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“Não me ofendo se alguém disser que sou um alquimista da liberdade. Eu hei de encontrar um pó, um elixir, uma pedra filosofal, capaz de manter a liberdade de toda a gente”. Evandro Lins e Silva (1912-2002) SILVA, Evandro Lins e Silva. O Salão dos Passos Perdidos. pp. 199-200.

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“Não me ofendo se alguém disser que sou um alquimista da

liberdade. Eu hei de encontrar um pó, um elixir, uma pedra

filosofal, capaz de manter a liberdade de toda a gente”.

Evandro Lins e Silva (1912-2002)

SILVA, Evandro Lins e Silva. O Salão dos Passos Perdidos. pp. 199-200.

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A Roberto e Sonia, meus pais, que me ensinam a lutar pelos

meus ideais.

À Carolina, minha irmã, pelo apoio na realização deste trabalho.

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Ao Prof. Dr. Carlos Ari Sundfeld, por depositar confiança na

realização deste trabalho, pela decisiva orientação e contribuição na

minha formação científica.

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À Sociedade Brasileira de Direito Público, por proporcionar a

oportunidade da aquisição de novos conhecimentos, em especial ao

Dr. Conrado Hübner Mendes e ao Dr. Diogo Rosenthal Coutinho, que

incentivaram a realização deste trabalho.

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1

RESUMO

O corpo do presente relatório estrutura-se basicamente em três partes: a análise

histórica e política do regime militar, a análise quantitativa de 613 acórdãos e a discussão de

seus resultados, focando-se especialmente na análise da atuação judicante do ministro

Evandro Lins e Silva.

Na primeira parte, buscou-se ampliar o conhecimento do papel do Supremo Tribunal

Federal, instituição fundamental do Estado, na trajetória política brasileira. Assim, levou-se

em consideração, além do contexto histórico, político e social dos anos de 1960, as

circunstâncias pessoais do julgador Evandro Lins e Silva que, graças a suas convicções

políticas e ideológicas, despertou a atenção da opinião pública, devido ao seu envolvimento

em situações polêmicas que repercutiram no cenário político brasileiro.

Com isso, num primeiro momento, foram objeto de análise teórica livros e artigos que

permitiram uma análise do contexto histórico, político e social dos anos conturbados de 1960.

Além disso, o período de 1964 a 1968, no qual o Brasil esteve sob direção de um governo de

exceção, foi analisado, tendo por base, além das Constituições de 1946 e de 1967, os Atos

Institucionais. Embora o regime militar não tenha se instaurado com batalhas homéricas e

muito derramamento de sangue, pode-se afirmar que ele foi um dos mais profundos e

radicalizados movimentos pelo qual o país passou. Com isso, o governo militar foi

responsável por alterações no ordenamento jurídico e, a partir destas alterações, buscou-se ter

uma visão ampla da atuação do Supremo Tribunal Federal e dos ministros que integraram esta

Corte durante o governo militar.

Para tanto, foram utilizados como fontes o habeas corpus nº 40.910, de 24 de agosto

de 1964, cujo paciente era Sérgio Cidade de Rezende, o habeas corpus preventivo nº 41.296,

de 23 de novembro de 1964, concedido a Mauro Borges e o habeas corpus nº 42.108, cujo

paciente era o ex-governador do Estado de Pernambuco, Miguel Arraes. Esses processos são

considerados relevantes no contexto histórico da jurisprudência e fundamentais na

compreensão dos fatos que resultaram em um regime político de autoritarismo crescente,

especialmente no ano de 1968. Ressalta-se a importância desses casos pela repercussão que

tiveram: despertaram a atenção da opinião pública, na medida em que os envolvidos

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apresentavam idéias que muitas vezes eram divergentes das apresentadas pelo regime político

vigente.

Já na segunda parte do trabalho, buscou-se ter um panorama da atuação do ministro

Evandro Lins e Silva. Com isso, através de uma análise quantitativa (em anexo), as decisões

do Supremo, nas quais Evandro Lins e Silva estava presente, foram computadas. Com isso,

além dos casos já mencionados, foram analisados outros 613 acórdãos, tendo por fonte as

Revistas Trimestrais de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, volumes 45 a 52, tendo

sido, assim, 24 revistas analisadas. Os acórdãos são referentes ao período de janeiro a

dezembro de 1968, ano no qual o autoritarismo chegou ao auge e foi editado o Ato

Institucional nº 5, que conferiu amplas atribuições ao Presidente da República, inclusive para

aposentar ministros do Supremo Tribunal Federal, o que de fato ocorreu, através do decreto

editado no dia 16 de janeiro de 1969, pelo qual foram aposentados compulsoriamente os

ministros Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes Leal. Na seleção destes

acórdãos, considerou-se como critério de inclusão a presença no Tribunal do ministro

Evandro Lins e Silva dentre os magistrados que votaram.

