junot calcorreavam já a metrópole, que correspondeu a umanotável e até então inédita opção estratégica de deslocalização dasede do poder com vista a impedir a sua captura por forças inimigas.Permitiu, além do mais, opor com eficácia aos interesses continentaisfranco-hispanos, uma plena aliança com a potência marítima dominante,a Grã-Bretanha. Terá sido este reforço da tradicional aliança luso-britânica, bem como a activa participação e envolvimento demilitares e diplomatas britânicos na transferência da corte paraterras de Vera Cruz, lord Strangford foi aliás um dos primeirosrecipiendários da Grã-Cruz da nova Ordem, e mais tarde na defesade Portugal continental, que teve como inesperada consequênciaa criação da Ordem da Espada, embrião da Ordem Militar daTorre e Espada que em poucos anos se haveria de alcandorar aomais alto lugar de entre as condecorações portuguesas,destronando, rapidamente, as tradicionais, disputadas e vetustasOrdens Militares de Cristo, de Avis e de Santiago de Espada.

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documentos em que ela vinha nomeada constavam, como afiançaFrei Hieronimo Roman, do arquivo da Sereníssima Casa deBragança, porque os não consultaram os autores posteriores quepouco mais vão fazendo do que repetir aquilo que o agostinhoescreveu? Se na realidade a simples hipótese de os mesmos seterem perdido, sido levados ou simplesmente desaparecido nãopode ser posta de parte como hipótese de trabalho importa constatarque, dificilmente, poderemos encontrar fundamentados motivosque levassem aquele frei espanhol a tão rebuscada invenção.

A verdade é que no século XVII as referências não sócontinuam como se intensificam. Em 1670 o capuchinho FreiJacinto de Deus no seu notável tratado sobre sessenta e uma ordensmilitares não deixa de referenciar a criada por D. Afonso V,chamando-lhe, porém, de “Sant’Iago da Espada”,

“instituio hua Ordem, sob sua protecção, & nome,& deu-lhe por diviza, & habito, hua espadaatravessada na Torre, pendente de hum collar, comeste titulo: Sant’Iago da Espada (…) differente daoutra de Sant’Iago, de quem se tratou no § I” (§LX, pp. 229-230)

Sem maior interesse complementar se referem à OrdemMilitar da Espada os escritos do historiador Manuel de Faria eSousa, Epitome de las Historias Portuguesas, EuropaPortuguesa e Africa Portuguesa, respectivamente de 1677,1680 e 1681.

O século XVIII, que precede o da criação, ou recriação,da Ordem Militar da Torre e Espada, é um verdadeiro alfobrede informações sobre a mesma. Além de um manuscritointegrando a Miscelânea Histórica citado por Serrano (1966,p, 23-27), atribuível a este século mas não datável com precisão,é sem dúvida a notável obra de Alexandre Ferreira, Historiadas Ordens Militares, que houve no Reyno de Portugal, de1733 o mais completo acervo de informação sobre a “Ordemde Santiago da Espada”, que ocupa o capítulo II da obra, e quedesde logo sobre o eventual desaparecimento das fontes nosinvectiva com uma culpabilização global:

alguns anos, na década de sessenta e, mais tarde, na década deoitenta, por altura da aclamação de Filipe II como rei de Portugalnas Cortes de Tomar, os documentos relativos à Ordem não apenasteriam existido efectivamente, como por si teriam sido consultados.Poderemos fazer fé neste autor que, por ter vivido em Portugalnão apenas obteve um aprofundado conhecimento da histórianacional, como ainda um privilegiado acesso às fontes sobre asquais mais tarde iria redigir textos fundamentais, entre outras coisas,para o estudo das Ordens Militares?

“Jo agora como anduuiesse buscado diuersas cosasen el Reyno de Portugal, y estuuiesse viendo lospapeles de la casa de Bragança para la historia queescriui de aquella casa, tope con algunos libros queconteniam cosas varias y de mucha curiosidad, yentre ellas tope con la fundacion de la orden de laespada de Sanctiago que hizo el Rey Don Alonso elquinto de Portugal. Y aunque alli no se contenia másque la regla, después andando con cuydado busquepor otras partes papeles sueltos adonde halle algunamas luz”. (Livro VII, Cap. XX, p. 432)

Descreve Fr. Roman que D. Afonso V teria determinado acriação de tal ordem de cavalaria por a mesma se mostrarnecessária na distinção dos cavaleiros mais valorosos e que osmesmos fizessem uso de um colar e divisa para públicoreconhecimento. Relata, ainda a lenda, que servirá de modeloposterior, que na cidade de Fez havia uma torre em cuja pedracimeira um mouro colocara supersticiosamente uma espada,dizendo que enquanto a espada aí permanecesse se manteria odomínio muçulmano do Norte de África, ao invés se a mesmafosse retirada por um príncipe cristão terminaria esse domínio.Afirma, ainda que, entre esses papéis, se definia o modelo da venerae se estipulava o número de cavaleiros da ordem: vinte e setetantos quantos os anos do soberano quando passara a África.

Todos quantos estudaram esta temática e particularmenteMaria Alice Serrano (1966), não podem deixar de estranhar atotal ausência de referências coevas à dita Ordem; e se os

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“Que elle Rey havia de ser o primeiro Graõ Mestre,e o primeiro que recebesse o Habito, e que nella sópoderiaõ entrar os Principes, e os mais aventajadosFidalgos de Portugal em obras heróicas de valor,ou em Nobreza e Qualidade: grandes motivos paraa desejarem todos, que vinhaõ a ter o mais honradobrazaõ para as suas Famílias, (…)

O Habito particular que haviaõ de trazer ao peito,era huma Venera de ouro, e nella sobre huma rodahuma Espada atravessada na Torre; e a Veneraandaria pendente de hum Collar de ouro com estetitulo: Santiago da Espada. O Habito publico e paraas funções da Ordem, era hum Manto de damascobranco com Murceta ou Capello de terciopellonegro, muy pomposo, e de authoridade, e Bonetede terciopello carmezim, acompanhado da Veneraparticular. A Bandeira, ou Pendão da Ordem, haviade levar gravada a Torre, com a propria Espada,para que os Cavalleiros no sequito da Bandeira selembrassem da Espada, e da Torre, a que osencaminhava o Habito da Ordem, que professavaõ;e na Venera do peito a infundirlhe espiritos no coraçaõ,para a gloriosa empreza de tirar aquella Espada, earruinar aquelle barbaro dominio. (pp. 126-127)

Quanto às Constituições: eu as não pude acharescritas, (…)” (p. 128)

Os ideais de cavalaria tão característicos de D. Afonso Vos podemos igualmente apreender nas palavras de AlexandreFerreira, como quando refere que como cabeça da Ordem mandouedificar a igreja de Santiago, na freguesia lisboeta do mesmo nome,onde qual émulo da famosa “távola redonda”:

“Parece se ordenou (…) que nesta Igreja de Santiagoestivessem na Capella môr vinte e sete cadeiras, muyricas e curiosas, em que se accommodassem osCavalleiros, quando alli se achassem, e em cima decada huma as Armas, ou Insignias daquelleCavalleiro, a que pertencia”. (pp. 128-129)

“Entro a escrever de huma Ordem, que instituîdahá duzentos e setenta e quatro annos, conserva taõpoucas memorias, e deveo taõ pouco aosHistoriadores, que ainda de breves noticias nosdeixaraõ muy poucas lembranças: sempre nosqueixamos dos antigos, como senaõ fossem reosda mesma culpa os modernos; sendo a verdade aalma da Historia”. (p. 77)

A lenda contemporânea aos sucessos do soberano emÁfrica e que motiva o surgimento da nova Ordem é detalhadamenteexplicada, embora sem novidade de substância:

“Hum Cacís Mouro depositou em Fez, na Torre dahomenagem, huma espada (a que chamavaõ fadada)com o prognostico, que quando os Christãos atirassem, se perderia aquella Cidade, e o ImperioAfricano se renderia ao domínio daquelle CatholicoPríncipe, que a tirasse: a espada estava cravada atéo meyo pelo capitel da torre; este prognostico, eeste vaticínio se conservava nas tradições daquellasgentes, e na veneração por ser de hum Cacís, e aespada na Torre”. (p. 121)

A justificação advém do facto de o soberano, crente que talfortuna lhe estaria destinada, após o sucesso de Alcácer Seguer,estar seguro que a glória vaticinada lhe não escaparia:

“porque o amor próprio he muy senhor do nossoentendimento, e da nossa vontade; e para infundirnovo animo nos Cavaleiros, e captar a suabenevolência ou inclinaçaõ, instituîo huma novaOrdem Militar, que chamou da Espada, porque comas suas haviaõ de trabalhar por aquella. Este omotivo de instituir esta Ordem” (p. 122)

Pormenoriza, de seguida, os aspectos concretos: modo,forma, hábito e constituição desta Ordem da Espada:

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Melo, 22 – o alcaide de Arronches e mordomo mor D. Álvaro deSousa, 23 – o mordomo mor do infante, D. Fernando de Meneses“o Roxo”, 24 – o senhor de Távora e Mogadouro, Álvaro Pires deTávora, 25 – o capitão dos ginetes, Vasco Martins de SousaChichorro, 26 – o conde de Abranches, D. João de Abranches deAlmada, capitão de Lisboa e 27 – o visconde de Vila Nova deCerveira e alcaide de Ponte de Lima, D. Leonel de Lima.

D. António Caetano de Sousa na sua Historia Genealogicada Casa Real Portugueza, tomo III, emite julgamento abonatóriosobre a veracidade histórica da fundação da Ordem, baseado nosescritos de Fr. Roman:

“Nenhum dos nossos Chronistas antigos fez mençaõdesta Ordem, e devemos a noticia della ao PadreFr. Jeronymo Roman, o qual no tempo em quepassou a Portugal, entre os papeis, que vio naSerenissima Casa de Bragança para a Historia, quedesta Casa escreveo, refere, que nella achara algunslivros, que continhão varias cousas de grandecuriosidade, e entre ellas encontrara a Fundação daOrdem de Cavallaria da Espada de Santiago, queElRey D. Affonso V instituira”. (livro IV, p. 3)

Após abordar os motivos de tal decisão e da lendamuçulmana da espada da torre de Fez, acrescenta:

“E determinado na Conquista da Africa, e querendocom o seu ardor infundir mayores espiritos nosCavalleiros, instituîo huma nova Ordem Militar, aque deu o nome da Espada com allusão à Torre deFez, e assim intentada a poz em pratica. Era a divisa,pendente de hum Collar de ouro, huma veneraredonda, tambem de ouro, em a qual em esmaltebranco, se via atravessada huma Torre com aEspada. Para esta Ordem escolheo vinte e seteCavalleiros, em memoria de outros tantos annos,que tinha ao tempo, que a instituîo, e se achavavictorioso em a propria Africa, que vem a ser oanno de 1459, e pelo que se collige, no seguinte jáestava instituîda.” (livro IV, p. 4)

Sobre a data da fundação da Ordem fornece-nos AlexandreFerreira uma que reputa de precisa, face às divergências dosanteriores autores:

“Porém seguramente hey de dizer, que esta Ordemfoy instituída no anno de 1459, o que provo comevidencia. Todos os que allego, confessão que ElRey D. Affonso tinha vinte e sete annos de idade aotempo desta instituição (…), que somados sobre1432 annos que corriaõ quando nasceo na celebreVilla de Cintra em 28 de Janeiro, ajustaõ pontualmenteos 1459, tendo já os vinte e sete de idade, e vinte ehum de governo” (p. 132)

Fornece-nos ainda o catálogo ou rol dos primeiros (e únicos?)cavaleiros da Ordem que o “Africano” instituíra. Relação, nalgunscasos incompleta e pouco precisa que se completou com asposteriores pesquisas pessoais e de outros autores posteriores.Foram eles: 1 – o rei D. Afonso V, 2 – o príncipe D. João, 3 – oinfante D. Fernando, Grão-Mestre da Ordem de Santiago, irmãodo rei, 4 – o infante D. Henrique, Administrador da Ordem deCristo, tio do rei, 5 – o senhor D. Afonso, duque de Bragança, tiodo rei, 6 – o marquês de Vila Viçosa, D. Fernando, filho do duquede Bragança, 7 – o conde de Odemira, D. Sancho de Noronha,governador de Ceuta, 8 – o conde de Vila Real e de Viana, D.Pedro de Meneses, 9 – o conde de Monsanto e camareiro mor, D.Álvaro de Castro, 10 – o conde de Marialva, D. João Coutinho, 11– o conde de Atouguia, D. Martinho de Ataíde, 12 – o alferes mor,D. Duarte de Meneses, governador de Alcácer Seguer, 13 – ogrão-prior do Crato, D. Fr. Vasco de Ataíde, 14 – o duque deGuimarães, D. Fernando, neto do duque de Bragança, 15 – omarquês de Montemor-o-novo, D. João, neto do duque deBragança, 16 – o conde de Faro, D. Afonso, neto do duque deBragança, 17 – o conde de Penela, D. Afonso Vasconcelos eMeneses, 18 – o conde de Cantanhede, D. Pedro de Meneses, 19– o alcaide mor de Moura e almirante do reino, D. Nuno Vaz deCastelo Branco, 20 – o marechal do reino, D. Fernando Coutinho,21 – o conde de Olivença, guarda mor do rei, Rodrigo Afonso de

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fora eleito em seu lugar. Determinou-se, que houvessehum Secretario (que na verdade era hum Chronista)o qual Chronologicamente escrevesse os sucessosmemoraveis dos Cavalleiros; admiravel advertencia,para que naõ esquecessem com o tempo as gloriozasempresas daquella Cavallaria, costume, que devia deser em todas praticado, porque naõ se sentiria taõrepetida falta de acçoens gloriosas; porém semembargo desta prevençaõ, o tempo até desta Ordemnaõ deixou memoria nas Chronicas do Reyno. (...).Era o dia mais solemne o do Patraõ de Hespanha oApostolo Santiago, agora especial Protector da novaOrdem de Cavallaria, que festejavaõ com solemnesvesperas, a que ElRey havia de assistir com todos osCavalleiros, que se achavaõ na Corte, revestidos comos seus mantos, sobre que acentavaõ os Collares(…). O Cavalleiro, que falecia, era obrigado a deixarà Ordem o seu Collar, para a Capella da Igreja deSantiago, o qual se convertia em prata, ouornamentos do culto Divino. [...] Se estes grandesSenhores, que deraõ principio a esta Ordem, areceberaõ, e continuaraõ depois mais alguns, naõ osabemos, nem menos se esta idéa delRey D. Afonsopassou à execuçaõ, porque nenhum vestigio achamosdo seu principio, nem do seu estabelicimento; porqueos apontamentos que o Padre Roman allega, podiaõmuito bem ser huma premeditaçaõ da idéa delRey, edos que destinava honrar com ella, a que nospersuade o silencio dos Chronistas, e dosmonumentos daquelle tempo, que em nenhum se achanomeado algum daquelles Senhores por Cavalleiroda Espada”. (livro IV, p. 5-7)

Uma vez mais não podemos todavia deixar de estranhar atotal ausência de referências coevas à dita Ordem5 ; e se osdocumentos em que ela vinha nomeada constavam do arquivo daSereníssima Casa de Bragança, porque os não os viu e consultouD. António Caetano de Sousa, competente investigador queefectivamente trabalhou nesse arquivo?

Retomando a letra da Historia das Ordens Militares, DomAntónio Caetano de Sousa esclarece em seguida a composiçãoda Ordem, a característica de esforçados e insignes fidalgos queacompanharam D. Afonso V a África, e revela-nos os usos queacompanharam esta Ordem nos seus primeiros tempos deexistência, acrescentando alguns aspectos novos pelo que sesolicita a indulgência dos leitores para a extensão do transcrito:

“Destes Principes, e Grandes Senhores, se formouesta Ordem, e entendemos, que elles foraõ os quesómente a receberaõ: ElRey lhe ordenou os Estatutos,e obrigaçoens, que nella se haviaõ de guardar.Primeiramente lhe assinou para dias de funçaõ, eCapella, huns mantos de damasco branco, com certasmurças de veludo negro, com barretes encarnados.Promettiaõ os desta Ordem de Cavallaria, sobre humainviolavel fidelidade a ElRey de seguir a guerra,principalmente contra os Mouros, em que seriaõantepostos huns aos outros, sómente pellas acçoens,e feitos sinalados que se encaminhassem ao augmentoda Religiaõ, e da Fé Catholica. Nella naõ podiaõ entrarpessoas, se naõ de grande cathegoria, e estados :porém se algum se assinalasse muito na guerra contraos Infieis, se poderia igualar para ser admittido àhonra da Ordem. Naõ excedia o numero de vinte esete, e quando se provesse algum lugar havia de serpor authoridade delRey, como Graõ Mestre, e deconsentimento de doze Cavalleiros ao menos, queeraõ como do Conselho; porém se na Corte seachassem mais Cavalleiros, todos seriaõ chamadospara o provimento, e para todas as mais cousas, quepertencessem a esta Ordem de Cavallaria. TomouElRey por Protector desta Ordem ao ApostoloSantiago, e para que nella fosse o Santo venerado,fez fundar em Lisboa huma Igreja, que dedicou aeste Apostolo, em a qual se lavrou um Coro muyrico, com vinte e sete cadeiras, em cada huma dasquaes se via o Escudo das armas do Cavalleiro, quea occupava, e por sua morte se ajuntava às do que

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dessa Ordem. Causas próprias de uma complexa conjuntura emque o príncipe-regente sentiu a necessidade de instituir esta novacondecoração “puramente civil” para a qual, seguramente, nãopoderia prever tão significativa quanto rápida ascensão. Osobjectivos da sua criação encontram-se no texto do próprio Decretoe resumem-se aos seguintes:

- para “remunerar os mais relevantes serviços, assim comodos seus Vassalos, como de ilustres Estrangeiros, que não tiveremoutro prémio, que lhes seja equivalente, senão o da honra”;

- para comemorar épocas assinaladas, “não podendo deixarde se contar entre estas a presente Minha feliz Jornada para estesEstados do Brazil, donde Espero hajão de resultar não só grandesreparos aos danos actualmente experimentados pelos Meus Povosno Reino de Portugal, mas também muitos lucros e successos dehonra, e de gloria, devidos a sua fidelidade, e a abundanciadosMeus Thesouros da América, e liberdade de Commercio, que FuiServido Conceder aos seus Naturaes”;

- para recompensar pessoas “que tão lealmente meacompanharão, e assistirão, sacrificando os seus próprios interessesao maior bem da honra, e da vassalagem, que Me he devida”;

- por “nenhuma das tres Ordens Militares, que actualmentepresistem nestes Meus Reinos, por serem juntamente religiosas, sepode applicar áquellas Pessoas, que não tiverem a felicidade deprofessarem a nossa Santa Religião, aliás merecedoras das maisdintinctas honras por Armas, ou outros quasquer empregos, ou serviços,de cujo merecimento Me seja necessário usar com muita frequência”.

Foram, assim, estres quatro motivos “e outros igualmentedignos” que levaram D. João a “renovar, e augmentar a única Ordemde Cavallaria, que se acha ter sido instituída puramente civil por algumdos Senhores Reis Portuguezes, qual a intitulada Ordem de Espada,que o foi pelo Senhor Rei D. Affonso V, de muito illustre e esclarecidamemoria; para cujo fim Fui já Servido na Cidade da Bahia mandarabrir huma medalha com esta letra – Valor e Lealdade”.

A Carta de Lei de 29 de Novembro do mesmo ano, alteroua designação de Ordem da Espada, para Ordem da Torre e Espada,introduzindo-lhe outras alterações. Repetem-se, quase nos mesmos

Para além dos extensos contributos de setecentistas deAlexandre Ferreira e de D. António Caetano de Sousa outrosnotáveis autores se referiram ainda, com menor extensão, à ordemcriada por D. Afonso V. Encontram-se entre eles Manuel Severimde Faria nas Noticias de Portugal, 1740, o Padre João Baptistade Castro no Mappa de Portugal, 1744 e Damião de LemosFaria e Castro na sua Historia Geral de Portugal, 1787.

De qualquer modo, longe destas preocupações heurísticase de modo relevante para este estudo, a memória, real ou lendária,da Ordem da Espada foi recuperada pelo príncipe-regente D. Joãoem 1808, por ocasião da transferência da corte para o Brasil. Otexto do alvará de (re)criação refere as curiosas componenteshistóricas anteriores, sendo por isso de considerar que se terádirectamente inspirado nas obras de autores anteriores.

A transferência da Corte para o Brasil, como se disse,correspondeu a uma notável opção estratégica portuguesa(monarquia à qual não sucedeu o que então foi comum na Europa,a captura do rei e a sua substituição por um familiar ou apoiantede Napoleão Bonaparte) que veio alterar de modo inequívoco ahistória dos dois países e que entre as profundíssimastransformações operadas teve como inesperada, mas directa,consequência a criação da Ordem da Espada, cujos quatroprimeiros documentos que a regulam são promulgadas no Paçona cidade do Rio de Janeiro, o Palácio da Boavista: o Decreto de13 de Maio de 1808, a Carta de Lei de 29 de Novembro de 1808,o Alvará de 5 de Julho de 1809 e o Alvará de 23 de Abril de 1810.

O Decreto de 13 de Maio esclarece que a ideia da novaOrdem é contemporânea da chegada da frota à Baía de Todos-os-Santos6 , em 21 de Janeiro de 1808, ou eventualmente dohistórico momento ocorrido no dia seguinte em que, pela primeiravez na história, um príncipe soberano europeu pisava o continenteamericano, uma vez que o próprio documento refere que o príncipe-regente com ela já havia “gratificado dois beneméritos Vassalosdo Meu fiel, e antigo alliado El-Rei da Gran-Bretanha” (um delesprovavelmente lorde Strangford). O carácter extraordinário da“restauração” da Ordem, e das suas razões, encontra-se noDecreto instituidor, que aponta as causas para a “restauração”

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Alferes, o infante D. Pedro Carlos (sobrinho de D. João),determinando-se que para futuro “serão sempre Grans Mestresos Senhores Reis desta Monarchia e Grans Cruzes os Príncipes, eInfantes, sendo Commendador mor o Sucessor Presumptivo daCoroa, e Claveiro o mais velho dos Infantes, e Alferes o que selhe seguir”. Além destes a Ordem compreenderia doze grã-cruzes,dos quais seis efectivos e seis honorários, oito comendadoresefectivos, e um número ilimitado de comendadores honorários ecavaleiros, em número ilimitado. No caso dos grã-cruzes ecomendadores os honorários só ascenderiam a efectivos,respeitando-se a sua antiguidade, por morte de algum deles. Paraos cavaleiros, cujo número não era definido, aplicava-se outradisposição: como aos primeiros nomeados nesta categoria caberiauma tença de cem mil reis, aos que posteriormente fossemnomeados se aplicaria idêntico procedimento, aguardariam a mortede algum deles para por antiguidade lhe suceder na referida tença.

A insígnia da Ordem consistia numa “chapa de Ouro redonda,que terá de hum lado a Minha Real Effigie, e no reverso humaEspada com a Letra – Valor, e Lealdade – para os simplesCavalleiros: e para os Commendadores, e Grans Cruzes, terá maishuma Torre no cimo della; e poderão na Casaca usar de Chapa,em que tenhão a Espada, e Torre, e a Legenda acima referida”.As medalhas eram pendentes de uma fita azul; aos grã-cruzescompetia o uso de banda, também azul. Para os dias de Corte egrande gala, estava previsto o uso do colar formado por torres eespadas alternadas. Dispunha-se, ainda que em caso defalecimento dos grã-cruzes as mesmas deveriam ser entreguesao Ministro de Estado dos Negócios do Brasil para que este asdesse ao regente para de novo serem conferidas.

Estando o regente no Brasil, onde a Ordem foi instituída, esendo necessário encontrar as comendas para a mesma foi, pois,no continente americano que D. João as teve que encontrar o que,ainda mais liga o Brasil à instituição desta Ordem, “Sendo o fimprincipal da renovação desta Ordem o premiar as grandes acções,e Serviços, que se Me fizerem, Hei por bel Estabelecer seisCommendas para os seis Grans Cruzes Effectivos, que hão deconsistir em huma doação de duas léguas7 de raiz, ou quatro

moldes os motivos de instituição especificando-se, que a Ordemserve “para premiar distictos Serviços Militares, Políticos, e Civis,sendo esta moeda da honra a mais inexhaurivel, e a de mais subidopreço para estimulo de acções honradas”, o relevante facto queconstituiu a chegada da corte ao Brasil é de novo igualmentereferenciada, “assignallar nas Eras vindouras esta memoravelEpoca, em que Aportei felizmente a esta parte importantissimados Meus Estados, os quaes por meio deste grande, e extraordinarioacontecimento, e pela immensa riqueza dos Thesouros, que lhesprodigalizou a natureza, e pela liberdade, e franqueza doCommercio, que Fui Servido conceder aos seus Naturaes, hão deelevar-se a hum gráo de consideração mui vantajoso”, outrossima dedicação dos que acompanharam a família real é de novorelembrada, “premiar também aquelles Meus Vassallos, queproferirão a honra de acompanhar-Me a todos os seus interesses,abandonando-os para terem a feliz dita de me seguirem” efinalmente a necessidade de condecorar estrangeiros não católicos,impossibilitados, assim, de ser condecorados com as antigas OrdensMilitares em uso devido à sua carga religiosa, “premiar os distinctosServiços de alguns illustres Estrangeiros, Vassallos do Meu antigo,e fiel Alliado ElRei da Grã-Bretanha, que Me accompanhárão commuito zelo nesta Viagem (…) porque tendo-se-lhes unidoinstituições, e cerimonias religiosas, não quadrão aos estrangeirosde diversa crença, e communhão merecedores de premios destanatureza”. É, pois, para fazer face a tais necessidades que D.João recriou esta Ordem por ser a “única Ordem puramentePolitica, e de instituição Portuguesa (…) que foi creada na Era demil quatrocentos cincoenta e nove pelo Senhor Rei D. Affonso V(…) com o Titulo de Ordem da Espada, para celebrar o ditosoacontecimento da Conquista (…) Fui Servido Instaurar, e Renovara sobredita Ordem da Espada (…) e para Dar-lhe mais estabilidadee explendor (…), Hei por bem Determinar (…) [que] A mencionadaOrdem ficará designada com o nome da Torre e Espada”.

A Ordem da Torre e Espada restaurada por D. João passariaa ter a seguinte composição: por Grão-Mestre, o rei; o Grão-CruzComendador Mor o príncipe da Beira (D. Pedro); o Grão-CruzClaveiro, o mais velho dos infantes (D. Miguel); o Grão-Cruz

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Finalmente o Alvará de 23 de Abril de 1810, vem definiralterações nos modelos e utilização das insígnias da Ordem:“havendo estabelecido pela Carta de Lei de vinte e nove deNovembro de mil oitocentos e oito, que os Grans-Cruzes, eCommendadores da nova Ordem da Torre e Espada usasem nacasaca de huma Chapa na forma do Modelo, que com a mesmaCarta de Lei se imprime: Sou Servido, que da mesma continuam ausar, com a differença somente, que a Legenda Valor e Lealdadeseja inscrita com Letras de Ouro em campo azul ferrete: EDetermino outrosim, que os Cavalleiros da dita Ordem usemtambém da Torre sobre a Medalha, á maneira dosCommendadores”.

Não obstante os cuidados postos na criação desta Ordem,como a própria natureza desta recriação indicava, a Ordem daTorre e Espada teve de início uma suposta diminuta influência,aparentemente destinando-se mais aos círculos estrangeiros doque aos portugueses. Cedo, porém, estas supostas premissas sealterariam, tornando-a cobiçada entre as suas congéneres, tantomais que, de modo evidente, rompia com o passado (numaperspectiva simbológica) e se constituía como Ordem de uma novarealidade emergente. Estava porém destinada a sofrer ainda maisum restabelecimento, ligado também ele à evolução política dopaís o que ainda mais a consolidou.

Seria uma sangrenta guerra civil em que se opuseramlegitimistas, partidários do Rei D. Miguel I, e liberais, defensoresda realeza de D. Maria II (cujos direitos lhe advinham de seu pai,D. Pedro I, Imperador do Brasil). Não dispunha D. Pedro comopremiar os actos de valentia às forças liberais, às quais se chamava“Exército Libertador”8 , já que todas as ordens militares seencontravam sob alçada do legítimo governo de D. Miguel. Dataassim de 28 de Julho de 1832 (no decurso do cerco do Porto) oAlvará que cria novamente a Ordem da Torre e Espada,coexistindo duas neste conturbado período da história de Portugalaté ao final da guerra civil em 26 de Maio de 1834.

quadradas de terra cada huma, e oito Commendas de legoa emeia de raiz, ou duas e hum quarto de quadradas para osCommendadores”. Tais comendas seriam instituídas, na dimensãodefinida, em terrenos incultos e desaproveitados que não seencontrassem na posse de nenhuma outra pessoa, sendo lícito aoscomendadores aforarem o terreno a colonos para aumento dacultura e povoação. A totalidade destas comendas constituiria opatrimónio da Ordem, e para tal tornava-se necessário oenvolvimento das capitanias do Brasil “para se conhecer onde háterrenos incultos, e desaproveitados, que convenhão para estaInstituição, cujo regímen se estabelecerá melhor nos Estatutos,que Mando formar para esta Ordem”. O papel do Brasil revela-se fundamental ao ser estabelecido que: “Devendo ter esta OrdemEstatutos apropriados para o seu regímen, e não convindo, que sefação senão depois de creada, e estabelecidas as Commendas;Ordeno que pelo Meu Ministro, e Secretario de Estado dosNegócios do Brazil, se expeção ordens para os Governadores dasdiversas Capitanias deste Estado, a fim de que informem os terrenosque há nas suas Capitanias baldios, e que nunca fossem possuídos,e com as circunstancias necessárias para o estabelecimento destasCommendas”, medida que foi implementada com zelo, face àdeterminação de D. João nesta instituição.

Definia-se, também o dia da Ordem como sendo vinte edois de Janeiro “em memoria daquelle em que Aportei a estesEstados”, o juramento e modo de investidura perante a Mesa daConsciência e Ordens, em que o juramento seria de “Valor, eLealdade” após o que um cavaleiro ou comendador, com aassistência de outros dois, lhe imporiam a venera, lavrando-setermo no livro respectivo.

Devido à ausência de definição de alguns aspectos o Alvaráde 5 de Julho de 1809 tenta contrariar uma eventual vulgarizaçãoda Ordem que assim perderia o seu “preço, e valor”, pelo quedetermina em complemento à legislação do ano anterior, que onúmero de comendadores honorários não exceda os vinte e quatroe que o de cavaleiros se confine a cem “não podendo pessoaalguma requerer, nem devendo conferir-se qualquer destas Mercês,em quanto estiver cheio o numero acima referido”.

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1833 - António Teles da Silva Caminha e Menezes, marquês deResende, Gentil-homem da Câmara e Embaixador do Império doBrasil1841 - D. Pedro II1888 - D. Pedro, Príncipe do Brasil1919 - Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos deGuerra1933 - General Getúlio Vargas1956 - Juscelino Kubitschek de Oliveira1967 – Marechal Arthur Costa e Silva1972 – Almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald1973 - Emílio Garrastazu Medici1985 - Tancredo de Almeida Neves1992 - Fernando Collor de Mello2002 - Fernando Henrique Cardoso2008 - Luís Inácio Lula da Silva

São ainda condecoradas com a Ordem da Torre e Espada, Valor,Lealdade e Mérito (grau de Oficial) as seguintes entidades militaresdas Forças Armadas Brasileiras:Corpo de Alunos da Escola Naval do Brasil (1923);Corpo de Cadetes do Brasil (1941);Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha Brasileira (1958).

Em 1945, a título de curiosidade, foi ainda condecorado o herói daForça Expedicionária Brasileira o então Coronel Mário Travassos,Comandante do 4º Escalão da 1ª. Divisão de InfantariaExpedicionária (contrariamente aos planos originais foi apenasmobilizada esta Divisão) com o grau de Comendador da Ordemda Torre e Espada.

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OS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVATURA NO BRASIL:uma Análise da contribuição historiográfica de Robert Conrad

Valéria Zanetti*Maria Aparecida Papali**

Maria José Acedo del Olmo***

* Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São José dosCampos), doutoranda em História da PUCSP. Autora de Calabouço urbano:escravos e libertos em Porto Alegre (1940-60). Passo Fundo: UPF, 2002.

** Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São Josédos Campos), doutora em História da PUCSP. Autora de Escravos,libertos e Órfãos. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2003.

*** Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São Josédos Campos), Mestre em História Social pela PUCSP.

ResumoO objetivo deste artigo é apresentar e ressaltar a importânciade um dos trabalhos do brasilianista Robert Conrad, “Osúltimos anos da escravatura no Brasil”. O livro, uma das maisimportantes obras acerca do processo de transição do trabalhoescravo para o trabalho livre no Brasil, infelizmente ainda é poucoconhecido e utilizado no mundo acadêmico. Lamentavelmente,o livro de Robert Conrad está esgotado e sem previsão de novatiragem. Quem conhece seu teor espera ansiosamente poruma reedição à altura do seu significado histórico.

Palavras-Chave: escravidão, abolição, 13 de Maio. Trabalho escravo,trabalho livre no Brasil.

Abstract The objective of this paper is to present and emphasize theimportance of one of the works of Robert Conrad, a scholaron Brazil’s history. It is one of the most important works on theprocess of transition from slave labour to free labour in Brazil aswell as on the meaning of May 13 and the implementation ofour Republic. Unfortunately, such production is not wellknown in the academic world due to the lack of a newrepublishing that came close to its historical meaning.

Key words: slavery, abolition, May 13, slave labour, free labour in Brazil.

NOTAS

1 Tirando o interessantíssimo e já distante artigo de Orlando Guerreirode Castro (1937), não temos conhecimento de outros cultores destatemática na Nação irmã.2 Importa definir o âmbito da temática, pouco divulgada, ou mesmodesconhecida, da maioria dos leitores. A Falerística – termo que advémda expressão latina phaleræ – outrora um sub-domínio danumismática que se ocupava das ordens, condecorações e medalhas,reclamou já o seu espaço próprio como disciplina autónoma que sededica ao estudo das insígnias e distinções atribuídas. Estuda, pois,os sinais de distinção portáveis, visíveis e de reconhecimento. Assim,por insígnia, poderemos entender o conjunto dos sinais de distinçãodestinados a serem utilizados no vestuário e as distinções comoenglobando as ordens, condecorações e medalhas. Fora da Falerística,ficam então as insígnias e distinções não portáveis e todas aquelasque, ainda que portáveis (como por exemplo armas de honra) sesituam para lá do seu âmbito3 Prevista a publicação, no âmbito do duplo centenário, no decursodo presente ano, do livro Valor, Lealdade e Mérito. Duzentos anosda Ordem da Torre e Espada, do autor e do colega e amigo PauloJorge Estrela a quem publicamente agradeço o permanente apoio eincentivo nestas questões falerísticas.4 Embora, posteriormente, sejam brasileiros, cidadãos ou instituições,dos mais condecorados com esta elevadíssima distinção (cfr. Anexo).5 O que aliás nem sequer é totalmente estranho a este soberano,lembremos, a título de exemplo, o mistério que envolve a sua divisae empresa – o famoso “JAMAIS” e o rodízio – tão impenetrávelquanto falha em informação coeva (Oliveira 1998).6 Cidade onde permaneceram por mais de um mês só vindo adesembarcar no Rio de Janeiro em 8 de Março.7 Cada légua correspondia a 5 555,55 metros.8 Embora, na realidade, fosse composto na grande maioria pormercenários britânicos comandados, até à captura da cidade do Porto,por D. Pedro a partir dos Açores..

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braço intelectual do imperialismo e colecionadores de dados úteisaos interesses dos Estados Unidos.2

Especulações a parte, não podemos negar a importânciados trabalhos dos estrangeiros para a nossa historiografia ao proporquestões, ampliar debates e estimular a criação de centros dedocumentação voltados para a pesquisa histórica. Nomes comoos de Thomas Skidmore, Frank Tannenbaum, Mary Karasch,Robert Slenes, Leslie Bethell, Russel Wood, Richard Graham,Richard Morse, Fredéric Mauro, Charles Boxer, Warren Dean,Stuart Schwartz, Robert Levine, Kenneth Maxwell, Joseph Love,Robert Conrad entre outros, enriqueceram sobremaneira aprodução historiográfica brasileira.

Debruçando sobre a nossa história do século XIX, osbrasilianistas se interessavam por questões como a estrutura declasse dentro da economia escravista; as transformações queacabaram com a escravidão e a dependência do Brasil dentro darealidade econômica internacional (Graham: 1979).

Suas teses propiciaram momentos de reflexão sobre aspeculiaridades do processo de formação histórica, social, política,econômica e cultural do Brasil. Com relação aos estudos sobre aescravidão, além da importância dos demais estudiosos citadosacima, Robert Conrad se destaca com dois grandes clássicos: Osúltimos anos da escravatura no Brasil,3 publicado em 1972 eTumbeiros,4 de 1979; magníficas referências a respeito do processode abolição e tráfico negreiro para o Brasil, respectivamente.

O interesse de Conrad pelos estudos latinos, especialmenteBrasil, México e Colômbia, remonta à segunda metade do séculoXX, quando nestes países residiu.5 Preocupado “com as iniqüidadesimpostas tanto aos negros norte-americanos quanto às populações‘não-brancas’ da América Latina” (Conrad, 1975: XIX), Conradiniciou seus estudos sobre o assunto na Universidade de Colúmbia,em 1962.6 Momento em que as tensões sociais passavam a semanifestar com maior desenvoltura através das primeira Ligascamponesas em Pernambuco.7

Assim como os demais brasilianistas da época, Conradrecebeu auxílio financeiro da NDFL-Fulbright-Hays, assim comosubvenções da Sociedade Filosófica Americana e da Universidade

Boa e representativa parte da historiografia brasileira é deautoria dos chamados brasilianistas, ou seja, de estrangeiros quese dedicaram à história do Brasil.1 Foi particularmente na décadade 60 que se evidenciou o interesse de estrangeiros, principalmentede norte-americanos, pela nossa história. Subsidiados pelo estado,esses estudiosos recebiam numerosos financiamentos para arealização de suas pesquisas. Grandes levas de sociólogos,antropólogos, cientistas políticos e, principalmente, historiadores,passaram a voltar a atenção para os estudos brasileiros motivados,inicialmente, pela surpresa da revolução cubana de 1959.

Os EUA preocupavam-se com a formulação de uma políticaexterna independente aliada a um movimento nacionalista de forteoposição ao investimento de capitais norte-americanos na AméricaLatina. Temia-se que mais regiões americanas surpreendessem comuma ruptura do tipo cubano. A fim de acompanhar o desenvolvimentoe movimentação desses países, foram criados nos EUA centrosde estudos com financiamentos generosos do Estado e das fundaçõesde pesquisa, como a organização Ford e a Fulbright.

As universidades norte-americanas passaram a oferecer ótimascolocações para economistas, cientistas políticos, críticos literários,antropólogos e historiadores interessados na América Latina.Organizaram-se cursos de pós-graduação em história do Brasil, daArgentina, do México, enfocando temas sobre desenvolvimentoeconômico, revolução, política externa, problemas agrários, etc.

Com condições privilegiadas na medida em que possuíamgenerosas verbas para a pesquisa e acesso a arquivostradicionalmente fechados aos pesquisadores brasileiros, a produçãodos brasilianistas se destacou na vida acadêmica nacional. Certostrabalhos primaram pelo ineditismo, pela reunião considerável defontes elucidativas sobre a nossa realidade e por abrirem novasfrentes de pesquisas a serem exploradas.

Embora bem recebidos pessoalmente pela decantadahospitalidade brasileira, os brasilianistas foram duramente criticadospela inteligentsia local. Dizia-se que gozavam de privilégios nosdifíceis caminhos para as fontes e arquivos, normalmente fechadosaos pesquisadores nacionais. Por vezes, eram acusados decolaborar com “forças ocultas”. Eram vistos, em suma, como o

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o governo devia procurar atender o sentimento público procurou,àquela hora, condenar a escravidão.8

Por um longo tempo, o ato de libertação de 1888 relacionadoà figura da Regente, a Redentora, ficou gravado no imagináriocoletivo dos afro-descendentes. Comemorar o 13 de maio implicavareverenciar a representante da Casa de Bragança que,paradoxalmente também fora a grande responsável pelamanutenção do cativeiro quase até o século 20. Essa harmoniosae pueril visão do 13 de maio, reforçada pela ideologia dominante,retirou da memória popular a ativa participação da grande massaescravizada. A transição, sem violências e convulsões sociais, seriaobra de líderes esclarecidos e humanitários.9 Isso nos lembra a célebrefrase de Marx “toda sociedade tem necessidade de seus grandeshomens´ e, quando não os encontra, cria-os” (Konder, op.cit: 373)

Na década de 50 também existiam as explicações queaboliam a perspectiva da ruptura, num estrito compromisso com aOrdem. Argumentava-se a favor do amor à Pátria na Verdade ena justiça, semeando o interesse cívico. 10 (Menezes, 1956) Outros,indo mais longe, atribuíam as vicissitudes da nossa história ao poderda Providência divina. (Gouveia,1955)

O fim da instituição escravista também foi atribuído àscausas externas, mais precisamente aos esforços britânicos que,a partir de sucessivas leis proibitivas, impediam a entrada deafricanos no Brasil.11 A alegação da influência da Inglaterra noprocesso de abolição é desbancada por Conrad. Segundo o autor,depois de 1850, quando o império assinou o tratado de proibiçãoda importação de cativos africanos, os senhores continuaramabastecendo seus plantéis através do contrabando financiado,inclusive, por empresários ingleses e norte-americanos.

O fato é que a lei de 1850 não registrou avanços políticosno movimento abolicionista. Conrad mostra a euforia dosescravistas depois da proibição do tráfico. A diminuição da ofertade mão-de-obra escrava e a demanda crescente de trabalhadorespara as zonas cafeeiras elevou o preço do escravo, possibilitandoaos senhores vantajosas operações creditícias. Lembrando quetrezentos dos quinhentos anos do Brasil foram marcados pelaescravidão, não é de estranhar que as imposições contra o tráfico

de Illinois, em Chicago. Tornou-se membro da Associaçãoamericana de história e da Associação de estudos latino-americanos. Em 1972, nos presenteia com o livro Os últimos anosda escravatura no Brasil ao propor uma história dos momentosque antecederam o 13 de maio, tornando referência obrigatóriapara as pesquisas escravistas. Por ora, vamos nos deter nacompreensão de Os últimos anos....

Sobre as notas de cada capítulo desse livro vê-se um textoà parte, fundamental para uma melhor compreensão da obra. Sualeitura deixa entrever o eficaz pesquisador que, ao esbarrar comfragmentos sobre a problemática da escravidão, transforma-os emsustentáculos da história global, denunciando valores e evidenciandoações para sustentar as permanências, características de umasociedade extremamente conservadora e dada ao tradicionalismo.

A tese de Conrad complementou a historiografia acercadas explicações para a aprovação da lei de 1888 que libertava oscativos. Alguns estudiosos reforçaram a ação humanitária daregente, consagrada no imaginário popular como a redentora. Paraessa tendência historiográfica, a princesa Isabel, convicta de que

Figura 1. Capa do livro Os Últimos Anos da Escravaturano Brasil, de Robert Conrad

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Conrad segue a mesma linha metodológica de Clóvis Moura,Stanley Stein, Emília Viotti da Costa, Florestan Fernandes, NélsonWerneck Sodré, Caio Prado Jr, Antônio Cândido, Octávio Ianni,etc. Os pressupostos teóricos no trabalho dos intelectuais da décadade 50 “nem sempre são assumidos francamente por eles, sejaporque nem sempre são perceptíveis aos olhos daqueles que osencampam, seja porque não convém serem abertamentepublicados” (Konder, 1998: 359). Todos esses autoresdesenvolveram suas análises da escravidão e do passado escravistaa partir do agir econômico e social dos trabalhadores escravizados.A estes estudiosos interessava as duras condições de existência eas contradições sociais da ordem escravista.

O livro Tumbeiros de Conrad ajudou na formalização daidéia iniciada em Os últimos anos... Dedicando-se ao estudo dotráfico negreiro para o Brasil, o autor procurava esclarecer umagrande questão: se as condições de vida dos trabalhadoresescravizados eram tão excelentes como propagadas pelas idéiasde Gilberto Freyre, como entender a incessante reposição deescravos, através do tráfico negreiro?

Com relação à abolição, Conrad valoriza o abolicionismourbano-popular, evidenciado nas vozes de antiescravistas comoLuiz do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Luiz Gamae outros, unidas à ação dos próprios escravos no processo deextinção da escravatura. Examinando criticamente a tradiçãoherdada de Freyre e de outros historiadores oficiais no sentido deminimizar a barbárie da escravidão no Brasil, as duas obras deConrad constatam, apesar dos diferentes enfoques, o quão difícilfoi romper com a nefanda instituição e como a classe dominantese aferrou ao princípio escravista até o final.

Ao iniciarmos a leitura de Os últimos anos da escravaturano Brasil deparamo-nos com uma ilustração de autoria de RichardBurton, intitulada Explorations of the highlands of the Brazil.Trata-se do registro de uma reunião quinzenal dos escravos numafazenda, em Morro Velho, região cafeeira do Vale do Paraíbafluminense. Aos menos desavisados, a obra de Burton é percebidaapenas como uma simples ilustração. Novos ângulos de visãosobrevoavam a imagem a partir do entendimento da obra de

de escravos e contra a própria escravidão tivessem demoradotanto. As pendengas judiciais, atreladas às discussões partidáriasentre os ditos liberais e persuasivos conservadores faziam prolongaras relações escravistas. Quando finalmente alguma lei eraaprovada, na prática, tornava-se letra morta.

Parte da historiografia atribui aos fazendeiros do OestePaulista o privilégio de desbancar o cativeiro, ao adotar o trabalholivre em suas propriedades.12 No intuito de facilitar a introduçãode imigrantes europeus, esses latifundiários, amparados por umprojeto de atração de mão-de-obra assalariada, argumentavamque o trabalho escravo retardava o crescimento da população e odesenvolvimento cultural, provocando a desigualdade moral e legal.Acima de tudo, a permanência do cativeiro envergonhava o Brasilante o estrangeiro (Conrad, 1975:126).

Para Conrad, “os paulistas não foram tão liberais assim.Enquanto havia o recurso dos escravos, os plantadores de café deSão Paulo mostraram pouco interesse em usar trabalhadoresnacionais livres.” (Idem:162) Na opinião do autor, o que transformouos paulistas em emancipacionistas foi a falta de cooperação ehostilidade dos escravos (Idem: 163). Amparados pelosabolicionistas que, desiludidos com a resistência dos teimososcafeicultores em manter a agonizante mão-de-obra escrava, nadécada de 1885, partem para métodos ilegais.

A teoria de Conrad permitiu ampliar as discussõeshistoriográficas. Maria Helena Machado, nos rastros do autor,reforçou a atuação da população pobre livre urbana. De acordocom a autora, o abolicionismo não foi um projeto das elites, masresultado da primeira união dos excluídos brasileiros em torno deum ideal. O movimento abolicionista foi o primeiro movimentopolítico de massas na história do Brasil que congregou milhares dedespossuídos. A arraia-miúda, composta pelos deserdados da sorte,negros, pardos, mulatos e brancos, fizeram bastante barulho ecausaram fortes distúrbios, nas vias públicas de cidades como doRio de Janeiro e São Paulo. A abolição para essa autora aparececomo uma frente ampla de idéias e tendências muito variadas,mais do que um movimento monolítico, monopolizado por um setorbem determinado das elites políticas cafeeiras (Machado, 1994).

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As quase quatrocentas páginas que compõem o livro vãono sentido de reforçar a idéia embutida na ilustração que inaugurao texto. A obra foi subdividida em duas partes; uma dedicada aoperíodo de 1850 a 1879 e a segunda, de 1879 a 1888. O livro éconsiderado o melhor painel sobre o abolicionismo e sobre adestruição do escravismo em diferentes regiões do país. O autor,aliando a sistematicidade anglo-saxã a uma extraordinária coleção defontes, descortina, por meio da análise dos discursos e açõesabolicionistas, as estratégias para a manutenção do sistema escravista,num contexto em que a instituição, em estado terminal, agonizava.

Sem grandes mudanças, a segunda edição de Os últimosanos... de 1978, tanto em língua portuguesa quanto inglesa apenasincorporou, no capítulo I, uma resposta à crítica de José HonórioRodrigues sobre a “resistência dos escravos”. Em artigo publicadono Jornal do Brasil, em 1º de dezembro de 1973, José HonórioRodrigues alfinetava a historiografia da década de 60, a partir deuma crítica à análise de Conrad. O brasilianista era acusado porHonório Rodrigues de negar o significado histórico do 13 de maio,ao definir a superação do escravismo como um “negócio debrancos”, onde os cativos, principais interessados, não teriam papelsignificativo ou ganhos substanciais. (Conrad, 1975: XIX)

Em situação de réplica, Conrad esclarece que o sucesso daliquidação do regime de trabalho escravista resultou do esforçodas massas escravizadas aliado à ação dos setores abolicionistasradicais, com grande pressão do liberalismo internacional. Resultadode uma comunhão de forças, a emancipação dos escravos, paraConrad, só foi pensada como questão nacional a partir de 1880.Isso quando o papel dos abolicionistas como André Rebouças,José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luís Gama e outros, sejuntaram com a sempre presente vontade de resistir dos escravos.

A periodização definida por Conrad determina duas fasesda jornada abolicionista. A primeira (1850-79) é definida pelo autorcomo emancipacionista. Trata-se do momento em que a abolição,defendida pela política internacional, principalmente liberal inglesa,contagia alguns segmentos liberais brasileiros, a partir da proibiçãodo tráfico internacional de cativos, decretado pela Inglaterra em1850. As origens desse movimento datam de 1850, com a lei

Conrad. Essa cena ilustra, por volta de 1869, o pensamento dobrasilianista sobre a história da abolição, denotando a luta de classesimplícita nas relações escravistas brasileiras.

O cenário deixa claro se tratar de uma grande propriedadeque contém um plantel considerável de trabalhadores escravizados.No primeiro plano, fazendeiros, administradores e capatazesconversam, de costas, para a numerosa mão-de-obra escrava. Essegrupo de trabalhadores, compondo o cenário nos espaços devidamenteseparados por gêneros, contemplava seus algozes. Intermediandoa casa-grande e os agrupamentos humanos, avista-se a parca plantaçãode café que, já nos idos da segunda metade do século XIX, mostraevidentes sinais de decadência no Vale do Paraíba fluminense. Nessemomento, o café já tinha tomado rapidamente as férteis terras doVale do Paraíba Paulista (Lorena, Bananal, Areias, Taubaté).

A figura de Burton deixa escapar evidências do momento.Visualizam-se os decadentes escravistas fluminenses, arruinadospor dívidas e esgotamento do solo, discutirem saídas apoiados pelapoderosa tropa de punição. Apoio imprescindível, quando se levaem consideração a força numérica condicionada à escravidão.Que Burton fez questão de enunciar em seus traços. O artista fezquestão de destacar competentemente as distintas posições dasclasses que representavam a sociedade escravista.

A Reunião Quinzenal dos Escravos na Casa-Grande, Morro Velho (RichardBurton, Explorations of the Highlands of the Brazil, Londres: 1869, vol.I)

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claro o autor, esses sintomas foram tolhidos e comprometidos pelasobrevivência de atitudes tradicionalistas. Posição compreensível,quando temos em mente que a elite brasileira prescindia daescravidão; da monocultura; do grande latifúndio agrícola, daeconomia orientada para a exportação, de um mercado internomuito limitado e do preconceito contra o trabalho braçal. Aexistência desse estado de coisas tinha estreita ligação com apermanência e fortalecimento político e econômico da nossasolidificada aristocracia latifundiária. (Idem)

Justamente em função dessa ligação quase visceral dosenhor com seus cativos é que se pensou, num primeiro momento,em convencer os escravistas, sem grandes radicalizações, asubstituírem aos poucos seus cativos. Essa não foi uma tarefamuito fácil para os abolicionistas. Além de persuadir a aristocracialatifundiária, tinham que se esforçar em convencer os capitães domato e categorias afins, ligadas ao cativeiro, que a emancipação dosescravos levaria a substituição de sua atividade por outra, igualmenteassalariada (Idem: 177). Isso nos remete à idéia de como a culturaescravista também era disseminada entre a população pobre.

As novas áreas cafeeiras exigiam uma consideráveldemanda de trabalhadores escravizados (Rio de Janeiro, MinasGerais e São Paulo). A solução encontrada após a proibição dotráfico internacional foi estimular a migração de escravos das regiõesdo norte, do oeste e do extremo sul do país. A seca que assolou aprovíncia do Ceará e regiões vizinhas, a partir de 1847, aumentouconsideravelmente o fluxo dos escravos do norte para o sul.

Com a carestia e valorização da mão-de-obra escrava apartir de 1850, até os cativos com defeitos e vícios, antesindesejáveis, encontravam compradores. Fruto de ambição dossenhores e dos negociantes, a difícil aquisição da força de trabalhocativa, por vias legais, fez aumentar o valor dos cativos e despertaro interesse pelo contrabando, fazendo surgir uma nova categoriaprofissional, a dos compradores de escravos viajantes.

O papel de escoadouro, antes representado pela África emtempos de vigência do tráfico intercontinental transformou, a partirde 1851, as regiões do norte e extremo sul no grande mercadonegreiro. Batendo de sítio em sítio, de porta em porta, os

Euzébio de Queiroz, inaugurando uma tendência irreversível ecumulativa para a abolição.

A lei do Ventre Livre (1871)13 e dos Sexagenários (1885)14

foram resultados representativos dessas pressões internas. Noentanto, de acordo com o autor, o movimento ainda era bastanteinexperiente nesse período. Apoiava-se em estratégias para evitaro abalo significativo das relações de trabalho. A intenção era segurara abolição total dos cativos para que os senhores pudessem ganhartempo para substituírem gradualmente o trabalho escravo pelo livre.

Já o período subsequente, compreendido entre 1879 a 1888marcou, para Conrad, o momento de nossa revoluçãoabolicionista. Para o brasilianista, foi somente na década de 80que forças sócio-políticas e econômicas definiram as novasestratégias e intenções dos agentes com vistas à supressão daescravidão. Sobretudo porque, nesse momento, “a maior parte doBrasil já progredira para um sistema de trabalho livre” (Conrad,1975: XVI). No Nordeste, nas zonas de açúcar e de algodão, eregiões menos prósperas, o interesse da escravatura já tinha sedissipado por volta de 1885. Os mais ávidos defensores daescravidão eram das províncias produtoras de café (RJ, MG eSP), que rejeitavam a todo custo a cruzada anti-escravatura.

Enraizada nos costumes do Brasil, a escravatura era maisdo que uma instituição econômica, fazia parte dos seus sistemasde valores e de seus costumes, ou seja, de sua cultura. Opensamento hegemônico escravista conflituava com um seleto erestrito público brasileiro influenciado por idéias e filosofiasestrangeiras ligadas ao progresso. Atitudes antiescravatura já eramcomuns na Europa e parte da América. O grande problema é queos brasileiros simpatizantes das idéias emancipacionistas eramconstantemente “(...) obrigados, pela estrutura econômica e políticada sociedade e pelas exigências de seus mais importantes cidadãos,a seguirem políticas que assegurassem a continuidade da importaçãode africanos. A validez de alguns conceitos tradicionais passaram aser questionados, mais precisamente, depois de 1850”. (Idem)

Amparados pelo discurso internacional, grupos liberais, àluz dessa nova mentalidade, acabaram adotando medidas paraenfrentar o novo momento de progresso. Todavia, como deixa

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levantou a discussão da passagem, no Brasil, de um sistema de trabalholivre, iniciada nas zonas nordestinas fornecedoras de mão-de-obraescrava. O início do tráfico interprovincial que atendeu, num primeiromomento, às necessidades de mão-de-obra dos cafeicultores,acabou se tornando um pesadelo para esses latifundiários.

