Humanidades e Tecnologias

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    Revista IDeAS, v. 5, n. 2, p. 89- 117, 2012.

    Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

    Entre nativos e exticos: a mestiagem na construo deuma nova identidade na caprinovinocultura dos sertes

    Oswaldo Gonalves Junior1

    Resumo

    Na caprinovinocultura do Semirido, dinmicas entre criadores de caprinos e

    ovinos, nativos e exticos, trazem consigo uma srie de significados. Para alm

    de disputas comerciais propriamente ditas, embates se travam no plano das

    ideias, revelando diferentes valores e interesses em torno da origem racial desses

    animais. Entre esses dois segmentos situam-se a maior parte dos sertanejos e a

    tradicional caprinovinocultura do Semirido, baseada na utilizao de animais

    sem raa definida (SRD), surgidos da dinmica de cruzamentos espontneos,

    prprios de criaes extensivas caracterizadas pelo menor controle sobre osrebanhos, estado que revela um acentuado contraste em relao aos dois

    primeiros segmentos. Tendo em vista que uma influncia deles sobre as criaes

    sertanejas pode acarretar uma melhora da produo dos agricultores

    familiares, diferentes atores sociais ligados ao setor da pesquisa e da extenso

    rural tm voltado seus esforos para a construo de possveis arranjos que se

    mostrem favorveis reverso de problemas histricos daquela regio, com

    destaque para a utilizao da mestiagem animal como estratgia para

    mudanas. Este artigo foca a atuao desses atores, as formas de interao entre

    eles, o papel que cumprem as ideias, valores e mentalidades em face das

    possibilidades para a caprinovinocultura daquela regio.

    Palavras-chave: caprinovinocultura; Semirido; agricultura familiar.

    1 Doutor em Administrao Pblica e Governo (EAESP-FGV), ProfessorAssistente Doutor junto ao Departamento de Administrao Pblica(FCLAR/UNESP). E-mail: [email protected].

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    Abstract

    In the Northeastern Semiarid of Brazil, dynamic among creators of goats and

    sheep native and exotic bring a range of meanings. In addition to actual trade

    disputes, conflicts are waged in the realm of ideas, revealing different values

    and interests around the racial origin of these animals. Between these two

    segments lies most of the small farmers and the traditional Semiarid sheep and

    goat raising, based on the use of animals breed, arising from the dynamics of

    spontaneous crossings, own extensive creations characterized by reduced control

    over the herds, state which shows a marked contrast to the first two segments.

    Given that their influence on a traditional creations can result in improved

    production of small farmers, linked to different social sector research and

    extension have turned their efforts to construct possible arrangements that are

    satisfactory to the reversal of historical problemsof the region, especially the useof animal miscegenation as a strategy for change. It focuses on the work of these

    actors, the forms of interaction between them, fulfill the role that ideas, values

    and attitudes in the face of the possibilities for sheep and goat raising that

    region.

    Keywords: Sheep and goat raising; Semiarid; small farmers.

    Introduo

    Os embates, tenses e acomodaes entre o de dentro e o de fora, onativo e o extico, so partes integrantes do processo de constituio danao, acompanhando desde as origens a formao do Brasil. A condiode territrio colonizado imps desde cedo essa dicotomia, acompanhadade outra: o duplo sentido do fluxo para fora e para dentro. Assim, onativo e o extico, como tambm os movimentos de exportao eimportao, formam quatro vertentes que marcam nossa histria, acomear pela razo maior do empreendimento colonizador: o comrcioultramarino e o vai e vem de mercadorias, aquilo que Caio Prado Junioridentifica como o verdadeiro sentido da colonizao tropical (PRADOJUNIOR, 1994, p. 31), cuja espinha dorsal uma vasta empresa

    comercial, com todas suas implicaes para a sociedade em formao.Focando aquele que ser durante muito tempo o mais importante dospilares entre as atividades econmicas ao longo de sculos, o setoragrcola, este ser fortemente influenciado por culturas exticas

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    voltadas exportao e que implicaro uma srie de significados e

    desdobramentos para os rumos da nao. Como no poderia deixar deser, eles se fazem presentes de diferentes maneiras, seja em seusreflexos sociais, seja na economia de fato.

    A dependncia poltica da metrpole durante os trs primeiros sculosfez do pas um fornecedor de insumos agrcolas e minerais para o grandecomrcio internacional, e receptor de tudo aquilo que por aqui eraproibido de se produzir e que fugisse de sua condio de fonte dematrias-primas. Para os demais produtos, o caminho permitido era aimportao, sobretudo de bens de consumo manufaturados ouindustrializados. Nesse contexto, culturas exticas como a da cana-de-

    acar passaram a ocupar um espao central na vida da colnia, aoredor da qual se moldou toda uma sociedade to bem retratada porautores como Gilberto Freyre.

    Ser somente na virada do sculo XIX para o XX, a partir dosdesdobramentos proporcionados pela lavoura do caf, uma culturaigualmente extica e voltada exportao, que se romper efetivamentea exclusividade do modelo agrrio-exportador, iniciando-se umindubitvel processo de industrializao e de produo em massa debens de consumo destinados ao mercado interno. O aprofundamentodesse processo se mostrar irreversvel, culminando nas dcadasseguintes com a formao de uma indstria nacional de base.

    Os matizes na representao do interesse nacional num contextointernacional de crescente abertura econmica, no obstante, manterpresente um vasto campo para disputas entre o de dentro e o de fora.No por acaso, o Estado brasileiro se valer de medidas protecionistasque visaro preservar determinados setores em face da concorrnciainternacional.

    Em outros casos, no entanto, seja pela peculiaridade de um determinadosetor, seja pela menor ateno dispensada pela interveno de Estado,outros atores assumiro maior protagonismo em processos de disputascaracterizados por uma srie de enredamentos sociais. Estud-lospermite descortinar relaes e aspectos outros, tais como a influncia dacultura e de valores sociais nos fenmenos econmicos, muitas vezestambm no contemplados em explicaes centradas nos mercadosconcorrenciais.

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    Tendo como pano de fundo este quadro geral, o foco de ateno deste

    artigo recai sobre o setor da agropecuria que se desenvolve desde osculo XVI no Nordeste, mais especificamente sobre o segmento dacaprinovinocultura, cujas dinmicas entre criadores de caprinos eovinos, nativos e exticos, trazem consigo uma srie de significados.Entre eles, para alm das disputas comerciais propriamente ditas, umaanlise mais minuciosa mostra embates que se travam no plano dasideias, revelando diferentes valores e interesses em torno da origemracial desses animais. De um lado, um segmento de criadores procuravalorizar um patrimnio gentico construdo em solo nacional ao longode cinco sculos e representado pelas chamadas raas nativas. De outro,um segmento estruturado em torno de matrizes importadas movimenta

    um mercado gentico de animais exticos caros e na maior parte dasvezes acessveis apenas a uma elite de criadores.

