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1 HISTÓRIA E MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO NO PARANÁ: POSSIBILIDADES DE UMA PRODUÇÃO NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA PÚBLICA 1 Joseli Maria Nunes Mendonça 2 Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. (Michael Pollak em Memória, esquecimento, silêncio) Introdução: historiadores e História Pública Nesta comunicação quero argumentar que a identidade regional do Paraná se constituiu a partir de narrativas históricas que, produzidas desde século XIX, tenderam a obscurecer se não a negar a relevância da escravidão e a importância da presença de africanos e seus descendentes na população local. Além disso, pretendo propor possibilidades de intervenção por meio de uma produção que, inserida na vertente do que hoje se denomina História Pública, possa favorecer a reconstituição de tal identidade, fazendo-a mais democrática. O termo História Pública, referindo-se à atuação de historiadores, designa uma vertente de abordagem voltada às representações públicas do passado. Assim, historiadores inseridos nesse campo podem se dedicar à produção de conhecimento histórico destinado a leitores não profissionais ou a audiências ampliadas. Como considerou Sara Albieri, “é como se a hist oriografia acadêmica aquela que é produzida como ciência pelos especialistas vazasse por muitos poros, e formasse uma intricada rede de vasos comunicantes que sustenta e alimenta a visão comum do que é a história” 3 . É evidente que tais práticas de produção para difusão ampliada nem de longe são exclusivas de historiadores. Pode-se mesmo dizer que apenas recentemente profissionais da área têm se dedicado a produzir para não especialistas. Jornalistas, biógrafos, cineastas, memorialistas, há muito, criam e difundem representações sobre o passado, muitas vezes de maneira bastante eficiente. Esse processo criativo, realizado por profissionais sem formação acadêmica em História, 1 Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutora em História (UNICAMP), professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. 3 ALBIERI, Sara. História Pública e Consciência Histórica. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. E ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (orgs). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, p. 21.

HISTÓRIA E MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO NO PARANÁ: … · HISTÓRIA E MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO NO PARANÁ: POSSIBILIDADES DE UMA PRODUÇÃO NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA PÚBLICA1 Joseli

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1

HISTÓRIA E MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO NO PARANÁ: POSSIBILIDADES DE

UMA PRODUÇÃO NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA PÚBLICA1

Joseli Maria Nunes Mendonça2

Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às

memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o

presente colore o passado. (Michael Pollak – em Memória,

esquecimento, silêncio)

Introdução: historiadores e História Pública

Nesta comunicação quero argumentar que a identidade regional do Paraná se constituiu a

partir de narrativas históricas que, produzidas desde século XIX, tenderam a obscurecer – se não a

negar – a relevância da escravidão e a importância da presença de africanos e seus descendentes na

população local. Além disso, pretendo propor possibilidades de intervenção por meio de uma

produção que, inserida na vertente do que hoje se denomina História Pública, possa favorecer a

reconstituição de tal identidade, fazendo-a mais democrática.

O termo História Pública, referindo-se à atuação de historiadores, designa uma vertente de

abordagem voltada às representações públicas do passado. Assim, historiadores inseridos nesse

campo podem se dedicar à produção de conhecimento histórico destinado a leitores não

profissionais ou a audiências ampliadas. Como considerou Sara Albieri, “é como se a historiografia

acadêmica – aquela que é produzida como ciência pelos especialistas – vazasse por muitos poros, e

formasse uma intricada rede de vasos comunicantes que sustenta e alimenta a visão comum do que

é a história”3.

É evidente que tais práticas de produção para difusão ampliada nem de longe são exclusivas

de historiadores. Pode-se mesmo dizer que apenas recentemente profissionais da área têm se

dedicado a produzir para não especialistas. Jornalistas, biógrafos, cineastas, memorialistas, há

muito, criam e difundem representações sobre o passado, muitas vezes de maneira bastante

eficiente. Esse processo criativo, realizado por profissionais sem formação acadêmica em História,

1 Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a

16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutora em História (UNICAMP), professora do Departamento de História da Universidade Federal do

Paraná. 3 ALBIERI, Sara. “História Pública e Consciência Histórica”. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. E ROVAI,

Marta Gouveia de Oliveira (orgs). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, p. 21.

2

sendo tomado como objeto de análise, define outro campo de atuação dos historiadores voltados à

História Pública. Assim, conforme considerou Liddington, deve-se observar uma distinção entre a

prática da História Pública e o exercício acadêmico dela. A primeira realiza a “apresentação popular

do passado para um leque de audiências, por meio de museus e patrimônios históricos, filme e

ficção histórica”. O segundo se dedica a estudar “como adquirimos nosso senso de passado – por

meio da memória e da paisagem, dos arquivos e da arqueologia e por consequência, é claro, do

modo como esses passados são apresentados publicamente”4.