As províncias do Norte, que viram sua população escravadiminuir, passaram a adotar, sem alternativa, a mão-de-obra livreassalariada, tornando-se, inclusive, porta-voz das mudanças nomundo do trabalho. Contrariando os desejos das áreas produtorasde café do sudeste, os nortistas desejavam a eliminação gradualdo sistema de escravos e a adoção do regime de trabalho livre.Em 1881, “o abolicionismo transformou o Ceará num movimento demassa, ameaçando a escravatura na totalidade brasileira” (Idem: 218).

Foi o debate nacional em torno da lei do nascimento livre de1871 que evidenciou, a partir daí, a divisão político-espacial. Deum lado, os deputados das províncias produtoras do cafédeclaravam uma guerra organizada contra o governo e contra oimperador manifestando sua rejeição à proposta (Idem: 114). Dooutro, os representantes das províncias do norte mostraram-seacessíveis a uma reforma, naquele momento, ainda moderada.

Apegando-se à idéia que o direito de propriedade da criança“era uma extensão do direito de propriedade da escrava e da mesmanatureza que elle”, os escravistas acreditavam que a reformasignificava “um direito de propriedade ofendido”, uma vez que “oescravo era capital e, também, um instrumento de trabalho” (Idem:120). Para outros, argumentando a favor da medida, a leirepresentaria um assassinato em massa, uma vez que os senhoresnão teriam qualquer interesse em cuidar dos filhos de suas escravas(Idem:121), bem como a emancipação da sua prole poderia suscitarreivindicações dos mesmos direitos à liberdade por parte dos paisdos escravos beneficiados (Idem:122).

Os representantes do Rio Grandes do Sul também votaramcontra a proposta de libertar os filhos das cativas. Essa província“apresentava uma grande e valiosa concentração de escravos,representando mais do que vinte e um por cento da populaçãototal da província” (Idem:116) Mas essa posição não era unânime,pois segundo Conrad, circulava, entre as províncias do Pará ao

comerciantes de escravos não abrandavam a dureza da viagem,fazendo-nos lembrar bastante das péssimas condições de transportenos navios tumbeiros que chegavam da África. Quando não vinhamamontoados nas embarcações, expostos ao sol e à chuva, homens,mulheres e crianças recém nascidas percorriam, por terra, caminhandopelo interior da Bahia e Minas Gerais, até chegar às regiões do café.

Conrad registrou que o amplo tráfico negreiro interno,iniciado em 1850, assim como o internacional, também não poupavaas famílias. Amparado pelas tendências econômicas, o mundo dosnegócios negreiros separava as mães de seus filhos e os maridosde suas mulheres. A quebra da família escrava é evidenciada pelobrasilianista em tempo de crise. A conjuntura favorável gerada apartir do colapso no abastecimento de mão-de-obra, por um ladoe, da necessidade de se livrar dela em áreas economicamentedecadentes, por outro, fez com que a lógica escravista falassemais alto. Essa tese contraria, por certo, algumas análiseshistoriográficas que difundem, parcialmente submersos na suaideologia, a harmonia e estabilidade do tronco escravo.

Com duração entre os anos de 1851 a 1881, o tráfico internodo Norte só diminuiu em 1862, quando a Guerra civil norte-americana ofereceu perspectivas favoráveis para o algodãobrasileiro e reduziu o mercado norte-americano de café. Ossenhores do norte ativaram suas lavouras de algodão e frearam,por pouco tempo, a saída de sua força de trabalho da região. Essepequeno período de euforia da economia nordestina voltou ànormalidade após novas estações de seca que fez, por sua vez,reativar a migração escrava.

O fim do tráfico internacional, decretado pela Lei Euzébiode Queiroz (1850), não significou a adoção imediata do trabalholivre. Os cativos africanos continuaram entrando no Brasil viacontrabando, para atender a demanda das áreas cafeeiras, particu-larmente da Província de São Paulo. Mas a medida, como nosmostrou Conrad, abalou as bases das relações de trabalho escravistas.

A grande proposição do autor foi mostrar as própriascontradições internas do sistema escravista a partir da vigênciado tráfico de escravos interprovincial. Segundo o brasilianista, otráfico interno, ao oposto de resolver o problema dos cafeicultores,

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Lutando contra a força dos resistentes senhores cafeicultores doVale do Paraíba, até d. Pedro via seus poderes limitados. Sabiaque a sua sobrevivência e do regime que representava dependia,em parte, da manutenção dessa elite que ressentia de atitudesmais liberais do imperador que as permitidas pela legislação.15

Cuidadosamente, o monarca se atentava para não promover medidasirreparáveis, ao mesmo tempo preparando para o inevitável,prejudicando o menos possível os interesses estabelecidos. Foipor extrapolar as aspirações de classe que alguns projetos quevisavam reduzir o sistema da escravatura foram arquivados.16

Lançando moda e torcendo para ser seguido pelos obstinadosescravocratas, o chefe da casa Imperial chegou a libertar seus cativose os de sua filha, concedendo-os pagamento diário e educação. Omosteiro de São Bento chegou a reluzir com a caixa de rapé dediamantes dada ao seu prior, por libertar os filhos de escravas de suapropriedade e por servir de exemplo a ser seguido por outras ordensreligiosas e principalmente por particulares (Idem: 94).

D. Pedro, pressionado de um lado pelos senhores cafeeiros,que tentavam manter o cativeiro e, de outro, pelos abolicionistas,descontentes com as falsas promessas de eliminação da escravidão,fazia valer sua autoridade. Entre a cruz e a Espada, o imperadorpropunha a emancipação lenta, gradual e, antes de tudo, prudente(Idem). Quando os ânimos políticos eram exaltados, sua estratégiade controle consistia em mudar o gabinete, ora acabando com asatitudes conservadoras radicais, ora podando as asas dos liberais.

Essa atitude representa mais gás na luta abolicionista, poiso novo gabinete, liderado pelo Visconde do Rio Branco, estavaconvencido que a reforma já não podia ser adiada por mais tempo,em razão das crescentes exigências internas. Longe de ser umliberal convicto, defendia a emancipação lenta e gradual por ser“a mais razoável e moderada solução possível nas difíceiscircunstâncias que a nação enfrentava (Idem:124).

Nabuco de Araújo, senador baiano, acompanhou de perto aextinção gradual da escravidão no norte. Como membro fundadordo Centro Liberal exigiu amplas reformas que ultrapassavam,inclusive, o âmbito das relações de trabalho (Idem:104). Com umimponente discurso convincente, Nabuco argumentava que a

Rio Grande do Sul jornais defensores da Lei Rio Branco (Idem:117)Possivelmente, a força desse grupo talvez fosse a responsávelpela popularização das manumissões sem compensações nessaprovíncia, por volta de 1885. (Idem:140) A rica cidade de Pelotas,região de gado do Rio Grande do Sul, tinha um forte jornalabolicionista, resultado da ação do Clube Abolicionista, fundadoem agosto de 1881(Idem:182)

De acordo com Conrad, a escravidão no Rio Grande do Sulfoi minada por várias características especiais da província. A“proximidade das repúblicas de língua espanhola, onde aescravatura já há muito deixara de existir, e a presença de umagrande população de origem estrangeira, que demonstrava poucoentusiasmo pela escravatura, foram fatos que exerceram efeitosliberalizantes sobre a população nativa” (Idem:247). A aboliçãono RS, seria uma questão de tempo, embora o movimento de 1884,julgado vitorioso pelas libertações de centenas de escravos, aindaos mantinham presos sob condições.

Completamente desacreditada internacionalmente ereconhecida como instituição em vias de extinguir-se por algunssegmentos no Brasil, a escravidão passou a ser rechaçada, commais afinco, a partir de 1860. O resultado da Guerra Civil norte-americana, com a vitória dos estados do Norte, que empregavamo trabalho livre sobre os vencidos estados escravistas do sul,motivou um sentimento da necessidade da abolição da escravatura.Os segmentos auto-intitulados liberais eram convencidos que aescravidão era incompatível com seus princípios políticos.

Nabuco de Araújo, pai do futuro Joaquim Nabuco,representando a ala liberal, tentara aplicar a proibição do tráficode escravos, já em 1837. Suas sugestões foram a base dacomplicada legislações de 1871 que aboliu a escravidão dosingênuos. Em 1868, seu filho, Nabuco de Araújo seguindo ocaminho do pai, colocou-se à cabeça da oposição ao ministérioconservador liderada pelo Visconde de Itaboraí, defendendo acausa do emancipacionismo (Idem:140).

A substituição da Câmara liberal em 20 de julho de 1868por uma unanimidade conservadora fortaleceu o movimentoemancipacionista, despertando os sentimentos reformistas.

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Contribuiu para agravar ainda mais esse quadro aineficiência do Estado em controlar o cumprimento da lei e deseus funcionários que alegavam que nos salários não foramincorporados o ônus da função para percorrer grandesdistâncias para vigiar. A lentidão, inatividade, incompetência edesvios de verba da burocracia imperial impediam os resultadosreais da aplicação das determinações legais de 1871. SegundoConrad, um quinto do dinheiro fora gasto, até 1878, em livros deregistro, gratificações e outras despesas não especificadas (p.138).

Para Conrad, o fracasso da lei de 1871 teve como causaprincipal a ociosidade dos agentes fiscais, portadores de forte dosede “apatia e desdém geral pelos regulamentos (p. 136). Enquantoisso, os ingênuos que sobreviviam ou que não tinham sidoabandonados, eram vendidos aos montes como escravos, até 1884(p.142). O que nos sugere que a ineficiência da nossa burocraciaservia aos interesses da elite agrária ao retardar a execução doprocesso de transformação da mão-de-obra.

Se por um lado, os sintomas da lei Rio Branco (1871) eramquase imperceptíveis; por outro, na década de 1880, esse quadroteve um efeito positivo para o projeto de abolição. Os críticos daescravidão, entendendo que o fracasso da Lei Rio Brancocontrariava as aspirações nacionais, tornavam seus discursos maiscontundentes. Condenavam, entre outras coisas, os proprietáriosde escravos por sua má-fé e falta de patriotismo. De emanci-pacionistas, cuja política visava a defesa da passagem gradual daescravidão para o sistema assalariado, os denunciadores daescravidão tornavam-se, na década de 80, convictos abolicionistas.

Esse período, segundo Conrad, se diferencia do anterior porevidenciar a escassez, o cansaço e, junto com tudo isso, a revoltatutelada da mão-de-obra. A resistência escrava, apoiada pela alaliberal, originada na década de 1860, se acentua na década de 80em virtude da dimensão que o movimento abolicionista toma,principalmente na cidade do Rio de Janeiro.

Depois de um pronunciamento que renovou o debateabolicionista em 1879, proferido por Jeronymo Sodré17, José doPatrocínio18 e André Rebouças,19 se animam para publicar oManifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, liderando

escravatura era “um fato autorizado por lei”, mas “era um fatocondenado pela lei divina... pela civilização... pelo mundo inteiro”(Apud. Conrad:103). Nesse momento valia-se de tudo, ora paraacabar ou para perpetuar a escravidão.

Argumentos morais e religiosos desbancavam os longosperíodos de escravização brasileira. O cativeiro passava a significaruma infração dos direitos humanos. Tentava-se persuadir, pelanova lógica, que havia uma diferença entre o direito do proprietáriode possuir uma coisa e seu direito de possuir uma pessoa (Idem.:127) Em conseqüência das novas necessidades públicas, o direitonatural é revisto. De coisa, os escravos passam a ser aceitos como“entes moraes, que têm direitos e obrigações próprias que lhesforam dadas pelo Creador.” (Idem)

No calor das discussões de aprovação da reforma de 1871,o decoro constantemente era perturbado. Acusações mútuas faziamdas posições políticas uma arena de gladiadores. A despeito da forteatuação dos segmentos liberais, Conrad acredita que, até 1870, elesforam mais emancipacionistas que abolicionistas. Neste período, apesarda luta contra a instituição ser intensa, as armas de defesa dosescravistas ainda dominavam significamente o cenário nacional.

Conrad realça os poucos efeitos da lei de 1871. A lei “nãotrouxe qualquer mudança imediata nas vias da maioria dos escravose nem mesmo as crianças cuja liberdade fora garantida podiamobter qualquer benefício prático de seu status até alcançarem suamaioridade legal”(p.129). O fundo de emancipação, previsto noartigo 3, “criado por meio dos impostos sobre os escravos, loteriasnacionais, multas e contribuições” (p.134), que já era uma verbainsuficiente para a emancipação dos cativos, foi abusado de outrasformas. Elevava-se o preço dos escravos oportunizando aos senhoresde se livrarem dos doentes, cegos, inúteis e perturbadores. (p.139)

Os senhores também se aproveitavam do fundo registrandoseus falecidos cativos. Como não deveria deixar de ser, do fundotambém vinha o capital para bancar campanhas eleitorais. (p.140)Conforme observou o autor, “o fundo de emancipação não tinha aintenção de ser muito mais do que um gesto humanitário (...). Foium meio para os proprietários se desembaraçarem dos seusescravos menos úteis a preços muito satisfatórios” (p.141).

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Os recursos utilizados para convencer a opinião públicaeram variados. Certa vez, usou-se como figurante de uma procissãoreligiosa um escravo que, por ter sido torturado pelos esquemascoercitivos da escravidão, exibia suas mãos perfuradas por umafaca. Exibições emocionais denunciavam os mais implacáveisaspectos do cativeiro identificados, de forma bastante sentimental,aos martírios de Cristo (p. 294).

Conrad admite a dificuldade em determinar até que ponto oespírito rebelde dos escravos contribuiu para a abolição, mas esseespírito, segundo o autor, foi crucial, certamente durante a últimafase do movimento anti-escravatura (p.18). A leitura de Conradnos faz duvidar que a insurreição dos cativos da província paulista,tenha alguma ligação com reivindicações contratuais de trabalho,como querem alguns estudiosos do presente, influenciados pelasatuais relações neo-liberais. Essas teorias reforçam o caráteressencialmente pacífico da civilização brasileira. A essência patriarcalda ordem escravista aparece como o corolário da natureza magnânimado brasileiro, fugindo de qualquer confronto de raça, credo e classe.

No livro de Conrad transparece, ao contrário, uma extrematensão política e social entre as partes envolvidas. Escravos eescravizadores se estranhavam a todo momento. Na fase terminalda instituição, no lugar da transcendental negociação, tão propaladapor uma parte da nova historiografia, a realidade evidenciou adesorganização do sistema pela fuga dos cativos. Na visão deConrad, a abolição não foi uma dádiva dos senhores, mas sim umaconquista dos escravos. De fato, deve-se considerar que, comoobservou Conrad, muitos obedeciam e satisfaziam os desejos deseus senhores. Mas, também é verdade que outros tantosrecusavam a submissão permanente. A existência de inúmerosquilombos que atemorizavam a população é uma evidência dessefato, apontado pelo autor de Os últimos anos.....

A ação estrutural das massas escravizadas arquitetou,durante a permanência dessas relações, as condições para o fimda escravidão. Foi a inviabilidade do sistema mostrado através daindisposição da mão-de-obra escrava em colaborar que possibilitouo fim das relações escravistas. A emancipação social do escravoteve o próprio como protagonista.

o novo movimento renovado (p. 145). A forte oposição escravistavinda da capital imperial justifica-se, em parte, ao declínio daeconomia do café na região. Na década de 1870, a capital doimpério mostrava um cenário desolador. Endividada, ameaçada coma ruína pela nova onda de abolicionismo, e assistindo as agitaçõesescravas, a região acabou por concentrar o núcleo opositor.

Os discursos de Joaquim Nabuco20, eleito para a Câmaraem 1878 por Pernambuco, ganham dimensões populares. Sensibili-zando a massa, argumentava-se que a escravidão já não era maisnecessária. Os jornais abolicionistas denunciavam21 as crueldadesdo sistema, motivando a população. A luta de Nabuco conseguiunovo alento no final da década de 70 com a adesão à causa dosjovens intelectuais da Faculdade de Direito de São Paulo. Entre elesse destacava Castro Alves, Rui Barbosa, e Luiz Gama (p. 105).

A significativa adesão de Luís Gama, influente advogado eex-escravo, enchia de ânimo a defesa pró-abolição. Ganhando asruas, o discurso antiescravista se propagou através dos clubes, dojornalismo e das reuniões emancipacionistas, bastante animadas eeufóricas. Contudo, apesar dos esforços sobrenaturais desse grupo,as eleições de novembro de 1881 revelavam que a ondaabolicionista era barrada pela força dos escravocratas.

Os defensores da abolição se convenceram de que os meioslegais utilizados até o momento não tinham surtido muitos efeitos.Cansados de argumentar, resolveram radicalizar. Na noite de Natalde 1886, apesar das fracassadas rebeliões simultâneas de escravosnas fazendas paulistas, os cativos abandonavam as propriedadesaos montes e “não havia força no Brasil que os pudesse deter”(p.291). Incitando os escravos, agentes do movimento abolicionistachamados caifazes22 percorriam as fazendas encontrando meiosde convencê-los a fugir e escoltando-os até um local de refúgio.

Nessa segunda fase de convencimento, considerada peloautor como fase do “abolicionismo ilegal” (p. 199), os radicais,trabalhando na subvenção, informavam aos cativos a possívelliberdade. Atiçando revoltas, os abolicionistas se aproveitaram dodespreparo da polícia e do exército. Enquanto isso, casasparticulares, armazéns, fazendas e estabelecimentos comerciaisescondiam os fugitivos com freqüência.

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que queriam ver eliminadas as bases escravistas e, junto com elas,o fim do atraso econômico e social brasileiro.

A rejeição à escravidão era algo constante desde as suasorigens no Brasil. No entanto, a resistência escrava durante osmeses finais da escravatura era algo inteiramente sem precedentesna nossa história (p.18). As fugas foram tão generalizadas entre1887-1888 que os relutantes donos de escravos tiveram que serender às exigências abolicionistas (p. 23).

A transição para o trabalho livre denunciou os limitados papéisdestinados à maioria da população recém egressa do cativeiro. Aela, reservava-se o trabalho nas terras de seus antigos senhores,longe dos direitos da educação e da participação política (p.192).A quem podemos atribuir a responsabilidade da falta de êxito daproposta abolicionista? Os abolicionistas radicais tinham consciênciaque a libertação não resolveria o problema do Brasil se não viesseacompanhada de reformas conjunturais. A educação era algoimprescindível para ampliação dos direitos de cidadania.

No projeto dos abolicionistas esperava-se que a educaçãofosse estendida a todas as classes como forma de ampliar aparticipação política e conceder melhores oportunidades paramilhões de negros e mulatos e outros setores menos privilegiadosda sociedade brasileira (Apud Conrad, op. Cit:193). Suas propostasvisavam “emancipar e instruir” através de uma educação popular.Era indispensável para esse grupo “ensinar a ler e escrever e darum ofício a todos os cidadãos brasileiros” (Idem:194). Visavam,entre outras coisas, preparar os antigos escravos para a cidadania.Para Conrad, a questão da educação eficaz teria transformado osistema social e econômico do Brasil ainda mais do que a aboliçãoda escravatura.

Além da educação, a causa mais defendida pelosabolicionistas visava a democratização do solo. Sabiam quedependia dela “a grande barreira à prosperidade, à imigração, àemergência de uma classe média e ao funcionamento de umgoverno constitucional”. Propunham uma reforma agráriaimplicando “o desmantelamento de grandes propriedades agrícolase a criação de pequenas fazendas onde os imigrantes, os brasileirospobres e os escravos libertados pudessem encontrar alguma

Na visão de Conrad, a libertação dos escravos não ocorreupor decisão voluntária dos fazendeiros paulistas. Muito menos foiuma dádiva da família imperial. Divisor de águas, a revoluçãoabolicionista configurada entre 1879-88 inaugurou o BrasilContemporâneo a partir de uma grande luta popular que envolveudiretamente os próprios escravos, não na figura de exímiosnegociantes de sua categoria.

Apoiando-se nos índices de rebeliões e crimes, o brasilianistasugere que os cativos estavam bem informados (p.130). Essaquestão nos remete a um amplo debate historiográfico. Seria oescravo um agente histórico, capaz de transformar sua realidade?Seria a abolição coisa de branco? Agentes da transformação social,Conrad fala da forma consciente pela qual “setenta e três homens,mulheres e crianças haviam marchado, em direção a Campinaspara se renderem, gritando saudações à emancipação e aorepublicanismo no caminho” (p.225). Exibindo uma inesperadacompreensão dos acontecimentos políticos, os escravos se mostravamuma força poderosa contra a resistência de seus algozes.

Resumindo, a análise de Conrad prima pela fantásticaestruturação da idéia de evidenciar que, além da força dosabolicionistas, a mão-de-obra escrava lutou em prol do sucesso de13 de maio. Agentes da transformação, os escravos seempenharam na sua libertação unidos, logicamente, às infinitascausas dos abolicionistas. No seu estudo, a Abolição não aparececomo o resultado de sentimentos humanitários do imperador e daprincesa regente, convictos de que o governo deveria procurar apaz compactuando com o sentimento público.

Nem tampouco aparece como algo consensual entre osestadistas do império. Privilegiar apenas a pressão da Inglaterrapara o fim da Abolição é esquecer, segundo o autor, que as açõesenérgicas britânicas uniram-se às circunstâncias nacionais propíciaspara pôr fim ao tráfico de escravos. O espírito rebelde dos escravoscontribuiu para a abolição certamente durante a última fase domovimento anti-escravista. Os escravos, que até a década de 1880lutavam sozinhos, tinham agora, como aliados, importantes setoresda sociedade. A Abolição, para Conrad, não foi uma dádiva dossenhores, mas uma conquista de escravos ajudados por aqueles

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A pesquisa de Conrad revitaliza a idéia de que foi com muitaluta, sofrimento e morte que os cativos conquistaram, com o apoiotardio de alguns setores da sociedade, sua originária condição dehomens livres, em 13 de maio de 1888. Infelizmente, Os últimosanos da escravatura no Brasil está esgotado e sem planos deser reeditado. Uma nova tiragem seria mais do que oportuna, vistoque constantes releituras de lúcidas obras tradicionais sãofundamentais e necessárias para as abordagens historiográficasnascentes. A leitura de Conrad é um agradável convite paraconhecer a complexa produção intelectual que se empenhou eminterpretar e justificar a história e a realidade brasileiras. Quem sabeo leitor se sinta convidado a assumir o desafio de agir em favor dapromoção de mudanças significativas da nossa realidade.....

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independência e prosperidade econômica e social” (p. 194-5).A reforma agrária, associada ao movimento de libertação,

seria um estímulo à pequena propriedade e ao trabalhador nacional.Concederia, em parte, melhores condições à grande massa saídado cativeiro. O magnífico estudo historicista sistemático da aboliçãono Brasil, empenhado por Conrad conclui que “o abolicionismosignificava mais do que libertação, seria a primeira de uma sériede reformas nacionais tendo por intenção acabar com o domínioda classe tradicional dos proprietários de escravos sobre asinstituições de nação” (Idem).

O problema é que as propostas do projeto de libertação damão-de-obra pelo Estado não coincidiram com as propostas dosabolicionistas. Ela não veio acompanhada de uma reforma agráriae de leis protetoras do trabalhador emancipado. Seus desastrososresultados mantiveram a população negra liberta numa situaçãode miséria e longe de poder integrar-se à sociedade brasileiraenquanto cidadãos.

No entanto, os limites históricos da Abolição não devemminimizar a importância do 13 de maio. Marco histórico dasociedade brasileira, a abolição destruiu o modo de produçãoescravista colonial que, por mais de três séculos, definira a nossasociedade. As fugas em massa dos escravos, conforme observouConrad, provocaram o último suspiro da instituição, embora parteda historiografia não leve em consideração esse fato.

No passado, os escravos sofreram violências que deixaramnítidas marcas no corpo e na alma. Hoje, as marcas são realçadaspelo domínio das palavras que enunciam um terno passadoescravista. A negociação está na moda, tanto no pensamento quantonas terminologias e na linguagem. Parece-nos que os escravosacreditavam mais na sua força do que alguns descrentes estudiososdo presente. A idealização da escravatura, a idéia romântica dasuavidade e brandura da escravatura do Brasil, juntamente com adescrição do escravo leal e do senhor benevolente, amigo doescravo, foram, conforme assinalado por Emília Viotti da Costa,“interpretações que acabaram prevalecendo em nossa literatura eem nossa história. Foram alguns dos mitos forjados por uma sociedadeescrava para defender um sistema considerado essencial.”23

69Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200768 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

2 Sobre esse assunto conferir: GASPARI, Élio. A história do Brazil: opassado do país está sendo escrito em inglês. Revista Veja, n°168, de24 de novembro de 1971, p.36; SODRÉ, Nélson Werneck. Movimento,N. 3, 21 de julho de 1975; CADERNOS de pesquisa. n° 4, 1978.(Tudo é história: será que devemos beber história como bebemoscoca-cola?); MASSI, Fernanda Peixoto. Brasilianismos, brazilianistse discursos brasileiros. São Paulo: IDESP, 1988; Uma históriaempenhada. Folha de São Paulo. Caderno Mais, 06 de junho de 2004.3 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil -1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.4 CONRAD, Robert.Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil.São Paulo: Brasiliense, 1985.5 Conrad morou no Brasil entre os anos de 1965-1969. CONRAD.Op. Cit. p. XX.6 Entre as produções de Conrad em língua inglesa estão: TheDestructin of Brazilian Slavery, 1850-1888. University of CaliforniaPress, 1972; Joaquim Nabuco, Abolitionism: The Brazilian Anti-Slavery Struggle, University of Illinois Press, 1977; BrazilianSlavery: An Annotated Research Bibliography, G. K. Hall, 1977;Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery inBrazil, Princeton University Press, 1983; World of Sorrow: TheAfrican Slave Trade to Brazil, Louisiana State University Press (BatonRouge, 1986); Sandino, the Testimony of a Nicaraguan Patriot:1921-1934, Princeton University Press, 1990; In the Hands ofStrangers: Readings on Foreign and Domestic Slave Trading andthe Crisis of the Union, Pennsylvania State University Press, 2001.7 KONDER, Leandro. História dos intelectuais nos anos cinqüenta.

In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia Brasileiraem perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.8 Ver, entre outros: CALÓGERAS, João Pandiá. Formaçãodo Brasil. São Paulo: Brasiliana; CALMON, Pedro. Históriado Brasil. São Paulo: Brasiliana; VIANNA, Hélio. História doBrasil. São Paulo: Brasiliana.9Conferir em: MEDEIROS, Maurício de. Aspectos da formação eevolução do Brasil. , 1953; ABREU, S. Fróes. Aspectos da formaçãoe evolução do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Jornal do Commercio, 1953.11 Conferir em: GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil:

das origens à extinção do tráfico. São Paulo: 1949; BETHELL, Leslie.A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil

GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990._________. O escravismo Colonial.São Paulo: Ática, 1988.GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo:Perspectiva, 1979.GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens àextinção do tráfico. São Paulo: 1949.GOUVEIA, Maurílio de. História da escravidão. Rio de Janeiro:Gráfica Tupy, 1955.HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,1969.IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.KONDER, Leandro. História dos intelectuais nos anos cinqüenta. In:FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia Brasileira emperspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre; a lei delocação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988.MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico, os movimentos sociaisna década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, SP, EDUSP, 1994.MAESTRI, Mário. A servidão negra. Porto Alegre: Mercado Aberto,1988.MASSI, Fernanda Peixoto. Brasilianismos, brazilianists e discursosbrasileiros. São Paulo: IDESP, 1988; Uma história empenhada. Folhade São Paulo. Caderno Mais, 06 de junho de 2004.MENEZES, Djacir. O Brasil no pensamento brasileiro. MEC, 1956.MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Edições Zumbi,1959.MOREIRA, Regina da Luz. Brasilianistas, historiografia e Centros dedocumentação. CPDOC.SODRÉ, Nélson Werneck. Movimento, N. 3, 21 de julho de 1975;CADERNOS de pesquisa. N. 4, 1978.( Tudo é história: será que devemosbeber história como bebemos coca-cola?).

NOTAS1 Esse termo foi empregado pela primeira vez em 1969 por Franciscode Assis Barbosa, na apresentação de Brasil: Getúlio a Castelo, livrode Thomas Skidmore e acabou sendo adotado pelos próprios norte-americanos. Cf. MOREIRA, Regina da Luz. Brasilianistas,historiografia e Centros de documentação. CPDOC.

71Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200770 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

HISTÓRIA E RÁDIO: UM CAMPO DE ESTUDOSPROMISSOR

Lia Calabre*

Resumo

Vivemos em uma sociedade articulada em redes deinformação, habituada a receber notícias em temporeal, que vivencia um processo constante demultiplicação dos meios de comunicação de massa. Aimportância e a necessidade da promoção de estudosque tenham como principal objeto o papel dos meiosde comunicação nas sociedades contemporâneas nãoé mais colocada em questão pelos especialistas docampo das ciências sociais. Entretanto ainda é pequenoo número de trabalhos sobre o tema nas áreas dehistória, sociologia e antropologia social e, ao nosreferirmos especificamente aos estudos sobre o radio,o quadro de escassez se agrava. Este artigo pretendeapresentar algumas reflexões sobre o difícil e tambémpromissor campo de estudos das relações entre rádioe história, começando com uma breve narrativa datrajetória da presença deste importante meio decomunicação no Brasil e passando para a apresentaçãode alguns estudos e questões sobre o tema.

Palavras-chave: Rádio; história do rádio; mass media; históriacultural; rádio e história

* Doutora em história pela Unversidade Federal Fluminense,pesquisadora-chefe do Setor de Estudos de Política Cultural daFundação Casa de Rui Barbosa, autora de A Era do Rádio(Zahar,2002) e O rádio na sintonia do tempo: radionovelas ecotidiano -1940-1946. (FCRB,2006)

e a questão do tráfico de escravos; 1807-1869. Rio de Janeiro:Expressão cultura/Edusp, 1976; FREITAS, Décio. Insurreiçõesescravas. Porto Alegre: Movimento, 1976.12 Ver COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. São Paulo:Brasiliense, 1989; IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo:Hucitec, 1978. p. 40. Nesta linha também estão os trabalhos deHOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,1969; BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. SãoPaulo, 1969; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalholivre; a lei de locação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988.13 Essa lei libertava as crianças recém-nascidas de mães escravas.14 Em 28 de setembro de 1885 o governo imperial promulga a LeiSaraiva-Cotegipe, conhecida como Lei dos Sexagenários, que libertavaos escravos com mais de 65 anos. A decisão é considerada de poucoefeito, pois a expectativa de vida do escravo não ultrapassa os 40 anos.15 Estamos falando das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, quenão abalaram significativamente as relações de trabalho, ao contrário,foram estratégias para os senhores ganharem tempo.17 Jerônymo Sodré, deputado nordestino que “denunciou a Lei RioBranco como sendo uma reforma vergonhosa e mutilada, pedindo aextinção total e rápida da escravatura”. CONRAD, Robert. p. 167.18 José do Patrocínio era filho de um padre fazendeiro, dono deescravos em Campos dos Goitacazes, na província do Rio de Janeiroe de uma negra, vendedora de frutas. CONRAD, Robert. p. 18719 André Rebouças era engenheiro e professor de botânica, cálculo egeometria na Escola Politécnica.20 Joaquim Nabuco, advogado, descendia, pelo lado do pai, de umafamília política e de sua mãe, de antigas e poderosas famílias defazendeiros de Pernambuco. CONRAD, Robert. Op. cit. p. 186.21 Entre a imprensa abolicionista circulava: Gazeta da Tarde eAssociação Central Emancipadora,22 Termo derivado provavelmente de uma complexa associaçãoreligiosa ou mística do alto sacerdote que entregou Jesus a PôncioPilatos. CONRAD, Robert. Op. cit. p. 294.23 COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo:Corpo e Alma do Brasil, n. 19, 1966. p. 280.

73Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200772 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

presença deste importante meio de comunicação no Brasil e passandopara a apresentação de alguns estudos e questões sobre o tema.

O desenvolvimento do rádio brasileiro acompanhou astendências tecnológicas internacionais sem grandes defasagens.Internamente, o início do funcionamento do rádio, no Brasil, ocorreudentro de um processo de transformação de uma sociedade agráriaem uma sociedade urbano-industrial. O rádio no Brasil adotou, namaioria das vezes, um modelo empresarial e esteve, tanto no níveleconômico como no social, vinculado ao movimento detransformações culturais urbanas.

No Brasil a primeira transmissão radiofônica ocorreu em1922, na Exposição Nacional comemorativa do Centenário daIndependência. O sucesso e a repercussão, na imprensa escrita,das primeiras transmissões radiofônicas, contribuíram para que,em 1923, surgisse a primeira emissora de rádio no Brasil, a RádioSociedade do Rio de Janeiro. Os pioneiros, Roquette Pinto eHenrique Morize, ambos da Academia Brasileira de Ciência,criaram a rádio com finalidades estritamente culturais e educativas,nos moldes europeus. Quando a Rádio Sociedade do Rio de Janeiroiniciou suas atividades, a radiodifusão era ainda um investimentomuito caro e o único país a possuir um grande número de emissorase de aparelhos receptores de rádio era os Estados Unidos.

O setor radiofônico brasileiro se desenvolveu lentamenteao longo da década de 1920. Em 1923, foram fundadas duasemissoras, cinco em 1924, três em 1925, três em 1925. Em 1930,o país contava com 16 emissoras. Apesar do número modesto deemissoras o rádio atraía a atenção de uma boa parcela dapopulação. Um dos sonhos de consumo das famílias na época, erao de ter um aparelho de rádio na sala de estar.

Na década de 1930 algumas emissoras já haviam se tornadomuito populares, como, por exemplo, a carioca Mayrink Veiga.Foi exatamente nesse período, em 12 de setembro de 1936, quesurgiu a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A Nacional iniciousuas atividades com a pretensão de vir a ser a maior e maisimportante emissora do país. Tais objetivos foram atingidos nasdécadas de 1940 e 1950. Já na inauguração contava com um castde artistas exclusivos,1 onde estavam presentes os cantores Aracy

Abstract

We live in a society structured in informationnetworks, used to receiving news in real time,which lives a process of constant multiplication ofmass media. The importance and the need topromote studies whose main object is the role ofmidia in contemporary societies is undisputed bysocial science scholars. However, the number ofstudies about the topic is still small both in historyand in sociology or social anthropology. When werefer to specific studies about the radio, the numberis yet smaller. This article aims at presenting somethoughts about the difficult – but promising – fieldof research, that is, the relations between historyand the radio. It satrts with a brief narrative of itspresence in Brazil and evolves to the discussion ofsome studies and issues related to the subject.

Key words: Radio, history of the radio; mass media; history

cultural; radio and history

Vivemos em uma sociedade articulada em redes deinformação, habituada a receber notícias em tempo real. Tal cotidianose deve à existência e a crescente multiplicação dos meios decomunicação de massa, os principais responsáveis pelo processo daconstrução dos acontecimentos no mundo contemporâneo. Aimportância e a necessidade da promoção de estudos que tenhamcomo principal objeto o papel dos meios de comunicação nassociedades contemporâneas não é mais colocada em questão pelosespecialistas do campo das ciências sociais. Entretanto ainda é pequenoo número de trabalhos sobre o tema nas áreas de história, sociologiae antropologia social e, ao nos referirmos especificamente aosestudos sobre o radio, o quadro de escassez se agrava.

Este artigo pretende apresentar algumas reflexões sobreo difícil e também promissor campo de estudos das relações entrerádio e história, começando com uma breve narrativa da trajetória da

75Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200774 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

Os prefixos musicais eram a marca registrada dos programas,fenômeno que também ocorre com a televisão.

O rádio criou uma corte imaginária, com Rainhas do Rádio,Reis da Voz, sempre seguidos por súditos fiéis. O sucesso dosastros e das emissoras era tão grande que foram lançadas revistasespecializadas em rádio, como a Revista do Rádio e a Radiolândia,com distribuição nacional. As pessoas desejavam saber queaparência possuía, o que vestia, o que consumia e como moravacada um de seus astros prediletos. Os ouvintes queriam ver e, sepossível, tocar nos donos das vozes que embalavam seus sonhos.Esses astros poderiam ser vistos e quase tocados nos famososprogramas de auditório que levavam multidões até as rádios.

Foram os programas de auditório que criaram e alimentaramo fenômeno dos fã-clubes. Cada fã-clube organizava-se em tornodo nome de um determinado artista, tinha uma sede, acompanhavaseus astros prediletos nas excursões e arrecadava dinheiro paraque, durante todo ano, pudessem organizar festas e presentear oartista. Foram famosos os fã-clubes de cantores como Emilinha,Marlene, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e Caubi Peixoto. As disputasmais famosas da história dos fã-clubes ocorreram entre os adoradoresdas cantoras Marlene e Emilinha Borba.

No campo dos noticiários radiofônicos foi a grande estrelao Repórter Esso, que também serviu de modelo para muitos dosjornais radiofônicos e televisivos que o sucederam. A primeiraedição do Repórter Esso foi ao ar em final de agosto de 1941, naRádio Nacional do Rio de Janeiro. No rádio, o Repórter Essoficou no ar até dezembro de 1968. O Repórter Esso era “O primeiroa dar as últimas” e a “Testemunha ocular da história”. Em quatroemissões diárias com 5 minutos de duração cada uma, apresentadasempre com absoluta pontualidade - as famílias criavam o hábitode acertar os relógios pelas edições do noticiário- , o jornalconservou durante todo o período de sua existência uma legiãofiel de ouvintes. As notícias somente eram consideradas confiáveisse transmitidas pela “Testemunha Ocular da História” .

O rádio também levou a sério a função de divertir. Osprogramas humorísticos radiofônicos alcançavam altos índices deaudiência, concorrendo com os programas de música e

de Almeida e Orlando Silva. As vozes que colocaram a emissorano ar foram as de Celso Guimarães, Ismênia dos Santos e OduvaldoCozzi (todos como speakers). A Nacional possuía várias orquestrase entre seus maestros, encontrava-se o jovem e talentoso RadamésGnatalli. Em 1940, a Rádio Nacional, que integrava o conjunto deempresas do grupo A Noite, foi incorporada ao patrimônio da união.A Rádio Nacional foi, reconhecidamente, a emissora de maiorpenetração e audiência por todo o país. Pelos índices depopularidade e eficiência financeira atingidos, a emissora logo setornou uma espécie de modelo, que foi seguido pela maioria dasrádios brasileiras.

Com o crescimento da popularidade do rádio, os ouvintespassaram a não mais querer somente ouvir seus artistasfavoritos. Na década de 1930, as emissoras de rádios passarama receber o público em seus estúdios. Preocupadas com afreqüência do público ouvinte, no final da década de 1930 einício da de 1940, diversas emissoras ampliaram seus auditórios,passando mesmo a cobrar ingressos.

O modelo de programação utilizado pelo rádio desde suacriação e que vigorou até a década de 1960, tinha como base amúsica, a dramaturgia, o jornalismo e os programas de variedade.As emissoras radiofônicas possuíam um elenco artístico muito maisdiversificado do que muitas das atuais redes de televisão.

Entre os campeões de audiência na programação radiofônicaestavam as novelas, as dramatizações em geral. No Rio de Janeiro, aprincipal emissora a se destacar nesse tipo de programa foi aRádio Nacional e no caso paulista a Rádio São Paulo.

A música tem um papel especial dentro de uma emissorade rádio, a ausência de imagens faz da sonoplastia e do fundomusical apoios fundamentais. Durante as três primeiras décadasde existência, as emissoras de rádio trabalhavam muito comapresentações de música ao vivo. As de maior porte, como aRádio Nacional do Rio de Janeiro, costumavam possuir duasou mais orquestras (que executavam tanto peças musicaisclássicas como populares), pequenos conjuntos (regionais),contando também com alguns maestros que eram osresponsáveis pelos arranjos musicais de toda a programação.

77Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200776 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

interferiu em comportamentos, alterou práticas rotineiras, entretantotanto sua presença quanto os conteúdos que veiculou, ainda sãopouco estudados. A segunda parte deste artigo apresenta algunsdos estudos, na maioria teóricos, que tratam da questão dos meiosde comunicação de massa e, em especial, do rádio.

Os estudos no campo dos meios de comunicação de massa

Os trabalhos produzidos pela chamada Escola de Frankfurt,que têm entre seus integrantes, Max Horkheimer, SiegfriedKracauer, Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno, constituemum marco no processo de inserção dos meios de comunicação demassa no campo dos estudos acadêmicos. A expressão indústriacultural foi cunhada por Horkheimer e Adorno na década de 1940,estabelecendo um novo conceito. Em artigo datado de 1947, 3 osestudiosos inserem a lógica de produção dos conteúdos veiculadospelo cinema e rádio da época dentro do sistema industrial capitalista.Segundo os autores este era um sistema de comunicação que tornavatodos os ouvintes iguais ao sujeitá-los, autoritariamente, aos idênticosprogramas que eram apresentados pelas várias estações de rádio.

Em um artigo posterior (da década de 1960) Adornoexplica que ele e Horkheimer, ao criarem o termo indústriacultural estavam, propositadamente, colocando-o no lugar decultura de massa. Os teóricos desejavam evitar qualquerpossibilidade de se acreditar que o que fosse produzido neste âmbitopudesse pertencer à esfera de uma cultura espontânea, oriundadas próprias massas. No mesmo artigo, Adorno reafirma sua idéiade que a Indústria Cultural se funda em um domínio manipulatórioda mensagem sobre o receptor: “O consumidor não é rei, como aindústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessahistória, mas seu objeto”. (Adorno, p.92) Tais pressupostos teóricosfizeram com que durante muito tempo todas as referências a RádioNacional do Rio de Janeiro, entre a década de 1940 e 1950, seustempos de extrema popularidade, tivesse o conjunto de suaprogramação analisada como a de um aparelho ideológico deestado, mais especificamente do estado varguista.

radionovelas pelo título de campeão de popularidade. Dentre elesdestacam-se o PRK-30, que esteve no ar por 18 anos e o Balançamas não cai que ficou em cartaz por 20 anos e foi transferidopara a televisão. O programa criou, dentre outros, dois personagensextremamente famosos: o primo pobre e o primo rico.

Outro gênero de programa muito popular era o devariedades, apresentados por animadores renomados como Césarde Alencar, Paulo Gracindo e Manoel Barcelos. Tais programasforam irradiados pela Rádio Nacional e contavam com a presençado público que superlotava os auditórios da emissora. São comunsas histórias das filas de ouvintes que se formavam na porta dasemissoras, desde a véspera dos programas, em busca de ingressos.As pessoas dormiam nas calçadas da emissora, amanheciam narua, tudo era válido para ver o artista favorito de perto e concorreraos prêmios distribuídos pelos apresentadores dos programas.

Presença constante nos lares, o rádio converteu-se em ummeio fundamental de informação e de entretenimento. Ao longoda década de 1950, o rádio se tornou um objeto acessível à grandemaioria da população, nesse mesmo momento tinha início oprocesso de lançamento e valorização da televisão no Brasil. Jáno final da década de 1950, com a diminuição das verbaspublicitárias e com a concorrência da televisão, o rádio iniciou umprocesso de reformulação da programação irradiada. As grandesorquestras, os imensos casts de atores e atrizes que geravammuitas despesas tornavam-se cada vez mais difíceis de caber nosorçamentos das emissoras. O modelo de rádio que conquistoumultidões nas décadas de 1940 e 1950 foi gradativamente sendotransferido para a televisão, tais como as radionovelas, osprogramas humorísticos, os programas de calouros e o RepórterEsso. Essas mudanças deram origem a novos modelos deprogramação radiofônica, muito diferente daquela que esteve noar nos “anos dourados” do rádio brasileiro.

Nesse universo fantástico que é o da relação entre o rádioe o cotidiano pode ser encontrada uma série de invenções detradições que, segundo Eric Hobsbawn, são conjuntos de práticas,de natureza ritual ou simbólica que inculcam valores e normas decomportamento através de repetição.

2 O rádio criou modas,

79Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200778 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

pouco sobre o que é produzido e o que acontececom os receptores. (Canclini, 1998. p. 257)

Ao destacar tais reflexões nosso objetivo não é o de negara tentativa e mesmo a utilização, pelas camadas dominantes dasociedade, de elementos culturais das camadas trabalhadoras oupopulares (ou subalternas), com a finalidade de criar um controleideológico, de determinar visões de mundo ou de moldarcomportamentos. Pois, como alerta o historiador Roger Chatier,adotar tal perspectiva “significa esquecer que tanto os bens simbólicoscomo as práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais”.(Chartier, 1995. p.184) O que está em questão é a eficácia de taltentativa, a idéia de controle absoluto de uma classe sobre a outra, avisão maniqueísta dos acontecimentos e as noções de cultura de classepuras e estanques, como algo que não circula. Ou ainda, pensar osmeios emitindo mensagens que são impressas integralmente nosreceptores, como se estes fossem folhas de papel em branco.

Afastando-se também da visão de dominação absoluta dosconsumidores pelos meios, Edgar Morin, ainda na década de 1960,definia cultura de massa como produto de um diálogo entreprodução e consumo. Segundo o autor esse diálogo é desigual, noqual o consumidor não fala, entretanto, ele ouve, ele vê ou serecusa a ouvir ou a ver. Para Morin, na cultura de massa; overdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produçãocultural e as necessidades culturais dos consumidores. Nesseprocesso estão envolvidos o produtor, as leis e as regras ditadaspelo Estado e que regulamentam a produção e um público médio queé o consumidor que garante a sobrevivência do sistema. Dentro desseconjunto de reflexões, Edgar Morin termina definindo a cultura demassa como “o produto de uma dialética produção-consumo, no centrode uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade”.(Morin, p.46-47) A principal questão colocada pelo estudioso é a deque o consumo de produtos culturais é um processo sutil, que nãopode ser mecanicamente comparado ao processo de consumoindustrial pura e simplesmente. Mesmo que o conjunto dos massmedia seja controlado pelo Estado, o consumidor pode não ligar oaparelho de rádio, de TV, ou não ler o jornal.

Essa visão do meio e da mensagem como dominadores edos receptores como dominados foi a que predominou na maioriados estudos ao longo das décadas de 1960 e 1970. Tal pressupostoteórico terminava por impor uma espécie de simplificação aosestudos sobre os meios de comunicação de massa. No caso daRádio Nacional, por exemplo, principalmente pelo fato de ser umaemissora do governo, alguns estudos associavam o projeto doEstado ao conteúdo que era veiculado pela emissora. O resultadode tal processo era o da classificação da programação da rádiocomo populista e popularesca, imposta arbitrariamente pelaideologia dos estado e seus ouvintes como massa manipulada.

Na América Latina em geral, por volta dos anos 1980,segundo Martín-Barbero,

...alguns pesquisadores começaram a suspeitardaquela imagem do processo na qual não cabiammais figuras além das estratégias do dominador, naqual tudo transcorria entre emissores-dominantes ereceptores-dominados sem o menor indício desedução nem resistência. ( Martín-Barbero, p.43)

Barbero se inclui entre os pesquisadores que passaram arever seus pressupostos teóricos e a repensar a relação meios decomunicação/sociedade de maneira mais complexa. Em CulturasHíbridas, Néstor Canclini também busca fugir de uma visãounidirecional da comunicação, que acreditava na manipulaçãoabsoluta dos meios sobre a recepção das mensagens, sem descartaro uso do conceito de indústria cultural, mas questionando o alcancede seus efeitos. Para o autor:

A noção de ‘indústrias culturais’, útil aosfrankfurtianos para produzir estudos tãorenovadores quanto apocalípticos, continua servindoquando queremos nos referir ao fato de que cadavez mais bens não são gerados artesanal ouindividualmente, mas através de procedimentostécnicos, máquinas e relações de trabalhoequivalentes aos que outros produtos da indústriageram; entretanto, esse enfoque costuma dizer

81Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200780 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

trabalho mais sistemático com o rádio foi Alcir Lenharo, escolhendoa música, mais especificamente os cantores do rádio como seuobjeto de estudo. Lenharo, logo na introdução de seu trabalho,chamou a atenção para a necessidade de se “levantar o véu quecobre os anos 50, na sua versão massiva, e duvidar na rapidezcom que se fala nos cantores de rádio, assim como suas músicassão lançadas no esquecimento” (Lenharo, p.9)

Essa massificação radiofônica, que alcançou seu ápice nadécada de 1950, teve no rádio dos anos de 1930 o ponto de partida.Segundo Mártin-Barbero, a década de 1930 é a do período doinício do processo de massificação na América Latina, por eleconsiderada como o de uma cultura urbana formada dentro de umprocesso de hibridização do nacional e do estrangeiro. Em seustrabalhos, Martin-Barbero pretende tornar investigáveis osprocessos de constituição do massivo para além da chantagemculturalista que os converte inevitavelmente em processo dedegradação cultural. O autor pretende romper com os estudosque crêem que o surgimento do rádio, do cinema e da televisãosubstituiu as tradições populares por novas formas de controlesocial. Para o autor, a comunicação de massa deve ser vista comoum processo social integrado nas práticas culturais da vida cotidianae não como algo imposto arbitrariamente.

Passando especificamente para o caso brasileiro, o sociólogoRenato Ortiz considera que os estudos sobre cultura brasileira eindústria cultural no Brasil devem levar em consideração as própriascondições sobre as quais estas se consolidaram. Entre elas destacao fato de ser a sociedade brasileira subdesenvolvida, onde:

É necessário mostrar que a interpenetração da esferade bens eruditos e a dos bens de massa configurauma realidade particular que reorienta a relação entrea arte e a cultura popular de massa. Esse fenômenopode ser observado com clareza quando nosdebruçamos nos anos 40 e 50, momento em que seconstitui uma sociedade moderna incipiente e queatividades vinculadas à cultura popular de massasão marcadas por uma aura que em princípio deveriapertencer à esfera erudita da cultura.(Ortiz, p. 65)

As tendências dos estudos dos mass media aquiapresentadas nos permitem trabalhar com o rádio dentro do campoda história cultural. Em seu trabalho com as questões da culturapopular, o historiador Roger Chartier é outra voz que se levantapara alertar aos pesquisadores sobre a necessidade dos estudosde história cultural, no campo dos mass media, avançarem paraalém dos limites da idéia de submissão absoluta do receptor àmensagem. O historiador afirma que:

A mídia moderna não impõe, como se acreditouapressadamente, um condicionamento homogenei-zante, destruidor de uma identidade popular, queseria preciso buscar no mundo que perdemos. Avontade de inculcação de modelos culturais nuncaanula o espaço próprio da sua recepção, do seu usoe da sua interpretação. (Chartier, p. 1995. p.186)

Existem muitas diferenças entre o que o emissor pretendeutrasmitir com a mensagem daquilo que foi efetivamente recebido. Osconteúdos veiculados pelos meios de comunicação interagem com ocotidiano, interferem na realidade, ao mesmo tempo que se renovamconstantemente, principalmente no caso do rádio e da TV, na buscada manutenção de uma audiência cativa. Como afirmou Canclini:

As tecnologias comunicativas e a reorganizaçãoda indústria da cultura não substituem astradições nem massificam homogeneamente, mastransformam as condições de obtenção erenovação do saber e da sensibilidade. Propõeoutro tipo de vínculo da cultura com o território,do local com o internacional, outros códigos deidentificação das experiências, de decifração deseus significados e modos de compartilhá-lhos.Reorganizam as relações de dramatização ecredibilidade com o real. (Canclini, 1998. p.263)

No Brasil, o estudo da participação do rádio nesse processode transformação das condições de obtenção e renovação dossaberes da sociedade, se restringiu à pequenas e superficiaisreferências. Um dos poucos historiadores brasileiros a iniciar um

83Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200782 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

É importante reafirmar que os mass media devem ocuparum lugar privilegiado nos estudos do campo da História Culturaldo século XX. Segundo o historiador Roger Chartier, uma históriacujo projeto é o de reconhecer como os atores sociais investem desentido suas práticas e discursos, deve dedicar uma atençãoespecial à tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos,ou dos grupos sociais, e as normas que os cerceiam. (Chartier,1994. p. 106) O campo dos mass media se apresenta como umlugar privilegiado para a observação de tal fenômeno. Estãopresentes nos meios de comunicação de massa, principalmenteno rádio e na televisão, práticas e discursos que têm sua origemem atores sociais diversos (tanto indivíduos quanto grupos sociais),ou seja, eles são os canais de divulgação dos discursos e dasrepresentações de natureza variadas, seja tanto entre os diversoscampos (político, cultural, social, etc), quanto dentro dos mesmos.Esta diversidade que gera conflitos permanentes entre o que pode(quando pode), o que deve ser transmitido por esses medias e oque lhes está interditado, ainda que temporariamente, é exatamenteuma das grandes riquezas apresentadas por esse tipo de fonte.

Em 1988, o historiador francês Jean-Noël Jeanneney 6

publicou um artigo no qual um dos principais pontos de reflexãoera o do fato de que apesar da evidente importância do papelcumprido pelos meios de comunicação de massa na sociedadecontemporânea, eles ainda não haviam se tornado objetos de estudofreqüente - nos anos 80, os historiadores ainda não tinham feitodeste setor um importante campo de trabalho. (Jeanneney, 1996)Na tentativa de justificar tal ausência, o autor elenca uma série dequestões e de dificuldades que considera as responsáveis por talquadro, tais como: a da multiplicidade dos meios, a da dispersãodas informações e a de um certo temor, associado a um grandepreconceito existente entre os intelectuais franceses, de realizarqualquer tipo de trabalho ligado aos meios de comunicação de massa.No caso brasileiro, podemos afirmar que as questões que determinama presença reduzida de estudos sobre os meios de comunicação demassa são as mesmas que foram apontadas pelo estudioso francês.

No início de 1997, praticamente dez anos depois, Jeanneneypublicou um novo trabalho cujo objetivo era o de realizar a recons-

O rádio dos anos 1940 e 1950 mostra-se como um campoespecial para a observação dos fenômenos da valorização do populare do consumo cultural massivo, apontados por Renato Ortiz. Estefoi um período rico na criação de diversos ídolos da música popular,o que era um fato novo no cenário cultural brasileiro e instauravauma certa aura em torno do mito e do produto da fama. Ao observar-se o fenômeno da produção da indústria cultural a partir da décadade 1980 (ou até mesmo antes em alguns setores), verificamos quejá não causa nenhum estranhamento a aura adquirida - no sentidoque lhe atribuiu Walter Benjamin à obra de arte - pelos produtosoriundos da indústria cultural de massa que, em geral, não sãoconsiderados como artísticos e sim industriais. O cinema e atelevisão se mantiveram como fábricas de ídolos, de deuses. Ortizchama ainda a atenção para o fato de que, na década de 1940, maisespecificamente, ocorre um processo de incorporação demanifestações culturais representativas de um certo segmento dasociedade (que nos trinta primeiros anos do século XX, eram tidascomo exclusivamente populares) ao conjunto das manifestaçõesrepresentativas da nacionalidade brasileira, destacando o rádiocomo um elemento fundamental na consolidação desse processo.4

O rádio, a televisão o cinema são expressões que englobamum conjunto de significações e atividades diferenciadas. Analisandoo caso do rádio, especificamente, a expressão deve ser utilizadacom um caráter amplo. O que se verifica é a existência de umcampo da produção radiofônica,5 que deve ser visto como umespaço onde atuam diversos grupos em constante disputa pelopoder hegemônico. A produção radiofônica não pode ser tratadacomo uma totalidade homogênea. O rádio enquanto um meio decomunicação de massa que atinge indiscriminadamente a todapopulação brasileira. É por natureza, um veículo “sem mensagem”pré-concebida. Cada emissora, em separado, produzirádeterminadas mensagens, muitas vezes buscando atingir umaaudiência específica, previamente demarcada. O somatório doprocesso de seleção do conteúdo, elaboração da mensagem etransmissão da mesma (com todas as variantes e intervenientesque isso possa significar) resulta no campo da produção radiofônicaonde atuam profissionais dos mais diversos.

85Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200784 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

do terceiro tomo é dedicado aos temas “economia e cultura” noperíodo de 1930 a 1964. Encontramos aí estudados a poesia e aprosa de ficção; o cinema; a música e a malandragem, e, por fim,o teatro. Quanto ao rádio, nada!

Isso não significa que a importância do papel do rádio nasociedade brasileira seja negada. Apesar de poucos estudos específicos,o rádio é comumente citado como um elemento cultural importantena sociedade brasileira

7. Um outro exemplo dessa dicotomia pode

ser observado na coleção História da Vida Privada no Brasil queapesar de utilizar o rádio como um marco na história brasileira,intitulando o volume n° 3 da coleção com o sub-título República: daBelle Époque à Era do Rádio e apresentar na capa uma foto extraídada revista Seleções, de 1942, onde se vê uma mulher sintonizandoseu rádio, não dedica nenhum de seus capítulos ao estudo da Erado Rádio ou da relação deste com a sociedade brasileira.

É importante destacar que o número de trabalhos acercada radiodifusão produzidos no campo da história e das ciênciassociais ainda é pequeno tendo em vista o papel social cumpridopelo rádio em seus quase 80 anos de existência no Brasil, avariedade e riqueza dos conteúdos veiculados e o número deemissoras existentes em todo o país. A própria diversidade efragmentação das fontes que nos permitem recuperar a históriada presença do rádio no Brasil fizeram com que a maioria dostrabalhos se concentrasse em um aspecto determinado privilegiandoum tipo específico de fonte. Alguns escolheram as revistasespecializadas como a Revista do Rádio como fonte privilegiada,outros centraram suas observações sobre os depoimentos dospioneiros do rádio, outros se preocuparam com a interferência doEstado. Em geral, a opção dos pesquisadores foi a de concentraremo esforço de análise em uma determinada faceta da produçãoradiofônica. A seguir serão apresentados alguns dos principaistrabalhos sobre o rádio brasileiro.

No que diz respeito à relação rádio/sociedade, de formamais ampla, temos o trabalho do historiador Antonio Pedro Tota,intitulado A locomotiva no ar: Rádio na cidade de São Paulo;1924/1934 (originalmente sua tese de doutoramento). Nestetrabalho o autor mostra a relação existente entre rádio e

tituição do que ele denominou de: “a trajetória de um longoesforço para que a historiografia universitária admitisse emseu âmbito o interesse pelos estudos dos meios de comunicaçãoaudiovisuais”, (Jeanneney, 1997. p. 147) referindo-se basicamenteao rádio e à televisão. Apesar de apontar a ampliação do númerode estudos sobre esses meios, por parte dos historiadores, o própriotítulo do artigo já expressa sua conclusão sobre os resultadosencontrados: Audiovisuel: le devoir de s’en mêler. Segundo oautor, a História estaria se privando de uma fonte essencial para acompreensão do século XX, se continuasse a negligenciar essedomínio de estudo, deixando-o somente a cargo dos sociólogos edos cientistas políticos. Ao longo do artigo o autor lista algumasdas obras e alguns dos grupos dedicados, desde a década de 70,na França, ao estudo dos meios de comunicação de massa.Jeanneney, nesse artigo, faz um breve relato das diversas medidasque vinham sendo tomadas na busca de se obter formas eficazesde preservação do material produzido pelo rádio e pela televisãofranceses, tais como o da criação de um órgão especializado parao depósito legal do material transmitido pelos mesmos. O autorchama a atenção para o fato de tratar-se de um campo de estudosque vem crescendo de forma contínua, porém, lenta, no qual amaioria dos trabalhos foi realizada a partir do final dos anos de1980, e onde muito ainda se encontra por fazer.

Às reflexões de Jeanneney podem ser acrescidas as doantropólogo mexicano Néstor Garcia Canclini, que afirma queno campo dos estudos culturais existe uma quase total ausênciade trabalhos de um subsetor que ele considera o mais dinâmicodesse campo de estudos, que é o das indústrias culturais(Canclini, 1991. p. 34).

Em A Moderna Tradição Brasileira, Renato Ortiz afirmaque as manifestações da indústria cultural, propriamente ditas,somente começaram a ser objeto de estudo no Brasil, no campoda Sociologia, da década de 1970. Entretanto, verificamos que aescassez de análises das questões pertinentes ao rádio continua ase evidenciar também nas décadas seguintes. Ilustraremos estaafirmativa com um exemplo que consideramos paradigmático: nacoleção História Geral da Civilização Brasileira, o volume quarto

87Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200786 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

das muitas lacunas existentes na história desse popular meio decomunicação de massa ainda que de forma sintética, terminandopor apontar novos caminhos a serem trilhados pela pesquisa.

Dentro do conjunto da produção radiofônica temos comodestaque a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que foi efetivamentea mais importante emissora de rádio do Brasil dos anos 1940 e1950, seja observando pelos altos índices de audiência que aemissora registrava em todo o país, seja pelo fato de a mesma ter sidoconsiderada como um modelo de rádio a ser seguido pelas emissorascontemporâneas. Por sua importância a Rádio Nacional foi objetode alguns trabalhos específicos, dentre os quais listamos quatro.

O primeiro deles, intitulado Por Trás das Ondas da RádioNacional, de Miriam Goldfeder, publicado em 1980, é originalmenteuma dissertação de mestrado defendida em 1977, no Instituto deCiências Humanas da Universidade de Campinas. O segundo, deautoria de Luís Carlos Saroldi e Sônia Virgínia Moreira: RádioNacional: O Brasil em sintonia - trabalho vencedor de umconcurso de monografias sobre a Rádio Nacional, promovido pelaDivisão de Música Popular do Instituto Nacional de Música daFUNARTE, em 1983. O terceiro é uma tese de doutoradoapresentada ao Departamento de Comunicação e Artes da ECA/USP em 1992, por Doris Fagundes Haussen, sob o título: Rádio ePolítica: Tempos de Vargas e Perón. E por último Quando Cantao Brasil - A Rádio Nacional e a construção de uma identidadepopular: 1936-1945, de Cláudia Maria Silva de Oliveira,dissertação de mestrado, defendida em 1996, na PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro.

A caminho da conclusão

O rádio tornou-se popular, estabelecendo uma espécie derelação de cumplicidade com o conjunto da sociedade que seefetivava num complexo processo de co-participação daconstrução do conteúdo que era veiculado. A participação dopúblico no processo de construção da programação se expressadiretamente na aceitação ou rejeição daquilo que é irradiado. Tendoo rádio brasileiro, na maioria das vezes, adotado um modelo

modernidade em São Paulo, nas décadas de 20 e 30, estudando asalterações ocorridas nesta sociedade a partir das interferênciasimpostas pela cultura de massa. Antônio Pedro Tota chama a atençãopara a dificuldade do trabalho com o tema rádio devido à ausência deuma história social dos meios de comunicação. Segundo o autor, suatese tem como ponto de partida a História do Cotidiano e as propostasde análise das estruturas de longa duração para resolver algumasquestões metodológicas. Esse é um dos poucos trabalhos que buscaentender e resgatar o papel social do rádio no cenário nacional.

Apesar de centrar suas preocupações na relação rádio/modernidade e tomar como locus específico a cidade de São Paulo,o estudo de Antônio Pedro nos permite traçar um panorama dasituação do rádio no Brasil nas primeiras duas décadas deexistência relacionando-as com o período seguinte. O autorassinala que já nos anos de 1920 ocorre o início do processo detransformação cotidiano da casa com a presença de um “indiscretoaparelho”, que vai, por exemplo, substituir as orquestras e osgramofones nos saraus domésticos8

A partir do final da década 1980 e mais propriamente dosanos 90, começaram a surgir alguns trabalhos na área decomunicação social que pretendiam resgatar a história e o papeldo rádio no Brasil , dentre eles trabalhos foram destacados dois.

O primeiro deles é o de Gisela Ortriwano, A informaçãono rádio: os grupos de poder e a determinação dos conteúdos.O principal objeto de análise do estudo é a mensagem jornalística.Entretanto para realizar seu trabalho, a autora vai resgatar parte dahistória os sistema de radiodifusão brasileiro, analisar diversos aspectosdo cotidiano radiofônico tais como a propaganda, a legislação, asligações com a política, sempre em uma perspectiva histórica. O largorecorte temporal - o rádio de seus primórdios até o final da décadade 1980 – e a diversidade dos temas tratados fez com que a maioriados temas fossem tratados mais superficialmente a partir defontes secundárias e de alguns dados estatísticos.

O segundo é o de Sônia Virgínia Moreira, O Rádio noBrasil, que tem como objetivo reatualizar a história do rádio,utilizando bibliografia secundária e realizando pesquisas emperiódicos especializados, a autora buscou preencher algumas

89Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200788 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

Ilustrada e Carioca, os arquivos particulares e depoimentos ememórias de profissionais que atuaram no setor radiofônico. Estesúltimos encontram-se guardados em instituições de pesquisa comoo Museu da Imagem e do Som e o Centro Cultural São Paulo epublicados em relatos de memórias (livros, crônicas, artigos, etc).Deve-se destacar ainda o fato de a Rádio Nacional do Rio deJaneiro ser a única emissora no eixo Rio - São Paulo a possuir umarquivo que preserva uma parte significativa daquilo que foi porela veiculado. O acervo de registros sonoros que a emissoraconservou está dividido entre um setor de pesquisa na própriaNacional e o Museu da Imagem e do Som – RJ – neste último omaterial já se encontra totalmente digitalizado.

Aa informações fragmentadas podem ser colhidas atravésde dados estatísticos oficiais, pesquisas de opinião, depoimentos,programação das emissoras, entre outros. As colunas diárias dosjornais e de algumas revistas forneceram material para areconstituição da relação estabelecida entre o rádio e o conjuntoda sociedade – ouvintes e não-ouvintes radiofônicos. As crônicaspublicadas nesses periódicos comentavam os temas mais diversosdo mundo radiofônico, tanto com elogios como com críticas, comopor exemplo as mudanças internas ocorridas nas emissoras, asalterações nas instalações técnicas, as reações dos ouvintes, avida pessoal dos artistas, os projetos governamentais, entre outros.Também nos jornais diários podem ser encontradas, ainda que deforma um pouco irregular, as grades das programações das emissoras.A essas informações foram somadas as encontradas nas pesquisasrealizadas pelo IBOPE desde 1943 até 1959, especialmente naspertencentes aos volumes das Pesquisas Especiais, que eram realizadaspor todo o país. Nos depoimentos realizados / depositados no Museuda Imagem e do Som – RJ e no Centro Cultural São Paulo e noslivros de memória e entrevistas de profissionais da área decomunicação, podem ser retiradas informações sempre com o cuidadometodológico que requer o trabalho com relatos orais e memórias.

Enfim, se por um lado as pesquisas no campo da história, quetêm como principal objeto o rádio, são extremamente trabalhosas ecomplexas, elas são igualmente gratificantes, nos permitindo desvelaroutras faces da realidade social oculta nas tradicionais fontes oficiais.

comercial, o sucesso dos programas era determinante para a própriasobrevivência da emissora. O sucesso ou o fracasso de umprograma, a aprovação ou a rejeição de um determinado modelode programação pelo público ouvinte é, em geral, medida pelaspesquisas de audiência9, podendo manifestar-se, também, atravésde cartas e telefonemas que eram os canais de comunicaçãodisponíveis na época entre o público e as emissoras de rádio.

O rádio construiu uma sólida relação de credibilidade como público ouvinte. Ao conteúdo veiculado passou a ser atribuídoum caráter de verdade. A reconstituição de parte do processo daentrada e da integração da sociedade brasileira na chamada erada comunicação de massa, na qual os mass media se tornaramcanais e lugares privilegiados de informação, da formação de umaopinião pública, pode e deve ser o objeto de novos estudos.

Com a complexificação tecnológica das sociedades, oshomens multiplicaram e, ao mesmo tempo, fragmentaram osregistros de suas trajetórias. Os mass media passaram a ocuparum lugar de destaque no processo de produção cultural, na criaçãode códigos de identificação entre as pessoas e no estabelecimentode normas de comportamento. Reafirmo que os meios decomunicação de massa devem se tornar objeto de estudo para oshistoriadores. E mais do que isso, que também os conteúdos poreles veiculados são fonte de elucidação de questões para as quaisas fontes tradicionalmente consagradas não trazem respostas,como por exemplo na aparição dos “fenômenos de popularidade”,na da ampliação do “consumo cultural” e na da própria constituiçãode uma sociedade de consumo de base urbano-industrial.

A inexistência de um centro de documentação ou arquivospúblicos ou particulares que reúnam informações sobre o setorradiofônico brasileiro, faz com que parte significativa dasinformações tenha que ser obtida através das colunas sobre rádio,publicadas na imprensa diária. No caso das décadas de 1940 e1950 temos, por exemplo, o Diário de Notícias, A Noite, AManhã, O Globo e o Diário da Noite. Também podem serconsultadas revistas especializadas, tais como a Revista do Rádioe a Radiolândia, os diversos volumes do Anuário do Rádio, asrevistas Publicidade e Negócios e Propaganda, A Noite

91Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200790 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

NOTAS

1 A manutenção de artistas exclusivos sob contrato ainda não era umaprática na época.2 Hobsbawn, E. e Ranger. T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1984. p. 93 Horkheimer, M. e Adorno, Theodor W. A Indústria Cultural: OIluminismo como mistificação de Massas. In: Costa Lima, Luiz (org).Teoria de Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 1990. – Esta é umadas traduções em português do artigo.4 Podemos citar aqui o caso do samba, que de manifestação proibidapela polícia, invadiu salões, ganhou orquestração e se transformou emsímbolo da nacionalidade.5 O conceito de campo aqui utilizado é extraído da obra de PierreBourdieu.6 A publicação do original em francês data de 1988.7 Ver: Lenharo, Alcir. Sacralização da política. Campinas, Papirus,1986.; Gomes, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio deJaneiro: Vértice-IUPERJ, 1988. ; Sodré, Nelson Werneck. Síntese deHistória da Cultura Brasileira. São Paulo: Difel, 1982.8 Tota, Antonio Pedro. A locomotiva no ar: Rádio e modernidade emSão Paulo - 1924-1934. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/PW, 1990. p. 439 O IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística foicriado em 1942 em São Paulo e em 1943 no Rio de Janeiro, com oobjetivo principal de pesquisar audiência radiofônica.

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93Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200792 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

O CORPO ENTRE A LINGUAGEM E O SILÊNCIO: OCASO NIETZSCHE

Gabriel Giannattasio∗

Resumo:

Tomando o corpo como uma categoria chave dopensamento, procura-se observar o modo como ele– o corpo – passa a operar na filosofia nietzscheana.Ao mesmo tempo em que se avalia os desdobramen-tos, que a emergência do corpo opera, nas articulaçõesentre a linguagem e o silêncio. A partir destas considera-ções iniciais, toma-se, o chamado período deliranteda biografia de Nietzsche (1889-1900), não mais comoum momento circunstancial a ser esquecido, mas,como uma – dentre tantas perspectivas – manifestaçãoplena de sua obra e de seu ‘tornar-se o que se é’.

Palavras-chave: História do pensamento, Nietzsche, corpo,linguagem e silêncio.

Abstract:

Taking the body as a key category of the thought, it isintended to observe the way it starts to perform in thenietzschean philosophy. The developments that theemergence of the body operates in the articulationsbetween language and silence are also evaluated. Basedon these initial considerations, the so-called deliriousperiod of Nietzsche’s existence (1889-1900) is takennot as a circumstantial moment to be forgotten, butas – among so many perspectives – a full manifestationof his work and his ‘becoming what one really is’.

Key words: History of thought, Nietzsche, body, language and silence.

∗ Professor da Universidade Estadual de Londrina (PR). Doutoradoem História pela Universidade Federal do Paraná, UFPR. Pós-Doutorado pela Université de Provence (Aix-Marseille I), UP, França

95Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200794 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

Se, como aponta Sloterdijk, constitui uma tendência dahistória cultural do Ocidente o tensionamento entre, por um lado,as forças civilizatórias de amansamento e domesticação e, poroutro, as técnicas de aprimoramento e criação seletiva do homem, ohumanismo – com seu projeto de amansar e domesticar este homempela via da educação – estaria superado diante das novas perspectivasque se abrem através das antropotécnicas contemporâneas.

E, segundo Sloterdijk, a crise do humanismo está aberta,em função da incapacidade deste último de sustentar,contemporâneamente, o projeto de domesticação do homematravés, seja da educação, seja da linguagem. As chamadasantropotécnicas – projeto que nasce a partir do cruzamento entregenética e educação – apresentam-se no horizonte cultural doocidente como o instrumento mais adequado para esta tarefa deamansamento do homem. E, os investimentos que a ciênciacontemporânea tem depositado neste projeto são inquestionáveis.Ainda assim, podemos afirmar que está em curso a mais profundacrise do humanismo que se expressa através da difícil sustentaçãode uma compreensão espiritual do homem.

Retornemos à questão formulada por Spinoza, para o qualnós não sabemos o que pode um corpo. Neste sentido, Giacóiaafirma que jamais saberemos, pois o corpo ocupa um lugar superiorao da consciência, do espírito e da alma. O corpo é, nas palavrasdele, ominoso, o que nos leva a tomá-lo sob a forma do agorento,nefasto, detestável e paradoxal. Ainda assim, é a única expressãodo real que nos constitui.

É no corpo que testemunhamos os inexoráveis traços, vestígiose marcas do tempo. Ele se transformou, também, no campo de batalhaentre o homem e sua finitude, bem como, entre a cultura e odeterminismo biológico (Araújo Junior:2006). Uma pluralidade desaberes foram chamados a desempenhar seu papel neste ‘front’, amedicina, a estética, a farmacêutica, a psicanálise, a educação física,cada qual contribuindo com o seu quinhão para fazer do corpo umsuporte inexpressivo do tempo: um Dorian Gray que, para além dasagruras da vida, seja capaz de manter todo seu frescor físico.

Se muitas, dentre as atuais formas de saber, dedicam-se àdecifrar esta que é uma das mais importantes questões perenes

O corpo: tema perene na história do pensamento.

O corpo é um dos problemas perenes na história dopensamento. E, ao longo do tempo, o homem dedicou-lhediferentes lugares e distintas funções: a ele se vinculam, porexemplo, todas as formas de ascetismo, a querela nas relaçõesentre matéria e espírito e as dimensões da cultura e da lin-guagem. Contemporaneamente, o conjunto dos saberes criadospelo homem concede-lhe um lugar de destaque na história dopensamento, pois, nele pode estar guardada a chave para osmistérios da vida.

Há, entretanto, capítulos à parte no interior desta longevidadehistórica do corpo. Capítulos que constituem uma espécie dearqueologia – camadas sedimentadas, mas que se comunicam pelassuas fissuras e em suas zonas fronteiriças – e que podem serobservados, tanto nos seus vasos comunicantes, quanto na suasingularidade. A filosofia nietzscheana é um destes capítulos e oque se pretende reconhecer aqui são as contribuições deste pensar,não só para a história do corpo no Ocidente, mas, também, paraum diagnóstico da euforia científica de nosso tempo.

Somos testemunhos, ainda uma vez, de um estado deintensificação das ilusões, movido pelas novas possibilidades que aengenharia genética e a micro-biologia contemporâneas anunciam(Giannattasio:2004). O corpo, ao longo da história humana, foi umaespécie de espectro, ora posto em evidencia, ora estigmatizado. Foilido, em alguns momentos, como a fortuna, em outros, como a desgraçaque devíamos suportar. Objeto da filosofia, da teologia, da história eda ciência, não cansou de assombrar e desafiar todas as formasanunciadas de sua domesticação. O fenômeno com o qual nosdeparamos contemporaneamente, nada é que o mais recente esforçoformulado pelo conhecimento humano para capturá-lo (Sibilia:2003).

À clássica pergunta ‘o que pode o corpo’, apresentaram-seas mais variadas respostas. O ocidente moderno, em particular,oscilou entre dar uma resposta que leva em consideração as forçasacumuladas pela cultura e os instrumentos de uma sociedadecivilizada, e/ou oferecer, ao dilema, as técnicas de aprimoramentoe melhoramento das raças.

97Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200796 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

Ascetismo, s.m. (teol.) Moral fundada no desprezo do corpoe das sensações físicas.

Asceta, s.m. ou f. Pessoa devota que se dedica inteiramenteaos exercícios espirituais, mortificando o corpo3 .

Pensar, portanto, na possibilidade da existência de moraisque ataquem o ascetismo significa pensar na expressão de umparadoxo ou numa contradição dos termos. Digamos, logo departida, toda moralidade funda-se na ausência ou, para usar umaexpressão de minha preferência, na presença mitigada do corpo.

Diríamos, inicialmente, que o universo do ascetismo éconstituído por uma pluralidade de possibilidades, cada qual dandoum sentido ou um significado particular ao conceito. Teríamos,assim, um ascetismo religioso, um ascetismo filosófico, umascetismo psicológico, um ascetismo cultural. Sendo que todoseles pressupõem e exigem, em maior ou menor grau, a ausênciaou a negação do corpo. Deste ponto de vista, fazer a história doascetismo significa percorrer a história do corpo pelo avesso, ouse se preferir, pela sua momentânea ausência.

As práticas ascéticas têm uma longa história de gestação.Porém, trata-se de um processo nada linear, atravessado por re-significações periódicas, e que foi, permanentemente, testemunhada incômoda presença de seus críticos. Estes últimos assumiramtambém múltiplas conformações e carregam as marcas deprofundos processos de rupturas. Possivelmente, seja o períodotrágico dos gregos – refiro-me à Grécia pré-socrática – e aoRenascimento – período que entremeia os primeiros sinais da ruínaAristotélica e a ainda não anunciada aurora do naturalismo modernode Descartes, Locke e Rousseau – que se configurou como um dosmomentos históricos nos quais concebeu-se uma cultura, umpensamento e uma mítica capaz de articular, numa mesma unidadetensionada, cultura e natureza, espírito e corpo (Rosset:1989, p. 126).

Antes mesmo do socratismo-platônico e do cristianismo,teríamos no orfismo4 um momento privilegiado no processo deruptura entre alma e corpo. Apresentam-se os primeiros traços deum irreconciliável antagonismo entre os termos. A essência doorfismo traduz-se na soteriologia (Brandão:1991, p. 202). Asoteriologia inaugura uma prática fundada na ascese, ‘jejuns,

da humanidade, deve-se reconhecer que este esforço constitui-secomo uma antiga obsessão do homem. A partir deste imensotrabalho, é possível enunciar pelo menos três perspectivas distintasque, certamente, fazem-se ver no interior das várias conjunturashistóricas testemunhadas pelo homem1, a saber: um movimentode negação do corpo (desde que admitidas as suas tantas variações,pode ser nomeado de ascetismo), um movimento de afirmação dapotência explicativa do corpo2 (aqui, também, deve-se pressuporuma pluralidade de perspectivas científicas) e, por fim, ummovimento que não é, nem de negação, nem de afirmação de suapotência explicativa, mas que o toma pelo que ele é, última,irredutível, perene e inexplicável presença do animal no humano(poderíamos chamá-lo de uma filosofia trágica do corpo).

Não seria estranho se começássemos oferecendo asdefinições mais usuais dos termos, inclusive para observamos comoelas se encontram encarnadas secularmente na mentalidade dohomem ordinário. Já que corpo e ascetismo são valores que, nahistória do pensamento, assumiram uma relação de negação ecomplementariedade, oferecemos os sentidos de ambos:

Corpo: O substantivo corpo vem do latim corpus e corporis.Dagognet (apud Greiner:2005) explica que corpus sempre designouo corpo morto, o cadáver em oposição à alma ou anima. Já natradição não ocidental, como a indo-iraniana, a palavra corpo teriauma raiz em krp que indicaria a forma, entretanto, diferentementeda matriz grega que usou soma para designar o corpo morto edemas para o corpo vivo, esta não estabelece tal distinção.

Teríamos, na conceituação grega, a gestação de toda atradição ocidental que se habituou a separar o material e o mental,o corpo morto e o corpo vivo. A noção de corpo pode estarassociada, ainda, à idéia de sensível, palpável, visível, dotado deforma; em oposição ao inteligível, intocável, etéreo e supra-sensível.

Ascetismo. S.m. 1. Prática da ascese. 2. Doutrina queconsidera a ascese como o essencial da vida moral. 3. Moral quedesvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem.

Ascese. S.f. Exercício prático que leva à efetiva realizaçãoda virtude, à plenitude da vida moral.

99Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 200798 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007

lado defendemo-nos contra uma vaidade que aquitambém quereria levantar a voz: como se o homemtivesse sido o grande pensamento último daevolução animal. Não é de modo algum a coroa dacriação; cada ser encontra-se junto a ele no mesmograu de perfeição... E, pretendendo isto, vamosdemasiado longe; o homem é, relativamente, o maisdeficiente dos animais, o mais enfermiço, o que seextraviou dos seus instintos mais perigosamente, certode que, com tudo isto, é também o animal ‘maisinteressante!’. – No que respeita aos animais,Descartes foi o primeiro que teve o admirávelatrevimento de considerar o homem como‘máquina’: toda a nossa fisiologia se esforça emdemonstrar esta proposição. (MAI/HHI. ‘Fenômenoe coisa em si’) (Nietzsche:2000, p. 25)

A filosofia nietzscheana apresenta-se como negação datradicional separação, realizada pelo pensamento ocidental, entrecorpo e espírito. Mas, ao elaborar esta negação, Nietzsche recusao idealismo espiritual, que submete o corpo ao espírito, assim como,o mecanicismo biológico e explicativo do corpo, o que significadizer, toda a tradição de leitura do corpo como organismo funcional,tomado como resultado de relações de causa e conseqüência(Blondel:1986, p.280).

A primeira sinalização de mudança no método é indicativa.O humanismo inaugura-se como um movimento marcado pelamodéstia, pois, o homem não só não descende da nobre estirpedos deuses, como também, não é, na sua origem, superior aosanimais – tese que se consagra com o darwinismo no século XIX.Movimento, portanto, de retorno do homem ao originário reino dosanimais e de re-integração à natureza – se bem que, sabemos,não permanecemos integrados a ela por muito tempo, nem por uminstante. Agora, é a consciência que o torna senhor do reino: aquise encontram conjugadas a astúcia do homem como animalconhecedor, com a potencial possibilidade aberta de este seconstituir num manipulador de si. Este segundo movimento teráuma trajetória próspera na modernidade, substituindo deus, o espírito

abstenção de carnes e de ovos, ou, por vezes, de qualquer alimento,castidade no casamento ou até mesmo castidade absoluta, [...]meditação, cânticos, austeridade no vestir e no falar ’(Brandão:1991, p. 208).

O orfismo, portanto, é um movimento do pensamento quemarca a expressão do ascetismo nos mais diferentes momentosda história do pensamento ocidental: nos pitagóricos, na filosofiasocrático-platônica e aristotélica, no judaísmo-cristianismo.

O corpo: Nietzsche e o materialismo moderno.O materialismo moderno forneceu uma outra dimensão ao

corpo, realizando o grande trabalho no sentido de incorporá-lo aosaber e, mais que isso, em transformá-lo numa categoria explicativados mistérios. Este grande esforço do pensamento moderno éprofundamente debitário de precursores como Lucrécio5 e osatomistas (Wolff:2005). Toda a natureza, segundo o filósofo e poetaromano, é constituída por corpos e vazio, nada mais! Os corpossão distintos, sua aparência é múltipla, as qualidades são plurais,mas todos são constituídos pela mesma matéria: uma infinidadede partículas minúsculas e fisicamente indivisíveis. Os materialistasatomistas espiritualizam o corpo e sacralizam o átomo como omais novo sucedâneo laico da alma.

Esta vertente do pensamento irá se desdobrar namodernidade e se re-apropriará do corpo de forma duplamenteambígua. Se, de um lado, o materialismo re-propõe e reata asrelações entre corpo e pensamento, por outro, alimenta a ilusão deque na matéria encontraríamos a grande matriz explicativa dosmistérios. O corpo seria, então, nossa mais íntima maquinaria e ohomem, seu mais novo arquiteto. Mas, para além desta completudeharmônica, o homem reinventará seu paroxismo, um misto demodéstia e arrogância:

Nós mudamos de método. Tornamo-nos maismodestos em todas as coisas. Já não fazemosdescender o homem do espírito, da divindade,colocamo-lo entre os animais. No nosso conceito éo animal mais forte, porque é o mais astuto: a suaespiritualidade é uma conseqüência disso. Por outro

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Por uma filosofia trágica do corpo.

Uma filosofia trágica do corpo indica que ele não será tomado,nem numa perspectiva de redução do corpo ao espírito, alma, consciên-cia ou outra entidade metafísica qualquer, e nem como categoria expli-cativa da natureza, o que significaria submeter a natureza e ele próprioa um sujeito cognoscente, ao homem do conhecimento científico.

Tomo de empréstimo alguns argumentos apresentados porClément Rosset em dois de seus trabalhos, o primeiro, O princípiode crueldade (2002) e, o segundo, A anti-natureza, elementospara uma filosofia trágica (1989). O corpo será tomado, tambémaqui, como uma máscara da natureza.

Em seu texto, nascido de sua tese de doutorado e intituladoA anti-natureza, elementos para uma filosofia trágica,Rosset organiza uma espécie de duplo movimento de idéias apartir do tema natureza:

1. Num primeiro movimento – clássico e queconquistou uma certa hegemonia na história dopensamento ocidental – o conceito de natureza foiforjado a partir dos interesses de uma ciênciaprescritiva e normativa que contribuiu para a criaçãoda ilusão de que as formas de artifício, dentre elas alinguagem, seriam capazes de decifrar o mundosensível. Que a cópia era expressão da coisa, que arepresentação era expressão do representado. De que,portanto, o conceito de natureza seria capaz de traduzirfielmente o mundo.

2. Num segundo movimento – marginal e que sócircunstancialmente conquistou ares hegemônicos –a natureza foi tomada como potência inapreensívelpelo homem. Nesta tradição do pensamento, por maisque a natureza seja o objeto da ciência, a representaçãoconstruída é tão somente uma pálida e desfiguradalembrança daquilo que insiste em nos escapar. Nascia,assim, a idéia de que todo o conhecimento nada maisé que artifício, de que, portanto, a própria ciênciadeveria Ter consciência de seu grau de ilusão.

e a metafísica pelo homem com a sua consciência, seus artefatose a ciência. O homem se produz, portanto, fazendo-se um animalsuperior aos animais: um animal decifrador.

Nietzsche pontua, o que faz a grandeza do homem é tambéma sua ruína, e isto, na perspectiva do pensador alemão, torna ohomem o mais débil e, contemporaneamente, o mais interessantedos animais, mas, ainda assim, um animal como outro qualquer.

Em seguida, Nietzsche afirma a grandeza de Descartes,o primeiro – quem sabe – a reconhecer o homem comomáquina, o que significa dizer, a estabelecer um maior e maisestreito parentesco entre a consciência e a fisiologia. O que atradição do pensamento filosófico ocidental fez destaaproximação é uma outra história:

Para praticar a fisiologia com boa consciência, épreciso Ter presente que os órgãos do sentido nãosão fenômenos no sentido da filosofia idealista:como tais eles não poderiam ser causas! Logo, osensualismo ao menos como hipótese reguladora,se não como princípio heurístico. – Como? E outrosdizem até que o mundo exterior seria obra dos nossosórgãos! Mas então seria o nosso corpo, como partedesse mundo exterior, obra dos nossos órgãos! Masentão seriam os nossos órgãos mesmos – obra denossos órgãos! Esta é, a meu ver, uma radicalreductio ad absurdum [redução ao absurdo]:supondo que o conceito de causa sui [causa em simesmo] seja algo radicalmente absurdo. Emconseqüência, o mundo exterior não é obra de nossosórgãos - ? (JGB/BM § 16) (Nietzsche:1997, p. 21)

Nietzsche volta-se, aqui, para uma das manifestações domaterialismo moderno, o sensualismo, e toca num pontofundamental para a formulação de uma concepção trágica docorpo. Não só o mundo exterior, o real, não deriva de nossos órgãos,como ainda, o nosso corpo mesmo não possui nenhum domíniosobre si mesmo.

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Nietzsche, o heróico asceta: o santo, o filósofo e o poeta.

Num primeiro movimento da filosofia nietzscheana, o dachamada metafísica do artista, a ascese é evidente e a linguagem,ainda que não a linguagem conceitual e representativa, mas, apoética, metafórica e artística, ocupará o lugar da ausência docorpo8. Mesmo quando a consciência se dá conta de seu alcancede superfície e se reconhece enquanto linguagem artística, aindaassim, o corpo não está lá, ou se está, apresenta-se transfigurado,transtornado, transmutado e fantasiado. Esta idéia levará Nietzschea se interrogar sobre a força genealógica da ascese e se ela não écondição para a constituição do homem, elemento, portanto,formador do processo de ominização (Rabelo:2002). A partir destaperspectiva não teria havido, na história do homem, um únicomomento sequer no qual o ascetismo não tenha se feito presente.Mesmo na sua expressão humana mais elevada, nobre, guerreirae aristocrática – como na Grécia de Homero e Arcaica –encontraríamos, lá também, uma incontornável necessidade dejustificar a existência:

O grego conheceu e sentiu os temores e os horroresdo existir: para que lhe fosse possível de algum modoviver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, aresplendente criação onírica dos deuses olímpicos.[...] Para poderem viver, tiveram os gregos, levadospela mais profunda necessidade, de criar tais deuses,cujo advento devemos assim de fato nos representar,de modo que, da primitiva teogonia titânica dosterrores, se desenvolvesse, em morosas transições,a teogonia olímpica do júbilo, por meio do impulsoda beleza – como rosas a desabrochar da moitaespinhosa. De que outra maneira poderia aquele povotão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo,tão singularmente apto ao sofrimento, suportar aexistência, se esta, banhada de uma glória mais alta,não lhe fosse mostrada em suas divindades? (GT/NT § 3)(1992, p.36/7)

Se o corpo é uma das máscaras da natureza, o que pode, então,o corpo? Se, em muitas das dimensões do ascetismo, tentou-se apartaro saber do mundo empírico, sensível – pois se reconhecia nele ummundo do equívoco e do engano – a ciência moderna – e aí oreconhecimento de mérito da filosofia cartesiana – re-introduziu ocorpo e a fisiologia, garantindo-lhes legitimidade investigativa.

Afirmar, entretanto, que o ato de conhecer é um ato,fundamentalmente, de criação e não de reapresentação, nãosignifica dizer que o real – leia-se aí natureza e corpo – seja umadimensão que se ofereça ao trabalho do homem como criador.

O que, ainda segundo Rosset(2002), caracteriza o real? Hádois importantes valores que o constituem, ele é incognoscível e cruel.A incognoscibilidade do real quer aqui traduzir duas idéias, a primeira, queele não se deixa capturar – princípio tão antigo quanto os gregos: a verda-deira natureza das coisas gosta de ocultar-se – a Segunda, que ofato do real ser escorregadio e inapreensível não significa dizer queele é menos real, ou ilusório, ou ainda, sujeito a dominação do homem.

Ainda, o real é cruel, pois, por maiores que sejam os esforçoslançados pelo homem – esforços para edulcorar, maquiar, mascarar,inventar, criar, idealizar – ele é incapaz de transcendê-lo. Portanto,ainda que imprevisível e incognoscível, o real é uma força presente,imanente e incontornável, e isto lhe confere uma fisionomia cruel.

Este é, certamente, um dos maiores dramas humanos. Aimprevisibilidade, a incerteza! Não é contra isto tudo que o homemse debate há milênios? O que nos permitiria afirmar que não hánada de mais trágico do que viver. E o corpo é, inegavelmente, amanifestação mais íntima e irrecusável do real. O corpo é, assim, umprincípio do real, uma máscara de Dionísio, a expressão do que deveriaser a dimensão mais ‘natural’ do homem. E, ainda assim, ele é umestranho para nós mesmos e nós contribuímos, inegavelmente, notrabalho de torná-lo nossa mais íntima e antípoda sombra.

Os momentos ou movimentos históricos que mais se abrirama estes princípios de incerteza foram, também, aqueles que melhorexpuseram este homem diante de sua frágil e pálida imagem: aGrécia pré-socrática, os movimentos de pensamento pré-cartesiano,as vanguardas artísticas modernas6 e o nascimento do homemproblemático do início do século XX7.

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nenhuma meta melhor para a vida do que perecerjunto ao que é grandioso e impossível, animaemagnae prodigus9 (HL/Co. Ext. II § 9)(Nietzsche:2003, p. 83/4).

E, se há algo de grandioso no homem – que o dignifica e odistingue de sua natureza – esta grandeza está intimamente ligadaà capacidade de pôr-se a questão: para que estas aí? Questãoenobrecedora e, ao mesmo tempo, indicativa de sua ‘doença’, pois,a partir dela, a vida passa a ser avaliada pelo seu sentido.

Contudo, é preciso que se diga, Não é a dor que passa adesempenhar um papel inédito no pensamento nietzscheano, ouque o sofrimento vem ocupar um espaço inequívoco na produçãosimbólica do homem. A dor foi sempre o pano de fundo de toda acriação, ou seja, ela já ocupava o centro da filosofia trágica deNietzsche. E, se ele retorna à cultura Grega arcaica, é por entenderque lá, melhor do que em qualquer outra época, o homem soubedar um sentido artístico e cultural ao seu sofrimento.

Retomar as passagens, ao longo dos textos nietzscheanos,desde Da utilidade e desvantagem da história para a vida atéa Genealogia da moral – nas quais memória e esquecimentoestão intimamente associados ao processo de enfraquecimentodo animal em homem – permite-nos identificar os múltiplos sentidosda ascese ao niilismo. A história aparecerá aqui como instrumentode justificação, construção específica de uma linguagem orientadana perspectiva de dar um sentido, uma legitimidade à memória.

Corpo: consciência, fisiologia e filosofia em Nietzsche.

No Nascimento da tragédia as palavras corpo e ascetismonão aparecem citadas uma única vez. Isto confirma que, no tocantea este período, as relações entre pensamento e corpo não seconstituem em temas irrecusáveis da filosofia nietzschenana. Serásó com o início da Segunda fase de seu pensamento, que osprimeiros indícios da relevância e pertinência do tema começam adar seus primeiros sinais. Do Humano, demasiado humano,passando por Aurora, o tema vai adquirindo importância até chegar

Notem. Estamos tratando, aqui, da vida que necessita serjustificada. Problema central do processo de ominização. Quemsabe não resida aí o motivo que levou o filósofo alemão,diferentemente do procedimento adotado por uma história daascese, a não reconhecer no orfismo um momento inaugural dasua gestação? O ascetismo decorreria, pensava Nietzsche, danecessidade de dar um sentido à vida diante do ‘non sense’ e doabsurdo que era o viver em sofrimento:

Se desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, oanimal homem, não teve até agora sentido algum.Sua existência sobre a terra não possuía finalidade:‘para que o homem?’ – era uma pergunta semresposta; faltava a vontade de homem e de terra;por trás de cada grande destino humano soava, comoum refrão, um ainda maior ‘Em vão!’ O idealascético significava precisamente isto: que algofaltava, que uma monstruosa lacuna circundava ohomem – ele não sabia justificar, explicar, afirmar asi mesmo, ele sofria do problema do seu sentido(GM/GM. III, § 28) (Nietzsche:1998, p. 148/9)

Afinal, para que sofrer? O objeto, portanto, não era osofrimento, mas o seu sentido. Para fazer da vida um fardosuportável, dando um para quê ao sofrimento, é que o ascetismofoi se constituindo, apresentando-se, também, como uma respostaao niilismo. Já na Segunda Extemporânea, Nietzsche afirmaria:

Porque o mundo está aí, porque a humanidade estáaí, não deve por enquanto, absolutamente nospreocupar, pois isso seria como se quiséssemosfazer uma piada conosco mesmos: pois a presunçãodo pequeno verme humano é agora a coisa maisdivertida e mais hilariante sobre o palco terrestre.Mas, para que tu, indivíduo, estás aí, eu te perguntoe nenhum de vós nada diz, para justificar, mesmoque a posteriori, o sentido da tua existência, de talmodo que tu mesmo antevejas uma meta, um alvo,um ‘para isso’, um elevado e nobre – não sei de

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O preconceito do ‘puro espírito’. – Em toda a parteem que predominou a doutrina da puraespiritualidade, ela destruiu, com seus excessos, aforça nervosa: ela ensinou a menosprezar,negligenciar ou atormentar o corpo, a desprezar emortificar o próprio homem por causa de seusinstintos; ela gerou almas ensombrecidas, tensas,oprimidas – que acreditavam, além disso, conhecera causa do seu sentimento de miséria e poder talvezeliminá-lo! “Ela tem de estar no corpo! Ela aindafloresce em demasia!” – desse modo concluíram,enquanto, na verdade, ele elevava protestos eprotestos, com suas dores, contra o seu perpétuoescarnecimento. Enfim, um supernervosismo gerale crônico foi a sina daqueles virtuosos espíritospuros: conheceram o prazer apenas na forma doêxtase e de outros precursores da loucura – e o seusistema atingiu o ápice quando tomou o êxtase comoobjetivo maior da vida e como gabarito paracondenar tudo terreno. (M/A I, ‘O preconceito dopuro espírito’) (Nietzsche:2004, p. 37/8)

A distância tomada em relação à filosofia de Schopenhauerfaz-se evidente, ao mesmo tempo em que indica o processo dedemonização do corpo, ou em outras palavras, demonização deuma parte significativa da vida:

[...]. Em toda moral ascética o homem venera umaparte de si como Deus, e para isso necessitademonizar a parte restante. (MAI/HHI § 137)(Nietzsche:2000, p. 105/6).

Sabe-se que a fantasia sexual é moderada ou quasesuprimida pela regularidade das relações sexuais, einversamente se torna desenfreada e dissoluta coma abstinência ou a desordem nessas relações. Afantasia de muitos santos cristãos foi incomumenteobscena; graças à teoria de que esses apetites eramverdadeiros demônios que lhes assolavam o íntimo,

a se constituir em reflexão de abertura da Gaia Ciência. Nesta,Nietzsche fala da gratidão do convalescente, afinal, todo o livroexpressa o divertimento após um longo e demorado processo deprivação e impotência. A doença a que se refere Nietzsche temum nome, ela se chama romantismo. Não casualmente, o momentodeste reencontro nietzscheano com sua grande saúde é também omomento no qual o corpo passa a assumir papel fundamental em seupensamento. Mais que isto, é como se Nietzsche tornasse conscienteas profundas relações entre saúde e pensamento filosófico,identificando sua obra de juventude a uma espécie declinante desaúde, em analogia a este novo estado inaugural que se abre. Apergunta decisiva que o filósofo apresenta, deverá ser, a partir deagora: ‘foi a doença que inspirou o filósofo?’. Assim, como queminvestiga seu próprio movimento filosófico, Nietzsche especula:

Num homem são as deficiências que filosofam, numoutro as riquezas e forças. O primeiro necessita desua filosofia, seja como apoio, tranquilização,medicamento, redenção, elevação, alheamento desi; no segundo ela é apenas um formoso luxo, nomelhor dos casos a volúpia de uma triunfantegratidão, que afinal tem de se inscrever, commaiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos(FW/GC § 2) (Nietzsche:2001, p. 10/11).

Nietzsche está, sem dúvida alguma, pensando nos seusprimeiros textos filosóficos e no romantismo como ‘pensamentosde um convalescente’. Mais que isto, o corpo passa a ser tomadocomo crivo avaliador do pensamento, pois, o filósofo alemão seinterroga, ‘a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas umainterpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo’ (FW/GC § 2) (Nietzsche:2001, p. 12).

Vânia Dutra de Azeredo (1999) afirma que só no livroAurora aparece claramente o argumento nietzscheano que associaintrospecção excessiva do ‘puro espírito’ e degenerescênciaorgânica, ainda que de uma forma embrionária. Afinal, segundo aautora, é no terceiro período da obra nietzscheana10 que a fisiologiapassa a ser concebida como força produtiva de valores:

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determinação que opera o conhecimento moderno, desejandosubmeter, por exemplo, os estados oníricos aos da vigília.

A relação, então, entre corpo e consciência pode sertraduzida pela relação entre multiplicidade e unidade:

Viver e inventar. – Por mais longe que alguém leveseu autoconhecimento, nada pode ser maisincompleto do que sua imagem da totalidade dosimpulsos que constituem seu ser. (M/A II, ‘Viver einventar’) (Nietzsche:2004, p. 91)

A introdução do corpo na filosofia nietzscheana exige denós um permanente estado de alerta e atenção. Pois, a entradatriunfal dele na cena filosófica constitui-se numa espécie de limiteno esforço de transformação dos nossos instintos em animaisdomésticos. Afinal, é pela consciência que até aqui se desejouestabelecer um controle do animal, seja sobre os outros animais,seja sobre si mesmo. É contra este projeto de domínio ou de auto-domínio que o corpo conspira11.

[...] as leis de sua alimentação – Nietzsche se refere àalimentação dos impulsos – permanecem inteiramentedesconhecidas para esse alguém. [...] Nossasexperiências, como disse, são todas, neste sentido,meios de alimentação, mas distribuídos com mão cega,sem saber quem passa fome e quem está saciado.[...]; se um indivíduo corre, descansa, lê, irrita-se,luta, fala ou exulta, o impulso como que tateia, emsua sede, todo estado em que se acha ele, e, se alinada encontra para si em geral, tem de esperar econtinuar sedento: ainda um momento e ele se debilita,mais alguns dias ou meses de não satisfação e elemurcha, como uma planta sem chuva. Essa crueldadedo acaso talvez saltasse aos olhos de maneira aindamais viva se todos os impulsos fossem radicais comoa fome, que não se satisfaz com comida sonhada;mas a maioria dos impulsos, sobretudo os assimchamados ‘morais’, fazem justamente isto – se forpermitida a minha conjectura de que nossos sonhos

não se sentiam muito responsáveis por eles; a estesentimento devemos a franqueza tão instrutiva desuas confissões. [...], a sensualidade teve de sercada vez mais difamada e estigmatizada, [...] (MAI/HHI § 141) (Nietzsche:2000, p. 108)

Aqui se apresenta a sugestiva indicação de se ler adevassidão como criação da santidade e o ascetismo como sombraperene de uma sensualidade extraviada.

O momento em que o corpo passa a desempenhar um papeldecisivo na filosofia nietzscheana, coincide com o momento de viragemde seu pensamento. Já não mais falamos de uma ‘metafísica de artista’.Inicia-se, aí, uma reversão dos valores e, mais que isto, das relaçõesde dominação entre as forças apolíneas e dionisíacas.

Como, então, o corpo se apresenta ao pensamentonietzscheano? O corpo situa-se como ponto de encontro do caosoriginal com a consciência, suporte constitutivo do caosmos. Ocorpo seria, portanto, fisiologia interpretante, território denegociação entre o caos absoluto do mundo com a simplificaçãounitária do intelecto. Mas a fisiologia interpretante não é, ainda, aconsciência. O homem, tal como todas as criaturas vivas, pensasem parar, mas, ele não o sabe. O pensamento que se tornaconsciente transforma a fisiologia interpretante na mais grosseirae superficial expressão do homem, nasce assim a linguagem e ossignos de comunicação (Cf. GM/GC. V, ‘Do gênio da espécie’)(Niezsche:2001, p. 247). Há um fosso que aparta o corpo quepensa do pensamento consciente, mas estes, em Nietzsche, nãoconstituem as dimensões daquilo que se tornará consciente einconsciente. O corpo é o conjunto, a totalidade das percepções,no interior das quais a consciência representa uma pequena parte.O corpo é um mundo subterrâneo de sensações, percepções,pulsões e instintos que na luta interior, constituem a multiplicidadede estados do ‘eu’. Ao se constituir numa expressão rica de sentidose significados, muito mais extensivo que a consciência, o corponão se faz dominar, pois é fugidio, avesso às formas de dominação.Submeter o corpo à consciência significaria o mesmo que submetê-lo unicamente ao estômago. É no interior destas relações de

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de linguagem adquirida para designar certos estímulosnervosos? que tudo isso que chamamos deconsciência é um comentário, mais ou menosfantástico, sobre um texto não sabido, talvez não‘sabível’, porém sentido? (M/A II, ‘Viver e inventar’)(Nietzsche:2004, p. 91/2/3)

A relação entre consciência – tomada aqui como o campoconstitutivo do domínio, pela linguagem, dos impulsos – e o corpo –entendido como território da manifestação e circulação das energiasvitais – manifesta-se obediente às formas de articulação entre o unoe o múltiplo. Há, entretanto, entre estes dois extremos, a formação deoutros territórios interpretantes. Sendo a consciência o mais toscoinstrumento de interpretação do corpo, na medida em que, ela aboli aluta, o conflito e a disputa que se dá em nossa fisiologia em nome doconsenso entre as partes. Assim, afirma o filósofo alemão, os estadooníricos são interpretantes mais autorizados de nosso corpoexatamente porque não nos impõe a tirania do uno. A consciência noseu árduo trabalho de tradução da experiência vital em linguagemcomunicável, expressa-se através de sons, signos, sentidos e,finalmente, em conceitos. O corpo, indomado, indomável, na sua mais‘enlouquecida’ profusão de sentidos, impõe-se como campodesorganizador. Nesta longa agonística, o corpo oferece suporte aotrabalho de interpretação, ainda que ele mesmo não reconheça ossentidos que lhe são debitados:

– Tomemos uma experiência trivial. Suponhamos queum dia, passando pelo mercado, notamos que alguémri de nós: conforme esse ou aquele impulso estiver noauge em nós, este acontecimento significará isso ouaquilo para nós – e, conforme o tipo de pessoa quesomos, será um acontecimento bastante diferente.Uma pessoa o toma como uma gota de chuva, outrao afasta de si como um inseto, outra vê aí um motivopara brigar, outra examina sua própria vestimenta, paraver se algo nela dá ensejo ao riso, outra reflete sobreo ridículo em si, outra sente-se bem por havercontribuído, sem o querer, para a alegria e luz de solque há no mundo – e em cada caso houve a satisfação

têm precisamente o valor e o sentido de, até certograu, compensar a casual ausência de ‘alimentação’durante o dia. Por que o sonho de ontem foi pleno deternura e lágrimas, o de anteontem foi brincalhão eexuberante, um anterior foi aventureiro e de uma buscasombria e constante? Por que razão nesse desfrutobelezas indescritíveis da música, por que pairo no are vôo naquele outro, com o enlevo de uma águia, emdireção a picos distantes? Tais criações, que dãomargem e desafogo aos nossos impulsos de ternura,de humor, de aventura, ou a nosso anseio de músicae de montanhas – cada qual terá à mão seus própriosexemplos mais notáveis –: são interpretações de nossosestímulos nervosos durante o sono, interpretaçõesmuito livres, muito arbitrárias, de movimentos dosangue e das vísceras, da pressão do braço e dascobertas, dos sons do sino da torre, dos cata-ventos,dos noctívagos e outras coisas assim. Se esse texto,que em geral pouco varia de uma noite para outra, écomentado de maneira tão diversa, se a razão inventivaimagina, hoje e ontem, causas tão diversas para osmesmos estímulos nervosos: o motivo para isso estáem que o souffleur [ponto de teatro] dessa razão foihoje diferente do de ontem – um outro impulso quissatisfazer-se, ocupar-se, exercitar-se, reanimar-se,desafogar-se -, ele estava em sua maré, ontem foi avez de outro. – A vida de vigília não tem essa liberdadede interpretação que tem a vida que sonha, é menosinventiva e desenfreada – mas devo acrescentar quenossos impulsos, nas horas despertas, igualmente nãofazem senão interpretar os estímulos nervosos e,conforme suas necessidades, estabelecer as ‘causas’deles? que não há diferença essencial entre sonhos evida desperta? que, mesmo comparando estágios decultura bem diversos, a liberdade de interpretaçãodesperta, em um, não fica atrás da liberdade do outroem sonhos? que também nossos juízos e valoraçõesmorais são apenas imagens e fantasias sobre umprocesso fisiológico de nós desconhecido, uma espécie

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cosmicamente” (Nietzsche apud Safranski: 207). Sentir cosmi-camente exige, antes de mais nada, romper com a tradicionaldivisão da natureza orgânica e inorgânica: desnaturalizar a naturezae, a partir daí, naturalizar o homem. Este é o ponto de partida paraeste ‘sentir cosmicamente’.

Ou seja, se a filosofia nietzscheana libera-se de seu roman-tismo adolescente, abrindo desta forma novos territórios deexpressão do corpo no pensamento, por outro, um novo obstáculoa ele se apresenta: o eterno retorno como princípio cósmico. E‘este obstáculo’ perpetuar-se-á até o final de sua chamada ‘vidaintelectual consciente’. Na passagem do eterno retorno comoprincípio ético – presente na Segunda ConsideraçãoIntempestiva12 – para a doutrina do eterno retorno – da qualZaratustra é seu principal porta voz13 – encontramos a figura do‘insensato’. E, se é através da figura do ‘louco’ que Nietzscheanuncia a ‘morte de deus’, será através da imagem de Zaratustraque o corpo se apresenta como o lugar da ‘grande razão’:

Quero dizer a minha palavra aos desprezadores docorpo. Não devem, ao meu ver, mudar o queaprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeusao seu corpo – e, destarte, emudecer.‘Eu sou corpo e alma’ – assim fala a criança. E porque não se deveria falar como as crianças?Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: ‘Eu soutodo corpo e nada além disso; e alma é somenteuma palavra para alguma coisa no corpo’.O corpo é uma grande razão, uma multiplicidadecom um único sentido, uma guerra e uma paz, umrebanho e um pastor.Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequenarazão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequenoinstrumento e brinquedo da tua grande razão.‘Eu’ – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas aindamaior – no que não queres acreditar – é o teu corpoe a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu(Za/ZA I, ‘Dos desprezadores do corpo’)(Nietzsche:1998, p. 51).

de um impulso, seja o da irritação, o da vontade debriga, da reflexão ou da benevolência. Esse impulsoagarrou o incidente como uma presa: por quejustamente ele? Porque estava à espreita, sedento efaminto. [...] – O que são, então, nossas vivências?São muito mais aquilo que nelas pomos do que o quenelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas nãose acha nada? Que viver é inventar? (M/A II, ‘Viver einventar’) (Nietzsche:2004, p. 93)

Por fim, Blondel (1986) reconhece que, ao contrário de seperguntar o que é o corpo, deve-se perguntar o que é interpretar.Pois interpretar é quase um fundamento ontológico na filosofia deNietzsche. Maior a sua vontade de potência, maior a sua capacidadede assimilação da diferença: temos aí a primeira metáforainterpretativa, a metáfora gastroenterológica, e o corpo é tomadopela sua condição digestiva. O homem forte é capaz de digerirseus atos da mesma forma que está à altura de digerir seusalimentos. Em Nietzsche, o corpo não é uma máquina, mas umaorganização política instável, que se assenta num permanente confrontode forças que nunca encontra termo ou equilíbrio: temos aqui asegunda metáfora, a política. Todos os sentidos explicativos criadospelo homem nascem do desejo de dominar, de submeter, e cadasentido possui a sua própria perspectiva, seu fim e suas metas: assim,resumidamente, apresenta-se a terceira metáfora, a filológica.

Se há, no entanto, neste que seria o segundo período dafilosofia nietzscheana, a recusa explícita de sua metafísica anterior,seu romantismo, há também um novo impedimento à emergênciado corpo. A doutrina do eterno retorno – como princípio cosmológicoe não mais ético, da forma como tal já se fazia reconhecer, porexemplo, na Segunda Extemporânea – constitui-se numa novaforma de mitigar o corpo, na medida em que ele se vê enredadonuma inaugural metafísica: a tese materialista do eterno retorno(Cf. Safranski:2001, p. 213).