    Mas fato que caprinos e ovinos se disseminaram amplamente peloterritrio nordestino desde sua introduo pelos colonizadoresportugueses a partir do sculo XVI (ANDRADE, 1998). Da que, entreesses dois mundos, situam-se a maior parte dos sertanejos e atradicional caprinovinocultura que se desenrola no Semirido por meioda utilizao de animais sem raa definida (SRD), surgidos da dinmicade cruzamentos espontneos, prprios de criaes extensivascaracterizadas pelo menor controle sobre os rebanhos. Assim, esse

    terceiro grupo contribui em peso para que o Nordeste seja a regio queconcentra mais de 90% dos caprinos e quase 60% dos ovinos do pas, oque corresponde, respectivamente, a mais de 9 milhes e mais de 8milhes de cabeas, segundo dados estruturais do Censo Agropecurio2006 (IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica).

    Ainda que esses nmeros possam impressionar, uma constatao temocupado a ateno de especialistas do setor: a baixa produtividade dacaprinovinocultura nacional. Um dos fatores mencionados para oproblema refere-se a um diagnstico que aponta a piora gentica sofridapelos animais sem raa definida que, como dito, representam o grosso do

    rebanho nacional. A razo desse estado se encontra nos cruzamentosaleatrios entre animais ao longo de sucessivas geraes, aspecto que seliga forma tradicional de manejo sertanejo, extensivo e de baixatecnificao nas criaes.

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    E esse estado revela um acentuado contraste em relao ao perfil que

    caracteriza os dois primeiros segmentos, sendo os animais nativos eexticos fontes potenciais para inspirar novos parmetros de manejo epara que rebanhos sem raa definida possam alcanar novos padrespor meio de cruzamentos que ocasionem um aprimoramento racial. Coma incorporao de novas tcnicas de manejo e com um processo demestiagem controlada, portanto, essas criaes podem se tornar maisprodutivas. Dessa forma, em ltima instncia, uma influncia destesdois segmentos sobre as criaes sertanejas pode acarretar umamelhoria da produo dos agricultores familiares, aspecto desafiador emse tratando de um desenvolvimento mais equilibrado para o Semirido.

    Mas cumprir com essa possibilidade requer um equacionamento queenvolve relaes entre grupos distintos e uma srie de interesses edilemas que se estendem para alm daquilo que poderia ser entendidoapenas como uma questo de mercado. O contexto em que se do essesprocessos marcado pelas limitaes climticas, o que impe grandesdesafios para a expressiva parcela de pequenos proprietrios ruraisdependentes da agropecuria. Diante desse quadro, diferentes atoressociais ligados ao setor da pesquisa e da extenso rural tm voltado seusesforos para a construo de possveis arranjos que se mostremfavorveis reverso de problemas histricos daquela regio.

    Para melhor compreenso deste quadro, o presente artigo prope umolhar sobre a atuao desses diferentes atores, as formas de interaoentre eles, o papel que cumprem as ideias, valores e mentalidades emface das possibilidades para a caprinovinocultura daquela regio.Entende-se que esses so passos fundamentais para um aprimoramentodo desenho de polticas pblicas para o setor: apropriar-se dos principaiselementos em jogo da problemtica em foco, que condensa uma srie deaspectos relevantes que nos acompanham enquanto nao desde temposremotos, com destaque para as tenses entre o nativo e o extico. sobre isso que pretende tratar este artigo.

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    Dinmicas territoriais e o meio analisado

    Ao longo do sculo XX, profundas transformaes marcaro a sociedadebrasileira, na medida em que o pas vai deixando de ter a base de suaeconomia quase que exclusivamente agrria. Um trao marcante ser oacentuado processo de urbanizao desencadeado no perodo, com umainverso da porcentagem de populao que ocupa aquilo que, grossomodo, se classifica como o rural e o urbano. Enquanto em 1940 apopulao rural do pas correspondia a cerca de 70% e a urbana 30%, noano 2000 isto se inverte, sendo que aproximadamente 19% passam acorresponder populao rural frente aos mais de 81% de populao

    urbana2.

    Essas caractersticas, com destaque em paralelo para o avano daindustrializao, no devem gerar, no entanto, qualquer mal-entendido,j que as atividades agrcolas nunca deixaram de ter relevncia para aeconomia do pas. Prova disso seu retorno cena principal nessasltimas dcadas, sendo exemplos a crescente importncia do Brasil nocenrio mundial como fornecedor de produtos in natura e commoditiescomo a soja e o etanol, ou ainda como um dos maiores fornecedores decarne bovina no mercado internacional. Paralelamente a esse perfilagroexportador, tambm o segmento da agricultura familiar, fornecedor

    de boa parte daquilo que se consome internamente, vem se consolidandonos ltimos anos, tanto por sua legitimidade social quanto pelarelevncia econmica3.

    2 IBGE, Censo demogrfico 1940-2000. Dados extrados de: Estatsticas dosculo XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.3De acordo com o Censo Agropecurio de 2006 (IBGE), a agricultura familiar a principal responsvel pelo fornecimento dos alimentos bsicos populaobrasileira, tendo destaque com a produo de 70% do feijo, 58% do leite, 87%da mandioca, 50% das aves e 59% dos sunos consumidos, entre outrosprodutos. Ocupando 12,3 milhes de pessoas ou 75% da mo de obra do campo,

    em termos de valores brutos de produo, em 2006, a agricultura familiarrespondeu por R$ 54 bilhes contra R$ 89 bilhes da agricultura no familiar.Isso significa que houve um aumento da participao relativa da agriculturafamiliar no valor bruto da produo, saltando de 38% em 1996 para 40% em2006. Um dado adicional que chama a ateno que os estabelecimentos ruraisfamiliares correspondem a 84,4% do total (4.367.902), ainda que ocupem

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    No Nordeste, as atividades agrcolas vinculadas ao segmento da

    agricultura familiar tm relevncia destacada. Ainda que a estruturafundiria seja extremamente concentrada, grande o nmero depequenos estabelecimentos ou unidades de produo familiar, comodemonstra o Censo Agropecurio de 2006, elaborado pelo IBGE, queaponta que 50% de todos os estabelecimentos rurais familiares e 35% darea territorial ocupada por eles no pas concentram-se no Nordeste.

    E uma boa parcela dessas pequenas propriedades rurais localiza-se numterritrio em que a prtica das atividades ligadas ao campo torna-se umdesafio em face das limitaes naturais decorrentes das secasperidicas, como o caso do Semirido, rea oficialmente reconhecida4e

    composta por 1.133 municpios dos estados do Piau, Cear, Rio Grandedo Norte, Paraba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte deMinas Gerais, totalizando uma populao de 20.858.264 pessoas5, o quefaz com que a regio seja tida como aquela de clima semirido maispopulosa do mundo, tendo ainda como outra caracterstica a fortepresena de sua fora de trabalho no segmento da agropecuria(GOMES, 2001).