Assim, poder-se-ia dizer que os historiadores que praticam a História Pública produzem

conteúdos para públicos ampliados – elaborando narrativas ou trabalhando com as instituições de

preservação dos “artefatos” do passado (museus, arquivos, centros de documentação etc.) - e/ou

problematizam tais conteúdos, tomados como objeto de estudo. Em qualquer uma dessas vertentes,

as representações públicas do passado estão no cerne das preocupações de historiadores que se

dedicam à História Pública.

A definição de um domínio estrito para tais práticas, agrupadas na rubrica da História

Pública, é relativamente recente. Um marco nesse sentido foi a criação, na década de 1970, nos

Estados Unidos, do periódico The Public Historian, associado à Universidade da Califórnia - em

Santa Bárbara - ao Oral History Institute e a várias bibliotecas e museus5. Na Grã-Bretanha, foi na

década de 1980 que ganharam força entre os historiadores – mas também junto a geógrafos e a

teóricos culturais - as indagações acerca das representações públicas do passado; ali, tais questões

estiveram associadas principalmente ao patrimônio. Na virada do século, um importante encontro

de historiadores profissionais reunidos para discutir a História Pública ocorreu na York University,

promovido em colaboração com a Royal Historical Society – uma das mais tradicionalistas

associações profissionais de historiadores britânicos6. No Brasil as iniciativas que evidenciam a

definição da História Pública como um domínio específico ocorreram em 2011 e 2012, com a oferta

da disciplina de Introdução à História Pública na Universidade de São Paulo (2011), a publicação de

4 LINDGTON, Jill. “O que é História Pública? Os públicos e seus passados”. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo

de. E ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (orgs). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz,

2011, p. 34. 5 Idem, pp. 34-35.

6 Idem, p. 43.

3

um livro com artigos voltados a apresentar e discutir essa vertente de atuação profissional (2011) e a

criação da Rede Brasileira de História Pública (2012)7.

Se a definição da História Pública como um campo de interesse específico é relativamente

recente, a criação ampliada de representações públicas sobre o passado feita com base na produção

do conhecimento histórico é muitíssimo antiga. No Brasil, ela ocorreu pari passu à produção

historiográfica levada a efeito por homens de letras reunidos no Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, no século XIX. Realizada como um empreendimento ao mesmo tempo intelectual e

político, a historiografia do IHGB,vinculada e financiada pelo Estado monárquico, era uma História

oficial, que visava “forjar a nação”.8 Organizado nos moldes das academias iluministas, sua

produção visava esclarecer aqueles que compunham o topo da pirâmide social sem, entretanto,

descuidar do restante da sociedade, também considerada alvo a ser atingido pelas luzes do

conhecimento acadêmico. Assim, mesmo sem uma abrangência muito ampla, os preceitos

orientadores da produção historiográfica do IHGB – e o conteúdo político dele decorrente – vertia

da instituição para a sociedade. Parte deste espraiamento foi realizada por meio da produção de

livros didáticos, como as Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria,

escrito por Joaquim Manuel de Macedo, literato e membro do IHGB. Publicado na década de 1870,

foi o primeiro manual elaborado com finalidade estritamente didática por um professor de História

do Brasil no Colégio Pedro II e tornou-se o material oficialmente utilizado na instituição.9 Como

observou Albieri, “os livros didáticos representam uma das formas mais poderosas de publicação da

História. Eles são responsáveis pela ideia de História que impregna o senso comum de uma cultura

e de um povo”.10

A historiografia elaborada pelo IHGB disseminava-se socialmente também pela arte,

sobretudo pela pintura histórica. Trabalhando no interior da Academia Imperial de Belas Artes –

como o Instituto, também estreitamente vinculada ao Estado monárquico -, os pintores de história

narravam o passado da nação, seguindo os mesmos preceitos norteadores da produção da

7 http://historiapublica.com.br/?page_id=520 ( 04/03/2015)

8 Guimarães, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos, n. 1, 1988, pp. 5-27. Disponível em:

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/26.pdf (20/02/2015) 9 ANDRADE, Priscila Rampin de. Um cronista na tribuna: Joaquim Manoel de Macedo imprensa e política

na consolidação do Estado Nacional brasileiro. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2011. 10

ALBIERI, Sara. “História pública e consciência histórica”. In: ALMEIDA, Juniele Rabelo de e ROVAI,

Martha Gouveis (orgs). Introdução à História Pública, op. cit., p. 21.