Nietzsche estava, neste momento de sua biografia intelectual,em busca de um novo paradigma de ciência. Um conhecimentonão mais perspectivista, fundado no ‘eu’, nem um conhecimentoamparado no altruísmo do ‘tu’: “Para além do ‘eu’ e ‘tu’! Sentir

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reconhecer o silêncio nietzscheano, seus onze últimos anos deexistência, como parte integrante de sua obra, não significa oferecerum valor demasiado grande ao trabalho da consciência, das formasconsagradas pela linguagem, da obra metódica e reflexiva que emtantos e tantos momentos o próprio Nietzsche suspeitava? Não significamanter intocáveis princípios que, há mais de um século, a própriateoria do conhecimento criticou: ‘onde há loucura, não há obra’15?

Para o desenvolvimento de um tal suspeição, há inúmeraspassagens da ‘obra lúcida’ do filósofo discípulo de Dioníso. Afinal,ainda que sem filosofia, sem rima e sem métrica, sem prosa e semverso, sem método e sem escrita, sem deus e sem gramática, há apluralidade de sentidos de um corpo que nos permite, à luz de seufuturo projetado, interpretar. Podemos até reconhecer em inúmerasdestas passagens a voz do ‘profeta’, ainda dominado por aqueledaimon que Cristopher Türke (1993) chamou de ‘a loucura sob odomínio e a mania da razão’:

O homem louco. – Não ouviram falar daquelehomem louco que em plena manhã acendeu umalanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritarincessantemente: ‘Procuro Deus! ProcuroDeus!’?(FW/GC III, ‘O homem louco’)(Nietzsche:2001, p.147)

É sob a máscara da insensatez que o mais terrível se anunciaao homem das trocas fáceis – o homem do mercado – e dentreestes os ateus e materialistas: – E como lá se encontrassem muitosdaqueles que não criam em Deus, ele despertou com isto umagrande gargalhada (FW/GC III, ‘O homem louco’)(Nietzsche:2001, p. 147). Pois, nem mesmo o maior dentre seusassassinos, entendeu a grandeza de seu ato:

Como conseguimos beber inteiramente o mar?Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol?Para onde se move ela agora? Para onde nosmovemos nós? Para longe de todos os sóis? Nãocaímos continuamente? Para trás, para os lados,para a frente, em todas as direções? Existem ainda

Enormes problemas apresentam-se aí! O corpo passa adesempenhar um papel chave e estratégico. A ele estará associadaa imagem da ‘grande razão’ e aquilo que o homem ocidental chamade ‘espírito’ articula-se ao corpo como uma espécie de máscaramenor. O corpo em Nietzsche é tomado como ponto de partida,reunindo a um só tempo as dimensões do uno e do múltiplo. Aconsciência, como um raio e um relâmpago, apresentar-se-ia comoum momento fugaz, uma espécie de instante diante da eternidade.

Nietzsche opera uma radical mudança de perspectiva naforma como o cânone tradicional tratou, no ocidente, as relaçõesentre corpo e espírito. Há, no pensador alemão, uma forma muitoparticular de se apropriar da ‘alma’. Ela não será mais, comogostaria a tradição filosófica judaico-cristã, o lugar privilegiado daunidade, expressão de identificação do ‘eu’ consigo mesmo e dereconciliação das máscaras na identidade do espírito.

Da mesma forma como o corpo é constituído por umainfinidade de sentidos e destinos fisiológicos, para cada uma destasmetas, há a formação de uma consciência; unidade de organizaçãona pluralidade de sujeitos, esta é a imagem da alma que melhorexpressa o corpo como metáfora (MARONI, Amnéris, 2008)

Entretanto, isto que dá organização ao corpo, é, ao mesmotempo, um estado de permanente mutação. A organização obedecea desejos ‘involuntários’ que não se dão a conhecer; sãounicamente processos, migrações, e deles conhecemos unicamenteseus efeitos de superfície. O que, de certa forma, obriga opensamento a reavaliar seus propósitos: toda a filosofia é umaespécie de mal-entendido sobre o corpo. É possível fazer filosofiae, ao mesmo tempo, não transformá-la num mal-entendido? Ocorpo faz filosofia?

Corpo: linguagem e filosofia em Nietzsche.

Considerando a já consagrada recepção do pensamentonietzscheano – que se limita a organizar o conjunto dos textos doautor em três fases14, sendo que a última destas se concluiria com ochamado ‘colapso mental’ do filósofo alemão em 1889 – gostaria,ainda que momentaneamente, de colocá-la em suspeição. Não

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e a gramática. Restou, por fim, a mais poderosa de todas as máscaras,mas, ao mesmo tempo, a de menor poder simbólico para o homemgregário, surda, informulável e inaudita, a máscara de Dioniso.

Mas a potência do dionisíaco acompanhou, como umasombra, uma a uma, as auroras nietzscheanas. É possível perceberos vestígios de sua presença, constante, perene. Em Aurora, ela sefaz ver sob a máscara do crepúsculo, de algo que se encontra naiminência de seu silêncio, até que ele encontre seu próprio silêncio:

Dentro do grande silêncio. – Aqui está o mar, aquipodemos esquecer a cidade. Os seus sinos aindatocam neste momento a Ave Maria – esse ruídosombrio e tolo, porém doce, no cruzamento do diacom a noite –, mas apenas por mais um instante!Agora tudo se cala! O mar se estende pálido ecintilante, não pode falar. O céu traz seu eterno esilencioso espetáculo vespertino em cores rubras,verdes e amarelas, não pode falar. As pequenasfalésias e recifes que entram no mar, como quebuscando o local mais solitário, nenhum deles podefalar. Essa mudez enorme, que subitamente nostoma, é bela e aterradora, diante dela o coração seinflama. – Oh, a hipocrisia dessa muda beleza! Comopoderia falar bem, e mal também, se apenasquisesse! Sua língua atada e a sofredora venturaem seu rosto são uma perfídia, querem zombar danossa simpatia! – Pois seja! Não me envergonho deser a zombaria de tais poderes. Mas tenhocompaixão de você, natureza, porque tem desilenciar, ainda quando é apenas sua malícia que lheprende a língua: sim, tenho compaixão de você porsua malícia! – Ah, faz-se ainda mais silêncio, enovamente se inflama meu coração: apavora-se anteuma nova verdade, também não pode falar, elepróprio zomba juntamente, se a boca exclama algonessa beleza, ele próprio desfruta sua doce maldadeem silenciar. A fala, e até o pensamento, tornam-separa mim odiosos: não escuto o erro, a ilusão, o

‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como queatravés de um nada infinito? Não sentimos na peleo sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio?Não anoitece eternamente? Não temos que acenderlanternas de manhã? Não ouvimos o barulho doscoveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiroda putrefação divina? – também os deusesapodrecem! Deus está morto! (FW/GC III, ‘Ohomem louco’) (Nietzsche:2001, p. 148)

O homem perdeu, com a morte de Deus, o seu centro. Masele mesmo não está à altura de entender o seu feito. Possivelmente,o próprio Nietzsche, não estivesse. Teriam que se passar anospara que, no silêncio da máscara do insensato, o devir dionisíaconietzscheano fosse despertado.

Assim, tomar o corpo como a grande razão, constitui,certamente, um paradoxo. O corpo como grande razão nos remeteao perigoso terreno do subsolo que deveria permanecer oculto,pois, ele inaugura uma espécie de autocracia do crime; aqui nãohá organização que se sustente, não há regime possível, não háprevisibilidade, não há controle, não há lógica, não há sistema, nãohá linguagem. Quem, por exemplo, já experimentou traduzir emlinguagem a experiência de seu próprio corpo? Não é isto o quenos é exigido numa consulta médica? Interpretamos semconseguirmos nos livrar da impressão de havermos cometidoalguma espécie de traição. Um sentimento de frustração originadoda infidelidade e, ao mesmo tempo, uma conformação de que nãopoderíamos ter feito diferente. Não há razão capaz de suportartamanha desmesura e, ao mesmo tempo, os apontamentos destesubsolo: ‘e por vezes a própria loucura é a máscara que escondeum saber fatal e demasiado seguro’ (Nietzsche apudDeleuze:1990, p. 82)

Nietzsche, também ele, acreditou, por um instante, nosouvidos do mercado. Mas por que sob a máscara do louco seanuncia ‘a morte de Deus’? Justamente sob a máscara que anosmais tarde ele próprio deveria carregar? E, pouco a pouco, asilusões foram se partindo. O ‘véu de Maia’ foi se desfazendo: aarte e a cultura, a moral, a ética, o homem, os ídolos, a linguagem

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E, se nos propomos a falar sob inspiração de um outro pontode vista, só podemos fazê-lo adotando aquele que foi o métodocaro ao filósofo alemão: a transvaloração dos valores e apossibilidade de experimentação de outras perspectivas.

Seria, de partida, necessário admitir a possibilidade de umquarto período ‘produtivo’ da obra nietzscheana, período este quese inauguraria em 1889 e se estenderia até 1900. As cartas queanunciam a ‘loucura’ nietzscheana18 são a expressão do fluxomigratório da vida e da existência como permanente vadiar, atravésdelas Nietzsche oferece fisionomia à idéia do eterno retorno dodiferente. As missivas inauguram, ainda, o período do triunfo docorpo e a filosofia se cala definitivamente: a morte da linguagemtraduz o triunfo desta grande razão, não mais uma razão mitigada,envergonhada, mas uma razão que adquire a potência do divino ese faz assim em potência dominante. O ‘tornar-se’ nietzscheanoindica um movimento em direção a, uma superação de si e dohumano, da existência nas formas que configuram o homem: ohomem se faz deus, um deus de si e para si. As analogias com oslivros dos hebreus são múltiplas, a começar pela etimologia dapalavra deus. Deus – criador – nasce por afirmação: ‘eu sou aqueleque sou’. O homem – criatura – pelo contrário ‘é aquele que nãoé’. E deus – na ordem dos livros que traduz a cronologia de suabiografia – também se cala: gênesis, a destruição e vingança e,por fim, o silêncio. O silêncio, nas palavras do filósofo, ensina oser humano a parar de ser humano!

O processo de constituição daquele que será o silêncio finale derradeiro de Deus – eu sou aquele que sou – articula-se aoesforço do filósofo em criar uma filosofia que seja capaz detranscender a condição humana – num movimento de superaçãodesta condição – tornando-se o que se é – superando assim aquiloque nos mantém atados ao último homem: a linguagem, o verbo, agramática e o comunicável. A linguagem aparece articulada aohomem gregário (Mosé:2005), pois, se no momento de seunascimento o som traduz o espanto, a euforia, a experiência original,única e absolutamente individualizada, ele deve rapidamente setransmutar em palavra e esta em conceito. O homem faz dalinguagem o instrumento necessário para pôr-se em acordo rápido

espírito delirante a rir por trás da (sic) cada palavra?Não tenho que zombar de minha compaixão? Zombarde minha zombaria? – Oh, mar! Oh, noite! Vocêssão maus instrutores! Ensinam o ser humano a pararde ser humano! Deve ele entregar-se a vocês? Devetornar-se, como são agora, pálido, brilhante, mudo,imenso, repousando em si mesmo? Elevado sobresi mesmo? (M/A V, ‘Dentro do grande silêncio’)(Nietzsche:2004, p. 221/2)

Era preciso tempo. O mesmo tempo que o ‘louco’ concedeaos seus contemporâneos, ele também, generosamente, concede-o ao próprio Nietzsche. Mas, de todo modo, não é assim que oscontemporâneos descrevem Nietzsche após 1889: pálido, imenso,mudo, repousando em si mesmo?

O que, até aqui, a recepção do pensamento nietzscheanotem feito – raras exceções16 – nada mais é do que valorizar asaúde como potência niveladora do eu, entendendo a doença comosingularidade exacerbada: Nietzsche, doente, é único, sua doençaé um escândalo que nenhum pensamento gregário podeexplicar ou admitir (Dias:2002, p. 265).

A linguagem como símbolo social investe o corpo de sentidos,ato de criação, mas também de dominação17. Há uma dimensão euma potência do inaudito que precede a linguagem e se manifesta,surda e inominavelmente, para tudo aquilo que ela ainda não foicriada. Não casualmente chamamos este hiato, este intervaloocupado por um grande silêncio de loucura: ‘o informulável é adoença do pensamento’ (Lévi-Strauss apud Kehl:2003, p. 247) e,ao mesmo tempo, a mais plena manifestação do existir. E,sintomaticamente, o corpo nietzscheano adoeceu.

Mas, se falamos do padecimento do corpo nietzscheano,assim procedemos por adotarmos uma dada perspectiva: olhar odionisíaco a partir das lentes do apolíneo, olhar a barbárie pelacivilização, olhar a loucura pela sanidade, olhar o trágico pelootimismo ou pessimismo, olhar o corpo pela consciência, olhar osilêncio pela linguagem. Há uma vontade de redenção que inspiraos canonizadores do pensamento nietzscheano.

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seu trabalho de criação do homem gregário, de outro, napossibilidade de transformá-la em potência criativa e inaugural devida. No limite, o corpo é, muito provavelmente, a verdade dalinguagem (Blondel:1986, p. 278). Assim poderia ser enunciadaesta nova expressão do paradoxo. Nela, não é a linguagem quedetém a verdade sobre o corpo, pelo contrário, é o corpo quedetém a verdade da linguagem. Os instrumentos da linguagemnão são capazes de anunciá-la, assim, as palavras estariam a serviçodas funções fisiológicas, porém, jamais esgotariam estas últimas.O problema das palavras e da linguagem persiste e se constituinuma constante em sua obra:

Somente enquanto criadores! – Eis algo que me exigiue sempre continua a exigir um grande esforço:compreender que importa muito mais como as coisasse chamam do que aquilo que são. A reputação, onome e a aparência, o peso e a medida habitual deuma coisa, o modo como é vista – quase sempre umaarbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobreas coisas com uma roupagem totalmente estranhas àsua natureza e mesmo à sua pele –, mediante a crençaque as pessoas neles tiveram, incrementada de geraçãoem geração, gradualmente se enraizaram e encravaramna coisa, por assim dizer, tornando-se o seu própriocorpo: a aparência inicial termina quase sempre portornar-se essência e atua como essência! Que toloacharia que basta apontar essa origem e esse nebulosomanto de ilusão para destruir o mundo tido poressencial, a chamada ‘realidade’? Somente enquantocriadores podemos destruir! – Mas não esqueçamostambém isto: basta criar novos nomes, avaliações eprobabilidades para, a longo prazo, criar novas‘coisas’(FW/GC II, ‘Somente enquanto criadores’)(Nietzsche:2001, p. 96).

Mesmo na criação, a linguagem denuncia suas limitações.Diante do impasse, a única solução poderia ser o silêncio e,certamente, será sobre ele que recairá a ‘escolha’ do último período

e, em meio ao perigo, evitar os desentendimentos (JGB/BM IX,‘O que é, afinal, a vulgaridade?’ (Niezsche:1992, p. 182). Em oCrepúsculo dos ídolos Nietzsche afirma:

Já não nos apreciamos suficientemente quando noscomunicamos. As nossas experiências genuínas denenhum modo são loquazes. Não poderiam, aindaque quisessem, comunicar-se, porque lhes falta apalavra. Daquilo para que temos palavrasencontramo-nos já também fora. Em todo o falarhá um grão de desprezo. A linguagem, parece,inventou-se só para o medíocre, o comumcomunicável. Pela linguagem vulgariza-se já quemfala. (GD/CI ‘Incursões de um extemporâneo’ §26) (Nietzsche:1988, p. 86/7)

Poderíamos reconhecer aí um paradoxo que acompanhoupermanentemente o filosofar de Nietzsche. O que decididamente lhefaltava, no seu trabalho de destruição da metafísica, era a linguagemapropriada. O que no fundo ele desejava, ainda não estava emcondições de formular, afinal, a própria linguagem é metafísica:

Nossos mais arraigados valores metafísicos sãoexatamente aqueles dos quais nós nos livramos maisdificilmente, supondo que sejamos capazes de noslivrar – estes valores que se incorporaram à língua eàs categorias gramaticais e se tornaram mesmoindispensáveis, a ponto, que parece que nósdeveríamos deixar de pensar se renunciássemos a estametafísica19 (Nietzsche apud Blondel:1986, p. 276).

Aqui se entende, com toda a clareza, a idéia nietzscheana deque Deus, por maiores os esforços realizados para assassiná-lo,sobrevive em sua, quase, indestrutível fortaleza: a gramática. Alinguagem é, ela mesma, metafísica, incapaz de traduzir o passado, opresente e o vir-a-ser e, por fim, confissão de nossa ignorância maior:a linguagem nasce para dar conta do que permanece desconhecido.

Nietzsche insistirá naquele que poderá ser seu esforçomaior. De um lado, reconhecendo as limitações da linguagem em

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NOTAS

1 O que foi alterado em cada conjuntura, não foi a presença e aausência de cada uma destas respostas, mas a predominância deuma sobre as outras. Ou seja, os termos do problema mantiveram-se,ocorrendo unicamente uma alteração das relações de força entre eles.2 Devo, a título de esclarecimento preliminar, chamar a atenção parao fato de que mesmo no campo de teoria afirmadora e explicativa docorpo, encontraremos, paradoxalmente, uma manifestação muitoparticular do ascetismo, se é que uma certa dose de ascetismo não écondição das mais rudimentares formas de vida civilizada (Rabelo:2002).3 Para as várias definições utilizadas em meu texto e para avaliaroutras tantas transformações etimológicas dos termos, indico otrabalho de Rodrigo Bueno (2002), Nietzsche e os ascetismos.4 Pode-se dizer que o ‘orfismo’ manifesta seus traços característicosjá desde o século VI a.C.. Nascido do mito de Orfeu, a concepçãodo orfismo estabelece os pressupostos míticos de uma origem divinae imortal da alma, que se conserva, mesmo diante de sua novaconfiguração terrena, como uma alma agora encarnada.5 Titus Lucretius Carus, poeta romano do século I a.C., deixou umlongo poema inacabado chamado Da Natureza e é considerado umfilósofo da escola epicurista.6 Assim, a crise de representação que se abate sobre a figuração docorpo na virada do século XIX para o XX, incorpora esta problematizaçãoda consciência diante do corpo (Moraes:2002).7 Consultar o trabalho de história das idéias de Franklin Baumer, OPensamento Europeu Moderno, dos séculos XVII ao XX(Baumer:1990).8 Nietzsche afirma, já em Verdade e mentira num sentido extra-moral,um texto póstumo e portador de idéias seminais como reconhece opróprio autor: “O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo!Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente,como se estivesse em uma vitrina iluminada? Não lhe cala a naturezaquase tudo, mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte dascircunvoluções dos intestinos, do fluxo rápido das correntessanguíneas, das intricadas vibrações das fibras, exilado e trancadoem uma consciência orgulhosa, charlatã!” (WL/VM § 1)(Nietzsche:1978, p. 46)

produtivo da obra nietzscheana. O silêncio será tomado como umelemento precioso, mesmo quando o filósofo escreve. Como se ocorpo se manifestasse nas pausas, nas suspensões, no riso quetrai a sentença, na galhofa que denuncia a sisudez, numa lágrimaque escorre por um não sei o quê.

Na biografia de Nietzsche, Curt Paul Janz (1985) refere-se à polêmica em torno do ‘colapso mental’ do filósofo alemão.Uma das perspectivas deste debate – que tem na figura de JuliusKaftan seu mais eminente representante – afirma que a ‘doençamental’ nietzscheana decorre da incapacidade deste de superar oconflito interior aberto com o anúncio da ‘morte de deus’ e que sedesenvolveu num anti-cristianismo posterior. Este mesmoargumento aparece, com outra roupagem, inúmeras vezes quandoo que está em jogo é o pensamento nietzscheano: o senso comum– e aqui me refiro a uma espécie particular de senso comum, osenso comum acadêmico – olha com desconfiança todopensamento que se funda e se inspira na filosofia de Nietzsche.Como se a simples inspiração trouxesse riscos para aquele quenela se apóia. Como se seu ulterior destino fosse a própriaconfirmação do equívoco filosófico: a decorrência de uma espéciede crime do pensamento. Gostaria de sustentar um elemento datese aqui esboçada, mas, invertendo seus pressupostos.

Sim, há no ‘colapso mental’ nietzscheano, uma manifestaçãode seu pensamento filosófico. Seu silêncio, sua ‘doença mental’,sua ‘loucura’, seu ‘castigo’ é parte de sua obra, e não um momentoa ser esquecido. Trata-se do momento mais contundente dapresença do corpo e, em Nietzsche, os testemunhos médicos oafirmam, não se trata de uma morte vegetativa. O que resta é ainquietante presença do corpo carregada pela multiplicidade desentidos que o atravessam. Mas um corpo que não quer maiscomunicar!

A tragédia nietzscheana, segundo Rosa Maria Dias, é que:“ele preferiu tornar-se louco a encontrar um equivalente para aloucura. [...] O delírio como perda da identidade, a loucura comoesmaecimento da razão não marcam o desmascaramento deNietzsche, mais sua realização suprema” (DIAS, 2002, p. 267).

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o bastante para um sistema – nem mesmo para meu sistema [...]’(Nietzsche apud Marton:2000, p. 192)15 Se tomássemos a idéia formulada por Foucault (1992), da mortedo autor e da obra, tal como a expressa em O que é um autor?,seríamos obrigados a reconhecer que no ponto em que se instaurauma pluralidades de eus, neste ponto, não teríamos obra, na medidaem que, se o autor produz um pensamento uno, a obra é o suportede manifestação desta unidade. Deste ponto de vista, a obra nãocomporta a multiplicidade de perspectivas, o conceito não foi criadopara um tal destino. Mas, se assim é, Nietzsche não é produtor deobra, do começo ao fim de sua produção. Desde, pelo menos, o finaldo século XIX e início do XX tem-se apontado – tese esta sustentadade forma mais enfática pela nascente psicanálise – para a idéia deque onde há loucura também há obra (Cf. Dantas:2002) Das duasuma, ou a idéia de obra – preso à sua gênese platônica e publicizadaao povo através do método de exegese cristã – não se aplica aopensamento nietzscheano, ou o conceito se abre a re-significações epode ser empregado na interpretação de escritores como Nietzsche.16 Dentre estas exceções, citaria o trabalho inaugural de PierreKlossowski Nietzsche e o circulo vicioso (2000).17 A revolução linguística nos indicou que a linguagem é produtorado homem. À pergunta, o que precede a linguagem, tem comoestratégia, exigir o reconhecimento da expressão simbólica na origemde tudo que diz respeito ao homem. A perspectiva trágicanietzscheana, dando um passo aquém, situa o problema no campodo paradoxo. Afirmar a linguagem como produtora do homem requeroferecer uma solução ao paradoxo, como se para aquém destemomento nada pudesse ser afirmado. Do ponto de vista do homemdo conhecimento, a expressão simbólica, a linguagem é seu fardoconstitutivo. Mas admitindo que a existência é paradoxal, pode-seafirmar que um real e um animal – ambos incognocíveis – tambémencontram-se na origem do homem simbólico.18 Neste período de sua vida, Nietzsche dialoga com seus próximosatravés de cartas breves pelas quais assume múltiplas personalidadesre-significando figuras afamadas ou infames da história, desde Buda,Jesus Cristo, Voltaire e Napoleão, até Prado e Lesseps: O que édesagradável e constrange a minha modéstia é que todos os nomesda história, no fundo, sou eu (Nietzsche apud Dias:2002, p. 265).

9 Que sacrifica a sua vida.10 Nota-se que o livro Gaia Ciência encontra-se, na biografia intelectualde Nietzsche, na fronteira, na zona de passagem do segundo para oterceiro período de sua obra.11 Adotando como referência o ensaio de Volnei E. dos Santos, Poruma filosofia da distância (2006), poderíamos tomar a figura doEspírito livre, criada por Nietzsche, no processo radical de suaconstituição e de seu tornar-se. Assim, o Espírito livre, inicialmenteinspirado na figura do homem Schopenhauer, poderia ter conhecidosua última metáfora na chamada ‘loucura dionisíaca’.12 No texto em que tece considerações sobre o pensamento históricono século XIX e na Alemanha, em particular, Nietzsche parte deuma formulação decisiva para a construção de seu diagnóstico, diz ele:‘Quem perguntar a seus conhecidos se eles desejariam atravessaruma vez mais os últimos dez ou vinte anos de suas vidas perceberá,com facilidade, qual deles está preparado para aquele ponto de vistasupra-histórico: com certeza, todos responderão “não”!, mas elesirão fundamentar diversamente este “não”! (HL/Co. Ext II, § 1)(Nietzsche:2003, p. 14)13 Se a ‘morte de deus’ é um peso que Zaratustra deve suportar, adoutrina do eterno retorno está destinada a ser seu lenitivo (Franck:2005).Se esta é uma interpretação corrente entre os comentadores da obranietzscheana é preciso que se diga que há outras. Existem os queconsideram o eterrno retorno como expressão máxima da morte dedeus, dentre estes, destacaria Pierre Klossovski ‘Nietzsche e o círculovicioso’ e Gilles Deleuze ‘Nietzsche e a filosofia’.14 Há, no processo de recepção da obra nietzscheana, uma divisãodesta em três fases: a primeira situar-se-ia entre os anos de 1870 a1876 e reúne os textos que se inauguram com o Nascimento daTragédia e se estende até as Considerações Extemporâneas, a segunda,abrange os anos de 1876 a 1882 e se inicia com o Humano, demasiadoHumano até Gaia Ciência, a terceira, percorre os anos de 1882 a1889 e se inaugura com Assim falou Zaratustra até o chamado‘colapso mental’ em janeiro de 1889.Esta periodização tem um efeito didático poderoso, ao mesmo tempo,permite organizar o pensamento em torno de temas ou eixos temáticosfundamentais, mas uma tal divisão permanece sendo objeto de debateentre os comentadores, pois, trata-se de uma operação que visasistematizar um pensamento avesso aos sistemas: ‘não sou limitado

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19 Notre plus vieux fonds métaphysique est celui dont nous nousdébarrasserons en dernier lieu, à supposer que nous réussissions ànous em débarrasser – ce fonds qui s’est incorpore à la langue etaux catégories grammaticales et s’est rendu à ce point indispensablequ’il semble que nous devrions cesser de penser, si nous renoncionsà cette métaphysique.

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O PREFEITO DA VARINHA DE CONDÃO: A ENGENHA-RIA POLÍTICA DE PAULO DE FRONTIN NA PREFEITU-RA DO DISTRITO FEDERAL (1919)

Surama Conde Sá Pinto*

ResumoEste artigo apresenta como proposta discutir o papeldesempenhado pelos prefeitos da cidade do Rio deJaneiro, então Distrito Federal, na PrimeiraRepública. Focalizando a gestão de Paulo de Frontin,visa-se demonstrar que o engenheiro utilizou oexercício do cargo para construir uma importantebase de apoio político na capital da República.

Palavras chave: Política carioca – Brasil – Primeira República

AbstractThe aim of this article is to discuss the rule playedby the Mayors of the city of Rio de Janeiro,Brazilian’s Federal District, during the First Republic.Focusing Paulo de Frontin’s administration, in 1919,we intend to point out that this engineer used hisexperience as a mayor to construct an importantpolitical group in the capital of Brazilian’s Republic.

Key words: Rio de Janeiro’s politics – Brazil – First Republic

Ao longo da Primeira República, desde a criação do cargode prefeito pela lei n.º 85 de 1892, à frente do poder Executivomunicipal da cidade do Rio de Janeiro estiveram 27 personalidades.Todos, sem exceção, considerados “de confiança,”foramindicados diretamente pelos Presidentes da República. A duraçãodestas gestões variou, sendo algumas relativamente longas, com

*Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.Professora adjunta da Universidade Severino Sombra e Coordenadorado Programa de Mestrado em História Social da referida instituição.

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interpreta o papel dos prefeitos do Distrito Federal no períodocomo o de um simples administrador quanto aquele que relacionaa atuação do chefe do Executivo municipal ao de um interventordo governo federal no campo político carioca.

Ao invés de trilhar o caminho freqüentemente percorridopelos autores que produziram estudos sobre o tema, ou seja, oenfoque de todas as administrações em seu conjunto, para efeitodesta análise foi feita a opção pelo resgate da ação política de umdestes atores à frente do Executivo municipal do Distrito Federal.O prefeito selecionado foi Paulo de Frontin. A opção feita sejustifica em função de uma série de fatores.

Paulo de Frontin faz parte da tríade dos prefeitos engenheirosque escreveram os seus nomes na história da cidade do Rio de Janeiroe se tornaram verdadeiros mitos ao lado de Pereira Passos, cuja gestão,diga-se de passagem, acabou transformando-se para os historiadoresem uma espécie de chave de leitura das administrações no período.A consagração do nome de Frontin e sua projeção na cidade estãorelacionados ao episódio água em 6 dias,5 à sua atuação nasobras de construção da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco,

Foto 1: Gravura “Comissão Frontin - Agua Vae” - incluída no livrodo Jubileu Acadêmico do Engenheiro Paulo de Frontin - 1889.

mais de quarenta meses, como as de Francisco Pereira Passos eBento Manuel Ribeiro Carneiro, e outras extremamente curtas,conforme foi o caso da gestão de Paulo de Frontin, que ocupou aprefeitura do Distrito Federal por apenas 6 meses.

De uma maneira geral, a produção que analisa estas adminis-trações tradicionalmente as aborda em seu conjunto priorizandoas transformações ensejadas no espaço urbano da cidade a cadanovo prefeito (REIS: 1977; CARVALHO: 1992; NORONHA SANTOS:1945). Esta ênfase nas obras de melhoramento da urbes, em parte,justifica-se em função da própria formação destes autores, em suamaioria engenheiros, geógrafos ou mesmo funcionários públicos queescreveram obras não raro patrocinadas e editadas pela prefeituracom o objetivo de produzir uma memória destas administrações.

Apesar de apresentarem uma boa visão geral do que foramestas gestões, o enfoque utilizado nestes trabalhos, aliado ao fatodo cargo não ser preenchido via sufrágio direto, tem contribuídopara a divulgação da idéia do papel do prefeito da cidade do Rio noperíodo como sendo o de um mero administrador das contas públicas(CURY: 2000),1 e/ ou uma espécie de interventor da união no espaçoda cidade (CARVALHO: 1987; BASTOS: 1984),2 esvaziando destaforma a sua atuação enquanto um ator político, ou, na melhor dashipóteses, relegando-a a um segundo plano (VON DER WEID: 1984).

Estudos de casos focalizando mais detidamente algumas destasgestões,3 assim como análises sobre a atuação política destes prefeitos,que muito contribuiriam para um melhor desenho do papel destesatores no jogo político carioca, ainda não foram produzidos de formasignificativa, apesar do crescimento verificado nas últimas décadasda produção relativa à trajetória política do Rio de Janeiro.4

Na verdade este é um campo praticamente inexplorado,apesar dos prefeitos serem peças bastante importantes no jogopolítico da cidade no período. Basta lembrar que boa parte dalegislação produzida na Primeira República relativa à organização doDistrito Federal seguiu a tendência de transformar o chefe do Executivomunicipal em ator central no campo político carioca e o Legislativolocal - o Conselho de Intendência Municipal - em simples coadjuvante.

Tendo como referencial o quadro exposto, a proposta centraldeste artigo é testar o alcance destes enunciados, tanto o que

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depositado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),até recentemente não havia sido disponibilizado à consulta,permanecendo praticamente inexplorado.1 0

Dificuldades à parte, conforme será visto a seguir,confirmando a assertiva do historiador italiano Giovani Levi deque nenhum sistema normativo é, de fato, estruturado o bastantepara eliminar toda possibilidade de escolha consciente, demanipulação ou de interpretação das regras e de negociação porparte dos indivíduos (LEVI: 1989, 1334), Paulo de Frontin usouum cargo que a princípio fora criado de forma a garantir aingerência do governo federal no campo político carioca parasedimentar sua base política no Distrito Federal.

Foto 2: Alegoria Homenagem da União Republi-cana ao engenheiro Paulo de Frontin - 1914.

e ao grande número de melhoramentos realizados em sua gestão,o que lhe valeu as alcunhas de Prefeito de Densidade Máxima(REIS: 1977, 71) e Prefeito da Varinha de Condão.6

Passos, Frontin e Sampaio, na verdade, apresentam muitoselementos em comum. O principal deles é um Curriculummarcado pela formação educacional realizada na mesma instituição(Escola Politécnica, antiga Escola Central) e pela experiênciaanterior às suas gestões na Prefeitura carioca em diversos projetose obras relacionados à evolução urbana da cidade ainda no Império.

Por outro lado, se o período da administração de PereiraPassos (1902-1906) já foi direta ou indiretamente objeto de análisede inúmeros trabalhos acadêmicos (BENCHIMOL: 1992; KNOX,1994) 7 e a passagem de Carlos Sampaio pela prefeitura carioca nosúltimos anos tem estimulado estudos interessantes (KESSEL:1996;TAVARES: 1994), o mesmo não se pode dizer em relação à Frontin.

Talvez um dos fatores para se compreender a existênciadesta lacuna seja a duração meteórica de sua gestão. Por outrolado, a despeito da exigüidade de sua permanência no cargo, Frontinà frente da prefeitura do Distrito Federal foi uma experiência singularuma vez que, além de profissional renomado na sua área de atuação(uma espécie de regra no caso dos prefeitos) e do impressionantenúmero de obras realizadas em sua gestão, era chefe daquela que setornaria a principal organização política da cidade a partir de fins dadécada de 1910 e inícios dos anos 1920 – a Aliança Republicana.8

Igualmente importante ressaltar, a memória dominante quese produziu em torno da sua imagem, sobretudo construída porseus colegas do Clube de Engenharia e discípulos da Politécnica,sempre primou por ressaltar a faceta do engenheiro, o profissionalde inquestionável competência que construiu uma carreirareconhecida internacionalmente (HONORATO: 1996) emdetrimento do político que no Senado, na prefeitura, na Câmara ousimplesmente na liderança da Aliança Republicana lançavamuitas vezes mão de práticas, como a compra de votos, comunsàs chefias políticas regionais no período (PINTO: 2002).9

Finalmente um outro fator, desta vez de ordem prática, quepode ser arrolado para a compreensão da falta de estudos de casosobre a administração Frontin é o fato de que seu arquivo,

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Descendente de uma família de nobres franceses que vierampara o Brasil para escapar das perseguições religiosas na Françaapós a revogação do edito de Nantes, André Gustavo Paulo deFrontin, quando convidado por Delfim Moreira para o cargo deprefeito do Distrito Federal em janeiro de 1919, já havia acumuladouma considerável experiência em cargos públicos, o que incluiduas passagens pela direção da Estrada de Ferro Central do Brasil(1896-97, 1910-1914) e uma cadeira no Senado, a qual teve querenunciar para assumir o Executivo municipal. 1 3

Sua ligação com o jogo político na cidade havia sidoformalizada quando ingressou, em 1912, no antigo PartidoRepublicano do Distrito Federal, criado por Barata Ribeiro e dirigidopor longos anos por Augusto de Vasconcelos. Um bom termômetrodo capital político (BOURDIEU: 1989,187-188) quecuidadosamente acumulara desde então pode ser medido naexistência do centro político que, criado em 1918, levava o seunome.1 4É importante destacar, a participação de Frontin eminstituições dessa natureza, além de irmandades religiosas eentidades culturais, teve um peso considerável na sua trajetóriapolítica. Diferente da maioria dos representantes da cidade queconstituíram clientelas mediante a prestação de serviços médicosgratuitos, como foram os casos de Augusto de Vasconcelos eMendes Tavares, ou de advocacia, expediente utilizado por IrineuMachado, o canal utilizado pelo engenheiro para chegar ao eleitoradoda cidade foi, em grande medida, a participação nessas organizações.

Ao assumir a prefeitura da capital do país, Frontin encontrouas contas municipais no vermelho. Desde 1917 a receita arrecadadaera inferior à despesa efetuada, quadro que se prolongariaininterruptamente até 1922. Amaro Cavalcanti, prefeito da cidadeentre 1917 e 1918, bem que tentou aumentar a arrecadaçãomunicipal e, por conseguinte, equilibrar as contas da prefeitura,criando em sua gestão um novo imposto: o de exportação. Suainiciativa, contudo, apesar da boa acolhida entre os representantesdo Legislativo no Conselho de Intendência Municipal, enfrentouforte oposição de importantes setores da cidade, sobretudo aquelesligados ao grande capital, que acabaram pedindo a sua cabeça aogoverno e a membros da elite política carioca.1 5

A engenharia política de Paulo de Frontin na prefeitura doDistrito Federal

Capital Federal, quatorze horas da tarde de 22 de janeiro de1919. Em cerimônia realizada no Ministério da Justiça e NegóciosInteriores Paulo de Frontin é nomeado Prefeito do Distrito Federal,cargo que seria conferido ao paraense Lauro Müller caso opresidente Rodrigues Alves não tivesse falecido.

A notícia da nomeação de Frontin foi, de uma maneira geral,bem aceita pela imprensa carioca. Os principais jornais da cidadenão pouparam elogios ao novo chefe do Executivo municipal. Emsuas páginas, estamparam afirmações como:

“O senhor Delfim Moreira obedeceu ... a um duplocritério technico e democrático. Nomeou um grandeengenheiro, um grande administrador e ao mesmotempo escolheu o homem que seria o prefeito eleitose o governador fosse nomeado pelo eleitorado.” 11

“Os novos horizontes da cidade. O Rio tem o prefeitodesejado.”(A Política: 1919)

O Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt, embora nãotão entusiasticamente, também destacou que a notícia da nomeaçãode Paulo de Frontin havia sido recebida com aplausos gerais eterminava afirmando que do ilustre senador do Distrito Federaldever-se-ia esperar sempre alguma coisa.1 2

Ainda que seja questionável a idéia de que a populaçãocarioca tenha celebrado como um todo a novidade, conformenoticiaram os jornais da cidade, dado o pouco interesse quedemonstrava pela participação no jogo político formal em virtude dasconstantes fraudes e violências envolvidas nos pleitos, novos horizontesde fato se desenharam no campo político carioca com a nomeaçãodo engenheiro para o Executivo municipal do Distrito Federal.

Frontin não foi o primeiro carioca a ocupar a prefeitura do Rio,mas foi prefeito na mesma ocasião em que começava a tornar-sefigura central na política da cidade, já que no ano anterior participarada criação da Aliança Republicana (AR) e chefiava esta que aospoucos se tornaria a mais importante organização partidária local.

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O problema era estrutural. A ineficiência administrativaprovocada pelo excesso de funcionários, a falta de controle dasdespesas públicas e a ineficácia dos mecanismos de arrecadaçãofiscal foram os grandes vilões do equilíbrio orçamentário domunicípio durante a Primeira República.

Numa época em que a lei de responsabilidade fiscal nãoexistia nem a idéia de orçamento contingenciado, os prefeitosdo Rio no período tinham que fazer verdadeiros malabarismosfinanceiros devido à constante situação precária da municipalidadeque eles mesmos, diga-se de passagem, muitas vezes contribuíampara perpetuar. A maioria tentou imprimir uma marca em suapassagem pela prefeitura, procurou construir um lugar na memóriada cidade realizando obras de grande vulto, principalmente osprefeitos engenheiros. A política mais implementada por estes atoresna prefeitura da capital federal na Primeira República foi a políticade gastos sem maior controle. A fórmula seguida, salvo rarasexceções, foi quase sempre a mesma: grandes obras, grandesempréstimos.1 6 O resultado: grandes problemas financeiros paraos seus sucessores. Com isso, o colapso das finanças públicas,agravado pela ineficácia dos instrumentos responsáveis pelaarrecadação de impostos, se tornou uma constante.

Para contornar a difícil situação financeira da Prefeitura,Frontin a princípio procurou racionalizar os gastos municipais eequilibrar as contas da prefeitura através de uma série de medidascomo a supressão de automóveis oficiais, a extinção de oficinasde reparo, a simplificação dos serviços das repartições, visando ocombate à burocracia, e a diminuição dos gastos com aluguéis deimóveis para o funcionamento de escolas municipais. O novoprefeito suprimiu metade das escolas primárias do Distrito Federale, por meio de decreto, determinou o funcionamento em dois turnosnos prédios mais próximos.

A ação do novo prefeito foi bem menos incisiva, contudo,no que diz respeito à política fiscal. Frontin não se comprometeucom a cobrança do imposto de exportação e chegou a suspendera cobrança executiva do mais que burlado imposto predial.

Embora tenha elogiado Amaro Cavalcanti em entrevistaconcedida ao Jornal A Política logo nos primeiros dias na

Receita anual arrecadada e despesa paga pela Municipalidadedo Rio de Janeiro (1889-1922)

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Ano Receita Arrecadada Despesa Efetuada 1889 2.281:969$829 2.275:197$032 1890 8.591:161$450 6.170:837$150 1891 3.675:182$880 4.835:914$891 1892 17.179:632$528 18.256:893$996 1893 16.727:164$727 15.901:241$533 1894 17.029:449$274 16.938:654$977 1895 25.876:865$590 26.910:039$336 1896 33.510:749$270 33.532:324$628 1897 19.703:393$454 19.116:970$008 1898 18.322:716$499 18.935:781$847 1899 23.484:607$080 23.418:585$198 1900 25.348:345$189 24.909:489$616 1901 20.677:534$885 21.179:836$338 1902 26.264:976$525 25.678:471$282 1903 30.773:377$989 31.378:810$319 1904 28.211:265$569 28.217:890$888 1905 31.395:873$320 31.359:976$848 1906 48.473:185$178 48.132:715$202 1907 37.411:736$707 37.725:248$841 1908 39.132:935$422 38.931:919$457 1909 53.494:900$027 53.304:273$322 1910 50.432:016$303 50.291:046$779 1911 39.071:111$959 38.792:735$996 1912 46.972:224$686 47.780:813$496 1913 50.194:780$558 50.172:770$508 1914 46.203:942$766 46.158:616$872 1915 51.515:482$862 51.553:092$889 1916 57.206:681$626 56.850:340$216 1917 41.028:525$023 53.615:987$595 1918 44.946:372$267 54.153:017$612 1919 51.082:108$166 93.132:331$134 1920 57.444:138$754 68.795:088$472 1921 65.588:386$096 84.419:415$836 1922 67.042:842$500 69.114:346$833

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Nestas visitações, realizadas em algumas localidades dosubúrbio carioca, as condições de vida e os principais problemasenfrentados pelas populações residentes eram verificadospessoalmente pelo prefeito. Era nestas ocasiões que seuindefectível guarda-chuva entrava em ação. Mais do quesimples peça de sua indumentária, com este apetrecho Frontinesboçava para seus auxiliares as linhas mestras dos planos deobras que planejava de melhorias para estas localidades.2 1

“Chovesse a potes, ou derretesse o calor o asphaltodas ruas, ninguém o via sem seu fraque de bolsoslaterais e externos, sem o seu chapéo-côco, sem oseu guarda-chuvas pendurado no braço esquerdopelo cabo volteado.” 2 2

Segundo as más línguas, contudo, o uso contínuo de guarda-chuvas pelo prefeito relacionava-se ao episódio água em seis dias.Conforme noticiaram os jornais da cidade, no dia da inauguraçãodas obras realizadas por Frontin caiu na cidade uma chuvatorrencial como há muito não se via devido ao longo período deestiagem, transformando o Rio em uma Veneza em caricatura.Desde então, o engenheiro prevenido-se não teria mais descartadoo uso deste acessório em sua indumentária.

Através das excursões que fazia com seu guarda-chuvaacompanhado por seu staff administrativo, influências políticas erepórteres em áreas que tradicionalmente recebiam pouca atençãopor parte dos prefeitos,2 3 Frontin estabeleceu um canal abertoentre a prefeitura, as chefias locais e a população da cidade, queaté então usava tradicionalmente a imprensa para endereçar suasdemandas às autoridades públicas conforme demonstrou EduardoSilva (1988). Esta prática constitui uma das grandes singularidadesda sua gestão e, ao mesmo tempo, elemento central da obra deengenharia política que construiu em sua breve passagem pelaprefeitura do Distrito Federal.

Eduardo Tourinho, que por várias vezes fez parte daComitiva do prefeito na qualidade de repórter oficial, fez um relatoprecioso do que eram as excursões de Frontin pelos subúrbios do Rio:

prefeitura, Frontin acabaria deixando claro mais adiante sua posiçãopouco favorável em relação à cobrança tanto do imposto de expor-tação quanto do imposto predial,1 7 demonstrando que os limitesde sua ação paravam onde começava os interesses de setoresligados ao grande capital da cidade, ao qual estava vinculado.

Junto com o imposto de exportação, o imposto predial erauma importante fonte de receita da prefeitura do Distrito Federalno período.1 8 Sua cobrança, contudo, era o que se chamava naépoca uma fonte de escândalos. Como estampou em manchete ojornal A Rua em 7 de fevereiro de 1919: “ ... só paga (sic) quem étolo ou desprotegido.” 1 9 A matéria denunciava que a prefeituranão recebia dívidas de muitos contribuintes desde 1910 e apresentavaalgumas das estratégias acionadas pelos proprietários cariocas paraburlar o fisco. O problema era de longa data. Além da arrecadaçãode impostos na cidade apresentar falhas, desde as primeira gestões,pouco chegando às mãos da municipalidade, boa parte eraarrecadada para o Executivo federal que não repassava à prefeiturao montante recolhido (VON DER WEID: 1984, 22).

A saúde financeira da prefeitura passava pela garantiadestas duas fontes de renda. Frontin, contudo, um dos principaisrepresentantes do capital imobiliário da cidade, não estava dispostoa contrariar os interesses de um grupo do qual fazia parte nem aenfrentar os mesmos problemas de oposição à sua gestão,conforme sucedido com Amaro Cavalcanti, ainda que isso custasseo desequilíbrio das contas municipais. Além disso, o engenheirocarioca sabia que a sua estadia no casarão do Campo de Santananão duraria por muito tempo.2 0

Além de evitar atritos com o grande capital da cidade,Frontin desenvolveu em sua gestão uma políticainovadora no que dizia respeito a forma de administrara capital do país. Mesmo com uma prefeitura semrecursos, ao mesmo tempo em que deu início, numritmo frenético, a grandes obras de infra-estruturaurbana, sobretudo na zona sul, instituiu uma série depráticas até então pouco comuns à época: as visitasde inspeção a freguesias da cidade.

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Mesmo sem ter o vulto e a projeção das obras queparalelamente eram realizadas na zona sul, em algumas destaslocalidades do subúrbio carioca determinadas reivindicações daspopulações nelas residentes foram atendidas pelo prefeito.

Uma das áreas suburbanas contempladas por esta ação deFrontin foi Campo Grande, freguesia considerada zona rural dacidade que fazia parte do chamado Triângulo - região compostaainda por Santa Cruz e Guaratiba que, até 1915, havia sidodominada pelo médico carioca Augusto de Vasconcelos e com amorte deste passou ao domínio político de Octacílio Câmara,membro da Aliança Republicana.

Frontin deu início ao processo de eletrificação de CampoGrande, uma antiga reivindicação dos moradores que foi atendidapelo prefeito num prazo de 10 dias. A proeza apenas foi possívelem função das relações que mantinha de longa data comrepresentantes da Light, como Alexandre Mackenzie, advogadoda empresa que fazia parte do seu círculo de amizades.2 5

“ Muitas vezes – como político que era – via-seforçado a visitar os mais diversos pontos do Rio deJaneiro. Essas visitas se realizavam ora pela manhã,ora pela tarde e, às vezes, de noite. Influências eleitoraisou figuras do antigo Conselho Municipal, da CâmaraFederal ou do Senado da República figuravamsempre na Comitiva que se formava para essassucessivas excursões. Quando, então, se tratava doTriângulo - Santa Cruz, Campo Grande, Guaratiba –estava sempre presente Octacílio Camará. Como ospolíticos, da comitiva participavam sempre jornalistascredenciados junto ao gabinete do prefeito. Por isso,o autor desta crônica pôde conhecer todo o DistritoFederal.

Resultantes dessas visitas eram largasreportagens em tôrno do estado da cidade. Quandoocorriam pela manhã, grandes almoços eram sempreoferecidos ao Prefeito... Quando se iniciavam à tardee se prolon-gavam noite a dentro, havia sempregrande jantar.

Era certo – à sobremesa – um intérprete localsaudar o Dr. Frontin e enumerar os melhoramentosdesejados.

E, sempre, essa ou aquela obra surgia depois ...Daí também figurarem sempre nas excursõesnotáveis engenheiros da prefeitura dessa época: -Tôrres de Oliveira, Cupertino Durão, Angelo Baratae João da Costa Ferreira, ...

Para essas vistas, num cortejo de automóveisdeixava-se a sede da antiga prefeitura. Quanto maisdistante e acidentada era a excursão, maior interessetinham os jornalistas. À mesa de almoços oujantares, logo do José Moniz inquiria o Dr. Frontin:- Onde estão os rapazes da imprensa? Apontava-oso Moniz e o Prefeito se erguia para verificar se àmesa estavam todos. E, muita vez, na torrente dosdiscursos os jornalistas também falavam ...

Dessas missões civilizadoras regressava-se decorpo moído e rosto e roupa cobertos de poeira.2 4

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Peçanha e J. J. Seabra, rompendo inclusive com o partido que fundara– a Aliança Republicana. Por outro lado, é fato que, apesar de criticara forma de escolha do sucessor a mais alta magistratura do país,como chefe da principal agremiação partidária da cidade Frontinacobertava práticas bem pouco democráticas na hora dacomposição das chapas eleitorais e nas próprias eleições.

Outra área beneficiada pela ação política de Frontin naprefeitura foi o Méier. Nesta freguesia do subúrbio carioca, contudo,não foram implementadas obras de saneamento ou infra-estrutura.O lazer foi priorizado com a construção de um grande jardim.

Para realizar a obra, que consumiu uma área de 13 mil metrosquadrados, a prefeitura utilizou o terreno de uma antiga chácaraparticular desapropriada pela municipalidade na gestão de BentoRibeiro. Num prazo record de 92 dias o Jardim do Méier ficoupronto, custando a obra aos cofres municipais nada menos do que62:433$850.

A inauguração do jardim seguiu ritual idêntico às solenidadesda mesma natureza: banda de música, bandeirinhas, aclamaçãodo nome do prefeito pela população local, uma grande quantidadede alunos de escolas municipais, as tradicionais personalidadeslocais e o oferecimento de um lunch para o qual a populaçãomais uma vez não foi convidada.2 9

Ainda que a zona sul tenha sido a maior beneficiada em setratando de obras de remodelação urbana, diferentemente dosprefeitos anteriores, Frontin não voltou sua gestão apenas parauma localidade. O engenheiro fez política nos quatro cantos dacidade. Empreendendo melhoramentos em diferentes freguesiascariocas reforçava laços com influências políticas locais3 0 aomesmo tempo em que conquistava a simpatia e o voto destaspopulações, principalmente nos subúrbios e na zona rural, emborana agenda das necessidades destas populações jardins não eramexatamente o que se poderia chamar de prioridade.

Toda esta operosidade de Frontin na prefeitura do DistritoFederal foi por diversas vezes alvo de elogios e motivo para sátirana imprensa da época.3 1

O meio utilizado, contudo, visando financiar todas estasintervenções no espaço urbano carioca não foi inovador. Para dar

A inauguração do feito, em 9 de abril, foi acompanhada deuma grande festa que incluiu desfile de alunos de escolas locais,inauguração de placa comemorativa em homenagem ao prefeitoe um banquete reunindo os altos funcionários da prefeitura,intendentes, deputados e, como de praxe, os jornalistas que faziamparte da sua comitiva, além de expoentes da política local.2 6 Algo,aliás, que ocorria com freqüência nestas ocasiões nas quais Frontinampliava sua rede de relações e firmava acordos políticos.

Numa clara demonstração de que prefeito fazia política,em seu discurso Frontin tratou de assegurar os louros da iniciativada obra exclusivamente para a prefeitura, destacando não ter nelainfluído nem o Congresso nem o Ministério da Viação. Seucomentário foi bastante incisivo a esse respeito: “Não se deveattribuir penas de pavão a quem não merece.” 2 7Aproveitandoo ensejo para tratar da campanha presidencial em curso, oengenheiro carioca criticou os processos de consulta do chefe doExecutivo federal na escolha de seu sucessor, defendendo acandidatura dissidente de Rui Barbosa à presidência, dando umaclara demonstração da autonomia que defendia para a cidade epara o cargo que ocupava em relação ao governo federal.

O teor do seu discurso se tornaria alvo da imprensa. O jornalA Razão, na edição de 10 de maio de 1919, criticou o apoio doprefeito à candidatura de Rui Barbosa ao invés da chapa EpitácioPessôa. De acordo com a folha, o engenheiro carioca curiosamentenão se recordava dos ataques deferidos pelo candidato civilista,Rui Barbosa, nas eleições de março de 1910 contra sua pessoa, jáque Frontin apoiara na ocasião a candidatura oficial de Hermesda Fonseca. O editor do jornal lançaria a questão: A nova posturaera fruto de arrependimento cívico, paixão patriótica de ultimahora ou manobra politiqueira?2 8

Não é tarefa fácil explicar essa mudança de posicionamentoassumida pelo engenheiro carioca, mas, conforme já foi assinalado,ela é um importante indicativo da postura de autonomia pleiteadapor lideranças da elite política carioca em relação às diretrizes dogoverno federal. O alinhamento nas fileiras da oposição também seriaverificado na campanha de sucessão presidencial de 1922, na qualFrontin declarou seu apoio às candidaturas oposicionistas de Nilo

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discípulo Sampaio Corrêa ter se esforçado em justificar a falta delicitações com base na exigüidade de tempo para a realização dasobras, o fato é que a ação do prefeito realmente infringiu leismunicipais. Não se pode esquecer, contudo, que Frontin contavacom a maioria de aliancistas no Conselho Municipal, instituiçãoresponsável pela fiscalização destes contratos e o Clube de Engenharia(dirigido pelo engenheiro carioca) era a um só tempo uma espéciede consultor técnico do governo e um balcão de negócios para osempreiteiros da cidade. Finalmente no que diz respeito às reformasdo Matadouro e do gabinete da prefeitura, se por um lado asmodificações introduzidas tenham sido justificadas com base namelhoria da qualidade dos serviços, por outro não se pode negar ocunho eleitoral das iniciativas. A criação de cargos foi uma medidaque visava ao pagamento por serviços políticos prestados.

Mas não foi apenas evitando contrariar interesses do grandecapital, investindo em marketing político, sedimentando aliançaspolíticas com chefias locais e a população do subúrbio e áreasrurais – regiões em que o controle do voto do eleitorado não erauma ficção mas uma realidade com características bastantepróximas ao observado nos municípios brasileiros no período -,criticando os processos de escolha aplicados nas sucessõespresidenciais e favorecendo a ação de empreiteiros, mesmo àscustas do comprometimento das contas públicas, que Frontinmarcou sua passagem pela prefeitura da mais importante cidadedo país no período. Baseando-se numa experiência acumuladanas suas duas gestões como diretor da Estrada de Ferro Centraldo Brasil, o engenheiro flertou também com outro ator políticoimportante: o operariado municipal.

