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Os Jiadistas Portugueses A história de quem luta no Estado Islâmico Hugo Franco e Raquel Moleiro

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Os Jiadistas PortuguesesA história de quem luta no Estado Islâmico

Hugo Franco e Raquel Moleiro

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1.

Os irmãos de Massamá

Abu Zakaria Andalus. No início da investigação, tudo o que tínha-

mos era este nome: três palavras inesperadas, aparentemente estrangeiras,

certamente árabes. Seria um dos doze a vinte mujahidin2 portugueses a

combater na Síria, referenciado aquando da passagem pela fronteira da

Turquia, a porta de entrada no conflito. Em abril de 2014, ainda sem a

mente treinada para descobrir jiadistas nacionais, a pista soou-nos a des-

consolo, a beco sem saída. Com uma identidade destas, talvez fosse um

portador de passaporte falso ou um imigrante que pediu a nacionalidade

para ter livre-trânsito europeu. Só o apelido trazia alguma esperança.

O tempo e o cruzamento de fontes vieram a tirar-nos toda a razão.

O nome estranho não era mais do que uma criação livre do seu porta-

dor, um epíteto de guerra ou kounia (em árabe), batismo mais consen-

tâneo com o Islão que abraçara na sua versão mais radical.

2. Mujahidin (também transliterado como mujahedin ou mujahideen ), significa, no sentido religioso, aqueles que combatem ou se empenham na luta (jihad ), em nome de Alá.

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Todos os convertidos mudam de nome, rejeitam a identidade cristã.

Abu tinha renegado ao Edgar Rodrigues da Costa, o rapaz que nas-

ceu em Lisboa em 1983, cresceu na linha de Sintra, em Massamá, que

se fez gestor no Porto, que emigrou para Londres. Aí nasceu o Abu.

Das origens manteve o Andalus, a remeter para quando Portugal era

ainda parte de um enorme califado árabe. É a sua marca lusa e o ape-

lido (com variações de grafia3) de quase todos os portugueses da Jihad.

A partir da sua página do Facebook, cruzando, um a um, amigos e

likes, seguidos e seguidores, fontes oficiais e anónimas, chegámos deva-

garinho a cada um dos cinco elementos da célula jiadista de Londres.

Edgar, Celso, Fábio, Nero e Sandro formam o quinteto que se conhe-

ceu, juntou, converteu e radicalizou nos arredores da capital britânica,

no bairro de Leyton, que organizou uma rede de recrutamento de ingle-

ses para a Síria através de Portugal e que, por fim, foi também lutar

nas fileiras do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL)4. Além

da religião e da opção de vida, Edgar e Celso partilham pai e mãe. São

irmãos de armas e de sangue.

:::::

Sexta-feira, 4 de abril de 2014. Nesse dia, já à tarde, por portas escon-

didas e travessas paralelas, conseguimos a morada da família Rodrigues

da Costa. Duas linhas de coordenadas que pareciam queimar as mãos.

Esperar por segunda-feira não era sequer opção. Meia hora depois, par-

tiam da redação do Expresso dois jornalistas e um fotógrafo. O GPS a

levar-nos na direção da casa do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho,

cada vez mais perto, e poucos metros antes de lá chegar, já com a porta

à vista, uma viragem à esquerda a afastar a ameaça da governação.

As coordenadas apontavam para um prédio de nove andares, numa

praceta de prédios altos, sossegada, sem vida que não a fechada nos

3. Andalusi, Andaluzi, Andalus, Andalussi.4. Nome por que era conhecido, em 2013, o atual Estado Islâmico. Também referido como ISIS ou ISIL, do inglês “Islamic State of Iraq and al-Sham” ou “Islamic State of Iraq and the Levant”; ou ainda Daesh ou Da'ish, acrónimo do nome árabe “ad-Dawlah al-Islamiyah fi al-Iraq wash-Sham”.

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apartamentos todos iguais. Só lá entra quem lá mora. A porta da rua

abre-se ainda antes de tocarmos à campainha. Um vizinho que regressa

do trabalho dá passagem e acesso ao nono piso. São os pais de Edgar e

de Celso que abrem a porta de casa, um casal entre o tímido e o descon-

fiado. Não passámos da soleira. À pergunta se sabem dos filhos, eles:

– Foram trabalhar para fora, para muito longe. Dizem que no sítio

onde estão têm pouca rede e por isso raramente telefonam. Um deles

disse-nos ter estado em Marrocos recentemente.

