I ntertextualidade tese alleid_ribeiro_machado

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  • 1. UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA PORTUGUESA O PLANTADOR DE NAUS A HAVER SOB A PTICA DA INTERTEXTUALIDADE Alleid Ribeiro Machado Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras. Orientadora: Prof. Dra. Flavia Maria Corradin So Paulo 2006

2. 2 UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE LITERATURA PORTUGUESA O PLANTADOR DE NAUS A HAVER SOB A PTICA DA INTERTEXTUALIDADE Alleid Ribeiro Machado So Paulo 2006 3. 3 E o que eu desejo luz e imaterial. Que canto h de cantar o indefinvel? o toque sem tocar, o olhar sem ver A alma, amor, entrelaada dos indescritveis? Como te amar, sem nunca merecer? H. Hilst H vidas que podem sonhar-se, outras, que a nossa imaginao pode rechear de acontecimentos; esta, pouco mais que narrar-se. J. Nery 4. 4 AGRADECIMENTOS A Deus, por ter iluminado o meu caminho e ter feito forte as minhas veredas. Ao Prof. Francisco Maciel Silveira, a quem admiro com profundo respeito, agradeo pelo estmulo em minha pesquisa, por acreditar em meu trabalho e me guiar no difcil caminho do conhecimento. minha orientadora, Prof. Flavia Maria Corradin, pela amizade, pela orientao atenciosa, pela presteza na indicao dos caminhos para o desenvolvimento e concluso deste trabalho. Um agradecimento especial Jlia Nery, pela afetividade, por tantas conversas e trocas ao longo do caminho. Agradeo pelo apoio pesquisa, pelo envio de material bibliogrfico e, sobretudo, pela amizade consolidada entre ns. banca de qualificao, pelas observaes e sugestes pertinentes, que muito contriburam e enriqueceram a presente dissertao. Capes pela bolsa concedida. Ao Prof. Mrcio Ricardo Coelho Muniz. A qualidade de seu trabalho, seu estmulo pesquisa e ao aprendizado foram, ainda nos tempos da minha graduao, foras motrizes para que eu prosseguisse os meus estudos na rea de literatura portuguesa. minha me Arlete, companheira de todos os momentos, presena fundamental em minha vida. Ao Elizeu, por estar sempre ao meu lado e pela motivao contnua. Ao Eliel, por sua atitude encorajadora e afetiva, pelo apoio irrestrito a todos os meus projetos. Ao meu pai Joo (in memorian), porque apenas um olhar seu bastou para me fazer acreditar que tudo era possvel, desde que houvesse esforo e dedicao. Ao Edson e Marta, pelo carinho de sempre. Ao Wellington Migliari, pelo apoio e pela amizade. Ao Clber, meu amor, pelas palavras de segurana e incentivo que me motivaram a seguir em frente e a concluir esta empreitada e, mais do que isso, pela ddiva de sua presena em minha vida. 5. 5 RESUMO O plantador de naus a haver sob a ptica da intertextualidade A presente dissertao prope o estudo da vida e obra da autora portuguesa Jlia Nery, mais especificamente, a anlise de uma de suas peas de maior cunho intertextual: O plantador de naus a haver. Para tanto, feito inicialmente um relato de como se deu o processo de pesquisa de sua produo literria, desde o primeiro contato com a pea no curso de Ps-Graduao intitulado A literatura portuguesa em cena (FFLCH-USP), at a localizao da Autora, que resultou na reunio de um material bibliogrfico que serviu de base para a elaborao deste trabalho. Em seguida, realizado um apanhado terico em torno da intertextualidade, a partir dos estudos sobre a linguagem empreendidos por Mikail Bakhtin, e das contribuies tericas de Julia Kristeva, alm de outros pesquisadores e lingistas contemporneos, que tm, ao longo do tempo, pesquisado e ampliado as diretrizes bakhtinianas em torno do dialogismo e da polifonia, alm dos estudos acerca dos mecanismos que promovem a intertextualidade. Posteriormente, so analisados os textos paradigmas com os quais a Autora travou dilogo para criao de sua pea. Segue-se a anlise do texto dramtico, utilizando-se como instrumentos intertextuais, a parfrase e a estilizao, uma vez que esses mecanismos demonstram ser, de fato, os adjuvantes para recriao do longnquo medievo portugus, bem como da prpria biografia de D. Dinis, a personagem central. O objetivo principal de tal anlise o de trazer tona, elementos diversos que, constantes nas entrelinhas de O plantador de naus a haver, contribuem para a revelao do ponto de vista de seu Autor em relao personagem principal, ao contexto histrico-literrio no qual se insere, alm claro, de apresentar a sua viso de mundo. Como O plantador de naus a haver tambm destinado ao ensino de Literatura Portuguesa, algumas consideraes sobre a relao teatro-educao tambm so tratadas, a fim de se investigar o intuito pedaggico da pea, que, como poder ser visto, prope uma gesto criativa de seu contedo, a partir da interao entre o texto e seu interlocutor, por meio da expresso dramtica. PALAVRAS-CHAVE (5) dialogismo; intertextualidade; mecanismos intertextuais; teatro; educao. 6. 6 ABSTRACT The planter of ships-yet-to-be under an intertextual approach The present dissertation deals with the biography and work of the Portuguese author Jlia Nery, more specifically, an analysis of one of her plays with the greatest intertextual feature: The planter of ships-yet-to-be. Before localizing the author, at the very beginning, it was made a description of how the research process of her literary production takes place since the first contact with the play in a course from an academic program named A Literatura Portuguesa em Cena (FFLCH-USP). All of this has resulted in a set of bibliographical material that was used to implement this dissertation. A theoretical synthesis was made concerning the intertextuality from the language studies that were undertaken by Mikail Bakhtin and afterwards some theoretical contributions of Julia Kristeva. Other contemporaneous researchers and linguists that have studied for ages enlarged the Bakhtins bases around the dialogism and the polyphony beyond the studies above the mechanisms that have promoted the intertextuality. Subsequently, the texts with paradigms, which the author established as a dialogue in the creation of her play, have been analysed. Soon, the analysis of the dramatic text follows in this dissertation based on intertextual tools, such as the paraphrase and the stylization, as the mechanisms which are being apprehended like the main attributes for a recreation of the faraway Portuguese Middle Ages, even the own biography of D. Dinis, the central character. The main goal of such analysis highlights several elements that appear in The planter of ships-yet-to-be read between the lines, contributing to the revelation of the authors point of view in relation to the main character, to the historical and literary context in what the work has been inserted, besides presenting the authors background in a contemporaneous world being inhaled by her play. As The planter of ships-yet- to-be is also addressed to the Portuguese Literature teaching, some considerations intertwining theatre and education are approached in order to investigate pedagogical purposes in the play, proposing a creative operation of its content from the interaction between the text and its interlocutor through dramatic expressions. KEY WORDS (5) dialogism; intertextuality; intertextual mechanisms; theatre; education. 7. 7 SUMRIO I .Identidades entre os Projetos Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro (USP) e Expresso Dramtica EXDRA (Jlia Nery)............................................................................. ........8 I.1. Preliminares. ...................................................................................................................... 8 I.2. Conhecendo Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro................ 9 I.3. s voltas com o Projeto Expresso Dramtica EXDRA............................................... 11 I.4.Relaes entre os dois projetos ......................................................................................... 12 II. Biobibliografia de Jlia Nery ....................................................................................................... 13 II. 1. Biografia ........................................................................................................................ 13 II.2. Bibliografia..................................................................................................................... 16 II.2.1. Romances..................................................................................................................... 18 II.2.2. Contos.......................................................................................................................... 18 II.2.3. Contos no publicados................................................................................................. 20 II.2.4. Artigos...........................................................................................................................20 II.2.5. Teatro.............................................................................................................................23 III. Entrevistas com Jlia Nery a propsito do Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro.................. ............................................................................................................................... 26 III.1. Sobre O plantador de naus a haver, por Jlia Nery...................................................... 26 III.2. Sobre Do forno 14 ao Sud- Express com autos e foral, por Jlia Nery......................... 33 IV. Acerca da intertextualidade......................................................................................................... 36 V.1. Preliminares - Estudo acerca da teoria bakhtiniana de dialogismo, polifonia e intertextualidade ................................................................................................................................................ 37 IV.2. Polifonia........................................................................................................................ 39 IV.3. Enunciao.................................................................................................................... 41 IV.4. Intertextualidade............................................................................................................ 43 V. Estudo dos textos paradigmticos ................................................................................................ 48 V.1. Cantigas trovadorescas ................................................................................................... 48 V.1.2. Cantigas de Amor........................................................................................................ 49 V.1.3. Cantigas de Amigo ...................................................................................................... 53 V.1.3.1. Cantar de amigo exclusivamente amoroso ............................................................... 54 V.1.3.2. Pranto........................................................................................................................ 57 V.1.3.3. Barcarolas ou marinhas ............................................................................................ 