As variáveis analisadas em cada um dos acórdãos foram: decisão do caso

(possibilidades: unânime/maioria); tipo de voto (possibilidades: vencedor/vencido/não

pronunciou voto); tipo de Tribunal (possibilidades: Pleno/Segunda Turma); resultado do

julgamento (possibilidades: procedente/improcedente, concedido/não concedido, provido/não

provido).

Dentre estas variáveis, aquela referente ao “tipo de Tribunal” necessita de um

esclarecimento: foram analisadas as possibilidades de Evandro Lins e Silva participar das

sessões em Tribunal Pleno e em Segunda Turma, já que estas eram, em 1968, suas sessões de

votação. Também a variável referente ao “resultado do julgamento” necessita de

considerações específicas: ressalta-se que não foram colhidos todos os resultados possíveis,

pois casos há em que, quando o resultado era conferido em parte, foi considerado como tendo

sido conferido totalmente. Como exemplo, temos: um resultado que seria procedente em parte

foi considerado procedente (como um todo). Isto ocorreu apenas para uma facilitação do

trabalho quantitativo. Ainda, tentamos agrupar nos resultados mencionados as outras

denominações existentes para eles, como: um habeas corpus cuja decisão era “indeferido” foi

inserido no resultado, do presente trabalho, como “não concedido”.

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Além disso, ainda como observação de natureza metodológica, ressalta-se que um

mesmo caso pode apresentar mais de um resultado, como, por exemplo, o recurso

extraordinário foi conhecido e provido. Neste sentido, podemos ter o resultado como

“provido” pela maioria e “conhecido” pela unanimidade dos votos, ou vice-versa.

Dentre os acórdãos nos quais Evandro pronunciou seu voto, além das variáveis já

mencionadas, outras foram objeto de análise: natureza do acórdão (possibilidades: de

movimento comunista, estudantil, de cunho político/caso comum), voto (possibilidades:

parecer/acresce algo diferente), referência (possibilidades: à Constituição Federal/aos Atos

Institucionais) e filosofia de pensamento (possibilidades: revela ideologia/não revela

ideologia).

Algumas dessas variáveis, como a filosofia de pensamento, também merecem

considerações específicas, uma vez que sua análise não escapa a algum grau de subjetividade.

Ao fazermos referência à filosofia de pensamento, referimo-nos não a casuísmos político-

partidários, mas antes a convicções políticas reveladas nos votos. Essa análise, contudo, foi

baseada no texto que demonstrasse, de forma a mais clara possível, o pensamento de Evandro

Lins. Como exemplo, temos trecho de um dos acórdãos que fazem parte da pesquisa

qualitativa:

No estado de direito, o que prevalece é a liberdade de manifestação do

pensamento, garantida pela Constituição e pela Declaração Universal dos

Direitos do Homem. O paciente está confinado porque externou o seu

pensamento em matéria política. O argumento de que se trata de medida de segurança e não de pena é sibilino (...)1.

Quanto à diferença apontada nos votos, o “parecer” se refere ao fato de o ministro

pronunciar que seu voto é de acordo com o relator ou afirmações semelhantes.

A terceira parte do relatório foi dedicada à análise dos resultados da pesquisa

quantitativa, pela qual foi revelada uma predominância de decisões unânimes do Supremo

Tribunal Federal e uma postura do ministro Evandro Lins de se basear muito mais nas

1 HC nº 46.118. RTJ 52/435.

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Constituições do que nos Atos Institucionais para julgar. Além disso, através desta pesquisa,

observou-se que o ministro revelou explicitamente sua ideologia em 15 acórdãos, dentre os

212 nos quais o ministro pronunciou seu voto. Foram estes os 15 acórdãos (habeas corpus nº

45.214, habeas corpus nº 45.215, inquérito policial nº 2, habeas corpus nº 45.231,

representação nº 753, mandado de segurança nº 18.973, recurso de habeas corpus nº 45.907,

representação nº 718, recurso extraordinário nº 62.556, habeas corpus nº 46.118, reclamação

nº 777, habeas corpus nº 46.415, habeas corpus nº 46.060, recurso de habeas corpus nº

45.904 e recurso de habeas corpus nº 46.264) analisados qualitativamente durante a terceira

parte do relatório.

Através dos resultados da pesquisa quantitativa e da análise dos 18 acórdãos que

compõem o trabalho, chegou-se à conclusão fundamental do mesmo: as decisões do ministro

Evandro Lins e Silva o levaram de algum modo à sua aposentadoria compulsória.

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INTRODUÇÃO

O nascimento do constitucionalismo está relacionado à contenção do poder e à

preservação dos direitos fundamentais. Assim, ele surge para limitar o poder do Estado e para

assegurar pressupostos éticos, necessários ao respeito aos direitos dos homens.

Certo é que a Constituição tem um conteúdo político, na medida em que trata de

relações de poder e na medida em que suas garantias se revestem de caráter político, uma vez

que abrangem opções e valores, vinculam-se a certa concepção social e humana. Pois bem, o

Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, ligado à Constituição e ao

aparelho de governo da Nação brasileira, exerce função política? De fato, o direito protege um

comportamento adequado à norma, o que o relaciona com a cidadania, com a democracia e

mesmo com a política e, mesmo que não haja confusão do direito com a política, o Supremo

Tribunal Federal cada vez se configura mais como um órgão político, cujas “... decisões têm

um profundo e determinante impacto sobre a conduta dos demais Poderes e da população em

geral” 2.