Em 1º de maio de 1919 Frontin promulgou o decreto de lein.º 1.329. Elaborada pelo próprio prefeito, entre outras providências,a lei concedia aos operários municipais com mais de 10 anos deserviço à prefeitura direitos e regalias conferidos apenas aosfuncionários públicos do município.3 7 Com a promulgação dodecreto, Frontin passaria a ser chamado Pae do Operariado.Um dado curioso, ressaltado na imprensa da época, é que a canetacom que Frontin assinou o decreto era de ouro cravejada de brilhantese safiras e terminava com uma folha de louro em cuja ponta havia

continuidade a tamanho número de obras Frontin recorreu a umexpediente bem pouco original. Em fins de maio de 1919, contraiuum empréstimo de 10 milhões de dólares junto à The EquitableTrust Company de Nova York. A ação provocou os seguintescomentários na imprensa: “A Prefeitura contrahiu umempréstimo de 100.000.000 de dollares. O dr. Frontin, que éConde, vae ser promovido a Príncipe ... dos dóllares.”3 2 Aoinvés da ironia, a matéria publicada no Jornal do Brasil, foi maisdireta na crítica a Frontin: “O empréstimo municipal. Para ondenos leva o Sr. Frontin? Inconsciência ou loucura?”3 3

Na Câmara, a reação à iniciativa do empréstimo partiu deMetello Jr. O deputado da representação carioca, membro dopartido que rivalizava com a Aliança Republicana na política dacidade, o Partido Republicano do Distrito Federal, fez umrequerimento junto ao Ministro do Interior de informações sobre anatureza do empréstimo, as garantias da operação e a origem dosrecursos que a prefeitura do Distrito Federal utilizaria para o seupagamento. Apesar de se opor ao requerimento, para provar aprobidade administrativa de Frontin, Octacílio Camará votou a favor,juntamente com os aliancistas e Nicanor Nascimento, sendo omesmo aprovado.3 4

Salles Filho, também do PRDF, foi mais incisivo. Atravésda tribuna da Câmara criticou a operação classificando-a comoimoral para as finanças do município. Aproveitando o ensejo,denunciou a falta de concorrência pública nas obras implementadaspor Frontin e as reformas empreendidas no Matadouro de SantaCruz e no gabinete da prefeitura que, na sua perspectiva, visavambeneficiar correligionários políticos.3 5

De fato, a operação se revelaria pouco saudável para oequilíbrio financeiro da municipalidade. A grande ironia da históriaé que Frontin entrou na prefeitura implementando a princípiomedidas visando equilibrar as suas contas, se declarava admiradorde Joaquim Murtinho e defenderia mais adiante a políticaeconômico-financeira do Ministro da Fazenda de Campos Salesneste mesmo ano de 1919 na Câmara, ao conquistar uma cadeirana representação carioca.3 6 Quanto à denúncia da irregularidadenos contratos para a realização das obras, apesar de seu dileto

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aliados políticos, e pelo diretor do Matadouro de Santa Cruz –Antônio Santos Malheiros.

A Gazeta de Notícias, edição de 11 de abril de 1919, fazendouma comparação com a postura assumida por Frontin no referidopleito, revelou manobras e abusos de Santos Malheiros:

“Agora mesmo, quando o Dr. Paulo de Frontin dáuma prova de que está disposto a respeitar aliberdade de voto, o director do Matadouro de SantaCruz obriga ostensivamente os empregados a votarnos candidatos por ele indicados para as próximaseleições. Na consecução do seu intuito, age tambémo administrador do Matadouro, Sr. Esmerio Caetanode Azevedo, que é pao para toda obra.” 4 0

A verdade Eleitoral. A moralidade política não permitirá que a Verdadesaia nua das urnas. K.Lixto D. Quixote (20-2-1918)

a data 1º de maio de 1919. A jóia teria sido um presente ofertadopelos sócios da Sociedade Beneficente Operários Municipais. 3 8

A questão que se coloca é: como interpretar este ato doprefeito? Mais uma medida com o objetivo de ampliar sua basepolítica na cidade? Um feito que visava, de fato, melhorar a situaçãodo operariado municipal? Ou a percepção de um estadista doavanço do movimento operário na Europa e no Brasil, que assistiraaos acontecimentos que culminaram com a revolução russa e asgreves no Rio e em São Paulo e antecipou medidas atendendo aantigas reivindicações trabalhistas de setores pertencentes aofuncionalismo público para a garantia da ordem?

Para se entender esta ação de Frontin é importante levarem consideração todas estas variáveis já que elas estão longede ser excludentes.

Sem dúvida, o decreto de 1º de maio teve um cunhoclientelista3 9 uma vez que, de fato, com a lei o engenheiro políticoconseguiu angariar o apoio de um importante grupo detrabalhadores da municipalidade, garantindo para si nos anosseguintes importantes dividendos políticos.

Vale à pena lembrar que na Primeira República ofuncionalismo público representava um segmento expressivo dopequeno universo de eleitores da cidade. Nas eleições estesservidores eram um grupo dos mais assíduos e aquele sobre aqual se exercia controle, efetuado na maioria dos casos peloschefes das repartições municipais.

Esta pressão sobre o voto dos funcionários públicos foi pordiversas vezes retratada na literatura de cronistas da época, comoLima Barreto. Era prática comum em períodos de eleições que osprefeitos, através de circulares endereçadas aos chefes das repartiçõesmunicipais, indicassem os candidatos governistas a seremsufragados pelo funcionalismo, a exemplo do que faziam os chefespolíticos locais em seus currais eleitorais na Primeira República.

O próprio Frontin, no pleito presidencial de 1919,recomendou aos chefes de repartições que dessem liberdadede voto aos funcionários. Uma série de matérias, contudo,surgiram na imprensa na ocasião denunciando práticas decoação efetuadas por Octacílio Camará, um de seus principais

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iniciativa não devia neste sentido ser festejada já que pelas razõesexpostas teria uma natureza retrógrada e humilhante.4 3

A exemplo do ocorrido com o decreto de 1º de maio, apassagem de Frontin pela prefeitura do Distrito Federal, muitoelogiada por seus memorialistas, não provocou na épocaunanimidade. Se havia um setor da imprensa afinado com o prefeitotambém existiam vozes criticando sua gestão. Na imprensa carioca,o Jornal do Brasil serviu muitas vezes de porta voz dos setoresdescontentes. Na edição de 15 de maio, para citar um exemplo, afolha classificou de desastrada a administração do engenheirocarioca. Em uma matéria, sugestivamente intitulada Os desatinosdo Prefeito afirmou sofrer Frontin de megalomania e a populaçãoda cidade de ausência de juízo. Segundo o editor, o prefeitoproporcionava pão e circo aos cariocas: “A ordem do dia éapplaudir ao republico magnífico, que vae proporcionandopão e circo ao povo. Emquanto elle nutrir essas modestasaspirações da massa, não há por onde censurál-o.”

A fama de esbanjador de Frontin, contudo, não era recente.Na verdade esta pecha vinha do período em que esteve à frentepela segunda vez da direção da Estrada de Ferro Central do Brasil,durante o governo Hermes. Ocasião em que, entre outros, duplicoualinha da estrada de ferro Serra do Mar.

Em seu perfil, traçado por diversas pessoas, há quase umaunanimidade em se afirmar junto com a tendência a gastosvultuosos a exagerada dedicação ao trabalho.

De certo modo o Rio Jornal, na edição de 22 de janeiro de1919, acertou na previsão do que seria a administração Frontin. Oeditor da folha previu uma gestão de estagnação das finanças daprefeitura, mas também marcada por muitas iniciativas.

Conforme foi visto até aqui, o plano de gestão posto emprática por Frontin na Prefeitura do Rio baseou-se na realizaçãoimediata e simultânea de diferentes obras em vários pontos dacidade. A análise da sua atuação à frente do Executivo municipalindica que esta foi também sua principal estratégia de ação nocampo da política carioca. Simultaneamente Frontin procurouagradar a gregos e troianos. Desenvolveu uma política fiscal quenão contrariou os interesses ligados ao grande capital da cidade.

O editor apelava ao prefeito para que não apoiasse o seusubordinado, compactuando com suas práticas nas eleições àpresidência da República e ao Congresso de 13 de abril de 1919.

A invocação, no entanto, não surtiu efeito. No dia 16 amesma folha voltaria a denunciar com veemência atospraticados pelo diretor do Matadouro e seus subordinados contraa liberdade de voto e as represálias de que estavam sendo alvodois funcionários que haviam votado na chapa Epitácio Pessoa-Pedro Reis, ao invés de sufragar a chapa Rui-Camará, apoiadapor Frontin e pela Aliança Republicana.4 1

Embora a lei de 1º de maio tinha sido promulgada semanasdepois deste episódio, graças ao decreto Paulo de Frontin foihomenageado por diversas organizações de trabalhadores durantemuito tempo, conseguindo eleger-se com votos deste segmentoem todos os pleitos que participou até a sua morte em 1933.

Por outro lado, não se pode negar que o decreto implicavaem melhorias nas duras condições de vida destes trabalhadoresmunicipais. Logo nos primeiros dias de sua gestão Frontin recebeuuma comissão formada por operários da prefeitura solicitando asmesmas garantias concedidas apenas a um seleto grupo defuncionários. Era de fato bastante precária a situação deste segmentoque não dispunha de garantias de nenhuma natureza numa época emque epidemias eram uma ameaça constante, apesar da gripeespanhola já ter sido debelada, a carestia de vida uma realidade ea idéia de uma legislação trabalhista sinônimo de subversão.

Mas além de voltado para as condições de vida dooperariado, Frontin mostrava-se atento ao avanço de determinadasideologias entre estes setores, particularmente o anarquismo. 4 2

O decreto de 1º de maio esteve longe de ter sido aplaudidopor todos. A lei foi objeto de duras críticas por parte do futuromembro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Astrogildo Pereira.Num interessante artigo intitulado A Humilhação, Astrogildodiscutiu o significado da data de 1º de maio para o movimentooperário internacional e classificou o ato de Frontin comoburocratização destes trabalhadores municipais. Segundo o autor,o funcionário do Estado seria o exemplo típico do parasita, apersonificação do homem estéril, inútil, aquele que não trabalha. A

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acclamado com o concurso de toda a federaçãobrasileira, para reger os altos destinos da Pátria” 4 7

Como era de se esperar, o movimento não surtiu efeito. Umdos elementos importantes para se compreender a não permanênciade Frontin à frente do Executivo municipal é o fato de que ele nãoera só uma figura de destaque em sua área de atuação profissional.Além de engenheiro renomado, com grandes serviços prestados àcidade e ao país, Frontin era chefe de um partido, que naquele momentoera a mais importante força política do Rio, a Aliança Republicana.

É preciso observar também que sua atuação na prefeitura,sobretudo no que diz respeito às alianças seladas com influênciaspolíticas locais e à lei que favoreceu o operariado municipal, lheproporcionou importantes dividendos, fazendo crescer de formasignificativa o seu prestigio junto a estes setores e, conseqüentemente,o seu capital político. Um prefeito com uma atuação tão independenteameaçava a política de neutralização do campo político cariocaimplementada a partir do governo Campos Sales visando garantir aingerência do governo federal nos rumos da política local. Nessesentido, o posicionamento de Frontin no que diz respeito à campanhapresidencial de 1919 parece ter sido o estopim.

Ao invés de apoiar as forças governistas, representadaspor Epitácio Pessôa, Frontin e o partido por ele dirigido assumiramuma postura de oposição. O prefeito deixou bem claro o seu apoioà candidatura de Rui Barbosa, conforme foi visto, apesar do políticobaiano lhe ter endereçado duras críticas durante a CampanhaCivilista na qual Frontin se aproximara das forças políticas ligadasao marechal Hermes da Fonseca. É bem provável que sua opçãonaquele momento em apoiar a candidatura dissidente, mesmosabendo das diminutas chances de sucesso, tenha estadorelacionada ao desejo de imprimir um conteúdo mais autônomo àpolítica carioca, já que Rui em 1909 defendera a autonomia doDistrito Federal em sua campanha eleitoral.

Como era comum nos pleitos presidenciais do período, asituação saiu vitoriosa. Com a derrota nas urnas, o engenheiro eos setores a ele ligados viram frustrados qualquer pretensão depermanência no cargo de prefeito da cidade onde nascera.

Ao mesmo tempo em que não entrava em rota de colisão comeste segmento, esmerou-se por estruturar alianças com influênciaspolíticas de diferentes freguesias, sobretudo do subúrbio e da zonarural, conquistando o apoio também destas populações. Paracompletar, ensaiou um movimento de aproximação com setoresdo operariado da prefeitura da capital federal. Tudo isso em apenasseis meses de gestão. Tempo suficiente para ampliar de formaconsiderável o seu capital político na cidade do Rio e projetar oseu nome nacionalmente.

Tamanha ação à frente do Executivo municipal fez comque surgisse na imprensa especulações a cerca de uma futurapresidência da República,4 4além de um movimento por suapermanência no cargo.

Com a proximidade de sua saída, devido à posse de EpitácioPessôa, iniciou-se um movimento pela permanência de Frontin naprefeitura do Distrito Federal. A iniciativa foi do Partido RepublicanoFeminino presidido pela professora Leolinda Daltro.4 5

As adesões ao movimento vieram de variados setores dasociedade e inúmeros diretórios foram organizados pela cidadepara o recolhimento de assinaturas a serem enviadas ao presidenteeleito pedindo a permanência de Frontin no cargo.4 6 Além dassenhoras e senhoritas do partido Republicano Feminino, a Uniãodos Operários Municipais também participou do movimento,convidando inclusive a população para integra-lo.

A imprensa, como não poderia ser diferente, também serviude veículo para os setores interessados na permanência do prefeito.No Suburbano, Benjamin Magalhães escreveu um verdadeirolibelo contra as destituições do prefeito, de Barbosa Lima da direçãodo Lloyd e de Aureliano Leal da chefia de polícia da cidade nonovo quadriênio presidencial:

“Essas destituições eqüivalem a uma desgraçapública. Na Prefeitura está a última palavra do saberhumano, o gênio maravilhoso que não póde, semhumilhação para a Cidade, largar um cargo cujoexercício tem sido a via-láctea do resurgimento daterra carioca, da qual o seu filho eminenteconsagrado pela justiça popular há de sahir

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Por outro lado, no próprio interior da própria política cariocacomeçou a apresentar fissuras. A principal foi ocasionada peloracha provocado pelo apoio de Frontin a Octacílio Câmara paraocupar a cadeira que renunciara no Senado para assumir aprefeitura, preterindo uma das mais tradicionais chefias da cidade:Pedro Reis. Com a saída de Reis, a Aliança Republicana e Frontinnão perderam a liderança que usufruíam na política carioca, masprivaram-se de um importante aliado e assistiram ao afastamentode influências políticas ligadas àquela chefia.

Sem possibilidade de permanecer na prefeitura, em 26 dejulho, Frontin entregou o seu cargo a Delfim Moreira, presidenteresponsável por sua nomeação. O ato, contudo, esteve longe designificar uma derrota política. O príncipe da engenharianacional, como era chamado por Francisco Sá, continuaria sendofigura de proa da política carioca na década seguinte. Além depermanecer na chefia da Aliança Republicana no fim do mesmoano de sua saída da prefeitura seria eleito deputado pelarepresentação do Distrito Federal e reconquistaria sua cadeira noSenado, pouco tempo depois, permanecendo na Câmara Alta atéo ano de sua morte - 1933. Sua presença seria ainda bastantemarcante no governo Carlos Sampaio. 4 8

À guisa de conclusão

Criado em 1892, o cargo de prefeito do Distrito Federal, denomeação direta do presidente da República, garantia a ingerênciado governo federal na política carioca. Contrariando e manipulandoas regras do jogo político na capital da República, contudo, e,sobretudo negociando com diferentes atores, Frontin usou suaestada na prefeitura, em 1919, para sedimentar sua base políticano Distrito Federal e, conseqüentemente, imprimir um conteúdomais autônomo à política local. Não é exagerado dizer, nessesentido, que sua ação esteve muito além do que se poderiaclassificar como a de um mero administrador e/ou interventor dogoverno federal na cidade do Rio.

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NOTAS

1 Para Vânia Cury, os prefeitos bacharéis predominaram na capitalda República e se preocuparam principalmente com rotinasadministrativas. Essa visão mostra-se em consonância com achamada política de neutralização do campo político cariocaimplementada pelo Executivo Federal no período estudada porAmérico Freire em artigo publicado em 1996.2 Esta visão do prefeito do Distrito Federal como uma espécie deinterventor nomeado pelo Presidente é veiculada nos trabalhos deJosé Murilo de Carvalho e Ana Marta Bastos. Diferente destes doisautores, Elisabeth Von der Weid trabalha com a idéia do prefeitoenquanto intermediário entre o poder federal e o poder municipal.3 Ainda está por ser feito um estudo minucioso de cada uma destasgestões. Um dos grandes empecilhos continua sendo a dispersão deacervos e, em alguns casos, a inexistência de arquivos organizados.Dentre os poucos trabalhos já produzidos com este perfil podem sercitados os estudos de Kessel sobre a administração Carlos Sampaio eo de Sarmento que aborda a experiência Pedro Ernesto nos anos trinta.4Para um balanço da produção historiográfica relativa ao tema ver aintrodução da tese de Surama Conde Sá Pinto – Elites políticas e ojogo de poder na cidade do Rio de Janeiro (1909-1922).5 Em 1889 a cidade do Rio passava por sérios problemas deabastecimento de água. Tentando resolver a questão, o Imperadordivulgou uma série de editais. Paulo de Frontin apresentou um projetoque implicava na solução do problema em seis dias e com um custobem abaixo do apresentado por outros engenheiros. Desafiado a tiraro projeto do papel, ele assim o fez com êxito. Por ter conseguido aproeza no prazo apresentado, o episódio ficou conhecido como águaem seis dias. Arquivo Paulo de Frontin, lata 51, documento 34. Vertambém a matéria “Frontin: herói que vence a morte dando ao Rio‘água em seis dias,’” publicada no Suplemento Dominical do Jornaldo Commércio, edição de 8 de maio de 1966. Arquivo Paulo deFrontin, lata 52, documento 04.6 A alcunha de prefeito da varinha de condão surgiu na imprensadurante a gestão de Frontin na prefeitura carioca.7 O período correspondente à administração Pereira Passos tem sidoalvo de vários estudos, muitos dos quais centrados nas

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VON DER WEID, Elisabeth. “O Prefeito como intermediário entre opoder federal e o poder municipal na capital da República.“ Rio deJaneiro: Centro de Estudos Históricos/ Fundação Casa de Rui Barbosa,1984 (mímeo)

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12 Correio da Manhã, edição de 22 de janeiro de 1919.13Em dezembro de 1919, meses depois de deixar a prefeitura doDistrito Federal, Frontin seria eleito deputado federal pelo primeirodistrito eleitoral da cidade. Na Câmara permaneceu apenas até 1921quando, por ocasião da renovação do terço, conquistou em fevereironovamente uma cadeira no Senado pela representação carioca, ondepermaneceu até 1933. Mesmo perdendo seu mandato com a revoluçãode 1930, o reconquistaria, ficando no Senado até sua morte em 1933.14 O capital político, de acordo com Bourdieu, “... é uma forma decapital simbólico, um crédito firmado na crença e no reconhecimentoou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quaisos agentes conferem a uma pessoa - ou a um objeto - os própriospoderes que eles lhe reconhecem”. Esse capital só pode serconservado mediante trabalho constante de acumulação de crédito,bem como de evitar descrédito.15 Em 11 de janeiro de 1918 Francisco Eugênio Leal, representandoa Associação Comercial do Rio de Janeiro, escreveu a Paulo deFrontin, senador pelo Distrito Federal na ocasião, solicitando o seuempenho contra o imposto de exportação. Ver Arquivo Paulo deFrontin, lata 18, documento 36.16 A gestão de Sá Freire, que sucedeu Frontin, pode ser consideradauma exceção à tendência mencionada. Encontrando a prefeitura emsituação delicada, sobretudo porque o final da administração anteriorfoi marcado por decretos que aumentaram extraordinariamente osgastos com pessoal, Freire elegeu o restabelecimento do equilíbriofinanceiro das contas municipais a meta prioritária de sua gestão,assumindo inclusive uma postura de franca oposição à pressão pelaimplementação de obras visando preparar a cidade para ascomemorações do centenário da Independência. SANTOS, Noronha,op. cit., p. 67.17 A Política, edição de 31 de janeiro de 1919.18 A prefeitura do Distrito Federal dependia fortemente do impostopredial como fonte de recursos. Para tabelas sobre evolução anualdas receitas e despesas da prefeitura e a participação do imposto predialver: PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Rio de Janeiro 1935. Riode Janeiro: Officinas Graphicas do Jornal do Brasil, 1936, p. 57.19 A Rua, edição de 7 de fevereiro de 1919.

transformações urbanísticas do Rio de Janeiro. O que estes autoresem geral destacam é o fortalecimento do poder Executivo municipal,sendo o símbolo máximo deste processo o fechamento do Conselhode Intendência no início de sua gestão – episódio que marcou oapogeu da incompatibilidade entre Passos e os intendentes.8 Um bom termômetro da importância e ligação de Frontin com acidade pode ser medido nas comemorações do seu Centenário em15 de setembro de 1960. Na ocasião foi organizado um fórum pelaAssociação Comercial em sua homenagem onde foram discutidosos problemas do recém criado Estado da Guanabara.9 Nem mesmo a interessante tese de Vânia Maria Cury, cujo objetivocentral é analisar as formas específicas como os engenheirosconseguiram consolidar sua posição política no cenário da República,conseguiu romper com esta imagem de engenheiro por excelênciaconstruída de Frontin veiculada em matérias jornalísticas e naprodução do Clube de Engenharia, seja na Revista da instituição ouem obras comemorativas, como o livro coordenado por CezarHonorato.10 O Arquivo Paulo de Frontin constitui um manancial para pesquisapraticamente inexplorado. Doado ao Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro, em julho de 1986, por Maria da Glória Frontin MunizFreire, filha do titular, possui um acervo bastante rico, reunindodocumentação de natureza variada, constituído por recortes de jornais,discursos, circulares, panfletos, programas de cursos, aulas,conferências, entre outros, sendo a correspondência passiva a partemais expressiva. Reunindo um total aproximado de sete mildocumentos textuais, além de fotográficos, o arquivo contempla umconjunto de temas bastante amplo relativos à política carioca, DerbyClub, política nacional e internacional, estradas de ferro, eleições,entre outros. Uma das especificidades deste acervo são os cincoálbuns que documentam mês a mês a passagem de Frontin pelaprefeitura do Distrito Federal, com exceção do último mês. Éimportante ressaltar, devido ao fato deste Arquivo encontrar-se emfase final de catalogação, quando a pesquisa que deu origem a esteartigo foi realizada, todas as referência à documentação foramreproduzidas de acordo com a planilha de cada um dos documentosconsultados.11 Jornal do Commércio, edição de 22 de janeiro de 1919.

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27 Gazeta de Notícias, edição de 10/04/1919.28 A Razão, na edição de 10 de maio de 1919.29 Aristides Caire era o chefe político do Méier. Para a cobertura naimprensa do evento ver O Paiz e o Imparcial, edição de 25 de maiode 1919.30 A política de alianças desenvolvida por Frontin com influênciaseleitorais dos subúrbios cariocas além de conhecer êxito, teve longaduração, conforme mostra a reportagem publicada no Jornal doBrasil, edição de 19 novembro de 1929. Em boa medida foi graças aela que o engenheiro carioca conseguir se reeleger nas eleições paraa renovação do terço do Senado daquele ano.31 Ver “O dia do Senhor Frontin: O homem em 24 horas, trabalhando,discutindo, meditando,” Rio Jornal, edição de 21 de fevereiro de 1919.32 A Notícia, edição de 27 de maio de 1919.33 Jornal do Brasil, edição de 23 de maio de 1919.34 Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. I, p. 527.35 Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. III, p. 57.36 Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. XII, 1082.37 Para cópia do decreto n.º 1.329 de 1º de maio de 1919 ver ArquivoPaulo de Frontin, lata 47, documento 22. Discursando posteriormentepara os operários a 7 de fevereiro de 1930, em plena campanha paraa renovação do Senado, Frontin explicaria que pretendia estabelecerum prazo menor de dez annos, mas como prefeito, cargo denomeação do Presidente da República, tive de ceder nesse pontoquando redigiu o decreto de 1º de Maio. (p. 5)38 A Sociedade Beneficente Operários Municipais funcionava naRua Senador Eusébio 59.39 O uso do conceito de clientelismo aqui segue a definição de JoséMurilo de Carvalho no artigo publicado em 1997 no qual analisa oemprego de determinados conceitos pelos historiadores.40 A Gazeta de Notícias, edição de 11 de abril de 1919.41 “A Política em Santa Cruz”, Gazeta de Notícias, edição de 16/04/1919. Ver também novas denúncias na edição de 5 de maio.42 Em seu discurso Frontin afirmou que as vantagens que estavamsendo concedidas ao operariado municipal deveriam ser extensivasa todos os operários brasileiros. Ver: “A grande manifestação operáriade hontem.”, A Rua, edição de 2 de maio de 1919.

20 A sede da prefeitura no período estava localizada em um casarãono Campo de Santana.21 Apesar do gosto refinado, da admiração pelo teatro francês, óperae música em geral, mas particularmente a do compositor alemãoWagner, Frontin não se deixou seduzir pelos ditames da moda deParis nem a de Londres no que dizia respeito à indumentária. Fraque,chapéu coco e guarda-chuva (que tinha o hábito de arrastar pelochão) eram as peças básicas de seu guarda-roupa. Conforme contavasua esposa, no círculo íntimo conhecida como dona Mariquinha,nos seis meses me que esteve à frente da prefeitura, o então prefeitogastou nada menos do que 19 guarda-chuvas.22 Jornal do Brasil, edição de 22 de fevereiro de 1933.23 Amaro Cavalcanti pode ser considerado uma exceção. Em suagestão, o magistrado potiguar deu ênfase ao atendimento dasdemandas das zonas suburbana e rural, além de ter se voltado para oproblema do abastecimento da cidade, incentivando a lavoura e aprodução artesanal, reparando estradas para facilitar o escoamentodesta produção. Arquivo Amaro Cavalcanti, lata 615, pasta 3.24 Jornal do Commércio, edição de 2 de outubro de 1960. Vale destacar,Augusto Malta era o fotógrafo oficial da prefeitura nestes eventos.25 Alexandre Mackenzie era advogado canadense representante daLight no Brasil e o engenheiro americano Frederick Pearson orepresentante dos interesses americanos da empresa. Este último,por indicação de Frontin, se tornaria sócio do Clube de Engenharia,episódio que mostra as articulações do engenheiro carioca e dainstituição que presidia com o grande capital, inclusive estrangeiro,bem como revela o papel central do Clube de Engenharia nasarticulações e transações empresariais do período. A instituiçãofuncionava como um verdadeiro centro de conhecimentos técnicos,contatos políticos e balcão de negócios.26 O jornal Gazeta de Notícias, edição de 10/04/1919, deu amplacobertura ao evento. É interessante a distribuição dos lugares namesa do banquete narrada na reportagem: “Ao centro da mesa sesentaram o Sr. Prefeito, ladeado pelos Srs. Deputados OctacílioCamará, Sampaio Corrêa (discípulo de Frontin), intendentes EduardoXavier e Cesário de Mello, Drs. Rego Barros (representando a Light),Raul Cardoso, Raul Barroso, demais membros de sua comitiva econvidados.”

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O RELATO HAGIOGRÁFICO COMO FONTE HISTÓRICA

Ana Paula Lopes Pereira*

Resumo

A literatura hagiográfica forma um corpus documental,polimórfico e multilinguístico cuja produção não se interrompedurante quase mil anos, da Antiguidade Tardia aoRenascimento. Este artigo tem por objetivo mostrar odesenvolvimento dos estudos históricos que têm comoprincipal fonte de análise as vidas de santos. A crítica textuale a edição dos manuscritos hagiográficos se iniciam no séculoXVII, com o jesuíta Héribert Rosweyde, e com o trabalhomonumental dos chamados Bollandistas.Há alguns anos os estudos, cujo objeto de análise são o santoe a santidade, abriram-se, na historiografia européia, paranovas perspectivas de pesquisa interdisciplinar. Novas questõessobre o santo, sua função na sociedade, as manifestaçõesespirituais e as atitudes mentais que concernem à construçãode uma vida santa foram colocadas, demandando novasabordagens das fontes hagiográficas. Dos Bollandistas aogrupo de pesquisa Hagiographies, dirigido por Guy Philippart,um longo caminho foi percorrido. As novas pesquisasconsideram, para além do santo e de seu culto, o texto literário,a narrativa hagiográfica. Com as ciências sociais, o relatohagiográfico passa a ser um objeto em si : o estudo do texto,a estrutura e a evolução da narrativa. Dos Atos dos Mártiresàs Biografias Espirituais do século XIII, vemos umatransformação dos sistemas narrativos, que acompanham eanunciam as mudanças na percepção e na prática da santidade.É a complexificação desse objeto e as novas perspectivas depesquisa aí implicadas que buscamos considerar aqui.

Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense(1990), Bacharelem História Medieval pela Universidade de Paris IV- Sorbonne (1991), Mestreem História Medieval pela Universidade de Paris VIII- Saint-Denis (1994).Prof. Assistente de História Antiga e Medieval da UERJ - F.F.P.

Palavras-chave: Hagiografia, santo, santidade, relato hagiográfico,interdisciplinaridade

43 Arquivo Paulo de Frontin, lata 57, documento 02.44 “Perfis Políticos. O constructor manirroto” – Braz de Pinna. ArquivoPaulo de Frontin, lata 57, documento 02.45 A Razão, edição de 10 e 19 de maio de 1919.46 Os primeiros diretórios organizados foram na Penha e em Bangú.47 “A prefeitura, o Lloyd e a Polícia”, O Suburbano, edição de 17 demaio de 1919.48 Ver carta de Jorge Street pedindo interferência de Frontin junto aCarlos Sampaio para colocação de protegido em cargo de repartiçãoque estava sendo criada na prefeitura. Arquivo Paulo de Frontin, lata18 documento 94. Assim como este documento, muitos outrossolicitando a intervenção de Frontin junto a Carlos Sampaio quandoo último ocupava a prefeitura podem ser encontrados em seu Arquivo.Frontin foi também árbitro nas divergências entre a Prefeitura e oadministrador do arrasamento do morro do Castelo.

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A palavra hagiografia vem do grego hagiographon esignifica, literalmente, escrita santa. Conhecida dos autoresantigos, mas não em sua utilização santoral, refere-se aos escritosditos inspirados.1 Jerônimo traduz, na vulgata, a palavra hebraicaketubim pelo neutro plural hagiographa, para designar os livrosdo Antigo Testamento: o livro de Jó, os Salmos, os Provérbios, oCântico dos Cânticos, o Eclesiastes, Esther, Daniel, Esdras-Néhémias, as Crônicas, Ruth, e as Lamentações. No século VII,Isidoro de Sevilha utiliza hagiographi para nomear os autoresescriturários, designação ainda empregada no século XII por Hugode São-Vitor, para quem agiographi são os que escrevem aterceira parte do Antigo Testamento, posterior aos Profetas. Entreos séculos IX e XII hagiographa designa mais genericamente« escritos santos », piedosos e sagrados. Os mais antigostestemunhos desta utilização extra-bíblica são encontrados nosdocumentos Cartuxos. No século XIII, apesar da grande produçãode compilações de vidas, como a Legenda Aurea do dominicanoJacopo da Varazze, não vemos uma mudança semântica nos termosde hagiografia e hagiógrafo. Segundo Guy Philippart, temos ummanual de Ars praedicandi que menciona várias scriptahagiographica2 , sem dúvida se remetendo a Vidas e Milagresde santos, e há ainda um tratado de nomes de santos intituladoHagiographia em que o autor diz tratar-se de scripturasanctorum3 : aqui o prefixo hagio designa especificamente santose não simplesmente santidade.4 Ainda, para Thomas de Aquino,agiographus é um escritor dotado de inspiração sobrenatural,mantendo a nuance bíblica.5

Entretanto a utilização santoral que podemos começar aentrever não se fixa. Segundo Guy Philippart, “nenhum conceitona Idade Média designa o conjunto do corpus literário ou históricoconsagrado aos santos, nem o conjunto maior ainda de documentostendo relação com a santidade »6 (como livros litúrgicos,sacramentais, litanias, livros de ofícios, de rituais ou processionais,calendários, miniaturas, inventário de relíquias, etc.). Assim aliteratura relativa aos santos é comumente designada naAntiguidade Tardia e na Idade Média de Acta, gestae, vitae,passio, legenda7 , sendo que este último termo ganha uma

Résumé

La littérature hagiographique comprend un corpusdocumentaire polymorphe et plurilinguistique, dontla production ininterrompue dure presque mil ans,depuis l’Antiquité Tardive à la Renaissance. Cetarticle a pour objectif montrer le développementdes recherches historiques ayant comme sourcesles vies de saints. La critique textuelle et l’éditiondes manuscrits hagiographiques commencent, auXVIIème siècle, avec le jésuite Héribert Rosweydeet, surtout, avec le travail monumental des Bollandistes.Depuis quelques décennies les études dont l’objetd’analyse est le saint e a sainteté ont connu un essordans l’historiographie européenne, en conséquencedes nouvelles perspectives de rechercheinterdisciplinaire. De nouvelles questions au sujet dusaint, de sa fonction dans la société, les manifestationsspirituelles et les attitudes mentales qui appartiennentà l’enjeu de la construction d’une vie de saintété ontété posées, en demandant de nouvelles approches durécit hagiographique. Des Bollandistes au groupe derecherche Hagiographies, dirigé par Guy Philippart,un long chemin a été parcouru. Les nouvellesrecherches considérent, au délà du saint et de sonculte, le texte littéraire, le récit hagiographique. Avecles sciences sociales, le récit hagiographique devientun sujet de recherche en soi : l’étude du texte, lastructure, l’évolution du récit. Des Actes des Martyrsaux Biographies Spirituelles du XIIIème siècle nousvoyons une transformation des systèmes narratifs,qui suivent et annoncent les changements dans laperception et dans la pratique de la saintété. C’estla complexification de ce sujet et les nouvellesperspectives de recherche impliquées que nousconsidérons dans ce travail.

Mots-clé: Hagiographie, saint, saintété, récit hagiographique,interdisciplinarité

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cujo estabelecimento dos textos é baseado na comparação de maisde 50.000 exemplares de manuscritos existentes na Bélgica, Itália,norte da França e noroeste da Alemanha, e onde cada relatohagiográfico é acompanhado de textos introdutórios sobre a origemdos manuscritos, o santo, o culto, as relíquias, as datas festivas, asespecialidades etc. E foi para o último desses eruditos que oneologismo hagiógrafo foi empregado, em sua notícia necrológica,no tomo VI dos Acta de junho, em 1715.12

O termo de hagiógrafo, como especialista dos santos e comoaquele que escreve sobre os santos é uma invenção do início doséculo XVIII, quando uma nova designação foi necessária, pois acrítica hagiográfica empreendida pelos bollandistas é nova e seaproxima da ciência. Assim, se esse termo começa a aparecer nosgrandes dicionários franceses e na Enciclopédia (tomo VIII de 1795),o de hagiografia, designando a « ciência do hagiógrafo », segundo oDictionnaire de l’Académie (1835) ou a « ciência das legendas edos escritos que tratam da vida dos santos », segundo o Dictionnairenational (Bescherelle), é uma invenção do século XIX.13

As questões que se colocavam os eruditos do século XIX diziamrespeito à natureza dessa « ciência dos santos » : o inventário críticode objetos literários, arqueológicos, onomásticos e iconográficos sobresantos constituiria uma ciência, uma vez que os “hagiógrafos” praticamvárias disciplinas para descobrir, classificar, datar e interpretar osdiversos documentos ? E ainda, estes “objetos literários” poderiam,por sua vez se tornar objeto de uma ciência ? Para Guy Philippart, alonga ausência do conceito de hagiografia é reflexo desse paradoxo,pois « trata-se de uma ciência ou de uma rede de práticas heurísticase críticas relativas aos santos? »14 Dessa forma, apesar da evoluçãoda crítica e do estabelecimento de textos, o relato hagiográfico eraconsiderado como um gênero devoto, fabuloso, sem grande utilidadepara a pesquisa e a verdade históricas.

No século XX, com a evolução da História e com a relaçãointerdisciplinar crescente com a Antropologia e a Sociologia, asvidas de santos se tornaram um documento de excepcional riquezapara o conhecimento, principalmente da Idade Média, período deapogeu do gênero, e o valor historiográfico do texto hagiográficonão é mais discutido.

conotação negativa, de relato fabuloso, de pouco crédito, reduzindopara a crítica histórica a possibilidade de utilização do imensocorpus de vidas de santos fora de uma perspectiva cultual edevocional. Assim, os termos de hagiografia, para designar umcorpus literário e a ciência daqueles que escrevem sobre os santos,os hagiógrafos, são relativamente recentes, tem dois séculos, eestão ligados à evolução da crítica da produção hagiográfica, quese deu a partir do século XVII.

Em 1607 o jesuíta Héribert Rosweyde (+1629) publica, naAntuérpia, o tratado intitulado Fasti sanctorum quorum vitae inBelgicis bibliothecis manuscriptae, com 1.300 atos de santos.Inserindo-se na tradição humanista e na dos editores medievaisdas legenda, contava publicar posteriormente dezoito volumes in-folio e incluir as Vidas dos Pais do Deserto (Vitae Patrum), deLipomanus8 , e as « Histórias dos santos » do cartuxo Surius9 .Sua empresa foi considerada impossível e dispendiosa. De fato, aimprensa negligencia os textos medievais : por exemplo, a LegendaÁurea, um dos textos mais populares da Idade Média tardia, não émais editada depois de 1540. Mas Rosweyde continua e em 1613publica, buscando restituir no seu estilo próprio os Atos dosMártires, e em 1615 as Vitae Patrum, cuja edição, que contoucom a comparação de 23 manuscritos, ainda não foi substituída.10

Rosweyde previa estabelecer os textos na sua forma original, fazercomentários eruditos e glossários sobre o conteúdo dos textos (tiposde suplício dos mártires, rituais eclesiásticos e profanos, virtudes),sobre os autores, a iconografia, a cronologia, a geografia. Dessaforma ele abre caminho para a obra monumental dos Bollandistas,os Acta Sanctorum. Após a sua morte, em 1629, os jesuítasencarregam Jean Bolland (1596-1665) de continuar oempreendimento de Rosweyde. Bolland exigiu a biblioteca de seupredecessor e a liberdade de seguir suas próprias idéias11. Vendoa imensidão da tarefa pede um colaborador, e um de seus antigosalunos, Godefroid Henschenius (+1680), é escolhido. As vidas desantos passam a ser estudadas e os dois enormes volumes in-foliosão editados em 1643. Em 1659, mais um colaborador se junta,Daniel Paperbroch (+1715). Os Acta Sanctorum, com seus 67volumes na edição original, são a grande coleção erudita hagiográfica,

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do religioso. Podemos, através das vidas de santos e dos repertórioscríticos que estão sendo estabelecidos, criar tipologias seguindoessas forças sociais e essas percepções. O desenvolvimento dapesquisa sobre a questão da santidade leva a conclusões válidassobre aspectos sociais e sobre as transformações das formas dedevoção. O santo emerge como o tipo que reflete as mudanças devalores da sociedade européia. 18

No que concerne à influência da doutrina oficial da Igrejanos modelos de santidade e da vida santa e as formas popularesde crença, por exemplo, vemos que os laicos são formados pelascompilações de exempla (pequenas histórias de conteúdo moral eedificante) e pelos atos dos mártires, que oferecem os paradigmasdo comportamento santo, guardam formas específicas de piedadee têm sua interpretação de modelos canônicos ou clericaismanifestados nos cultos de santos locais e populares. Podemoscompreender como o culto dos santos floresceu como a maiorexpressão da doutrina católica e da mentalidade religiosa popular.A piedade popular e laica age por sua vez sobre as doutrinas dandoum material para elaborar as mudanças, controlá-las e ordená-las,colocar em discurso os novos paradigmas, discurso esse quepertence aos homens da Igreja. Os santos populares são criados,a Igreja os consagra ou não (35 canonizações de 1198 até 1434,dos 71 processos abertos). Por outro lado, o estatuto de religiosonão isola o personagem de suas raízes laicas, das suas experiênciaspessoais, família e meio social. Novos tipos emergem representandoo ideal de cada grupo ou ordem, colocando em evidência a diversidadedas necessidades sociais e culturais medievais.

Entretanto, se os estudos feitos sobre a tipologia da santidademostram que os exemplos de santidade oferecidos aos fiéisacompanham as mudanças sócio-culturais e operam umatransformação nas sensibilidades religiosas dos indivíduos, no quese refere à expectativa e ao entendimento da santidade devemoslevar em consideração que o ato intelectual e afetivo da escrita,da colocação em discurso, se acha aí implicado.

A literatura hagiográfica forma um corpus documentalescrito cuja produção não se interrompe durante quase mil anos,da Antiguidade Tardia ao Renascimento; é polimórfico e

Há alguns anos vemos uma relativa quantidade de estudosutilizando as fontes hagiográficas como principal material de análise,documentos passíveis de responder à problemáticas de ordensdistintas. Um campo enorme de trabalho para os medievalistasmodernos foi aberto. Vimos primeiramente surgirem pesquisassobre a história da santidade, como um dos elementos maisvigorosos do cristianismo, como testemunho da história geral ouclássica, que busca informações sobre os acontecimentos,personagens, instituições15. Mas, nos últimos trinta anos, maisprecisamente, os novos estudos se direcionam para abordagenssociológicas e antropológicas. O santo é um modelo de comportamentopara os fiéis, o laicado, e, por outro lado, seu culto e sua eficáciaaparecem como um meio de expressar as « estruturas mentais debase » Nessa nova perspectiva as vidas de santos aparecem comoa “cristalização literária das percepções coletivas”.16 A vida desanto se inscreve na vida de um grupo e representa a consciênciaque ele tem de si e da relação entre os grupos17.

Os historiadores analisam os textos hagiográficos, vistos emquantidade, e se interrogam sobre as sobrevivências pagãs, sobrea relação entre cultura popular e cultura clerical, sobre o fenômenode laicização da espiritualidade, sobre a urbanização, etc. Ao ladodos estudos que utilizam uma vasta documentação, aparecemestudos temáticos, com corpus mais restritos, com uma maiorcoerência interna e que mostram especificidades e quadros deexceção. Questões importantes sobre os meios culturais e sociais,as classes, a família, a educação, as comunidades, os hábitos sociaisque acompanham estas instituições, sobre as formas específicasda santidade feminina, sobre as práticas devocionais, sobre os níveisde crença, foram colocadas. Os temas da infância, da adolescência,da conversão, da castidade, do casamento, dos alimentos, do sangue,das lágrimas, da amizade estão sendo abordados.

Uma série de trabalhos repousa sobre a construção de tiposde santos em um tempo e um espaço determinados : tipologias desantidade são assim estabelecidas. Os estudos onde a idéia deconstrução social da santidade condicionam a análise, mostram atransformação do ideal de santidade como conseqüência dasrelações de forças sociais e do conflito de ideologias e de percepções

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vicções, seja para inaugurar um culto, seja para estabelecer atos paraprocessos de canonização, seja para cumprir promessas afetivas : omotivo da colocação em discurso é diverso. Dentro da perspectivada história cultural vemos uma preocupação com o hagiógrafo, teste-munha de seu meio, da sua comunidade, do seu público, testemunhae relator de representações mentais de um determinado momento.

Guy Phillipart propõe a distinção, na documentaçãohagiográfica, de um corpus propriamente literário, uma vez que adocumentação hagiográfica, composta de litanias, calendários,relíquias, dizeres populares etc., é mais abrangente do que a« literatura hagiográfica », Assim, a literatura hagiográfica seriaum discurso definido pelo herói, o santo, e pela aparênciahistoriográfica do texto, pois pretende expressar uma verdade.21

Dessa forma, paralelamente à pesquisa histórica propriamente dita,também é possível fazer, como propõe Guy Phillipart, uma históriada literatura hagiográfica, inventariar suas formas, seus topoi, asretóricas, as crenças, o público, etc. “A partir daí a literaturahagiográfica pode ser tratada de diversas formas, pelos literatos epelos historiadores, como objeto documentário, literário, cultural.Objeto específico da história, é necessário que ela se emancipe dahistória dos santos, do seu culto, que se articule aos métodos deanálise literária e à história das literaturas e que se nutra detrabalhos de sociologia e de antropologia históricas”22. Finalmente,a hagiografia ganha o estatuto de literatura e, como tal, é um objetopassível de ser analisado em sua especificidade.

NOTAS:

1 PHILIPPART, Guy, « L’hagiographie comme littérature : conceptrécent et nouveaux programmes ? », in L’hagiographie. Textes réunispar Elisabeth Gaucher et Jean Dufournet. Revue des Sciences Humaines,n.251 (Juillet-Septembre 1998).2 Thomas de Chobham (1233/1236), PHILIPPART, Guy,« L’hagiographie », op.cit., p.13.3 Uguccione de Pisa (+ 1210), idem.4 Segundo Honorius de Autun, “Historia est quae praeterita narrat,Prophetia quae futura narrat, Hagiographa quae aeternae vitae gaudiajubilat.” In Psal. PL. 172, col. 273b, citado por Felice Lifshitz, “Beyond

multilinguístico. Para os santos anteriores a 1.500 temos 3.300dossiês latinos repertoriados na Biblioteca Hagiográfica Latina.Os Bollandistas distinguem 13.300 unidades, sendo que pesquisase repertórios de manuscritos estão em curso para o corpus emvernacular, os países da esfera bizantina e da Península Ibérica. Essecorpus não é homogêneo, as formas narrativas próprias, a estruturados textos, os topoi se transformam ao longo dos séculos, refletindojustamente transformações históricas, sociais e antropológicas. OsAtos dos Mártires são forçosamente diferentes das BiografiasEspirituais do século XIII ou de uma compilação como a LegendaÁurea ; as questões que podem surgir de sua análise são diversas.

Assim, recentemente os historiadores passam a se preocuparcom o “discurso”. Na evolução das ciências sociais, o relatohagiográfico passa a ser um objeto em si : o estudo do texto, da suaestrutura e a evolução de suas narrativas. A literatura hagiográfica éagora vista como « objeto literário » e como « objeto cultural »19

específico. Por sua vez, o reconhecimento da literatura hagiográficacomo objeto histórico coloca outras questões sobre os problemasrelativos à pesquisa hagiográfica e à evolução dos seus métodos.

Apesar de não haver uma ars hagiographi, manuaismedievais de escrita hagiográfica, o relato hagiográfico obedecea regras precisas, estabelecidas e legadas pelos Pais da Igreja,que instituíram a história do povo cristão na sua marcha para asalvação. O discurso hagiográfico serve, nesse sentido, paraexpressar a presença do divino em um homem ou uma mulher, osquais os fiéis devem imitar para garantir a salvação eterna. Eletransmite também a certeza da atualização dos gestos e dosmilagres dos tempos evangélicos. Segundo Michel de Certeau, osdocumentos hagiográficos se caracterizam por uma organizaçãotextual, implicada no título, acta, res gestae, e são um léxico,manifestando virtudes e milagres20.

Estudos sobre os tipos de relato hagiográfico mostram a evolu-ção dos textos hagiográficos, que acompanham e anunciam as mudan-ças na percepção e na prática da santidade. Dos Atos dos Mártiresàs Biografias Espirituais do século XIII, vemos uma transformaçãodos sistemas narrativos. Os hagiógrafos, como homens e crentes, uti-lizam formas e regras literárias para expressar suas próprias con-

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PANORAMA DO PENSAMENTO URBANÍSTICO NACIDADE DO RIO DE JANEIRO AO LONGO DO SÉCULO XIX

Lúcia Silva*

Resumo:O presente trabalho propõe ser um exercício deanálise dos principais projetos urbanísticos quelevaram à construção do pensamento urbanísticona cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XIX

Palavras chaves: Cidade projeto urbanismo

AbstractThis article proposes to analyses the of the mainurban projects that had led to the construction ofthe urban thought in the city of Rio De Janeirothroughout century XIX.

Key words: City project urbanism

O Urbanismo1 , enquanto campo de conhecimento eprofissional2 , emergiu na cidade do Rio de Janeiro na década de20 do século XX. A ambiência social que potencializou seusurgimento se conformou, em grande medida, em função daexistência inquestionável dos problemas urbanos. Foi um longocaminho para que a idéia de problemas urbanos se tornasseconsenso entre os profissionais que intervinham na materialidadeda cidade e principalmente fosse da alçada do Estado acompetência de resolvê-los. Quando estas idéias tornaram-seindiscutíveis, “surgiu como um colossal cogumelo depois daschuvas”(SEVCENKO, 1992, 31) uma especialidade especialíssima.

* Lucia Silva é Doutora em História pela PUC/SP. Professora do PPGIS/USS e autora dos livros Luzes e Sombras na Cidade: no rastro do casteloe da praça onze (2006) e Historia do Urbanismo no Rio de Janeiro:adminstração municipal, engenharia e arquitetura dos anos 20 aditadura Vargas (2003).

Positivism and Genre : “Hagiographical” Texts as Historical Narrative”, dansViator, 25 (1994), pp. 95-115.5 Summa Theologica., II, II, qu. 17, 4, 2 et 6.6 PHILIPART, Guy, « L’hagiographie », op.cit.7 H.Rosenfeld, Légende, 2ed., Stuttgard, 1964. François De Vriendt, inDictionnaire encyclopédique du moyen âge dir. André Vauchez, t. I, 1997, p.880-881.8 Luigi Lippomani (Lipomanus) (+1559), Legado de Júlio III no Concílio deTrento. Sanctorum priscorum patrum vitae..., 8 vol., 1551-1560.9 Laurentius Sauer (Surius) (+1578 ?) De probatis sanctorum historiis..., 1e

ed. 3 vol., 1570, retoma a obra de Lipomanus, classifica as vidas pormeses, acrescenta novos textos, corta detalhes julgados ridículos, retoca alíngua dos textos. Serviu de base para as traduções populares e as compilaçõesdo século XIX. DUBOIS, D.J. LEMAITRE, J-L., Sources et Méthodes del’hagiographie médiévale, Ed. Du Cerf, Paris, 1993, p.43.10 idem.11 DELEHAYE, H. L’oeuvre des Bollandistes à travers trois siècles,1615-1915, 2ed., Bruxelles, 1959 (Subs. Hag., 13A2).12 DUBOIS, D.J. LEMAITRE, J-L., Sources et Méthodes del’hagiographie médiévale, Ed. du Cerf, Paris, 1993, p.43. DanielPapebroch, « le bollandiste par excellence », segundo H. Delehaye (Atravers trois siècles), recebe o adjetivo de hagiógrafo na notícianecrológica que lhe é consagrada por Conrad Janning no início dotomo VI dos Acta Sanctorum de junho, 1715. PHILIPART, Guy,« L’hagiographie », op.cit.13 Idem.14 Idem.15 Idem.16 Jacques Fontaine, introduction à Sulpice Sévère, Vie de saint Martin,Paris, 1967.17 Michel de Certeau, L’écriture de l’histoire18 cf. John Mecklin, The Passing of the saint : A Study of a Culturetype, Chicago, 1941.19 Bernard Guenée, Histoire et culture historique dans l’Occidentmédiéval, Paris, 1980 (Aubier, Collection Historique), p.11-1220 CERTEAU, Michel de, L’écriture de l’histoire, 1975, p.274-8821 Propõe o conceito de hagiografia historiográfica, para distinguí-la de outrostextos narrativos que não pretendiam ser históricos ou expressar umaverdade. PHILIPART, Guy, « L’hagiographie », op.cit.22 Idem.

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da Guanabara e seu limite ultrapassara “às duras penas” a Rua daVala (Uruguaiana). As lagoas já haviam sido aterradas e o mangualde São Diogo parcialmente drenado. A malha urbana cariocaconcentrava-se na várzea existente entre os morros do Castelo,Santo Antonio, Conceição e São Bento4 .

Como toda cidade colonial portuguesa no Novo Mundo,serviços e equipamentos urbanos se assentavam no braço escravo.Os assuntos e problemas da cidade apesar de serem discutidospela Câmara, eram resolvidos pela iniciativa privada, ainda quecomunitariamente. Somente as grandes obras foram realizadaspela Coroa. Desde a transferência da cidade para o Castelo, aopção da população foi a de ocupar as áreas alagadas da várzea.

A empreitada de aterrar as áreas alagadiças, segundoCavalcanti “ressaltou a luta hercúlea de seus moradores erelembrou que somente as experiências da Cidade do México, naAmérica espanhola, e Amsterdã, na Europa, poderiam assemelhar–se ao caso do Rio de Janeiro” (2004, p.27). A população conformeocupava o baixio entre os morros ia aterrando o que podia. Adrenagem das lagoas exigia aporte financeiro e técnico que osmoradores, grosso modo, não tinham, cabendo então a Coroa aexecução das obras de maiores vultos. A última lagoa aterrada foia do Boqueirão em 1783.

Além dos aterros das lagoas, coube à Coroa resolver oproblema da falta d’água. Água potável na cidade, somente do rioCarioca, os poços da várzea tinham água salobra e os do morro doCastelo eram muito profundos. Em função desta situação aeconomia urbana voltada para distribuição da água se organizouem torno dos aguadeiros. Apesar de muito caro, os aguadeirostraziam o precioso líquido do Carioca às casas mais abastadas. Asituação de penúria em relação ao uso de água potável só começoua mudar com a construção do aqueduto da Lapa e das bicas dochafariz do campo de Santo Antonio no atual Largo da Carioca,destino final da canalização das águas do rio.

A obra levou 18 anos para ser concluída (CAVALCANTI,2004, 35) e com construção da extensão da rede de canos até ochafariz do Carmo, no Paço, a população passou a ter água emabundância. Esta nova realidade ampliou o serviço dos aguadeiros,

Entender o processo histórico de construção dos problemasurbanos envolve várias leituras. Aqui foi escolhida aquela quearticula os projetos urbanísticos para a cidade e a discussãoconstruída em torno deles. Resgatar os diversos momentos emque ocorreram essas discussões urbanísticas torna–se necessáriona medida em que o urbano construído se deu, em grande medida,pela subsunção e/ou desaparecimento de territórios da cidade.Recuperar esta discussão é resgatar as várias cidades que existiramsob o solo da muito leal e heróica cidade de São Sebastião.

É importante ressaltar que a proposta deste texto não éconstruir uma linearidade entre os projetos e o pensamentourbanístico construído por eles, ou mesmo entre os diversos momentosem que se desenrolaram as discussões. O que se propõe aqui é acimade tudo mostrar uma filiação possível entre os vários momentos,desvelando o contexto social que permitiu o surgimento de cadaproposta. Não se deve esquecer que para além das discussõesurbanísticas e seus projetos, existem os territórios com suas popu-lações, estes últimos, mais especificamente os da Praça Onze naFreguesia de SANTANA, objeto privilegiado de minhas investigações.

Por ora deixemos a Praça Onze e adentremos no urbanoem conformação, com sujeitos sociais localizáveis, mas difíceis deserem alcançados principalmente porque parte de seus projetosse assentavam em modelos de urbano e “urbanismo” que nãoforam vencedores, e por conta disto se perderam no tempo. Assim,é sempre bom lembrar que dois movimentos distintos, queinteragiram e interagem estão presentes nesta discussão, aindaque de forma secundária: o processo de construção da tragédiaurbana brasileira3 e a constituição do Urbanismo (modernista)Excludente (ROLNIK, 1997).

A trajetória escolhida para a recuperação dos projetos éfeita articulando-o à estrutura urbana existente e aos sujeitosenvolvidos na discussão, assim uma breve apresentação da cidadeno início do XIX deve ser feita para que se possa dimensionarsocialmente as primeiras discussões urbanísticas.

A cidade do Rio, às vésperas da chegada da família real,contava com uma população de aproximadamente 43 mil habitantes(1799), ainda era uma cidade economicamente ligada ao recôncavo

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A cidade contava então com os “homens bons” (grandesproprietários e comerciantes) para realizarem as melhoriasrelacionadas aos serviços e equipamentos urbanos, por meio dacâmara. Mesmo sendo a Coroa a fazer as grandes obras, emfunção da penúria financeira da cidade, cabia a câmara a tarefade discutir e definir as prioridades. Espaço privilegiado de discussãosobre os problemas que assolavam a cidade, em 1798 os vereadorese alguns médicos convidados reuniram-se para discutir as principaisquestões que envolviam a organização da cidade.

