7
Houve aplausos, abraços e telegramas de parabéns. José Alberto Carvalho terminou o Jornal da Noite com um vaso deflores na mão. Antes, chorou com Rangel, por Lucília Calha M Ninguém ficou no lugar. Quando, à hora certa, o hino da SIC arrancou, todos se junta- ram em frenteàstelevisóes. Cantavam em coro e houve uma primeira salva de palmas na redacção. "Então, não dançam?" perguntou, entusiasmado, o presidente do Conselho de Administração da SIC, Francisco Pinto Balse- mão. Alguns fizeram-no. Por pouco, a música que apresentou a SIC ao Pais não ficava pelo caminho. O hino, con- cebido na Globo, tinha sido trazido do Bra- sil dias antes pelo então director de Informa- ção e de Programas da SIC, Emidio Rangel. No aeroporto, Rangel teimou com os seguranças: não queria que a cassete passasse na máqui- na de raios X; tinha medo que estragasse a gravação. Disse-lhes: "Isso é uma gravação do hino da estação privada que vai abrir em Portugal." Não resultou: a discussão subiu de tom, os seguranças zangaram-se e obriga- ram-no a passar. "Quando cheguei a Lisboa, a primeira coisa que fiz foi ver se estava tudo bem", conta à SÁBADO. Quando o hino terminou, fez-se silêncio. Os estúdios estavam a ser estreados nessa terça-feira, 6 de Outubro, ainda havia fios por todo o lado e cabos por esconder. Os berbe- quins pararam para não interromperem a emissão. Passou o genérico do telejomal e o jornalista Ricardo Costa avisou: agora!" então apareceu Alberta Marques Fernan- des, com um tailleur cor de cereja. As suas primeiras palavras foram: "Boa tarde! Estu- dantes de luto contra as propinas." Seguiu- se uma explosão de alegria: aplausos, abra- ços e muitos parabéns. Este primeiro momento não foi transmi-

Houve e José por Lucília - clipquick.com · "Então, não dançam?" perguntou, entusiasmado, o presidente do Conselho de Administração da SIC, Francisco Pinto Balse-mão. Alguns

Embed Size (px)

Citation preview

Houve aplausos, abraços e

telegramas de parabéns.José Alberto Carvalho

terminou o Jornal da Noite

com um vaso deflores na

mão. Antes, chorou com

Rangel, por Lucília Calha

M Ninguém ficou no lugar. Quando, à hora

certa, o hino da SIC arrancou, todos se junta-ram em frenteàstelevisóes. Cantavam em coro

e houve uma primeira salva de palmas na

redacção. "Então, não dançam?" perguntou,entusiasmado, o presidente do Conselho de

Administração da SIC, Francisco Pinto Balse-

mão. Alguns fizeram-no.

Por pouco, a música que apresentou a SIC

ao Pais não ficava pelo caminho. O hino, con-

cebido na Globo, tinha sido trazido do Bra-

sil dias antes pelo então director de Informa-

ção e de Programas da SIC, Emidio Rangel. No

aeroporto, Rangel teimou com os seguranças:não queria que a cassete passasse na máqui-na de raios X; tinha medo que estragasse a

gravação. Disse-lhes: "Isso é uma gravaçãodo hino da estação privada que vai abrir em

Portugal." Não resultou: a discussão subiu

de tom, os seguranças zangaram-se e obriga-ram-no a passar. "Quando cheguei a Lisboa,

a primeira coisa que fiz foi ver se estava tudo

bem", conta à SÁBADO.

Quando o hino terminou, fez-se silêncio.