    Historicamente, a ocupao do Semirido se d com a introduo dogado que leva ao deslocamento colonizador em direo aos sertes,processo que contribui decisivamente para alterar a fisionomia dapaisagem em seus traos essenciais (FREYRE, 2004), num momento emque a atividade principal restringia a colonizao orla dos canaviais,voltada para a produo do acar para exportao. Apndiceindispensvel da economia aucareira, com o comrcio do charque, aatividade da pecuria bovina atingiu seu apogeu nos sertes,proporcionando um patamar econmico mpar na histria da regio,

    apenas 24,3% em rea, j que os 15,6% (807.587) de estabelecimentos nofamiliares ocupam 75,7% do espao territorial da agropecuria.4Para mais informaes, ver o trabalho do Ministrio da Integrao NacionalintituladoNova Classificao do Semirido Brasileiro(2005).

    5 Levando-se em conta a delimitao territorial das unidades da federao,salienta-se que a porcentagem de rea semirida varia de estado para estado,sendo aqueles que mais concentram essa caracterstica os estados da Paraba,Cear e Rio Grande do Norte, com aproximadamente 76%, 81% e 88% datotalidade de seus territrios respectivamente sob essa condio, tendo mais de50% de suas populaes vivendo nessas reas.

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    e especialistas dedicados extenso rural vinculados a essas diversas

    organizaes.E esse movimento ascendente se potencializa ainda mais com aesestruturantes como o Programa de Aquisio de Alimentos (PAA), dogoverno federal, poltica pblica que visa incentivar a produo dealimentos pela agricultura familiar, permitindo a compra, a formaode estoques e a distribuio de alimentos para pessoas em situao deinsegurana alimentar9. Dentro do Programa, a modalidade Incentivo Produo e ao Consumo do Leite no uso corrente conhecida comoPrograma do Leite, ou simplesmente PAA Leite destina-se amunicpios do Nordeste e norte de Minas Gerais, abarcando um

    territrio muito prximo quele equivalente ao do Semirido, tendo porobjetivo especfico propiciar o consumo do leite pelas famlias que seencontram em estado de insegurana alimentar e nutricional, bem comoincentivar produo familiar deste alimento. Pelas suascaractersticas, na prtica, o PAA, portanto, conecta a produo daagricultura familiar, incentivando sua produo e comercializaoconjuntamente com o atendimento a populaes em situao de riscoalimentar.

    Esse conjunto de atores e de aes em torno do Programa do Leite colocano centro do debate o desafio da produtividade nas iniciativas que visamcontemplar o segmento dos agricultores familiares. Antes que uniforme,este segmento um mosaico que congrega a grande base de criadores deanimais sem raa definida, tanto aqueles que j aderiram a um novoperfil de criao, quanto aqueles que ainda so considerados potenciaisingressantes na caprinocultura leiteira.

    A anlise desse quadro multifacetado, no qual atuam diversos atoressociais, possibilita revelar uma srie de aspectos fundamentais parauma melhor compreenso dos processos de mudana em curso nacaprinovinocultura do Semirido, uma atividade potencialmentetransformadora do quadro social vivido pela regio, cujo debate emtorno do perfil racial dos animais e das caractersticas de manejo

    central.

    9http://www.fomezero.gov.br/programas-e-acoes/eixo2.htm.

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    Para uma melhor compreenso dessa problemtica at aqui apontada,

    foi realizado um estudo que se enquadra na modalidade de pesquisaqualitativa, utilizando como estratgia estudos de caso10. Por meio depesquisas de campo naquela regio, fez-se uso de diferentes formas deabordagem para levantamento e coleta de informaes, entre elas arealizao de 23 entrevistas semiestruturadas e gravadas em udio comespecialistas (9), gestores pblicos (5), lideranas de associaes decaprinovinocultores (3), criadores e agricultores familiares (6). A seleodos entrevistados se deu pelo processo conhecido em metodologia depesquisa como bola de neve (snowball), a partir da identificao e darealizao de entrevistas com atores-chave, processo que levou subsequente seleo de outros entrevistados. Foram tambm realizadas

    28 entrevistas no estruturadas com pequenos criadores e agricultoresfamiliares, identificados em decorrncia do mesmo processo de seleo,mas cuja dinmica dos contatos estabelecidos no permitiu a realizaode entrevistas semiestruturadas. A delimitao do nmero deentrevistas obedeceu busca pelo equilbrio entre dois fatores: ochamado ponto de saturao, momento no qual o pesquisadoridentifica que se obteve um nvel satisfatrio de informaes,evidenciado pela constatao de aspectos como a recorrncia dasmesmas, em face do surgimento significativo ou no de novasinformaes, combinado com a disponibilidade de recursos para o

    perodo de tempo determinado para execuo dos trabalhos de campo.As pesquisas de campo foram realizadas em duas etapas, nos anos de2008 e 2009. Cada etapa durou um perodo de 30 dias em campo, sendoa coleta de informaes totalmente realizada pelo autor deste artigo,como parte de sua pesquisa de doutoramento. Alm da tcnica deentrevistas e posterior anlise das informaes obtidas por esse meio,

    10Foram realizados trs estudos de caso sobre experincias oriundas do Bancode Dados do Programa Gesto Pblica e Cidadania do Centro de Estudos emAdministrao Pblica e Governo (CEAPG) da Fundao Getlio Vargas de SoPaulo. As experincias estudadas foram:Programa Municipal de Apoio Cadeia Produtiva da Caprinovinocultura Procap, da Gerncia Executiva da

    Agricultura e Recursos Hdricos da Prefeitura de Mossor (RN); Turismo comoAlternativa de Desenvolvimento no Semirido, da Prefeitura Municipal deCabaceiras (PB); e Projeto Tejubode: Mais que uma Festa, uma Ideia deDesenvolvimento, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Rural deTejuuoca (CE).

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    utilizou-se conjuntamente a tcnica de observao, com o registro das

    informaes em cadernos de campo e em meio digital, estando nestaltima categoria os registros fotogrficos. A utilizao dessa tcnica sejustifica por conta do dinamismo dos acontecimentos no cotidiano,marcado por constantes deslocamentos pelo territrio. Foram assimregistrados contatos mais curtos com diferentes atores sociais(sobretudo no caso das visitas a agricultores familiares, tanto emassentamentos rurais quanto em propriedades mais isoladas),observaes em geral, alm de reflexes em torno da pesquisa surgidasno dia a dia. Nessa ltima categoria, merece destaque ainda a visita afeiras agropecurias, com a participao em palestras e seminrios,entre outras atividades constituintes desses eventos. Alm delas, foram

    realizadas visitas a mercados e feiras permanentes destinados comercializao de animais, especialmente caprinos e ovinos; aorganizaes voltadas para pesquisa e extenso rural (com destaquepara Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EmbrapaCaprinos e Ovinos de Sobral CE, alm de algumas unidades do ServioBrasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SEBRAE,presentes nos estados das experincias estudadas); a sedes e reunies deassociaes de pequenos caprinovinocultores; entre outras. Outratcnica utilizada se refere decorrente anlise documental, j que naspesquisas de campo foi possvel coletar e reunir uma significativa gama

    de materiais tais como folders, revistas, reportagens publicadas emdiferentes meios, apostilas, livros, entre outros materiais promocionais ede divulgao de informaes relativas relao entrecaprinovinocultura e agricultura familiar no Semirido. A somatria dasinformaes obtidas e analisadas constitui-se no principal material queembasa o presente artigo.

