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Conta-me como foi História dos Bairros da Serafina e Liberdade Poucos livros existem que possam relatar o surgimento destes dois bairros no tempo, será então através de pequenas narrativas e depoimentos que tentaremos reconstruir esta história. Propomos-vos que façam uma viagem no tempo, recuando ao já longínquo ano de 1910, altura da revolução industrial na Europa e do fim da monarquia em Portugal. Estes eram tempos de crise, em que a maioria do povo português não vivia, mas antes sobrevivia. Os dias eram passados a trabalhar, a comida escasseava. Os filhos eram encarados de outra forma, como mão- de-obra, para ajudar a sustentar a casa. Era necessário mudar, mudar para melhor, e a isso se deveram as revoluções e as migrações. “Quem trabalhava na terra começou a descobrir que vinha para a cidade para ter melhor vida” José Guilherme

Histria Bairros Serafina e Liberdade

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Page 1: Histria Bairros Serafina e Liberdade

Conta-me como foiHistória dos Bairros da Serafina e Liberdade

Poucos livros existem que possam relatar o surgimento destes dois bairros no

tempo, será então através de pequenas narrativas e depoimentos que tentaremos

reconstruir esta história.

Propomos-vos que façam uma viagem no tempo, recuando ao já longínquo ano de

1910, altura da revolução industrial na Europa e do fim da monarquia em Portugal. Estes

eram tempos de crise, em que a maioria do povo português não vivia, mas antes sobrevivia.

Os dias eram passados a trabalhar, a comida escasseava. Os filhos eram encarados de outra

forma, como mão-de-obra, para ajudar a sustentar a casa. Era necessário mudar, mudar

para melhor, e a isso se deveram as revoluções e as migrações.

“Quem trabalhava na terra começou a descobrir que vinha para a cidade para ter

melhor vida”

José Guilherme

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Outra das razões para esta grande migração era o facto de serem necessárias

pessoas para trabalhar com as novas máquinas industriais que começavam então a ser

utilizadas.

Mas o que era feito dos terrenos que hoje são ocupados pelos Bairros da Serafina e

Liberdade? Sabe-se que estes não possuíam qualquer moradia por esta altura, constituindo

ora quintas de fim-de-semana, ora campos de trigo. Será então necessário avançar um

pouco no tempo, para o ano de 1924, para encontrar as primeiras construções, nos terrenos

do bairro da Liberdade. É-nos impossível falar destas construções sem referir o nome de

Carlos Rodrigues dos Santos, mais conhecido por Carlos da Parteira. Cabecilha da revolução

de 1910, conseguiu com sucesso ludibriar a proprietária dos terrenos hoje ocupados pelo

bairro da Liberdade, trocando-os por um prédio condenado à demolição. O caso foi

colocado em justiça, mas a pobre senhora acabou por não conseguir reaver as

propriedades. Carlos da Parteira era simultaneamente o proprietário, o arquitecto, o

engenheiro, o mestre-de-obras, enfim, tudo e mais um pouco em relação àqueles terrenos.

Era detentor de total autoridade naquela área.

Foram-se então criando inúmeros pátios, casas e barracas. Assim se podia justificar o

nome dado a este bairro. Livre tinha sido a escolha do local, livre tinha sido a construção nos

seus terrenos, livre foi a compra e a renda dos bocados de terreno que lá se adquiriram,

livre foi o traçado das casas e o delineamento das ruas, tudo obedecendo à imaginação e à

vontade de um único homem. De forma a fazer homenagem a este seu ideal de liberdade,

Carlos da Parteira foi padrinho das duas primeiras crianças dos dois sexos nascidas lá, às

quais deu respectivamente os nomes de Libertino e Libertina. O bairro da Liberdade foi

assim uma resposta social para as más condições que se viviam nesta altura. Era um local

relativamente barato para se viver, e de fácil acesso ao centro da cidade de Lisboa devido à

existência da estação de comboios de Campolide, ali implementada no final do século XIX.

Foi-se assistindo assim a um aumento da população, possuindo cada habitação uma família

com uma média de 4/5 filhos.

“Agora aqui, enquanto coube, construiu-se. E quem vinha para aqui? A família da família,

geralmente”

José Guilherme

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Mais esclarecidos acerca do surgimento do bairro da Liberdade, passemos agora

para a Serafina. Especula-se que os seus terrenos nunca tivessem sido ocupados ilegalmente

devido ao facto de serem terrenos explorados, com plantações e animais, com muros e

fronteiras definidas.