À pergunta se alguma vez falaram da Síria ou do Iraque nessas

conversas, eles:

– Não, nunca. Não.

Sem percebermos se estavam, ou não, a dizer a verdade, optámos

por nada revelar. Não seria por nós que saberiam que os filhos eram

guerrilheiros num dos mais radicais e perigosos exércitos do mundo.

Oriundos de Angola, da província de Benguela, os pais tinham

vindo para Portugal após o 25 de Abril. A mãe trabalhou na Força

Aérea portuguesa até há poucos anos. Os seus cinco filhos nasceram

todos em Portugal. Além de Edgar e Celso, havia um terceiro que tam-

bém emigrara para Londres, onde continuava a viver. Este era o único

com quem falavam regularmente e, pelos comentários que deixava nas

páginas de Facebook dos irmãos, sabia perfeitamente onde se encon-

travam e o que faziam lá.

Muito pouco do que foi dito à porta daquele nono andar foi publi-

cado. A fotografia tirada à praceta nunca saiu sequer no jornal. Só meses

mais tarde soubemos que tínhamos estado num dos apartamentos de

retaguarda da rede de recrutamento de radicais ingleses para a Síria,

gerida e financiada pelo grupo de Leyton. Há muito tempo que a praceta

era alvo de vigilância da Polícia Judiciária e do serviço de informações.

Entre meados de 2012 e finais de 2013, pelo menos dez jiadistas

britânicos passaram por três casas de recuo nos arredores de Lisboa,

todas na linha de Sintra: a de Massamá, uma em Monte Abraão e outra

em Mem Martins, os locais onde cresceram, respetivamente, os irmãos

Rodrigues da Costa, Sandro Monteiro e Fábio Poças. Aqui permane-

ceram escondidos durante vários dias, talvez semanas, até ser seguro

viajarem para a Turquia.

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Edgar e Celso iam buscá-los, um a um, ao Aeroporto Internacio-

nal de Lisboa e conduziam-nos diretamente para ali. Durante a esta-

dia nunca ficavam desacompanhados. No dia da partida, levavam-nos

pessoalmente à Portela para apanharem o voo direto para Istambul.

Só abandonavam o aeroporto quando o avião levantava voo.

A rota para a Síria, via Lisboa, dava menos nas vistas, numa altura

em que as autoridades inglesas estavam já em alerta máximo nas par-

tidas dos aeroportos de Londres. O que eles não sabiam é que, em

Portugal, cada movimento estava a ser monitorizado pelas autorida-

des portuguesas.

:::::

Uma semana depois de termos visitado o apartamento dos irmãos

Rodrigues da Costa, os media ingleses descobriram um vídeo no You-

Tube onde um jiadista, de cara tapada com um passa-montanhas preto,

falava sobre a Guerra Santa. Em inglês, mas com sotaque estrangeiro,

o guerrilheiro, com uma AK-47 na mão, dirigia-se aos “irmãos de todo

o mundo” e apelava a que se juntassem a ele, na Síria, que colocassem

as suas “capacidades e qualidades” ao serviço da luta contra “o inimigo

de Alá”:

– Se não puderes lutar, deves vir na mesma, porque podes ajudar a

tratar dos feridos, podes dar conselhos, podes ajudar financeiramente

e assim participar na Jihad.

E continuava, ao longo de oito minutos:

– Nos países infiéis (kaffir), o mais provável é que não tenhas con-

trolo sobre as tuas crianças. Tens de colocar as tuas crianças em esco-

las de infiéis. Quem é que vai ensinar as tuas crianças? O professor será

provavelmente gay, ou talvez traficante de droga ou mesmo pedófilo.

É muito importante que protejas as tuas crianças desses animais, des-

sas pessoas sujas. Alá diz que são as piores criaturas da Terra. E tu

preferes viver no meio dessas criaturas do que no meio dos mujahidin?

Era um discurso de propaganda semelhante ao de tantos outros

jiadistas e com os mesmos lugares-comuns. Só que desta vez, o orador,

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Abu Issa Al-Andaluzi de seu nome, deixou algumas pistas sobre si. E o

que revelou tornou o vídeo viral na Internet: antigo futebolista, jogador

do Arsenal, de Londres, ex-colega de Cristiano Ronaldo, deixara o fute-

bol, o dinheiro e o modo de vida europeu para fazer o caminho de Alá.

