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c a d e r n o s e m e n t e s ...

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índice

i n t r o d u ç ã o

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p e n s a m e n t o s

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h i s t ó r i a s

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v e r s o s

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t r a d u ç õ e s

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i n t r o d u ç ã o (três pessoas estão sentadas na varanda numa tarde ensolarada.) A: O que me incomoda nesse mundo editorial, de publicação, é essa necessidade de esclarecer tudo de uma maneira profunda. Existe uma espécie de obrigação de ser revelador, importante, denso. Tudo tem que ter uma introdução que convença o leitor de que vale a pena parar de fazer o que ele estava fazendo na vidinha dele para ler o que um certo “eu” escreveu. O autor tem que fazer uma espécie de “merchandising” do seu próprio texto. J: E para complicar as coisas, a gente está, ao mesmo tempo, criando e apresentando este caderno. A gente teria primeiro que saber o que ele é para depois poder introduzi-lo. A: Mas esta é a grande pergunta: “Por que a gente precisa de introduções?” (momento de perplexidade) J: Pessoal, esse sol está ficando forte. F: Está quente! Vamos entrar. J: Vocês querem ficar na sala ou ir lá pra cima? A: Por mim tanto faz. Vocês que decidem. F: Vamos ficar na sala mesmo.

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J: Vou até a cozinha pegar água, alguém quer? (instalam-se na sala) F: Enfim, de qualquer forma o importante é que estamos falando da linguagem1; não importa tanto o que o caderno é, e sim que ele é mais uma tentativa da reunião de pessoas, neste caso, através da escrita. J: Mas o “não importa o que ele é” é pesado, não é, não? A: Escreva isso aí! Além do mais, concordo com você. A gente se reuniu para escrever, e se fizemos isso é porque esperamos que alguém leia. Qual é o sentido de escrever se ninguém vai querer ler, se for um texto qualquer? F: É claro que é importante o que ele é, ou melhor, o que será, só que isto só saberemos no fim, não na introdução. O que não importa é querer saber o que a coisa é antes dela ser. A: Bom, mas minha opinião é que, em se tratando de literatura, nem no fim saberemos o que a coisa é. Então para quê uma introdução? Você tem seus textos, eu tenho os meus, ele os dele, as pessoas os delas. O que precisamos é publicar esses textos para que as pessoas possam lê-los. Onde a introdução entra nisto? J: A verdade é que, se estamos priorizando a convivência, as interações pessoais, o que precisamos é de votos de confiança, não de uma introdução. A tranqüilidade de entregar esses textos nas mãos dos nossos

1 Na verdade, nem o próprio autor dessa frase sabe o que ele quis dizer com ela.

Nós menos ainda. Talvez seja que a linguagem enquanto modo de ser do homem permita a compreensão dos entes, possibilitando a consolidação de um mundo comum - algo assim.

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amigos e pedir: “leia”. Antes de ler, ninguém sabe se gosta ou não de algo, e é necessária uma motivação para iniciar uma leitura. A: Pô! Você inventou uma frase aí no meio! Só podia escrever nesta folha o que você falou aqui! Esta é boa, o sujeito fala uma coisa, escreve outra e pede “votos de confiança”! Como vamos confiar num cara assim? (risos) F: Escreve aí: “risos”. O que a gente tem que escrever é um convite então, não uma introdução. A: O que seria um convite para a leitura, senão o próprio texto? J: Ora! Seria você passando o texto para alguém. A: Peraí! Você ainda não escreveu a resposta que ele já tinha dado para essa pergunta!(sugestão : ?) Você fica aí escrevendo e não presta atenção no que a gente fala. J: Mas eu estou escrevendo o que vocês falam! Qual era mesmo a frase? F (beckettiano): Já não importa mais. A: Agora perdemos o fio da meada. Vou tentar retomar: você disse, “e se puséssemos uma citaçãozinha”, no diminutivo! F: Calma aí! Não dá para ser fiel ao passado, não tem jeito. Ele está ficando louco escrevendo isso aí. A: Uma citaçãozinha de quem? Se você propôs é porque já pensou em alguma.

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F (displicente): Não, não pensei. A: Então sou contra! “Citaçãozinha!” (resmungo). Isto é coisa de gente insegura do que diz e que resolve procurar respaldo nas palavras dos outros. F: Opa, o psicólogo aqui sou eu! Este texto ficou louco; ele vai e volta. Você fala demais, só dá trabalho para os outros. Escreve um pouco agora. J: Cuidado: a caneta está vazando. A: Que barulho infernal. Não consigo pensar com tanto ruído. F: Não consigo pensar em nada. J: Vamos pensando... A: A coisa mais fácil é você se perder no meio de uma conversa dessas – e de uma tarefa dessas também... F: Ah, mas uma citação seria uma boa maneira de concluir esta introdução. J: Eu concordo. A: Eu não. J: E a gente não vai nem falar do Atelier? A: Não precisa. A gente está falando no Atelier.

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F: A gente pode escrever no final do texto: “conversa ocorrida no Atelier, entre fulano, sicrano e beltrano, na tarde do dia tal...” A: Acabou a folha. Pega outra. F: A gente perdeu o fio de novo. A: A culpa foi sua, com sua “citaçãozinha”! F: Ah, agora a culpa é minha! (crise) A: Vamos ler tudo que a gente escreveu até agora? (...) J: Ficou legal, não? A: Mas não dá para acabar assim. (“J” ajeitando o texto) F: Putz, está muito apertado, começa a escrever essa parte de novo. A: Pega outra folha. Estão faltando umas partes aí que você não escreveu! J: Escrevo também que você está falando isto? Ih! Mas... Também escrevo que estou perguntando isto agora? E esta pergunta? F: Ahhh! Não dá! Todo diálogo é infinito. A (eufórico): Isso é uma citação, não é?

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F (mais eufórico ainda): Borges! (risos; momento de epifania de “A” e “F”) J (desnorteado): Peraí, vocês estão indo rápido demais! O que escrevo agora? F: Escreve de trás para frente. J: Começo pelo fim então? F e A: É: “Borges!” J: Certo... A: Ainda bem que você lembrou-se dessa frase do Borges... F: Mas é dele mesmo, não é? A: Ué, achei que você soubesse. F: E eu achei que você soubesse! A: Não sei, mas parece. Se não for, é como se fosse. J: E ele aprovaria. (conversa ocorrida no Atelier, entre fulano, sicrano e beltrano, na tarde do dia tal)

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“t o d o d i á l o g o é i n f i n i t o”

J o r g e L u i s B o r g e s

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p e n s a m e n t o s

o m u n d o d a i n f â n c i a :

i m e n s i d ã o e i n t i m i d a d e

Gaston Bachelard, em seus estudos sobre a imaginação humana, escreve que há um engrandecimento de ser no homem que devaneia, e esse engrandecimento é a consciência de uma imensidão. Diante da imensidão do mundo, o homem sente nascer em si a sua própria imensidão. Há assim uma correspondência entre a imensidão do mundo e a imensidão do homem. Quando o homem vislumbra a grandiosidade do mundo, ele redescobre em si a própria vastidão.

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. (Bachelard, 1957, p 190)

A imensidão nasce no homem como um estado que reinaugura o

mundo. O espaço vivido não mais se restringe ao espaço dos geômetras. A imensidão não pode ser a simples caracterização de um mundo mensurável. O homem, diante da paisagem, sonhando na paisagem não é o mesmo homem debruçado sobre um mapa. A imensidão do espaço não se pode verificar em suas dimensões cartográficas; o geógrafo nada pode saber sobre as vastidões que o sonhador vive em sua solidão. A vastidão contemplada pelo sonhador nasce do encontro entre a sua intimidade e o

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espaço do mundo. O espaço só pode ser compreendido em sua imensidão se, entre o mundo que quer ser visto e o sonhador que anseia por vê-lo, houver uma profunda relação de intimidade. Portanto, a imensidão vivida nunca será uma categoria do objeto, mas sempre a profundidade da intimidade vivida com o espaço no mundo. “A grandeza progride no mundo à medida que a intimidade se aprofunda” (Bachelard, 1957, p 200). A imensidão vivida no mundo é, como diz Bachelard, uma “imensidão íntima”. Encontraremos em muitos poetas a dialética entre o mundo que cresce e a intimidade que se aprofunda. Manoel de Barros (2003) imagina a sua infância e reconhece nela a sua imensidão íntima:

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. (s/p)

O poeta ensina em poucas palavras o valor de um espaço vivido pela intimidade. E como dizer melhor os espaços vividos na intimidade, senão lembrar reimaginando a própria infância! Bachelard (1960) já dizia que “um excesso de infância é um germe de poema” (p 95). Assim, o poeta, a partir da simples recordação de um mundo familiar, nos faz compreender o sentido mais fundamental da familiaridade. A partir desses devaneios da infância, podemos compreender a familiaridade para além de um mundo que nos é conhecido.

Freqüentemente caímos no erro de entender a familiaridade e a intimidade como uma relação conquistada, em que os objetos se apresentam a nós em sua previsibilidade. O familiar, então, se torna aquilo que nos é comum, que não nos é estranho. A familiaridade, nesse tipo de compreensão, aparece como o oposto da estranheza. Quando

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alguém nos é íntimo, nos sentimos seguros, porque o conhecemos a ponto de ter a capacidade de prever os seus comportamentos futuros. Porém, como sabiamente diz Bachelard (1960), “não se analisa a familiaridade contando repetições” (p 99). Nenhuma relação familiar se caracteriza pela previsibilidade. Isso é o que Manoel de Barros tenta nos ensinar: a intimidade é uma intensidade de ser que cultiva a presença das coisas, de tal modo que o espaço de compreensão entre o homem e as coisas se faz imenso. Poderíamos dizer que a intimidade é o reconhecimento da distância que fundamenta toda relação humana. Essa distância não é geográfica, é antes o vislumbre das coisas em toda a sua potencialidade de ser. A familiaridade é, portanto, a presença amorosa que aprofunda a nossa solidão e, ao mesmo tempo, faz crescer em nós o mundo fora de nós.