Os estúdios estavam a ser estreados nessa

terça-feira, 6 de Outubro, ainda havia fios portodo o lado e cabos por esconder. Os berbe-

quins pararam para não interromperem a

emissão. Passou o genérico do telejomal e o

jornalista Ricardo Costa avisou: "É agora!"Só então apareceu Alberta Marques Fernan-

des, com um tailleur cor de cereja. As suas

primeiras palavras foram: "Boa tarde! Estu-

dantes de luto contra as propinas." Seguiu-se uma explosão de alegria: aplausos, abra-

ços e muitos parabéns.Este primeiro momento não foi transmi-

? tido em directo. Por receio de que algo corres-

se mal, Emídio Rangel, José Fragoso e MiguelMonteiro (da equipa de coordenação de In-

formação) entraram na régie às i6h para gra-var o primeiro bloco noticioso. Tudo na pre-

paração do noticiário tinha sido escrutinado,

até os textos da pivô. "Eram três ou quatro

pessoas à volta do texto e, no fim, ainda se

chamou o Emídio Rangel", conta à SÁBADO

Alberta Marques Fernandes. A pivô, então

com 24 anos, só soubera na semana anterior

que ia abrir a estação. 0 director de Informa-

ção manteve a decisão em segredo quase até

ao fim. "Nunca justificou porque me esco-

lheu, mas algumas pessoas da equipa confi-

denciaram-me que ele disse qualquer coisa

como: 'Tenho uma angolana com uma voz!'"

Alberta ficou dentro do estúdio até a emis-

são terminar. Já quase no fim desse noticiá-

rio, ouviu-se na redacção um comentário so-

bre a pivô: "Ela, que é gordinha, até fica mais

magra. Não costuma ser assim."

M Primeiro susto: um solavanco. A seguirao jornal, a emissão parou por segundos e

ficaram todos em suspenso. Sentado à fren-

tedeuma televisão, José Alberto Carvalho sol-

tou um "ai! "e levou as mãos à cabeça. Perce-

beu-se logo que fora uma falha na cassete e

tudo se recompôs.

Começaram a chegar à SIC os primeirostelegramas de parabéns. De uma pilha de

dezenas, Miguel Sousa Tavares, David Bor-

ges e Sérgio Ferreira Borges assinavam os

primeiros. Também houve cartas. Umacontinha um charuto havano e um bilhe-

te escrito por mão própria, felicitando Emí-

dio Rangel.Tomás Taveira, o arquitecto responsável

pelos cenários, comentou: "Estou safo! Os

cenários não caíram." Minutos depois, Fran-

cisco Pinto Balsemão entrou na redacção à

procura de Alberta Marques Fernandes.

Quando os dois se encontraram, tiveram

de repetir o cumprimento duas vezes paraos jornalistas captarem o momento. Ater-

Os que saíram antesde a SIC ir para o arFORAM CONVIDADOS POR EMÍDIO RANGEL

MAS SAÍRAM ANTES DA ESTREIA DO CANAL

MIGUEL BARROSO. Fez parte do pri-

meiro grupo a ser chamado por Emídio

Rangel para a SIC, com Miguel Montei-

ro e José Fragoso. Mas regressou à

RTP antes de 6 de Outubro.

MARIA ELISA. Foi convidada logoem Março de 1992 para a direcçãode Programas. Ainda chamou

Catarina Furtado para apresen- A

tar a Hora MTV. Contudo, sairia jfllogo depois, por "incompati-bilidade com o projecto ou

com as pessoas", recorda .

Miguel Monteiro. ;

ceira, o patrão da SIC disse, bem disposto,

em frente às câmaras: "Já estão a abusar."

§¦ "A partir de hoje não têm desculpa, só se

quiserem é que vão perder as últimas novida-

des discográficas. AHom MTV invade o espa-

ço." Com estas palavras, Catarina Furtado foi

a segunda a aparecer na emissão de estreia. A

apresentadora ficou eufórica ao ver as primei-ras imagens. O seu programa tinha sido gra-vado na véspera. Contudo, passou com uma

gafe:o Festival de Reading, um evento demúsi-

ca, em Inglaterra, apareceu traduzido à letra

como se fosse um "Festival de Leitura".

¦i Houve novo bloco noticioso com Alberta

Marques Fernandes. Assunto do dia: primei-ras eleições em Angola. A jornalista Cândida

Pinto estava em Luanda desde Setembro a

cobrir o acontecimento.