    Adaptao e tenses entre o nativo e o extico

    Do processo de coleta de informaes, via pesquisas de campo, e de suaposterior anlise e sistematizao, resulta uma primeira constatao: ade que a adaptao um grande tema em se tratando decaprinovinocultura.

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    Isso porque, rigorosamente, todos os caprinos e ovinos so originalmente

    exticos, j que esses animais no existiam por aqui, chegando com oscolonizadores europeus a partir do sculo XVI. Mas as espcies deanimais domesticados trazidas para c foram com o tempo se adaptandos condies locais, sofrendo modificaes com o caminhar dassucessivas geraes, num processo de transformao.

    De um longo perodo de adaptao, resultaram animais rsticos e bemaclimatados s difceis condies do Semirido. Como j apontado, so,grosso modo, animais sem raa definida, sobretudo aqueles quecompem as criaes da maior parte dos sertanejos.

    Mas a distncia gentica com as matrizes europeias levou tambm ao

    surgimento de novas raas. Ou seja, as espcies so exticas, mas asraas surgidas delas so nativas. Quando hoje comparados com oscorrespondentes europeus que lhes deram origem, os animais daschamadas raas nativas de caprinos e ovinos daqui apresentam menorporte, porm uma adaptao incomparvel11.

    Quando analisada, a histria de muitas delas acaba por revelar aspectosinteressantes dos processos de sua introduo e de sua evoluo noterritrio. Em alguns casos, o nome que a raa recebeu est associado aolocal de sua descoberta nos sertes, local esse em que houve ento suaidentificao enquanto animais pertencentes a um novo grupo racial.

    De acordo com informaes da Embrapa Caprinos de Sobral,organizao de referncia do setor da caprinovinocultura nacional, nocaso da raa caprina Moxot, por exemplo, o nome provm do vale do RioMoxot, em Pernambuco, no entantoa raa disseminou-se sendo hojecriada tambm nos estados da Bahia, Cear, Paraba e Piau. No casoda raa de ovino Morada Nova, ainda que sua origem no seja bemconhecida, os primeiros animais foram identificados por volta do final dadcada de 1930, quando ento chamou a ateno a presena de animaisdeslanizados e de pelagem vermelha no municpio de Morada Nova, no

    11 Tanto pelas pesquisas de campo realizadas, quanto pelas informaescolhidas na literatura, em especial aquela produzida pela Embrapa Caprinos deSobral e SEBRAE nacional, de modo genrico, pode-se dizer que as raasnativas mais difundidas so: Moxot, Lambi, Canind, Repartida, Gurgeia,Marota, Grana, Serrana Azul (caprinos), Cariri, Morada Nova, SomalisBrasileira e Santa Ins (ovinos).

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    Cear. Mais tarde, observou-se a presena de animais dessa raa em

    outros municpios do estado e tambm no Piau, prevalecendo o nomedado raa, no entanto, do primeiro lugar onde foi originalmenteidentificada. Esse atrelamento do nome do lugar raa ocorreratambm no caso dos ovinos da raa Cariri, por conta de habitarem aregio semirida dos Cariris paraibanos. Com um processo de formaoum pouco mais conhecido, neste caso esta raa teria surgido em funode uma mutao dominante em indivduos oriundos de rebanhos dasraas Santa Ins e Morada Nova cruzados com animais da raa BarrigaPreta (Black-Belly)12.

    Como se pode perceber, a formao de novas raas um processo

    dinmico, sobre o qual imperam vrios fatores. Paralelamente aadaptao e formao de novas raas, a falta de manejo para seleo dosmelhores indivduos, os cruzamentos aleatrios entre raas e o manejoinexistente ou rstico produziram o tipo mais comum de animais hojedifundidos no Semirido. So animais sem raa definida que, em termosde produtividade econmica, foram sofrendo aquilo que especialistasconsideram um pioramento gentico, apesar de sua boa adaptao egrande resistncia s condies de seca.

    J os animais exticos pertencem a raas13 em geral difundidas porcapris estruturados que se dedicam ao agronegcio e que tm comovitrine leiles e feiras agropecurias. Em relao aos nativos, os exticosso animais que tm um porte maior, podendo produzir carne e leite emvolume superior. No entanto, na ponta do lpis, so muitas vezesmenos rentveis j que exigem um trato (gasto, portanto!) muitas vezessuperior ao que um animal nativo ou sem raa definida necessita. Issoporque inequvoco entre os especialistas da rea que os custos deproduo elevam-se substancialmente com o sistema de criao emconfinamento, sobretudo pela necessidade de suprir os animais comalimentos, ao invs de, por exemplo, deix-los parte do dia soltos paraque eles mesmos possam se alimentar, ao menos parcialmente, da

    12http://www.cnpc.embrapa.br/cnpc24.htm.13Entre as exticas, constatou-se nas pesquisas de campo a maior difuso dasraas de ovinos Dorper (ovino de origem sul-africana) e caprinos das raasAnglo Nubiana (caprino de origem inglesa), Alpina, Parda Alpina e Saanen(espcies caprinas originrias da Sua), Ber (caprino da frica do Sul) eMurciana (caprino originrio da Espanha), entre outras.

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    vegetao existente. Assim, por consumirem rao industrializada,

    exigirem banhos e instalaes mais elaboradas para uma criaointensiva, com certa ironia so chamadas por vezes no mundo dacaprinovinocultura nordestina de cabras e ovelhas de hotel.

    No obstante qualquer sentido pejorativo de que possam ser alvo, sejapela publicidade que as promove, seja pelas qualidades efetivamenteinerentes a elas, fato que as raas exticas exercem uma forteinfluncia, dominando a cena do agroshow da caprinovinoculturanacional.

    J os animais sem raa definida, se no atraem a ateno dos holofotesdo mundo das exposies e leiles agropecurios, tm como mrito sua

    enorme capacidade de disseminao e seu baixo custo, sendo um animalpopular e acessvel, historicamente usado como um suporte alimentardos mais importantes, sobretudo para representativa parcela de pobresna populao sertaneja.

    Quanto s raas nativas, estas apresentam uma peculiaridade nessequadro, j que muitas delas chegaram prximo da extino pelaausncia de manejo adequado, risco decorrente de processos decruzamentos aleatrios que as descaracterizaram ou ainda hojeameaam faz-lo.

    E isso traz uma questo interessante, pois, ainda que bem adaptadas s

    condies do Semirido, as raas nativas exigem formas de manejo quevo alm dos patamares tradicionalmente predominantes no serto, emque impera a frouxido no trato dos animais sem raa definida, que secriam por si mesmos, como costuma-se afirmar na linguagem corrente,em referncia ao fato de que os animais praticamente mantm-se porconta prpria, soltos na Caatinga, buscando seu prprio alimento eabrigo na vegetao.