As grandes contemplações são sempre um fenômeno da intimidade que se aprofunda. Compreenderemos melhor as correspondências que há entre a intimidade do homem e a grandeza do mundo se detivermos o nosso olhar, como o fez Manoel de Barros, para o mundo da infância. O modo de ser da criança, a despeito de todas as diferenças individuais, resgata em nós uma simplicidade de ser. A criança vive em seus devaneios uma comunhão muito íntima com as coisas do mundo. Admirar uma criança em seu mundo, ou quem sabe devanear a nossa própria infância, é recuperar o verdadeiro mundo da familiaridade: o mundo em que as coisas são vividas no universo da primeira vez. A criança que brinca vive a intensidade de um mundo que recomeça a cada novo olhar; ela nada ainda aprendeu sobre o predomínio da realidade sobre os sonhos, a sua realidade se alimenta e cresce dos seus sonhos. Entre a criança e o mundo há um espaço que se faz imenso. A familiaridade da criança está sob o signo do maravilhamento. Alberto Caeiro, poeta, conta a história de Jesus Cristo que desce à Terra, “tornado outra vez menino”. Junto ao poeta, o menino ensina-lhe sobre as coisas do mundo, ensina-lhe sobre Deus, com a sabedoria que só uma criança poderia ter.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. (Pessoa, 2004, p 40)

A criança de Caeiro o faz poeta! Junto ao menino Jesus, o poeta vive

numa proximidade íntima com o seu mundo, onde todas as coisas, desde as mais insignificantes, parecem falar com ele. Com Caeiro podemos aprender que a infância, muito mais que uma fase do desenvolvimento, é um valor humano. Tudo que se apresenta como novo, como admirável, é alimentado por uma infância, pela nossa infância.

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A Infância vê o Mundo ilustrado, o mundo com suas cores primeiras, suas cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os verões da nossa infância testemunham o ‘eterno verão’. As estações da lembrança são eternas porque fiéis às cores da primeira vez. (Bachelard, 1960, p 112)

A infância está além dos fatos, ela reside em nós em sua

primitividade. Quando devaneamos resgatamos esse modo primitivo e simples de habitar o mundo. Somos alimentados o tempo todo, em nossos sonhos de vida adulta, pelos ecos de uma criança que um dia sonhou, solitária em seu canto, com a grandeza de um mundo que amou. Jorge de Lima, profundo poeta brasileiro, conta num poema com o sugestivo título “O mundo do menino impossível”, o universo imaginário de uma criança. O menino impossível destrói todos “os brinquedos perfeitos que os vovós lhe deram” para poder sonhar com os objetos mais insignificantes: “sabugos de milho”, “caixas vazias”, “pedrinhas brancas do rio”, “tacos de pau”... Que lição de simplicidade nos ensina o poeta! Os objetos mais simples são dignos dos maiores sonhos. Quanta diferença há entre sonhar com os objetos que são desprezados pelos adultos, e sonhar com brinquedos tão artificiais construído pelos adultos. Só uma criança, uma alma de criança, poderá entender essa diferença. O menino impossível entende, e no seu mundo “os sabugos de milho mugem como bois de verdade...” Enquanto todos os habitantes da casa dormem, o menino sonha junto aos seus objetos amados.

E vem descendo uma noite encantada da lâmpada que expira lentamente na parede da sala...

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O menino pousa a testa e sonha dentro da noite quieta da lâmpada apagada com o mundo maravilhoso que ele tirou do nada... (Lima, 2001, p 29)

A partir de uma lâmpada que se expira, um objeto tão familiar, o

menino pôde enfim adormecer. Porém, não deixemos nos enganar: o menino que brinca não é uma alma sonolenta. O mundo das sonolências é tão diferente dos devaneios de vigília. Nas profundezas do sono noturno não somos os verdadeiros autores dos nossos sonhos, estamos à mercê das nossas próprias profundezas. O onirismo noturno carece de um cogito, de uma consciência atenta que acompanha o nascimento das imagens. O menino do poema de Jorge de Lima não é uma alma que aguarda o sono. Nos últimos versos podemos saber que o menino adormece devaneando num mundo maravilhoso que é seu, nascido de uma relação de intimidade e cultivo junto aos objetos amados. Na familiaridade da lâmpada que se apaga lentamente, o menino mergulha na imensidão de uma noite encantada.

Precisamos compreender a importância da infância enquanto fundamento para os nossos sonhos de idade adulta. A criança que fomos alimenta-nos ainda nos nossos devaneios. A infância não é somente um fato histórico da nossa vida, ela é um centro onírico que permanece em nós, mesmo depois de tantos anos de vida. Com ela, aprendemos a grandeza de um mundo que ainda cresce em nós quando vivemos a ventura de sonhar. Diante de uma paisagem nova, contemplada em nossos devaneios, redescobrimos a infância que habita em nós. Tudo o que encanta é um germe de infância. Quanto mais formos capazes de nos aprofundarmos em nossa intimidade, mais seremos capazes de reconhecer em nós a criança que fomos. E que grande benefício será para nós recordar reimaginando, como os grandes poetas, os nossos devaneios da infância!

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O mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas. (Bachelard, 1960, p 96)

Graças a esse núcleo de infância que permanece em nós a despeito do tempo, podemos sonhar e nos maravilhar com os grandes espetáculos do mundo. A capacidade do maravilhamento está profundamente arraigada na constituição onírica da nossa infância. Bibliografia BACHELARD, Gaston (1957). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, ed. 2003. _________________ (1960). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, ed. 2001. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. LIMA, Jorge de. Melhores poemas. São Paulo: Global editora, 2001. PESSOA, Fernando. Poesia / Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

(Felipe Stiebler)

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h i s t ó r i a s

e s t r e l a d a m a n h ã

Começou no dia em que o conheci. Ele caminhava abatido,

pesaroso, e farto da burocracia da delegacia. Em sua cabeça ainda remoia as palavras daquele capitão: “Gente assim tem que morrer! Descanse, pegaremos o safado!”. Teria retirado a queixa se lhe tivessem levado qualquer outra coisa, mas o relógio de seu falecido pai, ah, isso não! Além do mais, mesmo que por um breve instante, concordara com o policial. E foi aí, vagando descrente em sua humanidade, que aconteceu pela primeira vez.

A princípio nem deu por falta, e confesso que com razão, afinal aquele velho guarda-chuva maltratado pela história nunca lhe fizera jus. Ao chegar a casa, tirou o paletó e a gravata, despiu-se do ânimo da cidade, e quando foi tirar o chapéu não o notou mais lá. Desapareceu. Não que pouco ligasse para ele, pelo contrário; outono passado, caminhando leve e distraído pelo parque, fora alvo de uma súbita ventania do destino que lhe arrancara o chapéu da cabeça e pousara-o graciosamente nas mãos de sua futura atual esposa. Mas, agora, sua falta não lhe fazia mais falta, era natural. E assim se deu em um primeiro momento com todos os seus bibelôs, daqueles que se desaparecem a todos como que naturalmente. Canetas de viagens, livros revolucionários, fotos constrangedoras, cinzeiros de noites não dormidas, figurinhas de infância, regalos engraçados... Tudo desaparecido. Estávamos no começo de nossa amizade, e sinceramente acreditava poder lhe ajudar. E então hábitos passaram a sumir. Já não saía para caminhar ou orava todas as noites; começou a esquecer os canais dos telejornais e a que horas deveria acordar no dia seguinte. Até o cuidar das plantas, que dizia ser um

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ato louvável na atual conjuntura, minguou sem mais nem menos. Passou a ficar mais calado, porém menos introspectivo. Seu mundo vazava-lhe por entre os dedos e não se importava. Era natural. Sua mulher não agüentou sua mutação e, ressentida, foi para a casa da mãe; seus amigos, ofendidos com sua ausência, deixaram de ligar. Natural. Éramos só nós dois, e não iria abandoná-lo.

De repente, viu-se vivendo em uma casa vazia. Havia móveis, é claro, assim como muitos outros itens domésticos que normalmente compõem uma casa normal, mas não lhe diziam respeito. Já não era seu lar. Certa noite, sentado sozinho à beira de sua cama, rodeado de um cinza blasé, fitou-se no espelho da penteadeira de sua partida esposa até que sua própria imagem se desfizesse naquela elipse de vidro e prata. Ainda a fitá-lo olhou-me, e como se me visse, perguntou: “Quem é você?”.

Sou a estrela da manhã. Sou as tuas noites sem sonhos, mas não sou escuridão. Sou o que carrega a luz e a indiferença que te cozinha vivo a fogo baixo. Sou o que separa. Sou o que te acusa. Sou o caído de bom grado. Sou o excesso da babilônia. Sou puro querer. Sou puro desejo. Sou puro pecado. Sou teu amigo, e não irei te abandonar.

(Guilherme Alexmovitz)

* * *

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guilherme alexmovitz

Ouvi alguém dizer um dia desses: “O Guilherme vai se revelando aos poucos.” Concordo. O Guilherme possui essa característica que talvez só as cebolas possuem: casca sobre casca, ou, para ser fiel à expressão, véu sobre véu. Mas já aviso que não se trata de mentira nem de timidez. Com o tempo se percebe que o Guilherme é um pesquisador minucioso de novos mundos. Numa época onde tudo parece tão igual e monótono, nos surpreendemos com um sujeito como o Guilherme, porque nele parece estar estranhamente preservada a capacidade da renovação.

* * *

O conto que segue abaixo é fruto do grupo de produção literária do Ateliê. A proposta era escrever um conto a partir de uma mesma linha narrativa básica: um velho tendo que ir ao shopping para comprar um presente de natal para o seu neto.

o v e l h o s e n h o r s i m ã o

O Sr. Simão era velho. Um homem de bengala e passos lentos. Os

seus longos anos o fizera um homem calado, quase tímido. Simão apenas olhava. Via a vida passar diante dos seus olhos. O médico começava a ficar preocupado com o silêncio de Simão. Poderia ser algum processo degenerativo provocado pela idade. O Sr. Simão já não lembrava o que

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era degeneração. Guardava pouca coisa. Dos tempos antigos, as lembranças brotavam para ele sem que fosse preciso buscá-las. Fazia tempo que não tentava lembrar o seu passado. As suas lembranças vinham e desapareciam. Simão não se preocupava com elas. Ele aprendeu a não se preocupar. Os seus olhos viam, tudo permanecia e depois passava. O seu passado se construía sem que precisasse pensá-lo.

Ultimamente as coisas permaneciam menos e passavam mais. Mas o Sr. Simão não achava isso um problema, nem uma degeneração, seja lá o que significasse isso. Com as coisas permanecendo menos, aprendeu a ver melhor. Apesar de precisar das grossas lentes, sentia que quanto mais rápido era a passagem das coisas na sua vida, mais os seus olhos sabiam se encantar com elas. O Sr. Simão aprendeu a amar coisas tão pequenas, que no último aniversário do seu filho, ele o presenteou com um pequeno saco cheio de pedrinhas de rio. Depois de ficar admirando cada pedrinha, os seus formatos, tamanho, cor, achou que o filho iria gostar de se divertir também com elas. Juntou um punhado delas, colocou num saco, e deu ao filho sem dizer uma palavra. O filho achou que o pai havia perdido a razão. Pensou em levá-lo ao psiquiatra, mas, aos conselhos da esposa, decidiu que não. Isso havia de ser coisa da idade. O saquinho de pedras foi despejado no jardim, mas o Sr. Simão não se enfezou. Achou bonito o jardim coberto pelas pedrinhas do rio.

