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    apresenta

    horada razo

    NUNO R

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    Hora da razo (Choro negro 3), 2014vidro, ao inox, breu, resistncia eltrica e monitor de tela plana

    vdeo: Nina Becker cantando Hora da Razo, de Batatinha

    horada razo (2000-2014)

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    Se eu deixar de sofrer

    Como que vai ser

    Para me acostumar?

    Se tudo carnaval

    Eu no devo chorar

    Pois eu preciso me encontrar.

    Sofrer tambm merecimento

    Cada um tem seu momento

    Quando a hora da razo.

    Algum vai sambar comigo

    Mas o nome no digo

    Guardo tudo no corao.

    Com seus quatro tercetos e dois momentos meldicos claros a pri-

    meira, que pergunta e abre, e a segunda, que responde, filosofa e

    fecha a cano de Batatinha/J. Luna um desses clssicos instant-

    neos, redondos, perfeitos, bvios e surpreendentes, que a cano bra-

    sileira produziu tantas vezes. Guarda uma potncia de repetio que

    hora da razoNuno Ramos

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    dar na veneta de quem nada se espera, de quem j foi esquecido. di-

    fcil fazer essa comparao assim a seco, mas acho possvel dizer que

    a autossuficincia desse, digamos, samba-trgico menos ideolgica

    que a de nosso samba-malandro (quando mais no seja por no ser-

    vir de metfora ao pas) e que grande parte da fora desta cano de

    Batatinha vem de sua resposta altiva a este esquecimento: o nome eu

    no digo, guardo tudo no corao.

    O grande par de Batatinha neste lugar derrisrio Nelson Cava-

    quinho, que ocupou, com uma profundidade ainda a ser compreendi-

    da, e usufruda, este posto potico. Em Nelson, a morte imanta a letra

    (quase sempre de seu grande parceiro, Guilherme de Brito) e a melodia

    para l de qualquer remisso ou consolo, empurrando a cano at o

    ltimo degrau da vida, muito prximo do limite ainda belo, mas su-

    blime ou grotesco, j. Se ouvir Nelson Cavaquinho, em especial quan-

    do ele mesmo canta e toca, uma experincia inclassificvel, quase

    antropolgica, o mesmo no ocorre com Batatinha. Aqui h mais dis-

    tncia, maisfilosofia. A solido do compositor tem o tamanho daquilo

    que foge dele o que perdeu cabeem seu canto.

    Batatinha parece acompanhar-nos no mundo da tristeza como

    um guia que nos mostra as riquezas de um monumento histrico. No

    sei se consigo desenvolver este raciocnio, mas percebo em Batatinha,

    como em Caymmi, uma voz mais antiga do que o samba, uma espcie

    de fala exilada (como que vinda, literalmente, para usar o verso fa-

    moso de Mallarm, do fundo de um naufrgio), que lembra o blues

    americano e que torna to prximas a primeira parte de A preta do

    acaraj, de Caymmi, e uma cano como Ningum sabe quem sou

    eu, de Batatinha. Este elemento ancestral, pr-urbano, parece to des-

    Choro negro,

    mrmore, bre

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    do? Talvez por estar j no interior do universo da msica popular, logo

    pensei na cano de Batatinha, que gravamos simultaneamente, com

    trs cmeras diferentes, nas interpretaes de Eduardo Climachauska,

    Nina Becker e Romulo Fres como se os trs cantassem e tocassem

    distrados, interagindo s vezes entre si, mas quase sempre parecendo

    isolados, j que filmados separadamente.

    A gravao durou cinquenta minutos, numa tomada nica

    como num mantra, a prpria duraoda cano que acaba temati-

    zada aqui. curioso como a composio resiste, sem tornar-se insu-

    portvel ( diferena do filme Lili Marlene, de Fassbinder, em que

    uma personagem literalmente torturada pela reiterao infindvel

    da cano que d ttulo ao filme). Essa possibilidade de repetio,

    essa atrao pelo looping, parece ser prpria de muitas de nossas

    canes, e um trao fundamental do trabalho de nosso intrprete

    maior, Joo Gilberto. H em seu canto um desenho que recai sobre si

    mesmo, apagando a ideia de um percurso linear ou desenvolvimento

    uma estrutura plena, lmpida, como uma coincidncia entre o mais

    evoludo e o imemorial, arquetpico, que perfaz um crculo. De modo

    diverso, vindo de um lugar muito mais distante, acredito que um

    efeito parecido alcanado nesta cano especfica de Batatinha e J.

    Luna ela foi feita para voltar e voltar, e talvez por isso seja possvel

    escut-la tantas vezes.

    Certa feita, fiz um filme, com Eduardo Climachauska (Luz ne-

    gra, 2002), em que grandes caixas de som eram depositadas em covas

    fundas. Cobertas por uma camada de terra, amplificavam dali de den-

    tro a cano Juzo Final, na interpretao do prprio Nelson Cava-

    quinho. A voz de Nelson atravessava a espessura da terra, ganhando,

    Luz negra, 200216 mm, 11 45ddireo: Nuno Ramos eEduardo Climachauska

    roteiro: Nuno Ramos

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    pelo abafamento e rouquido, pela ausncia de agudos, uma curiosa

    fisicalidade. essa luta da msica contra a matria que Hora da razo

    procura, a seu modo, captar. A imagem e o som dos trs intrpretes se-

    ro recobertos parcialmente pelo vidro e pelo breu, que velaro o ouvi-

    do e a viso do espectador. Alm disso, quase literalmente, a escultura

    deve dizer o mesmo que a cano, chorando e guardando no corao.

    Assim, espero que a msica, a forma de arte que menor tributo paga ao

    mundo fsico, irradiando pelo ar em ondas velozes e sem peso, deixe-

    se atravessar e prender pelo caramelo daquelas lgrimas, daquele breu

    derretendo lentamente.

    ***

    Fiz os 78 desenhos da srie Munch(h dois outros, com numerao

    zero, que acrescentei com o propsito de construir uma passagem

    at a srie anterior de meus desenhos, Plato com sol) num momento

    absurdo o falecimento sbito de minha me, Dulce Helena Pessoa

    Ramos, em janeiro de 2011. Fiquei to tonto que passei alguns me-

    ses no atelier, zanzando pra l e pra c, desenhando e tentando me

    acalmar. 78 o nmero de anos que ela viveu, e que eu quis de algum

    modo palmilhar nestes desenhos. s vezes fazia dois ou trs no mes-

    mo dia; s vezes rasgava tudo; s vezes no fazia nada.

    No sei se fica claro para o espectador, mas percebo ao longo

    da srie o nascimento de uma espcie de nufrago, uma figura hu-

    manoide, normalmente deitada e muitas vezes com uma pirmide