4

historiografia oficial. Telas como A Primeira Missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles e

Independência ou Morte! (1888), de Pedro Américo, ressaltavam a importância da civilização

europeia, enalteciam personalidades políticas que vinculassem o presente vivido ao passado

colonial (considerado o período em que se introduziu a civilização em terras americanas),

procuravam valorizar as fontes para a produção do conhecimento histórico comunicado pela

pintura.11

Apresentadas nas grandes exposições, expostas em museus, comentadas em periódicos,

fomentando disputas acaloradas que eram realizadas pelos jornais, as telas levavam para um público

mais amplo o que os “especialistas” do IHGB ditavam sobre a história da nação.12

Assim, os historiadores do IHGB contribuíram para aquilo que Pollak definiu como trabalho

de enquadramento da memória. As considerações do autor sobre a historiografia alemã e seu papel

na constituição de uma identidade nacional bem serviriam para expressar o papel que tiveram os

historiadores do IHGB no século XIX brasileiro:

Em relação à herança do século XIX, que considera a história como sendo em essência uma

história nacional, podemos perguntar se a função do historiador não terá consistido, até certo

ponto, nesse trabalho de enquadramento visando à formação de uma história nacional. Este

fenômeno é mais claramente acentuado em países cuja unificação nacional se deu

tardiamente, e onde a ciência histórica tinha uma tarefa de unificação e manutenção da

unidade.13

O mesmo autor referiu-se à importância dos objetos materiais para o trabalho de

enquadramento da memória. Mais que o discurso organizado em torno de acontecimentos e de

grandes personagens, o que era a contento feito pelos historiadores do IHGB, as telas que

expunham a história da nação potencializaram o processo de constituição de uma identidade

nacional.14

11

Sobre o quadro A Primeira Missa, cfe.: COLI, Jorge. Primeira Missa e a invenção da descoberta. In:

NOVAES, Adauto (org). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Sobre a

pintura Independência ou Morte!, cf,: OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles e MATTOS, Claudia Valladão

de (orgs.). O brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da USP, 1999. 12

Uma dessas disputas se deu em 1879, contrapondo Victor Meirelles, pintor de Batalha de Guararapes e

Pedro Américo, pintor de Batalha do Avaí. GUARRILHA, Hugo. “A questão artística de 1879: um episódio

da crítica de arte do II Reinado”. DezenoveVinte – Arte no Brasil do século XIX e início do XX.

http://www.dezenovevinte.net/criticas/questao_1879.htm (15/02/2015). 13

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,

1992, p. 206. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080 (05/01/2015).. 14

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, , v. 2, nº 3,

1989. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2278/1417 (20/02/2015).

5

Ao longo do século XX, tiveram continuidade no Brasil os investimentos de enquadramento

da memória por meio da difusão ampliada da história. Favorecidos pelas novas mídias, que

atingiam públicos cada vez mais amplos, também nesse tempo eles decorriam de políticas públicas

voltadas a produzir uma identidade nacional que, sobretudo em contextos de tensão política e de

governos autoritários, procuravam favorecer a coesão social e o patriotismo. Nessa perspectiva

podemos interpretar ao menos parte da atuação do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo),

na década de 193015

e a da EMBRAFILMES, na década de 197016

.

Como observou Stefan Berger e Christian Wicke, História Pública e construção de

identidade desfrutam de uma relação simbiótica17

. No caso da produção que viemos até aqui

acompanhando, a identidade que se buscava era aquela que agregasse as pessoas em torno da ideia

de nacionalidade. A História Pública, assim produzida, visava constituir brasileiros, eliminando do

processo de constituição desta identidade os conflitos a ele inerentes.

História e identidade regional no Paraná: uma terra de europeus

Também histórias produzidas localmente configuraram memórias específicas sobre as

regiões às quais as narrativas se referiam. No caso do Paraná, mais precisamente de Curitiba, espaço

de análise privilegiado nesta comunicação, tais narrativas estiveram fortemente associadas às

características da população local e ao processo histórico de sua formação. Um dos aspectos

destacados em relação a tal processo é aquele que o associa à presença europeia.

Desde meados do século XIX, quando a porção meridional de São Paulo – a sua 5ª Comarca

– foi emancipada constituindo a província do Paraná, a importância da presença europeia na

formação da população local vem sendo ressaltada, primeiramente como parte de um projeto de

15

As produções do INCE visavam enaltecer o Brasil enfatizando suas maravilhas naturais, as conquistas

científicas e também pela narrativa de sua história. Nesta última vertente inseriu-se a importante produção de

Humberto Mauro, com destaque para “O Descobrimento do Brasil”, uma reconstituição fílmica da carta de

Pero Vaz Caminha, evocando imagens consagradas da pintura histórica, como a tela “Primeira Missa no

Brasil”, de Victor Meirelles. Entre outros, cfe.: SHVARZMAN, Sheila Humberto Mauro e as Imagens do

Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2004. 16

Neste período, mais precisamente em 1977, a Embrafilme, em parceria com o Ministério da Educação e

Cultura, lançou o programa Filme Histórico, visando a afirmação de aspectos de uma identidade nacional.