Agora estava chegando o natal, e o neto do Sr. Simão, o único neto, já ansiava pelo presente do avô. Seu filho, temendo a desrazão do pai e querendo garantir a felicidade do menino, pediu ao Sr. Simão que fosse comprar o presente num shopping, e que só saísse de lá com ele nas mãos. Simão fez que sim com a cabeça.

O seu filho o deixou pela manhã no maior shopping da cidade. O Sr. Simão entrou muito lentamente pela entrada principal. Não era a primeira vez que entrava num shopping. Sabia que já havia ido muitas vezes em shoppings, mas se lembrava muito pouco delas. Fazia muito tempo que Simão não punha os pés num lugar como este, disso ele sabia. Com a velhice, passou a freqüentar lugares menos movimentados. Gostava de ficar em casa. Toda semana lustrava um velho tabuleiro de xadrez,

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presenteado por um velho amigo, que o trouxe de uma de suas longas viagens pelo mundo. Ele não se lembrava em que país o amigo comprara o xadrez, nem nunca aprendeu a jogar. Gostava mesmo de ficar olhando as peças, os seus detalhes, vendo como ficavam diferentes depois da flanela. Como ficava imponente aquele velho rei escuro, com a sua espada sempre em flancos. Ah, nunca havia tido uma pessoa de quem se orgulhasse tanto como esse velho amigo. Desde que morrera, há muito tempo atrás, ele passou a dedicar grande parte do seu tempo com o velho xadrez. De alguma forma, a morte do amigo antecipou a ele uma certa velhice.

O shopping estava lotado. Os corredores estavam abarrotados da gente com os olhos grudados nas promoções das vitrines. Ao fundo uma velha cantiga de natal se perdia no barulho da multidão. Havia enfeites por toda a parte, e havia também um homem vestido de Papai Noel, distribuindo balas e abraços. Simão reparou que o homem suava por baixo daquela roupa. E viu que ele sorriu por baixo daquela barba quando uma criança se jogou em seu colo. E viu que a mãe do menino, com as mãos cheias de sacolas, desgrudou os olhos da vitrine para ver o menino no colo do Papai Noel. Por um momento percebeu que o menino era feliz no colo do Papai Noel. Quem poderia explicar o fascínio das crianças por tudo o que não existe? O Sr Simão já caminhava para longe de lá.

Percorria cada vitrine com os olhos. Havia todos os tipos de brinquedos naquelas lojas, mas o fato era que não conseguia encontrar nada que o fizesse lembrar do neto. Aqueles brinquedos careciam de vida. Quanto mais se movimentavam, maior era a impressão de que estavam mortos. Mal pareciam brinquedos. O Sr. Simão precisava encontrar um brinquedo que o menino pudesse amar, como ele amava o seu velho xadrez. Mas ele não encontrava. Em seus passos lentos, caminhava por vitrines infinitas, sem poder se lembrar por qual delas já havia passado. Tudo era tão igual. O Sr. Simão teve a impressão de estar perdido num enorme labirinto. Por toda a parte os mesmos enfeites, as mesmas lojas com os mesmos brinquedos, as mesmas pessoas com as mesmas sacolas

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(por Pedro Cortese)

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na mão, com os mesmos olhos na vitrine, tudo enjoativamente o mesmo. E ouvira o Sr. Simão certa vez que a velhice é monótona e triste...

Caminhou por horas, e então o Sr. Simão precisava descansar, e talvez comer, embora não estivesse com fome. Pelas placas chegou à praça de alimentação. Numa primeira cadeira sentou, recostando a sua bengala na mesa com um longo suspiro. Olhou a sua volta. O lugar borbulhava. As pessoas andavam de um lado para o outro. Comiam, levantavam, sentavam. Em cada restaurante, uma fila de pessoas ansiosamente famintas. Elas olhavam de um lado para o outro, como se estivessem na iminência de encontrar alguém que as fizesse gritar. Os atendentes se agitavam por trás dos balcões. Estavam diante de uma multidão faminta, com pressa, porque não tinha tempo. Tudo era rápido e eficiente. E as pessoas pareciam estranhamente felizes.

Simão precisou fechar os olhos. Baixou a cabeça sobre a mesa; respirava. Agora somente o barulho uníssono da multidão. Cada pessoa contribuía para formar um único e peculiar som, que só uma multidão pode produzir. Em silêncio o Sr. Simão ouvia atentamente. Pouco a pouco, o barulho foi se domesticando em seus ouvidos. Pouco a pouco, era um marulho muito distante e familiar. Veio-lhe a lembrança do mar, da primeira vez em que ele, ainda menino, encontrou o mar. Tinha por volta dos seus 10 anos. Era um menino do interior, de família simples e séria. Na sua casa não se conversava muito. O pai era um homem sempre cansado. Ao final da tarde se sentava na varanda, descascando a laranja com seu canivete. Ele sorria ao menino balançando o dedo à frente, e dizia: “um dia ainda compro tudo essas terra.” Não comprou. O pai morreu pobre, embaixo de uma laranjeira. Ninguém soube o que aconteceu. Encontraram o velho caído junto às laranjas.

Muito tempo antes de morrer, o pai juntou dinheiro e levou o menino à praia. Simão lembrava, era uma cidade pequena, num dia frio de quase chuva. E tinha uma doca, desgastada pelo tempo, vazia. O menino foi andando, fazendo ranger a madeira velha, à sua frente tanta água nunca tinha visto. Foi quieto, de olhos grandes, até o fim da doca. Havia muito mar. E as ondas chegavam na areia, fazendo aquele som

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gostoso, que parecia embalar alguma criança no colo. Muito ao longe viu um barco. Era tão pequeno em tanta água! Pensou na solidão do homem naquele barco, flutuando sozinho num mundo sem fim. Não conseguia imaginar muita coisa, só pensou que se sentia como aquele homem, sozinho em seu mar. Não conseguia pôr em palavra tudo o que sentia vendo aquele barco. Mas sabia que o que aquele homem vivia em seu barco, ele também vivia aqui em terra, junto aos seus sabugos de milho e cascas de laranja. Foi a primeira vez na vida que sentia alguém compreender tudo o que ele vivia sozinho em seu mundo. Aquele homem tão distante, em seu barco, sabia mais sobre ele do que qualquer outra pessoa que já tivesse conhecido. Ficou ainda sentado, esperando o homem voltar. Mas ele não voltou. Vai ver não tivesse volta nenhuma. Vai ver a sua casa era ali mesmo, junto ao seu barco, em lugar nenhum. Com uma lágrima tímida nos olhos, o menino acenou em adeus ao homem e ao seu barco.

O Sr. Simão abriu os olhos. Não encontraria nada para o neto naquele lugar. Pegou a sua bengala, e já se indo viu, numa dessas lojas de decoração, um pequeno quadro que lhe chamou a atenção. Era uma gravura em aquarela, escura, de um mar e um barco em seu horizonte. Era tão parecida com a sua lembrança. Simão não teve dúvida. Comprou logo o quadro para o menino. Nunca soube se o menino gostou ou não do presente. Quando o menino abriu o embrulho, não sorriu nem disse nada. Mas o avô viu que os olhos do neto brilhavam.

(Felipe Stiebler)

* * *

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felipe stiebler

O Felipe é um devaneador de imagens. Assim como faz com seus pães, estende seus textos sobre uma mesa e os abre, deixando uma massa bem fina, alargando o próprio tempo. Joga-nos, sem o menor aviso, para um passado remoto e quase inexistente. É, simplesmente, um guardador de rebanhos, vegetariano, que mora na cidade – como já disse alguém em remotos anos dourados... “Et in Arcadia ego”. Um de seus projetos atuais é o desenvolvimento de uma caligrafia peculiar, idiossincrática até a tinta da caneta, que só pode ser integralmente compreendida por aqueles que realmente captam a essência de seus textos. Um ser que existe no presente para que possam existir outros tempos. (JC)

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v e r s o s

Os três poemas seguintes nasceram de uma proposta que um

grupo de produção escrita do Atelier se fez: cada um dos três integrantes deveria trazer um poema já escrito por si próprio; em seguida, um dos outros dois escreveria um poema “em resposta”, ou seja, inspirado pelo primeiro poema; finalmente, o primeiro autor escreveria um poema em resposta a esta resposta. Ou seja, surgiram três trilogias de poemas “dialogados” – os quais passaram a ser chamados, por necessidade de referência, de poemas “pai”, “filho” e “neto”. Abaixo segue uma das trilogias.

I

Dos prédios nascem árvores, que buscam com todas as forças a luz do sol. As ruas se misturam (asfalto virando areia), e as avenidas já são dunas intransponíveis.

Os relógios pensam um pouco, indecisos, sobre continuar. Os olhos dos alunos buscam as janelas, questionando-se. As músicas de todos os rádios param, silenciam, e um vento uivante abre espaço pelos cantos.

O sol tenta se pôr um pouco, mas é interrompido, e o mundo vira laranja.

Todas as letras de todas as páginas se borram, e não há mais processos, não há mais leis, nem mesmo diplomas.

Antes do vento, o sino da igreja badalou três vezes, esquecendo as horas... (e o padre desistiu)

Enquanto isso, alguém dá um suspiro.

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E eleva-se o mar, gigantesco e modorrento, escuro escondendo todos os monstros de nossa vida, e num só ato cobre tudo, simples pronunciando a fúria.

Tudo isto, se você não existisse e eu não te tivesse.

(João Cortese)

II

Mortos nascem das árvores prédios Para o alto os braços atiram Tiram todas as forças da luz do sol A cidade sua sangue suga todas as forças Esconde debaixo do asfalto As faltas A luz na rua nos raios do sol Atravessa essa mistura de mistério e miséria. Pesa sobre o relógio a culpa de fazer passar o tempo Diante dos olhos diante das janelas diante das questões diante dos alunos Mas o relógio é inocente Não sente pesar nem pesar a culpa Aponta o ponteiro primeiro para a hora O segundo para o minuto O terceiro para o segundo E no quarto dis- [para O sono pára o som não pára No quarto minguante o sol se põe e rompe A cor dando à luz paredes No canto do criado-mudo Penso que ouço música, mas é só o despertador tocando.