    Nas palavras de um especialista, essa situao se exprime da seguinteforma:

    [...] por ser [raa] nativa no significa que devemos

    cri-las no abandono; quando bem manejadas eselecionadas so os caprinos mais produtivos domundo devido sua grande prolificidade (poder deproduzir crias em grande quantidade) e rusticidade

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    (baixa mortalidade de crias principalmente), e por

    serem menores podemos criar bem mais animais porhectare; portanto quanto mais cabras mais cabritos14.

    Nesse sentido, a preservao e o desenvolvimento das raas nativaspassam por um novo status que ala esses animais a um patamar dereconhecimento de sua importncia enquanto patrimnio genticonacional a ser valorizado e preservado, impedindo que se percam noesquecimento e no desprestgio na imensido dos sertes. E isso envolveuma questo de fundo que perpassa a caprinovinocultura dos sertes,onde muitas vezes caprinos e ovinos foram, e ainda so, vistos pormuitos de maneira inferiorizada (miunas) em comparao ao gadobovino, cuja criao na regio liga-se historicamente a statussocial. Nocaso em questo, fato que uma relao hierrquica tambm se mostrapresente entre os caprinos e ovinos exticos em detrimento dos nativos.

    Tentativas de reverso desse quadro vm sendo feitas com iniciativas devalorizao dos animais nativos, e mais recentemente vem ganhandomaior visibilidade a organizao de criadores que se dedicamexclusivamente a eles. Um dos mais importantes agrupamentos aquele que se d em torno da Associao de Caprinos e Ovinos Nativosque, em 2008, congregava cerca de 50 produtores dispersos pelo Estadodo Rio Grande do Norte.

    Mas o trabalho com essas raas algo em construo, pois carece aindade melhor estruturao na sistemtica de seleo e melhoramentogentico, j que a formao e manuteno de raas um processodinmico que exige acompanhamento e seleo atravs de padresdefinidos e tidos como ideais para cada grupo. Em parte, o estgio atualainda esbarra num entrave que a ausncia de um censeamento desseuniverso, pois no se tem uma dimenso exata de quantos exemplares eonde se localizam os rebanhos de animais de raas consideradasnativas, conforme explica o depoimento do presidente da Associao deCaprinos e Ovinos Nativos e tambm criador de destaque nestesegmento.

    14 WANDERLEY, Alexandre de M. Viva as cabras nativas, viva o povobrasileiro.... Disponvel em: . Acesso em: 15 fev.2011.

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    E ele procura descrever as dificuldades de se identificar esses rebanhos,

    afirmando que reunir esses produtores no uma tarefa fcil, j que gente que fica dentro da fazenda, numa referncia crtica indireta aosegmento dos criadores de raas exticas, que vivem circulando nomundo dos leiles e exposies. Segundo ele, vez por outra se descobreum rebanho significativo de determinada raa nativa que sequer seacreditava existir sendo criado por algum no Rio Grande do Norte ouem outro estado do Nordeste. Ele e outros criadores de raas nativas soverdadeiros entusiastas, defensores da disseminao dos rebanhosnativos e de seu aprimoramento racial. Representam a vertentenacionalista num ambiente da caprinovinocultura envolto num debateque traz consigo aquilo que classificam como um jogo de interesses em

    torno de um mercado gentico, que movimenta recursos significativosvia comrcio de animais exticos caros voltados para uma elite decriadores. Para eles, este mercado seria apoiado em um forte marketingque procura difundir uma imagem dos animais exticos comosuperiores aos demais e pertencentes a linhagens nobres emcomparao aos daqui.

    De acordo com outro entrevistado, especialista do setor de longa data epesquisador ligado Universidade Federal da Paraba, esse ummercado que envolve muitos interesses que so disputados de formavigorosa pelos recursos financeiros que movimenta. Como um fenmeno

    no apenas brasileiro, o entrevistado exemplifica o que acontece, porexemplo, na frica do Sul, pas que concentra boa parte dos principaiscriatrios mais estruturados e que dominam esse mercado mundial,sendo um grande pas exportador de matrizes e reprodutores. L,segundo ele, um processo de homologao (reconhecimento oficial deraa) se arrasta h bastante tempo no que se refere a cinco raasnativas locais que at hoje no foram oficialmente reconhecidas por ao(lobby) de criadores de Ber daquele pas, uma das raas exticas decaprinos mais comercializadas no mercado internacional. Em ltimainstncia, o comrcio mundial de reprodutores e matrizes exticasacabaria por remunerar indiretamente os criadores sul-africanos eestadunidenses, que fornecem originalmente esses animais, a partir dosquais os capris reproduzem seus animais para serem comercializados. Arazo disso seria que todo o trabalho de seleo de caprinos e ovinos feito fora do pas, causando uma dependncia desses mercados com a

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    permanente necessidade de importao de novas matrizes e

    reprodutores. O que se faz no Brasil marketing, afirma.Fundamentando seu argumento, o entrevistado desafia que algumapresente dados tcnicos seriados de pelo menos dez anos que mostremo comportamento do padro das raas exticas por aqui. Afirma que oque se faz por aqui seleo por meio de cruzamentos de animais, masno melhoramento gentico. Isso acarreta problemas como perda deeficincia no ciclo de cruzamentos, o que acaba na dependncia depermanentes importaes. Segundo avalia, a motivao desse ciclo dedependncia seria o imediatismo, a lei do menor esforo e o peso dapropaganda das vantagens das raas especializadas. Para ele, se o pas

    comeasse hoje um trabalho de melhoramento gentico, os primeirosresultados apareceriam dentro de um prazo de aproximadamente 20anos. Ele remete o problema a certa cultura na rea, afirmandoenfaticamente: nunca, durante a minha formao acadmica, ouvi umprofessor valorizar nosso patrimnio gentico!.

    Ele tambm se vale de outro exemplo para demonstrar o quantodependemos de mecanismos comerciais, culturalmente construdos,que visam atender

    [...] determinados interesses, por falta de capacidadetcnica desenvolvida aqui, como o caso da falta de

    implementos agrcolas para operar na condio denossas plantas nativas que podem ser utilizadas comoforrageiras [alimento para os animais]. Por exemplo, ocaso da manioba: h regies do Semirido em queexistem imensos maniobais. No entanto, a extraopara formao de forragem feita com faco, j queno h equipamentos nem medidas que contribuampara um manejo mais adequado. Paralelamente, asraes industrializadas acarretam custos significativosna caprinovinocultura. Assim como esta planta, umaenorme variedade de espcies da Caatinga poderiamser utilizadas para alimentao dos animais. um

    potencial desperdiado, portanto.Paralelamente a essa problemtica, em grande medida, este trecho dodepoimento remete novamente tambm a um diagnstico das falhas nomanejo sertanejo, sendo neste caso a ausncia da prtica na formao de

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    estoques de forragens para o longo perodo de seca. Tradicionalmente,

    ela no feita ou o de forma inadequada pelos pequenos criadores.Essa precauo para com o perodo de maior escassez de alimentos ignorada ou iniciada num perodo imprprio, quando a seca j seestabeleceu, no rendendo consequentemente os resultados esperadosde suporte necessrio s criaes, o que acarreta perdas de animais ediminuio na obteno de produtos como carne e leite.