Nos dias seguintes, muito se especulou sobre a sua identidade. Alguns

meios de comunicação garantiam tratar-se do futebolista francês Las-

sana Diarra, francês com ascendência maliana que alinhou nos ‘Gun-

ners’ – que desmentiu prontamente os boatos. Os serviços de informação

ingleses analisaram o sotaque de Abu Issa e concluíram que se tratava

de um português (e basta ouvir a gravação para não restarem dúvidas).

Pela primeira vez, era feita uma referência mundial à participação

de um cidadão luso na Jihad. Para nós, era a confirmação de que está-

vamos no caminho certo, de que era real a presença de portugueses na

Síria, tal como o Ministério da Administração Interna revelara a 28

de março no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI). Também

o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) dissera ao

Expresso que se encontravam “referenciados alguns cidadãos nacionais

que integram esses grupos de combatentes” – que apoiavam a causa jia-

dista na Síria. Este era o primeiro rosto.

Menos de duas semanas depois da publicação do vídeo, o MI55

revelava ao jornal The Guardian a verdadeira identidade de Abu Issa Al-

-Andaluzi. Através de programas de reconhecimento facial, o serviço

de informações britânico identificou o jiadista português como sendo

Celso Rodrigues da Costa, o irmão de Edgar (ou Abu Zakaria Anda-

lus). O jovem de Massamá, nascido em Lisboa em 1986, tornara-se

uma estrela global.

:::::

Não foi a primeira vez que Celso deu nas vistas. Muitos anos antes

de haver sequer YouTube, na década de 1990, ele e o irmão mais velho,

Edgar, foram estrelas – não globais, mas locais – de breakdance e de

5. Abreviatura de Military Intelligence, section 5, o Serviço de Informações da Grã-Bretanha.

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hip-hop. Nome artístico: Crevitaz e Krebaz. Teriam entre 11 e 16 anos,

quando formaram o grupo de dança Elite, de que também faziam parte os

outros dois irmãos. “Levavam o break muito a sério”, lembra um amigo que

os acompanhou de perto, e que se mantém no meio artístico. Chegaram a

atuar, ao vivo, no Instituto Português de Juventude e no Centro Comer-

cial de Massamá. Mas o ponto alto da 'carreira' seria alcançado quando

foram convidados para dançar num programa matinal de entretenimento

num dos canais de televisão nacionais. “Arrasaram”, conta o amigo.

Ao contrário de Edgar e Celso, que acabariam por abandonar a via

artística, os outros dois irmãos continuam a gravar discos e videoclips, que podem ser vistos no YouTube e descarregados na Internet. Um,

em Londres, produz música de dança e colabora com outros artistas

portugueses; o outro, nos subúrbios de Lisboa, grava temas de hip-hop.

Nenhum se encontra na elite da indústria discográfica.

Conciliavam a música com o futebol, área em que também se des-

tacaram, sem nunca terem chegado a um clube grande. Edgar e Celso

foram atletas amadores do Atlético do Cacém, nas camadas jovens. Mas

não eram os mais dotados da família. “Havia um outro irmão [o que

vive em Londres] que era o melhor dos três. Chegou a jogar em clubes

da primeira e segunda liga nacionais”, lembra um dirigente do clube da

linha de Sintra.

Enquanto viveram em Massamá, os dias eram passados com amigos

e namoradas na Escola Secundária Stuart Carvalhais, situada a poucos

quarteirões de casa, nos jogos de futebol e no breakdance.

Ao contrário de Celso, Edgar era um aluno aplicado. Acabou o liceu

e foi para a universidade no Porto, onde se licenciou em Gestão e Con-

tabilidade. Em meados de 2000 decidiu prosseguir os estudos em Ingla-

terra, na Universidade de East London. Foi morar para Leyton, uma

zona de rendas baixas, suficientemente próxima do centro da capital e

onde reside uma crescente comunidade de portugueses, alguns recém-

-convertidos ao Islão. Edgar juntou-se a esse grupo, começou a frequen-

tar a mesquita de Forest Gate e, pouco tempo depois, tinha escolhido

o seu caminho: o Islão, na sua faceta radical.