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Que atraso de vida ter que chegar na hora Só o vento que se atrasa Traz atrás de si o sino No seio do sino a hora mora e demora No anseio do sino a hora ecoa e ora O sino traça nos céus os sinais dos tempos O sino traça nos tempos o sinal da cruz A sina Tudo de novo debaixo do sol. Mas tudo é vaidade e vento que passa Sino convertido em dólares Tudo é atraso de vida contraída com o passar do tempo Contraído em processos, leis e diplomas Troco letras de câmbio por letras E fico com o troco Tudo se paga E se apaga no preço e no prazo de validade Tudo se deve E de tudo se deve duvidar Até da dádiva Da vida. Mas tudo é isto Só na superfície. No fundo do mar, A calma.

(Adriano Bechara)

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(por Pedro Cortese)

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III Disparou e nada mais se manteve Tiveram filhos casa função Mas nada ajudou: Ainda a pressa, Pressionando a procura De algo mais – dor sem cura. Faltou tanta coisa (seria miséria?): Uma mesa maior, Um canto no quintal pra se jogar bola, Algum primo que morasse junto E animasse a casa ... Falta de tanta coisa – Até de vida – Mas ninguém notou. Tardes passaram As tardes passam sem saber do tempo Não perguntam o que é o tempo – Simplesmente despejam a tempestade. gotas gota a gota de chuva Tudo pára um pouco Para ver o tempo passar. Um rosto se debruça E a janela se embaça A criança dá forma em dedos; Torna sol o tempo que era seu.

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Finda o dia Mais uma vez Mais uma vez o sino.

(João Cortese)

* * *

adriano bechara

Se a idade de um homem pudesse ser medida pelos livros que ele leu, o Adriano seria muito velho. Mas o fato é que a idade de um homem importa pouco, importa mais os livros que ele leu. Borges disse que o leitor é o verdadeiro autor de um livro. Se isso for verdade, a literatura mundial deve muito ao Adriano.

Enfim, o Adriano é um desses caras que você encontra uma vez e, quando percebe, já passou muito tempo com ele, conversando numa mesma esquina sobre a vida.

* * *

joão cortese

Só os matemáticos e os místicos possuem o dom de fazer demonstrações sob a forma do absurdo. Quanto a mim, o melhor que posso oferecer é um absurdo sob forma de demonstração:

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João Figueiredo Nobre Cortese não pode ser real. Não existe nenhum real maior que um diferente de zero para quem

a geometria e a álgebra sejam gêneros literários. Não existe nenhum real maior que um diferente de zero para quem

as frases sejam equações cujas constantes são letras, as variáveis números, e as incógnitas inúmeras.

Não existe nenhum real maior que um diferente de zero para quem a matemática seja uma paixão metafísica e a poesia a razão de um número imaginário.

Portanto, c.q.d., João Figueiredo Nobre Cortese não pode ser real. Mas ele é. Entre zeros e uns, existe um real infinito que se chama João Figueiredo Nobre Cortese.

* * *

m o m e n t o d e d i s t r a ç ã o

Pessoas andam. Papéis são empilhados. Os objetos vigiam. Dejetos amalgamados. Como podem viver com os olhos vendados? Respiram este ar sem sofrer? Roem a sujeira sedados? Seja como for,

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é pura anestesia, um grande torpor. Vida sem magia, luar sem amor, melancolia.

(Leandro de Benedetti Sbrizza)

a r o d a

Roda, roda, roda, o mundo vai e volta, não pergunta se concorda, causa-nos revolta. Corda no pescoço, discórdia na memória, coração ficando louco, roda, roda, roda. Roda, roda, roda, somente escolta, não me molda, já que o tempo não volta. Fica o esboço, fujo do rascunho. Retidão torta? Roda, roda, roda...

(Leandro de Benedetti Sbrizza)

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leandro de benedetti sbrizza

Cuidado com ele! O homem nasceu para o teatro. Não por acaso virou advogado. Recentemente abandonou terno e gravata e voltou pro mato, sua terra natal, Itu. Observador nato, mas capaz de perder-se por horas no caminho para casa. Sua veia poética é uma rara simplicidade. Em tempos de todo-mundo-tem-opinião, é dos que dizem pouco, mas só abrem a boca quando sabem o que dizer.

* * *

a l i b a b e l

Sobre um velho sentado no banco baixo traçando o vime na cadeira-artesanato, numa esquina à avenida paulista, encontra-se o mercado árabe, num cruzamento de vielas, na medina histórica, sob o véu de dançarinas. A mão posta sobre o objeto-arte capitula a madeira, tece pequenos detalhes, imprime a madrepérola, a dar um jeito de jóia rara.

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O turista ocidental, de olhos curiosos, negocia entusiasmado os dihams, dando ar de costumes locais. Sob calçadas paulistanas surge o souk de fès, onde o migrante nordestino se confunde e queima ao sol do sertão marroquino. Sopra o vento arenoso na corrida diária da capital selvagem, dançam prostitutas augustas ao som do ventre, narguiles de butique em bares, de onde se avista a rua vinte e cinco de março a cruzar a praça jemaa el-fna em marraquexe. Cidades imperiais, impérios firmes em arranha-céus, no corredor concreto da avenida, a sombrear o pobre artesão, sentado na calçada à espera. O grito do alto do minarete anuncia a hora da quinta oração do dia. Sob a igreja defronte a calçada, o homem ajoelha-se, o sino anuncia a missa das sete, chegam os fiéis à eucaristia. Sobre os tapetes da mesquita prostram-se em direção a meca, a orar o canto islã defronte a mihrab. Erguem-se em fileiras, com os dedos das mãos traçam o sinal da cruz sobre a testa,

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cordeiros em reverência ao profeta mohamed. Ouve-se o trotar de cavalos vindos de feudos, a reconquista de jerusalém, em cruzadas de homens-bombas e aviões lançados em torres. Sobre a avenida reconstruída, entre edifícios e impérios de finanças, levanta-se o velho artesão. Entrega a caixa de madrepérolas e madeira, firme sobre o vime da cadeira, embrulhada em véu de seda. A seda desprendida, suja de nódoa de fumaça, estica-se no vento que neste instante cruza o movimento da cidade. Ensaia o seu protesto tímido, entre cruzes e crescentes. É tarde, sob o deserto põe-se o sol. O turista recolhe-se ao hotel, evita os perigos da noite em terra estrangeira. O migrante recolhe-se à cama, descansa os pés e as mãos calejados. Enrolam-se tapetes, apagam-se luzes, recolhem-se os cavalos. E em algum reino conta-se a milésima primeira história.

(João Marcelo Sarkis)

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joão marcelo sarkis

-Ah! O Jão?! Bom, o Jão leva consigo uma capacidade descritiva que conduz qualquer um a cenas corriqueiras como que por arrebate e um espírito poético hábil a inflamar assuntos elementares. O estranho é que ele é ao mesmo tempo personagem de estórias que já escrevi e autor de estórias que vivi, sem deixar de ser um dos principais sujeitos de minha história...

* * *

u m t e x t o p a r a n ã o a r q u i t e t o s

são Paulo. São Paulo. São paulo. eco-bio-sus-garagens ! Disfarça e chora. A congestão é, Ó senhor, o que nos d i s p e r s a ? Sistemas. Sub-sistemas. Sub-sub-sistemas. Enformamo-nos, informamo-nos; enformam-nos, nos informam. Mas será, Ó doutor, que um dia chega ? Metrópole. Metrôpole. Met®opole. A f(x) social da propriedade ; - o espaço, e os processos que envolvem a sua (re)produção, se configuram como instrumentos para a continua (manutenção) de um modelo de sociedade e de cidade profundamente perverso e desumanizado.

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ai. aí. a-i. ouço o ronco da cidade que dorme; ele não para, ela não para. tudo (entre) parenteses ! inclusive eu, Ó peão, inclusive eu ?

(Fernando Túlio)

o u t r o t e x t o p a r a n ã o a r q u i t e t o s

daqui não ouço o gemido de dor da matança dos porcos. onde sera que se dá ? onde Eles se escondem ? … na incerteza apenas, faminto, como como sua carne que encalha, aos poucos, entre meus dentes. será, Ó inspector, que eu as devo (re)mover ? … não seria melhor chamar um técnico ? tens tu algum tipo de indicação ? Um cartão ? … de crédito.!? Isso (!) O supermercado. Devo ir ao super-me-rcado. em busca de um técnico … qualquer um, uniformizado ! e, enfim, feijoados emporcalhamo-nos de anemia e mais e mais e mais emails favor, por farofa.

(Fernando Túlio)

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ú l t i m o t e x t o p a r a n ã o a r q u i t e t o s

então, Ó arquiteto, que me diz:

quantos filhos planejas ter ?

quantos filhos projetas ter ?

quanto. quando. como como.

Ah!

como a digestão do porco é lenta !

simplesmente se faz; engessa

mas será, Ó qualquerum, que não é Ele quem (me) digere?

porcos. Sub-porcos. Sub-sub-porcos.

na era da produtibilidadereprodutibilidadereprodutibilidadereprodutibilidadere

técnica. Pós-técnica. Pós-pós-técnica.

Não entendo bem, Ó filho meu, que fazes aqui ?

Que queres diante de (tudo) isso ?

Esqueceu-se, por acaso, dos exemplos de Roma ?

a cidade entre parenteses

(são Paulo. São Paulo. São paulo.)

(Fernando Túlio)

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fernando túlio

Fernando Túlio, 22, acaba de reelaborar o estatuto do Conselho

Curador da FAUUSP. Não perde uma oportunidade para expressar e defender o que acredita - mas se algum de nós tentasse expressá-lo ou defendê-lo, ninguém acreditaria. Nem ele. Enquanto estamos aqui, tentando dizer nesse breve texto quem é Fernando Túlio, ele está na Colômbia, provavelmente tornando-se outro, em busca de mais projetos para transformar-se em mundos. (H)

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t r a d u ç õ e s

c i d a d e s d e m o n í a c a s M i c h e l Z é r a f f a

- E vocês não poderiam sair daqui? - Para onde iríamos?... em toda parte reina a escuridão.

Jan Weiss, A casa de mil andares

1922: Ulisses (“os bondes se cruzam, sobem, descem. Inúteis, as palavras”). 1923: Pinturas e/ou colagens da série “Metropolis” de Paul Citroën (“os arranha-céus subindo sempre e sempre, gigantescas frações de pontes emergindo de um mar de casas sem fim, múltiplas insígnias elétricas”2). Neste “encavalamento/engarrafamento do construído”3, vê-se uma torre Eiffel colada como se fosse uma flecha indicando as curvas vertiginosas da ponte do Brooklin. 1925: Manhattan Transfer (“na rua 42, ela se revela. Tudo não era senão uma confusão de planos coloridos se entrecruzando, rostos, pernas, vitrines, automóveis”). 1926: Metropolis, de Fritz Lang. 1929: Berlim Alexanderplatz (“lado sul, a rua Rosenthal desemboca na praça. Seguindo em linha reta, as pessoas podem dirigir-se a Aschinger para comer e beber. Concerto e pastelaria-padaria. O peixe é nutritivo... embaixo, para as senhoras, a autêntica seda artificial, um estilo emplumado e dourado de primeira qualidade”). 1932: em O homem sem

2 Wescher, H. “Collages”, N. Y. 1969, p. 149.

3 Pessin, A. e Torgue, H. “Villes Imaginaires”, Grenoble, 1975 (ex.

datilografado) p. 170.