Assume o Supremo posição de destaque no âmbito do Judiciário e dos demais

Poderes, caracterizando-se como uma arena de solução de conflitos políticos. Mas qual seria o

limite dessa função política? Teria acompanhado o percurso da instituição o libelo de João

Mangabeira, pelo qual era afirmado que3 “O órgão que, desde 1892 até 1937, mais faltou à

República não foi o Congresso, foi o Supremo Tribunal Federal. Grandes culpas teve, sem

dúvida, o primeiro. Teve, porém, dias de resistência, de que saiu vitorioso ou tombou

golpeado”4? Ou será que Aliomar Baleeiro tem razão ao afirmar que

2 Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência Política. Oscar Vilhena Vieira. p. 228. 3 O STF, Esse outro desconhecido. Aliomar Baleeiro. p. 69. 4 As citações de texto aparecem na sua forma original, inclusive com sua grafia mantida.

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Poderia ser outra, sem êsses lances dramáticos, a crônica do Supremo. Mas

das instituições, pode repetir-se o que já foi dito das Nações: se foram

sempre felizes não tiveram história, que mereça ser contada. E o Supremo tem a dêle, com grandezas e sombras. Como tôdas as instituições humanas,

sob todos os céus e no curso de tôdas as idades5.

De fato, lances dramáticos marcaram a história do Supremo e a história política

nacional, que se entrelaçam, se confundem. E de fato o Brasil é marcado por uma história

nacional, na qual períodos de exceção, como os anos marcados pela ditadura militar,

interromperam o Estado de Direito. Como o Supremo poderia cumprir sua função de

“guardião da Constituição” num período no qual o Congresso é dissolvido, no qual o

Executivo “Revolucionário” governa através de decretos e cria Atos Institucionais, que

contrariam a Constituição, ou que até mesmo excluem a possibilidade de verificação da

constitucionalidade dos atos?

Como poderia cumprir sua missão de sentinela das liberdades públicas? De fato, o que

marca o estudo da atuação do Supremo na década de 1960 é o problema do equilíbrio entre

autoridade e a liberdade, problema este que deixa patente a imperiosidade da proteção jurídica

dos direitos constitucionalmente assegurados perante o poder.

Verifica-se então o embate travado entre a Corte e o governo revolucionário: o conflito

entre o estado de fato e o Estado de Direito, garantidor da legalidade, dos direitos

fundamentais, dos direitos individuais e das liberdades públicas, ou seja, garantidor da força

normativa da Constituição.

De fato, o Supremo conviveu com uma ambigüidade jurídica: ao lado das leis e da

Constituição, o poder militar procurava legitimar-se por meio de Atos Institucionais. Mas o

Supremo foi criado pela Constituição para sua guarda, destinado a conter os excessos do

Congresso e as violências do governo, defendendo o indivíduo contra os abusos das

autoridades do Poder Público, na medida em que o povo é fonte do poder e titular de seu

exercício.

5 O STF, Esse outro desconhecido. Aliomar Baleeiro. p. 26.

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Deve então a instituição assegurar o direito de resistência aos governos injustos,

afirmando o direito e não confirmando o poder, considerando apenas a variável legal-ilegal e

não considerando a variável governo-oposição.

Mas para seguir esta orientação, o Supremo deve ser protegido contra pressões que

enfraqueçam suas estruturas e sua autonomia deve ser preservada, protegendo-se, assim, o

equilíbrio e a independência entre os Poderes, fazendo com que o Supremo mantenha seu

poder de dizer a última palavra, inclusive desfazendo erros legislativos e entregando os crimes

dos depositários do Poder Executivo à severidade das leis.

De fato, no contexto político do período do regime militar, o Supremo foi marcado por

interferências diretas em sua atuação e em sua composição. Em certa medida, falhou na

garantia do Estado de Direito e em nenhum momento deixou de reconhecer o governo militar

e os atos que dele emanavam:

Em 1964, houve idílio inicial entre a Revolução e o Supremo. O em.

presidente do Tribunal foi convocado para a sessão histórica, às 3 h da

madrugada de 2 de abril, quando o Congresso proclamou a vacância do Poder Executivo e nêle investiu o presidente da Câmara dos Deputados.

Assistiu à posse dêste, no Palácio do Planalto, ao raiar do dia, quando o

edifício ainda estava ocupado pelas Casas Civil e Militar do ex-presidente da República na posse de metralhadoras. Disso fêz relato fiel no discurso com

que agradeceu a visita das Mesas do Senado e da Câmara, em 16 de abril de

1964, em nome do Congresso, pela solidariedade a êste dada pelo Supremo

na madrugada de 2. O presidente H. Castelo Branco, logo após a posse, visitou o S.T.F.6

Apesar disso, procurou proteger o que havia restado dos textos do ordenamento

jurídico do Estado de Direito, marcado pelas “intervenções cirúrgicas”, oriundas da legislação

excepcional, procurando, ao conceder, por exemplo, habeas corpus, reconhecer nulos os atos

que exorbitassem os limites traçados pela Constituição, defendendo a liberdade.