FERREIRA, Rodrigo de Almeida. “História pública e cinema: o filme Chico Rei e o conhecimento

histórico”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 27, nº 54, p. 275-294, julho-dezembro de 2014, p. 282. 17

BERGER, Stefan e WICKE, Christian. “Um imaginário pós-industrial? A popularização do patrimônio

industrial no Ruhr e a representação de sua identidade regional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 27,

nº 54, p. 231-254, julho-dezembro de 2014, p. 231.

6

povoamento, ocupação e “civilização” da região. Àquele tempo, autoridades públicas provinciais

consideravam que a introdução de imigrantes seria solução para o preenchimento do que

consideravam que fossem “vazios demográficos”, vistos como empecilho dos mais importantes para

o desenvolvimento da província.

Posteriormente, no final do século XIX e na primeira metade do século XX – período de

intenso afluxo de estrangeiros - um movimento de cunho artístico, político e ideológico de grande

envergadura e fundamental na constituição da identidade local – o Paranismo – deu contornos ainda

mais nítidos à imagem de um Paraná europeizado18

. Um dos autores mais significativos neste

contexto foi Romário Martins, cuja produção intelectual, desde 1899, esteve associava à

constituição de uma narrativa histórica na qual a presença de imigrantes europeus se destacava

como elemento distintivo da identidade paranaense.19

A ênfase na importância da imigração para a constituição populacional no Paraná também

caracterizou a obra de outro importante intelectual que se dedicou à história regional: Wilson

Martins. A produção deste autor, como a de Romário Martins, objetivou definir a especificidade da

composição populacional do Paraná e das relações interétnicas ali estabelecidas, distinguindo-as

daquelas constituídas em outras regiões do país. Quando publicou Um Brasil diferente, em 1955,

Wilson Martins explicitou o diálogo que pretendera realizar com Gilberto Freyre a respeito da

interpretação que este havia estabelecido sobre as relações sócio-raciais, na obra Casa Grande &

Senzala. Estudando o que considerava que fossem fenômenos de aculturação no Paraná que, como

dizia, decorriam do contato estabelecido entre estrangeiros de diversas origens europeias, Martins

concluiu que a formação social da região não havia sido resultado da convivência entre índios,

portugueses e negros, como ocorrera no ambiente social estudado por Gilberto Freyre. Isso porque,

18

Sobre o paranismos, cfe.: BEGA, Maria Tarcisa. S. Letras e política na Paraná: simbolistas e anticlericais

na República Velha. Curitiba/PR: Editora da UFPR, 2013. PEREIRA, Luiz Fernando Lopes. Paranismo: o

Paraná inventado: cultura e imaginário no Paraná da Primeira República. Curitiba: Aos Quatro Ventos,

1997 e OLIVEIRA, Márcio de. “Por uma sociologia do Brasil Meridional”. IN OLIVEIRA, Márcio e

ZWAKO, José Eduardo Leon. Ensaios de Sociologia e História Intelectual do Paraná. Curitiba: Editora da

UFPR, 2009, pp. 17-29. 19

MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. Posteriormente, em

1940, estimulado pela divulgação dos dados do censo demográfico então realizado, Romário Martins

publicou o estudo Quantos somos, quem somos. Na obra, ele procurava tratar a população do Paraná em

perspectiva quantitativa e, sobretudo, caracterizá-la em relação à sua origem étnica, atentando para a história

que envolveu a entrada de contingentes populacionais europeus na região. MARTINS, Romário. Quantos

somos, quem somos. Dados para a história e a estatística do povoamento do Paraná. Curitiba: Empresa

Gráfica Paranaense, 1941.

7

explicava o autor, a história do Paraná fora absolutamente diversa da história do restante do país;

não porque ali a assimilação de elementos socialmente diversos não tivesse ocorrido, mas porque

ela envolvera grupos distintos daqueles que interagiram em outras regiões. No Paraná interagiram

indivíduos de origem europeia: poloneses, italianos, austríacos, alemães, russos, ucranianos. Assim,

para Martins, o elemento distintivo do processo histórico do qual resultara a formação social

paranaense não era a ausência de assimilação de grupos étnicos entre si, mas, sim, a especificidade

desta assimilação, provocada pela imigração.20

A importância da imigração europeia para a história da região foi ressaltada também pela

produção de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná, notadamente a partir da década

1960, quando historiadores de profissão passaram a substituir os professores catedráticos que até

então haviam predominado na instituição.21

A partir de uma revisão crítica da produção

historiográfica sobre a região, tais pesquisadores produziram uma extensa agenda de pesquisas

demográficas, buscando coligir séries documentais que as viabilizassem22

. Em 1974, em um

colóquio organizado em comemoração ao primeiro centenário de Romário Martins, Altiva Balhana

– que fez parte da equipe que elaborou a agenda de pesquisa aqui referida – explicitou que uma das

vertentes de investigação que se pretendia conduzir dizia respeito justamente “às transformações

ocorridas com a entrada de novos contingentes étnicos que alteraram o quadro demográfico do