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qualidades, Musil vê a sociedade futura como uma “espécie de cidade hiper-americana onde tudo avança e pára sob o domínio do cronômetro. Os transportes (de superfície, aéreos e subterrâneos), os deslocamentos humanos por meio de veículos pneumáticos, filas de automóveis avançando na horizontal, ao passo que na vertical elevadores ultra rápidos sugam as massas humanas”. A grande cidade (Viena) é uma “eterna dissonância, um eterno desequilíbrio dos ritmos... uma espécie de líquido em ebulição”. E lê-se em uma história de ficção científica de 1977: “A paisagem: um empilhamento sem fim de blocos de concreto cinzentos perfurados por milhares de janelas cegas, alinhamentos retilíneos de torres esguias que atravessam o teto baixo da névoa industrial, os vastos quadriláteros negros e marrons das usinas cujas chaminés espinhosas escarram em turbilhões circulares de fumaça espessa, a rede múltipla de avenidas suspensas onde se aglomeram, como insetos em procissão, filas intermitentes de veículos de todos os tamanhos”4.

Dois traços essenciais da grande cidade moderna, solidários e contraditórios, alimentam, quando não geram, o imaginário da ficção, do cinema, e ás vezes também da pintura: massiva, compacta, cega, a cidade é ao mesmo tempo atravessada por agitações bruscas, mecânicas. Esta dupla demência urbana (tal é o sentimento de Dos Passos, Döblin, Thomas Wolfe, Fitzgerald, e até mesmo de Céline) constitui o mais poderoso dos geradores de escritura. Era assim já para o naturalismo e, como se sabe, para Baudelaire. A partir de “As flores do mal”, a equivalência cidade-discurso se degrada: “Horrible vie! Horrible ville”, ou ainda: “Trébuchant sur les mots comme sur les pavés”5. Paris não se pode mais ler como Hugo a havia lido, como a havia decifrado Balzac. Ao contato com a grande cidade, a imaginação e a linguagem acham-se privadas de linhas de referência. É uma cidade construída-destruída (impondo sua massa aos homens sem possuir no entanto nem unidade nem coerência), que se deve escrever “a quente’. A idéia de desconstrução mostra-se singularmente frágil diante de Manhattan Transfer.

4 Andrevon , J. P. “Um quartier de verdure”, Fiction, abril 1977, p. 135.

5 “Tropeçando em palavras como se tropeçasse nas calçadas”.

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A cidade: estilhaços do verbo

Algumas cidades-fábula (da New York de Dos Passos à Berlim de Döblin, até chegar às cidades-planetas, quase sempre sinistras, das narrativas de ficção científica) carregam dentro de si apocalipses, e anunciam, através de seus fracassos mecânicos, o grande silêncio que se estabelecerá ali onde antes havia uma cidade, quando uma voz de homem disser lentamente: “nada viste em Hiroshima”. E o próprio Alain Resnais, em um filme de 1976, mostrará um homem sendo fulminado pela gigantesca bola, espécie de “maça” da moderna civilização urbana, que, da ponta de um guindaste-flagelo, golpeia e destrói os edifícios. Construção, demolição: parece não mais existir “meio” em nossas paisagens urbanas. Ou torres, ou longos rastros negros, traços deixados pelas chaminés sobre velhos muros postos a nu, descascados.

Por si só, por sua simples presença, a cidade é um cataclisma e uma maldição, diz o escritor. Existem, certamente, exceções. O humanismo de Jules Romain (“os telefones, os aeroplanos, os trens, os elevadores, as portas giratórias, as calçadas, as chaminés de usinas, a massa de pedra das casas, a fuligem e a fumaça, eis os componentes da beleza na nova natureza urbana”6) fará eco ao aparente anti-humanismo dos futuristas, adoradores dos movimentos, dos sons, das luzes da cidade. Diante do caleidoscópio urbano, o futurismo, o construtivismo e o dadaísmo não experimentam a mesma aversão que caracteriza os romancistas e vários poetas. Crendo situar-se fora tanto da utopia quanto da alienação, Moholy-Nagy concebe em Berlim, entre 1921 e 1922, o filme Dinâmica de uma metrópole (Dynamik der Gross-Stadt):

Massas de veículos. Bondes, carros, caminhões, furgões, bicicletas, Ônibus surgindo de todos os lados da praça. De repente todos recuam em massa Amontoam-se no centro da praça.

6 Cf. Pessin e Torgue, op. cit., p. 235.

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O chão da praça se abre pelo meio e os engole. (A câmera inclina-se para criar uma impressão de queda.) cabos subterrâneos TEMPO Caminhão de gasolina esgotos7

Mas em seu conjunto, a ficção dos anos 20 apresenta pelo contrário

a cidade como um não-dinamismo. O urbano é um agregado de desagregações onde com freqüência o próprio sociólogo verá realizada a forma, a concretização essencial da sociedade industrial8. New York, Londres, Viena, Berlim, tornam-se matrizes arquetípicas do terror, ou ao menos de fascinações perversas, tais como a presença obsessiva do cinema (que será a ruína do Studs Lonigan de Farrell) ou o circo da Alexanderplatz (onde se encontra envolvido Biberkopf). Uma Vista de Roma de Masolino (cerca de 1420) – casas reunidas, enfileiradas em ordem de sabedoria ou de batalha, pouco importa – parece irreal diante das visões impressionista, cubista, futurista, que escolhem por objeto não mais a cidade, e sim o urbano. Lentamente elaborada, cercada de muros ou em ruínas bem compostas, a cidade pictórica ou literária havia sido durante muito tempo uma desordem ordenada, um discurso com os acidentes internos e as rupturas que lhe são necessários. Se é verdade que a rua medieval continha perigos e tentações brutais; que “Deus e o diabo a disputavam, lutavam nela e por ela”; que enfim ela exibia uma “truculência na sordidez” (da qual Restif de la Bretonne deixou-nos um testemunho bastante particular9); ainda assim a cidade não deixava por isso de ser um lugar de comunhão, de comunicação, e às vezes até de harmonia. A cidade moderna, pelo contrário, não é nem cívica, nem

7 Moholy-Nagy (Document Monograph in Modern Art) Londres, 1974, p. 121.

8 Por exemplo, Lefebvre, H., Du rural à l’urbain, 1970, ou Laborit, H., l’Homme

et la ville, 1971. 9 Lefebvre, H., op. cit., p. 101.

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social, nem religiosa. Ela é descentrada, e aos olhos do escritor ela assume o caráter de um anti-discurso, a-logos que se tornará müthos graças a Joyce, pois Ulisses, como observa H. Broch, domina “a selva das máquinas, a selva do concreto”.

Forma de conteúdo ao mesmo tempo massivo e despedaçado, essa não-cidade suscita escrituras contínuas e descontínuas, que correspondem à noção de tempo revelada pelas metrópoles. Nelas, o tempo é dramaticamente fragmentado, mecanicamente esmigalhado; mas esta fragmentação não é outra coisa que o próprio Tempo, entidade absoluta, sinônimo de morte, que se desejaria compensar pela duração (domínio do ser que é no entanto estritamente individual, reservado àqueles que podem manter-se fora da cidade). Ficções urbanas nas quais a maior parte dos personagens gostaria de poder fazer como Quentin em O som e a fúria: quebrar seus relógios para voltar a ser pessoas. Depois de 1860, a cidade converte-se para o escritor em um universo dúbio/ambíguo, vívido e mórbido, vital e mortal. “O vigor das massas trabalhadoras não pode igualar-se ao enfraquecimento a que elas estão condenadas pelo trabalho e pela cidade. Esta representa um progresso que é o futuro do mundo moderno, mas que traz junto consigo a destruição e a morte. A cidade, materialização do mito da vida, com muito mais força oculta dentro de si os estigmas da morte”10. Cidades ambivalentes (cegas e deslumbrantes, indiferentes e mortíferas, refúgios e prisões, onde todos se cruzam sem se ver). Cidades demoníacas: entregues ao demônio, um demônio que na ficção volta a ser o daimôn, gênio protetor, salvação técnica, poética, estética.

“A imensidão indiferente dos rugidos do mundo de Londres” (H. James); as torres de New York, de Chicago, de Pittsburgh (signos do desmoronamento ou do estufamento/estrangulamento dos valores americanos originais); a Dublin sinistra do primeiro Joyce (aquela de Dubliners e do Retrato do artista quando jovem: civilização/sifilização); tantas cidades tratadas como “pesadelos arquitetônicos”, onde cada rua é

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Larousse, A., le Theme de la ville dans l’oeuvre de Baudelaire, tese de

mestrado, Nanterre, 1969, ex. datilografado.

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um “canhão formado por falésias vertiginosas”; inumeráveis metáforas da vida gregária, do tempo disciplinar, do indivíduo esmagado, da existência mecanizada – tudo isso constitui o mais amplo pretexto moderno para a renovação da idéia de beleza. Baudelaire havia previsto de certo modo que entre uma obra-prima apaziguadora de Saenredam (como a antiga câmara municipal de Amsterdam) ou ainda a Demolição da igreja de Saint-Jean-em Greve (de Hubert Robert) e obras como as cidades ossificadas-ossuários de De Chirico, a Paris “decomposta” de Monet, a escritura de Joyce, e tantos filmes que adotam a cidade como protagonista, se instauraria uma equivalência estética que viria a tornar alienantes aquelas obras cujo objeto (o “sujeito”) fosse a própria alienação. “São trágicas e charmosas, as nossas ruas; elas deveriam bastar a um poeta”, dizia Zola. Mas à exceção de Une page d’amour (em que o herói contempla a aparição de Paris através das brumas que se dissipam), o naturalismo mostra-nos uma cidade leprosa, com a pretensão de transfigurá-la esteticamente. A realidade urbana constitui certamente um componente poético maior da discursividade metafórica do naturalismo (a escritura de Proust será também ela discursiva e metafórica, mas de uma maneira completamente nova: basta recordar que em nenhuma passagem de A la recherche du temps perdu Paris apresenta-se como uma metrópole monstruosa e trepidante), mas será no primeiro terço do século XX que os fenômenos urbanos se tornarão verdadeiramente consubstanciais (tanto na ordem do conteúdo quanto na ordem da forma) às ficções literárias, cinematográficas e pictóricas. Um dos elementos essenciais da escritura de Dostoievsky é a personificação do mal em uma cidade específica – Moscou, sem dúvida; mas sobretudo Petersburgo, “cidade maldita... cemitério sob as águas cujas pedras repousam sobre os esqueletos de milhares de camponeses empregados na construção de seus palácios”11: Petersburgo, germe de uma cultura ocidental mórbida e satânica, destinada a fazer apodrecer a sadia natureza russa. E essa mesma cidade será descrita por Andrei Biély como a cidade corruptora da

11

Perrot, J., “La Machine du roman dostoïevskien”, Poétique, 13, 1973, p. 57.