58 V.1.3.4. Teno (dialogada)................................................................................................... 60 V.1.3.5. Bailatas (bailias ou bailadas).................................................................................... 60 V.1.3.6. Ertica ...................................................................................................................... 61 V.1.3.7. Cantigas satricas...................................................................................................... 62 V.2. Textos poticos............................................................................................................... 63 VI. Textos histricos - Recomposio da figura histrica de D. Dinis ............................................. 65 VI.1. D.Dinis, segundo Ruy de Pina ...................................................................................... 65 VI.2. D. Dinis, segundo Amrico Cortez Pinto...................................................................... 75 VII. O dilogo intertextual em O plantador de naus a haver ........................................................... 86 VII.1. Anlise do Ato I........................................................................................................... 87 VII.2. Anlise do Ato II.......................................................................................................... 94 VII. 3. Anlise de Ato III ..................................................................................................... 101 VIII. D. Dinis, entre amador e rei ................................................................................................... 106 IX. Intuito pedaggico: a pea como instrumento de ensino de literatura ...................................... 109 X. Bibliografia................................................................................................................................. 114 8. 8 I. Identidades entre os Projetos Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro (USP) e Expresso Dramtica EXDRA (Jlia Nery) I. 1. Preliminares Nossa dissertao pretende examinar a pea O plantador de naus a haver, de autoria da escritora portuguesa Jlia Nery, sob a ptica da intertextualidade. O primeiro encontro com textos da autora deveu-se ao fato de termos nos matriculado em 2000, ainda como aluna especial, na disciplina A literatura portuguesa em cena, vinculada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura Portuguesa, da FFLCH USP, sob a responsabilidade dos Profs. Drs. Francisco Maciel Silveira e Flavia Maria Corradin. J na primeira aula, os docentes explicitaram alguns tpicos bsicos do projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro, que est na gnese do curso ministrado. Coube-nos, durante o curso, a anlise e interpretao da pea O plantador de naus a haver. Logo percebemos a estreita vinculao do texto ao Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro, uma vez que a pea examina a vida e obra de D. Dinis, o rei-trovador. Sentimos necessidade, alis conforme j prev o Projeto, de entrar em contato com Jlia Nery. Conseguimos seu correio eletrnico atravs da Editora Asa, que publicou vrias das obras da Autora. Desde o primeiro contato, a escritora colocou-se inteiramente disposio para nos ajudar em nossa empreitada rumo ao Mestrado, inclusive pondo-nos a par de seu Projeto Expresso Dramtica (EXDRA), que pressupe os mesmos objetivos do Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro, isto , examinar a vida e obra de um determinado Autor pretrito, sob a perspectiva da intertextualidade, alm de buscar trazer novas luzes para o ensino da Literatura. Vimos, pois, que os Projetos brasileiro e portugus, embora ideados na distncia do Atlntico, tm identidades irrefutveis. Urge, portanto, conhecermos os dois Projetos, bem como a biobibliografia que envolve Jlia Nery, de modo a que coletemos subsdios bsicos para trilhar o caminho da intertextualidade, corrente crtica que se impe na anlise da pea O plantador de naus a haver, como veremos, texto da autora que mais de perto cumpre os objetivos que aliceram os dois Projetos. 9. 9 I. 2. Conhecendo o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro Iniciado em 1997, trata-se de um projeto de longa durao. Subordinado a duas linhas de pesquisa do Programa de Ps-Graduao da Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo Poticas de expresso portuguesa e Textos. Contextos. Intertextos. objetiva: a) o exame de textos teatrais (ou de forte cunho dramtico-teatral) cujo tema e/ou motivo seja(m) a vida e/ou a obra de autores portugueses; b) a utilizao de tcnicas e recursos teatrais no ensino da Literatura Portuguesa. Portanto, o Projeto desenvolve-se em duas vertentes: a) a releitura da vida e obra de autores feita por outros criadores, especialmente dramaturgos. O intuito o de rever conceitos crticos vigentes na historiografia literria portuguesa, em torno de autores, obras, temas, alm de divulgar a dramaturgia contempornea portuguesa; b) contribuir didtica e metodologicamente para o ensino da Literatura Portuguesa, apresentando de forma criativa a vida e obra de autores. Para esta vertente, o Projeto criou o Grupo de Estudos Teatrais Gambiarra, sob a direo do Prof. Dr. Francisco Maciel Silveira e coordenao da Prof. Dra. Flavia Maria Corradin. Conforme est concebido, e graas sua raiz intertextual, o projeto abriga vrias finalidades: a) historiar a Literatura Portuguesa a partir de peas teatrais que privilegiem autores e obras; b) examinar a vida e/ou a obra de um dado autor com base em diferentes textos dramticos; c) estudar um tema literrio que, recorrente no imaginrio portugus, foi enfocado, em diferentes pocas, por textos teatrais ou de forte cunho dramtico-teatral; d) estudar fatos concernentes Histria de Portugal atravs de textos dramticos que tratem de importantes momentos histricos; e) mostrar, atravs de work shops e apresentaes em Instituies de Ensino, como o magistrio da Literatura pode ser feito por meio de recursos e tcnicas teatrais; f) a recolha de entrevistas e/ou depoimentos dos autores contemporneos cujos ttulos esto elencados no Projeto e a respeito dos quais pauprrima ou nenhuma a bibliografia. Abrangendo o perodo que vai da Idade Mdia ao sculo XXI, o projeto objetiva levar o aluno a refletir criticamente em torno da Literatura Portuguesa, oferecendo-lhe a oportunidade de percorr-la diacronicamente medida que lhe estuda autores e movimentos. A novidade do projeto, transformado em Disciplina na Ps-Graduao da Faculdade de Letras da USP sob o ttulo Cenas da Literatura Portuguesa, reside em traar uma histria da 10. 10 Literatura Portuguesa, partindo do enfoque crtico apresentado por uma dada pea teatral. Graas polifonia decorrente desta perspectiva intertextual, confrontar-se- a viso crtica de um teatrlogo com a apresentada pela bibliografia dedicada ao movimento e/ou autor estudado. Assim sendo, o ps-graduando ser levado a considerar criticamente: a) o movimento literrio e seu contexto scio-poltico-econmico; b) a vida e obra do autor enfocado na pea; c) o vis intertextual que vem sendo adotado pela dramaturgia portuguesa em sua reviso da Histria; d) a vida, obra e viso de mundo do teatrlogo responsvel pela pea estudada. Atinentes s finalidades a) historiar a Literatura Portuguesa a partir de peas teatrais que privilegiem autores e obras e b) examinar a vida e/ou a obra de um dado autor com base em diferentes textos dramticos , o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro j levantou at o momento mais de meia centena de peas acerca da vida e/ou obra de autores da Literatura Portuguesa. Para a finalidade c) estudar um tema literrio recorrente no imaginrio portugus , o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro planeja ainda credenciar, como disciplina na Ps-Graduao, o exame do mito de Ins de Castro na poesia, na prosa de fico e na dramaturgia portuguesas. (Ttulo provisrio do curso projetado: O eterno drama de Ins de Castro.) Subsidiariamente, textos de autores no portugueses a desenvolver o mesmo tema tambm esto sendo pesquisados. Para tanto, j se localizaram e se examinaram, at o momento, dezoito textos de autores portugueses, franceses, alm de um brasileiro. No que tange finalidade d) estudar fatos concernentes Histria de Portugal atravs de textos dramticos que tratem de importantes momentos histricos foi criada, em nvel de Ps-Graduao, a disciplina O teatro da histria na histria do teatro, credenciada com mais de trinta ttulos de peas, dos quais so escolhidos, a cada vez que se oferece o curso, ttulos que tratem de um mesmo fato histrico, o que possibilita o estudo cientfico do mesmo e a viso que diferentes dramaturgos apresentam dele. Para atender s necessidades da finalidade e) , mostrar atravs de work shops e apresentaes em Instituies de Ensino, como o magistrio da Literatura pode ser feito por meio de recursos e tcnicas teatrais, o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro criou o Grupo de Estudos Teatrais Gambiarra (no sentido portugus, e no brasileiro, do vocbulo!), aberto a todos os ps-graduandos interessados em estudar e divulgar a Literatura e Cultura portuguesas de uma forma agradvel, criativa e palatvel. O objetivo do Gambiarra mostrar aos professores que possvel despertar e atrair a criatividade, seja de docentes, seja de discentes, para o ensino e aprendizagem da Literatura. O Projeto tem entrado em contacto com dramaturgos portugueses da contemporaneidade com o intuito de formar um banco de dados biobibliogrfico, alm de propor-lhes uma entrevista. 11. 11 At o momento j se coletaram dados biobibliogrficos e entrevistas com os dramaturgos portugueses Helder Costa, Jaime Gralheiro, Jlia Nery, Maria do Cu Ricardo, Manuel Crrego, Miguel Rovisco (atravs de seus familiares, amigos e crticos), dentre outros. I. 3. s voltas com o Projeto Expresso Dramtica EXDRA A pesquisa iniciada em torno da obra de Nery, identificou relaes anlogas entre o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro e as intenes contidas no EXDRA, uma vez que ambos os Projetos buscam, em ltima instncia, uma nova maneira de ver o processo ensino-aprendizagem. Feliz coincidncia? De qualquer forma, aps Jlia Nery ter sido localizada (pelos meandros da Internet), e ter se disposto gentilmente a colaborar com o Projeto, concedendo entrevista1 e depoimento, a hiptese de que a autora tambm estava desenvolvendo em Portugal um trabalho pedaggico/didtico com objetivos semelhantes ao Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro se confirmou. Jlia Nery, alm de escritora, era empenhadamente educadora, com mais de trinta anos de experincia no ensino de Lngua e Literatura. Para a Autora, diante dos insucessos no processo ensino/aprendizagem de Lngua e Literatura Portuguesas e de seus componentes curriculares, era preciso transportar para o interior da escola e para os momentos da aula a espontaneidade, a sociabilidade, a cumplicidade criativa, prazeres que tornariam as aprendizagens mais atraentes aos jovens. No entanto, para o alcance de tal objetivo, fazia-se necessrio lanar mo de novas tcnicas e metodologias, no intuito de trilhar um percurso inovador na organizao do processo ensino-aprendizagem. Contra o perigo do ensino mecnico e reprodutivo dos contedos programticos, as tcnicas de comunicao deveriam estar a favor das atividades dramticas, que operariam como um recurso inesgotvel de aprendizagem funcionais estribadas no prazer de aprender. Procurando para suporte do projeto um instrumento pedaggico que proporcionasse formas de comunicao interativas, a autora criou Na casa da lngua moram as palavras. Um texto dramtico que tem como linha dramatrgica dominante a Comunicao enquanto essncia da relao consigo e com o outro e da sobrevivncia social e ao qual vm juntar-se subtemas: linguagens, palavra, Lngua Portuguesa. (NERY, 1993, p.7). 