Paraná, e compreend[ia] o estudo dos primeiros grupos de alemães, poloneses, italianos, ucranianos,

e outros grupos de imigrantes estabelecidos no território paranaense”.23

No final dos anos 1960 um

quadro bastante amplo de pesquisas já havia se constituído e, a partir de então, consolidaram-se

vários estudos sobre a imigração e sobre os grupos étnicos que configuraram a população

paranaense. Problematizando sobretudo a preservação de elementos culturais dos vários grupos

20

MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente. Ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná. São Paulo:

T. A. Queiroz, 2ª edição, 1989. 21

FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra Fagundes. “História, historiador e identidade profissional: sobre a

história do Curso de História da Universidade Federal do Paraná”, Tempos Históricos. Rio de Janeiro, vol.

27, nº 54, p. 225-400, julho-dezembro de 2014. 22

Tal agenda se constituiu a partir da leitura e crítica que fizeram os professores do Departamento de

História sobre a produção de Romário Martins, como evidencia a Ata da Reunião do Departamento de

História da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Paraná Realizada em 2 de Dezembro de 1964

[Registrando sua Constituição em Princípios de Maio de 1959], citada por FAGUNDES, Bruno Flávio

Lontra Fagundes. “História, historiador e identidade profissional: sobre a história do Curso de História da

Universidade Federal do Paraná”, op. cit. 23

BALHANA, Altina Pilati. Um Mazzolino de Fiori. Curitiba: Imprensa Oficial; Secretaria de Estado da

Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, 2002, p. 410.

8

imigratórios e as dinâmicas grupais de autopreservação, tais pesquisas tenderam a destacar as

experiências e relações estabelecidas no interior de um grupo de origem específica - os ucranianos,

os poloneses, os alemães24

.

Os parâmetros definidores desta história regional não ficaram confinados aos ambientes

intelectuais ou à universidade. Alguns eventos relacionados às comemorações do centenário da

criação da província podem elucidar a maneira e a força com que foram conformados na elaboração

da identidade local.

História e identidade em uma praça curitibana

Embora tenham sido mais marcantes no ano de 1953, as comemorações relativas ao

centenário da emancipação já estavam na pauta da administração pública desde dois anos antes,

quando já se preparavam grandes eventos cívicos e eram realizados projetos para construção de um

significativo conjunto de obras, entre elas a Biblioteca Pública do Paraná, o Teatro Guaíra, o Centro

Cívico e a Praça Dezenove de Dezembro.

A praça - cujo título remete à data em que chegou à província seu primeiro presidente, na

qual a emancipação da província passou a ser comemorada – é, no conjunto da obra, sem dúvida, a

de menor envergadura. Nela, entretanto, estão contidos os elementos com mais fortes significados

simbólicos. Talvez por isso tenha sido em torno de seus monumentos que se estabeleceram os mais

acalorados debates envolvendo a identidade paranaense25

.

O primeiro monumento incorporado à praça – único inaugurado no ano do centenário - foi o

obelisco de cerca de 40 metros de altura. Depois, em 1955, foi implantado no local um painel com

dupla face, nas quais estava narrada, com imagens, a história do Estado.

24

ANDREAZZA, Maria Luiza. O Paraíso das Delícias: um estudo da imigração ucraniana –1895-1995.

Curitiba. Aos Quatro Ventos, 1999. BOSCHILIA, Roseli (org). Reconstruindo memórias: os poloneses do

Santo Inácio. Curitiba: Universidade Tuiuti do Paraná, 2004. NADALIN, Sérgio Odilon. . Imigrantes de

origem germânica no Brasil: ciclos matrimoniais e etnicidade. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000.

WACHOWICZ, Ruy. Tomás Coelho: uma comunidade camponesa. Curitiba: Real Artes Gráficas Ltda.,

1977. WACHOWICZ, Ruy. Abranches: paróquia de imigração polonesa. Um estudo de História

Demográfica. Dissertação de Mestrado. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 1974. 25

Agradeço a meu colega de departamento Antonio Cesar de Almeida Santos que, tendo ministrado uma

disciplina sobre a Praça Dezenove de Dezembro, me auxiliou fornecendo material bibliográfico sobre o

assunto. O trabalho dos estudantes, orientados pelo professor Antonio César, foi publicado em um blog, de

que também me utilizei neste texto. https://paranacemanos.wordpress.com

9

Uma das faces do painel foi confeccionada, em baixo relevo no granito, por Erbo Stenzel e

Humberto Cozzo, o primeiro um grande artista curitibano, o segundo, um renomado escultor

paulista, radicado no Rio de Janeiro.26

A narrativa imagética nele apresentada enfatiza as atividades

econômicas: a mineração no litoral, o tropeirismo, o extrativismo vegetal, a produção cafeeira. Na

história narrada por Stenzel e Cozzo recebem destaques os agentes responsáveis pelo

desenvolvimento e pujança da região: os bandeirantes, os indígenas e os imigrantes.