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linguagem russa, geratriz lamacenta e ruinosa dos dois males que assolam a Rússia: terrorismo e conservadorismo. Em Petersburgo (e diríamos que mais ainda em Moscou, desgraçadamente intraduzível, a tal ponto o discurso nesta obra acha-se pulverizado), a cidade é reduzida a um conjunto de falsas habitações e de falsos palácios (destroçados em seu interior), enquanto o rio inflama-se sob o calor das usinas cheias de operários ameaçadores, condenados a uma existência sórdida. Assim começa a série de ficções da mimesis urbana (Joyce, Dos Passos, Döblin), das quais Manhattan Transfer nos oferece o exemplo mais típico, o mais rigoroso.

Se por um lado Dos Passos calca a composição do romance no entrecruzamento geométrico das artérias de New York, por outro o único personagem consciente da alienação do indivíduo pela cidade (Jimmy Herf) exclama: “Ah! Se ao menos eu pudesse crer nas palavras!”, e censura-se no metrô por pensar “nas coisas passadas”; não se pode mais chamar de linguagem aquilo que se fala na cidade (aquilo que ela nos constrange a falar), e acima de tudo o espaço urbano mutila a memória, torna-a vã. Essencialmente prosaica (antítese do romance de Proust, mas também de A morte de Virgilio), a ficção urbana (ao menos em Dos Passos e Döblin) anula o casamento entre Memória e Poesia12. Objeto, joguete da cidade, o indivíduo dispõe apenas de representações fugazes, abortadas, e com freqüência os estados afetivos assumem a forma de elementos urbanos. A angústia de um personagem de Manhattan Transfer, por exemplo, é assimilada ao som da sirene de um carro de bombeiros. O indivíduo é possuído pelo demônio urbano.

No entanto, a técnica analógica da cidade praticada por Dos Passos confere à obra um certo estetismo contra o qual seu modelo, o Ulisses (a mais rica matriz do romance moderno), era imune. Pois Joyce, através de Leopold Bloom, domestica a cidade, agarra-a pelas palavras: aceitando que ela rompa o verbo, ele se dispõe a recolher seus cacos, dispô-los de maneira a estabelecer o contra-discurso do monólogo interior (“usina de

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Ruprecht, H., “Mémoire-Poésie. Mythe et pratique discursive”, Revue

Canadienne de Littérature comparée, Printemps 1975, p. 97-110.

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gás. Parece que isso serve para curar a coqueluche”). Joyce faz tabula rasa do passado enquanto nostalgia, e consegue deste modo torná-lo presente, estendê-lo espacialmente segundo um perímetro urbano, ao longo de artérias urbanas. A diferença essencial entre Ulisses e Manhattan Transfer é que Dos Passos funda sua ficção sobre a perda (ou a traição) dos valores americanos, portanto sobre o despedaçamento de um discurso moral/ideológico que só parece intacto na linguagem “de fachada” de uma certa classe dominante. Ora, o agente, o órgão desse despedaçamento é precisamente o espaço reticulado de Manhattan e sua turbulenta “circulação”. Assim, para Dos Passos, o modelo espacial de Manhattan é ao mesmo tempo rigorosamente mimético e essencialmente simbólico. Os assim chamados “artifícios estruturais” do escritor não são “manobras desesperadas”13, mas efeitos de uma observação que lhe permitiu conceber tanto o desmoronamento do “sonho americano” quanto o “estar-aí massivo” e alucinante da cidade como geradores de formas.

Joyce também havia concebido Dublin como um perímetro, um “mapa romanesco”; mas em lugar de ser despedaçado, oprimido pela cidade, Leopold Bloom deixou-se levar (se laissait faire) por ela, sem revolta nem medo, e deste modo recobrou consciência, memória, distância, liberdade. Integrado em Dublin, o herói de Joyce pode empreender surpreendentes recuos, enquanto os “personnages pulvérulents” (como os chamava Gide) de Dos Passos, permanecendo quase todos estrangeiros em New York, estão condenados a aderir a ela dolorosamente. O monólogo interior também lhes é interdito: é preciso que o escritor pense em seu lugar, por fragmentos de discurso ou por metáforas “tradutoras”, por interpretações. Em Joyce, o primeiro grau, a linguagem (o stream of consciousness não é menos radicalmente exterior que interior: a condição urbana o suscita freqüentemente), favorece (ou

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Schorer, M., “Tecnics as Discovery”, in Forms of Modern Fiction, Minneapolis,

1948

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até realiza) o segundo grau, o pensamento14. A cidade (a Dublin de 1904 é sem dúvida mais humana que a New York de 1920) é um labirinto cuja origem seria sobretudo cultural – e mítica. Prisioneiro e senhor da rede dublinense, Leopold Bloom é menos livre que neutro. Ele se coloca a meia distância entre euforia e disforia. Ele não “sofre” a cidade como o Jimmy Herf de Dos Passos, mas por outro lado não sente essa poesia das ruas e das casas experimentada uma vez e outra pelos andarilhos encantados do Paysan de Paris e de Nadja.

A ficção da cidade moderna não apenas rompe o discurso: ela também agrega a si essas frações de linguagem que são os anúncios publicitários, as manchetes de jornais, as “novidades filmadas”. Raro em Joyce, este método da citação é de importância primordial para Dos Passos, e Berlim Alexanderplatz acha-se dele impregnado. “Na corrente de consciência do bravo ex-condenado Biberkopf, alguns fragmentos da grande literatura, tendo agora perdido sua significação, misturam-se em um turbilhão infernal com farrapos de linguagem que surgem do tumulto da grande cidade: letreiros e anúncios pendurados, canções da moda...”15. Neste universo de romance “super-determinado pela imagem caótica da vida em uma grande metrópole moderna, a citação aparece como um novo código”16. A fragmentação da narrativa, análoga à existência urbana (fragmentação que é por si só um código), realiza (com a ajuda das citações) um posicionamento da ficção no presente. Presente de eternidade e de universalidade (capaz de agrupar múltiplos termos) em Joyce, mas pura e simples atualidade em Berlim Alexanderplatz – Zeitroman por excelência, no qual a duração é aniquilada. Somente Leopold Bloom, personagem mítico, pode dominar esse tempo mecânico

14

Zéraffa, M., “Présence de la ville dans l’écriture du roman. Aspects

psychologiques et formels”, Journal de Psychologie, 2, abril-junho 1975, p. 204-

208. 15

Meyer, H., Das Zitat in der Erzählkunst, Stuttgart, 1961, p. 125, citado por W.

Krysinski, “O ‘para-literário’ e o ‘literário’ no romance moderno”, Zagadnienia

Rodzajow Literackich, XIX, 1, 1976, p. 57. 16

Krysinski, W., op. cit., p. 57.

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(que morre ao cumprir-se), assim como pode libertar-se da cidade – cúmplice por antecipação do vagabundo de Tempos Modernos, deslizando nas engrenagens de uma máquina sem que essa o esmague. A nostalgia do sonho americano não atinge os imigrantes: brechtianos por necessidade, eles se adaptam. Tempos Modernos transcende os tempos modernos.

Bloco, unidade urbana. Nas vielas que separam os blocos ocorrem os homicídios do romance americano. A massa urbana e suas trincheiras catalisam o romance e o filme (Mickey Spillane: O homem do braço de ouro, l’Arnaqueur). Dos Passos criou uma escritura para-cinematográfica, e S. Lewis começa Babbitt com um “zoom”, uma tomada de aproximação de câmera (“as torres de Zenith erguiam-se acima da névoa matinal, torres austeras de aço, cimento e pedras”); depois disso, a “câmera” desce até as janelas do apartamento de Babbitt. No início de Lost Weekend (1945), aparece primeiro um conjunto de edifícios, depois a câmera se aproxima de uma janela de cujo parapeito pende, destacando-se contra o fundo de um muro claro, uma garrafa de whisky (paradigma metonímico da obra). Hitchcock utilizou um procedimento semelhante em Psicose. Mas o Manhattan Transfer do cinema continua sendo Berlin, Symphonie einer grossen Stadt, de K. Mayer e W. Ruthman (1927), filme absolutamente análogo à cidade por sua montagem, seu ritmo, sua significação. Quer entrem nas usinas ou saiam delas, quer estejam andando pelas ruas, tomando um bonde ou fazendo uma refeição, os indivíduos são entidades mecânicas. Nenhuma imagem mostra melhor a essencial repetitividade dos “tempos modernos” do que aquela das portas da usina fechando-se sobre um vazio (especialmente quando se tem em conta que o filme havia começado com a mesma imagem invertida: as grades abrindo-se para uma multidão de operários).

A onipresença sufocante de New York manifesta-se em The Asphalt Jungle (Huston, 1951) e em The Naked City (Dassin, 1948). Uma Tokyo tórrida e agitada animará Cão furioso (Kurosawa, 1949). A partir dos anos 60, a grande cidade parece perder em grande medida sua presença maciça, global. O escritor sente-se menos fascinado pelo poder mítico e

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maléfico do urbano. Os filmes de Warhol, os romances de Updike se desenrolam “no solo”, e o detalhe urbano sórdido reinará em Macadame Cowboy. A cidade, embora sempre reproduzida existencialmente, já não é mais forma – em nenhum dos dois sentidos da palavra: limite restritivo, esquema artístico. Conservando toda sua força e presença, o urbano deixa de constituir um modelo e um modo de composição.