O diagnóstico produzido pela câmara tornou-se base paraas ações nos anos seguintes, transformando-se em referência nadiscussão sobre os problemas da cidade. Por ocasião da chegadada família real ainda era o principal dispositivo utilizado para ler acidade, foi publicado na íntegra em 1813 no jornal “O Patriota”,como síntese do pensamento urbanístico da época.

Composto de perguntas e respostas, o texto abarca osprincipais problemas que assolavam a cidade e suas possíveissoluções. Nem sempre as opiniões dos vereadores coincidiam comas dos três médicos convidados, mas os problemas apontadostornaram-se consenso. As águas estagnadas, em função da faltade escoamento, aliadas ao acumulo de lixo nas praias e ruas e oscemitérios colocados ao lado das igrejas foram apontados comoos maiores problemas da cidade. Esses vetores segundo osvereadores eram os responsáveis pela insalubridade, endemias eepidemias que grassavam o solo da urbe.

O leque de soluções sugerido pelos vereadores ia desde odesmonte dos morros do Castelo e do Senado, passando pelaconstrução de valas e drenagem dos baixios, até retificação dostraçados das ruas para melhorar a aeração e normatização dosusos de alguns espaços como os dos cemitérios e do matadouro.Além destas propostas estritamente relacionadas à estruturaurbana, havia sugestões que extrapolava a materialidade da cidadee se articulava ao cotidiano da população, tais como mudança noshábitos de alimentação e exercício físico. É importante ressaltar queo diagnóstico construído pelos médicos e vereadores era endereçadoa uma determinada população, já que 35% dela eram compostos deescravos, assim não era para todos os habitantes a sugestão dos

na medida em que seu preço tornou-se acessível ao maior númerode habitantes, afinal era mais rápido e barato apanhar água noschafarizes que ir ao Carioca. As vésperas da chegada da famíliaReal a cidade contava com 10 chafarizes5

Entre 1750 e 1808 a cidade passou por profundas mudanças,aterro de todas as lagoas no core central e água potável em váriospontos da cidade consolidaram a estrutura urbana. Ainda emrelação aos serviços urbanos, o transporte era precário, e emboraa mobilidade da população fosse pequena, no final do século XVIIIera freqüente “as viaturas de tração animal (traquitanas),substituindo as cadeirinhas, liteiras, serpentinas, levadas porescravos” (COELHO, 1993,22).

Administrativamente, a cidade estava dividida em freguesiasrurais e urbanas. Na zona rural ficavam as freguesias de Irajácriada em 1644, a de Jacarepaguá criada em 1661, fruto dodesmembramento da de Irajá, e a de Campo Grande, tambémcriada a partir do desmembramento de Irajá em 1673. Ainda nazona rural ficavam as freguesias da Ilha do Governador (1710),Inhaúma (1749) Guaratiba (1755), Engenho Velho (1762). As urbanasevoluíram da seguinte forma: primeira freguesia foi a de São Sebastião(Sé, que depois passou a se chamar de Sacramento) criada quatroanos depois da fundação da cidade. O primeiro desmembramentodeu-se e 1634 com a criação da freguesia da Candelária e depoiscom a de São José e Santa Rita em 1753, frutos dodesmembramento da Candelária (NORONHA SANTOS, 1965,7).

No final do século XVIII em torno do Paço dos vice-reis,as ruas estavam pavimentadas com pedras, as praças delimitadase a iluminação pública feita com óleo de baleia. Existiam na cidademais de 300 edificações de dois andares, 1900 de um andar, 190tabernas, 180 barracas de quitandas, 140 armazéns de aguardentee vinho, 190 lojas, 2 hospitais e 9 escolas6 . A ocupação avançavapara o Campo de Santana. Os problemas giravam então em tornodo escoamento das águas, pois na várzea quanto mais longe dolitoral pior era o esgotamento das águas para o mar. A maioria dasruas não tinha calçamento, e por conta disto, no período de estiagema poeira deixava o ar irrespirável, no período das chuvas, osalagamentos e a lama eram os problemas.

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além da segurança. O cargo era o de administrador da cidade. Apartir daí a cidade seria organizada a partir da ação do chefe depolícia, das demandas do poder central (família real, depois estadoimperal) e o senado da câmara.

Outra importante contribuição para organização da cidadefoi a introdução da décima urbana, imposto predial criado parasuprir as despesas com as obras da cidade. A instituição da décimalevou também a sua isenção de 10 ou 20 anos para quem construíssenovas edificações de um ou dois andares (MELLO JUNIOR, 1988,112). Outra importante medida do príncipe regente foi a confecçãode uma planta da cidade, finalizada em 1812.

O período joanino foi caracterizado pela expansão da malhaurbana, consolidando-a até o campo de Santana e expandindo-aaté São Cristóvão no sentido norte e para Botafogo, no sentidosul; a introdução de vários órgãos administrativos pela corteportuguesa exigiu novas edificações na cidade para acomodar asrepartições, aumentando o conjunto edificado. A cidade sofreriaalgumas mudanças quanto a sua configuração com a expansãourbana, mas em termos de pensamento urbanístico não, pois osvalores acionados para ler a cidade ainda eram aqueles contidosno documento publicado n’ “O Patriota”.

A missão francesa, principalmente Grandjean de Montignyainda que tenha proposto e feito várias intervenções namaterialidade da cidade não fugiu dos argumentos construídos pelosvereadores e médicos do final do século XVIII. A emancipaçãopolítica em 1822 não significou alteração na forma de pensar acidade, até porque não houve mudança na estrutura administrativa,pois pela constituição de 1824 a cidade mesmo com câmara, ficavajuntamente com o estado do Rio sob a jurisdição do poder central;somente o ato adicional de 1834 transformou a cidade em Corte(município neutro) com câmara municipal, mas sob a tutela doMinistério dos Negócios do Império.

A Inspetoria Geral das Obras Públicas, ou simplesmenteobras públicas, era uma repartição do ministério que cuidava dacidade juntamente com a câmara. Em 1843 o chefe de polícia eraEuzébio de Queiroz. A cidade continuava sendo produto daarticulação entre as três instituições. Na década de 40, a chefia de

exercícios físicos regulares e a substituição do feijão e inhame porfrutas e legumes7. Em nome da salubridade começava-se a articularo pensar sobre o espaço da cidade com o modo de vida da população

Apesar de todas as limitações da câmara dos vereadores,pois ao longo do período colonial o senado foi um campo de tensãopolítica, já que paulatinamente suas atribuições eram transferidasà atuação dos funcionários da Coroa, principalmente depois dacidade se transformar em principal posto administrativo da colônia.Mesmo com toda dificuldade, as principais questões relativas àcidade eram discutidas na câmara. O embate entre o poder locale o metropolitano representado pelos funcionários da CoroaPortuguesa ficaria mais difuso no que se refere ao controle sobrea cidade e sua população, principalmente depois da transferênciada sede da colônia para o Rio.

Se por um lado, a partir de 1808 essa tensão ganharia novoscontornos, na medida em que o próprio poder metropolitano estariana cidade se apropriando de seus espaços; por outro a proximidadepermitiria que algumas questões locais fossem tratadas como deinteresse geral. Grosso modo, a mistura no solo carioca dasdemandas locais e aquelas construídas pelo poder central seriauma das características políticas da cidade que perduraria até 1960,a configuração urbana seria fruto desta tensão.

Se em 1799 a população livre representava 65% dapopulação total, e destes 20% eram compostos de libertos (pretose pardos); é importante ressaltar que esse número se refere apenasàs 4 freguesias urbanas e não contou com o contingente militarestacionado na praça do Rio na ocasião; em 1821, as vésperas daemancipação política, o ouvidor da comarca contabilizavaaproximadamente 80 mil habitantes em todas as freguesias, destes55% eram livres e 45% escravos.

Parte deste aumento deveu-se à chegada da família real, agrande novidade para a cidade, além das transformações pelasquais passou nos primeiros dez anos, afinal foram construídas 600edificações e mais de 100 chácaras proliferaram no entorno docore urbano, foi a instituição da Intendência Geral da Polícia daCorte e do Estado do Brasil. A intendência era responsável pelasobras públicas, pelo abastecimento de água e iluminação pública,

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O relatório foi apresentado por ocasião de sua saída, em 20de setembro de 1843, como balanço das condições das obras domunicípio. Diferente do relatório da comissão do ministério, o deBeaurepaire Rohan não se restringiu aos problemas emergenciais,ele fez avaliação dos problemas da cidade e sugeriu algumasmedidas para resolvê-los. Dividido em duas partes, “salubridadepública” e “aformoseamento do município e cômodo de seushabitantes”, o relatório inovou em vários aspectos. Um deles ligadoà gestão da cidade, na medida em que apontava a necessidade deuma planta cadastral, a ampliação dos recursos para obras com asugestão de novos impostos, e a criação de uma repartiçãoespecífica para cuidar das vias públicas da cidade.

Em torno da salubridade foram discutidos os problemas dadrenagem dos baixios, da coleta do lixo, do esgotamento sanitárioe da poluição da baia. As condições de higiene da cidade eramprecárias e como toda a tecnologia era calcada na mão-de-obraescrava, que realizava os serviços relativos à infra-estruturaurbana, Beaurepaire Rohan apontava algumas soluções, mas nãoindicava como efetivamente colocá-las em prática, isto porque astecnologias conhecidas não permitiam concretizá-las. Um bomexemplo disto foi a condenação do despejo do lixo nas praias, elesugere que o destino final seja no meio da baia, tal como o emissáriohoje, mas não detalha, apenas comenta a idéia de um empresárioque utilizaria uma barca para fazer o despejo na maré baixa.

O relatório projeta uma cidade onde predomina os princípiosda Higiene, os urbanísticos e os estéticos, todos articulados a noçãode eficiência. O engenheiro se ateve a malha consolidada cujaordenação podia ser melhorada, daí sua cidade ideal ser a própriacidade com maior conforto, não há preocupação em disciplinar aexpansão. Os princípios da higiene foram utilizados para pensar asalubridade da cidade vista em seus diversos aspectos. Aarborização é pensada como forma de aformosear ao mesmotempo em que era vista como meio de purificação do ar. Aindapensando na salubridade sugeriu o desmonte do Castelo apoiando-se no parecer do médico Emilio Maia.

Sugeriu a construção do canal do mangue como forma dediminuir os focos de miasma que, segundo o engenheiro, grassavam

polícia se preocupava mais com a saúde e segurança, deixando osproblemas ligados à estrutura urbana para a câmara e a inspetoria.

A câmara, composta de vereadores, tinha em seus quadrosum engenheiro, arruadores e fiscais de freguesia8 , estes últimosagiam como administradores regionais. A câmara dividia com aInspetoria de Obras Públicas a intervenção na cidade, cabendo arepartição do ministério as maiores ações.

A cidade contava com cerca de 130 mil habitantes, ocupandomais de 13 mil edificações. A iluminação pública passou a ficar,naquele ano, sob a responsabilidade da polícia da corte. As barcasfuncionavam regularmente, saindo de hora em hora para Niterói.Os ônibus de tração animal tinham várias linhas funcionando emdiversos horários, tanto para Botafogo, Jardim Botânico eLaranjeiras na zona sul, quanto para Tijuca São Cristóvão e Andaraína zona norte. Todas as linhas tinham o hotel Itália na Praça daConstituição como ponto final9 . A segurança, tal como se concebehoje, ficava a cargo do Corpo Municipal Permanente. A captaçãoe distribuição de água e o esgotamento sanitário mantiveram-seda mesma forma, ou seja, bicas e tigres.

Em 1843 o ministério do império instituiu uma comissão pararesolver o problema da falta d água que assolava a cidade nosmomentos de seca. Esta comissão era chefiada pelo conselheirode estado Francisco Cordeiro da Silva Gomes. A partir do relatórioanual do ministro10 foi possível recuperar o trabalho da comissão,principalmente no que se refere ao pensamento do que deveriaser a rede de água e sua gestão. As dúvidas giravam em torno decomo seriam feitas as concessões desse serviço e de como ochefe de polícia impediria o desmatamento das nascentes dosmananciais. Neste mesmo ano, o engenheiro militar Henrique PedroCarlos de Beaurepaire Rohan apresentava à câmara um relatórioque se transformaria em uma nova síntese do pensamento urbanístico.

Henrique de Beaurepaire Rohan fazia parte do ImperialCorpo de Engenheiros, alocado na Inspetoria Geral das ObrasPúblicas do ministério. Posto à disposição da câmara municipal daCorte pela inspetoria em 1842/43, enquanto se tratava de umadoença que adquirira em Passo do Jacui/RS, confeccionou umrelatório que se tornaria referência para pensar a cidade.

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texto produzido por uma comissão de especialistas, especialmentecriada para isso.

O processo de construção dos problemas da cidade podeser visto a partir da produção dos documentos que se tornaramreferência/ instrumento para lê-los: o documento de 1798 era aata de discussão dos vereadores sobre o que fazer com osalagamentos das várzeas do core central, o interessante foi aparticipação dos médicos permitindo a ampliação da discussãoque não se restringiu as questões objetivas das formas deintervenção no lócus urbano. Para além das obras buscou-seassociar a atuação no espaço ao modo de vida de uma determinadacamada da população. A malha urbana era relativamente pequenae sua configuração era construída a partir da ação coletiva dosmoradores já que administração municipal voltada para osproblemas urbanos era incipiente.

Em 1843, a cidade já possuía uma organização específicapara cuidar de alguns problemas urbanos, ainda que de formarudimentar, pois a câmara, que deveria ser o órgão responsávelpor isso se via tolhida em função da falta de recurso. A décimaurbana e os outros impostos não supriam as necessidades da cidade,cabendo então o Ministério dos Negócios do Império, por meio daInspetoria das Obras Públicas, realizar as principais obras. Assimcomo a Coroa fazia no tempo da colônia, a repartição do ministérioacabava ficando com as principais demandas da cidade.

O relatório de Beaurepaire Rohan foi feito para a câmara,o que no primeiro momento não significou alteração da atuaçãoda inspetoria na materialidade da cidade, mas o fato do autorpertencer a própria repartição iria permitir que o documentoganhasse visibilidade e se tornasse referência entre os quetrabalhavam com os problemas da urbe. Estruturado em duaspartes, a primeira totalmente voltada para as questões desaneamento, o autor buscou na Higiene os argumentos utilizadospara legitimar suas proposições, a novidade estaria contida nasegunda parte, mais estritamente voltada para as questõesurbanísticas, onde perpassa em todas suas sugestões a idéia deconforto,da noção de organização e planejamento na atuação sobreo espaço da cidade.

a região o mangual de São Diogo, ainda não totalmente drenado.Tratando da salubridade da cidade ele recomendou a transferênciado matadouro de Santa Luzia para São Cristóvão. Manteve adisposição de retirar os sepultamentos das igrejas, transferindo-ospara os cemitérios que seriam alocados nas áreas menos densasda cidade. Quanto ao esgoto e a água, o engenheiro recomendavauma rede de água que servisse individualmente as casas e que odespejo final deveria ser feito no meio da baia e não nas praias.

Quanto aos aspectos urbanísticos, a estreiteza da maioriadas ruas foi condenada, sugeriu a ampliação da largura de váriasvias e o prolongamento de outras no sentido melhorar o sistemaviário da cidade, desapropriando as casas, se necessário. Propunhao uso da lei de desapropriação por utilidade pública de 9 desetembro de 1826. Sugeriu também que a pavimentação das ruase praças fosse feita de macadame11.

O engenheiro inovou nos aspectos urbanísticos,principalmente por ter eleito a região do mangual de São Diogocomo a área que necessitava de maior intervenção. A novidadeconsistiu em, por meio de sugestões, criar parâmetros para a larguradas ruas, definir a testada dos terrenos, a extensão dos quarteirões;solicitava ainda que a Câmara Municipal impedisse, através deposturas, a construção de novas edificações em locais onde seriamabertas as novas vias.

Várias sugestões apresentadas por Beaurepaire Rohanforam colocadas em prática ao longo das décadas seguintes. Mas,curiosamente as obras que foram imediatamente iniciadas foramaquelas indicadas pela Comissão de Obras Públicas, já que oproblema da água era emergencial na cidade. Somente com otempo o relatório passou a ser diretriz no pensar sobre a cidade ese tornou referência para a leitura dos problemas relativos à urbe.

No início da década de 70 o relatório ainda servia deorientação a um conjunto de intervenções urbanísticas no Rio, tantona esfera da “salubridade pública” quanto do “aformoseamentodo município”. Como referência, o relatório se antecipou às váriasreformas, embora não deixasse de ser apenas a sugestão de umprofissional que, entre outras coisas, conhecia os problemas dacidade. A urbe teria que esperar até a década de 70 para ter um

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Em 1870 a Companhia Ferry dividia com as BarcasFluminenses o monopólio do transporte de passageiros na baía deGuanabara. A Ferry depois de encampar a Niterói Inhomirin passoua dominar a linha de Niterói, Caxias e porto da Estrela enquanto aFluminense dominava as linhas de São Cristóvão, Inhaúma eBotafogo. Tanto as companhias de carris quanto as de navegaçãoeram concessões do estado imperial.

Assim, tanto os moradores da freguesia da Lagoa quantoda freguesia de São Cristóvão tinham dificuldades dedeslocamento. Essas duas distâncias significavam o percurso demais de uma hora de bonde, na medida em que estes atingiam avelocidade de 11 km por hora. Em 1870 uma nova estruturaçãourbana estava em processo, esta em total sintonia com ostransportes. A cidade expandia-se em função da capacidade darede de transporte em garantir a locomoção da população. O preçoe a logística das empresas garantiam efetivamente a ocupaçãodeterminadas regiões.

Para a zona sul, os bondes partiam do centro em intervalode máximo de 10 minutos para Botafogo ou o Largo do Machadodurante o dia. Para Laranjeiras esse intervalo era de 22 minutos.Em Botafogo fazia-se a baldeação para o Jardim Botânico, cujoscarros trafegavam em intervalos maiores. Os primeiros carroscomeçavam a circular às 5 da manhã e os últimos por volta dameia noite. Para a zona norte ocorria a mesma coisa, os intervaloseram também de 10 minutos e saiam para a Tijuca, São Cristóvão,Rio Comprido, Catumbi e Ponta do Caju16

A disponibilidade de condução potencializou a ocupação daárea contígua ao centro e o adensamento pode ser contabilizadopor meio do balanço das companhias no ano seguinte. Tanto aBotanical quanto a Rio de Janeiro transportaram mais de trêsmilhões de passageiros17 no ano de 1871.

Ao lado da rede de transporte a rede de esgoto sanitário seincorporava à cidade, ou melhor, se escondia, na paisagem carioca,por meio de uma nova estrutura urbana. A rede de esgoto era daalçada da Rio de Janeiro City Improvements Company Limited.De capital estrangeiro tinha suas tarifas controladas pelo governoimperial. A região do centro foi a maior beneficiada com o

Assim como os vereadores e médicos do final do séculoXVIII estavam antenados com as discussões que aconteciam naEuropa, o engenheiro militar em meados do século XIX também.Da mesma forma que os vereadores foram à Medicina Socialbuscar os elementos para ler a cidade, as soluções preconizadaspor Beaurepaire Rohan utilizavam o conhecimento da engenhariada época, por isso faltam soluções técnicas para algumas questõesque ele mesmo levantou. A cidade teria que esperar mais algumasdécadas para ter um discurso assentando na Engenharia, aindaque apoiado na Higiene, para ler os problemas da urbe.

Até a década de 70, as principais obras realizadas na cidadetiveram como referência o relatório do Beaurepaire Rohan. Nadécada de 70 a malha urbana tinha atingido a zona norte (SãoCristóvão e adjacências) e zona sul (Botafogo e adjacências).Segundo o almanaque Laemmert de 1872, a cidade contava com235.381 habitantes, destes 185.289 eram livres e 50.092 eramescravos. Ainda, segundo o Almanaque a maioria da populaçãoera formada pelo sexo masculino perfazendo 57% da população.A cidade contava então com mais 21 mil edificações12.

A cidade estava divida em 11 freguesias urbanas e 8 rurais13,estas últimas ocupando cerca de 85% do território do município. Deuma maneira geral, as freguesias urbanas, mesmo ocupando 15% domunicípio concentravam a maioria da população, sendo a freguesiade Santana a que comportava o maior número de habitantes, poissegundo o censo de 1872, 38. 903 habitantes residiam nesta freguesia.

Em 1870 a urbe contava com uma incipiente rede detransporte coletivo. Segundo Silva14, a cidade andava sobre ostrilhos e sobre as águas. Grosso modo, a Botanical Garden RailRoad, antiga Companhia de Carris Jardim Botânico do empresárioMauá, companhia de bonde sobre trilho puxada por animais,garantia a locomoção da população para a zona sul, enquanto aRio de Janeiro Street Railway Company, a antiga Companhia deSão Cristóvão, assegurava o ir e vir dos habitantes para a zonanorte. Outro meio de transporte utilizado pela população,principalmente a suburbana, eram os trens da ferrovia Central doBrasil, que mesmo privilegiando o transporte de café já carregavam263.306 passageiros anualmente15.

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da cidade do Rio de Janeiro produziu dois relatórios queexplicitariam a leitura que Engenharia tinha da cidade. A novidadeestava em sua composição, formada por engenheiros e em funçãodisto as soluções apresentadas apesar de utilizar os argumentosda Medicina Social eram da alçada da Engenharia 23.

A nova Comissão composta de engenheiros voltou-se desdeo inicio para a zona norte da cidade, não só porque São Cristóvãose localizava na região, mas porque os projetos propostos seriamutilizados como os primeiros laboratórios onde se experimentariamarticular as atuações do Estado com os capitais imobiliários e detransporte. Espaço valorizado, pois era a sede do poder e regiãodo palácio do imperador, ainda não era densamente povoado. Ovetor de crescimento proposto no plano era Vila Isabel, ratificandoem parte as indicações preconizadas no Relatório Beaurepaire.

O primeiro relatório, aquele apresentado em 12 de janeirode 1875, se referia às reformas da área compreendida entre “oCampo da Aclamação até a Raiz da Serra”. Grosso modo, seriamatingidos pelos projetos os bairros da Cidade Nova, Engenho Velho,Andaraí e São Cristóvão. A idéia central era retificar e ampliarruas e avenidas para melhorar a aeração e o acesso aos bairros,além de criar novos espaços, ganhos das áreas alagadiças.

O Canal do Mangue foi eleito o principal eixo da ação dosmelhoramentos. As idéias de Haussmann seriam expostas nosprojetos do plano de melhoramentos a partir do Mangue no sentidoda zona Norte, deixando de lado as áreas que mais precisavam.Diferente de Paris onde quarteirões inteiros foram removidos emáreas densamente povoadas, aqui as ruas largas e bulevares forampensados para Tijuca e Vila Isabel, ainda espaços vazios.

Visto como foco de miasma, o canal seria desobstruído ealargado, sendo prolongado até o mar, ele receberia também aságuas dos diversos rios da baixada do Maracanã que na ocasiãoera um grande charco. As novas áreas secas teriam ruas largascomo o bulevar 28 de setembro, já inaugurado.

Na atual Praça da Bandeira, no espaço antes ocupado pelomatadouro (estava sendo transferido para Santa Cruz) seria construídoum pavilhão de exposição, onde ficariam expostos permanentementeprodutos e maquinarias, principalmente àquelas de uso agrícola.

esgotamento sanitário. Segundo Benchimol, de 1866 a 1875 foraminstalados o sistema de esgoto domiciliar em mais de 14 milresidências, representando 50% dos domicílios da Corte18.

Aparentemente a cidade se tornara mais asseada, mas naopinião de Rebouças, ela “se tornara uma cloaca (...) O subsolodesta capital é úmido, podre e saturado de matérias excrementíciaspela nefanda rede de rudes canos de esgoto”19. A precariedadeda rede era confirmada pelas queixas populares e pela organizaçãoda própria City em atender as reclamações dos consumidores20.A rede de esgoto, juntamente com a rede de transportetransformara-se em importante vetor de expansão urbana.

A água continuava sendo um grande problema, mesmo tendouma precária rede instalada o manancial não dava conta do usoda população. A Inspetoria de Obras em 1870 afirmava que acidade contava com mais de 2.302 km de canos. O serviço dedistribuição se fazia com 508 bicas públicas, 41 chafarizes com181 bicas e 4 139 penas d águas espalhadas pela na cidade21. Adistribuição era tão precária quanto os mananciais de captação.

Os cemitérios públicos do Caju e de Botafogo, inauguradosem 1852, já recebiam boa parte da população, a cidade aindacontava com um necrotério, o que não impedia a população deixarseus cadáveres nas praias e vias públicas; o lixo doméstico erarecolhido por uma empresa e a limpeza das vias públicas eracompetência da municipalidade, ambas fiscalizadas pelo ministériodo império. O imposto predial atingia a maioria das edificações,pois somente 622 edificações estavam isentas desse impostoenquanto a taxa do lixo era isenta aos mais pobres.

Para fechar este cenário, não poderia faltar a iluminaçãopública feita por postes de lampiões á gás com potência de novevelas. Inaugurada em 1854 esta rede cobria em 1870 189 km deruas, toneladas de carvão fabricavam os milhões de “litros”22 degás necessários para produzir a iluminação para as residências e ruas.

O Plano de melhoramento de 1874/76 pode ser pensadoenquanto resposta para essa nova urbe, emergiu em um momentode crise, as epidemias de febre amarela assolavam a cidade eexigiam das autoridades soluções para uma cidade mais salubre.Sob a égide do discurso da Higiene, a Comissão de Melhoramentos

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em que levantaram os trabalhos anteriores contidos na inspetoria.Assim, os relatórios são sínteses do pensamento urbanístico dainspetoria, que ao longo do XIX dividia com a câmara, a atuaçãosobre os principais problemas da cidade.

Juntamente com os dois relatórios, o segundo foi entregueem 29 de fevereiro de 1876, os engenheiros entregaram tambémuma planta geral da cidade na escala de 1:5000. Além do relatório dacomissão, a Junta de Higiene também elaborou em 1876 um conjuntode medida que se tornaria o plano de melhoramento de 1878 da junta.Esta nova comissão era formada por médicos. No primeiro item dotexto, os médicos revelavam a necessidade de fazer uma comissãoconjunta com os arquitetos para resolver os problemas quetornavam a cidade insalubre. As medidas preconizadas por estacomissão eram parecidas com aquela dos engenheiros.

Os três relatórios retratam o ambiente intelectual dosprofissionais que pensavam a cidade, além de explicitar a formacomo o estado agia sobre a materialidade da cidade. Todos osrelatórios foram produzidos a partir dos pedidos do ministro dosnegócios do império, os dois primeiros para os engenheiros dainspetoria de obras públicas, naquele momento alocada no ministérioda agricultura, o terceiro à Junta de Higiene que estava em suapasta. No texto do terceiro relatório é possível confirmar queproduzido na mesma época que os outros relatórios, isto é, 1876.

As epidemias e o eterno problema da falta d’ águamobilizaram o Estado, na figura do ministro dos negócios paradiscutir os problemas da cidade, ele convocou e organizou adiscussão em torno destas comissões. O estado também estavapassando por profundas transformações e a necessidade dedeterminar os papéis das repartições atravessava as os debatessobre os problemas da urbe. Pela primeira vez um documentosobre os problemas da cidade era produzido em função de umademanda do Estado. Ainda que de forma rudimentar, osprofissionais alocados no estado colocavam em xeque adesorganização da máquina administrativa, apoiando a existênciadas empresas particulares atuando nos setores de equipamentos eserviços da cidade e pressionando a constituição de uma novamáquina burocrática.

As ruas largas sairiam do Campo da Aclamação indo àdireção da Tijuca. Foram alargadas e retificadas as atuais HaddockLobo (ruas Conde D Eu e Engenho Velho), Conde de Bonfim(Rua do Andaraí Pequeno) e Barão de Mesquita (Rua AndaraíGrande). Foi neste período que se canalizou e retificou os principaisrios da região, tornando-a apta aos novos loteamentos. A regiãosofreu um boom de ocupação, tal como apontou o relatório da Riode Janeiro Railway Company em 187124.

Os projetos ainda que secundariamente valorizassem osempreendimentos que estavam ocorrendo na baixada da AldeiaCampista, aparentemente não tinham a preocupação com ainversão dos capitais imobiliários ali postos. Acredito que sejanecessária uma investigação sobre a articulação dos projetos como capital imobiliário e dos transportes, pois as reformas patrocinadaspelo Estado Imperial só beneficiaram aquela região e os capitaisdo café ali investidos.

Todas as sugestões contidas no plano tinham como referênciauma cidade a ser alcançada, mais salubre e mais disciplinada.Diferentemente do relatório Beaurepaire que se concentrava emquestões práticas como a drenagem dos pântanos e das áreasalagadiças, o plano de 1874 além das intervenções práticas para oespaço urbano como a arborização de ruas e praças, o alargamentodas vias e sua retificação e a reconstrução das edificações em lotesmaiores; preconizava também normas reguladoras para questões comoa limpeza pública e domiciliar e um tipo de zoneamento, já queprevia determinados usos para os espaços como cemitérios,hospitais, albergarias, cocheiras e atividades industriais queutilizassem substâncias prejudiciais à saúde da população.

O relatório foi pedido pelo Ministério dos Negócios doImpério, o chefe da comissão era o diretor da Inspetoria Geral deObras Públicas, o major Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim,repartição esta alocada desde 1860 no Ministério da Agricultura25.Pela primeira vez um texto conjugava as questões higiênicas aosproblemas viários, ao conforto e beleza. Os autores deixavam claroque foram chamados pelo governo imperial porque os problemasde salubridade da cidade eram da alçada da engenharia e que orelatório apresentado era fruto de uma extensa pesquisa, na medida

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no solo carioca nos anos seguintes; avaliar os planos e projetos nocontexto em que eles foram produzidos auxilia a desvelar comoesta configuração foi construída, ao apontar um momento em queessa nova materialidade era estranha à população, a práticaurbanística construiu e promoveu um determinado urbano,tornando-o natural26 na paisagem. O urbanismo floresceu no solofértil dos problemas urbanos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Parte das proposições do plano seria colocada em práticana gestão do prefeito que fez parte da comissão, Francisco PereiraPassos. Até o início do século XX o texto seria utilizado como umpotente instrumento de leitura sobre os problemas da urbe, masseria um longo processo para que o estado assumissecompletamente o controle dos problemas urbanos, determinandoe elegendo o que e como fazer para solucioná-los; assim o BotaAbaixo da gestão de Pereira Passos na Primeira República seassentou grandemente no Plano de Melhoramentos de 1874.

Os discursos urbanísticos não foram os únicos textos produzidossobre a cidade, da mesma forma que o Estado (câmara, inspetoria epolícia) não foi o único agente a intervir na materialidade da urbe. Istosignifica dizer que, privilegiar um segmento social possibilita apenasdescortinar um aspecto da constituição da cidade e do urbano.Ainda que faltem pesquisas sobre a atuação de todos os agentesno lócus urbano ao longo do século XIX, pode-se afirmar que osespaços e territórios da cidade foram historicamente construídosna interface das relações sociais constituídas pelos homens emsuas múltiplas experiências vivendo a/na cidade.

Os discursos urbanísticos materializaram as várias visõesde cidade existentes entre os diversos profissionais que intervinhamna urbe, além de explicitar os limites do próprio pensamentourbanístico sobre o que deveria ser a cidade ideal e de como poderiaser sua intervenção. A cidade chegaria ao final do XIX com seusserviços e equipamentos tão precários como do início do século. Arepública transformaria os problemas da capital em problemas danação, potencializando então a modernização de sua estruturaurbana e a emergência do Urbanismo.

Para o Urbanismo a articulação com estado foi defundamental importância para a concretização de um ideário quese assentava na normatização das construções e disciplinarizaçãoda população. Para além dos planos e da atuação do Estado, oshabitantes vivenciaram estas transformações, principalmenteaquelas ocorridas após as décadas de 1870, onde a estruturacolonial desapareceria sob o manto das reformas urbanas.

Conhecer como os habitantes experimentaram socialmenteessas transformações ajuda a dimensionar a atuação dos urbanistas

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12 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872. Os dadospublicados referem-se aos conhecidos em abril de 187213 São elas: Campo grande, Jacarepaguá, ilhas do governador, Paquetá,Guaratiba, Inhaúma, Irajá e Santa Cruz14 SILVA, Maria Lais Pereira da. Os transportes coletivos na cidadedo Rio de Janeiro. RJ: SMCTE, 199215 Esse dado corresponde ao ano de 1866, encontra-se em SILVA,M. L P. Op cit, p.5316 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1870., p. 42217 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,p. 72 e 73. As principais linhas foram inauguradas em 187018 BENCHIMOL, Pereira Passos: um Haussman tropical, RJ: SMCTE,1992, p.7319 REBOUÇAS, André. Diário e anotações autobiográficas. RJ: JoseOlimpio1938, p.20220 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,p. 72 e 73.21 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,p. 73 e 7422 Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,p. 75. termo utilizado no suplemento23 Sobre o plano e as novidades introduzidas pela engenharia verSILVA, L. IN MOURA, A e SENA FILHO, N (orgs). Cidades: relaçõese poder e cultura urbana. Goiânia: ed Vieira, 2005, p 171-19224 Almanak Laemmert. RJ: Typ E&H Laemmert, 1872, suplementop. 72-73.25 Relatório do Ministério dos Negócios do Império do Brazil, ano1860, Rio de janeiro: tipografia nacional, 1861,p.5 e segs26 Segunda natureza, tal como definiu Latour. B. Jamais fomosmoderno. RJ:Ed 34. 1994

SANTOS, Francisco Agenor Noronha. As freguesias do Rio Antigo.Rio de Janeiro: edições O Cruzeiro, 1965SEVCENKO. Nicolau. Orfeu Extático na metrópole. SP: Cia dasletras, 1992

NOTAS

1 Urbanismo tal como definido em CHOAY, F. Urbanismo. 5ª ed.SP: Perspectiva, 19982 Campo de conhecimento e Professional como definiu Bourdieuem A Economia das Trocas Simbólicas, 2o ed, São Paulo: Perspectiva,19933 A tragédia urbana brasileira atual, segundo Maricato não foi produtodas décadas perdidas (1980/90) como denunciam alguns pensadoressociais. As últimas décadas aprofundaram a desigualdade existentenesta sociedade historicamente e tradicionalmente desigual. A partirda privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre(1888) percebe-se com mais clareza que é na cidade que se realiza areprodução da força de trabalho, e nas cidades brasileiras, de umamaneira geral, esta reprodução não se deu totalmente pelas viasformais e sim pelos expedientes de subsistência. Essa característicaacompanharia e atravessaria o século XX, marcando decisivamente aprodução das cidades e a vida nas cidades brasileiras. Sobre isto verMARICATO, Ermínia. Urbanismo no mundo globalizado: metrópolesbrasileiras IN. São Paulo em Perspectiva, 2000, n 14 (4),4 Dados retirados de FLEUISS, M 1928, 1445 CAVALCANTI, Nireu.O Rio setecentista. RJ: Jorge Zahar editor,2004, p.366 LOBO, E M L. História do Rio de Janeiro, RJ: IBEMEC, 1978,p.1227 Resumo total de população ....IN revista o IHGB 18588 Informações extraídas do Almanaque Laemmert ano 1844 RJ: TypE&H Laemmert9 Informações extraídas do Almanaque Laemmert ano 1844, RJ:Typ E&H Laemmert, p 17810 Relatório do Ministério dos Negócios do Império do Brazil, ano1843, Rio de janeiro: tipografia nacional, 1844 p.36 e segs11 Sistema de pavimentação de estradas e ruas com pedra britada esaibro que se recalca com um cilindro

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HISTÓRIA SOCIAL: CAMINHOS DE UM CAMPOHISTÓRICO

José D’Assunção Barros*

RESUMO

Este artigo busca esclarecer e discutir algunsaspectos relacionados à História Social, examinandoinicialmente, de um ponto de vista crítico, os diversosusos e significados da expressão como modalidadedo saber historiográfico. São discutidos aspectosdiversos, incluindo os objetos, fontes e abordagensmais comuns a este campo.

Palavras-chave: História Social, Campos da História, escrita da história.

ABSTRACT

This article attempts to clarify and discuss someaspects related to the Social History, discussing thevarious uses and significances of this expressionas a modality of historical knowledge. The aspectsto be discussed are diverse, and include the objects,sources and approaches more common in this field.

Key Words: Social History, Fields of History, historical writing.

* Doutor em História Social pela UFF. Professor nos Cursos deGraduação e Mestrado em História da Universidade SeverinoSombra (Vassouras) e nos Cursos de Graduação e Mestrado naUniversidade Federal de Juiz de Fora. Autor dos livros O Campoda História (2004) e O Projeto de Pesquisa em História (2005).

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obrigado a proceder a recortes e a operações simplificadoras, e éneste sentido que devem ser considerados os compartimentos queforam criados pelos próprios historiadores para enquadrar os seusvários tipos de estudos históricos.

Preocupados com uma “religação dos saberes” – depoisdeste conturbado século que de certa maneira foi o ‘século dasespecializações’ – não faltam os autores que alertam para osperigos e empobrecimentos do isolamento e da compartimentação:

“Sabe-se que o historiador tem o costume de arrumar osfatos em envelopes que se transformaram em entidadestrans-históricas, em categorias temporais e universais: osocial, o econômico, o político, o religioso, o cultural ...Depois de proceder a esta distribuição e a esta etiquetagem,por razões de competência pessoal ou por escolhadisciplinar, o historiador atém-se comumente a uma únicaordem de fatos”2

A saída, naturalmente, é não utilizar as classificações comolimites ou pretexto para o isolamento. Não se justifica o recuo diantede uma curva demográfica, quando o objeto de estudo o exige, sob opretexto de que a sua é apenas uma História Cultural. Da mesmaforma, um historiador econômico não pode recuar diante dos fatos dacultura (ou dos aspectos culturais de um “fato econômico”). PeterBurke registra em seu livro sobre a Escola dos Annales um exemploextraído do grande historiador econômico Witold Kula:

“[...] Kula faz uma análise econômica dos latifúndiospoloneses nos séculos XVII e XVIII. Mostrou que ocomportamento econômico dos proprietários de terraspoloneses era o oposto do que previa a economiaclássica. Quando o preço do centeio, seu produtoprincipal, aumentava, produziam menos, e quando opreço abaixava, produziam mais. A explicação desteparadoxo deveria ser encontrada, diz Kula [...] no reinoda cultura, ou das mentalidades. Tais aristocratas nãoestavam interessados em lucros, mas em manter umestilo de vida, da maneira a que estavam acostumados.

1. Breve Introdução aos Campos Históricos

Entre as inúmeras modalidades e especialidades nas quaisse reparte a disciplina e a prática da História nos dias de hoje,talvez a dimensão historiográfica mais sujeita a oscilações designificado seja a da História Social. Modalidade historiográficarica de interdisciplinaridades com todas as Ciências Sociais, eigualmente rica na sua possibilidade de objetos de estudo, a HistóriaSocial abre-se de fato a variadas possibilidades de definição edelimitação que certamente interferem nos vários trabalhosproduzidos pelos historiadores que atuam neste campointradisciplinar. Veremos, neste artigo, que há razões várias paraessa oferta de uma diversidade de sentidos que vem à tona quandofalamos em História Social. Por outro lado, antes de aprofundara temática em questão, uma reflexão inicial sobre os critérios quepresidem a partição da História nas suas diversas modalidadesmostrar-se-á bastante oportuna, e para tal nos basearemos emuma obra específica recentemente publicada sobre o assunto como título O Campo da História – especialidades e abordagens(BARROS, 2004).

Antes de mais nada, será útil compreender que existembasicamente duas grandes ordens de dificuldades que costumamtornar confusos os esforços de classificar e organizar internamentea História em sub-áreas especializadas. Uma corresponde a umaintrincada confusão de critérios que costuma presidir estes esforçosclassificatórios, questão que deixaremos para discutir mais adiante.A outra ordem de dificuldades, da qual gostaríamos de falar emprimeiro lugar, corresponde ao fato de que uma abordagem ouuma prática historiográfica não pode ser rigorosamente enquadradadentro de um único campo.

Apesar de falarmos freqüentemente em uma “HistóriaEconômica”, em uma “História Política”, em uma “HistóriaCultural”, e assim por diante, a verdade é que não existem fatosque sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. Todasas dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamentesequer existem como dimensões separadas. Mas o ser humano,em sua ânsia de melhor compreender o mundo, acaba sendo

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historiador (a micro-realidade, o número); fala-se em uma Históriadas Mulheres ou em uma História dos Marginais, que sãoclassificações relacionadas aos ‘sujeitos’ que fazem a História (aMulher, o Marginal); fala-se em uma História Rural ou em umaHistória Urbana, que são subdivisões relativas aos ‘ambientessociais’ examinados pelo historiador (o Campo, a Cidade); fala-sede uma História da Arte ou de uma História da Sexualidade,que são âmbitos associados aos ‘objetos’ considerados na pesquisahistórica (a Criação Artística, o Sexo). Poder-se-ia falar ainda emuma História Vista de Baixo, para simbolizar uma inversão deperspectiva em relação à tradicional historiografia que partia dopoder dominante, e até em uma História Imediata, modalidadehistoriográfica em que o autor é ao mesmo tempo historiador epersonagem dos acontecimentos que descreve ou analisa.

Todos estes exemplos constituem legítimas especialidadesda História. Mas as dificuldades começam a se mostrar quandoestas várias classificações, oriundas de critérios bem diferentes eestranhos entre si, são misturadas indiscriminadamente paraorganizar os vários “lotes” da História.

De algum modo, pode-se postular três ordens de critérioscorrespondentes a divisões da História respectivamenterelacionadas a “enfoques”, “métodos” e “temas”. Uma dimensãoimplica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou emalgo que se pretende ver em primeiro plano na observação deuma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implicaem um ‘modo de fazer a história’ a partir dos materiais com osquais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes,determinados métodos, e determinados campos de observação);um domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientadaem relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais serádirigida a atenção do historiador (campos temáticos como o da‘história das mulheres’ ou da ‘história do Direito’).

Desnecessário dizer que os historiadores podem unir emuma única perspectiva historiográfica uma dimensão (por exemplo,a História Econômica), uma determinada abordagem (a HistóriaSerial), e um certo domínio (a História dos Camponeses). Naverdade, muitos outros tipos de combinações serão possíveis, até

As variações na produção eram tentativas de manteruma renda padrão. Seria interessante imaginar as reaçõesde Karl Marx a essas idéias”3

O fundador do Materialismo Histórico teria possivelmentereagido bem à flexibilidade de Kula, poderíamos acrescentar.Afinal, em sua análise política e econômica do 18 Brumário deLuís Bonaparte (1952), Marx não recua diante dos fatos do“imaginário” (palavra que ainda estava longe de ser cunhada).Sua explicação para a ascensão de Luís Bonaparte ao governofrancês na segunda metade do século XIX, com base nos votosdos camponeses, está ancorada precisamente em uma análise doimaginário, do peso que a imagem de Napoleão Bonaparte (tio deLuís Bonaparte) ainda exercia sobre a população4.

Em vista destes e de tantos outros exemplos que poderiamser extraídos de obras historiográficas magistrais, tem-se a liçãonem sempre bem compreendida de que o esclarecimento do campoou da combinação de campos em que se insere um estudo nãodeve ter efeito paralisante, nem servir como pretexto para justificaromissões. Definir o ambiente intradisciplinar em que florescerá apesquisa ou no qual se consolidará uma atuação historiográficadeve ser encarado como um esforço de autoconhecimento, dedefinir os pontos de partida mais significativos – e não como umaprofissão de fé no isolamento intradisciplinar.

Uma segunda ordem de dificuldades que costuma confundiras tentativas de subdividir internamente o Campo Histórico refere-se a uma inadvertida mistura dos critérios que são habitualmenteutilizados para a classificação das várias “histórias”. Fala-se porexemplo em uma História Demográfica ou em uma HistóriaPolítica, noções que se referem a ‘dimensões’ ou a fatores queajudam a definir a realidade social (a população, o poder); fala-sede uma História Oral ou de uma História Serial, que sãoclassificações da História que remetem ao tipo de fontes com asquais elas lidam ou às ‘abordagens’ que os historiadores utilizampara tratar estas fontes (a entrevista, a serialização de dados);fala-se da Micro-História ou da História Quantitativa, que sãoclassificações relativas aos campos de observação abordados pelo

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por estas novas sub-especialidades (por longo tempo,desapareceriam da prática historiográfica profissional do séculoXX a biografia de personalidades políticas importantes e a históriadas grandes batalhas, temas que depois retornaram nas últimasdécadas do século XX). Em suma: o caleidoscópio historiográficosofre os seus rearranjos. E estes rearranjos são eles mesmos produtoshistóricos, derivados das tendências de pensamento de cada época edas suas motivações políticas e sociais. Os paradigmas acabamsendo substituídos uns por outros, por mais que tenham perdurado,e trazem a seu reboque novas tábuas de classificação.

Posto isto, será possível dividir a História conforme ela éhoje compreendida pelos historiadores profissionais em dimensõesrelativas a certos enfoques que são priorizados na apreensão davida e da organização de uma sociedade. Uma vez que o objetivomais específico deste artigo é delimitar e discutir a História Social,não teremos espaço para discutir cada um dos demais camposgerados por este grupo de critérios – e que vão da História Sociala outras modalidades como a História Política, a HistóriaEconômica, a História Demográfica, a Geo-História ou a Históriadas Mentalidades. Contudo reenviamos, para uma continuidadeno aprofundamento deste assunto, a uma obra recente que foidesenvolvida neste sentido5.

Do âmbito das dimensões, passaremos agora ao âmbito dasabordagens. Existem subdivisões possíveis da História que sereferem ao ‘campo de observação’ com que os historiadorestrabalham. E existem outras que se referem ao tipo de fontes ouao ‘modo de tratamento das fontes’ empregado pelo historiador.Em cada um destes casos, estas divisões da História referem-semais aos ‘modos de fazer’ a pesquisa do que às dimensões sociaisque enfocadas pelo historiador (‘modos de ver’). Deste modo, oscritérios envolvidos por estas subdivisões são divisões que estãomais relacionadas com Metodologia do que com Teoria.

É o caso, por exemplo, da História Oral. Esta subdivisãohistoriográfica refere-se a um tipo de fontes com o qual o historiadortrabalha, a saber, os testemunhos orais. Aqui, entramos em umoutro tipo de critério que não interfere com os do primeiro grupo.Um historiador pode estabelecer como enfoque a História Política

mesmo no interior de um grupo de critérios, mas por ora avancemosmais nesta clarificação.

A primeira ordem de classificações a que podemos nosreferir é aquela gerada pelas várias dimensões da vida humanaque podem constituir enfoques historiográficos, embora narealidade social efetiva estas dimensões nunca apareçamdesligadas entre si. Teremos então uma História Demográfica,uma História da Cultura Material, uma História Econômica, umaHistória Política, uma História Cultural, e assim por diante.

É preciso ter em vista, antes de mais nada, que estasdimensões a serem definidas como ‘instâncias da realidade social’são em todos os casos construções do historiador, contendo a suaparcela de arbitrariedade e a sua possibilidade de flutuações aolongo do desenvolvimento da história do pensamento historiográfico.A cada novo período da historiografia, uma dimensão pode comoque se desprender da outra, ou então duas dimensões que antesandavam separadas podem voltar a se juntar.

A História das Mentalidades, a História do Imaginário e a Histó-ria Antropológica, por exemplo, foram enfoques que de certo modose desprenderam há algumas décadas da História da Cultura; e aHistória da Cultura Material organizou-se a partir de um certo setorda História Econômica que estava diretamente voltado para o consu-mo e que passou a se conectar com certos aspectos enfatizados pelaHistória Cultural, ao mesmo tempo em que se beneficiava das preocu-pações crescentes com a vida cotidiana que surgiram no decurso doséculo XX. Há também as dimensões que são constituídas pelo contatoda História com outras disciplinas, como a Geo-História, que surgiude uma interface do trabalho historiográfico com a Geografia.

É também digno de nota o fato de que algumas dimensõespodem começar por ser construídas por contraste com outras, porvezes gerando certas oposições mais marcantes, até que em seudesenvolvimento posterior certas interfaces possam serestabelecidas ou retomadas. De certo modo, tal como já foiressaltado no início deste ensaio, a História Social e a HistóriaEconômica do século XX começaram a ser edificadas a partir deum contraste com a velha História Política que se fazia no séculoXIX – e isto resultou aliás no provisório abandono de alguns objetos

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historiográfico – uma vida, um circuito de sociabilidade, uma práticasocial – e a partir desta gota d’água cuidadosamente escolhidabusca enxergar algo do oceano inteiro. Já a História Regional é amodalidade historiográfica que estuda uma região por ela mesma,examinando-a como sistema com seu próprio funcionamento oucomo sub-sistema que se insere em um sistema mais vasto –notando-se que é o próprio historiador quem define o critério apartir do qual está definindo este ou aquele campo de observaçãocomo uma “região”. Esta não coincide, necessariamente, com aregião administrativa ou geográfica, pode ser uma região definidaantropologicamente, culturalmente, ou de qualquer outra maneira.

Mas não nos deteremos mais no âmbito das abordagens, jáque é preciso examinar o último âmbito de critérios que pode presidiruma divisão da História em modalidades mais específicas.Examinaremos em seguida aquilo que denominaremos de domíniosda História.

Os domínios da História são na verdade de númeroindefinido. Alguns domínios podem se referir aos ‘agenteshistóricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, omarginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos‘ambientes sociais’ (rural, urbano, vida privada), outros aos‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade, sexualidade), e aoutras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenasindicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, equalquer um poderá começar a pensar por conta própria as inúmeraspossibilidades.

Tal como se disse, os critérios de classificação queestabelecem domínios da História referem-se primordialmente àstemáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos historiadores.São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais seinscreverá o objeto de investigação e a problemática constituídospelo historiador.

A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadoresque trabalham com diferentes dimensões históricas, e certamenteàs várias abordagens. Mas existem domínios que têm muito maisafinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dostemas por eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História

ou a História Cultural, e selecionar como abordagem a HistóriaOral. Isto significa que ele irá produzir o essencial dos seusmateriais de investigação e reflexão a partir da coleta dedepoimentos, que depois deverá analisar com os métodosadequados. Suas preocupações neste âmbito estarão relacionadasao tipo de entrevista que será utilizado na coleta de depoimentos,aos cuidados na decodificação e análise destes depoimentos, aouso ou não de questionários pré-direcionados, e assim por diante.Todos estes aspectos mais se referem a ‘métodos e técnicas’ doque a ‘aspectos teóricos’. A História Oral, enfim, remete a umdos caminhos metodológicos oferecidos pela História, e não a umenfoque, a um caminho teórico ou a um caminho temático.

Outro exemplo de modalidade da História definida por umcritério estabelecido por uma ‘abordagem’ é a História Serial –modalidade da História que desempenhou um papel primordial nahistoriografia do século XX e que,.quando surgiu, foi vista comouma revolução nas relações do historiador com as suas fontes. Aoinvés das fontes habituais que eram tomadas sempre para umaabordagem qualitativa, a chamada História Serial introduziu nasproximidades dos meados do século XX uma perspectivainteiramente nova: tratava-se de constituir “séries” de fontes e deabordá-las de acordo com técnicas igualmente inéditas. Neste caso,teremos também aqui um campo a ser definido em relação àabordagem ou ao modo de fazer a História que a perpassa, já queconsideramos que o que define uma modalidade historiográficacomo História Serial é precisamente a presença de fontes que sãoconstituídas em série e uma determinada maneira de tratarhistoriograficamente esta série – ou seja: um tipo de fonte a serutilizado e uma forma específica de tratamento destas fontes, umafazer histórico, enfim.

Poderíamos seguir adiante na descrição de outros camposda História que se referem a ‘abordagens’, seja a ‘modos de fazera história’ (escolha ou constituição de determinados tipos de fontes,ou formas de tratamento destas fontes), seja ao ‘campo deobservação’ no qual se detém o historiador. A Micro-História, porexemplo, é uma abordagem historiográfica deste último tipo: elaescolhe como campo de observação um recorte micro-

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diária, e é talvez isto o que lhe dá um status de domínio. Masseguramente esta poderia ser vista como uma dimensão tãofundamental como a Economia, a Política ou as Mentalidades. Oque ocorre é que estas não apenas são dimensões significativasque definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-campos’, ou tornaram-se ‘macro-campos’ devido à atenção quelhes prestaram os historiadores e outros pensadores.

As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-campos capazes de se desdobrar em ambientes internos, de produzirinterfaces mais diversificadas, e de darem margem a um númerosignificativo de obras historiográficas. Já os domínios correspondema caminhos ou campos temáticos definidos pelas preocupaçõesdos historiadores com relação a determinados âmbitos humanos,ambientes sociais ou agentes históricos específicos. Assim, se deum lado podemos falar de domínios históricos que se referem aâmbitos (Arte, Religiosidade, Representações), de outro ladoexistem outras categorias definidoras de domínios historiográficosque se referem a agentes históricos específicos (História daMulher, História dos Excluídos), ou a determinados ambientessociais (História Rural, História Urbana). Naturalmente que, emum caso ou outro, teremos domínios que se prestam a todos osenfoques (dimensões) possíveis – da História da Cultura Materialà História das Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiadoscom a atenção voltada para as Mentalidades, como fez BronislawGeremek, com a atenção voltada para a Economia, como fez Kula,ou com a atenção voltada para a Cultura, como fez Thompson, oucom a atenção voltada para o Social, como fez Michel Mollat. AHistória Urbana ou a História Rural podem ser avaliadas a partirde enfoques direcionados para cada uma das dimensões que jámencionamos antes, da Economia à Cultura e às Mentalidades –afinal, estes domínios são rigorosamente ambientes menores dentrodo mundo humano que não deixam de ser unidades totalizantes(são mundos humanos específicos, que podem ser examinados natotalidade de seus aspectos).

Vale lembrar também que existem os domínios que sãoaparentemente sub-campos de um domínio maior. A Históriadas Doenças poderia ser inscrita em uma História do Corpo. A

da Literatura são praticamente sub-especialidades da HistóriaCultural (embora se deva chamar atenção para uma História Socialda Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam deser possibilidades dentro da História Social).

De modo análogo, um domínio como o da História dasImagens (entendida como história das imagens visuais obtidas apartir de fontes iconográficas, fotográficas, etc) é quase que umanexo da História do Imaginário. Mas, bem entendido, uma sériede imagens visuais tomadas como fontes históricas sempre poderádar a perceber qualquer das dimensões que discutimos atrás, comoa História Econômica, a História Política, a Geo-História ou aHistória da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livrode Oras, da qual o historiador lança mão para perceber aspectosda economia rural no ocidente medieval, as suas representaçõespolíticas, as relações do homem medieval com o seu meio naturalou traços de sua cultura material; ou pense-se em uma pinturaimpressionista utilizada para captar aspectos da História Social naBelle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas paralevantar aspectos da História Política da Atenas da AntigüidadeClássica.. Mas de uma maneira ou de outra, em todos estes casossempre estará ocorrendo um diálogo evidente da História doImaginário com uma destas outras dimensões. De maneira análoga,já a História do Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem-se a inúmeros campos de enfoques para além da História dasMentalidades, como a História da Cultura Material, a História Sociala História Econômica ou a História Política (neste último caso,focando a questão dos micropoderes). Raciocínios similares podemser encaminhados para outros domínios igualmente abertos, comoa História das Religiões ou a História da Sexualidade.