1 A entrevista concedida por Jlia Nery encontra-se no Cap. III deste trabalho. 12. 12 nesse contexto que se insere o Projeto Expresso Dramtica (EXDRA), isto , atividade pedaggica e processo didtico, como estratgia de remediao s dificuldades de aprendizagem e como maneira de potenciar as capacidades criativas dos alunos. (NERY, 1993, p.8). Um ano aps ter desenvolvido essa primeira etapa do Projeto, escreve O plantador de naus a haver, texto criado para atender necessidade de ensinar o Trovadorismo para uma turma de alunos muito desinteressada2 . Lanando mo da intertextualidade, cria uma narrativa dramtica, cujo enfoque recai sobre vrios eus: Lavrador, Trovador, Homem do Mar, Letrado, que seriam as projees de D. Dinis, a figura principal. O discurso dessas personagens traz cena a vitalidade, as paixes, a pulso criadora, enfim, a mgica potencialidade dos vrios atos de semear que aconteceram em Portugal no reinado do rei Lavrador, plantador de naus a haver, que adivinhou nas estrelas o destino portugus de mar. (NERY, 1994, p. 7). Hoje em dia, cabe salientar, outros textos dramticos da Autora fazem parte do curso A Literatura Portuguesa em Cena, uma vez que buscam desempenhar a mesma funo: despertar o aluno da inrcia do pensar. I. 4. Relaes entre os dois Projetos Como ficou exposto em I.2 e I.3, parece ter ficado claro que as intenes e objetivos, tanto do Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro como do Projeto Expresso Dramtica distanciados pelas linhas geogrficas que separam Brasil e Portugal, entre o c e o l encontram-se agora fortalecidos pelo encontro de identidades que atuam conjuntamente em favor de um magistrio criativo, que coloca a expresso dramtica a servio de uma pedagogia inovadora. A presente dissertao, fruto do processo atrs relatado, pretende se constituir em uma fonte bibliogrfica importante, contribuindo para a crtica em torno do teatro portugus contemporneo, na medida em que, como vimos, intenta demonstrar como Jlia Nery, com seu O plantador de naus a haver, engendrou o dilogo com os paradigmas crticos que tratam do rei D. Dinis, bem como com a potica trovadoresca, nomeadamente com a obra do Rei-Trovador. Para alm dessa primeira inteno, essa dissertao tambm contribuir para os resultados do Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro, na medida em que exemplificar, ao fim e ao cabo, como ensinar Literatura, nesse caso Literatura Portuguesa, de uma forma criativa. 2 Cf. Entrevista, p. 27 13. 13 II. Biobibliografia de Jlia Nery II. 1. Biografia Jlia Guilhermina do Nascimento Lopes Nery de Oliveira, Jlia Nery, nome literrio, nasceu em Lisboa em 28 de outubro de 1939. Filha nica de Antnio Lopes de Almeida, construtor civil, e de Laudomira do Nascimento Grilo de Almeida. Viveu sua infncia em Lisboa, na Graa, um bairro popular de fortes tradies operrias. Nessa mesma cidade, conheceu Fernando Jos Nery de Oliveira, engenheiro civil, com quem se casou e teve quatro filhos: Teresa e Leonor, gmeas, Isabel e Pedro. Comeou sua atividade como escritora ainda na adolescncia, tempos em que lia compulsivamente, Salgari, Condessa de Sgur, Pearl Buck, Dostoievski, alm de Tolstoi, Camilo, Balzac, entre outros. Dentre os portugueses, desenvolve especial gosto pela poesia de Antnio Nobre e Jos Rgio. Seu primeiro conto, Lisboa, publicado no Suplemento Repblica dos Midos do jornal Repblica. Com doze anos, publicou, em captulos, no mesmo jornal, seu primeiro romance, O lar da felicidade. Aos treze, escreve, encena e representa, numa festa em uma parquia local, a pea O jardim da felicidade. Licenciou-se em Filologia Romnica pela Faculdade de Letras de Lisboa em 1964 e estudou na Frana, onde obteve o Diplme dtudes Franaises da Universidade de Poitiers. A convivncia com pessoas simples, migrantes das Beiras, desde os tempos de sua meninice, e mais tarde, com emigrantes portugueses na Frana, inspira-lhe o romance Pouca terra...pouc terra, obra que nasceu de um ressentimento: em 1980, freqentando como bolsista um Curso de Aperfeioamento em Didtica das Lnguas, decide assistir, em Vichy, a uma sesso de propaganda poltica de membros da extrema Direita, porm, alm da dificuldade que enfrentou para entrar na sesso, por ser estrangeira, acaba por ouvir um ferrenho discurso contra os emigrantes. A resposta contra a xenofobia nasceu-lhe, em pensamento ali mesmo, publicando o romance citado, quatro anos mais tarde. Desde abril de 1974, vive-se em Portugal a euforia da revoluo e, para Jlia Nery, era preciso engajar-se na mesma luta de seu povo. De 1976 a 1985, exerce a funo de Deputada na Assemblia Municipal de Cascais, experincia que considerou vlida, embora no menos desilusria, uma vez que, como em qualquer atividade poltica, pde fazer bem menos do que aquilo que desejava e acreditava ser til sua comunidade. 14. 14 No perodo entre 1982 e 1985 eleita Presidente do Conselho Diretivo e Presidente do Conselho Pedaggico da Escola Secundria de Cascais, funes que a afastam por algum tempo da atividade de escritora. No entanto, ainda na dcada de 80, dois contos inditos da autora so adaptados para teatro radiofnico e transmitidos pela Radiodifusora Portuguesa Antena 1: Lublia e Morte computadorizada. Na dcada de 90, participa do Programa O linho e a seda (Antena 1, RDP), como cronista. Tendo interrompido a escrita de um romance, Sonata para um solstcio3 , iniciado em 1991, levada a escrever O cnsul motivada, sobretudo, pela idia de trazer lume a histria de Aristides de Sousa Mendes. Como educadora, desenvolve vrios trabalhos e projetos de investigao que visam, especialmente, a fomentar a integrao entre pedagogia e criatividade. Nesse mbito, interessada em aplicar a Expresso Dramtica na prtica pedaggica, freqenta cursos de Dramaturgia e Histria do Teatro no IFICT (Instituto de Formao, Investigao e Cincia Teatral) e participa dos Workshops de Expresso Dramtica com Claude Wautelet, Kem Byron e Gisele Barrett (Porto, 1989) e de Teatro na Educao com Wolker Ludwig (Porto, 1991). Na Fundao Calouste Gulbenkian, conclui o Curso de Monitores de Expresso Dramtica. Em 1993, como resultado destas pesquisas, escreve Na casa da lngua moram as palavras. Obra paradidtica que visa ao ensino da Lngua Portuguesa, dividida em dois blocos: no A, apresenta o texto dramtico Na casa da Lngua moram as palavras; e no B, teoriza a questo com o texto Na casa da lngua moram as palavras: proposta de abordagem e tratamento. A obra encenada por Bibi Perestrelo sob o ttulo Viagem Casa da Lngua, levada cena no Centro Cultural de Cascais. Colaborou com o Teatro Experimental de Cascais (TEC), na adaptao de peas para espetculos direcionados ao pblico escolar, como por exemplo, A flauta de P, encenada pelo grupo Ns e Vozes4 . Ainda na dcada de 90, ao ministrar aulas de Lngua e Literatura Portuguesa e de Lngua Francesa na Escola Secundria de Cascais, surge-lhe a necessidade de escrever um texto que facilitasse o ensino da poesia trovadoresca. Ao esboar um dilogo entre um trovador e sua dama, nasce O plantador de naus a haver, obra pela qual recebeu o prmio Ea de Queirs de 1994 e Meno Honrosa pela Secretaria de Estado da Cultura. 3 Esta obra continua em fase de escrita. 4 Teresa Lampreia, filha do ex-embaixador do Brasil em Portugal, Lus Felipe Lampreia, ao freqentar as sesses de Oficina de Escrita, realizadas por Jlia Nery, organizou esse grupo de teatro, que foi batizado por Jlia como Ns e Vozes. 15. 15 Em 1996, o Grupo de Teatro Pais de Miranda leva cena Do Forno 14 ao Sud-Express com autos e foral, pea teatral encomendada a Jlia Nery, em virtude das comemoraes dos 800 anos de Foral de Canas de Senhorim. Quando pesquisava a biografia de D. Dinis para o seu Plantador de naus..., deperta-lhe a ateno D. Constana, filha do rei com D. Isabel. A histria dessa infanta ser mote para a escrita de um romance. Busca, ento, nas pginas da Histria de Portugal, subsdios biogrficos de outras trs infantas D. Isabel Maria, D. Constana Manuel e D. Catarina e em 1998 publica Infantas de Portugal. No mesmo ano, publica Valria, Valria, romance inspirado nas muitas professoras e alunos que conheceu em sua trajetria como docente. Se na dcada de 80, entusiasmada pelo advento do computador, escreve Morte computadorizada, em 2000, a descoberta da Internet leva a autora a reescrever esse conto, agora, travando dilogo com a nova mdia. A este novo conto, intitulado www. morte. com, unem-se outros dois Lub@aqui e Mundo, o co. Seu ltimo romance publicado em Portugal O segredo perdido Lisboa,Terremoto, 1755. Nele, a autora procura, a partir de uma narrao em trs tempos, e da descrio de cenas do terremoto de 1755, fazer um testemunho humanamente doloroso das cicatrizes daqueles que, em meio tragdia, tiveram, inevitavelmente, seus destinos alterados. Atualmente, alm de escrever dois textos dramticos, ambos iniciados h algum tempo (Hello heri, cuja temtica gira em torno do conceito moderno de heri, e Aqurio na gaiola, pea teatral para jovens), finaliza a escrita do romance Sonata para um solstcio. Formadora na rea da Didtica das Lnguas (Certificado do Concelho Cientfico- Pedaggico da Formao Contnua, Maio de 1995). Ministra regularmente Cursos de Formao para Professores, no mbito da Didtica da Lngua Materna e de Oficinas de Escrita Criativa, de que se destacam os Cursos realizados em Macau (no Centro de Difuso de Lnguas- Servios de Educao e Juventude de Macau, Janeiro de 1998); e em Moambique Centro de Ensino e Lngua Portuguesa, Novembro de 2003). membro do conselho editorial da revista Boca do Inferno, onde seleciona e define os contedos da revista. Desde 1991 faz parte do Corpo Gerente da Associao Portuguesa de Escritores, tendo participado da Coordenao da representao Portuguesa da Organizao do III Congresso de Escritores Portugueses (junho/ 2004) e da Comisso Organizadora do 1 Simposium de Moambique: Lngua Portuguesa Dilogo entre Culturas (abril/ 2005). 16. 16 II.2. Bibliografia II.2.1. Romances: Pouca terra...pouc terra... Lisboa: Rolim,1984. 