Enviar as primeiras imagens a tempo (e

em condições) para a estreia da SIC não foi fá-

cil. Razão: um boicote. "Tínhamos de enviar

os trabalhos via satélite através da televisão

pública de Angola, que tinha um acordo

I com a RTP. Todos conseguiam enviar mas,l quando chegava a nossa vez, havia uma

avaria. Isto aconteceu uma, duas vezes,até que percebemos que nos estavam a

Quando se ouviu o hino, jornalistas e

apresentadores reuniram-se em frente à televisão

boicotar", conta à SÁBADO.

A partir de então, a jornalista e o repórterde imagem Renato Freitas começaram a fa-

zer uma viagem de 40 quilómetros até à es-

tação, onde podiam enviar as imagens semintermediários. Como o país estava instável,

esse percurso era de alto risco: "íamos mui-to rápido e só parávamos quando nos apon-tavam armas ", conta Cândida Pinto. Aconte-

ceu algumas vezes: numa delas, um militaralcoolizado meteu- se dentro do carro dos jor-nalistas e deixou resvalar a kalashnikov paraas costas do câmara da SIC. "Tive de ir toda a

viagem com o braço a desviá-la, com os se

lavancos havia o perigo de dis-

parar", diz Cândida Pinto.

Apesar dos contratempos,no dia 6 de Outubro de 1992(número eleito por Francisco

Pinto Balsemão para iniciai

os seus projectos; o Expresso,

o PSD e a Caras também co-

meçaram num dia 6), as re-

portagens de Angola foram

exibidas como planeado

M Nuno Santos e Júlia Pinheiro apresenta-ram o Praça Pública - um programa de infor-

mação com pequenas histórias, uma espéciede precursor do Nós por Cá. A apresentadora

apareceu no ecrã com um tailleur amarelo. "Vaisentir-se contagiado com a felicidade dos

outros, sorrir, recordar o que já esqueceu,conhecer de facto o que se passa à sua volta.

Vai ver e ouvir porque está no Praça Pública",disse. Hoje, 20 anos depois, brinca: "Curiosa-

mente, nessa altura falava baixo. Mas aquela

apresentação era uma coisa de deitar as mãosà cabeça. Estávamos demasiado sérios." ?

Paulo Nogueira, pivôdo Último Jornal, e o

jornalista António

Cancela acertam os

pormenores para o

bloco noticioso que

passou depois da

meia-noite

Para poder enviarimagens deAngola, CândidaPinto e RenatoFreitas viajaramna companhia deuma kalashnikov

Tornai a informação mais próxima do es-

pectador fazia parte da estratégia do novo ca-

nal. "A RTP ainda fazia as coisas como no

tempo do fascismo. O cidadão comum não

punha lá os pés", diz Emidio Rangel.

A imagem com cores berrantes também

era propositada. Pivôs e apresentadores fo-

ram seleccionados de acordo com determi-

nados parâmetros, como a simetria dos seus

rostos. "Foram feitas máscaras de gesso com

as suas caras para se estudar cortes de cabe-

lo, expressões, etc", conta à SÁBADO Emí-

dio Rangel. Também fizeram cortes e trata-

mentos de cabelo e estavam proibidos de

usar a própria roupa no ecrã.

Ao fim da tarde, houve um novo alvoroço

na redacção, por causa de um telex da Agên-

cia Lusa. "Dizia que o lançamento da SIC ti-

nha sido noticiado na China. Fizemos umafesta! Ainda o tenho guardado aqui numa

gaveta", conta Miguel Monteiro, então coor-

denador da Informação da SIC.

M A escolha de José Alberto Carvalho para

pivô do Jornal da Noite foi decidida muito

cedo."Lembro- me de um encontro ainda no

inicio de Abril desse ano. Estávamos a tomar

um café, houve um momento em que o Zé

Alberto saiu e o Rangel me disse ao ouvido:

'Podem escrever os nomes que quiserem,

quem vai apresentaroprincipal jornal da SIC

é o Zé'", conta à SÁBADO Miguel Monteiro.