    Percepes como essa embasam e direcionam o trabalho de diversasorganizaes, especialistas e tcnicos de extenso rural, incidindofortemente para transformao da caprinovinocultura sertaneja,expondo um embate entre tradio e tentativas de sua reviso. Apesar

    dos muitos entraves para que mudanas ocorram em prticassedimentadas pela tradio, transposto esse patamar, diversos exemplosde pequenos proprietrios rurais demonstram a possibilidade deobteno de renda significativa, principalmente a partir da produo deleite de cabra. E esses resultados alimentam uma viso processual deque algo maior esteja em construo, sendo as potencialidades locais dacaprinovinocultura e, especialmente, da produo do leite de cabraainda exploradas de forma incipiente e parcial, apesar dos avanos.

    Aptido animal e pragmatismo dos pequenos criadores

    Um segundo tema que merece destaque em se tratando decaprinovinocultura do Semirido o da aptido. Isso porque, para ospequenos criadores, diferentes arranjos acabam diluindo muitas dasfronteiras entre o nativo e o extico, revelando aes que procuramrefinar o melhor desses dois polos. Esse o caso do cotidiano de boaparte dos pequenos produtores de leite de cabra, regido por umpragmatismo que conduz seu senso de produtividade econmica aprocurar extrair dos animais nativos e dos exticos aquilo queapresentam de mais vantajoso por meio de cruzamentos inter-raciais.

    Estes visam atingir um ponto timo entre diferentes aspectos, como aproduo de uma maior quantidade de leite, a menor suscetibilidade adoenas, um menor custo de produo e as possibilidades de acesso aanimais melhores. Por exemplo, uma situao comum a utilizao de

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    um bode da raa extica Saanem, reconhecidamente boa produtora de

    leite, para fertilizar fmeas de um rebanho sem raa definida. Essa aotem por objetivo impulsionar um processo de melhoramento na geraovindoura com consequente aumento da produtividade leiteira dosanimais mestios gerados.

    Um apoio nesse sentido vem de associaes de pequenos criadores, jque animais melhores, por serem financeiramente inacessveis a maiorparte deles, so adquiridos por essas organizaes que ento osemprestam aos filiados por determinado perodo, fazendo um rodzio dereprodutores a fim de serem usados para acasalamentos, promovendoassim a disseminao dos benefcios do aprimoramento gentico s

    criaes dos produtores locais. A prtica do rodzio relativamentecomum e nas pesquisas de campo foi observada tambm entre grupos detrs ou quatro criadores que se cotizam para comprar um bodereprodutor e usufruir dos benefcios em suas criaes.

    A viso baseada na aptido do animal partilhada e difundida porespecialistas. Segundo depoimento de um deles, em ltima instncia,no haveria raa certa ou errada: o que h raa mais adequada. Ouseja, tem que se levar em conta a perspectiva da funo do animal.Nesse sentido, deve-se procurar uma resposta para a questo: o animalmais eficiente para tal objetivo aquele da raa x ou o y?. De acordocom ele, exemplificando, no seria por acaso que o maior rebanhocomercial da raa nativa Morada Nova, que produz um couro dequalidade superior, est na cidade de Franca, no Estado de So Paulo:no existe coincidncia, j que a cidade a maior produtora de caladosdo pas, explica.

    No caso dos caprinos, a dupla aptido para produo de leite-carne oajuste mais comum no setor que se amplia apoiado pelo Programa doLeite (PAA Leite): as fmeas produzem o leite no perodo de lactao;dos animais nascidos, as fmeas em geral so mantidas para seaumentar o rebanho leiteiro. Sob os preceitos de um bom plano denegcios, os machos por sua vez so vendidos ou abatidos (processo de

    descarte) ainda nos primeiros meses de vida visando produo decarne, j que no se justifica economicamente sua manuteno, dadoque, tomando-se como referncia animais de padro mediano, aquilo queconsumiro tornar seus custos relativos sempre superiores ao preo

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    que podero um dia alcanar no mercado quando colocados venda,

    segundo depoimento de especialista entrevistado.Outro aspecto que justifica o abate de animais machos ainda jovens serefere qualidade do produto, j que, sendo o animal abatido at esseestgio de vida, o sabor e a textura mais macia da carne so melhores,conforme afirmam especialistas consultados, pois o animal ainda noteria sofrido os efeitos dos hormnios que alteram seu corpo, refletindoesse aspecto tambm na diminuio ou ausncia do odor muitas vezesidentificado nesses produtos. Da, o que se deveria manter no plantelseria um ou alguns bons bodes reprodutores, sendo o principalreprodutor trocado de dois em dois anos aproximadamente para que no

    ocorram problemas de ordem gentica no rebanho pelos cruzamentosrecorrentes a partir do mesmo animal macho.

    No caso dos ovinos da regio Nordeste, estes se destinamprincipalmente a corte, j que so animais que possuem maiorquantidade de carne na sua carcaa, sendo sua carne mais tenra ecomercialmente mais valorizada em mercados mais estruturados. Nocontexto do Semirido, as ovelhas so deslanizadas, ou seja,praticamente sem ou com muito pouca l, adaptadas geneticamente aoclima quente da regio.

    Tanto no caso de caprinos quanto no de ovinos, no que se refere

    produo de pele, ainda que ambos possuam teoricamente essa aptido,ao mesmo tempo em que diversos dados e informaes fornecidos porestudos enfatizam a potencialidade desse mercado, ele sofre com asdeficincias relativas ao manejo que levam m qualidade das pelesproduzidas. Segundo Nobre, Amaral e Pinheiro (2007, p. 17), remetendoa resultados de pesquisa realizada pelo SEBRAE e pelo SINTEC(Sindicato dos Tcnicos Industriais do Rio Grande do Norte) e voltadapara a anlise do mercado da caprinovinocultura no Rio Grande doNorte, os defeitos mais comuns nas peles estariam relacionados aosdanos no animal ainda vivo em decorrncia de agresses porcarrapatos, piolhos, sarnas, alm de cicatrizes por furos provocados por

    arame farpado e pela vegetao, e tambm por procedimentosinadequados nos atos de esfola e da sua conservao e armazenamento.Por conta disso, aqueles autores afirmam tambm que a situaoagravou-se com o fechamento dos dois nicos curtumes que operavam

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    naquele estado, sendo a causa disso a escassez de matria-prima, j que

    as peles produzidas atenderiam somente a cerca de 10% dascapacidades instaladas. Ainda, tal quadro continuaria sem perspectivade melhora no panorama em questo, restando nesse segmento asunidades artesanais de curtimento espalhadas pelo interior do estado.