163 p. Romance que tem como protagonistas uma famlia portuguesa de emigrantes e uma universitria de nome Leonor, jovem que foi levada ainda pequena para a Frana, por sua av Maria Menina, mulher de fibra e coragem, em busca de um futuro mais prspero. A narrativa tem como fio condutor o dilema daqueles que um dia deixaram sua terra natal, procurando melhores condies de vida, mas, nem por isso, abandonaram suas razes, ou negaram sua origem, uma vez que cultivavam o desejo ntimo de regressar Ptria. Por outro lado, h aqueles que deixaram Portugal por circunstncias adversas, mas vem o retorno como uma espcie de retrocesso. Ao longo dos anos, durante suas frias, Leonor obrigada pela av a deixar a Frana e a viajar para Portugal, para que no se esquea de suas razes. A ao central do romance passa justamente nesse trajeto, num comboio que leva Leonor at Portugal. Mas, desta vez, as paisagens, as pessoas e todo o percurso exterior iro coincidir com um percurso interior, descrito por um narrador onisciente que nos vai revelando impresses acerca do que ela v agora, do que ela vira antes, e daquilo que ela sonha ver um dia. Dessa forma, o comboio que leva Leonor transporta tambm o leitor para dentro, no apenas do universo interior da jovem que vivencia o conflito de ser portuguesa no mago de sua alma, porm francesa nos modos, mas tambm para o universo cultural portugus que procura romper com o fatalismo da emigrao, afinal o portugus semente que em qualquer terra d fruto. (NERY, 1984, p. 161) O Cnsul. Lisboa: D. Quixote, 1991. 189 p. (D. Quixote, Lisboa, 1991; Crculo de Leitores, Lisboa, 1993; traduo francesa, Le Mascaret, Bordus, 1992; traduo alem, poca, Zurique, 1997; Pipper, Munique, 1999), publicado tambm na Alemanha e na Frana. No romance, conhecemos ficcionalmente a histria de Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches, Cnsul portugus a servio de seu pas na Frana. Em junho de 1940, data da ocupao de Paris pela Wehrmacht (fora nazista), a cidade de Bordus v-se invadida por refugiados que desejam sair do pas. Nesta poca, o diplomata detinha o direito de conceder vistos apenas a no-judeus. No entanto, sabendo do drama desses refugiados que viam Lisboa 17. 17 como nico porto livre para a Europa Continental e alternativa para a Amrica, no tinha podido fechar as janelas e ficar a espreitar por detrs das vidraas. Ignorando a regra imposta pela polcia portuguesa, em apenas trs dias, num ato de ousadia e coragem, concede vistos a cerca de 30 mil refugiados, dentre eles, cerca de 10 mil judeus. O que leva o homem a um ato de herosmo? Talvez seja essa a pergunta-chave que leva a escritora a trazer tona a memria de um homem que no conheceu em sua terra prestgio algum, condenado solido e desonra. O enredo e o tempo decorrem entre o princpio e o fim de um discurso, proferido durante uma festa em homenagem ao Cnsul celebrada em sua terra natal. Homenagem que s ocorreu nas pginas do romance e que, talvez por isso, tenha dado fico o papel de mostrar at que ponto a desgraa faz um homem reencontrar-se e ver o mundo de outra maneira. Valria, Valria . Lisboa: Notcias, 1998. 201 p. De sua experincia como professora, Jlia Nery traz para esse romance a histria de muitos colegas e alunos que conheceu. Nele vemos no apenas a histria da adolescente que intitula o Romance, Valria, mas adentramos a intimidade de cada uma das personagens principais, no universo burgus que as circunda, limitando-lhes aes e pensamentos. Pelas pginas do dirio de Valria, descobrimos desabafos secretos que, no fundo, coincidem com nossas angstias e aventuras; vemos ainda quo paradoxal pode ser a convivncia e as relaes humanas, como por exemplo, em Marinela, a me de Valria, educada para ficar quieta, ou em seu marido, Joo Afonso, cujo pai, militar de carreira, o educara para ser garboso e forte, transformando-o num jovem melanclico. O segredo perdido Lisboa, Terremoto, 1755. Lisboa: Bertrand, 2005. 230 p. Qual ser o segredo perdido? A reposta pode estar dentro de um cofre muito bem descrito de prata lavrada e cinzelada com quatro painis de malte policromo; forma retangular; nas faces quatro baixos-relevos com cenas de amores de Vnus, ladeadas por festes..., onde se descobrem correspondncias e pginas de um dirio, amareladas pelo tempo, escritas por uma Sror, que, salva e liberta miraculosamente dos destroos do grande terremoto que abalou Lisboa no ano dos dois cincos, ironicamente passou a vida presa em um convento. Correspondncias entre duas pessoas a esconder (ou a revelar?) um segredo que as ligaria e ao mesmo tempo as afastaria para sempre... 18. 18 No entanto, Quem est, fica. Quem vai, vai, as palavras do simples ferrador Bate-Ferro, mudam o foco de um segredo particular para o que de fato nortear este romance histrico. Para alm da reconstituio de poca, entrevista nesta obra, mais uma vez a confirmar a habilidade com que a autora costuma trabalhar com os fatos histricos e construir suas tramas romanescas, encontramos um exerccio de reflexo acerca do tempo e dos sentimentos humanos. Um cofre que atravessa geraes, nesta Lisboa prezada, nesta Lisboa formosa, nesta Lisboa destruda, leva consigo um segredo, perdido numa Lisboa de ontem ou de hoje, j que os acontecimentos, as catstrofes e o prprio ruir do tempo mudam e passam como um vapor, mas o homem, que se insere aqui ou l, no. Nas pginas de O segredo perdido vamos aprendendo a olhar para dentro, reconhecendo em muitos coraes, do pretrito ou do futuro, sentimentos to nicos e igualmente plurais aos nossos, por meio de um discurso entremeado de palavras que desnudam e expem o leitor como se este estivesse diante de um espelho a lhe refletir, como se isso fosse possvel, o seu interior. Talvez Sror Beatriz seja o mote para que se revele este outro segredo, que reside dentro de cada ser humano, e que diz respeito idia que nutre em torno da felicidade, do amor, das perdas e ganhos, do ter ou do ser, e de tantas outras grandezas e pequenezas existentes desde sempre, sentimentos que entremeiam e ajudam a compor as complicadas redes dos relacionamentos humanos, no importa a poca ou o lugar. II.2.2. Contos: Infantas de Portugal. Lisboa: Notcias, 1998. 123 p. Durante as pesquisas realizadas em torno de D. Dinis, a autora encontrou material biogrfico acerca das infantas que fizeram parte da Histria de Portugal. Teve a idia de escrever um romance para elas. Em especial, elegeu, como paradigmas sua fico, quatro infantas. D. Isabel Maria, que, nascida em 4 de julho de 1801, foi nomeada Regente em Portugal, por seu pai, D. Joo VI, exercendo o cargo por poucos meses, uma vez que acaba sendo vtima de um acordo entre seus irmos, D. Pedro e D. Miguel. D. Constana, nascida em 1290, filha de D. Dinis e de D. Isabel, reis de Portugal e cujo casamento negociado, aos cinco anos de idade, com o herdeiro do trono de Castela, D. Fernando IV. Chegado o tempo do casamento, partilhar com ele o trono de Castela por dez anos, quando fica viva, poucos meses depois do nascimento do futuro Afonso XI de Castela. D. Constana Manuel, infanta que, como D. Constana, tambm pertenceu 19. 19 dinastia de Borgonha, filha de D. Manuel, prncipe de Vilhena e de D. Constana, infanta de Arago. Ficou conhecida pelo conturbado casamento que viveu com D. Pedro, o Cru, por causa do envolvimento deste com uma de suas aias, a to famosa personagem histrica Ins de Castro. Por fim, D. Catarina, infanta que pertenceu dinastia de Avis, filha do rei D. Duarte e de D. Leonor, nascida em Lisboa em 1436. rf de pai aos dois anos, educada numa corte onde se defrontavam grandes interesses e dios pessoais, Catarina assistiu s lutas pelo poder entre sua me, que ocupava a regncia, e seu tio o infante D. Pedro, que assumira a regncia do reino ; depois, entre este e seu irmo D. Afonso V. Apesar de ter sido noiva de D. Carlos, prncipe de Navarra, seu primo, e de Eduardo IV de Inglaterra, ela a nica das filhas de D. Duarte condenada solido. Em cada conto reunido em Infantas de Portugal, o leitor poder conhecer a reconstruo dessas biografias, por meio de um processo intertextual, responsvel por trazer lume a vida de mulheres que tiveram como destino comum o fato (ou o fado?) de pertencerem s famlias reais. No aproveitamento, portanto, das pginas que a Histria de Portugal logrou, ficcionalmente essas mulheres tornam-se mais humanas e mais verossmeis. As heronas de Infantas... humanizam- se medida que sofrem a dor pela espera demorada dos esposos prometidos, pelos casamentos malogrados, pelas traies familiares, pelos conflitos polticos de que quase sempre so causa e conseqncia. Elas so descritas como mulheres de carne e osso, e este narrador o responsvel por revelar seus sentimentos mais profundos, de modo que passamos a conhecer as chagas e as tristezas que movem cada um de seus dias. www. morte. com . Lisboa: Notcias, 2000. 79 p. A angstia humana face vida, morte, felicidade e solido, so temas que constantemente permeiam as obras da autora. Nesta srie de trs contos (Lub@aqui, www.morte.com e Mundo, o co) um narrador onisciente, e comum a todos, analisa as personagens a partir de situaes que emergem da vida real: um Chat de bate papo, onde duas personagens, que s se conhecem virtualmente procuram adiar a ansiedade e a angstia do primeiro encontro real; o desejo de morte alheia para a conquista egocntrica de uma felicidade sonhada; ou mesmo, o amor fraternal metaforicamente entrevisto em Mundo, o co, em que o protagonista, no derradeiro momento de sua vida, redescobre o amor. 20. 20 II.2.3. Contos no publicados5 Lublia Esse conto mais um dos casos em que a autora, atravs de um narrador/ personagem, extremamente perspicaz um mdico psicanalista , nos introduz no universo de Lublia, a garota que d nome ao conto, uma jovem, cuja adolescncia marcada por conflitos e sofrimentos. Ao relembrar da paciente, o mdico acaba por fazer uma descrio sintomtica de seu delicado caso a que vulgarmente chamamos neurose: o descontrole hormonal, a rejeio do corpo, os pesadelos, os estados de solido e a apatia. At que, com o tratamento hormonal e as sesses de anlise, chega finalmente descoberta de si mesma enquanto mulher e conseqentemente consegue a superao dessas neuroses. Morte computadorizada Maria Lusa, dona-de-casa e governanta, aps vinte anos de cuidados e zelos dedicados ao seu irmo mais velho, Artur, advogado aposentado que a sustenta, permitindo-lhe que viva em sua casa com direitos e muitas regalias, comea a sentir o peso dos anos e a decadncia fsica de seu irmo, passando a desejar ardentemente sua morte, que seria a soluo para o alcance da to sonhada independncia financeira. Em uma das muitas reflexes que faz em torno do assunto, acaba por ser interpelada pela Morte, que lhe oferece ajuda. O pacto concretizado, a Morte, sintonizada com os avanos da tecnologia, programa o fim antecipado de Artur, mas, em troca, Lusa lhe vende dois anos de sua vida. Angustiada, aps a morte do irmo, Lusa passa a viver repleta de culpas e tormentos, que culminam sempre na lembrana dos anos a menos que lhe restam para viver. II.2.4. Artigos A educao artstica no ensino europeu. Caderno de Educao, Lisboa: Dirio de Notcias, nov.1990. 5 Os textos originais de Jlia Nery foram adaptados por Bela Jardim (Professora de Histria em Portugal e autora de algumas peas radiofnicas) para Teatro Radiofnico e transmitidos pela Radiodifusora Portuguesa Antena 1, na dcada de 80. 21. 