Foi um dos primeiros jiadistas portugueses a viajar de Londres para

a Síria, em 2012. Cerebral, inteligente e pouco dado a protagonismos,

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nunca colocou fotos suas nas redes sociais. Na sua página do Facebook,

a foto de perfil é um tigre. Desde 8 de março de 2014 que a cronologia

não é atualizada. Nunca teve, aliás, muito movimento. Só as frases, em

inglês, denunciam o credo do seu proprietário:

“A guerra é um familiar cruel, mas um professor eficiente...!!!”

“Kaffir [o infiel] lutará por razões que não compreende e pelas cau-

sas em que não acredita, e morrerá por nada...!!!”

“Do cocktail para a sharia6 Alhamdullilah7”

Ainda durante a sua permanência na capital britânica, Edgar pas-

sou de recrutado a recrutador, tentando aliciar muçulmanos para a

causa, através do Facebook. Escolhia as vítimas, sempre jovens, rapa-

zes e raparigas, em grupos nacionais de muçulmanos. Iniciava as con-

versas sempre da mesma forma: “Como vai o teu Islão?”

Um português de 20 anos mordeu o isco. “Ele disse-me que tinha

um grupo em Londres e perguntou-me se eu queria tirar um curso sobre

o Islão em Marrocos ou na Mauritânia. Depois poderia ir para um país

como a Síria”, lembra. Alarmado, colocou um alerta no mesmo fórum.

Edgar acabou por desaparecer. A sua missão mudara: de recrutador virara

guerrilheiro. No fim de 2012 viajou de avião de Londres para Lisboa,

de Lisboa para a Turquia, e depois percorreu a pé e de carro o caminho

até ao norte da Síria. Aí alistou-se no Estado Islâmico do Iraque e do

Levante. Ainda lá está, com o nome de guerra Abu Zakaria Andalus.

:::::

Depois de Edgar, foi a vez de Celso rumar a Londres, também para

estudar e trabalhar. Inscreveram-se ambos na mesma universidade,

em Stratford, perto de Leyton, mas acabariam por ser expulsos por

faltarem às aulas. Celso continuou a seguir os passos do irmão mais

velho: converteu-se ao islamismo e deu o mesmo salto na radicalização.

Os amigos de juventude, e também os que fez na capital britânica, con-

cordam que o jovem tinha um perfil apetecível aos olhos dos recrutadores.

6. Lei islâmica, que regula a vida pública e privada da sociedade onde é aplicada.7. Expressão árabe, que significa 'Graças a Deus'.

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O seu feitio carismático e expansivo faria dele um angariador nato

de guerrilheiros para a Síria e para o Iraque. “Em minutos agregava

um grupo à volta dele, com a sua conversa fácil e alegre”, lembra um

amigo. “Era um jovem engraçado e tinha um grande poder de per-

suasão sobre outros jovens mentalmente não muito fortes”, adianta

outro. E assim foi.

Celso era o rapaz cool, sem regras, amante da noite, do breakdance

e de raparigas bonitas. Gostava de ser diferente, de se destacar, de ser

o centro as atenções. “Quando me contou que se ia converter ao Islão,

achei que era mais uma das suas brincadeiras. E quando percebi que

era a sério até fiquei contente. Talvez o ajudasse a encontrar o caminho

certo, pois ele estava com alguma dificuldade em encontrar-se. Mas foi

totalmente ‘brainwashed ’8. Aos poucos ficou mais e mais fanático. Foi

assustador. Vêm-me as lágrimas aos olhos quando penso nele, porque

sei exatamente o fim que o espera. É um choque assistir a uma trans-

formação destas”, conta um amigo da linha de Sintra.

Um colega dele em Londres lembra-se de o ter perdido de vista

durante vários meses e em 2010 cruzar-se com ele na rua. “Ia acompa-

nhado por uma jovem muçulmana tapada da cabeça aos pés. Aquilo era

tão esquisito para mim que fiquei pouco à vontade. Ela nem me cum-

primentou”, recorda. Em 2013, Celso partia para a Síria, e com ele foi

a mulher que o niqab cobria.