De qualquer maneira, a Corte se mostrou dinâmica e mutável ao impulso da história,

tendo sido ameaçada por crises, mas tendo sobrevivido.

6 O STF, Esse outro desconhecido. Aliomar Baleeiro. pp. 132-133.

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É uma instituição humana e, portanto, falível, mas tem uma história que merece ser

contada. Há uma escassa literatura sobre o Supremo e esta pesquisa se pretende útil para

integrar um amplo painel, que ainda deverá ser traçado pelos estudiosos, para que se tenha

uma compreensão profunda do papel e das características da instituição, fundamental em

nosso Estado. Observa-se trecho de Aliomar Baleeiro que corrobora com nossa opinião de

que não há necessidade de ter vivido o contexto político, jurídico e social de um tempo para

que se escreva sobre ele:

É desnecessária, para mim, a advertência de que ninguém pode ser historiador dos fatos de seu tempo, mormente quando nêles, além de

testemunha, algumas vêzes se desempenhou o papel de corista humilde,

entre os solistas e regentes da orquestra. Comenta-se que a mais bela descrição literária da batalha de Waterloo se deve à pena de Vitor Hugo7, nos

Miseráveis, embora não assistisse a ela, menino ao tempo – e não a Stendhal,

capitão intendente que, sem dúvida, estêve no local e na ação, integrante do exército de Bonaparte, empenhado na peleja memorável e que, anos depois,

tentou pintá-la na Chartreuse de Parme8.

Ressalta-se ainda que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser

valorizada como “fonte do direito”, especialmente o Constitucional, o que depende de ela ser

bem conhecida e analisada e o que nesta pesquisa se busca é a análise de jurisprudência,

considerando-se o contexto político e as circunstâncias pessoais do julgador.

Neste sentido, considerando-se o contexto político conturbado da década de 1960 e

levando-se em consideração as circunstâncias pessoais de Evandro Lins e Silva, ministro do

Supremo Tribunal Federal, de 4 de setembro de 1963 a 16 de janeiro de 1969, busca-se fazer

uma análise jurisprudencial do período de 1964 a 1968 que, além de marcado pelo golpe de

Estado, foi marcado pelas interferências diretas na Suprema Corte. O governo militar alterou

o número dos ministros, ora dissolvendo o Tribunal, ora mutilando a Corte. Levando-se em

conta o contexto da época, intenciona-se estudar a atuação do ministro, a partir da análise de

seus votos, objetivando construir um panorama das decisões mais significativas que, de algum

7 Victor Marie Hugo nasceu em Besançon, França, e morreu em Paris. Era filho de Joseph Léopold Sigisbert

Hugo, um dos generais de Napoleão. In: Os Miseráveis. Victor Hugo. Texto em português de Miécio Táti. Ed.

Ediouro. 8 O STF, Esse outro desconhecido. Aliomar Baleeiro. p. 131.

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modo, levaram à aposentadoria compulsória de Evandro, pelo decreto de 16 de janeiro,

editado com base no Ato Institucional nº 5.

Neste mesmo sentido, objetivamos apurar se as atitudes do então ministro estão de

acordo com a convicção segundo a qual a posição política dos ministros é revelada em seus

votos, já que o próprio ministro já afirmou: “Os ministros decidiam juridicamente, de acordo

com a lei, e é claro, punham também a sua posição política no voto. Ninguém pode deixar de

colocar nos seus gestos, nas suas atitudes, os seus pensamentos, as suas convicções

políticas”9.

9 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. pp. 377-378.

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BREVE PANORAMA DO JULGADOR10

Natural da cidade de Parnaíba, no Piauí, Evandro Cavalcanti Lins e Silva nasceu no

dia 18 de janeiro de 1912. Filho de D. Maria do Carmo Cavalcanti Lins e Silva, de família

tradicional e importante no Recife, e do Dr. Raul Lins e Silva, que permaneceu no Maranhão

durante doze anos, de 1908 a 1920, exercendo a atividade de juiz em diversos municípios,

estudou parte do curso primário no Maranhão, terminando o mesmo e iniciando o ginásio em

Recife, quando se transferiu, no 4º ano, para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade de

Direito do Rio de Janeiro (atualmente Faculdade Nacional de Direito).

Formou-se em direito no final de 1932, tendo trabalhado, enquanto estudante e

também como advogado, em diversos jornais: A Batalha, Diário de Notícias, A Nação e O

Jornal, sendo que, neste último utilizava o pseudônimo de Lobão.