21 feito, neste artigo, um pequeno historial da utilizao da Educao Artstica, enquanto processo pedaggico de que um dos pioneiros foi o professor Parnes que, na dcada de 50, abriu na Universidade de Bfalo (USA) cursos destinados a ensinar os estudantes a pensar criativamente. Seguem-se informaes sobre projetos de Educao Artstica em desenvolvimento em vrios pases europeus, na modalidade de partenariato, ou seja, o artista pago pelo Ministrio da Cultura trabalha com o professor na implementao do projeto, alm de uma descrio, em pormenor, de uma experincia francesa, um projeto de ao educativa (PAE), considerado um exemplo muito completo das novas tendncias da Educao Artstica. A educao artstica: novas tendncias na Europa. Revista Noesis, Lisboa: s.e., n.7, nov.1990. Trata-se de uma reflexo sobre a importncia da Educao Artstica no processo educativo e sobre vrios projetos desenvolvidos na Europa. Do texto destacamos o trecho que melhor traduz a idia central do texto: escola cabe no apenas transmitir saberes parcelares, s vezes hermticos e fragmentados, mas tambm promover o desenvolvimento de uma inteligncia divergente que apreenda de uma forma integradora globalizante e transformadora esses saberes. Ao processo educativo compete empregar mltiplas estratgias para desenvolver nos jovens aquela outra faceta do potencial cognitivo que diz respeito criatividade.(...) Psiclogos e pedagogos focalizaram a Educao Artstica que, pela sua vocao especial para potenciar a atitude imaginativa e a capacidade de transformar e de criar, tem sido, desde h muito fomentada e desenvolvida por um grande nmero de educadores. (...) agora em franco desenvolvimento em muitos pases europeus. Papel da expresso dramtica no Processo Ensino Aprendizagem da Lngua Portuguesa6 Esse texto o resultado de um projeto que visou a uma investigao sobre a validade da Expresso Dramtica (Exdra), no numa perspectiva curricular, mas como processo educativo (pedaggico/didtico) integrado nas estratgias de superao das dificuldades de aprendizagem da Lngua Materna. Os resultados da investigao realizada constituem a 1 parte do projeto e tm como objetivo o reconhecimento da crescente importncia da Exdra. Da 1 parte transcrevemos o ndice: Introduo 6 Artigo elaborado para o Ministrio da Educao em 1992. 22. 22 1.- O lugar da Exdra no processo ensino aprendizagem 2.- Exdra e Teatro no Sistema Educativo 3.- Exdra e Teatro na Escola 3.1- Encontros de Teatro na Escola 3.2- Teatro na Escola- Projectos 4. Depoimentos de alunos e de professores Concluses A 2 parte a descrio de um projeto de animao da Exdra, enquanto atividade pedaggica e processo didtico, como estratgia de remediao s dificuldades de aprendizagem da Lngua materna, e como maneira de potenciar as capacidades criativas do aluno. Consta de dois Blocos: Bloco A Na Casa da Lngua Moram as Palavras (o texto dramtico); Bloco B 1. Proposta de abordagem do texto dramtico Na Casa da Lngua Moram as Palavras 1.1. Assuntos abordados 1.2.Quadro referencial do texto ao Programa de Portugus dos 7,8 e 9 anos 2. - Viagem para Na Casa da Lngua Moram as Palavras; 2.1- Etapa 1- Exerccios de Expresso dramtica 2.2- Etapa 2-Construo e dramatizao de dilogos 2.3- Etapa 3- Abordagem de um texto dramtico 2.4- Etapa 4- Construo de personagens 2.5- Etapa 5- Transformao de um texto narrativo em texto dramtico 2.6- Etapa 6- Dramatizao e teatralizao do texto 3. - A Palavra em ao 3.1- Leitura 3.2- Comunicao oral 3.3- Reflexo sobre o funcionamento da Lngua 3.4 A escrita 3.4.1- Tratamento parodstico do texto 3.5 Dramaturgia do texto anterior 3.6 Dramatizao 3.7- Projeto de encenao. Vale ressaltar que esse projeto desenvolvido por Jlia Nery para o Ministrio da Educao, entre os anos de 1989 e 1991, aps ter sido aplicado em grupos de professores, com 23. 23 resultados satisfatrios, foi publicado, em 1993, pela editora Asa, com o ttulo Na casa da lngua moram as palavras. Trinta anos de ensino, trinta mil e muitas perguntas, algumas respostas. Revista Foco Informao, Ministrio da Educao: PRODEP, n.14, 1997/98. A Revista do Ministrio da Educao, em consonncia ao programa de Formao Contnua de professores, traz uma srie de reflexes feitas por educadores renomados, objetivando discutir estratgias pedaggico/didticas para o ensino da Lngua Portuguesa. Em seu artigo, Nery, com a experincia de quem lecionou Lngua e Literatura por mais de trinta anos, sugere, em lugar do ensino normativo e sistemtico da Lngua materna, que, segundo a educadora, muitas vezes acaba por ser responsvel pelo insucesso dos alunos na produo e leitura de textos, a gesto criativa dos contedos programticos, a partir de metodologias e estratgias inovadoras. Nesse mbito, prope, por exemplo, a utilizao da expresso dramtica, uma das foras motrizes de seu projeto de ensino. Por outro lado, longe de procurar oferecer a soluo mgica para o ensino de Lngua Portuguesa, a autora tambm sugere que o professor, continuamente, reflita acerca de seus procedimentos em sala de aula, pesquisando mtodos para aprimoramento de sua prtica, de modo que, com base em sua prpria experincia, se confronte com experincias diferentes, pois s partir desse processo, ele tambm poder construir novos saberes. II.2.5. Teatro Na casa da lngua moram as palavras. Porto: Asa, 1993. 96 p. Teodora e Tom so os jovens protagonistas de uma difcil aventura. Ao verem predominar, pouco a pouco, um espao de incomunicabilidade e de mutismo entre adultos alienados, tomaro para si a responsabilidade de encontrar o caminho para a Casa da Lngua, esse lugar que s os poetas conhecem. Para tal demanda, contaro com a inspirao e auxlio de trs personagens alegricas: o Trabalho, a Imaginao e a Cincia. Metfora de nossa contemporaneidade, em que se prefigura uma relao passiva do sujeito com a imagem e com o som, Na casa da lngua moram as palavras nos convida a um percurso contrrio, em busca da comunicabilidade perdida. A pea vai sendo construda a partir de um processo intertextual, que traz para o seu espao poemas sobre a palavra, escritos em lngua portuguesa, por autores como Drummond, Pessoa, Manuel Bandeira, Ceclia Meireles, Jorge de Sena, dentre muitos outros. Os metapoemas 24. 24 inseridos no novo contexto, constituindo de forma inteligente o discurso das personagens, permitem uma leitura acrescida de significados. importante lembrar que, embora o texto dramtico seja o ponto de partida para o projeto educativo que compe o Bloco B da obra, sua qualidade e valor intrnsecos garantiriam, sem dvida, sua autonomia. No entanto, para alm do prazer proporcionado pela leitura do texto de Na casa da lngua moram as palavras, a obra engaja-se a uma proposta de ensino idealizado pela autora, colocando- se a servio de uma pedagogia inovadora que tem, como um dos principais escopos, despertar e proporcionar um ensino criativo e eficaz da Lngua Portuguesa. O plantador de naus a haver. Porto: Asa, 1994. 127 p. Entre bailatas, barcarolas, cantigas de amor e de amigo somos transportados ao medievo portugus. Pelas vozes que ecoam da poesia trovadoresca, vamos conhecendo D. Dinis, o poeta, para melhor nos ser revelado o corao daquele que tambm foi rei... Paradoxalmente ao Estadista, ao visionrio plantador de futuras embarcaes ultramarinas, cujo ttulo da pea os versos de Fernando Pessoa nos remete, a obra, galardoada com o Prmio Ea de Queirs de Teatro de 1994, nos conduzir, de fato, ao humanssimo corao de D. Dinis, revelando-o em pelo menos trs dimenses o Estadista, o amador e o pai. Por essa trade, a par do homem estaro as realizaes do monarca, desde o momento mstico da sua investidura na Ordem da Cavalaria at o ritual medievo da sua morte, ocasio em que choraram clrigos e doutores, muitas damas de solar alm, claro, a terra, as flores e pinheiros de navegar, de modo que, ao ritmo de um corao douto e sensvel, cuja vida foi semeada pelo verbo amar, seguiremos os encalos de D. Dinis, um homem cujos projetos transbordam da medida do tempo que lhe coube. (NERY, 1994, p.8) Do Forno 14 ao Sud-Express com autos e foral. Nelas: Concelho Municipal de Nelas, 1996. 55 p. A pea, uma encomenda do Concelho de Nelas, encerrou as comemoraes dos 800 anos de Foral de Canas de Senhorim, ocorridas em 1996. Desde o ano de 1196, data do primeiro Foral concedido pelo Cabido da S de Viseu, o povo de Canas reivindica a municipalizao de suas terras. 25. 25 Em Do Forno 14 ao Sud-Express, a autora faz um recorte habilidoso de oitos sculos da Histria de Portugal, para tecer uma narrativa dramtica que faz reviver o Homem de Canas, como fazedor da Histria e parte integrante dela. Dessa forma, conhecemos um pouco da trajetria dos canenses, seja desde a sua situao como servo da gleba, no longnquo ano de 1196; seja no sculo XX, desempenhando um trabalho quase escravo no Forno 14 da Companhia Portuguesa dos Fornos Eltricos; como tambm, em seu destino de emigrante embarcando no Sud-Express rumo Frana, em busca de sonhos e de dias melhores; ou mesmo, do sculo XII ao XX, engajado em meio a manifestaes e batalhas em pro da causa da independncia de Canas, uma luta que os acompanha h, pelo menos, oitocentos anos. 26. 26 III. Entrevistas com Jlia Nery a propsito do Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro Inclumos neste captulo, duas contribuies de Jlia Nery ao Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro. Trata-se de duas entrevistas concedidas entre os anos de 2001 e 2002, que dizem respeito a questes relativas s peas O plantador de naus a haver e Do forno 14 ao Sud-Express. III.1. Sobre O plantador de naus a haver, por Jlia Nery7 1. Qual (quais) julga ser(em) a(s) fora(s)-motriz(es) de sua obra? Refletindo sobre as possveis respostas a esta pergunta, pois foram vrias as foras que me impeliram a escrever O plantador de naus a haver, encontro uma que foi determinante e a mais motivadora: a figura de D. Dinis, enquanto homem de cultura para a cultura, de pensamento e ao, o rbitro das Espanhas, como ento era conhecido. A poesia, de D. Dinis a Pessoa, a construo de um reino que vai surgindo numa terra de pauis e lodaais, semeando-se futuros j com o pensamento para alm do mar, tudo isto me convocou escrita do Plantador.... Talvez por mergulhar nas razes galaico portuguesas, com um raminho de rabe. Amador, poeta, rei- lavrador, guerreiro, diplomata, marido quase impossvel de uma santa, vivendo a saudade de uma esposa presente, mas ausente de si pela entrega mstica ao amor divino, o grande rei D. Dinis no tem sido, como merecia, revisitado pela Histria. Pois que a palavra, tambm potica, de um texto dramtico o faa reviver! 2. Como se d seu processo de criao? Mais uma vez, o real se socorreu da imaginao criadora. Lecionando Literatura Portuguesa (a poesia trovadoresca) numa turma muito desinteressada, dava eu voltas imaginao para descobrir maneiras de despertar os alunos para o prazer da leitura desta poesia. Dramatizei com eles algumas cantigas de amigo, e o poeta D. Dinis comeou, quase por acaso, a impor-se-nos. Escrevi ento um dilogo, embrio de um pequeno texto dramtico de que ele era o protagonista. Resolvi documentar-me melhor sobre este homem para poder construir a 7 Tais questes integram o Projeto Autor por Autor: a literatura portuguesa luz do teatro, idealizado e coordeando respctivamente pelos Prof. Drs. Francisco Maciel Silveira e Flavia Maria Corradin (Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas/ USP, jan/2001). 27. 