    Essa problemtica chama a ateno para um aspecto que remetenovamente s questes raciais e de manejo. Segundo Nobre, Amaral ePinheiro (2007), se no forem corrigidas as falhas no que tange aaspectos nutricionais e sanitrios, investimentos em melhoramentogentico dos rebanhos s acarretaro prejuzo aos produtores, pois muitoprovavelmente sero em vo. Ou seja, essa preparao de base,

    independente da discusso sobre aptido e produo visadas, deve virem primeiro lugar quando se pensa em aprimoramento nacaprinovinocultura. E este no um desafio pequeno, como se podeobservar pelas pesquisas de campo que embasam este artigo, sendo alvode um trabalho constante e insistente de conscientizao e capacitaopor parte de organizaes e especialistas junto aos agricultoresfamiliares para que haja modificaes nos padres das prticas demanejo, que resultem num melhor aproveitamento do potencial dacaprinovinocultura. Grosso modo, pode-se dizer que continuaimperando, em diversas regies do Semirido, uma atividade desubsistncia, numa rotina que se perpetua atravs das geraes, com

    resultados muito aqum daqueles que as possibilidades tcnicas jexistentes permitem, conforme observa Molina Filho15 (1981 apudOLIVEIRA et al., 1995).

    A insistncia por uma transformao que acarrete um novo patamarpara a caprinovinocultura por parte desses profissionais e organizaesencontra seu sentido quando se analisa o contexto em questo,colocando frente a frente seres humanos e animais. Nesse sentido,torna-se importante distinguir, por exemplo, um pequeno criador deum grande criador, o que revela aspectos importantes para umamelhor compreenso sobre a caprinovinocultura local. Isso porque os

    termos grande e pequeno no tm tanto a ver com o tamanho das

    15 MOLINA FILHO, J. Um modelo estrutural-cultural para os estudos dedifuso de inovaes na agricultura brasileira. Revista de Economia Rural.Braslia, 19, n. especial, p.29-46, 1981.

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    criaes, mas em certa medida ao quanto elas so tecnificadas ou no.

    Um pequeno criador, portanto, seria aquele que o faz de forma menostecnificada, o contrrio valendo para o chamado grande criador ouprodutor. Essa distino importante, pois existem grandespossuidores de rebanho que so, na verdade, grandes negociantes.Eles apenas mantm animais por um espao de tempo suficiente paraengord-los e obter um valor maior na sua venda do que aquele pagopelos mesmos. So animais destinados ao abate, que so negociadostendo como principal quesito seu peso e suas condies gerais deaparncia. Em geral, utilizam-se como critrios aspectos visuais dacarcaa, mas que nem sempre so condizentes com o real estado desade do animal, sendo relativamente comuns depoimentos sobre a

    possibilidade de problemas existentes e camuflados nos mesmos. Oespao de negociao por excelncia dessa vertente so as feiras emercados, ou por meio de negociaes realizadas diretamente comabatedouros a maior parte dos quais clandestinos, segundodepoimentos de especialistas do setor e estudos consultados , sendouma das principais variveis o ganho em escala, ou seja, a negociaoenvolvendo lotes de animais sem raa definida.

    O foco da ateno dos especialistas e organizaes se direciona aosagricultores familiares ou pequenos criadores. Como afirmam Nobre,Amaral e Pinheiro (2007), por conta do movimento iniciado h pouco

    mais de uma dcada de promoo da caprinovinocultura no Semirido,houve uma tendncia de proliferao de pequenos rebanhos com oingresso na atividade de centenas de pequenos produtores rurais,notadamente das reas de assentamentos da reforma agrria, de formaconcomitante tambm crescentes na regio. A anlise dessa histriarecente lana luz a um aspecto importante, defendido por muitosespecialistas e organizaes do setor, que toma os agricultoresfamiliares como agentes estratgicos no aprimoramento da cadeiaprodutiva da caprinovinocultura. Muito mais que simplesmente umaopo pelo social, e ainda que em boa medida o seja pelo carterpotencialmente inclusivo da atividade, no caso da caprinoculturaleiteira, o modelo de produo parece indicar um ajuste importante sobas condies da agricultura familiar.

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    Essa viso se apoia em anlises como aquelas referentes aos custos da

    produo de leite caprino. Nobre e Andrade (2006) recordam que apsum perodo de grande euforia com o incio, em 1998, do ProgramaEstadual do Leite do Rio Grande do Norte, produtores realizaramgrandes investimentos em infraestrutura e na aquisio de muitosanimais caros, matrizes puras ou de alta mestiagem, muitas dasquais importadas, constituindo assim rebanhos de alto padro racial. Asignificativa produo de leite desses animais, submetidos ao regimeintensivo de criao, no foi capaz, no entanto, de gerar lucros quegarantissem a sustentabilidade das criaes em razo dos altos custosde produo, levando mesmo criadores de maior poder aquisitivo aabandonarem seus negcios.

    Nesse ponto, a questo do manejo coloca-se novamente no centro dodebate racial j que, com os custos elevando-se com a necessidade dealimentos concentrados para os animais num regime de confinamento(sistema intensivo), no por acaso pequenos criadores j maisprofissionalizados estariam optando de forma predominante pelo regimesemiextensivo, visando assim reduo de custos na produo de leite.Nesse sentido, Nobre e Andrade (2006), analisando o panorama daproduo de leite caprino no Rio Grande do Norte, afirmam queobservaram uma tendncia entre os pequenos e mdios produtores deexplorarem bons animais mestios leiteiros, mais adequados s

    condies de regimes semiextensivos, em maior ou menor intensidade.Da que a base de muitas criaes tem sido de rebanhos formados poranimais sem raa definida, submetidos a escolha mais criteriosa demelhores matrizes, que so acasaladas com reprodutores leiteiros. Oobjetivo obter animais com mdia produtividade leiteira e quesuportem, tambm, regime de campo (NOBRE e ANDRADE, 2006, p.8). Essa percepo retratada tambm pelo raciocnio exposto por outroespecialista: em toda parte do mundo se busca a lucratividade comequilbrio, onde produo tima no significa produo mxima16.

    16 WANDERLEY, Alexandre de M. Viva as cabras nativas, viva o povobrasileiro.... Disponvel em: . Acesso em: 15 fev.2011.

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    Outros aspectos reforam ainda a viso apoiada na viabilidade da

    produo de leite de cabra praticada por agricultores familiares valendo-se de animais mestios como, por exemplo, a ausncia de encargossociais sobre a utilizao de mo de obra e o baixo custo com a gesto dapropriedade, por esta ser pequena e facilmente administrada pelo seuproprietrio e famlia, que tambm exercem o papel de trabalhadoresrurais (FRANA et al., 2006).

    Para as organizaes e especialistas dedicados caprinovinocultura doSemirido, portanto, essas e outras constataes embasam a crena davocao da caprinocultura leiteira no segmento da agricultura familiar,sentido sinalizado no passado de que esta unio deveria ser promovida

    por meio de polticas pblicas, uma vez que possibilita gerar renda eemprego sustentveis aos pequenos criadores, objetivo que sematerializou mais recentemente (dcada de 2000) com a implementaodo PAA Leite. No que tange ao perfil dos animais, os mestios so tidoscomo aqueles capazes de unir de maneira ajustada os principaisaspectos para que uma produo seja bem sucedida.