Exerceu, por muitos anos, as atividades profissionais de advogado criminalista. No

exercício dessa função, defendeu inúmeros perseguidos políticos, a partir da eclosão da

Revolução Constitucionalista de São Paulo, de 1932. Em 1947, juntamente com João

Mangabeira, Hermes Lima, Domingos Velasco, Alceu Marinho Rego, Rubem Braga, João

Silveira e outros colegas, fundou o Partido Socialista Brasileiro.

Desenvolveu intensa atividade profissional no Tribunal do Júri, nos juizados criminais,

nos tribunais superiores e no Supremo Tribunal Federal. Exerceu, além da atividade de

advogado, a de professor, tendo lecionado na Cadeira de História do Direito Penal e Ciência

Penitenciária, no curso de doutorado da Faculdade de Direito do então Estado da Guanabara,

de 1956 a 1961, ano em que estava na China, integrando a comitiva de João Goulart, quando

da renúncia de Jânio Quadros. Com isso, auxiliou João Goulart a preparar o discurso de sua

posse na Presidência da República e foi convidado a fazer parte do governo. Como Evandro

mostrava-se receoso em aceitar o convite, hesitando em participar do governo, João Goulart

teria afirmado: “Até agora falou o amigo, agora fala o presidente da República, que lhe faz

10 Para mais detalhes, ver O Salão dos Passos Perdidos; STF – Galeria dos ministros do Supremo Tribunal

Federal – República.Disponível em: <http://www.stf.gov.br/institucional/ministros/republica.asp?cod_min=109>

e Biografia – Evandro Lins e Silva – Cadeira 1. Disponível em:

<http://www.academia.org.br/imortais/cads/1/evandro.htm>.

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um apelo para você prestar um pouco de serviço ao seu país e deixar de lado a preocupação

das vantagens que a advocacia pode lhe oferecer neste momento”11.

Com isso, Evandro não se recusou a participar do governo, mas apenas pediu para que

não tivesse de exercer um cargo durante muito tempo. Dessa forma, durante o governo

Goulart, Evandro foi nomeado Procurador-Geral da República, exercendo esta atividade de 26

de junho de 1961 a 23 de janeiro de 1963, quando, após o plebiscito de janeiro de 1963, pelo

qual retornou-se ao regime presidencialista, foi convidado a exercer a função de ministro-

chefe da Casa Civil da Presidência, atividade esta que exerceu durante o período de 24 de

janeiro a 11 de junho de 1963.

Já em junho de 1963, por força de uma reforma ministerial, cuja articulação política

ficou a cargo do Presidente e que buscava atender a composições políticas, para que fosse

possível a realização das reformas de base, objetivo para a reformulação, Evandro passou a

atuar como chancelar, de 18 de junho a 14 de agosto de 1963. Sua permanência no ministério

das Relações Exteriores foi bastante curta porque Evandro não concordava com alguns pontos

na política interna, os quais o governo defendia, tanto que Evandro afirma que:

Naquele momento, estava havendo, digamos, um excesso de reivindicações

e de proclamações que levavam a supor que fosse haver uma mudança que não visaria apenas à melhoria das condições do país (...) Quando sobreveio a

morte do ministro Ari Franco e se abriu uma vaga no Supremo Tribunal

Federal, estive com o presidente, e ele me disse que, embora houvesse outros

candidatos (...) eu era o seu candidato12.

Com isso, Evandro foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, através de um

decreto do Presidente João Goulart, de 14 de agosto, para preencher a vaga decorrente do

falecimento do ministro Ary de Azevedo Franco.

Quanto à nomeação para o Supremo, houve muita resistência por parte do Senado.

Fundamentalmente, dois fatores foram responsáveis por esta resistência: o primeiro deles

explica-se pelo fato de que o Partido Social Democrático (PSD), que tinha a maior bancada no

11 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. p. 338. 12 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. p. 354 e 355.

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Senado, exigia do Presidente Goulart a nomeação do ministro do Exterior antes da aprovação

do nome de Evandro, mas o Presidente não se submetia a tal condição. O segundo fator é

relacionado com uma campanha que houve dos Diários Associados desfavorável à nomeação

de Evandro. Tal campanha foi comandada por Assis Chateaubriand, que escrevia artigos no O

Jornal e no Correio Braziliense em que chamava Evandro de comunista e afirmava que ele,

por sua ideologia política, não podia integrar a Suprema Corte. Apesar disso, por uma

margem escassa de votos, seu nome foi aprovado e ele pôde assumir o cargo em 4 de

setembro de 1963.

Atuou como ministro do Supremo desde setembro de 1963, até ser aposentado

compulsoriamente, com base num decreto, editado em 16 de janeiro de 1969. Depois de

aposentado, voltou a exercer a advocacia.

Sem dúvida, sua trajetória profissional foi marcada por inúmeros processos de grande

repercussão no cenário da política nacional. Defendeu presos políticos, foi advogado no

processo de impeachment do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, defendeu José Rainha

Júnior, “Líder dos Sem-Terra”, em abril de 2000, atuando ainda em outros casos que se

constituíram em marcos na sua vida profissional.