“Portanto, se umas foram ocupadas e outras não é porque alguém permitiu num caso e no

outro não”

José Guilherme

Assim, a construção do bairro da Serafina só se verificou entre os anos 1933 e 1938.

Possuindo já um plano de construção, esta teve origem no programa das Casas Económicas,

criado pelo Governo de Salazar para proporcionar melhores condições a quem era

trabalhador e competente. Apenas os sindicatos e os trabalhadores organizados que já

descontavam para o Estado podiam usufruir destas casas, estando entre eles polícias,

padeiros e tipógrafos. Erguia-se então um bairro social, a par de mais uma dúzia deles

espalhados por Lisboa. O arquitecto era um homem chamado Paulino Montez, que para

além da construção de inúmeras habitações, também foi responsável pela criação de um

posto da PSP, uma escola primária e uns balneários públicos. Estes últimos, apesar de

criados no bairro da Serafina, visavam atender às necessidades dos habitantes do bairro da

Liberdade.

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“As casas não tinham condições nenhumas, no início vivíamos sem água nem casas de

banho, as pessoas para tomarem banho tinham de se dirigir aos Balneários Públicos, e

para conseguir água tinham de ir aos chafarizes”

João Guedes

A verdade é que para o Estado o fim do Bairro da Liberdade significava a perda de

muito dinheiro, quer pela privação de mão-de-obra que os seus habitantes representavam,

quer pelo custo que o realojamento dos seus moradores iria acarretar. O plano para o bairro

da Serafina não pôde então ser concluído, ficando apenas a metade. Foi assim que se

formaram e foram evoluindo ao longo do tempo lado a lado estes dois Bairros, com

contrastes em quase todos os níveis. Estes contrastes originaram uma certa rivalidade entre

as duas populações.

“Enquanto nós éramos os meninos pobres, eles eram os meninos ricos. Nós vivíamos em

condições precárias, e eles, pelo contrário, viviam bastante bem para a altura, possuíam

bastante mais que nós, o que provocava naturalmente algumas disputas. Existia uma

grande antítese social, duas realidades opostas num espaço pequeno”

João Guedes

Os anos passam e a população de ambos os bairros vai evoluindo, crescendo. No ano

de 1959 surge o Centro Social e Paroquial de São Vicente de Paulo, que constituiu um marco

importante pela ajuda que veio trazer aos habitantes, assim como pela chegada da religião

cristã. O primeiro pároco a chegar foi o Padre José Gallea, conhecido pela sua bondade e

determinação. A este grande homem se deve a iluminação dos bairros, o alcatroamento de

ruas, a distribuição de sopas pela população e, mais importante ainda, a unificação da

população dos bairros.

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“Com este acontecimento o bairro deixou de estar “de costas voltadas para a Igreja”, e

sentiu-se novamente inserido na sociedade”

João Guedes

“Com o primeiro pároco, José Gallea, começaram os primeiros projectos possíveis para a

altura. Alcatroar as estradas, trazer a luz eléctrica, acompanhar crianças, jovens e

adolescentes em pré-fabricados para as primeiras respostas sociais”

Pároco Francisco Crespo

A partir dos anos 60 e 70 registou-se novamente um enorme fluxo de migração das

pessoas do Norte e das Beiras para a capital, procurando melhores condições de vida. Isto

levou a que houvesse uma sobrelotação, de tal forma que se atingiu um máximo de 120 mil

pessoas a morar simultaneamente neste espaço relativamente pequeno. Este aumento

demográfico conduziu-nos a uma situação insustentável, existindo mais pessoas do que

postos de trabalho. Face a esta situação, as pessoas tiveram de se desenrascar, virando-se

para o negócio da droga. A partir daqui este negócio nunca mais deixou de existir, tornando

Page 6: Histria Bairros Serafina e Liberdade

o bairro num local muito mais inseguro e incómodo para se viver. Muitos criminosos

surgiram, gangsters que não olhavam a meios para conseguir o que queriam. Os bairros da

Serafina e Liberdade passaram a ser associados à marginalidade, passaram a ser temidos.

Para contribuir para esta situação, a Paróquia do bairro havia ficado sem líder.

“Chegado o 25 de Abril, a população começou a apoderar-se das instalações do Centro e

muitos dos sucessivos sacerdotes que iam dirigindo o Centro viviam situações dramáticas.