27 personagem. Das livrarias passei s bibliotecas e arquivos em busca da mais variada documentao, tendo mesmo visto o testamento de D. Dinis na Torre do Tombo. Ao mesmo tempo em que a minha convivncia com D. Dinis era to excessiva que eu julgava pensar e sentir como ele, que a minha admirao por este rei poeta crescia, o dilogo inicial transformava-se no texto que agora O plantador de naus a haver. 3. Considera o subsdio governamental e/ou privado indispensvel para o florescimento do teatro? Penso que a questo relativa s Companhias/ Grupos de teatro e no aos criadores do texto dramtico. Quanto aos subsdios (governamentais ou privados) destinados a incrementar os espetculos teatrais, a minha opinio baseia-se na realidade portuguesa, pois desconheo inteiramente a brasileira. Como considero o teatro uma arte que, alm de deleitar e emocionar , eminentemente, formativa e libertadora, penso que os espetculos de teatro tm de visar a melhor qualidade, tanto no plano esttico como tcnico o que obriga, entre outras coisas, a uma responsvel e onerosa formao de todos os seus intervenientes. Assim sendo, julgo o subsdio (que no entendo como uma espcie de bolo, mas antes como um investimento cultural) indispensvel para o florescimento do bom teatro. 4. Concorda com o diagnstico de Ea de Queiroz, em pginas de Uma campanha alegre, que o portugus no tem gnio dramtico; nunca o teve, mesmo as passadas geraes literrias, hoje clssicas. A Literatura de Teatro toda se reduz ao Frei Lus de Sousa? Dizer que o portugus no tem gnio dramtico demasiado redutor, se bem que ele seja, reconhecidamente, maior lrico. Quanto afirmao de Ea de Queirs, muito teatro se escreveu depois dele, pelo que no poderemos hoje concordar com Ea, dizendo que a Literatura de teatro se reduz ao Frei Lus de Sousa. 5. Em sua opinio, o que levaria um Autor a manter dilogo intertextual com a obra de outrem? No seu caso, mais especificamente, o que a motivou a reunir vrias cantigas de D. Dinis e de alguns outros expoentes do Perodo Trovadoresco e teatraliz-las? Como qualquer outro dilogo, o intertextual enriquece e estimula ao provocar a resposta, abrindo novas perspectivas e libertando a criatividade. 28. 28 A poesia trovadoresca, para mim, especialmente a de D. Dinis, uma espcie de jia da coroa da lrica portuguesa e que muitos poucos conhecem. Teatraliz-la partilhar de uma forma mais viva que a simples leitura, o ritmo da bailada, a musicalidade da paralelstica e da alba, a dramaticidade que a caracteriza, especialmente a da teno, a malcia da poesia ertica e satrica Teatralizar as cantigas de D. Dinis foi uma das maneiras de o revelar e de criar empatia por este rei-poeta. Reconheo agora que, subjacente, haver tambm essa faceta saudosista de mostrar algum do capital cultural amealhado, para que ele no se limite a ficar guardado no fundo das arcas avoengas, mas possa ser movimentado e dar lucros no futuro. 6. Como explica a tendncia de a dramaturgia portuguesa vir desde o Romantismo repensando a Histria, dramatizando vida e obra de autores, figuras ou lances fundamentais do passado? Fazendo, mental e rapidamente, uma retrospectiva do teatro portugus, tenho de reconhecer que muitos autores dramticos se inspiram em fatos e vultos da Histria nacional, o mais das vezes numa perspectiva saudosista. Como explicar esta tendncia? Ter ela a ver com o fato de sermos um povo com um passado to rico que sobe pelo presente como a trepadeira que enfraquece o ramo a que se agarra? Ou nascer desta nostalgia que nos prpria e que busca no que passou a fora para o que h-de ser? Julgo, no entanto, que a tendncia de repensar e interrogar a Histria dar bom fruto. 7. Sem dvida o drama histrico (de matiz romntico e patrioteiro) se diferencia daquilo que Jos Oliveira Barata chama de teatro da Histria (de matriz piscatoriana e brechtiana). No caso do teatro da Histria, o distanciamento, estranhamento pretrito, serve para revelar as mazelas do presente. Ou seja, perspectiva-se o passado como histria do presente. Uma tal ptica implica que o espectador ou leitor esteja devidamente informado acerca do fato pretrito, que est sendo tratado como alegoria ou smbolo do presente, para que possa fazer as ilaes e paralelismos devidos. No caso de o pblico no ter tais informaes histricas, como estrategicamente se lhe desperta essa conscincia? O didatismo de um narrador-comentador (ou de vrios narradores/personagens) no pode prejudicar a ao, o conflito, mola-mestre de um texto dramtico? 29. 29 Nestes casos, narrador/ comentador/ personagem so um mal necessrio Penso que o didatismo que assumem prejudica de algum modo a ao, o conflito. O dramaturgo, consciente disso desde o primeiro momento da escrita do texto, ter de utilizar processos para que prejudique o menos possvel. 8. D. Dinis logrou ser para a Literatura Portuguesa um dos mais fecundos trovadores portugueses, como Mecenas proporcionou um intenso perodo de efervescncia cultural, contribuindo, a exemplo de seu av, Afonso X, para o florescimento cultural de uma sociedade agrcola e feudal, trazendo a Portugal sbios e intelectuais. Qual o sentido da releitura de sua vida e obra no campo cultural de hoje? O campo cultural, no caso portugus, hoje mais alargado. Neste contexto faz todo o sentido a releitura de vidas e obras que tenham afirmado a cultura portuguesa. D. Dinis governou um povo que respeitava (sou rei da melhor e mais leal gente que possa ter senhor, catlico ou pago), em favor do qual procurou estabelecer uma maior justia social com a sua poltica de distribuio da terra. Fomentou as artes e a diplomacia, sendo chamado como rbitro nos conflitos externos, pela sua reconhecida sabedoria, honestidade e justia. Trazer cena D. Dinis dar testemunho de que as sociedades governadas por poetas florescem, usufruindo de uma efervescncia cultural que corresponde a perodos histricos de maior acalmia e de progresso. 9. Qual foi a sua inteno ao estabelecer um plano paralelo entre a vida de D. Dinis (que representava naquele momento a Nobreza) e a do Lavrador (representante da terra, do campo)? Por que o Lavrador ganha uma dimenso to importante como narrador principal? Esta pergunta divide-se em duas questes que so tambm duas linhas dramatrgicas importantes de O Plantador de Naus a Haver, a que tentarei responder separadamente: No apenas por terem nascido mesma hora e porque o Lavrador diz reconheci D. Dinis como se me mirasse nas guas do Guadiana que podemos estabelecer um paralelo entre estes dois homens Para uma melhor compreenso muito importante o momento da investidura em que o Lavrador se lava dos pecados pelo suor do trabalho, que mortifica mas liberta, e D. Dinis, iniciante, se lava das vaidades mundanais pelo banho ritual que aprisiona o cavaleiro aos juramentos a que o obriga. O grande tem o poder de governar os outros, mas menos poder sobre o governo da sua prpria vida. 30. 30 No por acaso que o lavrador vai contando a sua histria, e atravs desta narrativa que compreendemos que um rei, tal como um simples lavrador, tem de limpar o reino das ervas daninhas, mas com muito maior esforo. ainda pelas palavras do lavrador que se vo desenhando ao longo da pea os percursos paralelos de um poderoso e de um vassalo: Riquezas de rei e de pobre no se medem pelo mesmo alqueire; s os sofrimentos. Os meus foram alegrias comparados com os dele. Rei e Lavrador tm na investidura a viso da morte, momento nico em que para os dois haver igualdade entre o Lavrador. Olhei a terra que escancarada me esperava e pensei na morte - e o seu Rei - Teu corpo terra voltar. Alm de narrador principal, informante sobre a histria de outro personagem (D. Dinis), o Lavrador mais comentador que narrador e tem mltiplas funes. Se o Lavrador , por um lado, uma projeo de D. Dinis, a sua palavra do Lavrador exprime a crtica contra o poder, mas o mais interessante ser pela sua boca que sabemos dessa espcie de cumplicidade entre o rei e o seu povo: entre ns e o rei um pacto que no foi preciso selar: a terra a quem a trabalha. E este slogan moderno dito por um lavrador medieval provoca um efeito de distanciao. Ele comenta, duvida, interpreta luz de uma mentalidade ora prosaica ora potica, ironiza, conclui sobre os atos ou intenes de D. Dinis. Ao interpret-lo, de tal maneira o faz que acaba por interpel-lo (no monlogo do rei) como se fora uma das vozes da sua conscincia. A despeito da sua atitude crtica, o Lavrador humaniza o nosso olhar sobre o rei, aproximando-o da afetividade do espectador, empregando uma linguagem alegrica que retira os smbolos da realidade prpria de um homem que trabalha a terra. Do comentrio crtico interpretao, s vezes maldosa, dos atos do rei, O Lavrador chega a uma espcie de conscincia moral de D. Dinis, exortando-o a enfrentar as suas fragilidades e a agir. Mas , afinal, pela voz do Lavrador que nos fica um retrato mais completo de D. Dinis. Ao interpret-lo como se o lavrador o encarnasse. 10. Amide a reconstituio do Ritual da Investidura de Cavaleiro na Ordem da Cavalaria reafirma a importncia fundamental dada profisso das armas naquele contexto histrico. Paralelamente, este ritual medievo ganhou novas propores em sua obra quando veicula a idia de que o homem simples, ou seja, no pertencente nobreza, pode, exemplo do cavaleiro, vir a ser purificado pelo trabalho. Qual foi a sua inteno ao estabelecer este paralelo? A investidura do povo ter de consumar-se nos rituais prprios da sua condio. 31. 31 D. Dinis chamava aos lavradores os nervos da terra. Esta metaforizao enobrece tanto o Lavrador quanto o mais alto epteto da nobreza. Ao criar um momento paralelo de investidura para os dois, a autora pretendeu relembrar que sem os homens que trabalham nenhum rei ter um grande reino, nem se faz grande um povo. Ao estabelecer um paralelo entre o rei e o lavrador a autora pretendeu dizer que um no pode existir sem o outro. Que tm ambos de servir-se, compreender-se e amar-se. 11. Embora o Lavrador reconhea a bondade do Rei, seu discurso as vezes torna-se crtico e h passagens que a fragilidade humana de D. Dinis bem ntida. Esses recursos somados ao espao temporal em que se passa a cena seriam uma tentativa de no fazer de D. Dinis um heri inverossmil? O meu D. Dinis foi construdo, ou melhor, revelado, de maneira a ser verdadeiro, verossmil. Como todo o comum dos mortais, as suas contradies entram em conflito. S um cime violento levaria um homem douto e sensvel a mandar queimar o pajem da sua rainha. Como qualquer homem que viva um casamento abstmio e com sete anos de esterilidade, este rei quer ter a prova da sua virilidade, o que faz dele um amador insacivel. Como qualquer pai, ele quer ser amado e justo com os filhos e quantas vezes as circunstncias o fazem duvidar de que o seja. Como qualquer rei, ele quer a paz e o melhor para o seu reino, mas nem sempre as suas aes podem ser conformes a este desidrio. Como qualquer homem, D. Dinis sofre, mas enfrenta as suas fragilidades. Espero que o leitor (espectador) sinta o humanssimo corao deste poeta que teve, tantas vezes, de reconciliar em si as necessidades e as pulses contraditrias de homem, rei e pai. 12. Sendo o MOMO uma pequena farsa popular o que sugere essa encenao como recurso dentro da pea teatral? O MOMO assume, tal como o Lavrador o vai fazendo ao longo da pea, a funo de nos contar criticamente o rei, mas alm desta tem outras funes. Uma delas o fazer parte da reconstituio do contexto cultural da corte de D. Dinis; outra criar um momento de grande tenso (durante o momo so mimados os amores do rei), com o qual acaba o 2 ato. O Momo tem ainda um momento importante, pretexto para a distanciao, introduzida pela chegada cena da nova arte de trovar que a voz de Fernando Pessoa. 