Em abril de 1998, foi eleito membro efetivo da Academia Brasileira de Letras. Em

dezembro de 1999, foi escolhido “O Criminalista do Século” pela Associação dos Advogados

Criminalistas do Estado de São Paulo (ACRIMESP).

Faleceu aos 90 anos, no dia 17 de dezembro de 2002, na cidade do Rio de Janeiro.

Pouco tempo antes, havia sido nomeado, pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, para

o Conselho da República.

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CENÁRIO DA POLÍTICA NACIONAL

1960. Amparado por uma coligação na qual se destacava a União Democrática

Nacional, elitista e antivarguista, Jânio Quadros, “...um demagogo que fizera a campanha

eleitoral usando a vassoura como símbolo”13 foi eleito Presidente da República. Ao eleitor,

pela Constituição de 1946, era permitido votar em candidatos de chapas diferentes para

assumirem a presidência e a vice-presidência. E João Goulart foi o escolhido pelo povo para

assumir a vice-presidência; Jango, seu apelido desde a infância, identificado com o Partido

Trabalhista Brasileiro, varguista e relacionado a organizações de trabalhadores (classe

operária urbana) que estava em formação.

Dois candidatos politicamente antagônicos assumiram democraticamente posições de

destaque no âmbito da política nacional: “Jânio prometera varrer a ordem política de que

Jango era produto” 14.

1961. O que ninguém esperava era a renúncia de Jânio, ao menos não tão

precocemente como ocorreu: sete meses após sua posse, em 25 de agosto de 1961. João

Goulart estava com sua delegação em viagem ao Leste Europeu e à China15. Assumiu,

temporariamente, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.

A renúncia despertou uma espécie de divisão entre aqueles que defendiam fórmulas

que impedissem que Goulart assumisse a presidência, o que significa dizer, fórmulas que não

respeitassem a Constituição: sob a alegação de razões de segurança nacional, os “... ministros

militares de Jânio Quadros, general Odílio Denys, brigadeiro Grün Moss (Aeronáutica) e

almirante Sílvio Heck (Marinha), (...) tentaram impor ao Congresso a aprovação de uma

breve nota, vetando a posse do vice-presidente...” 16, e aqueles que defendiam a sucessão da

presidência de acordo com a Constituição: o governador Brizola liderava a Campanha da

Legalidade, “Elóy Dutra, do PTB, leu na Câmara um manifesto de Lott, conclamando o povo

a tomar posição enérgica de respeito à Constituição e à preservação do regime democrático.

13 A ditadura envergonhada. Élio Gaspari. p. 47. 14 A ditadura envergonhada. Élio Gaspari. p. 47. 15 Ressalta-se que João Goulart foi o primeiro dirigente da América Latina a visitar a China, depois que o regime comunista foi instalado. Observa-se ainda que Evandro Lins e Silva, embora ainda não tivesse ocupado

atividades de destaque na vida pública do Brasil (ainda não fosse um “homem do governo”), fez parte da

comitiva, com a qual Goulart viajou para a China. 16 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 158.

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Lott foi preso. A 28 de agosto, o PSD lançava um manifesto a favor da posse. O governador

de Goiás, Mauro Borges, denunciou os perigos da pressão militar sobre as instituições

democráticas”17, e houve suporte militar da 3ª Divisão de Infantaria.

Os golpistas tiveram de negociar. Afinal, a solução golpista – a nota – não foi

aprovada pela maioria do Congresso, no dia 29 de agosto. Goulart também precisou negociar.

Havia sido vetado pelos ministros militares. Pela Emenda Constitucional nº 4, promulgada em

2 de setembro de 1961, foi instituído o parlamentarismo, como forma de Goulart ocupar o

cargo da presidência, sem que lhe fosse entregue o poder: teve de dividir poderes com o 1º

ministro. Assumiu, então, em 7 de setembro de 1961. Já, neste primeiro momento de governo

Goulart, Evandro foi chamado para assumir a Procuradoria Geral da República.

1962. Em julho de 1962, foi aprovada uma proposta de plebiscito, que se realizou em

janeiro de 1963. Cerca de 9,5 milhões de brasileiros votaram a favor do presidencialismo,

contra 2 milhões de votos dados ao parlamentarismo18; uma emenda à Constituição devolveu

a João Goulart os seus poderes presidenciais. Uma vitória do campo legalista. Mais uma vez,

Evandro Lins e Silva estava ao lado de Goulart. Como homem de confiança do então

Presidente, Evandro, após o plebiscito, foi convidado a chefiar o Gabinete Civil da

Presidência.

Mas a instabilidade do governo já se aproximava. Antes do plebiscito, foi divulgado

um Plano Trienal, feito por Celso Furtado, ministro do Planejamento do governo Goulart,

com um “receituário de saneamento financeiro”, que previa “... cortes nos subsídios às

estatais e à importação de certos produtos, redução de gastos do governo, taxação dos

grupos de maior renda” 19. O problema é que este Plano, “... embora contivesse algumas

promessas desenvolvimentistas, não agradou aos defensores das ‘reformas de base’” 20. E

quais eram estas reformas de base, propostas por João Goulart, e discutidas em novembro de

1962 por um grupo de intelectuais?