Lembro-me que na altura ninguém queria aqui ficar”

Pároco Francisco Crespo

Foi então no ano de 1977 que o padre Francisco Crespo se ofereceu para tomar

conta da Paróquia, e por acréscimo da população dos bairros. Havia muito que fazer, pois

desde a altura do padre José Gallea que praticamente nada havia sido feito. Foi também por

esta altura que os bairros começaram a perder pessoas. Com a construção de diversas obras

públicas, entre as quais se destacam a ponte 25 de Abril, o eixo norte-sul e o viaduto Duarte

Pacheco, o bairro foi sendo lapidado. Grande parte das pessoas foram realojadas para os

bairros Padre Cruz e da Boavista.

Page 7: Histria Bairros Serafina e Liberdade

“A pobreza extrema causada por dificuldades financeiras, famílias desagregadas, crianças,

adolescentes e idosos abandonados predominava”

Pároco Francisco Crespo

Foi essencialmente com a ajuda da Paróquia de S. Vicente de Paulo que os

problemas dos Bairros da Serafina e Liberdade se foram superando. Foram criadas na

paróquia diversas instalações para as diferentes classes etárias, principalmente para idosos

e crianças, para que estes não seguissem por maus caminhos dentro do bairro, mas em vez

disso ocupassem o seu tempo com actividades muito mais saudáveis e instrutivas. Além

disso, a paróquia também se preocupava com a situação da habitação. O pároco Crespo

chegou inclusivamente a negociar com um conhecido gangster do Bairro uns terrenos que

lhe pertenciam, para que se conseguissem construir prédios para habitação que

permitissem retirar algumas centenas de pessoas das barracas em que viviam sem

condições nenhumas. Mas esta foi uma situação isolada. Os únicos prédios que se

construíram depois disto foram uns mais em baixo no bairro da Liberdade, e foram pagos

com o dinheiro que restou da construção das obras do Eixo norte-sul. Desde aí que mais

nada se fez para acabar com as barracas. Por muito que custe a acreditar, ainda há pessoas

a viver sem água em casa, com telhados de latão e paredes de madeira.

“O grande problema do bairro da Liberdade é o de não haver uma decisão

camarária, nada disto é da Câmara. Não temos espaço físico para construção e não há

dinheiro”

Pároco Francisco Crespo

“Eu pessoalmente não creio na câmara municipal como solução para o problema

que se enfrenta actualmente e a única hipótese, segundo o meu ponto de vista, passa por

investidores privados”

José Guilherme

Page 8: Histria Bairros Serafina e Liberdade

Chegamos assim aos dias de hoje. Ainda com barracas, ainda com problemas

de droga, ainda com crimes violentos. A entrada de pessoas é agora protagonizada por

imigrantes de leste e de África. As pessoas não se conhecem e vivem desconfiadas. Todos os

dias se observam jovens a enveredar pelos caminhos obscuros dos estupefacientes.

Gravidezes na adolescência ocorrem com alguma frequência, e os pedidos de ajuda dirigidos

à Paróquia S. Vicente de Paulo são cada vez mais recorrentes. As pessoas vivem mal e não se

vêm melhorias para o futuro.

“Agora com a situação de crise actual temo que o negócio da droga aumente. Isto

é como uma bola de neve. As pessoas não têm formação, vivem sem condições e acabam

por enveredar pelo caminho mais fácil, o da droga”

Pároco Francisco Crespo

“Claro que há sempre aquela cena, és jovem, és curioso e queres descobrir o mundo

muito rápido. Depois quando ganhares consciência se calhar vais ver que o descobriste

rápido demais e quando deres por ti estás na merda”

“João”

“Coisas que no passado nós fazíamos sem qualquer problema, hoje não podemos

fazer. As pessoas não se conhecem, e por isso vivem desconfiadas umas das outras”

João Guedes

Page 9: Histria Bairros Serafina e Liberdade

“Globalmente, sai muito caro recuperar um bairro. O método mais fácil é demolir e

voltar a construir”

José Guilherme

Vive-se uma época aflitiva não só no bairro como em todo o país. Há muitas pessoas

em situação de pobreza extrema. A questão coloca-se: não será tempo de mudar? Vamos

continuar a construir estradas, comboios do mais veloz que existe, estádios de futebol, em

vez de tirar as pessoas da precariedade em que se encontram? Vamos continuar a permitir

que os jovens desperdicem as suas vidas em drogas e álcool?

Se as perspectivas para o futuro destes bairros são negativas, tornemo-las positivas.

Retiremos de uma vez por todas os miúdos das ruas, acabemos com as barracas. Há que agir

agora, antes que outra geração se perca. O futuro será como nós quisermos que seja.