13. As diversas Cantigas de Amor de D. Dinis elencadas na obra, traduziriam a conscincia aguda do drama interior vivido pelo Rei, devido a inacessibilidade de uma Rainha tal qual a 32. 32 Senhor das cantigas de amor? Nesse momento, na sua opinio, o homem D. Dinis o Trovador e sua poesia portanto o extrato dessa incorrespondncia e/ou inacessibilidade? Podemos dizer que quase todas as cantigas de D. Dinis elencadas na obra, mesmo as que ele dirige a outras mulheres, tm muita relao com o drama interior vivido pelo homem que no pode ter cime do amor de sua esposa pelo divino amado. A sua pulso amorosa, nem sempre correspondida pela castssima D. Isabel, transfigurou-se muitas vezes na emoo potica que nos legou nas suas cantigas. Nesses momentos o homem apaixonado, o Trovador e no o rei quem sobe cena. 14. Que aspectos outros julga devam ser analisados e/ou aprofundados em O plantador de naus a haver? Qualquer obra literria tem uma multiplicidade de aspectos a considerar, tanto mais variados, quantos os leitores e os seus interesses. No caso da vossa abordagem de O plantador de naus a haver, o inqurito que me foi proposto traduz um levantamento dos mais importantes aspectos da obra. No entanto, h outros que me parecem ter tambm algum interesse, como por exemplo, a personagem de D. Isabel, que mal foi aflorada nas vossas questes. Quanto personagem de D. Dinis - O conflito rei/pai; os conflitos familiares, o conflito com a santidade da esposa. H um outro conflito que eu queria desencadear na pea (t-lo-ei conseguido?) e que o conflito do tempo com o tempo, se assim lhe posso chamar. O tempo final de D. Dinis- a sua morte afinal o seu princpio, pois uma espcie de ressurreio para um futuro Morreu o rei D. Dinis/ vai agora a enterrar/ os sonhos do Plantador/ So sementes a romper / No grito de germinar. A estrutura da pea (por estranho que possa parecer, a estrutura a da Revista Portuguesa). O medievo peninsular ilustrado no percurso de um rei que potenciou o seu apogeu (rituais iniciticos, divertimento palaciano, as lutas internas pelo poder, o ritual da morte. Um dos objetivos da autora, enunciado na introduo: - Com este texto poesia e Histria se confundem na metamorfose da palavra em ao. - teria sido conseguido? 33. 33 ESPAO RESERVADO PARA QUALQUER OUTRA MANIFESTAO DA AUTORA No seria justo dar a entrevista por terminada sem manifestar o meu aplauso ao Professor Dr. Francisco Manuel Silveira pelo seu projeto Autor por Autor, assim como o desejo de sucesso para este projeto que visa ao estudo e divulgao da dramaturgia portuguesa contempornea e que, entre os bons frutos que dar, amadurecer tambm o fortalecimento dos traos de unio entre a cultura portuguesa e a brasileira. As perguntas que me foram colocadas na entrevista revelam uma leitura muito atenta e sensvel de O Plantador de Naus a Haver que est a ser objeto de anlise pela Professora Alleid Ribeiro Machado, a quem agradeo o sbio e afetivo empenhamento na abordagem da minha obra. Jlia Nery 2 de Maro do ano 2001 III.2. Sobre Do Forno 14 ao Sud-Express com autos e foral, por Jlia Nery 1. Na nota Preambular h uma afirmao que o homem de Canas de Senhorim viveu a gesta martima, ergueu a espada e voz contra os opressores da ptria e das idias. A que idias faz referncia e quem eram os opressores da ptria? Comeo por explicar o que o Forno 14. Em canas de Senhorim foi instalada nos anos 20 a Companhia Portuguesa dos Fornos Eltricos que estava ligada produo do carboneto de clcio, vulgarmente chamado de carbureto e nos anos 60 produo de ferro ligas. Esta indstria qumica e metalrgica empregaria quase todos os homens de Canas de Senhorim. O trabalho nos fornos era muito duro, especialmente no forno maior, o catorze. E nos anos sessenta, muitos homens de Canas procuraram um ganha-po mais rentvel e menos penoso, entrando na grande corrente migratria para os pases da Europa, seguindo no Sud- Express que o comboio que vai para Frana e que ficou assim como o smbolo da emigrao para a Europa, especialmente para Frana, assim como no sculo XIX , o paquete era um pouco o smbolo da emigrao para o Brasil. No meu romance Pouca Terra...Pouc terra eu conto a histria de uma famlia de emigrantes beires. 34. 34 O Forno Catorze e o Sud-Express so assim dois smbolos importantes para as gentes de Canas de Senhorim, tal como o Auto de foral que significa que esta terra gozou de autonomia administrativa desde o sculo XII. 2. Existe ainda a afirmao que esse homem era um filho desprotegido. Por qu? Dizer que o homem de Canas lutou contra os opressores da Ptria e das idias relembrar que nos grandes momentos de represso poltica/ideolgica (ocupao de Portugal pelos espanhis- 1580- 1640, absolutismo Miguelista, ditadura salazarista) houve sempre em Canas de Senhorim grupos que se insurgiram contra a represso. No por acaso que uma das ltimas cenas da pea um dilogo em que , em pleno processo revolucionrio do 25 de Abril, o Z Povinho Canense reivindica autonomia administrativa que perdeu aquando da 1 Repblica, quando deixou de ser sede de Concelho. Esta reivindicao dura at hoje, dando origem a manifestaes em Lisboa com cobertura televisiva. 3. correto deduzir que esse homem possua uma conscincia crtica tanto poltica quanto social? H uma oposio ou uma congruncia entre um Estado maior (Portugal) e um estado menor (a vila de Canas) onde esta vila menor desempenha um papel fundamental a aquele Estado maior? Conscincia crtica poltica e social- Dado ter sido uma zona fortemente industrial (Fornos Eltricos, Extrao de Urnio, Adubos) os movimentos sindicais facilmente despertaram essa conscincia. No me parece que Canas represente um papel fundamental no Estado maior que o pas. Na essncia da pea est a presena forte do povo que vivencia o que de mais importante se passou em Portugal e que, por isso mesmo, como se representasse a sua histria. 4. Em algum momento a Sra. esteve engajada na luta para municipalizao de Canas? No estive diretamente engajada nessa luta, embora a minha pea seja um forte argumento em prol dessa luta. 5. Quanto ao recorte histrico na pea, por que decidiu retratar ainda no 1 ato dos sculos XII ao XIX e fazer dois menores atos subseqentes? O II e III Atos revivem situaes ainda prximas dos espectadores: so mais curtos, mas o ritmo mais forte. 35. 35 6. Por que a ao encerrada em 1975? A ao encerra em 1975, por ser um momento em que a vida da vila (assim como a de todo o pas) atingiu um momento de viragem. Assumi voluntariamente um final um tanto kitch com as crianas a cantarem. (Aproveitei quadras que as crianas escreveram). Retrata emoes espontneas e puras. Os interesses e lutas polticas viro depois. 7. Por que aceitou escrever a pea? Aceitei escrever a pea, porque me deu uma grande satisfao levar as pessoas da terra a reviver e a tomar conscincia da sua histria. Em determinado momento da investigao, compreendi, com muita surpresa, que Canas de Senhorim participou intensamente durante os seus 800 anos de vida, nos acontecimentos mais importantes da histria do pas. Foi tambm muito motivador saber que s crianas da terra seria, nas escolas, distribuda a pea. 8. Como a configurao poltica-administrativa portuguesa em relao aos municpios? A configurao a seguinte: cada municpio composto por Juntas de freguesia e uma Cmara Municipal. Cada um destes rgos tem uma Assemblia (deliberativo) e um Executivo com um Presidente. O Presidente da Junta de freguesia tem assento na Assemblia Municipal. As juntas que no tm rendimentos prprios esto dependentes economicamente das cmaras municipais. Cada um destes rgos tem as suas competncias, mas as grandes decises so tomadas na Cmara. 36. 36 IV. Acerca da intertextualidade Ao lermos a pea O plantador de naus a haver adentramos o campo da intertextualidade, vis crtico-analtico responsvel por estabelecer um dilogo dinmico e vivo com seu interlocutor, ao exigir dele um olhar mltiplo sobre a palavra, ao deixar a ele a tarefa da reflexo, de reconhecer na malha expressiva do texto, os discursos que, independente da cronologia, ecoam vozes da histria, refletindo as idias de um grupo social, seus valores, mitos e crenas. O plantador de naus a haver, de Jlia Nery, justamente por ser um recorte de muitos textos de pocas distintas acaba por apresentar-se como objeto de anlise, do qual podemos depreender a ideologia e as concepes pessoais existentes em uma determinada camada da sociedade (no caso, a sociedade medieval). Em outras palavras, podemos considerar que, sob a ptica intertextual, o texto revestido por vozes que, entrecruzadas no tempo e no espao, comunicam-se entre si, gerando possibilidades amplas de leitura. Da incorporao de um texto (discurso) em outro, surge o intertexto, elemento no qual possvel observar, alm dos intercmbios e inter-relacionamentos entre textos, as vozes sociais que revelam novas dimenses ao saber humano. Sendo, portanto, a intertextualidade umas das principais foras condutoras do texto dramtico de Jlia Nery, especificamente neste captulo, objetivamos fazer um apanhado terico em torno da intertextualidade, a partir dos estudos acerca da linguagem empreendidos por Mikail Bakhtin, alm de nos valermos das contribuies tericas de Julia Kristeva, e de lingistas e pesquisadores contemporneos, como Affonso Romano de SantAnna, Flavia Maria Corradin, Jos Lus Fiorin, dentre outros, que tm, ao longo do tempo, pesquisado e ampliado as diretrizes bakhtinianas em torno do dialogismo e da polifonia e os estudos acerca dos mecanismos que promovem a intertextualidade. Aps este estudo, como referencial de anlise, sero examinadas as implicaes da obra citada com alguns textos-paradigmticos, ou seja, outras obras literrias, que resgatadas para o novo espao literrio, estabelecem uma relao dialtica importante para entendimento do intertexto. Nesse sentido, tomaremos como ncleos de nossa investigao a parfrase e a estilizao. Isso porque acreditamos que o vis analtico intertextual trar luzes para a leitura da obra, podendo suscitar elementos diversos que, implcitos na pea, contribuem para a revelao do ponto de vista de seu Autor acerca do protagonista, do contexto histrico, alm claro, de apresentar a sua viso de mundo. 37. 