Estes mesmos personagens juntam-se a outros na face do painel elaborada por Lazarotto em

azulejos azuis e brancos. Como na obra de Stenzel e Cozzo, estão ali presentes as cenas que

remetem às atividades econômicas: a mineração e o tropeirismo. Ali também merecem destaque a

ação catequizadora dos jesuítas junto à população indígena, a atuação desbravadora dos

bandeirantes, o trabalho de jangadeiros e indígenas desbravando pelos rios o território paranaense, o

trabalho dos imigrantes – alguns em família. Neste painel, Lazzaroto também contemplou aspectos

importantes da memória política, representando uma cena com personalidades camarárias e a

instalação da província, com a chegada de seu primeiro presidente.

Percorrendo os murais da Praça Dezenove de Dezembro, rapidamente o observador percebe

da história representada por Stenzel, Cozzo e Poty Lazzarotto não fazem parte a escravidão, os

africanos e seus descendentes.

Em outra circunstância, relacionada a outro monumento da praça, essa presença foi não

somente silenciada, mas deliberadamente negada, não exatamente pelos artistas que a compuseram,

mas por aqueles que olharam para a obra: o Homem Nu, exposta a partir de 1855 na Praça

Dezenove de Dezembro. A forma final da escultura, segundo Bahls, foi uma imposição de Stenzel

ao governador Munhoz da Rocha, que havia idealizado um conjunto, a ser colocado diante do

palácio do governo, formado por 21 estátuas, cada uma correspondendo a um estado do Brasil;

diante de todas estaria um jovem dando um passo à frente, simbolizando o Paraná.27

De acordo com

26

Sobre o processo de criação e confecção dos painéis, cfe. CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de.

“Esculturas Públicas em Curitiba e estética autoritária”. Revista de Sociologia Política. Curitiba, nº 25, 2005,

pp. 63-82. 27

BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. UEPG Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística,

Letras e Artes. Ponta Grossa, nº 14, 2006, pp. 7-20.

10

a mesma autora, Stenzel teria considerado a ideia artisticamente inviável e sugerido uma estátua

apenas, colocada no centro da Rua Cândido de Abreu, na praça “do centenário”.28

Assim, o Homem Nu, planejado por Stenzel, mas realizado por Cozzo – cujo ateliê, em

Petrópolis, tinha tamanho compatível ao da obra - ficou um tanto diferente do que havia idealizado

inicialmente o governador Munhoz da Rocha. Não somente por estar desgarrado do conjunto que

ele inicialmente planejara, nem só pelo local em que fora colocado, mas possivelmente pela

aparência com que Cozzo o dotara, sem as “características regionais” relacionadas pelo governador

à “gente loura de olhos azuis.”29,

Fotografia de Adilson Moreira. https://ssl.panoramio.com/photo/83807100

Além de desagradar pelo fato de se mostrar nu, o paranaense colocado na praça não era

esguio. Embora de proporção gigantesca, a alguns parecia que era um tanto atarracado; outros viam

28

A Stenzel foi também encomendada uma estátua para ser colocada defronte o Palácio da Justiça. Projetada

por ele, mas confeccionada por Cozzo, a chamada Mulher Nua nunca foi exposta no local a que estaria

destinada. Depois de ficar por anos escondida no pátio do Palácio do Governo, na década de 1970 foi

colocada ao lado do Homem Nu, na Praça Dezenove de Dezembro. A incompatibilidade estética entre as

duas obras – apesar do estilo e da nudez das duas – é evidente para quem as observa lado a lado.

CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária. Revista de

Sociologia Política, Curitiba, nº 25, nov. 2005, pp. 64. 28

Apud Bahls, op. cit., p. 18. 29

ROCHA NETO, Bento Munhoz. No “Discurso pronunciado ria sessão de instalação da comissão de

comemoração do centenário”. O governador referira-se ao Paraná: “Isto aqui tem características regionais

nossas, específicas. Temos manchas louras; gente loura de olhos azuis, mas que é tão brasileira quanto

aquela que mais o seja”. Revista Ilustração Brasileira, dezembro de 1953.

11

nele traços africanos.30 De acordo com Bahls, David Carneiro teria considerado a escultura indigna

de representar o homem paranaense, este “dolicocéfalo, louro e belo”.31

Era como se a escultura, para os críticos, destoasse das narrativas constituídas nos murais.

As reações ao homem colocado no centro da praça, assim, de alguma forma, puseram a nu a

negação do que havia de africano no passado do Paraná.

Escravidão e presença africana no Paraná: uma proposta na perspectiva da História

Pública.