    Concluses

    A importncia da aptido animal como critrio para seleo racial, coma mestiagem sendo uma realidade que sustenta um caminho menospolarizado do qual muitos pequenos caprinovinocultores se beneficiam,no anula por completo certas tenses entre o nativo e o extico. Noraros so os depoimentos de especialistas e agricultores familiares quequestionam o tamanho exagerado de determinados animais exticos,sobretudo quando comparados aos nativos, aos sem raa definida emestios, numa espcie de denncia contra desvios daquilo que seriauma tica do mundo dos criadores, chamando a ateno para autilizao camuflada de anabolizantes para que os animais exticosatinjam aquele porte. Com o uso desse e de outros insumos, [...] fazem

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    alguns caprinos parecerem com travestis maquiados para enganar

    besta, exalta-se um especialista17.Ainda no campo dos frmacos, como cabras e ovelhas de hotel, adependncia de medicamentos para manuteno desses animaistambm se soma a um quadro de inconvenincias sobre as quaisprocuram chamar a ateno, e que concretamente se referem snecessidades de insumos proibitivos por serem onerosos maioria dospequenos criadores, que acaba por acentuar ainda mais a viso decontraste com a rusticidade dos outros segmentos raciais.

    Outros depoimentos reforam esses argumentos assumindo um carterfincado numa viso nacionalista de valorizao daquilo que o meio

    semirido oferece. Num deles se ressalta aquilo que um especialistaentrevistado denuncia classificando como modismos: deve-seaproveitar aquilo [potencialidade] que o ambiente oferece e no sairintroduzindo aquilo que trazem de fora e nos dizem que certo oumelhor. Ainda que trate da caprinovinocultura, este depoimento citaideias que j se disseminaram um dia e que trouxeram prejuzos ao serhumano e ao meio ambiente da regio, como, por exemplo, asubstituio de determinada cobertura vegetal existente em favor deoutra por puro modismo, numa referncia ao caso de plantas exticasque acabam se tornando invasoras ou levando utilizao de herbicidasem virtude de sua menor resistncia ao meio no qual foramintroduzidas, acirrando os potenciais desequilbrios, a dependncia deinsumos externos e os danos ecolgicos.

    Nas entrelinhas, muitos desses depoimentos parecem revelar umapostura de resistncia frente desigualdade entre os segmentos emtermos de importncia comercial. No bastando resistir dentro datrincheira, seria necessrio ento enfrent-los numa batalha travada nocampo das mentalidades, procurando vencer uma luta atravs doconvencimento e da mobilizao pela modificao de valoreshistoricamente construdos em torno da valorizao do extico edepreciao dos animais nacionais.

    17 WANDERLEY, Alexandre de M. Viva as cabras nativas, viva o povoBrasileiro... . Disponvel em: . Acesso em: 15 fev.2011.

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    Se esse apontamento parece abstrato, ele se torna mais concreto quando

    se atenta para o statusde que desfrutam os animais nativos e exticosna dinmica da caprinovinocultura. Enquanto os primeiros considerados a tambm aqueles sem raa definida seguem umatrajetria marcada pelo desprestgio, seja atrelados populao maispobre, seja sob o risco de desaparecimento (como caso das raasnativas), os animais exticos entraram pela porta da frente dacaprinovinocultura nacional, tendo sua imagem fortalecida no mundodos leiles e torneios agropecurios, que extrapola a regio em foco eengloba outras regies do pas, movimentando negcios em volume derecursos sem termos de comparao18.

    Mas se deste quadro depreende-se certo idealismo dos criadores de raasnativas frente a um ciclo de dependncia de interesses que transcendemas fronteiras nacionais, o que dizer do pragmatismo de pequenoscriadores que, aderindo a um movimento de reviso da tradicionalcaprinovinocultura sertaneja, valem-se cada vez mais dos animaismestios? A resposta para esta questo nos obriga a situ-los inseridosnum contexto de mudanas, fortemente influenciado por polticaspblicas como o Programa do Leite, atrelados aos processos deconstruo de mercados para o leite caprino, intensamente dirigidos porespecialistas do setor que, visando o alcance do melhor arranjo emtermos de produtividade para a realidade da agricultura familiar,

    advogam em favor da mestiagem animal.No advindas de uma posio isolada frente a uma realidade

    dinmica, as pesquisas realizadas mostram que a histria que conduz aessa escolha segue um itinerrio de erros e acertos no cotidiano demuitas experincias e criaes, envolvendo diferentes organizaes eespecialistas do setor. A superao das referncias da baixaprodutividade dos animais sem raa definida e da polarizao da purezaracial de nativos e exticos vem requerendo, assim, um processo deaprendizagens e um acmulo de conhecimentos capazes de sincronizar

    18A ttulo de exemplo, por ocasio das pesquisas de campo que abarcaram avisita a leiles e torneios, constatou-se a existncia de animais exticos quechegavam a custar R$ 30 mil (valor aproximado referente aos anos de 2008 e2009).

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    valores socialmente construdos com aspectos tcnicos, comerciais e de

    mercados.A anlise desse percurso traz tona os enredamentos da ao nocontexto social, com sua historicidade considerada. Sob uma perspectivadas instituies socialmente construdas, chama a ateno o modelo decaprinovinocultura em foco que coloca o social no centro da questoeconmica. Isso no deixa de ser revelador, sobretudo se consideradacerta tendncia de se deixar por conta do mercado a resoluo dedeterminados problemas, tomando-se como no econmicas questescomo o custo social e as excluses embutidas em muitos modelosdisseminados no mundo agrcola.

    Merece destaque ainda o fato de que a produo de leite caprino emtorno dessas iniciativas se volta majoritariamente para o consumo locale/ou microrregional, apoiado numa economia de base comunitria, sobcoordenao do Estado. Portanto, este um mercado socialmenteimportante que busca um caminho de atendimento interno no que tange produo e ao consumo, ao mesmo tempo que busca manter relativaindependncia de insumos externos quela realidade.

    Pelo exposto, esses e outros aspectos so relevantes e parecem mostrarum sentido positivo de transformao social, podendo-se dizer virtuoso,inclusive, quando se leva em conta outros campos em que j se fez uso

    arbitrrio da imagem da mestiagem como smbolo de uma supostaidentidade nacional, apaziguadora de conflitos sociais.

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    Artigo recebido para publicao em:

    23 de setembro de 2011.

    Artigo aceito para publicao em:

    02 de dezembro de 2011.

    Como citar este artigo:

    GONALVES JUNIOR, Oswaldo. Entre nativos e exticos: amestiagem na construo de uma nova identidade nacaprinovinocultura dos sertes. Revista IDeAS Interfaces emDesenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro RJ, v. 5, n.2, p. 89 - 117, 2012.