Conforme estamos vendo, os domínios tendem a serenglobados por uma dimensão (são poucos os casos) ou entãopartilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões. Masé possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratadocomo ‘domínio’, mas que possua uma abrangência em potencial,possa vir a transformar-se futuramente em uma ‘dimensão’. AHistória da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação àimportância da sexualidade para a vida humana na concretude

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do Grupo dos Annales, e que naquele momento principia a semostrar claramente construída – ao lado da História Econômica– por oposição à História Política tradicional. Nesta esteira inicial,houve quem direcionasse a expressão “História Social” para umahistória das grandes massas ou para uma história dos grupos sociaisde várias espécies (em contraste com a biografia dos grandeshomens e com a História das Instituições a que tinha sido tãoafeita a historiografia do século anterior).

Também é evidente que a historiografia marxista da mesmaépoca – seguindo os princípios norteadores que já no século XIXhaviam sido indicados por Marx e Engels com vistas a uma novafilosofia da história – direcionava-se na mesma época para aelaboração de uma história preocupada com a conjunção dosaspectos econômicos e dos aspectos sociais. O que haveria derelevante a ser estudado não era certamente a história dos grandeshomens, ou mesmo a história política dos grandes estados e dasinstituições, mas sim a historia dos ‘modos de produção’ – isto é,das bases econômicas e sociais que determinariam toda a vidasocial – e também a história das ‘lutas de classes’, isto é, dasrelações entre os diversos grupos sociais presentes em umasociedade particularmente nas suas situações de conflito.

A delimitação de um novo campo a ser chamado de “históriasocial” surge portanto sob a forte influência destes dois camposde motivação que passaram a exercer profunda influência no seioda historiografia da primeira metade do século XX. De um ladovinham os ataques desfechados pelo grupo dos Annales contraaquilo que consideravam uma “velha história política”, de outrolado começavam a surgir as primeiras grandes obras dahistoriografia marxista, que cumpriam fielmente um programa defilosofia da história voltado para o econômico e para o social talcomo havia sido proposto pelos fundadores do materialismohistórico a partir de meados do século XIX.

A História Social, enfim, surgia no cenário historiográficocomo campo relevante e definitivo a se estabelecer no âmbito dasmodalidades historiográficas que devem ser definidas pelasdimensões que são trazidas à tona quando o historiador se põe aexaminar um processo histórico qualquer. Considerando aquilo que

História da Prostituição poderia ser inserida na História dosExcluídos (embora em alguns aspectos também possa serincluída na História da Sexualidade). A História da Criança, damaneira como têm funcionado até hoje as nossas instituiçõesfamiliares, poderá ser inscrita sem maiores dificuldades em umaHistória da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem seenglobado por uma História da Vida Privada.

Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadramopcionalmente como sub-campos em mais de um domínio maisabrangente, ou que se localizam nos interstícios situados entre doisou mais outros domínios. A História da Medicina, enquadrar-se-ána História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamentoou dos sistemas repressivos (como propôs Michel Foucault) ...estará em afinidade com os já mencionados domínios da Históriadas Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como subconjuntoa História da Clínica? Temos nestes e em tantos outros casos umentrelaçado de domínios históricos, abrindo espaços por dentro dolabirinto do saber historiográfico.

Para retornar, em seguida, a nossas reflexões maisespecíficas sobre a História Social, deixaremos estabelecidos estestrês grupos de critérios capazes de presidir a divisão da Históriaem espaços interdisciplinares: dimensões, abordagens edomínios. Diante destas três grandes ordens de critérios, tal comojá se disse, a História Social deverá ser mais adequadamenteclassificada como uma dimensão historiográfica. Neste ponto,retomaremos a reflexão sobre os diversos sentidos que têm sidoatribuídos à História Social, e sobre a seu enquadramento comocampo histórico específico a partir dos critérios atrás arrolados

.2. A História Social como campo histórico relacionado a umadimensão da vida social

Antes de mais nada, para retornar aos primeiros usos daexpressão “história social” na historiografia moderna, podemosfixar a História Social como modalidade que começa a aparecerde maneira auto-referenciada por ocasião do surgimento na França

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3. Os diversos âmbitos da História Social

Se investirmos na idéia de que a História Social é uma sub-especialidade entre as outras (o que parece ter sido a proposta daEscola dos Annales nos seus primórdios ao introduzir esta categoriano título de sua revista), veremos que começam a se destacarcertos objetos mais evidentes: os modos e mecanismos de organizaçãosocial, as classes sociais e outros tipos de agrupamentos, as relaçõessociais (entre estes grupos e entre os indivíduos no seu interior), epor fim os processos de transformação da sociedade.

O Quadro abaixo busca reunir alguns dos objetos e âmbitosque poderiam ser pretensamente visados por uma sub-especialidadechamada História Social. Este esquema complexo foi construídorastreando os objetos mais específicos que têm sido trabalhadospor alguns dos mais conhecidos historiadores que se autodefinemcomo inscritos na categoria História Social. Pode-se perceber quea maioria dos campos de interesse que ali foram assinaladoscorrespondem a ‘recortes humanos’ (as classes e grupos sociais,as células familiares), ou a ‘recortes de relações humanas’ (osmodos de organização da sociedade, os sistemas que estruturamas diferenças e desigualdades, as formas de sociabilidade). Emum caso, estudam-se fatias da sociedade (ou os subconjuntosinternos à sociedade); em outro caso, estudam-se elementosespecíficos e transversais que parecem atravessar a sociedadepor inteiro (os mecanismos de organização social e os sistemas deexclusão, por exemplo, atravessam a sociedade como um todo)6 .

Para além dos subcampos citados no parágrafo anterior,indicamos ainda uma categoria que é obviamente uma das maisimportantes para a História Social: a dos ‘processos’(industrialização, modernização, colonização, ou quaisquer outros,inclusive as revoluções, que aparecem incluídas na rubrica‘movimentos sociais’). É muito importante indicar que a HistóriaSocial também estuda estes ‘processos’, e não apenas modos deorganização ou estruturas, pois caso contrário a História Socialpoderia ser vista como uma História estática, e não dinâmica.

Voltemos por ora aos objetos da História Social quecoincidem com subconjuntos da sociedade (grupos e classes

é colocado em evidência em uma determinada análisehistoriográfica – a Política, a Cultura, a Economia, as relaçõessociais – poderíamos ter respectivamente uma História Política,uma História Cultural, uma História Econômica, uma HistóriaSocial, entre outras possibilidades.

Tal como foi explicitado atrás, esta clara tendência dahistoriografia contemporânea a constituir e perceber a história socialcomo campo relacionado a uma dimensão social específica liga-se ao fato de que, na primeira metade do século XX, os novoshistoriadores passam a opor um novo campo de interesses eenfoques à História Política do século XIX, o que de certo modoproduzia uma aliança entre a História Social e a História Econômicana luta pelo estabelecimento de uma historiografia inteiramentenova no que se refere aos fazeres historiográficos do séculoanterior. À História Social e à História Econômica – como camposinauguradores de um novo fazer historiográfico – logo se juntariama História Demográfica, a História Cultural, a História dasMentalidades, a História do Imaginário, e também uma novaHistória Política, não mais preocupada apenas com o poderinstitucional mas sim com todas as formas de poder que circulamem qualquer sociedade, inclusive os micropoderes que afetam avida cotidiana e as relações familiares. O quadro das dimensõeshistoriográficas, portanto, multidiversificava-se – e é neste contextoque pode ser definido um primeiro sentido para a História Socialcomo uma instância historiográfica específica, no mesmo nívelda História Política e da História da Cultura, apenas para dardois exemplos.

Por outro lado, outra indagação que surge nos dias de hoje,quando a expressão “história social” já multiplicou os seus sentidose as suas aberturas de significados, é se a História Social deve serconsiderada uma especialidade, com objetos próprios e definidos,ou se o “social” que ao seu nome se agrega como adjetivo acabade um modo ou de outro por fazer coincidir o seu circuito deinteresses com a sociedade – o que faria da História Social umaespécie de categoria transcendente que acaba perpassando oumesmo englobando todas as outras especialidades da História.

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específico da sociedade. Em contraste com este tipo de enfoque,existem duas das divisões ou subconjuntos possíveis que perdemo seu caráter mais específico por se autoconstituírem de certomodo em totalidades : o estudo das ‘comunidades’ (rurais e urbanas)e o estudo das ‘populações’ como um todo. Ou seja, em um casodois subconjuntos que se complementam e que dividem a sociedadena dicotomia ‘rural / urbano’, e no outro caso um subconjunto quecoincide com o conjunto universo da sociedade, e que chamamosde ‘população’. Estes dois campos são os únicos que estãoespecificamente ligados a uma outra acepção da História Socialque discutiremos a seguir.

4. História Social como “história totalizante”

Se a História Social foi se constituindo desde o princípiocomo uma sub-especialidade da História, direcionada para objetosbem específicos e que se distinguiam dos objetos das outrasmodalidades da história, por outro lado a noção de “História Social”também começou a ser vinculada por alguns pensadores ehistoriadores a uma “história total”, encarregada de realizar umagrande síntese da diversidade de dimensões e enfoques pertinentesao estudo de uma determinada comunidade ou formação social.Portanto, estaria a cargo da História Social criar as devidasconexões entre os campos político, econômico, mental e outros –o que implica que nesta acepção a História Social deixa de seruma modalidade mais específica, como qualquer outra, para setornar o campo histórico mais abrangente que se abriria àpossibilidade da mediação ou da síntese ... História Social comoHistória da Sociedade ...

Na verdade, esta última acepção foi adotada ainda pelaEscola dos Annales, mas a partir da década de 1940, de modo queacaba se contrapondo àquela primeira acepção que procurava fixara História Social como especialidade. Em uma conferência de1941, mais tarde publicada em Combates pela História [1942],Lucien Febvre chega a afirmar que “não há história econômica esocial; há somente história, em sua unidade” (Febvre, 1992: p.45).

sociais, categorias de excluídos, células familiares). Quando ohistoriador volta-se para o exame destes grupos humanosespecíficos no interior de uma sociedade, ou então para as relaçõesconflituosas e interativas entre alguns destes grupos, seu interessepoderá se voltar tanto para a elaboração de um retrato sintetizadodestes grupos sociais e de suas relações, como para a incidênciade questões transversais nestes grupos. Como uma certa classeou grupo se comporta diante de determinada conjuntura políticaou econômica? Como reage a uma determinada crise política, oua uma determinada crise econômica? Como reage um grupo, porexemplo, às flutuações de preços? Como repercutem certasmudanças políticas na vida social de um grupo?

Embora as questões acima colocadas refiram-sealternadamente aos âmbitos político ou econômico, elas podemser trabalhadas socialmente pelos historiadores. Dito de outraforma, existe um modo específico como a História Social encaraos fatos políticos e econômicos. As repercussões sociais dos fatospolíticos e econômicos, seja nos grupos específicos ou em umconjunto mais amplo, devem ser também objetos privilegiadospara os historia-dores sociais. Isto nos leva àquela questãoinicial, à qual ainda voltaremos outras vezes: não existem fatospolíticos, econômicos ou sociais isolados. Não é o tipo de fato –político, econômico, social ou cultural por definição – o que defineuma sub-especialidade da História, mas sim o enfoque que ohistoriador dá a cada um destes tipos de fatos. Um historiadoreconômico pode dar um destino a determinados fatos econômicos(ao elaborar, por exemplo, um estudo dos ciclos econômicos nodecurso de algumas décadas), e um historiador social um outro –pois este último estará mais preocupado em perceber como estasvariações conjunturais afetam diferentemente os vários grupossociais, que alterações elas provocam nas relações entre estesgrupos, e assim por diante.

Ainda com relação à possibilidade de examinar no interiorde uma sociedade certos recortes humanos, uma outra observaçãodeve ser feita. Vimos que a História Social pode dirigir sua atençãopara uma classe social, para uma minoria, para um grupoprofissional, para a célula familiar – ou seja, para um subconjunto

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um lugar específico como sub-especialidade ao lado da HistóriaEconômica, da História Política, da História Cultural e de todas asoutras. Rigorosamente, depois da crise da História Total (esperançade abarcar todos os aspectos de uma sociedade em uma grandesíntese coerente) esta designação mais específica ganhou até maisforça, sobretudo a partir da década de 1960. De qualquer modo, anoção de História Social continuou sempre aberta a muitaspossibilidades de sentidos.

Os meios acadêmicos na Europa e nas Américas vieramtrazer a partir da institucionalização de seus programas de pós-graduação uma contribuição para os usos amplificados daexpressão “História Social”. Nestes meios ligados à Pesquisa quevem sendo desenvolvida nas Universidades, esta designação temsido muito utilizada no seu sentido mais abrangente, conseguindoassim enquadrar em um mesmo plano de coerência uma quantidademultidiversificada de pesquisas. Em certo sentido, argumenta-seque toda a História que hoje se escreve é de algum modo umaHistória Social – mesmo que direcionada para as dimensõespolítica, econômica ou cultural.

De fato, é possível incorporar uma preocupação social acada uma das demais dimensões antes citadas como sub-especialidades da História, e também às várias abordagens e domíniosque veremos a seguir. Assim, vimos que a Demografia Histórica podereduzir-se a um mero censo retrospectivo por historiadoresdescritivos e não-problematizadores, ou que ela pode se transformarem uma verdadeira Demografia Social quando superamos a meraenunciação do número em favor do tratamento problematizadodos índices populacionais. Vimos que a História da Cultura Materialpode ser reduzida à mera descrição de objetos, o que seriaquestionável, ou que ela pode enveredar por uma recolocação destesobjetos nos usos sociais que eles teriam na época e na sociedade emque foram produzidos (neste caso, poder-se-ia dizer queempreendemos uma espécie de História Social da Cultura Material).

Qualquer informação historicizada pode ser tratadasocialmente, é correto dizer. Mas é também verdade que nemtoda História é necessariamente social. Se é possível elaboraruma História Social das Idéias ou uma História Social da Arte,

Trata-se portanto de um programa que assume a perspectiva daHistória Total, ou da “História-Síntese”, que tão bem caracterizaa segunda fase dos Annales – sobretudo com as monumentaisobras de Fernando Braudel sobre O Mediterrâneo e sobre aCivilização Material do Capitalismo (Braudel, 1997 e 1984).Muitos historiadores passaram a entender História Social, a partirde então, com este sentido mais abrangente (se existem fatoseconômicos ou fatos políticos propriamente ditos, não existiriamrigorosamente os fatos sociais, ou melhor, todos os fatos seriamsociais, uma vez que estariam ocorrendo no interior da sociedadea partir dos relacionamentos dos homens e dos grupos de homensuns com os outros).

A idéia de uma História Social que tem a seu cargo a tarefade promover uma síntese de aspectos relacionados a váriasdimensões ou domínios historiográficos é também expressa porGeorges Duby em um texto de 1971 (1971: p.1-13):

Que ela [a História Social] deixe de se considerarentretanto a seguidora de uma história da civilizaçãomaterial, de uma história do poder, ou de uma históriadas mentalidades. Sua vocação própria é a da síntese.Cumpre-lhe recolher todos os resultados das pesquisasefetuadas, simultaneamente, em todos estes domínios e reuni-los na unidade de uma visão global

Aqui, uma nova noção da História Social fazia a sua entradana história do pensamento historiográfico. Esta nova noção deHistória Social, voltada para a idéia de uma totalidade de aspectos,podia ser aplicada tanto ao estudo de uma sociedade inteira, comopara o estudo de comunidades tomadas como centros de referência,como as comunidades rurais e urbanas que começaram a serexaminadas pelos historiadores associados à História Regional.Em um caso ou outro, a História Social não apresenta mais objetosespecíficos dentro da História: seu interesse é a sociedade comoum todo (esteja ela estudando um país, uma grande região como oMediterrâneo, uma cidade ou uma aldeia).

Mas a verdade é que a designação anterior continuouexistindo paralelamente, de modo que a História Social assumiu

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processos – e não apenas como descrições de estruturas perfeitascomo se fossem relógios, mas abstraídas de realidade humana.

Afirma-se também, mais do que nunca, uma História Socialque estabelece interfaces com os outros campos da própria história,ou também com outros circuitos interdisciplinares. Se voltarmosao Quadro atrás exposto, que pretende ser apenas um esboço depossibilidades, e não mais que isto, veremos ali que os vários objetospossíveis a uma História Social (definida como sub-especialidadeque traz as suas próprias idiossincrasias) localizam-se habitualmentena fronteira com outros campos.

Posso trabalhar um grupo étnico segregado em uma dadarealidade urbana do ponto de vista de uma História Social ou doponto de vista de uma Etno-História. Ou posso trabalhá-lo do pontode vista de uma interconexão de História Social e Etno-História.Os movimentos sociais, por exemplo, dificilmente podem sertrabalhados fora de uma conexão entre o Social e o Político (eque, possivelmente, incluirá ainda o Econômico). Já um processocomo o da ‘industrialização’ pode receber um enfoque social, ouum enfoque mais propriamente econômico (ou o duplo enfoque,que é sempre uma boa alternativa). De igual modo, a célula familiarpode ser examinada por um viés social ou por um viés de antropolo-gia histórica. O Cotidiano de certa comunidade ou grupo socialpode ser avaliado do ponto de vista de uma História da CulturaMaterial, pronta a recuperar os seus bens materiais e os seus usos(sociais), ou pode ser avaliado mais propriamente de uma perspec-tiva da História Social, manifestando-se a preocupação em recupe-rar as formas de sociabilidade, os conflitos entre os indivíduospertencentes aos vários grupos sociais, os entrechoques ideológicos,e toda uma rede de aspectos que constitui inegavelmente umterritório mais definido da sub-especialidade História Social.

5. As fontes e abordagens relacionadas à História Social

Com relação às conexões da História Social com as‘abordagens’ – isto é, com os sub-campos da historiografia que sereferem a métodos e fazeres históricos – elas podem se estabelecer

é possível também elaborar uma História das Idéias ou umaHistória da Arte que se restrinjam a discutir obras do pensamentoou da criação artística sem reestruturá-las dentro do seu ambientesocial mais amplo. Basta percorrer os olhos por uma prateleiralivresca de História da Arte ou de História da Literatura paraencontrarmos pilhas destas obras em que são descritos os estilosartísticos, ou até mesmo que oferecem uma sucessão cronológicade descrições das vidas dos principais artistas e literatos, de modoque estas histórias da arte e histórias da literatura acabam setornando um somatório de pequenas biografias de artistasimportantes mais ou menos encadeadas segundo critérioscronológicos ou agrupadas conforme os seus pertencimentosestilísticos. Por isto, encontra-se quem fale em uma História daCultura, preocupada em descrever produções culturais de váriostipos, mas contrastando-a com a História Cultural propriamentedita, que tem incorporado tradicionalmente uma preocupação socialmuito definida (neste caso, uma História Social da Cultura) 7 .

Com base em alguns exemplos conhecidos de obrasproduzidas com pretensas preocupações historiográficas (mascertamente alicerçadas em uma outra noção de historiografia),pode ser questionada aquela idéia de que “toda história é social”.É social, poderemos corrigir, se o historiador tiver efetivamentepreocupações sociais na sua maneira de examinar o passado.

Com relação aos já mencionados objetos da História Social(seja enquanto especialidade particular, seja no sentido totalizador),convém lembrar que tem se apresentado nas últimas décadas umatendência cada vez maior para o exame da sociedade em toda asua complexidade, superando o manejo de categorias sociaisestereotipadas e de dicotomias generalizadoras.

Nunca é demais nos referimos às conhecidas preocupaçõesde Edward Thompson – historiador inglês que trabalha nainterconexão de uma História Social com uma História Cultural – emdenunciar aquelas abstrações desencarnadas relacionadas aoconceito de “classe social” (Thompson, 1987). Thompson é umdos autores que melhor representam esta tendência da História Socialque gradualmente se afirma em direção à complexidade e aotratamento das sociedades como realidades dinâmicas e vivas – como

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registrar rigorosamente os dados de sua vida cotidiana com o fitode perceber qualquer indício de comportamento anormal oumentalidade herética.

É bastante irônico. Os indivíduos pertencentes às classessociais privilegiadas dão-se a conhecer através dos maisdiversificados tipos de fontes à disposição dos historiadores – nadocumentação política, falam através dos deputados e governantesque os representam; nas notícias de jornais, pode-se até mesmopercebê-los em flashes de sua vida privada nas colunas sociais;na arte letrada, iremos encontrá-los como sujeitos produtores dediscurso ou como referentes dos discursos aí produzidos. Já aopobre, e mais ainda ao excluído, só é dada uma voz quando elecomete um crime (ou quando é acusado de um). Os registrosrepressivos são paradoxalmente os espaços documentais mais“democráticos” – aqueles onde os historiadores poderão encontrarliteralmente as vozes de todas as classes, mas sobretudo as dosindivíduos pertencentes aos grupos sociais menos privilegiados doponto de vista político e econômico. É só quando comete um crimeque o homem pobre adquire uma identidade para a História!

Existem também, é certo, fontes oriundas da cultura popular.Mas este tipo de fonte é mais propriamente relacionado com aHistória Cultural, como já vimos anteriormente. Também não deveser desprezada a grande literatura. A leitura atenta da ComédiaHumana de Balzac não é irrelevante para a compreensão datransição para o Capitalismo moderno, e a mesma recomendaçãode atentar para a importância da literatura como fonte para esteperíodo pode ser feita em relação às obras de Victor Hugo. Apartir do momento em que a perspectiva realista abriu-se comouma possibilidade para os produtores de obras associadas à culturaletrada (literatura, mas também artes visuais), o homem comumtambém começou a chegar aos historiadores através destas fontes,embora elas sempre requeiram o cuidado de serem trabalhadas coma consciência de que, nestes casos, o homem pertencente aosextratos sociais menos privilegiados só recebe a sua voz ou a suatransparência através de um filtro, que é a sensibilidade do escritorou do pintor pertencente a outro grupo social (fora, é claro, quandoo próprio artista é oriundo do grupo social que pretende retratar).

tanto no nível dos tratamentos qualitativos, como no nível dostratamentos quantitativos. Da mesma forma, a História Social podeser elaborada tanto do ponto de vista de uma Macro-História, queexamina de um lugar mais distanciado aspectos como osmovimentos sociais ou como a estratificação social de umadeterminada realidade humana, como pode ser elaborada do pontode vista de uma Micro-História, que se aproxima para enxergarde perto o cotidiano, as trajetórias individuais, as práticas que sósão percebidas quando é examinado um determinado tipo dedocumentação em detalhe (por exemplo os inquéritos policiais, osdocumentos da Inquisição, mas também determinadas produçõesculturais do âmbito popular onde transpareçam elementos da vidacotidiana, das relações familiares, e assim por diante). As diferençasentre Macro-História e Micro-História ficarão mais claras no itemrelativo a este último tipo de abordagem.

Não há limitações com relação ao que pode ser tomadocomo ‘fonte’ para a História Social. É possível encontrá-las tantona documentação de origem privada como na documentação oficial,por assim dizer. O que estamos chamando de documentaçãoprivada são aquelas fontes produzidas ao nível das vidas individuais:os relatos de viagem, os diários pessoais, correspondências entreparticulares (sejam indivíduos ilustres, ou não). Documentaçãooficial ou pública existe de todos os tipos: desde aquelas queoferecem dados massivos sobre uma sociedade – como osinventários e registros fiscais, censitários, testamentários, cartoriais,e paroquiais – até aquelas mais pontuais, referentes a situaçõesespecíficas. Por exemplo, um material muito rico do tipo queestamos caracterizando como pontual encontra-se nos arquivosjudiciais e policiais (ou seja, na documentação oriunda dos sistemasrepressivos). Os historiadores sociais da atualidade têmprecisamente prestado muita atenção a um vasto manancial defontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de polícia,os processos criminais – incluindo os depoimentos, as confissõese as sentenças proferidas sobre determinado caso – ou ainda,para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos daSanta Inquisição, que costumavam rastrear obsessivamente a vidados indivíduos investigados, anotar a sua fala nos mínimos detalhes,

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ocupam uma fazenda, ou quando em protesto eles adentram umespaço que para eles não estaria previsto – como um shoppingcenter – neste momento eles se transformam em atores sociaismais definidos e ganham espaço nas notícias de jornal e outrasmídias. Quando a massa excitada derruba uma bastilha, entrasubitamente na História não como uma estatística, mas como sujeitocoletivo que realiza um ato, que produz ou se incorpora a ummovimento social. Os camponeses medievais, de modo similar,chegam aos historiadores como um número incorporado à terraatravés dos contratos celebrados entre um suserano e um vassalo,ou através de um testamento que os passa adiante para os herdeirosde um feudo. Mas quando produzirem uma Jacquerie serãoregistrados pela primeira vez por algo que fizeram, e não por algoque fizeram a eles.

São os grandes momentos de protesto ou de violência coletivaque tornam visíveis as massas, e os pequenos momentos de crimesindividuais que dão visibilidade ao homem comum. Por isto ohistoriador acaba chegando às massas e aos indivíduos menosfavorecidos através da violência. São as fontes que expressam osvários tipos de violência (ou que registram a repressão a estaviolência) aquelas que permitirão a este historiador examinar asrelações de classe, as suas expectativas, o seu cotidiano. É aliáscurioso observar que, quando o criminoso escapa à repressão, eleperde-se para a História.

Na verdade, as fontes de natureza repressiva – como osprocessos criminais ou os registros inquisitoriais – constituemregistros múltiplos, polifônicos por excelência. A própria diversidadesocial pode estar presente em um processo judicial ou inquiridor –afinal, o modo como devem ser organizados os processos,entrecruzando indivíduos dos mais diversos tipos, acaba conferindoa este tipo de fontes uma posição muito rica no repertório dedocumentos à disposição de um historiador social. São fontes quehabitualmente envolvem um foco representando o sistemarepressivo (não raro expressando contradições internas que podemaparecer sob a forma de conflitos de autoridade) e um universomultifocal que passa por um vasto número de depoentes e detestemunhas, até chegar ao criminoso ou ao inquirido.

Voltemos às fontes de História Social que chegam aoshistoriadores através da violência. Além da violência individual,que aparece através do crime, existe ainda a violência coletiva,onde a massa anônima deixa suas marcas e conquista também asua voz através de explosões de revolta que podem ficar registradasnas notícias de jornais, ou então nas descrições dos cronistas paraos períodos mais antigos. As revoluções e os processos detransformação social, conforme já observou Thompson muito bem,são momentos privilegiados para a percepção das identidades declasse, inclusive as relativas aos grupos sociais menos privilegiados.São nestes momentos que as massas tornam-se visíveis, exprimindo-se através dos gestos do “protesto” (sejam protestos espontâneos,sejam os movimentos organizados, como as greves) ou da violênciacoletiva, que podem produzir desde badernas e motins atérevoluções com repercussões sociais definitivas. São tambémnestes momentos que, eventualmente, emergem as liderançaspopulares – por vezes deixando suas vozes registradas em panfletose em discursos que foram recolhidos pela imprensa ou peloscronistas de uma época.

No dia a dia, as massas populares são informes: executamcomo que emudecidas as tarefas que lhes permitirão assegurar asua sobrevivência diária. A História conhece os camponeses dofinal da Idade Média, os operários urbanos das sociedadesindustriais, os escravos do Brasil Colonial ... sempre através dosregistros massivos, que anotarão as datas de seus nascimentos, onúmero de filhos, a morte, a ocupação, e as modalidades depertencimento (a um senhorio na Idade Média ou a uma indústriano mundo capitalista). Nestes momentos, as massas falam àHistória através de números que registram a sua laboriosa e sofridapassividade. Mas quando ocorre um motim, uma insurreição, umprotesto público, pela primeira vez a massa de despossuídos seráouvida não através da passividade dos números silenciosos, e simatravés dos gestos violentos e ruidosos.

Os sem-terra8, por exemplo, são habitualmente encontradospelos historiadores que examinam a História contemporânea doBrasil nos documentos do censo, que os registram comocamponeses despossuídos e desempregados. Mas quando eles

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5 BARROS, José D’Assunção O Campo da História – Especialidadese Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2005.6 Por exemplo, a ideologia das Três Ordens atravessava as sociedadesmedievais, e no mundo que era organizado por ela os três grupostípicos (camponeses, guerreiros e clérigos) encontravam cada qualo seu papel social. Da mesma forma, o sistema de exclusões doNazismo incidia transversalmente sobre a sociedade alemã dasdécadas de 1930 e 1940, colocando de um lado os cidadãos e deoutro os excluídos (judeus, eslavos, estrangeiros, etc...).7 Robert DARNTON distingue uma “história das idéias” voltada parao estudo do pensamento sistemático, geralmente em tratadosfilosóficos; uma “história intelectual” que se ocuparia do estudo dopensamento informal, dos climas de opinião e dos movimentosliterários; uma “história social das idéias”, que se voltaria para oestudo das ideologias e da difusão das idéias; e uma “história cultural”que se ocuparia do estudo da cultura no sentido antropológico(DARNTON, Robert. “História Intelectual e Cultural” In O Beijo deLamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.175-197).8 Movimento social de homens do campo não-proprietários de terraque fortaleceu-se no Brasil na última década, clamando por reformassociais direcionadas para a Reforma Agrária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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É mais raro que a História Social, pelo menos no que serefere a períodos mais recuados, vá encontrar fontes relativas aosgrupos menos favorecidos na ‘documentação privada’ (diários,livros de memória, relatos de viagem, correspondência) porqueestes tipos de textos nem sempre são conservados depois que osseus autores desaparecem. Mas, na medida em que avança paraclasses mais favorecidas, o historiador já começa a dispor destetipo de documentação.

As fontes da História Social, enfim, são de inúmerasmodalidades. Sua escolha, naturalmente, será orientada peloproblema histórico a ser definido e investigado pelo historiador.

Conforme vimos – seja no que se refere a seus campos deinteresse e objetos privilegiados, seja no que se refere a seusmétodos mais recorrentes e fontes historiográficas disponíveis – aHistória Social mostra-se ao historiador contemporâneo como umcampo aberto a inúmeras possibilidades. Um de seus traçoscentrais, certamente, continuará para o futuro a referir-se aointenso diálogo com todas as Ciências Sociais, o que tem permitidoprecisamente essa maior amplitude de objetos e o tratamento deuma maior variedade de tipos de fontes a partir de metodologiasque a História pôde apreender de diversificados campos do sabercomo a Sociologia, a Antropologia, a Lingüística, a Semiótica.

NOTAS

1 O presente artigo apresenta como principal referência o livro OCampo da História (BARROS: 2004)..2 Serge GRUZINSKI, “Acontecimento, bifurcação, acidente e acaso... observações sobre a história a partir das periferias do Ocidente”In E. MORIN (org.) A Religação dos Saberes. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2001. p.391.3 Witold KULA, Economic Theory of the Feudal System, apud PeterBURKE, A Escola dos Annales 1929-1989, São Paulo: UNESP,1991, p.110-111. [Edição polonesa original da obra de Kula: 1962].4 Karl MARX, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” In Os Pensadores,vol. XXXV, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 329-410 [originalalemão: 1852].

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C O N F E R Ê N C I A S

FRANCO, Maria Sílvia de Carvalho. Homens Livres na OrdemEscravocrata. São Paulo: Ática, 1974.DARTON, Robert. “História Intelectual e Cultural” In O Beijo deLamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.175-197.DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo.Lisboa: Edições 70, 1971._____________. “Les sociétés médievales. Une approched’ensemble” In Annales, E.S.C., janeiro-fevereiro de 1971. p.1-13.FEBVRE, Lucien. Combates pela História. São Paulo: Ed. UNESP,1992.GRUZINSKI, Serge. “Acontecimento, bifurcação, acidente e acaso... observações sobre a história a partir das periferias do Ocidente”In MORIN, E. (org.) A Religação dos Saberes. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2001..HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.MARX, Karl. “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” In Os Pensadores,vol. XXXV. São Paulo: Abril Cultural, 1974.MORIN, E. (org.) A Religação dos Saberes. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2001.THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1987, 3 vol._______________. “History from Below”, The Times LiterarySupplement, 7 de abril de 1966, p.278-280 [As peculiaridades dosingleses e outros artigos. São Paulo: UNICAMP, 2001. p.185-201].

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CONSTRUINDO POLÍTICAS PÚBLICAS: CULTURA EPATRIMONIO CULTURAL**

DÉA RIBEIRO FENELON*

Resumo

O tema central do texto é sobre as atuações doEstado e da sociedade na construção das políticaspúblicas de cultura.

Palavras chaves: Cultura, Políticas Públicas e Estado

Abstract

The central subject of the text is on theperformances of the State and the society in theconstruction of the public politics of culture.

Key Words: Culture, Politics and State

*Dea Fenelon é Doutora em História pela Universidade Federal deMinas Gerais. Professora do programa de pós-graduação da Unicampe PUC/São Paulo e ex-diretora do Departamento de PatrimônioHistórico do Município de São Paulo, na gestão Luíza Erundina(1988-1992). Entre livros publicados, contam-se Cidades - ColeçãoPesquisa em História. (São Paulo: Olho D Água, 1999) e 50 Textosde Historia do Brasil (Sao Paulo: Hucitec, 1979).

**Conferencia Municipal de Cultura promovida pela Fundação deCultura, Esporte e Turismo (Funcet), realizada em Fortaleza/CE em14 e 15 de outubro de 2005.

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Comecemos por identificar e discutir concepções de culturacom as quais se trabalha esclarecendo as nossas para podermosestabelecer uma linguagem e um conteúdo comuns, em nossastentativas de construir políticas públicas nesta área.Considero muitoimportante esta discussão para que não avancemos sem onecessário esclarecimento sobre o significado que atribuímos ecom o qual trabalhamos quando falamos de cultura, políticasculturais, memória, patrimônio.

Podemos iniciar reconhecendo que há algum tempo oscientistas sociais, dirigentes governamentais ou aqueles queparticipam da vida cultural têm se apropriado do conceito oucategoria “cultura” das mais diversas formas, resultando emdiferentes abordagens, conforme as definições com que se trabalha.Isto nos remete à necessidade de estar mais atento às diferentesfalas ou posições, pois sempre se está expressando um ponto devista. Quero destacar primeiro, que há inúmeras maneiras de seconceber o termo e em segundo lugar que se está pensando esteconhecimento como socialmente produzido, isto é, que ele exprimeas posições sociais ou representa o lugar social de onde fala oautor e por isto torna-se necessário atentar para as diversas formasde compreendê-lo. É bem verdade que isto pode ocorrer com outrastentativas de abordagem do social, como acontece, por exemplo,com os termos sociedade ou economia. Em se tratando da categoria“cultura” podemos mesmo chegar a falar de usos e abusos tal avariedade de utilizações empregadas e as disputas por tentarestabelecer como únicos pontos de vista polêmicos e discutíveis.Seria o que se entende e se fala tanto em construir a hegemonia.

Comecemos, pois, por afirmar que hoje não se admite maisdefinições de cultura que se apresentem como “verdades”estabelecidas ou pensá-la como categoria cristalizada, estática emodelar. Devemos pensá-la sempre como elemento constitutivodo social e por isto mesmo em constante movimento, emtransformação acompanhando os movimentos e as mudanças daHistória ou da sociedade em que ela está inserida. Daí não sefalar mais em cultura no singular, significando apenas um estado,um dado ou um fato, mas devermos considerá-la sempre comoculturas no plural, pois hoje já se admite a diversidade, a pluralidade,

Em primeiro lugar quero agradecer ao convite dos dirigentes,profissionais e delegados que aqui se encontram, para participardesta Conferência Municipal de Cultura discutindo e elaborandosobre tema que tanto me interessa. Sobre ele tive oportunidade detrabalhar por algum tempo, não apenas na dimensão acadêmica,mas como gestora de políticas públicas.Na verdade como muitossabem participei, durante os anos de l989/1992 do GovernoDemocrático Popular de Luiza Erundina, como prefeita da cidadede São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores. Trabalhei naSecretaria Municipal de Cultura, que teve como titular a ProfessoraMarilena Chauí. Neste período dirigi o Departamento De PatrimônioHistórico (DPH), de SMC e nesta condição presidi o CONPRESP -Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de SãoPaulo.Desde então não me afastei mais das preocupações com acultura e as políticas públicas sobre ela, mesmo que nãoparticipando diretamente de qualquer ação governamental.

Digo isto com bastante satisfação é certo, mas muito maispara assinalar que se a minha fala é a de historiadora, não se tratade uma fala profissional, apenas acadêmica, como, aliás, tambémnão é a de muitos que participam desta programação e têmexperiências diversas em órgãos governamentais e no trabalhocultural. Minhas reflexões, quero repetir, são de alguém queparticipou durante algum tempo, de elaboração de políticas publicasna área da cultura e teve que lidar especificamente com as questõesde Patrimônio Cultural e Histórico em uma cidade como São Paulo.Posso lhes garantir que esta experiência me foi muito valiosa emtodas as dimensões nela envolvidas,principalmente pelaoportunidade de enfrentar o desafio que sempre representou paramim a prática do trabalho profissional, como historiadora, que narealidade social se engaja politicamente como cidadã e tenta mantersempre presente o compromisso com o seu tempo social.

Estarei, então, todo o tempo, falando de questões de História,de Cultura e de Memória, que em sua historicidade sempre estiveramintimamente relacionadas não apenas ao ensino e à Pesquisa emHistória, mas às questões da política cultural no tocante ao PatrimônioCultural da Cidade e que acabam ganhando outras dimensões,quando pensadas em situações do exercício das políticas culturais.

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aceitar a idéia de aprendizagem, como característica humana, istoé, a capacidade de se tornar civilizado e dai abrindo-se espaçopara considerar a linguagem, a reflexão e a comunicação comopartes deste processo. Havia também lugar para se falar em culturamaterial compreendida como corpo de artefatos produzidos pelohomem em suas relações com a natureza, ou seja, aquilo que o homemconstruiu ou transformou da natureza. Mas ainda assim como umprocesso externo à experiência histórica de assimilar a cultura.

Na segunda metade do século XIX predominava a idéiade cultura como um processo íntimo que dizia respeito aosindivíduos e se relacionava às artes, à religião, à família, à vidapessoal. Sociedade e civilização apareciam como dimensõesseparadas. A partir desta separação começaram a surgir váriastentativas de classificação geral da cultura em artes, religiões,práticas e instituições com diferentes significados e valores. Amaneira de identificá-los era sempre a descrição e as diversastipologias criadas para ordenar e sistematizar a compreensãoe a classificação das culturas, surgindo daí várias teoriasantropológicas sobre a cultura.

Com esta compreensão de cultura foi possível o seu usocomo testemunho histórico capaz de estabelecer as diferençasentre o “nós” e o “eles”. Para estabelecer as distinções de umacultura para outra se estabeleceram procedimentos dereconhecimento das diferenças, pela comparação, sendo necessáriopara isto os chamados inventários culturais, ou seja, a listagemdas obras, dos traços, das crenças, dos mitos que acabavam porconsiderar tais elementos como estáticos, decompondo-se grupose tribos pelos traços identificados e fazendo parecer que tais gruposganhavam existência própria e em si mesma. Na maioria das vezesao tentar explicações para semelhanças dos traços encontradosenveredou-se pela idéia simplificada das migrações ou do tráficocomercial no que se conceituou como difusionismo cultural.

Por outra vertente também se usou o conceito de culturacomo elemento de integração social, como manifestação dacapacidade de organizar um sistema de costumes, hábitos e valores,desprezando-se a necessidade da reconstituição histórica etrabalhando apenas com suas funções específicas.

a heterogeneidade, ou a multiplicidade cultural como característicasdo social, isto é, culturas como sendo atividades, realizações doshomens em suas relações com a natureza, sempre reconhecidasnestas diferenças e complexidades.

Originalmente cultura, como termo, designava o crescimentoe o cuidado de colheitas ou animais, ou também o crescimento e ocuidado das faculdades humanas. Até o século XVIII cultura aindadesignava processos objetivos: a cultura de alguma coisa, plantas,animais, mentes. Por isto mesmo devemos nos lembrar de que astransformações dos chamados tempos modernos foram tambémmoldando novas necessidades de compreensão da realidade e daíque sociedade, economia, política, cultura passaram a estarintimamente relacionadas a um novo conceito, o de civilizaçãoque, significando ordem, cortesia, preparo e educação secontrapunha à barbárie e designava um estado realizado, quepressupunha desenvolvimento, processo histórico e, sobretudoprogresso. Esta conceituação ou esta maneira de tratar cultura ecivilização como sinônimos, muito própria dos começos daantropologia, a disciplina que mais se preocupava com estasquestões, considerava a cultura como um conjunto complexo queincluía o saber, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume etodos os demais hábitos adquiridos pelo homem enquanto vivendoem sociedade, o que de qualquer maneira representava umadiferença essencial no modo de compreender e analisar o social.

Apesar das dificuldades criadas com a identificação estreitade civilização e cultura como resultado de processos aprendidosatravés de educação, preparo, estudo ou processo dedesenvolvimento e de progresso, significou um avanço na medidaem que se separava a cultura de simples pressupostos religiosos emetafísicos, para reforçar a idéia de que os homens podiamconduzir sua própria história. Dessa forma, apontava a necessidadede incorporar diferentes experiências a serem examinadas, aindaque houvesse aí uma grande carga de elitismo quando se tentavaqualificar estas experiências, hierarquizando o que significavaavanço e atraso nestas experiências adquiridas e vivenciadas.

Considerando a cultura como atributo ou processo íntimo,interiorizado como resultado da educação, passa a ser então possível

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Inegável, então, que somente a partir de meados do séculoXX, expande-se o conceito de cultura, não sem contestações edebates. No geral passa a ser entendida como produção dalinguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, das formasde lazer, da música, da dança, dos sistemas e relações sociais e depoder. Nesse caso, a cultura passa a ser também o campo no quala sociedade inteira participa elaborando seus símbolos e signos,suas práticas e seus valores, o que ainda constitui debate importanteentre os antropólogos, levantando questões conceituais nateorização sobre cultura.

Mesmo assim, trabalhando tão próximo da antropologia,aceitando a ampliação do conceito, os historiadores passaram, deuma certa maneira a lidar com o suposto de que os aspectosculturais podiam ser reunidos em duas modalidades: as práticas eas representações culturais. Pensar as práticas como a culturaobjetivada, enquanto conjunto de obras, realizações, instituições –inclusive usos e costumes – e as representações culturais comoresultado de alguma ação (seja mental, espiritual ou ideológica)sobre o grupo humano até mesmo no aspecto coletivo, permitiadescrições, narrações e levantamentos.

Era então necessário junto com a idéia de não exclusividadedo antropólogo ou do historiador admitir também que a cultura nãoestá localizada fora da sociedade como um todo, como um campodas sete artes ou da abstração.

Considerando, pois a cultura como “modos de vida global”,que na concepção de THOMPSON, representa sempre uma lutade classe, porque pessoas experimentam suas vivências, situaçõese relações produtivas como necessidades e interesses, mas tambémcomo antagonismos, tratam esta experiência em sua consciênciae sua cultura das mais complexas maneiras. Os seres humanosestão constantemente engajados em refletir sobre sua própriaexperiência, bem como a dos outros e assim cresce sua compreensãoda vida social, sua cultura enfim ainda que não apenas dela.

Podemos então compreender e falar de cultura como amaneira dos homens desenvolverem suas práticas sociais refletindoseus modos de viver, de trabalhar, de morar, de morrer, de se divertir,isto é, a cultura significando todas as dimensões da vida, valores,

Ao reconhecer no estudo da cultura traços como dadosobjetivos, foram propostos mapas e guias etnográficos suficientespara catalogar e classificar a população mundial, procedimentosque, já no século XX, ganharam força com o uso crescente doscomputadores e de novas tecnologias no trato de informação.

Para a teoria marxista, por exemplo, ao considerar“civilização” como uma forma histórica específica – a sociedadeburguesa criada pelo capitalismo – logo se estabeleceu uma críticasevera, apontando-se a contradição entre a produção da riqueza,da ordem e do refinamento, e a pobreza, a desordem e a degradaçãocomo partes de um mesmo processo. O resultado disso foi seacentuar o caráter de artificialidade em contraste a uma ordemnatural. Combatendo a historiografia idealista contida nasinterpretações de civilização e cultura, o marxismo, para recuperara relação entre sociedade e natureza trouxe à tona a históriamaterial do trabalho, da indústria, dos homens, sem considerarsuas obras como relação exterior. Contudo, este tipo de análisecriou novos impasses na medida em que procurou atender aoracionalismo das chamadas leis científicas do conhecimento. Aoinsistir nesta ênfase, reduziu o campo das idéias, crenças e valorescomo determinadas pelas condições objetivas, ou seja, à vidamaterial básica, colocando a cultura como parte de uma supostasuperestrutura, o que acabou por reproduzir a antiga fórmula decultura e vida social material como dimensões separadas.

A partir de reformulações e de novas discussões sobre oque o historiador inglês THOMPSON considerou comoexperiência, “termo ausente” em todo este debate, inúmeroshistoriadores começaram a produzir diferentes versões e trabalhosutilizando a categoria cultura. Apresentada como capaz depossibilitar a investigação de um modo de vida global o conceitode cultura passou a ser compreendido como elemento não externoà ordem social, mas ao contrário, como elemento importante nasua constituição. Dessa forma, as práticas culturais podem serinvestigadas como “sistemas de significações” de maneiraampla, de modo a permitir a inclusão de todas as práticas eassim definir-se como um processo social constitutivo que criadiferentes e específicos modos de vida.

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ditadura militar) esteve sempre a tentar produzir a identidade nacional,seja o verdeamarelismo, o Brasil Grande, o carnaval ou o futebol.

Já a tradição populista (anos 50 e inicio dos 60) se vê com amissão pedagógica de educar as massas populares. Por isto precisase apropriar da cultura popular para transformá-la e devolvê-laverdadeira e ascética ao “povo”, de forma a que todas asreconheçam nestes conteúdos ainda que transformados.

A tradição neoliberal que começa a criar raízes na décadade 80, tende a minimizar o papel do Estado no plano da cultura,sugerindo a fórmula mágica da parceria com a iniciativa privada,que na verdade acaba por se concretizar na compra de serviçosculturais oferecidos por empresas que concebem e administram acultura a partir de critérios do mercado. Caracteriza-se pelaprodução de “eventos” seguindo a moda e o já consagrado. Dealgum modo, no que tange às nossas preocupações com oPatrimônio Cultural enfatizou apenas o encargo estatal com oPatrimônio edificado, ainda ai buscando a parceria privada,sobretudo no que significa de revitalização como potencial a serexplorado pelo turismo (ex. o Pelourinho e o bairro Recife).Inventando e reinventando as chamadas Leis de Incentivo Culturalterminaram por burocratizar o apoio à cultura. Resta chamar aatenção sobre os efeitos da globalização sobre as concepções depolítica cultural, sobre as concepções neoliberais globalizadas esobre as quais falarei mais adiante.

Acompanhemos, inicialmente um pouco desta relaçãoPatrimônio Histórico, Artístico e Cultural e Memória e Historia,na vida e nas ações de política cultural, do Brasil.

A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional - SPHAN, em 1937/1938, pelo esforço e ação deintelectuais modernistas, paulistas e mineiros dentre os quais Máriode Andrade correspondeu à intenção de “abrasileirar os brasileiros”- como afirmou o mestre modernista, fiel aos princípios de trabalharpara o que pretendia fosse a descoberta do Brasil valorizandotemas, objetos, sons, cores, construções brasileiras.

Ainda que teoricamente os modernistas não cansassem dechamar a atenção de todos para o “interior”, realizando expedições,viagens e excursões destinadas a registrar a cultura do povo - e

sentimentos, emoções, hábitos, costumes, além da promoção e odesenvolvimento de instituições e iniciativas do cotidiano com todasas formas de expressão e organização e de luta no social.

Falar de cultura dessa forma significa ultrapassar a maneirade pensá-la como instância em separado, ou a superestrutura, ouum nível distinto do social. Devemos pensá-la como categoria emconstrução, que nos ajuda a problematizar o real e que só temsentido se for pensada como referência para a atuação, em aberto,sem modelos ou definições feitas a priori.

No Brasil a política cultural do Estado, como a de outrasáreas, tem sido conceituada como o conjunto de princípiosfilosóficos, políticos e doutrinários que orientam a ação dos órgãosgovernamentais, marcando sua intervenção nas mais diversasmanifestações sociais a partir destes critérios. Cheia de discursossofisticados ou simplistas, manifestos vanguardistas, declaraçõesde princípios nem sempre muito claras, ou às vezes de coerênciaduvidosa, como o plano de governo em que estão envolvidas, estaspolíticas caracterizam-se muito mais pela empiria, do quepropriamente por uma linha ou um plano de ação. Digo isto, nãoapenas pelo conteúdo que expressam, mas muito mais pelaspropostas que revelam e as prioridades orçamentárias queconseguem nos referidos governos. De qualquer maneira sempreconsiderada como área de menor importância, nas disputas porverbas oficiais, ou pela atenção de Executivos e Legislativos, aCultura, enquanto organismo de governo tem história bastanteirregular e descontinua ao longo dos anos deste século XX e XXI.

Dentro destes marcos e seguindo Marilena Chauí, (CHAUI,1990) pode-se identificar três tradições principais ao longo dosúltimos anos, que conforme as diferentes conjunturas políticas eeleitorais predominaram como linha dos organismos governamentaisenvolvidos com a Cultura. A primeira, a da cultura oficial produzidapelo Estado, coloca o poder público na qualidade de sujeito culturale que, portanto, pode e deve se considerar produtor da cultura, eque por isto mesmo será sempre capaz de determinar para asociedade as formas e conteúdos culturais dos dominantes, parareforçar sua tentativa de legitimação sobre a sociedade como umtodo através da cultura. De tradição autoritária (Estado Novo e

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proclamada autonomia que seus dirigentes sempre buscaramresguardar. Apesar de sempre se pretender técnica e neutra em sueatuação, a política de preservação deste órgão constitui talvez o exemplomais fecundo da intervenção governamental na área da cultura,empenhada em construir uma memória e uma identidade nacionais.

Significativamente, a predominância do patrimônio edificadoé avassaladora: igrejas, capelas, quartéis, fortes, cadeias, palácios,casas da câmara, imponentes casarões, logo surgiram nas listagense foram paciente e valorosamente restaurados e postos à visitaçãopública como símbolos do passado da Nação. Estavam assimconsagrados e definidos os elementos simbólicos dignos depreservação e de integrarem este patrimônio - as sedes do poderpolítico, religioso, militar, os casarões da classe dominante comseus feitos e modos de vida. A serviço do poder, a cultura se submetee consagra-se a “função anestésica” da noção tradicional depatrimônio histórico e cultural de tudo que ela procura preservar.

Por muito tempo venceu a perspectiva de consagrar comoobras da arte e da cultura os símbolos do poder constituído.Desprovida assim de memória coletiva que lhe permitisse aconsciência histórica - pelo efeito desagregador da impossibilidadede acumular sues realizações como cultura - a maioria da populaçãocontinuou sem se reconhecer nestes símbolos. Com isso, foiexpropriada também de sua memória e de sua história.

Além desse caráter ideológico, é importante destacar que aorientação dada pelos órgãos oficiais como o SPHAN e outros queforam criados nos Estados e municípios, fez desenvolver uma políticade preservação que valorizava aspectos formais de caracterizaçãodas obras de arte “puras”, ou os espécimes representativos de estilosarquitetônicos, acentuando o lado técnico dessa identificação e o caráterde coleção dos bens registrados enquanto patrimônio - registro quasesempre desprovido das relações sociais que os tornaram possíveis.Tal orientação terminou por corporificar uma concepção e umaforma de praticar a preservação como uma única possível, semprecom o caráter institucional e oficial como elemento definidor. Eprecisamente este caráter institucional da experiência brasileirano que diz respeito ao patrimônio cultural que julgamos importantescolocar em discussão.

buscando sempre acentuar o valor criativo da culturaautenticamente “nacional” - no trabalho prático, pouco se conseguiuincorporar ou mesmo reconhecer da experiência social, dos valorese do conhecimento dos diversos segmentos da população. Certoque descobriram e valorizaram o barroco brasileiro, muitas tradiçõese festas religiosas e profanas do gosto popular, não havendo dúvidasquanto ao Registro que conseguiram de uma grande coleção demúsicas, que só recentemente têm sido equacionadas etrabalhadas, arrancando-as da simples condição de folclore e detodos os problemas inerentes a este tratamento.

Apesar das tentativas havidas, desde mesmo a Constituintede 1891, para se definir e conceituar o “patrimônio histórico eartístico nacional” os critérios apresentados como justificativaspara o “significado histórico” não deixavam de ser a peculiar e notávelbeleza, a singularidade da obra de arte e o trabalho do artista.

Nascida nos meandros e contradições do autoritarismo doEstado Novo, esta concepção de patrimônio histórico, mescladade rebeldia modernista, acabou por cristalizar os elementos donacionalismo autoritário com as intenções modernistas, na tentativae com o objetivo de recuperar o passado para alcançar umadefinição da identidade nacional. Em suas falas e em suasmemórias, os intelectuais que deram forma e conteúdo à políticade preservação do SPHAN, sempre se consideraram não apenascomo portadores de uma grande autonomia em relação ao Estado,mas também como vanguardas de cunho liberal, que propugnavama identificação, a defesa, a restauração e a conservação dosgrandes monumentos e obras de arte que dariam consistência àchamada cultura brasileira.

De maneira coerente com as concepções de culturaenunciadas, e certamente exprimindo mais uma vez a conciliaçãoe o arranjo em torno do poder, o trabalho de preservação ganhoufórum e status de conhecimento científico. Organizou-se umaestrutura administrativa compatível com as propostas, e unidadesorçamentárias foram criadas - ainda que sempre deficientes, poiso lugar da cultura era secundário e as verbas sempre escassas...

Enquadrado no aparelho burocrático, o SPHAN passou aser considerado uma espécie de “refrigério da cultura oficial” pela

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que estamos falando, no sentido de construir uma noção ampla doque entendemos e praticamos como Patrimônio Cultural, umaconcepção que possa abarcar práticas, fazeres e memóriasindividuais e coletivas e, ao mesmo tempo, voltamos a insistir,possibilitar que esta discussão não se restrinja apenas ao corpotécnico das várias instituições, mas se faça também através daparticipação de setores da sociedade diretamente envolvidos como tema e da população em geral.

Assim o princípio da cidadania cultural - diretriz básica deuma política cultural – deve se desdobrar em diversas práticasque possibilitem garantir, em todos os níveis, o direito à cultura atoda uma população diferenciada socialmente, diluindo as fronteirashierarquizadas das experiências culturais na sociedade. Esteprincípio leva necessariamente a concepção de que osequipamentos culturais constituem bens públicos e, enquanto tais,devem ser colocados a serviço da população. Envolve também ademocratização da produção cultural, seja do ponto de vista deguarnecer os trabalhadores da cidade em geral de instrumentoscapazes de possibilitar sua produção cultural autônoma, tantoquanto sua formação e informação culturais. Reconhecer que acidadania cultural envolve as questões pertinentes à preservaçãodo Patrimônio Cultural e acrescentando a ela a reivindicação aodireito à memória. Nesta direção a participação popular nasdiscussões sobre as atividades e as opões de política cultural sãotambém parte integrante da cidadania cultural. Considera-se queos cidadãos têm o direito de produzir, fruir e ser informado detodas as propostas e opções de políticas e como tal participar dasdecisões sobre a sua vida e não ser apenas espectador passivo deeventos organizados a sua revelia.