17 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 158. 18 Dados oriundos do livro “A ditadura envergonhada”. Élio Gaspari. p. 47. 19 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 161. 20 Além do golpe. Carlos Fico. pp. 16 e 17.

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Elas incluíam: reforma agrária com indenização, ao longo dos anos,

mediante títulos da dívida pública; reforma urbana, sendo dado aos

inquilinos o direito de comprar casas alugadas; extensão dos votos aos analfabetos e aos escalões inferiores das Forças Armadas; nacionalização das

empresas concessionárias dos serviços públicos, tais como frigoríficos e

indústria farmacêutica; regulamentação da remessa de lucros para o exterior

e ampliação do monopólio da Petrobrás 21.

Goulart teria de se decidir: ou buscaria apoio para o Plano Trienal, com os grupos mais

conservadores com os quais tinha contato, ou buscaria apoio para as reformas de base, com os

grupos de esquerda.

1963. A situação econômica deteriorava-se rapidamente: inflação, greves que se

multiplicavam, o governo estava perdendo o controle. Segundo Carlos Fico, organizações de

esquerda estavam tendo expressiva atuação: o Partido Comunista Brasileiro exercia influência

sobre estudantes, camponeses e operários, e a Ação Popular estava atuante em favor das

reformas de base.

Além disso, Goulart aprovou, no dia 2 de março de 63, o Estatuto do Trabalhador

Rural, “... instituindo a carteira profissional para o trabalhador do campo, regulamentando

as horas de trabalho, estendendo à zona rural o salário mínimo, o repouso semanal e as

férias remuneradas” 22. O Estatuto, em 1951, havia sido apresentado por Getúlio Vargas e

aprovado em versão preliminar. Mas de tanta oposição que sofreu por parte dos proprietários

rurais, o texto, por dez anos, ficou à espera da aprovação final.

Em junho de 1963, Goulart quis fazer uma reforma ministerial que tinha por objetivo

atender a composições políticas, além de uma reformulação do ministério, visando à

realização das “reformas de base”. Neste contexto de reformulação, Evandro Lins saiu do

Gabinete Civil e foi para o Ministério das Relações Exteriores, onde permaneceu de 18 de

junho a 14 de agosto de 1963, quando foi nomeado, pelo presidente Goulart, por decreto de 14

de agosto de 1963, para assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.

21 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 161. 22 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. pp. 161 e 162.

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Em 4 de outubro, Goulart pediu ao Congresso Nacional a decretação do estado de sítio

porque “... sargentos e cabos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que lutavam pelo

direito de elegibilidade, resolveram fazer uma manifestação ocupando os centros

administrativos de Brasília” 23 . Como o pedido gerou ampla oposição, foi retirado em 7 de

outubro.

1964. Goulart não pôde mais continuar com sua política dúbia, de buscar o apoio da

esquerda e, ao mesmo tempo, de setores mais conservadores. Teve de se definir. Em 13 de

março de 64, num comício, anunciou que estava disposto a lutar pelas reformas de base. Mas

ele sabia que a maioria conservadora do Congresso mostrava-se disposta a bloquear os

projetos de reforma. Abraçaria as reformas independentemente do Congresso? Interessante

notar a repercussão do comício na opinião pública: o jornal O Estado de S. Paulo, do dia 14

de março de 1964, em matéria intitulada “Goulart assina o decreto que expropria terras e a

encampação das refinarias” afirmou:

O discurso presidencial durou cerca de 1 hora e 5 minutos, tendo o sr.

Goulart lido texto escrito, interpolando-o de vez em quando com frases de

improviso. Sua tonica, de principio a fim, foi a reforma da Constituição. Igualmente fez críticas às classes conservadoras, defendeu a reforma agrária,

a reforma eleitoral e o voto ao analfabeto, anunciando, ao final, a assinatura

do decreto sobre alugueis. O cunhado do presidente foi o orador mais exaltado da concentração,

utilizando os repisados chavões totalitarios para defender suas teses, pedindo

a dissolução do Congresso e a Instituição de uma constituinte para eleger o

que chamou de “congresso popular”, composto por trabalhadores, lavradores, sargentos e oficiais nacionalistas, e de “onde sejam expulsas as

velhas raposas da política brasileira”. Apontou depois outra alternativa, no

caso dessa ser inquinada de “ilegal, subversiva e inconstitucional”: a realização de plebiscito. Disse também da sua disposição de “responder à

violência com violência”, criticou o governador da Guanabara e fez elogio

do presidente pela assinatura dos decretos da SUPRA e da encampação.

Pediu, por fim, ao presidente para encerrar o “governo de conciliação” e realizar um “governo popular e nacionalista” 24.