Observemos que em Dos Passos, Döblin e até mesmo em Joyce, a cidade é a tal ponto concreta em sua opressão e mecanização que chega a tornar-se irreal, ou pelo menos não-verdadeira. Toda mecânica é em certo sentido abstrata. As divisões do tempo, que fazem com que ninguém possa pertencer a si mesmo; as limitações do espaço; a substituição de toda e qualquer vida interior e reflexiva pela perturbadora exterioridade urbana; em uma palavra: o caos regulamentado e repetitivo da cidade, tal como o escritor o exalta acreditando denunciá-lo – todos esses traços da ficção urbana tangenciam a fantasmagoria e fazem pensar que a verdadeira vida só pode estar acontecendo em algum outro lugar, mesmo que não exista nenhuma outra possibilidade à qual recorrer. O método mimético (e amplamente simbólico) faz aparecer o nonsense da cidade e da vida modernas. Mas o sentido subsiste, como lamento ou como esperança. Outros escritores levarão este nonsense ambíguo do urbano ainda mais longe, até atingir o absurdo. A cidade-hipnose

“Patera nutria uma aversão extraordinariamente profunda contra todo progressismo em geral. Eu disse precisamente contra todo progressismo - em especial no domínio científico. Eu vos rogo, tomai estas palavras absolutamente ao pé da letra, pois é nelas que reside a idéia-mestra do Império do Sonho. O Império encontra-se separado do mundo circundante por uma muralha de contorno, e protegido contra toda e qualquer invasão por sólidas construções. Um único portal permite a entrada e a saída, e facilita o rigoroso controle da circulação de pessoas e de mercadorias. No Império do Sonho, lugar de asilo/exílio de todos

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aqueles aos quais a civilização moderna não satisfaz, todas as necessidades corporais são atendidas. Longe do pensamento do senhor deste país o desejo de criar uma utopia, uma espécie de estado do futuro.”

Nos confins do sul da Europa, o riquíssimo Claus Patera adquiriu uma propriedade de três mil quilômetros quadrados onde ele acolhe alguns privilegiados que aspiram a tornar-se “sonhadores”. Ele convida o narrador a vir morar em Pérola, capital de um império onde, com efeito, o que reina não é propriamente uma vida ideal, mas antes o sonho em lugar do trabalho, com suas contradições, suas confusões, suas condensações aparentemente absurdas ou monstruosas. Tomado de pavor diante da progressão da demência, o narrador procura ver o Mestre, Patera: ele enfrenta-se com uma infinidade de obstáculos burocráticos, até o dia em que Patera lhe aparece por acaso, da maneira mais simples que se poderia imaginar: bastava abrir uma porta... “tu te queixas de não ter nunca podido chegar até mim, e no entanto eu estive sempre muito perto de ti...” Mas este mestre invisível-visível é um Proteu que, com a rapidez de um relâmpago, transforma-se em adolescente, criança, mulher, velhote, e depois em leão, chacal, serpente. Apenas um rico e enérgico americano, Hercule Bell, é capaz de abater Patera. O momento mais intenso do romance é aquele em que Bell e Patera lutam corpo a corpo, até o ponto de converterem-se em um único ser monstruoso, um “pólipo de mil braços”. Quando este monstro por fim morre, ele toma repentinamente o aspecto de uma estátua de “indescritível beleza”. Quanto ao americano, ao anúncio de que os “Impérios Centrais” vieram pôr ordem no Império do Sonho, diz-nos o narrador: “ele ainda vive em nossos dias, e todo o mundo o conhece”. Chegou o momento de evocar, embora de modo extremamente grosseiro, uma das mais poderosas ficções fantásticas já escritas: O Outro Lado (Die Andere Seite), publicada em 1909 pelo pintor e desenhista boêmio Alfred Kubin17. Nesta extraordinária expressão do poder do sonho, Kubin quis

17

Kubin, A., “l’Autre Côté”, tradução francesa, 1964.

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sem dúvida mostrar que o inconsciente constitui o conteúdo necessário da arte, mas que é preciso superá-lo e dominá-lo. As significações de O Outro Lado são múltiplas, mas para o nosso propósito - e levando em consideração, além do contexto do romance, de modo mais geral, o contexto artístico da época – convém observar que a ruinosa e anacrônica cidade de Pérola, reunindo por um alto preço uma colcha de retalhos da velha Europa, apresenta-se como uma imagem invertida das cidades-máquina que suscitaram entre os grandes romancistas um fascínio ambivalente: aversão ideológica, atração estética. Ora, a capital desusada (mas fértil em metáforas) do Império do Sonho será destruída pelo americanismo, pelo pragmatismo que naquele momento tomava posse da Alemanha – e que Thomas Mann, Wassermann e sobretudo Musil temiam como um flagelo. Dando a devida importância à ironia de Kubin e à natureza catártica de seu romance, destacaremos que esse artista (admirador de Munch, Ensor, Redon e Kandinsky; amigo de Franz Marc; ilustrador de seu próprio romance e de obras de d’Aurévilly, Poe e Hoffmann) - rejeita a modernidade industrial e urbana como tema e modo de inspiração.

O sonho estrutura também A casa de mil andares, publicado vinte anos mais tarde (em 1929) pelo escritor tcheco Jan Weiss. Nesta casa-cidade, construída com o emprego de um mineral ultra-leve (o solium), os ricos ocupam os primeiros andares (ao contrário do que ocorria em Metropolis de Fritz Lang) e à medida que se sobe em direção aos andares superiores, percebe-se um progressivo esvaziamento da memória, da personalidade e da liberdade de seus ocupantes: eles não podem nem subir nem descer. O corajoso detetive Brok escalará no entanto estes degraus infinitos com a finalidade de desmascarar e eliminar o dominador da cidade, o rico Ohisver Muller (que dera seu próprio nome - Mullertown – aos seus domínios). Ele comanda suas tropas com a ajuda de um microfone de cristal, e toca órgão. Muller reinava sobre um império cuja transcrição literária é, assim como já se disse a respeito de Döblin, farta em citações (principalmente de anúncios publicitários). No final da ficção,

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o narrador revela sua identidade: ele é um refugiado do horrível campo militar de Totskoie18.

“Entre Bosch e Kafka”, dizia-se do romance de Kubin; e o autor do prefácio de A Casa de mil andares denunciou o simplismo dos críticos que haviam comparado Weiss ora aos surrealistas, ora ao autor de O Processo e O Castelo. É de se notar que em um espaço de vinte anos, três escritores nascidos no império austro-húngaro (Kubin em 1877, Kafka em 1883, Weiss em 1892) tenham concebido uma cidade inumana, regida por uma autoridade ao mesmo tempo onipresente e invisível que no entanto está “logo ali”, próxima. Mas apenas Kafka sabe traduzir literalmente aquilo que chamamos de “concretude abstrata” do urbano: branca, muda, legível apenas nas entrelinhas, a cidade de O Processo é ainda mais esmagadora que Manhattan. Kafka vê, com efeito, que o inumano gera o urbano, e não o contrário – ao passo que a maior parte dos escritores da primeira metade do século XX costumam confundir capitalismo com industrialização. Kafka sabe, além disso, que a organização burocrática (associada em sua obra, sem dúvida, à indiferença onipotente de Deus) torna o indivíduo unidimensional. E esta unidimensionalidade é algo que a imaginação pode somente traduzir: a libertação pela metamorfose ou pela metáfora não tem direito de cidadania. Kafka supera ou rejeita a geração da ficção tanto pela mecanização moderna quanto pelas forças do sonho – armas vãs contra uma Aparência (a cidade, a vida traçada por agrimensores) que é, irredutivelmente, a Realidade.

O formigueiro humano não nos oferece nada além de uma fachada muda, escreveria mais tarde Thomas Wolfe. Tal como Kafka o compreende, este mutismo requeria uma linguagem transparente, um discurso restituído, uma linearidade factual. A cidade que vai ganhando forma à medida que se avança na leitura de O processo é uma cidade estranhamente designada por uma frase de Kubin: “Olhai, o Senhor Espaço luta pelos favores de Madame Duração: o lugar onde eles se unem, no presente, é a morte.”

18

Weiss, J., La Maison aux Mille étages, trad. Fr. Verviers, 1967.

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Cidades-silêncio

A temática de Metropolis parece pertencer hoje ao passado remoto da ficção. O tumulto dos metrôs subterrâneos e aéreos, os movimentos da multidão, as obsessivas insígnias luminosas freqüentam muito poucos romances e filmes. O título do filme de Robert Kramer – Ice - designa uma New York cheia de silêncio e de sombra, paralisada, congelada pelo fascismo. O tema da desolação ou da glaciação da cidade depois do cataclisma constitui por si só o objeto de um longo estudo. “Um boulevard linear, rio confuso sufocado pelo gelo, esperava sem fluir...” “alinhados uns contra os outros, os edifícios abriam-se para o vazio, inabitáveis, mas ainda não em ruínas”19. Ao barulho de Manhattan opõe-se a seqüência de A Última Margem, que desdobra diante de nossos olhos uma visão da cidade de San Francisco absolutamente deserta: telefones fora do gancho pendendo de seus fios, portas batendo ao sabor do vento, automóveis abandonados. Cidades desertas/defuntas, onde subsistem apenas dois seres humanos para três milhões de números de telefone. Cidades mortas, cidades alienígenas que descem à Terra para sujá-la com seus foguetes. Metrópole agonizante de New York não responde mais, onde comunidades vivem em campos fortificados. Morte do metrô, morte das luzes - como se De Chirico fosse um profeta dos tempos futuros, ao lado de Max Ernst (que, na mesma época em que Citroën pintava e colava suas metrópoles, realizou Dadaville utilizando retalhos de cortiça e gesso). Mutismo urbano da pintura hiper-realista, como se a era da fotografia já tivesse sido ultrapassada - por ser agitada e contrastante demais. A imagem da cidade converte-se em uma imagem parada, aprisionada. As cidades não foram nunca tão barulhentas e tão cruéis quanto hoje - mas a crueldade foi canalizada, e o pesadelo climatizado. Por fim aparece em 1977 o filme News from home, de Chantal Ackerman, todo ele realizado a partir de planos fixos, pondo em cena unicamente New York – o monstro New York.

19

Le Clézio, J. M., “Les yeux n’ont pás de frontières”, La Nouvelle Revue

Française, janeiro 1966, p. 6.

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Mas a cidade continuará sendo uma referência significativa de primeira importância. Em O emprego do tempo, Butor anexará à ficção um esquema da cidade de Bleston – seguindo o exemplo de Kubin, que havia desenhado a planta de Pérola. O silêncio desta cidade estranha irá progressivamente tomando posse do narrador. O emprego do tempo transforma-se em emprego do espaço, pois de fato já não existe mais tempo, apenas uma espécie de mapa temporal ao qual é preciso recorrer para tentar encontrar pontos de referência. A cidade torna-se assim um labirinto do qual só se pode sair por meio da literatura – ou seja: com a ajuda de um diário na maior parte das vezes retrospectivo que corrige o processo verbal do encarceramento urbano. É possível aproximar o trabalho de Butor da estratégia poética de Baudelaire: O emprego do tempo põe em jogo sem cessar a bruma, o nevoeiro, a chuva (estes “andrajos do céu”), as “velhas calçadas cobertas por uma película de lama quase líquida”, o brilho dos postes e lampiões20. No entanto, Baudelaire enfrentava diretamente o labirinto de Paris (e sua população feroz), permitindo que a cidade penetrasse em seu espaço imaginário e poético, ao passo que o romancista faz do urbano um quadro dentro do qual se desenvolve um certo imaginário afetivo e literário, um espaço muito bem delimitado, que seu herói será capaz de percorrer graças ao “fio de Ariadne” de um “cordão de frases”. Um outro exemplo interessante de romance que utiliza o quadro (strictu sensu) urbano é A Eclusa (1964) de J. P. Faye, obra na qual um casal é confrontado com uma cidade partida ao meio, dividida em duas. Trata-se de Berlim - mas no seio do romance a cidade permanece abstrata, esquemática.