Na Síria, na região de Aleppo, Celso (Abu Issa Al-Andaluzi) come-

çou por combater ao lado de Fábio (Abdurahman al Andalus), outro

português da linha de Sintra, numa brigada só de estrangeiros – a Jaish

al-Muhajireen wal-Ansar, ou Exército dos Emigrantes – comandada

por Omar Shishani, um dos principais comandantes (emir) do Estado

Islâmico, de nacionalidade chechena, conhecido pelas suas longas bar-

bas ruivas. No Twitter foi publicada uma sequência de três fotografias

que prova a parceria no campo de batalha: Celso aparece, sempre de

cara tapada, ao lado de Fábio e também de Abu Talha al-Almani, o ex-

-rapper alemão Deso Dogg que se tornou um 'cover-boy' do Estado Islâ-

mico e um dos principais responsáveis pela sua propaganda.

8. Sujeito a uma lavagem cerebral.

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Celso voltaria a aparecer, mais uma vez de cara tapada, num outro

vídeo colocado no YouTube em meados de 2014. As imagens tiveram

mais de 60 mil visualizações, mas ficaram a léguas da popularidade do

vídeo de propaganda em que se refere ao Arsenal e a Cristiano Ronaldo.

Estava acompanhado de Fábio e de Abu Dayyan, um mujahid9 de ori-

gem malaia. Os três filmaram-se junto ao rio Eufrates, durante uma

pausa dos combates.

Na primeira parte do vídeo, captado com uma câmara de fraca reso-

lução, o grupo encontrava-se sentado na areia, ao sol. “É difícil encon-

trar um sítio melhor do que este. Tem boas casas, bom peixe, boa carne.

Temos uma mesquita perto. Temos tudo. E, além disso, temos Alá, que

é o melhor de tudo”, diz o narrador. Seguem-se os lugares-comuns da

“beleza da Guerra Santa”, ou não fosse aquele um vídeo feito para cap-

tar mais jovens muçulmanos para a Jihad.

A meio, a imagem salta abruptamente. Estamos agora a bordo

de uma pequena embarcação a remos, a navegar sobre o Eufrates.

O vídeo, ainda disponível no YouTube, tem pouco valor informativo,

mas permite perceber um pouco do dia a dia dos jiadistas fora da frente

de guerra.

Oficialmente nunca foi possível perceber a importância dada pelos

serviços de informação aos irmãos Rodrigues da Costa na estrutura do

Estado Islâmico. Mas durante o ano de 2014, o cerco das autoridades

europeias apertou-se em torno da família e amigos de Edgar e de Celso.

Um primo foi barrado no aeroporto de Heathrow, em Londres, quando

chegava de Lisboa: “Durante horas perguntaram-me tudo sobre eles:

como foram, porquê, com que meios. Mas não lhes disse nada”, recorda.

Outro foi interrogado pelo MI5 pelas mesmas razões.

O interesse dos serviços britânicos pelos dois portugueses prende-

-se com as relações próximas que terão tido em Londres com jiadistas

ingleses, nomeadamente com o carrasco encapuçado do Estado Islâ-

mico, o britânico a que os media chamam Jihadi John, suspeito da deca-

pitação de sete reféns estrangeiros10 – os jornalistas James Foley, Steven

9. Guerrilheiro, singular de mujahidin.10. Dados de fevereiro de 2015.

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Sotloff e Kenji Goto, os voluntários David Haines, Peter Kassig e Alan

Henning e o japonês Haruna Yukawa.

Na capital do Reino Unido, os irmãos e os restantes elementos da

célula de Leyton angariavam os candidatos a mujahidin nos meios islâ-

micos que frequentavam, de preferência convertidos como eles e segui-

dores da versão mais radical do Islão. Depois partiam para Lisboa,

onde recebiam os futuros jiadistas em trânsito em casas de retaguarda.

Davam-lhes comida, roupa lavada, financiavam a estadia e asseguravam-

-se de que embarcavam, sem problemas, rumo a Istambul, na Turquia.

Muitos destes britânicos eram ex-companheiros das mesquitas de

East London, mas também dos jogos de futebol ou amantes do hip--hop underground londrino, como os portugueses. Terão sido o fute-

bol e a música que os aproximaram e a religião que os uniu? Esse elo

pode ser a razão pela qual o grupo de Leyton pertence ao círculo de

confiança da equipa que produz e realiza os vídeos das decapitações do

Estado Islâmico, dos mais violentos alguma vez feitos por uma orga-

nização terrorista.