Pensando na velha tradição que caracteriza a área dopatrimônio histórico, por exemplo, esta diretriz se torna ainda maiscontundente. Neste campo, no Brasil os bens culturais foram sempretratados como despojos no cortejo triunfal dos vencedoresrelembrar (Benjamim). Expropriados, isolados edescontextualizados os bens materiais, suportes de memória demúltiplos sujeitos sociais, têm sido oferecidos aos cidadãos do Brasilcomo parte de um movimento que serve apenas para ostentar a

Quando nos propomos,então, o debate e a reflexão sobre arelação História, Patrimônio Cultura, Políticas de Preservação,Centros de Documentação, Centros Culturais,Casas de Cultura,queremos tratá-la não apenas no âmbito restrito das técnicas deintervenção ou dos critérios de identificação e preservação e seusconceitos operacionais. Para além desses aspectos, é preciso politizaro tema, reconhecendo as condições históricas em que se forjarammuitas das suas premissas - e articulando-as com as lutas pelaqualidade de vida, pela preservação do meio ambiente, e pelos direitosa pluralidade e, sobretudo pelo direito à cidadania cultural. Com issobusca-se retomar um sentido de patrimônio cultural que nos permitaentendê-lo como prática social e cultural de diversos e múltiplosagentes, para que como sujeitos sociais possam se reconhecer naHistória e nos bens culturais que queremos preservar.

Tratando de nosso tema o antropólogo Nestor G. Canclini,em artigo, já dizia:

“Se é verdade que o patrimônio serve para unificara nação, as desigualdades na sua formação eapropriação exigem que o estude, também, comoespaço de luta material e simbólica entre as classes,as etnias e os grupo.” (CANCLINI,1993,

No social, esta luta se concretiza entre diferentes sujeitoshistóricos, assumindo formas e resultando em diferentes memórias.Destaca-se então, de acordo com a fala de Marilena Chauí emseu discurso de posse como Secretária Municipal de Cultura daPrefeitura de São Paulo, em1989, a idéia de que “cultura é maisdo que as belas artes”. É memória, é política, é trabalho, é história,é técnica, é cozinha, é vestuário, é religião, etc. Ali onde os sereshumanos criam símbolos, valores, práticas, há cultura. Ali onde écriado o sentido do tempo, do visível e do invisível, do sagrado e doprofano, do prazer e do desejo, da beleza e da feiúra, da bondade e damaldade, da justiça e da injustiça, ali há cultura ( CHAUI, 1989)

Diante deste quadro, uma de nossas primeiras tarefasquando queremos discutir os conceitos de Patrimônio Cultural seráa de promover a crítica das concepções dominantes de patrimôniocultural unicamente associada ao Artístico, com as definições de

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de sujeitos sociais diversos, capazes de conhecer suas diferençase seus direitos e enfrentar a força criadora da multiplicidade. Trata-se de não mais espezinhar os mortos, mas deixar que a vida voltea animar sua presença na cena histórica. O direito a memóriaconstitui, para nós, uma dimensão fundamental do pleno exercícioda cidadania: destituídos de suas lembranças e de seu passado,nada restará aos homens e mulheres do presente excetocontemplar, mudos e perplexos, a passagem do cortejo.

Importante é reconhecer que grande parte do conteúdo eda discussão destes princípios foi finalmente incorporada àConstituição de 1988, que em seu artigo 216 afirma: “Constituempatrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material eimaterial, individualmente ou em conjunto, portadores de referênciaà identidade, à ação, à memória de diferentes grupos formadoresda sociedade brasileira, nos quais se incluem: I –as formas deexpressão;II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criaçõescientíficas, artísticas e tecnológicas;IV- as obras,objetos,documentos, edificações e demais espaços destinados àsmanifestações artístico-cultural; V – os conjuntos urbanos e sítiosde valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico ecientífico”. Em seus parágrafos reconhece-se a responsabilidadedo poder público em promover e proteger o patrimônio, a punição,na forma da lei, para quantos causarem danos aos bens tombadose concretiza o tombamento de todos os sítios e documentosdetentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Em Conferências e discussões da UNESCO, desde 1989,já se encontravam “Recomendações sobre a salvaguarda dacultura tradicional e popular”. O reconhecimento de outrasdimensões e conceitos de patrimônio cultural, no nível da Lei Maiore nos documentos de entidades internacionais ligadas a culturafez surgir uma grande quantidade de iniciativas institucionais ouoficiais de órgãos de Preservação de Patrimônio, legislação estaduale municipal sobre identificação e preservação dos bens tombados.Por outro lado a partir dos anos 90 também os Movimentos Sociais,as Universidades, e outros Centros Culturais iniciaram processosde preservação da Memória, criando e organizando Centros deMemória Popular e dos Movimentos Sociais 1

glória e o poder dos vitoriosos. A pompa do cortejo e seu pesadoarsenal simbó1ico, inscrito em monumentos e. documentos,produzem o esquecimento de significados originais, múltiplos ediversos: afirmam a unicidade da história e constroem o vínculo,tornado natural, entre saber e poder.

Museus, arquivos, edifícios monumentais, marcos físicos esímbólicos têm sido sempre tratados como templos. Lugaressilenciosos e imponentes de reverencia a um determinado saber.Lugares para aprender o quanto somos esclarecidos, civilizados ecultos espaços de reconhecimento e reafirmação de um certo passado,uma certa história e uma memória “certa”. Desqualificados, prostradosno chão, excluídos dos circuitos de produção da memória e doconhecimento sobre o passado, resta aos homens e mulheres quefizeram e fazem a História, a condição de espectadores passivos,aprendizes de uma memória que não lhes pertence.

É exatamente contra este tipo de noção e prática quequeremos orientar nossas reflexões sobre Patrimônio Cultural,chamando a atenção para o debate que antropólogos e historiadoresvêm realizando e conduzindo em práticas de preservação. Aocortejo triunfal dos vencedores contrapomos o conceito sobre odireito á memória. Há algum tempo que estes profissionais têminsistido em considerá-la, a memória e sua preservação, comoPatrimônio Cultural, em sua diversidade e multiplicidade. Comoqualquer experiência humana, a memória é também um campominado pelos conflitos sociais: um campo de luta política, deverdades que se batem, no qual esforços de ocultação eclarificação estão presentes na luta entre sujeitos históricos diversosque produzem diferentes versões, interpretações, valores e práticasculturais. Exatamente por isto, a memória histórica constitui umadas formas mais poderosas e sutis da dominação e da legitimaçãodo poder (ARANTES, 1984).

Por isto mesmo, a diferença e a multiplicidade precisamestar presentes no interior de uma política cultural que tenha comoeixo central à compreensão da memória como um direito. Os bensculturais - marcos físicos ou registros documentais do passado -não devem ser entendidos ou tratados como despojos quetestemunhem o longo triunfo de alguns. São patrimônios coletivos

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e ainda mais perceber que tratada nesta perspectiva se constituicomo um “recurso disponível”

Pode-se mesmo assinalar a maneira como, por exemplo, afranquia do Museu GUGGENHEIM, de Bilbao, foi utilizada para odesenvolvimento urbano de áreas degradadas. Nesta direçãomuitas são as iniciativas do mesmo gênero Porto Madero, emBuenos Aires, Píer 17, em Nova York e no Brasill, outros como oPelourinho, o Bairro Recife,etc. De outra maneira rituais, práticasestéticas do cotidiano, tais como canções, lendas populares, culinária,costumes e principalmente o artesanato são mobilizados como recursospara o turismo e para a promoção de indústrias que exploram oPatrimônio Cultural. Daí se dizer que a cultura se expandiu para outrasáreas como a econômica e a social, ao mesmo tempo em que asnoções convencionais de cultura se esvaziaram. (YUDICE, 2004)

Na trilha de Beatriz Sarlo, ao refletir sobre a relação dahistória com o passado a partir do presente, e endossando suasproposições, segundo as quais, é importante colocar as dissidênciasno centro do foco, o traço oposicionista frente aos discursosestabelecidos, aguçar a percepção das diferenças, entendendo-ascomo qualidades alternativas, as rupturas que podem indicarmudanças e permitir o aprofundamento das investigações e dostrabalhos, encontraremos nossas tarefas de cientistas sociaiscomprometidos com o social e com a transformação. E ainda mais,o olhar político sobre nossos objetos não se dedica a organizar umparadigma, mas se mantém atento às tendências que questioname subvertem a ordem estabelecida, pois está sempre pronto adescobrir e relacionar, consciente de sua historicidade e das váriaspossibilidades que há para explorar. Resta sublinhar, que, nessecaso, a autonomia não implica o afastamento da política e nem asujeição a seu jogo. (SARLO, 1997)

Se vivemos numa sociedade que exclui, domina, oprime eoculta os conflitos e as diferenças sob o valor das identidades e daunidade do homogêneo e do único, então, o direito à memória setorna uma reivindicação da pauta da cidadania cultural, para fazersurgir a diversidade, a diferença, o múltiplo, as muitas memóriaspara fazermos outras histórias, e questionarmos tantas concepçõesde Patrimônio Cultural.

Ainda em 2001 a UNESCO aprovou a Declaração UniversalSobre Diversidade Cultural, por unanimidade, entendendo que a culturacompreende uma série de características espirituais, materiais, in-telectuais, emocionais de uma sociedade ou grupo social E mais adi-ante, em 2002, reconhece e reforça a idéia de que a diversidade cul-tural constitui a força coletiva de um país e deve ser usada para asse-gurar o desenvolvimento sustentado. Agora, em outubro de 2005 aConferência Geral, da UNESCO discutiu e votou uma “Convençãosobre a Proteção e a Promoção das Expressões da Diversidade Cultural”,com apenas dois votos contrários, o dos Estados Unidos e o de Israel.

No Brasil, a partir de todas estas discussões têm proliferadotambém os projetos destinados a incorporar e preservar a “culturapopular” sem que se aprofundasse o significado e a discussão detal categoria, como também a de patrimônio intangível. O queestou dizendo é que a cultura é bem precioso de todos os cidadãose como tal deve ser pensada e elaborada por todos nós emdiscussões coletivas e com a maior participação que conseguirmos,antes de estabelecer regras ou regulamentos.

Apenas para referenciar, que nosso tempo não permiteestender mais, gostaria de dizer que, no que diz respeito aconcepções e pressupostos, questões de extrema importância têmsido apresentadas nestas Conferências e Reuniões, da UNESCO,sobre Cultura e o Poder da Cultura, em Seminários Acadêmicos, emdiversas reuniões de Fundações Culturais ONGs e outros fórunsculturais, chegando mesmo a salientar que, em decorrência dacirculação global,propõe-se uma nova divisão internacional de trabalhocultural, que leve em conta as diferenças locais, mas aceite aadministração, o gerenciamento e os investimentos transnacionais.

Em obra recente, George Yúdice (2004) A Conveniência DaCultura, discute e apresenta pesquisas, sobre as implicações de seconsiderar a cultura como “recurso”, significando muito mais queconsiderá-la apenas como mercadoria, mas sim como o eixo de umanova estrutura, na qual são absorvidas por uma racionalidadeeconômica de tal forma que o gerenciamento, o acesso, a distribuiçãoe o investimento em cultura e seus resultados torne-se prioritário.

Neste sentido pode-se caracterizar a cultura de nosso tempocomo uma cultura de globalização acelerada, como um “recurso”

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R E S E N H A S

NOTAS

1A Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional épublicada desde os tampos da criação do SPHAN, em 1938,sendoque sua publicação esteve interrompida por muitos anos, para serretomada no seu número 22/1987 e editada depois com algumaperiodicidade. A Revista tem contribuido com números especiaiscomo Cidade, Cidadania, Cultura E Arte Popular, Fotografia, ONegro na História do Brasil,etc. O acesso a estas Revistas é bemdifícil, e alguns exemplares só são encontradados nos Museus dopróprio SPHAN.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

ARANTES, Antônio Augusto. (org.) Produzindo O Passado.Estratégias de Construção do Patrimõnio Cultural. Brasiliense/Condephat. São Paulo, 1984.CANCLINI, Nestor Garcia.”O Patrimônio Cultural e a construçãomaginária do Nacional.”In.Revista do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, N.23.IPHAN.Rio de Janeiro, 1994.CHAUI, Marilena.Jornal da USP,1990._______ Discurso de Posse na SMC/PMSP, 2/1/1989

FLORESCANO, Enrique.(ORG.) El Patrimõnio Cultural deMéxico. Cidade do México: FCE, 1993.

SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias.São Paulo: Edus, 1997.YUDICE, George. A Conveniência da Cultur -.usos da Culturana era global..Belo Horizonte: Ed.UFMG, , 2004.

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FUTEBOL POR TODO O MUNDOALVITO, Marcos e MELO, Victor Andrade de (orgs)Rio de Janeiro: FGV, 2006

Rosângela Dias*

O ano passado foi-se rapidamente, ano de Copa do Mundode Futebol, e não só no Brasil, mas no planeta inteiro, os coraçõespulsaram pelos reis do futebol, pelos craques da pelota. Somentetrinta e dois países disputaram o torneio, mas todo o resto do mundoelegeu um time para torcer e o Brasil, segundo a imprensa esportiva,foi a segunda equipe de muitos. A seleção brasileira era a favoritapara conquistar a Copa, fato que, infelizmente, não ocorreu.Compunham seu elenco dois jogadores que foram escolhidos comomelhores do mundo pela FIFA (Football International Association),instituição responsável pela competição e que se orgulha por contarcom mais países associados do que a ONU. O Brasil, como sempre,parou para acompanhar a Copa, fato que ocorre desde 1970 quandoos jogos passaram a ser transmitidos pela televisão ao vivo. Desdeentão, sempre é elaborado todo um esquema para que trabalhadorese estudantes sejam liberados de seus encargos na hora das partidasdo Brasil. De uma forma quase oficial neste momento nada possuimaior importância que o escrete canarinho.

Aproveitando este momento de comunhão e comoçãonacionais, editoras lançam livros sobre o famoso esporte bretão.Crônicas sobre futebol, histórias de copas passadas, biografias dejogadores famosos e afins saem do prelo passando a ocupar asvitrines das livrarias em todo o país.

O livro Futebol por todo o mundo encaixa-se nestasituação, entretanto a extrapola, pois seu propósito não é somentefalar sobre futebol, mas refletir sobre o mundo contemporâneoatravés da união deste esporte com outra invenção não menospopular: o cinema. A partir do casamento cinema/futebol Marcos

*Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (1996) .Professora dos cursos de Graduação e Mestrado da UniversidadeSeverino Sombra.

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Uma das epígrafes é de Pelé, o maior jogador de futebol de todosos tempos e que participou de alguns filmes, tendo sido dirigidopor um dos maiores cineastas do mundo: Jonh Huston, em Fugapara a vitória de 1981. A outra é de Wladimir Carvalho, cineastabrasileiro. Pelé compara futebol e cinema, enquanto atividade: “Emcinema, se você erra dá para repetir a cena.” Wladimir se encantacom a poesia existente no futebol: “cometimento estritamenteestético com os supremos ingredientes da arte: ritmo, harmoniainventiva, movimento, incursão no tempo e no espaço, equilíbrio eplasticidade.” Se disséssemos que Wladimir fala de cinema, e nãode futebol, teria sido notada nossa falha? As epígrafes apontampara uma familiaridade possível entre os campos futebolísticos ecinematográficos, ambos são responsáveis por produzirem fortessentimentos e paixões.

Victor nos informa que este livro é fruto da reflexão devários pesquisadores que pensam a relação cinema/esporte nomundo contemporâneo. Os resultados são expostos já há 4 anosno Ciclo de Cinema e Esporte realizado pelo SESC (Serviço Socialdo Comércio) do Rio de Janeiro. Segundo Victor a relação entreambos é pertinente: “são fenômenos típicos da modernidade (aindaque possuam raízes anteriores), organizando-se a partir dasmudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde ofim do século XVIII e no decorrer do século XIX. Ambos constituempoderosas representações de valores e desejos que permeiam oimaginário do século XX: a superação de limites, o extremo dedeterminadas situações, a valorização da tecnologia, a consolidaçãode identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, oexaltar de um certo conceito de beleza. Ambos celebraram e foramcelebrados pelas novas dimensões de vida e de sociedadeconstruídas no decorrer do século que passou.” (p.11)

Isto posto, Victor nos traça um panorama do futebol nocinema mundial. Começa falando das dificuldades da transposiçãopara a tela de jogos de futebol. Segundo ele, os cineastas, “Todos,em maior ou menor grau, fracassaram na tentativa de simular aconcretude do esporte.” (p13) Outro fator que ajuda a diminuir apresença do futebol no cinema é o fato deste ser um esporte coletivo,dificultando a criação de tramas em que dramas particulares sejam

Alvito professor Doutor de História da UFF e Victor Andrade deMelo, graduado em Educação Física e professor Doutor doMestrado em História Comparada da UFRJ organizaram estacoletânea abordando várias questões contemporâneas, sempreutilizando filmes onde o futebol se apresenta como elementopropulsor da trama.

Os textos são simples, mas não superficiais, e conseguemextrair dos filmes abordagens pertinentes e esclarecedoras não sóem relação ao esporte, mas e, principalmente, sobre diferentesquestões do mundo contemporâneo. A grande qualidade dosmesmos é conseguir mostrar que a união de duas atividadesextremamente populares reflete com pertinência o mundo atual,suas questões, enfrentamentos e crises. O olhar atento dos artigos,escritos por cientistas sociais e humanos, mostra-se capaz de decifrá-lo e explicitá-lo, usando e transformando os filmes em forte elementodidático, tornando possível a aprendizagem através de imagens.

A Academia que, muitas vezes, torce o nariz para aquiloque o chamado “povão” curte e admira, desta vez, se mostra maisinteligente ao aproveitar esta paixão nacional que é o futebol paracolocar, discutir, debater e, principalmente socializar o conhecimentonela produzido, através destes textos. Textos que, principalmente,nos esclarecem sobre vários temas contemporâneos: gênero,identidade, multiculturalismo, preconceito racial e globalização, entreoutros, trabalhados através de filmes cujo tema central é ou passapelo futebol e a paixão que o mesmo desperta. Vamos ao livro.

As primeiras linhas da apresentação do livro se apropria defrase de José Lins do Rêgo: “o conhecimento do Brasil passa pelofutebol”, acredito que depois de lerem o livro poderemosparafrasear José Lins do Rego e dizermos: “o conhecimento domundo contemporâneo passa pelo futebol.” Já na apresentação, écolocada de forma clara e precisa o objetivo do livro: “explorar asrelações entre esporte e sociedade através do futebol. E fazê-lode forma prazerosa, dialogando com outra paixão: o cinema”. (p.7)

O primeiro artigo é de autoria do professor Victor Andradede Melo “Futebol e cinema: duas paixões, um planeta” e funcionacomo aquecimento, introdução do que virá. As duas epígrafes dotexto nos apontam o casamento fortuito entre cinema e futebol.

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percurso nos permite vislumbrar uma possibilidade de compreenderos discursos acerca da sociedade, determinadas representações,certos mitos. Estar atentos a isso, como ferramenta de investigação,como possibilidade pedagógica ou como maneira de ampliar nossoprazer, é uma necessidade e um desafio para todos nós, pesquisadores,estudiosos, interessados ou fãs.” (p.25) Afirmação mais que pertinentee que traduz a importância desta coletânea de “comentários” a partirdo futebol, pois assim os textos se denominam, exceto o texto deapresentação e o de número 6 sobre Garrincha.

O primeiro “comentário”: “Cultura, globalização e futebol:comentários a partir do filme A Copa”, mostra como a paixãopelo esporte vai longe, mais precisamente ao Butão, “discretaentidade política ensaduichada pelos gigantes China e Índia.” (p.28)O autor é Gilmar Mascarenhas de Jesus, professor doDepartamento de Geografia da UERJ. O filme é A copa,“metadocumentário que registra a perturbadora chegada da paixãofutebolística pelas antenas de TV, captando imagens da Copa doMundo de 1998 (França), rompendo o silêncio e o equilíbriomilenares de um remoto monastério budista.”(p.29). Utilizandovários autores como Hobsbawn, Giddens e Habermas, Gilmarpensa a modernidade que invade um mosteiro do Butão via futebol.Alguns monges desejam assistir aos principais jogos da Copa de98 e não poupam esforços para tal, esta é a trama do filme. Apartir desta história e do inusitado que é monges de um país mínimoestarem interessados em algo “profano”, Gilmar estabeleceinteressantes relações entre futebol e fenômenos do mundocontemporâneo: imperialismo, pedagogia fabril e religiosa,globalização e meios de comunicação. Gilmar nos chama a atençãopara o fato de que o “futebol é o mais duradouro, disseminado ebem sucedido produto de exportação da grande potência mundialdo século XIX, a Inglaterra. “ (p.28) Com função pedagógica foiutilizado como forma de adestramento da classe operária para otrabalho fabril, fecundando “toda uma nascente cultura operária àqual serviu como eficiente ‘pedagogia da fábrica’: trabalho emequipe, obediência às regras, especialização nas tarefas, submissãoao cronômetro etc” (p,28). Mas não só, foi também instrumentode disciplina moral para religiosos que, através das missões que se

realçados, caso, por exemplo, do boxe. Segundo Victor, dramasparticulares rendem melhores tramas cinematográficas. Além disso,os Estados Unidos e a Índia, países que mais produzem filmes nomundo, não possuem como esportes prediletos o futebol, aindaque os EUA estejam loucos por participarem desta festa global: járealizou uma Copa do Mundo e sua seleção participou das trêsúltimas Copas, tendo estado na Alemanha este ano. Ainda assim,o futebol esteve presente em inúmeras produções cinematográficase Victor cita algumas delas, tanto internacionais como nacionais.

É uma lista extensa, mas que omite algumas produçõesque consideramos memoráveis. Uma é Barbosa, curta metragembrasileiro dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. O filmetrata de um dos maiores traumas esportivos e nacionais do país: aderrota para o Uruguai em pleno Maracanã, na final da Copa doMundo de 1950. O Barbosa do título do filme foi o goleiro daquelafatídica final. É a história de um rapaz que volta a 16 de julho de1950 para tentar evitar a falha do goleiro e, consequentemente ogol da vitória do Uruguai.

Outro filme não citado por Victor é O casamento de MariaBraun, dirigido pelo alemão Rainer Werner Fassbinder em 1979.A história se passa em pleno pós-guerra alemão e traça um paraleloentre a história de Maria Braun, que tudo faz para sobreviver eenriquecer numa Alemanha destruída, e a própria Alemanha quebusca se reerguer dos escombros e da vergonha da II GuerraMundial. O final do filme se dá em 1954, dia do final da Copa doMundo em que Alemanha vence a competição ao derrotar a queera considerada a melhor e favorita equipe da competição: aHungria. No mesmo momento em que a Alemanha conquista aCopa, e tendo a narrativa do jogo ao fundo, Maria Braun se suicida,rica, mas arrasada moralmente pelos atos que executou parasobreviver e enriquecer. A terceira produção esquecida é o filmedirigido por Bruno Barreto O casamento de Romeu e Julieta,história de amor envolvendo um corintiano roxo e uma palmeirensefanática. Devo ressaltar que, estas ausências em nada diminuíramo poder de comunicação do livro.

Terminando esta introdução, Victor conclui que “cinema efutebol se interfluenciaram e dialogaram constantemente. E esse

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modos, por sua cultura, por sua diferença, enfim.” (p.45) O filme,segundo Simoni, apresenta uma visão otimista sobre a posição damulher e das minorias étnicas no mundo ocidental. “Trata-seprincipalmente de um discurso sobre a coexistência de idéias evalores distintos em um mesmo contexto social e sobre osobstáculos que as minorias, nestes contextos, devem enfrentar.”(p.45) O final feliz corrobora esta posição otimista da diretora; aprotagonista consegue ser jogadora de futebol e, ao mesmo tempoestudar, vai para uma Universidade norte-americana e, de quebra,ainda engata um romance com seu treinador. Ainda que a autoranão diga, o filme parece-nos um conto de fadas num mundoglobalizado onde as mulheres aspiram e conseguem tratamentoigualitário em relação aos homens, principalmente no que se refereà questão das perspectivas profissionais, mesmo em uma profissãotradicionalmente destinada aos homens, o futebol.

O outro artigo sobre o filme “Diálogos identitários – etnia,gênero, sexualidade e futebol: comentários a partir do filmeDriblando o destino” é de autoria de Antonio Jorge Soares e,como no artigo anterior, não há referência sobre a disciplina queministra ou estuda. Entretanto, podemos perceber que faz umaabordagem onde a questão da cultura se apresenta com força.Mais uma vez as questões identitárias são apontadas, destacando-se a questão de povos de culturas diferentes que vivem em paísesocidentais. Mas, o autor destaca outras questões como, porexemplo, o humor existente no filme além de chamar a atençãopara a figura de Beckham na trama, jogador bem sucedidofinanceiramente, considerado um metrossexual, vaidoso,preocupado com roupas, perfumes e moda, elementos pertencentesao universo feminino. A admiração da protagonista por Beckhamreforça a idéia de como os papéis masculinos e femininos seconfundem hoje. Outra questão que o autor destaca é ocomportamento das mulheres na trama. Segundo ele, a diretorateria sido “pouco generosa com as mulheres do filme”. Sãomostradas “como reguladoras da moral social”, “chatas”, “ansiosas,lamentosas e autoritárias”. Já os homens seriam “generosos”, fatoque se comprova pela atitude do pai de Jess, ao permitir que váestudar nos EUA, jogando futebol e com bolsa de estudos na

espalharam pelo Império Britânico e países dele dependente,ajudaram a difundir o esporte. O interesse revelado pelos mongesdo Butão nos remete, segundo Gilmar, a uma nova etapa demundialização (em itálico no original) do futebol, transformadode forma intensa e com sucesso de prática esportiva a espetáculo.Gilmar termina seu texto questionando se esta mundialização doespetáculo futebolístico, chegando aos mais longínquos rincões,não seria a apregoada “linguagem universal, a aproximar os povos”ou, simplesmente mais um novo grande negócio? (p.38)

Os outros dois “comentários” tratam do mesmo filmeDriblando o destino, filme inglês dirigido por uma mulher deorigem indiana: Gurinder Chadha, O primeiro texto “Um domextraordinário ou ‘cozinhar é fácil, mas quem sabe driblar comoBeckham?’: comentários a partir do filme Driblando o destino”,é da professora da UFF Simoni Lahud Guedes, infelizmente nãosabemos que disciplina ministra, entretanto, podemos perceber quea abordagem da autora nos remete à antropologia. A fita em questãofoca sua trama em torno das “vicissitudes de uma jovem comhabilidade incomum para o futebol, tendo em Beckham seu herói,mas (que) pertence a uma família indiana, que vive em Londres enão considera honrosa para sua filha a profissionalização esportiva.”(p.42) Este enredo, aparentemente simplório, abre espaço paraque várias questões sejam abordadas: “Reafirmações identitárias,conflitos e preconceitos étnicos, diferenças geracionais, concepçõesdiferenciais de gênero e sexualidade” (p.41/42) Mas, segundo aautora, é o entrelaçamento de duas destas questões – a étnica e ade gênero/sexualidade – que a narrativa desenvolve seu argumento/tese. A película revela-nos uma certa visão “moderna” da autoraem relação à família indiana, que “de uma forma cada vez maisdifundida na atualidade, não transforma as mulheres em simplesobjetos de cama e mesa. Na verdade, realiza uma complexaalquimia entre um específico modelo feminino centrado na famíliae na casa e um modelo que sustenta padrões igualitários de gênero.”(p.43) A principal objeção do pai quanto à vontade da filha em serjogadora de futebol é evitar a frustração. O pai de Jess (aprotagonista) não pôde jogar críquete nos times ingleses devido ao“seu turbante – fundamental signo identitário masculino - por seus

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de ética e do controle total dos interesses econômicos sobre aatividade esportiva se corporifica na cena em que o atleta se recusaa dar autógrafo para a torcedora mirim. O motivo da negativa é ofato da menina não pedir o autógrafo no card da empresa que opatrocina. Outro destaque do artigo é a observação do autor sobrea grande aproximação entre esporte e guerra. Alvito nos mostracomo várias expressões utilizadas pelos esportistas e narradoresdo futebol empregam termos bélicos: “acampamento”,“campanha”, “bombas” etc.

Logo após o artigo sobre Jerry Maguire e, talvez, emcontraponto ao mesmo, o texto que se segue é “A morte da ‘alegriado povo”, escrita pelo professor de Ciências Sociais do MuseuNacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro José Sérgio LeiteLopes. O ponto de partida para o artigo é o filme “Garrincha,alegria do povo”, de 1963 dirigido por Joaquim Pedro de Andradeintegrante do movimento do Cinema Novo. Movimento quepropunha um cinema criativo que extrairia da precariedade derecursos, imagens contundentes sobre a pobreza brasileira. OCinema Novo inventou a chamada “estética da fome”, cujo objetivomaior era denunciar a exploração sofrida pelos mais pobres: ascamadas populares urbanas e rurais. O objetivo maior doscineastas do Cinema Novo era produzir um cinema que levasse àtransformação social. O personagem e a trajetória de Garrincha,neste sentido, são emblemáticos, pobre, com pouca instrução,descendente de indígenas, operário, alcoólatra e explorado pelosdirigentes de futebol que o obrigavam a entrar em campo comdores e problemas nos joelhos. Jogador magistral que, apesar depossuir as pernas tortas, driblava como ninguém. Jogava futebolcom um prazer quase infantil e morreu pobre e abandonado. Oartigo disseca a trajetória de Garrincha, busca explicar seu futebolbrincadeira, as dificuldades que teve em administrar sua fama e aprofissão, descrevendo em tom de elegia seu enterro e a comoçãopopular causada por sua morte entre a população carioca. Escritoquase sob a forma de uma epifania ao jogador e com um linguajarpróximo ao literário, o autor nos traça a trajetória de Garrincha. Osucesso nos gramados, a exploração que sofreu por parte dosdirigentes do futebol, o escândalo de seu casamento com a cantora

Universidade. A explicação para tal atitude é que a mãe de Jess“pode ignorar o rosto de uma filha triste, mas ele não.” A visãootimista da diretora é confirmada pelo fato de exibir, segundoAntonio, em seu filme, personagens masculinos que se mostram“fundamentais no processo de dobrar as regras sociais do machismoe do preconceito.” (p.68)

O quinto “comentário” é de autoria de Marcos Alvito etrata de um filme e de futebol norte-americanos. É o únicoque foca um futebol diferente do inglês. Neste filme a questãoeconômica, ou mais precisamente a questão “dinheiro”,aparece de forma marcante, o que permite pensar a relaçãoesporte/lucratividade. Por ser um tipo de futebol menospopular entre nós, o autor faz um histórico da modalidade,disseca a importância econômica da mesma nos EstadosUnidos e destaca a importância da televisão na popularizaçãoe, consequentemente, lucratividade do futebol norte-americano. Pena que, talvez devido à dificuldade(inexistência mesmo?) não há nenhum artigo no livro quetrate o futebol inglês sob este prisma. A globalização domundo esportivo é o destaque. Seria compatível,competição e lucro com ética esportiva? Esta é a questãodo filme. O título da primeira parte do texto nos sugere aidéia de que o mundo do esporte é um universo a parte; “Ocenário: o planeta esporte”. Planeta onde yuppies, como oprotagonista do filme, Jerry Maguire, fazem dinheiro, objetivoúnico, não só de Jerry como de toda atividade esportiva.

Devemos destacar também que este texto apresentapreocupações em relação à própria linguagem cinematográfica.O autor inicia sua análise descrevendo o uso de alguns recursosfílmicos; como o som estridente e o tic tac do relógio marcando atensão da narrativa num universo, o do esporte profissional, onde“há quase seis bilhões de pessoas nele” e movimenta 220 bilhõesde dólares por ano nos EUA.

A trama central do filme trata justamente da crise deconsciência de um empresário esportivo que começa a questionaro comportamento de sua empresa e propõe a adoção deprocedimentos éticos no trato com os atletas. O exemplo da falta

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uma tradição operária de futebol amador, estimulada e praticadadentro de instituições esportivas geridas pelas fábricas ouempresas.” (p. 96)

A outra idéia é a comparação que Sérgio estabelece entrePelé e Garrincha, mostrando como, apesar de ambos seremoriundos da classe operária, Pelé soube se movimentar com sucessono universo futebolístico, conseguindo fazer relativa fortuna e auferirganhos substanciais de sua atividade esportiva. Ambos foramcampeões do mundo em 1958 e 1962 e ídolos da torcida, e tambémoriginários das classes populares. “Mas, ao contrário de Garrincha,que sempre demonstrou sua ligação profunda com suas origenssociais, Pelé fez aparecer em público apenas a sua ligação comum pequeno núcleo familiar, seu pai, sua mãe, seus irmãos e suaavó.” (p.105) A trajetória bastante diferenciada dos dois jogadoresrevela-se nos próprios filmes feitos sobre eles. Após o término doartigo Sérgio compara o filme sobre Garrincha de Joaquim Pedroe o filme sobre Pelé, Isto é Pelé dirigido por Eduardo Escorel em1975. Sérgio mostra como o filme de Pelé trata primordialmentede suas atividades como jogador, reforçando a imagem de esportistado século. O que chama a atenção principalmente entre as duastrajetórias é como Pelé encarou sua atividade como carreira, quedeveria ser administrada e levar ao sucesso financeiro.

Após texto sobre Garrincha, voltamos aos “comentários”.O de número 7, “Futebol e gênero no Brasil: comentários a partirdo filme Onda Nova” dialoga com a literatura, sua autora, LedaMaria da Costa é Doutoranda no Programa de Pós-graduaçãoem Literatura comparada da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. O comentário se produz a partir do filme Onda Nova,dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia que tem comoprotagonistas jovens de uma equipe feminina de futebol, o GaivotasFutebol Clube. A trama se desenrola em função das vicissitudesque passam as jogadoras para fazerem o que mais gostam: jogarfutebol. Leda assinala os preconceitos que rondaram (e aindarondam) a atividade futebolística desenvolvida pelas mulheres: “Omedo da masculinização foi uma das principais motivações paraque em 1941, através do Decreto-Lei número 3.199, a prática dofutebol feminino houvesse sido proibida.” p.118

Elza Soares, o final melancólico do craque; casa alugada em Bangupela CBF e internações por alcoolismo, até a última bebedeira quedurou 5 dias o levando a um coma alcoólico e pondo fim aGarrinha. A descrição minuciosa que Sérgio faz do velório, docortejo fúnebre e do enterro ressalta a origem operária deGarrincha, seu pertencimento às camadas populares. Garrinchafoi enterrado em Pau Grande e não em cemitério sofisticado dacidade do Rio de Janeiro. Os incidentes durante o velório e o enterroreafirmam sua extração popular: a família acusando a terceiramulher pela morte de Garrincha, a discussão sobre qual bandeiracobriria o caixão; se a do Botafogo, clube em que jogou, mastambém o explorou pagando salários miseráveis; ou as cores dabandeira do Brasil, a cova que era menor do que o caixão, ascondições em que ficou o cemitério após o enterro. “Todas asvicissitudes dos enterros populares eram evidentes nessa cerimôniaimprovisada, perturbada pela afluência desproporcional ao local:faltou terra para cobrir o caixão; além de flores já murchas, jogou-se na cova capim cortado nas proximidades do cemitério pelapopulação local.” “Eram 13h30min quando a multidão e a imprensase retiraram, deixando o cemitério semidestruído.” (p.86/87) Amorte de Garrincha transformou-se em evento midiático, emcontraponto ao próprio jeito de ser do jogador “... Garrincha eraum homem lacônico, que só falava, por assim dizer, com o seucorpo, com o seu jogo. Exatamente por caracterizar-se por umestilo particular, pelo amor ao jogo pelo jogo e por uma ausênciaaparente de estratégia em sua carreira profissional – coisas que ofaziam parecer “puro” ou “ingênuo” -, ele não tinha um discursopúblico sobre nada, nem mesmo sobre o futebol.” (p.88)

Duas idéias trabalhadas no artigo são instigantes: uma é aligação ressaltada pelo autor entre o futebol de Garrincha e a culturaoperária da qual ele fazia parte. Segundo o autor seria uma relativapermissividade existente entre os operários de Pau Grande nosanos 40 e 50 que propiciava aos trabalhadores fazerem outrasatividades para além do mundo fabril; caçar passarinhos, plantar,produzir algum artesanato ou jogar futebol. Daí, Garrincha encararo futebol como “um jogo pelo jogo”, sem nunca se sentir á vontadecomo jogador profissional. “Esse jogador, na verdade, é fruto de

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clube que nele estivesse interessado, situação pertinente aquaisquer trabalhadores. Mas não somente esta luta e conquistamarcaram o cidadão Afonsinho. Ele fugia ao padrão, geralmentesubmisso, do jogador de futebol que, invariavelmente provinha declasses subalternas e aceitava sem questionar os saláriosminguados, os contratos assinados em branco e a superexploração.Afonsinho tinha barba crescida, o que, segundo os dirigentes odeixava com cara de hippie, formou-se médico, enveredou pelapolítica, coordena projetos sociais no sistema penitenciário e é amigode artistas como do atual Ministro da Cultura Gilberto Gil. Comoescreve Maurício, Afonsinho foi “um bom representante doschamados ‘rebeldes’ do futebol brasileiro.” Maurício elogia o filmenão somente por tratar da conquista do “passe-livre”, mas tambémpor elaborar uma síntese sociológica de nosso ‘esporte-rei’, e traçarde forma bem cuidada uma reconstituição do Rio de Janeiro dosanos 50 e 60. Segundo Maurício, Caldeira conseguiu produzir “umbom exemplo daquilo que pode ser um cinema de qualidade emtorno do futebol” reconhecendo “o valor do futebol para acompreensão do nosso sistema simbólico...” (p.138)

O último comentário: “Futebol – nunca somente um jogo:comentários a partir do filme Febre de bola” é escrito peloDoutorando do Programa de Pós-Graduação em AntropologiaSocial do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio deJaneiro, Antonio Holzmeister Oswaldo Cruz e tem como tema oconflito entre as duas paixões de Paul: Sarah, sua namorada e seutime de futebol, o Arsenal, estabelecendo um triângulo amorosopouco comum (ou não?). A fixação de Paul pelo Arsenal é tãointensa que toda a sua vida se relaciona com os sucessos oufracassos do time, e contamina Sarah que começa a decorar onome dos jogadores do Arsenal e a acompanhar e discutir os jogos.

Os comentários de Antonio se baseiam na convicção dePaul de que o futebol não é apenas um jogo, idéia corroboradapela dimensão que possui o futebol atualmente. As provas destefato podem ser encontradas na quantidade de espectadores quefreqüentam os estádios e nas brigas (algumas vezes até commortes) entre os torcedores de equipes rivais. Tanta comoção einvestimento não podem ser por algo que seja apenas um jogo. E

Mas, para além deste tipo de preconceito há também aprópria falta de interesse por parte dos empresários esportivos empromover campeonatos de futebol feminino. O Brasil, apesar deser vice-campeão mundial da modalidade não possui campeonatosde qualidade. As jogadoras brasileiras que se destacaram naseleção jogam fora do Brasil para poderem sobreviver do esporte.Leda ressalta que, apesar de tudo isso, ainda há moças quecorroboram a música do grupo SKANK “Quem nunca sonhouem ser jogador de futebol?”. O que a autora destaca em seu textoé o fato deste sonho ser pensado como forma de afirmação damulher em relação ao direito sobre o próprio corpo. A liberalidadesexual existente entre as jogadoras do Onda Nova, algumas sãolésbicas e transam em vários lugares não tradicionais, “demonstraque o corpo feminino é assunto que só diz respeito à própria mulher.A posse do corpo por suas donas também se faz presente na opçãopelo futebol, escolha desautorizada por muitos pais, mães e maridosao longo dos anos.” (p.119)

Comentário número 8: “Futebol e profissionalização noBrasil: comentários a partir do filme Passe Livre”, escrito porMaurício Murad, professor de Ciências Sociais da UERJ. O filmeutilizado para discutir as relações de trabalho no meio futebolísticoé Passe Livre, dirigido por Oswaldo Caldeira. Trata-se de umdocumentário que, a partir da trajetória do jogador Afonsinho,discute a “situação do jogador de futebol em nosso país: como elese encaminha para a profissão; sua atividade na categoria juvenile a passagem para o profissionalismo”, mas não só, nos falatambém sobre “a magia do esporte, a beleza do espetáculo e aatração que ele exerce sobre o espectador.” (p.129) Afonsinhotornou-se símbolo da luta pela transformação das relações detrabalho existentes no futebol brasileiros nos anos 70, períodomarcado pela conquista da Copa do Mundo, e pela ditadura militar.Ainda que as relações trabalhistas de futebol até hoje sejamproblemáticas; envolvendo contratos feitos com adolescentes emuitos acordos “de boca”, não há mais as características feudaise escravistas existentes entre as décadas de 50 e 70. Afonsinhotornou-se o primeiro jogador brasileiro a conquistar na justiça o“passe livre”, o que lhe conferia o direito de jogar em qualquer

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TEORIAS DA HISTÓRIA (UMA PROPOSTA DE ESTUDOS).DIEHL, Astor Antônio. Passo Fundo: Ed. UPF, 2004, 134p.

Diogo da Silva Roiz*

Era comum no Brasil dos anos de 1970 o aparecimento dequestionamentos sobre a escassez de estudos sobre as teorias dahistória em nossas universidades. Há pouco mais de quinze anosesse quadro vêm mudando, porque além das pesquisas nessecampo serem mais numerosas, também tem ocorrido um aumentonas traduções de obras estrangeiras, como ainda da publicação deobras elaboradas por pesquisadores brasileiros, a partir de suasdissertações e teses, ou por meio de pesquisas sem a pretensãooriginária de obtenção de títulos acadêmicos. E é justamente porintermédio de pesquisadores brasileiros, na maior parte reunidosem associações (como a Anpuh) e grupos de pesquisa (cadastradosno CNPq), que está ocorrendo progressivamente o desenvolvimentodeste campo de estudos no país.

O professor e pesquisador Astor Antônio Diehl é um dessescasos. Graduado em Estudos Sociais em 1980 e Licenciado emHistória em 1982 pela PUC/RS, onde também concluiu em 1986seu mestrado na área de História do Brasil. Fez seu doutoramentona Alemanha em Teoria, Metodologia e Didática da História pelaRuhr-Universität Bochum, sob a orientação do professor JörnRüsen, concluindo-o em 1991. Dessa pesquisa resultaram quatrolivros sobre a origem e desenvolvimento de uma culturahistoriográfica no Brasil. Desde então, após ter retornado ao país,vem se dedicando ao estudo das teorias da história na Universidadede Passo Fundo, onde é professor e pesquisador. Resultado desuas pesquisas nesse campo é seu último livro, cujo título (Teoriasda História) já indica seu interesse pelo tema. Conhecedor dessecampo de estudos seu objetivo nesse livro foi “elaborar uma

* Mestre em História pela UNESP, Campus de Franca. Coordenadordo curso de História da Universidade Estadual de Mato Grosso doSul (UEMS), Campus de Amambai.

Antonio nos mostra porque o futebol, como outros esportes, não éapenas um jogo. Utilizando-se da teoria do chamado processocivilizador, desenvolvido pelo sociólogo alemão Norbert Elias eseguidores, o autor nos mostra que a importância do espetáculoesportivo, de torcer por um time, de acompanhar os jogos no estádioteria “a função de ser uma válvula de escape catártica” à pressãoexercida pelo convívio social. “Torcedores compareceriam aoestádio justamente em busca da excitação para liberar suas pulsõese assistir a uma guerra teatralizada.” (p.143) Por isso o futebolnão é apenas um jogo, “ele envolve muito mais do que o resultadofinal estampado em um placar eletrônico...” “Serve também parafazer dinheiro ou inspirar obras-de-arte....”E, principalmente, algoque é mostrado neste livro “para pensar a sociedade”. (p.147)

Por tudo que foi escrito acima recomendamos não só aleitura atenta de Futebol por todo o mundo, como sua utilizaçãoem sala de aula, para debates ou exposição dos alunos. Sua leiturafácil e envolvente, aliada a um tema, por que não dizer vital para amaioria de nós, brasileiros, permite a compreensão de assuntosque, discutidos de forma pomposa, dificultam o entendimento. Estepequeno grande livro é prova contundente de que o conhecimentoacadêmico pode e deve ser acessível a todos, e a forma melhordisto ser realizado é produzindo textos atraentes, envolventes, oque não significa concessão à superficialidade

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de interesse: o teor das experiências, o teor das normas e o teordos sentidos” (2004: 21). Para o autor cada uma dessasperspectivas teria um significado preciso: “com o teor dasexperiências queremos dizer que o passado terá sentido a partir dasorientações, dos problemas do nosso presente e da prática social atual,com o teor das normas quer-se dizer sobre a função que oconhecimento terá na atualidade e, finalmente, por teor dos sentidosdenominamos o espaço sociocultural no qual o conhecimento éproduzido” (2004: 22). E nesse caso, o autor não observa de formanegativa a crise do pensamento histórico-historiográfico atual, mascomo uma oportunidade para se avançar, e essa seria uma dasjustificativas para “o significado e a importância de uma propostade estudos na área de teorias da história” (2004: 23).

Assim, não foi por acaso, que antes de discutir sua proposta,o autor demonstrou para os seus prováveis leitores a forma de seaproximar dos textos teóricos, com algumas técnicas para melhoraproveitar suas leituras. Para ele é preciso: a) estabelecer o objetoda leitura, quer dizer, definir o que se pretende questionar e responder;b) deve-se primar pela leitura integral do texto; c) e com isso analisaro conteúdo, localizando a idéia central, as idéias que constituem aargumentação do autor para sua idéia ou questão central e, também,localizar as idéias secundárias, e como elas se articulam na análisee na argumentação do autor; d) para, enfim, interpretar o textovendo suas propostas, suas ligações com outros textos, suaabordagem e informações, que juízos de valor comporta, que lacunasdeixou e a quais conclusões atingiu. Em todas essas etapas deleitura, segundo o autor, o leitor deve fazer anotações, comentáriose questionamentos para nortearem suas interpretações dos textos.

O ponto central do livro são as duas propostas para umprograma da disciplina teorias da história. Na primeira se estudaria“o paradigma da ciência e os sistemas teóricos de fundamentaçãoe de constituição da possibilidade científica da história na análisedas especificidades da produção dos conhecimentos históricos”,observando “o debate do conhecimento histórico na chamada ‘criseda modernidade’ e no ambiente pós-moderno”, e se estudaria “oslimites e as possibilidades da história a partir das concepçõesteóricas fundadoras da moderna ciência, tomando por base o

proposta de estudos para a disciplina Teorias da História” (2004:7), que além de não se pretender única, visa tirar algumas dúvidase facilitar o ingresso de iniciantes com uma primeira aproximaçãoao tema. Essa proposta, segundo o autor, está vinculada com outrosquatro trabalhos “complementares já prontos e que serão publicadosem seguida”. São eles: Metodologia da pesquisa histórica;Historiografia e cultura historiográfica; Tempo deexperiências contemporâneas e Fascinação histórica: sobrea estética e a função da história hoje. Todos esses trabalhostambém se configuram como propostas de estudo.

O livro foi dividido em quatro capítulos. Demonstra logo deinício que a problemática da ‘crise da razão histórica’ no Brasil, ea conseqüente fragmentação das análises sobre os processos, asabordagens e as interpretações das sociedades passadas epresentes, fazem parte de sua discussão central no livro, e essafoi também uma das razões de tê-lo escrito. Para ele: “Até a décadade 1980, temos paradigmas teórico-metodológicos otimistas (...)Atualmente (...) em vez disso, [temos] um retorno ao passado, aoindivíduo, ressaltando-se os aspectos etnoantropológicos de umavisão cultural pessimista” (2004: 16). De modo que o autor elegealguns pontos a serem analisados: a) o “conhecimento histórico nocontexto dos séculos XVIII e XIX”; b) “mapear os questionamentosdos cientistas sociais – historiadores – em relação a sua própriadisciplina”; c) e “considera o estudo dos deslocamentos deparadigmas tradicional-modernos, em crise, para as recentestendências teórico-metodológicas” (2004: 17). Nesse sentido, oautor considera que a “história como disciplina, quando pretendeter plausibilidade científica no quadro das ciências humanas, devecontemplar uma matriz composta de, pelo menos, cinco elementosque a fundamentem como tal. Esses elementos da matriz [inspiradosa partir da análise de Jörn Rüsen] são: os interesses peloconhecimento histórico; as perspectivas teóricas sobre o passado;a metodologia e as técnicas de pesquisa; as formas derepresentação do conhecimento, ou seja, as formas narrativashistoriográficas e, finalmente, as funções didáticas da história.Nesse sentido, o pensar histórico terá plausibilidade científica se ohistoriador conseguir argumentar com base em três perspectivas

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clássicos’, “já não com as viseiras da ortodoxia do intransigente,mas como possibilidade de contribuírem para o debate dos dilemascontemporâneos” (2004: 120). Por isso o autor indica que nemtudo dos modernos está morto, assim como nem tudo dos pós-modernos resistirá à prova do tempo. Para ele a “crise da razãohistórica não deve ser entendida como o processo de volatizaçãoe decadência da história como disciplina, mas sim, como umaprofunda mudança estrutural nos interesses sobre o passado, nasformas de teorizar, de metodizar, narrar e didatizar a história” (2004:

120). Por isso chega a seguinte conclusão com esse livro:

O sentido dessa reconstituição possibilitaráproblematizarmos o passado a partir de duasvertentes: a cultura da mudança e as idéias de futuroque se tinha no passado. O conteúdo dessasvertentes são os fundamentos da culturahistoriográfica, a qual propicia o sentido tríplicerenovado para a história: o sentido da funçãoemancipatória, o sentido da função utópica e osentido da função da alteridade. Nessa mesmaorientação, tal reconstituição possibilitará osargumentos necessários para nos aproximarmos derespostas para as questões formuladas em relaçãoao sentido da história no tempo presente (2004:120).

iluminismo/romantismo, o idealismo, o positivismo, o marxismo e aconcepção weberiana de história” (2004: 34). A segunda propostafoi precedida por um texto introdutório, no qual discutiu “aspectosde desilusão da idéia de progresso na história e suas implicações”.Esse texto é uma versão ligeiramente reformulada de capítulo dolivro Cultura historiográfica: memória, identidade erepresentação publicado pela Edusc em 2002. Após esse textointrodutório indica sua segunda proposta. Nesta se estudaria “oslimites do paradigma da ciência e os sistemas teóricos nomovimento dos Annales e seus deslocamentos (...) as tendênciasatuais do debate teórico a partir da história nova, da história social,da história das mentalidades, da história do cotidiano, da novahistória cultural, da microistória e da psicanálise (...) a plausibilidadecientífica da história no contexto atual do debate em torno da pós-modernidade” (2004: 85).

Em ambas as propostas o autor define a bibliografia a sertrabalhada. No entanto, talvez aqui fique a maior lacuna do texto,que foi o autor não ter comentado a escolha dos livros (mesmoconsiderando que são básicos para o tema), nem a forma comodeveriam ser lidos ou articulados (com exceção para os tópicos),ou ainda, com textos introdutórios também fazer pequenasindicações sobre os livros selecionados para facilitar o ingresso doiniciante nesse tipo de leitura. Em todo caso, o autor foi bastantedidático ao colocar em prática sua sugestão de leitura dos textos,deixando espaços em branco no livro para serem preenchidos comas anotações e os comentários, provenientes das interpretaçõesde seus possíveis leitores.

Na sua conclusão o autor indica que o livro deve ser vistocomo um roteiro básico que possibilite ao iniciante a constituiçãodo status da história como disciplina. Para ele toda “essa conjunçãode aspectos e motivações ao estudo da história deve ser vistacomo positiva no desvelamento do passado. Mas tudo isso também,gera uma fragilidade teórica da história como disciplina. Se a históriaganhou, por um lado, a possibilidade de se aproximar mais dopassado, por outro, ela está perdendo no que diz às teorizaçõessobre a possibilidade da mudança social” (2004: 119). Foi comesse objetivo que o autor demarcou um roteiro para se ‘reler os

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Revista do Mestrado em História (USS)Normas para Publicação

I – Informações Gerais

A Revista do Mestrado em História, editada pelo Programade Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra(USS), publica artigos na área de História e, eventualmente, parao caso de ser aprovada a relevância do tema para os estudoshistoriográficos, temas também relacionados às demais CiênciasSociais e Humanas. Os articulistas devem ter como titulaçãomínima a de Mestre. Os textos submetidos à avaliação devemser originais, inéditos, escritos em português.

II – Orientação Editorial

Os originais de artigos encaminhados para publicação serãosubmetidos a uma avaliação cega pelos Pareceristas. Pequenasmodificações no texto poderão ocorrer; modificações substanciaisserão solicitadas aos autores. Os articulistas devem seresponsabilizar pela revisão ortográfica e gramatical de seus textos;caso haja problemas relativamente a este aspecto, será solicitadaaos autores uma nova revisão. Os originais não serão devolvidos.

III – APresentação De Trabalhos

Os artigos devem ser encaminhados em duas viasimpressas, uma com identificação e outra sem identificação doautor, e em uma via digital em Disquete ou CD-Rom.Acompanhando os originais, os autores devem enviar tambémuma folha de identificação contendo: nome, titulação e área/universidade de titulação, universidade ou local de atuaçãoprofissional, e-mail, endereço postal completo com CEP, telefonepara contato, bem como breve currículo de cinco a sete linhasindicando publicações importantes, se houver. Estes dados tambémdevem ser enviados em arquivo à parte, no disquete ou CD-Rom.

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• As referências a autores e obras devem vir entreparêntesis no corpo do próprio texto (sistema autor-dara),conforme o modelo: (FERNANDES, 1975, p.42).• As notas devem ser de fim de texto e com tamanhode letra Times New Roman 10, e poderão ser utilizadaspara acrescentar explicações adicionais ou para remetera outras discussões, mas não como meras referências,já que estas deverão vir no corpo do texto entreparêntesis (SILVA, J. 1999, p. 42), conforme já foiexplicado no item anterior• As Referências Bibliográficas (lista de obras citadasao fim do artigo), deverão estar situadas ao final do textoimediatamente antes das ‘notas de fim de texto’. Devemregistrar apenas as obras que foram citadas no artigo,sem nenhuma outra bibliografia adicional. As referênciasdeverão ser apresentadas de acordo com as regras daAssociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).Para livros, segue-se o modelo: BURKE, Peter. A Escritada História. São Paulo: UNESP, 1980. Atente-se parao detalhe de que o título da obra deve vir em itálico.Material coletado por meios eletrônicos deve apresentaros elementos básicos que são: autor, denominação outítulo e subtítulo (se houver) do serviço ou produto,indicações de responsabilidade, endereço eletrônico edata (mês e ano) de acesso.

A Revista de Mestrado em História da USS, além de artigos,também publica Resenhas, que deverão seguir as mesmas normase indicações gráficas dos artigos, mas se limitar a um máximo decinco laudas.

O material deve ser encaminhado aos editores da revista para osseguintes endereços:

Revista do Mestrado em História da USSCoordenadoria do Programa de Mestrado em HistóriaRua Dr. Fernandes Júnior, 89 (Centro)Cep: 27.700-000. Vassouras, RJ.

Fotos ou ilustrações só poderão ser publicadas em preto ebranco, e, caso existam, deverão vir localizadas dentro do artigo etambém em arquivo à parte, em formato JPEG..

Os demais aspectos gráficos devem seguir rigorosamenteas indicações abaixo:

• Texto em formato “Word for windows” 6.0/95 (doc).• Texto em papel tamanho A4, com margens 2,5• Tipo de letra: Times New Roman 12• Espaço 1,5.• Extensão: 20 a 30 laudas• a primeira lauda do texto original deve conter, namesma ordem indicada:

- O título do trabalho em caixa alta, centarlizadono topo da página- O nome completo do autor alinhado à direita,com nota de pé de página indicando titulação ealocalde atuação profissional- Resumo, com extensão de 8 a doze linhas,acompanhado de três a cinco palavras chaves.- Abstract, com extensão de 8 a doze linhas,acompanhado de três a cinco palavras chaves (trêsa cinco key-words)

• no corpo do artigo não devem ser incluídos elementosque possibilitem identificar o(s) autor(es) do texto (ex:papel timbrado, rodapé com nome do autor).

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