Do mesmo modo, a cidade de Gomas (1953) era uma cidade qualquer do norte, indefinida, indecisa. Dezessete anos mais tarde, Robbe-Grillet escreve Projeto para uma revolução em New York, obra em que a cidade jamais aparece retratada de acordo com suas massas e seus movimentos, nem mesmo com base em um “plano diretor” – o escritor encara o urbano como um conjunto de conteúdos que constituem o

20

Larousse, A., op. cit.

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“sentido” da metrópole, e que suscitam/excitam de duas maneiras a imaginação literária: por um lado, o urbano, sendo a própria descontinuidade, autoriza o autor a romper as seqüências, a contradizer aparentemente toda a lógica narrativa; pois, trabalhando a partir de uma cidade que priva os seres de sua identidade (privação entendida como o pior de todos os flagelos urbanos por autores como Dos Passos, Joyce, Faulkner, Wolfe, Broch – e da qual Robbe-Grillet procura tirar partido), o escritor pode tornar seus personagens intercambiáveis, dar um mesmo nome a diversas “pessoas” que desempenham papéis diferentes. Em segundo lugar, Robbe-Grillet encontra, entre os elementos ou aspectos da grande cidade, aquilo que se poderia chamar de imagens concretas, prontas a qualquer tipo de emprego, e que por sua violência (seja estereotipada ou sistemática) parecem nutrir uma situação revolucionária latente: “Designadas abertamente, à plena luz, como estereótipos, estas imagens não funcionam mais como ciladas a partir do momento em que elas são retomadas por um discurso vivente, que permanece sendo o único espaço de minha liberdade. Esta cidade que me esmaga, eu sei agora que ela é imaginária: e, recusando-me a sofrer de modo alienado suas restrições, suas misérias, seus fantasmas, eu quero pelo contrário reinvesti-los através da minha própria imaginação... a grande cidade americana é evidentemente um lugar privilegiado para a realização de uma experiência desse tipo.”21

Apesar das aparências, a situação em que se coloca Robbe-Grillet é análoga à de Dos Passos: Manhattan Transfer também era um ato de liberdade que partia de um objeto (a alienação urbana), e não é possível afirmar que a obra de Dos Passos seja mais realista que Projeto para uma revolução; mas em uma obra posterior de Robbe-Grillet (Topologia de uma cidade-fantasma, 1976), a cidade nem sequer é abstrata: ela é antes uma abstração – a idéia de cidade tal como poderia formá-la uma história vaga, na qual o antigo e o menos antigo, o concreto e o mito, justapõem-se e se unem na precariedade, na destrutibilidade e em uma pura

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Cf. Robbe-Grillet, artigo publicado em le Nouvel Observateur, junho 1970.

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teatralidade. “Uma cidade perdida teria abrigado sobre um mesmo território muitas civilizações sucessivas, e cada uma delas depositaria nela seus estratos”, diz a apresentação do livro. Semelhante cidade não é mais que um pretexto estrutural – mas esse pretexto é, no entanto, essencial. O escritor de hoje (sobretudo no campo da ficção científica) parece não mais querer medir forças com a metrópole: seja em virtude do imenso desenvolvimento das cidades, seja (o que é mais provável) porque nossa civilização integrou e absorveu a tal ponto os infernos urbanos da década de 20 que o mundo atual acabou tornando-se relativamente anestesiado diante das “42 street” de quarenta anos atrás. Uma parte da Topologia intitula-se “Construção de um templo em ruínas”: o topos é o lugar quase em estado puro, debilmente assinalado por alguns muros e por uma coluna. “Picto-romance” (onde efetivamente reina a imobilidade do pictórico), a narrativa de Robbe-Grillet corresponde abertamente às cidades inertes, lunares, de Paul Delvaux22.

A cidade deixou de ser um lugar. A noção de cidade mostra-se mais claramente nos vestígios e na degradação do passado do que nas massas cúbicas que se impõem diante de nossos olhos. Ruínas antigas, de tipo grego - mas também ruínas modernas, no meio das quais Robbe-Grillet inclui “uma locomotiva negra antiqüíssima devorada pela ferrugem, que escarra de sua alta chaminé um jato espasmódico de vapor branco”. Para Dos Passos (e às vezes também para Musil), o presente urbano era fascinante porque achava-se radicalmente separado do passado (de toda tradição) e carregado das ameaças de um futuro que, conforme se podia prever, seria absolutamente automatizado. Para Robbe-Grillet (como também, em certo sentido, para Fellini, que em seu filme Roma apresenta o subsolo concreto, psicológico e social de Roma como elemento dominante), a “construção de ruínas” constitui uma estrutura favorável à expansão e à expressão de fantasmas (que são, por sua própria natureza, essencialmente arqueológicos).

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Cf. Jost, “Le Picto-roman”, Revue d’Esthétique, 4, 1976, p. 58-73.

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O espaço e a ambiência das narrativas de ficção científica estão repletos de tais ruínas e mitos: nelas, a presença semântica, semiótica e estrutural da cidade é quase tão forte quanto a presença dos foguetes e dos monstros galácticos. Sob muitos aspectos, a ficção científica é arqueológica: civilizações desaparecidas, a Terra cada vez mais deserta depois da bomba, sobretudo a imensa distância que separa os lugares e tempos mais remotos que se possam imaginar da psicologia e/ou da ideologia das personagens (que são as mesmas de agora). A cidade futura da ficção científica é geralmente derivada, por absurdo e até o absurdo, das cidades malditas da ficção do início do século – mas o que a distingue de suas antecessoras é que, embora muitas vezes monolítica (como a “cidade de mil andares” de Jan Weiss), nela os ruídos e furores das antigas Manhattan foram substituídos por um maquinismo urbano praticamente mudo.

Nesses futuros imaginários, antigas cidades são arrancadas inteiras da terra e atravessam o espaço, movidas por misteriosos propulsores (Cidades Nômades, de James Blish, 1962); cidades de uma só peça, monolíticas, são concebidas para o repouso e os prazeres dos cosmonautas em seus períodos de licença. Uma das obras de ficção científica mais significativas é As mônadas urbanas, de Robert Silverberg (1970). Em cidades-edifício de oitocentos andares (“todas idênticas. Torres graciosamente esbeltas, com três mil metros de altura, em concreto protendido. Uma visão comovedora. Deus seja louvado, Deus seja louvado!”), o princípio de realidade e o princípio de prazer (aliados ao deísmo) encontram-se estreita e harmoniosamente conjugados (ou mesmo fundidos). Liberdade sexual quase total: o casamento existe, mas os homens podem dirigir-se de um andar a outro (“Shangai”, “Florença”, “Paris”) e tomar para si qualquer mulher, que naturalmente consente, contando com o assentimento cortês do marido (é preciso gerar o maior número possível de filhos para que outras mônadas urbanas possam ser construídas e ocupadas). Mas essa felicidade mecanizada, lubrificada, perfeita (médicos zelam continuamente para que todos aceitem este modo de existência que se poderia qualificar como “molecular”: ninguém

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deve sentir desejo de abandonar sua Mônada), suscita desvios. Os anomos (aqueles que obtêm autorização para sair, mas que ausentam-se por tempo excessivo, atraídos pelo odor da terra) são impiedosamente lançados nas “quedas” para as usinas de recuperação. Assim retorna-se ao tema da necessidade de uma vida “outra” (perigosa, suja, imprevisível – e “intelectual”), distinta daquela oferecida pela Técnica: o tema da necessidade de transgressão, de diferença, de contraste – e de história.

Repleta de furores gregários, mecânicos, perturbadores, a ficção da cidade moderna não concedia, por volta de 1920, nenhum espaço à sombra e ao mistério. Esta tendência foi depois levada ao extremo: cidades (ou cadeias de cidades) higiênicas e cegas, máquinas silenciosas. Com freqüência (de modo particular nas célebres narrativas de Van Vogt), os problemas de identidade, de autonomia do indivíduo, de relação com os outros – que tanto haviam inquietado os escritores do início do século no que diz respeito à vida nas metrópoles – são regulamentados (negativamente) por computadores. A inquietante estranheza reflete-se hoje em Cavernas de Aço (Asimov). Habitar uma cidade é muitas vezes viver em blocos envidraçados perpetuamente climatizados: o ar externo tornou-se irrespirável. O título americano de A Cidade sob o globo, de E. Hamilton (1951), é City at World’s end: a terra devastada já não dispõe nem sequer de oxigênio. Quanto mais se conquista o espaço, mais os humanos são obrigados a fechar-se. “O silêncio dos espaços finitos me apavora”, poderia dizer a maior parte dos heróis do futuro. A despeito dos esplêndidos campos petrificados que a escritura de ficção científica oferece ao imaginário, é preciso agradecer ao escritor de Algas (M. Brion, 1970) por ter renovado o tema do viajante que chega à noite em uma cidade tortuosa, recortada, onde se rompem e se perdem os fios desconhecidos do Tempo.

Em 1918, Mondrian escreveu em De Stil (n. 1, p. 132): “O autêntico artista moderno vê a metrópole como a vida abstrata figurada... o natural, na cidade, é sempre atenuado e regularizado pelo espírito humano... o belo exprime-se nela de uma maneira mais matemática. A cidade é portanto o lugar a partir do qual deverá desenvolver-se o temperamento

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artístico do futuro.” Esta interpretação é desmentida pela maior parte das obras derivadas do urbano, em cuja demência ou silêncio representa-se a anti-natureza. Pode-se dar aqui razão a Marshall McLuhan: do hot (as cidades do furor, do barulho) passou-se ao cool, às cidades nas quais o inumano cumpre-se através de uma perfeição técnica higienizadora. Recordemos enfim que a cidade moderna fictícia contribuiu em grande escala para o enfraquecimento (quando não para a desaparição) da personagem, bem como para a elaboração de obras estruturais e estruturalistas em sua concepção e em suas formas. Zeraffa, M., “Les Villes Démoniaques”, in Revue d’Esthétique n. 3-4, 1977, p. 13-32.

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