Na altura, havia muita especulação na

imprensa sobre o assunto. Falava-se em

Rangel insistiu em José AlbertoCarvalho para pivô. Diz queBalsemão queria Sousa Tavares

Miguel Sousa Tavares e em José Rodriguesdos Santos. Rangel admite que teve algumas

guerras internas por causa desta escolha:

"Balsemão achava que o pivô da SIC devia

ser o Miguel e eu achei que não. "

O jornal da Noite foi o primeiro progra-ma em directo da estação. Era, por isso, o

momento mais aguardado. "Eu estava numestado de profunda tensão, embora tentas-

se disfarçar. Era uma espécie de prova dos

nove", recorda José Alberto Car-

valho. Tudo estava a ser estrea-

do. "Acho que o cenário do Jor-

nal da Noite foi acabado no pró-

prio dia. Ainda faltava pintar a

mesa, ou algo importantíssimo",diz Miguel Monteiro.

Quando o noticiário arrancou, os jorna-listas reuniram- se atrás do vidro - que se-

parava a redacção do estúdio. Acabou por se

tornar um ritual. "Era sagrado: a redacção

parava para ver o Zé Alberto. 0 realizador

passava o tempo a dizer-nos pelo interco-

municador para sairmos dali, que não fazía-

mos parte do cenário", recorda o jornalistaAntónio Cancela.

Rodrigo Guedes de Carvalho fez uma das

reportagens mais memoráveis da noite:

uma entrevista com Diego Maradona, na

altura uma das maiores estrelas do futebol

mundial. Foi a Sevilha com a indicação de

que a produção da SIC lhe tinha assegura-do uns minutos de conversa - que armai

Conceição Lino, com Júlia Pinheiro e Nuno

Santos, os apresentadores do Praça Pública

A redacção assistiu atentamente ao

primeiro bloco noticioso, com Alberta

Marques Fernandes; Pinto Balsemão

esteve sempre na redacção

não se confirmaram. A entrevista só foi con-

seguida com muita persistência: jornalis-ta e repórter de imagem esperaram das 22h

às 4h no hotel onde o futebolista ficou hos-

pedado. Sem garantias de que ele falasse.

Ao fim desse tempo, Maradona apareceucom um charuto entre os dentes e conce-

deu-lhes 30 minutos. "Comecei a explicar,

atrapalhado, quem éramos e ele interrom-

peu-me: 'Eu não te conheço?' Em 1989,

quando esteve em Lisboa a jogar contra o

Sporting, entrevistei-o e lembrava-se de

mim", conta o jornalista incrédulo. Rodri-

go Guedes de Carvalho ficou com tanto ma-terial que, no próprio dia da emissão, ainda

estava a montar a peça.Quando o jornal acabou, tanto os repórte-

res de imagem no estúdio como os coorde-

nadores na régie estavam emocionados. "En-

traram várias pessoas para dentro do estú-

dio, o Balsemão, o Rangel, e ficámos ali

abraçados a chorar", lembra José Alberto Car-

valho. Mais interno ainda foi o momento quese seguiu: quando saiu dessa sala, o pivô foi

recebido pela redacção em peso. Pegou numvaso com flores que havia ali perto e ergueu--0 como se fosse um trofeu. "Foi o descontro-

lo total", recorda.

Três horas depois, a emoção repetir-se-iauma última vez com o jornal apresentado

pelo Paulo Nogueira. Encerrou com uma re-

portagem sobre o alargamento do metro.

¦I A emissão terminou como abriu, com o

hino. Parte da equipa foi festejar para a 24 de

Julho; outros preferiram o Bairro Alto. Alberta

Marques Fernandes optou por um jantar tar-

dio no restaurante Snob, com o namorado da

altura. "Ofereceu-me umrelógio Gucci que eu

andava a cobiçar há muito tempo", conta. •