Alguém que queira conhecer a formação histórica da população de Curitiba consultando o

“Perfil” da cidade apresentado na página eletrônica da sua Prefeitura Municipal será informado que

dois grupos sociais a formaram: os tropeiros e os imigrantes. Os tropeiros, explica o texto, “eram

condutores de gado que circulavam entre Viamão, no Rio Grande do Sul, e a Feira de Sorocaba, em

São Paulo, conduzindo gado cujo destino final eram as Minas Gerais¨. De acordo com este texto, as

políticas públicas adotadas e o trabalho dos imigrantes – “europeus e de outros continentes” -

fizeram de Curitiba uma “cidade modelo”. Integrados à cidade a partir do século XIX, os

imigrantes, o texto registra,

deram nova conotação ao cotidiano de Curitiba. Seus modos de ser e de fazer se incorporaram de tal maneira à cidade que hoje são bem curitibanas festas cívicas e religiosas de diversas etnias, dança, música, culinária, expressões e a memória dos antepassados. Esta é representada nos diversos memoriais da imigração, em espaços públicos como parques e bosques municipais.32

De fato, um turista que percorra a cidade a bordo do ônibus que o levará aos pontos

turísticos, vai poder visitar vários desses parques e bosques.

30

CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária. Revista de

Sociologia Política, Curitiba, nº 25, nov. 2005, p. 65 (62-83) 31

Apud Bahls, op. cit, p. 18. 32

http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/perfil-da-cidade-de-curitiba/174. Este mesmo texto foi localizado e

interpretado em 2011, de maneira semelhante à que faço aqui, por COSTA, Hilton. Ilusão de ótica: presença

negra e imigração para o sul do Brasil nas análises de Raymundo Nina Rodrigues e Sílvio Romero. Anais do

5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: 20111.

http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos5/costa%20hilton.pdf

12

Fonte: Imagem: http://www.urbs.curitiba.pr.gov.br/transporte/linha-turismo. Acesso em: 03/02/2015.

O roteiro evidencia que os locais que remetem à formação populacional incluem na

paisagem os alemães, italianos, poloneses, ucranianos e árabes. Nenhum local faz menção à

presença da população de origem africana.

A presença desse grupo é apresentada pela página do Poder Executivo municipal em outro

texto, que compõe o quadro “História” e tem, curiosamente, o subtítulo “Imigração”:

De povoado a metrópole, o traço fundamental que definiu o perfil de Curitiba foi a chegada de imigrantes das mais variadas procedências. Europeus, asiáticos e africanos contribuíram para a formação da estrutura populacional, econômica, social e cultural da cidade.33

A inadequação do título para referir a presença de africanos talvez se deva à minimização da

importância da escravidão na história do local:

Curitiba também guarda marcas da presença negra, embora esta seja pouco documentada. Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês que andou pela cidade em 1820, fez levantamentos sobre a população da província: em 1818 havia 1.587 escravos, contra 1.941 vinte anos depois, em 1838. Nos mesmos anos, a população total era de 11.014 e de 16.155 habitantes. Ou seja: a população cresceu em 5.141 pessoas e os escravos, em 354. Mas, apesar dos poucos documentos existentes, a escravatura existiu no Paraná, ao longo dos ciclos econômicos e na construção de obras gigantescas como, por exemplo, a Estrada de

33

PREFEITURA MUNICIPAL E CURITIBA. Imigração.

http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/historia-imigracao/208 (20/02/2015).

13

Ferro Paranaguá-Curitiba, entre 1880-85, ligando o Litoral ao Primeiro Planalto e com a engenharia dos irmãos Antônio e André Rebouças, ambos mulatos.34

Em certa medida ambíguo, o texto ao mesmo tempo em que admite que a escravidão faz

parte da história da província, minimiza sua importância, considerando que a população escrava

teve pouca expressão na população total, observando o pequeno crescimento demográfico entre os

escravos e, ainda, equivocando-se ao indicar que a escravatura na região teria sido “pouco

documentada”.

A despeito de uma vasta produção acadêmica ter apresentado a importância da escravidão

para a História do Paraná,35

nos textos de ampla divulgação e no senso comum ainda prevalece a

ideia que a escravidão é irrelevante na história da cidade – e do Estado - e que a imigração europeia

é o aspecto definidor da especificidade local. Constituinte da identidade, a memória da imigração é

reiterada em textos oficiais, em eventos festivos, em memoriais e monumentos da cidade.

De outro lado, uma intensificação da mobilização de grupos afrodescendentes vem

favorecendo a redefinição de políticas públicas e de publicações que favoreçam a reconstituição

dessa memória. Um exemplo é a lavação das escadarias da Igreja do Rosário dos Pretos de São

Benedito, realizada desde 2011, na semana da Consciência Negra – em torno do 20 de novembro.