37 IV.1. Preliminares Estudo acerca da teoria bakhtiniana de dialogismo, polifonia e intertextualidade. Mikail Bakhtin (1895-1975) comea a estruturar suas teorias em meio a um cenrio histrico-social obscuro. Mais precisamente, com o advento da ento URSS, o filsofo vive a transio revolucionria de 1917. A nova esfera poltica far vrios intelectuais subjugarem suas idias polticas e ideolgicas ao controle estatal. Vivendo justamente num ambiente dicotmico e excludente, Bakhtin procurar apreciar o homem e o universo em sua totalidade, em sua variedade e riqueza. Procurar observar, na esfera literria, principalmente no romance, como o homem v a histria e as idias, transformando-as em fico. Interessado pelas questes literrias, principalmente as questes histricas e sociais, ou como elas se engendram para construir a rede de significao dentro do texto, como o exposto em sua tese de doutorado A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento o contexto de Franois Rabelais, e pelas idias marxistas, marca latente em suas obras, Bakhtin no somente conduzia suas crticas acerca do elemento literrio em suas acepes sinttico-semnticas, mas de uma forma que poderia ser relacionada dialtica hegeliana, pois, exemplo da dialtica, funda uma concepo (base para sua teoria) de contradio entre os elementos componentes do texto, valendo ressaltar que a contradio em uma concepo marxista ocorre na luta de foras antagnicas estabelecida dentro de um contexto determinado. A partir deste confronto, os resultados sero sentidos em todo contexto posterior. Sua obra trata os temas componentes de um objeto de observao de modo que haja a interpretao contextual, de modo indissocivel do tempo, do sujeito, da situao, das foras que permeiam a sociedade, da ideologia dominante. do ponto de vista ideolgico que melhor observvel a aplicao de suas concepes. Marx nos apresenta o conceito de ideologia como um discurso elaborado por uma classe dominante de modo a subjugar (intelectualmente) toda uma massa. A linguagem, carregada de ideologia serve de instrumento de controle. Mas no somente isso. Linguagem, enquanto uma caracterstica inerente ao ser social, um elemento capaz de ilustrar idias, concepes de uma pessoa, de uma sociedade, alm de denotar o estado de um determinado fato/ser/local e, quando revestida por esses valores, em uma relao comunicativa, torna-se capaz de levar ou no o interlocutor a uma concluso desejada. Diferente de Saussure, que toma a langue como objeto de pesquisa, Bakhtin utiliza tambm a parole, pois nela que se observam os fatos em questo, nela que se observa a ideologia. 38. 38 Para elucidar melhor esta idia, vejamos o que diz Marina Yaguello na introduo de Marxismo e filosofia da linguagem: Mas, ao contrrio da lingstica unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da lngua um objeto abstrato e ideal, que se consagra a ela como um sistema sincrnico homogneo e rejeita suas manifestaes (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciao, e afirma sua natureza social, no individual: a fala est indissociavelmente ligada s condies de comunicao, que, por sua vez, esto sempre ligadas s estruturas sociais (BAKHTIN, 2004, p.14). Dessa forma, podemos observar que a premissa bakhtiniana acerca da linguagem permite encontrar fatores que nos possibilitam entrever a ideologia, as intenes e as vozes sociais. Tomemos como exemplo a releitura biobibliogrfica de D. Dinis levada a efeito por Jlia Nery. Na obra conhecemos um rei, D. Dinis, que viveu nos sculos XIII/XIV, e aqueles que foram testemunhas de sua vida, obra e reinado. Nesse percurso podemos antever o reflexo ideolgico da composio social de um grupo, ou seja, sua concepo de mundo, sua ideologia. O discurso literrio apresenta elementos em sua trama que so fortes indcios das intenes (sociais, pessoais etc), representando assim uma realidade. Evidncia da afirmao de Bakhtin (2004, p.122) ao dizer que "toda palavra ideolgica". Vejamos um exemplo: LAVRADOR: Cada um tem de limpar o seu campo. Eu limpei a minha leira das pedras e das ervas ruins; o rei limpou o reino da ladroagem...de quase toda... O rei chamava-nos a ns, os lavradores, nervos da terra e do reino. Entre ns e ele um tratado que nunca foi preciso escrever: a terra a quem trabalha. E de Dom Dinis nos veio a fora de nos metermos por pais e lodaais! (NERY, 1994, p. 24). Apenas aparentemente a fala do Lavrador parece simples, uma vez que nos deixa reconhecer um discurso que reproduz uma viso de mundo seu discurso remonta, provavelmente, o discurso dominante de uma classe social a dos servos, ou dos camponeses que serviam a uma camada privilegiada, composta pelos senhores feudais, pelos altos dignitrios da Igreja (o clero) e pela nobreza. Dessa forma, possvel dizer que a fora motriz da teoria bakhtiniana busca, com base em indcios fornecidos por traos discursivos encontrados na enunciao, os elos de ligao que um discurso mantm com outros textos. De acordo com Barros (2003, p.1): 39. 39 O exame da enunciao ocupa espao privilegiado em suas reflexes. Bakhtin concebe o enunciado como matria lingstica e como contexto enunciativo e afirma ser o enunciado, assim entendido, o objeto do estudo da linguagem. Trata-se, pois, de um processo contnuo em que no apenas as foras ideolgicas se manifestam, mas tambm os fatores que conduzem o ser e sua realidade, transformando, em ltima instncia, a condio histrica em ideolgica desde sua gnese. Compreendemos, ento, que a linguagem o local em que se definem os elementos que iro expressar a composio do quadro real. Mas este quadro apresenta caractersticas que so comuns a outros quadros, eles, de alguma forma, se correspondem. E desse dilogo possvel extrair pontos que retratam o ser e sua relao com os fatores componentes da realidade. IV. 2. Polifonia At aqui percebemos que no existe um discurso de natureza pura. Uma vez que a conscincia individual formada pelos discursos que atravessam o indivduo ao longo de sua vida. Nessa perspectiva, temos que o mundo que se revela ao ser humano se d pelos discursos que este assimila, formando seu repertrio de vida. Enquanto seres localizados em uma comunidade que faz uso de um sistema lingstico de domnio amplo, logo, somos tambm permeados por idias de toda sorte, e essas idias deixam resqucios que so internalizados e passam a fazer parte de nosso arsenal lingstico, que lanamos mo quando necessrio, o qual pode denotar um uso diferente do original, ocasionando um desvio de sua forma primeira, gerado pela intencionalidade do momento e pelo contexto em que se encontram os enunciadores e interlocutores. Caracteriza-se, assim, o carter polissmico e parafrsico das palavras. Conforme Baccega (2000, p. 51), Os discursos constituem um sistema de relaes de substituio, parfrase, sinonmias, etc, que resultam em configuraes diversas para cada um deles. Assim, por exemplo, nos discursos da histria e da literatura as palavras ganham sentidos prprios, diversos, dada a natureza de cada um. Posto desse modo, o discurso nos apresenta a possibilidade de utilizar em contextos diversos as mesmas palavras com significados distintos, independentes de sua origem. Porm, no h uma deturpao do significado, ele apenas modificado para que se torne adequado ao momento em questo. 40. 40 Dada a influncia do contexto na elaborao do significado do discurso, devemos atentar para o fato de que, por fazer um uso infinito de um sistema finito, os signos indiretamente mantm uma relao de correspondncia entre si, ocasionando uma correspondncia mtua quando dispostos no discurso. Tal possibilidade marcada pelo domnio das vozes no discurso, a posio scio-ideolgica que o locutor/ interlocutor ocupa em uma determinada classe dentro de uma sociedade especfica, seu papel enquanto cidado. notvel esse fator, pois todos, enquanto integrantes de uma sociedade, desempenham papis dentro de um conjunto. Tomemos como exemplo a organizao social do medievo sculo XIII, contexto da obra O plantador de naus a haver, nela, como vimos h pouco, temos a figura de um rei (D. Dinis) e de um servo (o Lavrador). Cada um desses dois elementos possui uma caracterstica especfica na sua escala social, dentro da hierarquia dominante, com suas funes, direitos e deveres. Dessa forma, cada um deles estabelece relaes entre as partes vizinhas respeitando seu papel dentro desse quadro organizacional; segundo Orlandi (2003, p. 38) o lugar a partir do qual fala o sujeito constitutivo do que ele diz. Ou seja, o discurso do rei tem autoridade determinada junto aos servos, ele detm um poder maior, logo, sua posio social superior dos servos. Ainda segundo Orlandi (2003, p.39) ...nossa sociedade constituda por relaes hierarquizadas, so relaes de fora, portanto, em tese, o discurso do rei tem um peso maior do que a do servo. Entretanto, se pensarmos que o lugar a partir do qual fala o sujeito constitutivo do que ele diz, se o fator local determina sua posio na escala social, podemos depreender que existe uma relao dialtica entre os papis institudos ao sujeito, podemos perfeitamente encontrar as chamadas vozes sociais: o homem institudo em rei apresenta um discurso de fora, de autoridade, marcando as caractersticas da sua voz, mas enquanto homem comum, por exemplo, no ambiente familiar, apresenta as caractersticas de um pai, preocupado com o desamor de um filho etc8 . As vozes esto instaladas nas atitudes que tomamos nos contextos sociais. Logo, h um dilogo entre as atitudes, os papis sociais e os contextos: a polifonia. Neste ponto, interessante perceber como se d a relao entre os discursos. Como nos apresenta Mainguenau, todo discurso define sua identidade em relao ao outro. Isso quer dizer que o discurso apresenta uma heterogeneidade constitutiva. (MAINGUENEAU 1987, p. 91-93 apud BARROS & FIORIN, 2003, p. 33). A esta relao discursiva, seja ela contratual ou polmica, chamamos polifonia ou dialogismo polifnico. Caracterstica intrnseca aos atos comunicativos nesta concepo que podemos melhor observar o fenmeno da disseminao ideolgica. Como j foi discutido, o homem, que por 8 Para um estudo mais aprofundado acerca dessa questo ver a Anlise do II e III Atos da pea, constante no Cap. VII.1 deste trabalho. 41. 41 foras sociais encontra-se em uma relao dialtica consigo mesmo, reveste-se de papis que lhe so outorgados a todo momento. De outro modo, influenciado por meio de uma realidade imediata, o homem absorve inconscientemente os valores, as idias que lhe so fornecidas no contexto em que se encontra, internaliza-as e, por fim, dissemina-as. Essa afirmao nos leva a compreender a influncia da sociedade na formao individual. No h, portanto, um ser puro em suas concepes, em suas idias. O homem, por unanimidade, assume o carter do signo, pois, comportando essa carga, esses elementos constitutivos do significado, torna-se um ser polifnico. Ao corresponder a esses papis sociais por meio de suas atitudes, atributos, discursos, possvel notar a equivalncia que se d entre os diferentes elementos do discurso expressos no homem, h uma interferncia entre os discursos existentes no meio social, h a recorrncia a termos e situaes nas quais o papel ideolgico manifesta-se de maneira a ilustrar um percurso desejado ou a levar a um entendimento diferenciado sobre o concebido como real. Todos esses fatores, expressos sob o emblema do discurso encontram-se na arquitetura de um ponto basilar das relaes interpessoais. No h possibilidade de se estruturar um discurso se no houver seu componente elementar, o enunciado. IV.3. Enunciao Ao ter em vista que a comunicao um construto social embasado em prticas coletivas e fundamentado em pressupostos ideolgicos e lexicais, precisamos esclarecer o que