Afinado com este movimento de reconfiguração da memória, o projeto “História e Memória

da Escravidão em Curitiba”, em fase de elaboração e teste, recupera ou realiza a relação de locais da

cidade com a escravidão e com a presença africana. Elaborado a partir de várias pesquisas

produzidas sobretudo no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná – por

professores, estudantes e ex-estudantes de graduação e pós-graduação, alguns dos quais diretamente

envolvidos no projeto36

– o roteiro atinge oito locais: Praça Zacarias, Instituto de Educação do

Paraná Erasmo Pilotto, Rua XV de Novembro, Praça Generoso Marques/Paço da Liberdade, Igreja

34

Idem. 35

Não cabe aqui realizar um levantamento minucioso da produção sobre o tema. Mas é importante frisar que

mesmo os pesquisadores que se dedicaram às pesquisas sobre imigração não deixaram de mencionar a

importância da escravidão. Também é preciso registrar que já na década de 1960, Ianni publicou seu estudo

que, conquanto bastante criticado, tomava como questão central o escravismo na província. IANNI, Octavio.

As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional. São Paulo: Difel, 1962.

Um levantamento bibliográfico sobre a produção relativa aos Brasil Meridional, englobando o Paraná:

XAVIER, Regina. História da Escravidão e da Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, 2007. 36

São eles: Fabiano Stoiev, Jhonathan W. Souza, Jorge Luiz Santana, Noemi Santos da Silva e Thiago

Hoshino.

14

do Rosário de Nossa Senhora dos Pretos de São Benedito, Ruínas de São Francisco, Sociedade

Beneficente Protetora dos Operários e Sociedade Beneficente 13 de Maio.

Alguns desses locais mantêm uma relação direta com a escravidão e com o pós-abolição,

bem como a presença de africanos e descendentes. É o caso da Igreja do Rosário de Nossa Senhora

dos Pretos de São Benedito e da Sociedade Beneficente 13 de Maio. Outros locais agregam

conteúdos históricos fortes, porém não relacionados à escravidão ou ao pós-abolição. É o caso da

Praça Zacarias, que no século XIX e primeiras décadas do XX era ponto de encontro de escravos,

libertos e livres pobres que buscavam água no chafariz ali localizado, mas que na memória corrente

está relacionada à instalação do governo provincial no Paraná – por Zacharias de Goes e

Vasconcelos.

A associação entre tais locais e a história da escravidão e do pós-abolição na cidade

permitirá, em nosso entendimento, dar visibilidade a esses temas constituindo novas formas de

rememoração, para públicos que desconheciam esse passado. Pode também abrir caminhos para

reconfigurar identidades para grupos sobre os quais pesa o estigma de serem descendentes dos

antigos escravizados37

.

Ainda que tenhamos muito claras as possibilidades de reconfiguração de memórias a partir

do roteiro – e, ainda mais, que esta reconfiguração seja um objetivo explicitamente colocado –

temos plena consciência das distinções entre a história e a memória e procuramos elaborá-lo com o

rigor prescrito pelo método da produção historiográfica. Baseamo-nos em trabalhos que passaram

pelo crivo da avaliação acadêmica (monografias, dissertações, teses), consultamos a bibliografia

relativa ao tema, amparamo-nos em fontes primárias e, sempre que possível, as apresentamos aos

“passeantes”. As notas, indicações da bibliografia e das fontes são realizadas ao final do texto de

apresentação do roteiro. Cuidamos, enfim, de não incorrer no que Marieta Ferreira definiu com

“confusão entre história e memória e entre o que é ser historiador e o que é ser history maker”,

referindo-se a autores que escrevem sobre o passado sem fazer uso das regras estabelecidas pela

37

Nos termos definidos por MATTOS, Hebe, ABREU, Martha e GURAN, Milton. “Por uma História

Pública dos africanos escravizados”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 27, nº 54, 2014, pp. 255-73.

15

comunidade acadêmica.38

. Ao mesmo tempo, procuramos compor um discurso (para ser lido e

ouvido) que pudesse atingir um público não acadêmico, de pessoas interessadas pela história da

cidade e de estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio.

Concluindo

É evidente, já, que a perspectiva de produção no âmbito da História Pública, como aqui

proposta, embora contemple a abordagem sobre a constituição e disseminação de representações de

passado, problematizando-as; embora objetive produzir conteúdos históricos a serem divulgados

para públicos ampliados, interessa-se também por intervir no debate público39

sobre o significado

da escravidão e do pós-abolição na história local, contemplando uma discussão política atual e

necessária, em torno do racismo e do desfavorecimento secular imposto à população

afrodescendente.

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38

FERREIRA, Marieta de Morais. “História, tempo presente e história oral”. Topoi , Rio de Janeiro, 2002,

v.1, 2002. p. 65. 39

Neste sentido, cfe.: FONTES, Paulo; CHALHOUB, S. História Social do Trabalho, História Pública.

Perseu: História, Memória e Política, v. 4, p. 217-228, 2009. Na mesma perspectiva, o Programa de

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