De fato, o comício havia repercutido nos diversos setores da sociedade brasileira e há

que se perceber que Goulart, assim como seu cunhado Brizola, apostavam no apoio popular e

23 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 162. 24 Páginas da História. Uma coletânea das primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo nos seus 125 anos de

história. p. 122.

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este apoio buscavam veementemente, inclusive exaltando a necessidade de um “governo

popular e nacionalista”, capaz de efetivar a realização das tão desejadas reformas.

Neste contexto, Goulart resolveu iniciar as reformas por meio de dois decretos,

assinados ainda no dia 13, pouco antes de o Presidente se dirigir ao comício no Planalto das

Laranjeiras. O decreto SUPRA, primeiro passo para a reforma agrária, desapropriava terras

considerando

de interesse social ‘para efeito de desapropriação, nos termos e para os fins previstos no artigo 147 da Constituição Federal e na lei 4.132, de 10 de

setembro de 1962, as áreas rurais compreendidas em um raio de dez

quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras

de irrigação, drenagem e açudagem’ 25.

Já pelo decreto de encampação das refinarias particulares houve a expropriação das

ações das refinarias de petróleo de propriedade particular, em favor da Petrobrás. O decreto

tinha como fundamento a deliberação do Conselho Nacional do Petróleo que havia

recomendado “‘a integração do monopólio estatal do refino do petróleo, no exercício da

competência de superintender as medidas concernentes ao abastecimento nacional de

petróleo, bem como disciplinar-lhe a produção, a importação, a refinação, o transporte, a

distribuição e o comercio de petróleo e de seus derivados” 26. A partir deste decreto, foram

encampadas as Refinarias de Petróleo União (Capuava), Manguinhos, Manaus e Ipiranga.

A resposta do conservadorismo não tardou 27: a Marcha da Família, com Deus, pela

Liberdade, em São Paulo, se realizou já no dia 19 de março. No dia 20, o jornal O Estado de

S. Paulo publicou uma matéria, cujo título já expressa a sensação de insegurança que pairava

durante março de 1964: “Enquanto há liberdade”, matéria na qual era relatado que

Meio milhão de paulistanos e paulistas manifestaram ontem em São Paulo,

no nome de Deus e em prol da liberdade, seu repúdio ao comunismo e à

25 Páginas da História. Uma coletânea das primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo nos seus 125 anos de

história. p. 122. 26 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 161. 27 Observa-se que o discurso do Presidente no comício e a assinatura dos decretos geraram grande repercussão.

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ditadura e seu apego à Lei e à Democracia. Neste momento particular da

vida do mundo, o histórico ato dos paulistas adquire importância

internacional 28.

Outras manifestações vieram, ao longo do Brasil, demonstrando que a opinião pública

estava atrelada à idéia de que seria implantada, com o dispositivo de Goulart, uma ditadura de

cunho comunista. A situação agravava-se. A Constituição proibia um segundo mandato, mas

Goulart dava a impressão de que pretendia a sucessão. Atropelaria a sucessão sem apoio do

Congresso?

O fato é que “Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no

‘dispositivo militar’ e nas bases sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a

aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial”29;

e o golpe que pretendia tirar Jango do poder. O regime estava instável. Para a direita ou para a

esquerda ele cairia.

Já nos últimos dias de março, segundo Carlos Fico, as atividades conspiratórias de

desestabilização do governo, que envolviam empresários, parlamentares, governadores e

oficiais, se intensificaram, através da ampliação das atividades de propaganda política,

“capitaneadas pelo Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo Ibad (Instituto

Brasileiro de Ação Democrática), que afirmavam a incompetência do governo e sua

tendência esquerdista” 30.

Preocupados com a possibilidade de ver instalado no Brasil um regime comunista, os

Estados Unidos resolveram, em último caso, apoiar um governo militar. Em 20 de março, foi

autorizada, pelo presidente americano Lyndon Johnson, caso fosse necessário, a formação de

uma força naval, para interferir na crise brasileira31.

E havia ainda a crise militar. A Marinha estava desmoralizada. Doze graduados

haviam transformado uma Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais em uma

28 Páginas da História. Uma coletânea das primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo nos seus 125 anos de história. p. 123. 29 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. p. 51. 30 Além do golpe. Carlos Fico. p. 15. 31 Para mais detalhes, ver o livro “A ditadura envergonhada”. Elio Gaspari. pp. 59-62.

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organização monitorada pelo Partido Comunista. O Ministro da Guerra, considerando a

entidade parassindical subversiva, mandou prender marinheiros que, para humilhação dos

oficiais da Marinha, foram levados presos para os quartéis do Exército. O Presidente

interveio. Mandou libertar os marinheiros que, soltos, saíram em passeata pelo Rio de Janeiro,

carregando dois almirantes de esquerda, revelando a insubordinação em relação à Marinha.

Uma semana depois do ocorrido, no meio da crise, Goulart foi discursar para

suboficiais e sargentos das Forças Armadas, durante uma festa dos Sargentos da Polícia

Militar, em 30 de março. Reunidos no salão do Automóvel Clube, Goulart denunciou críticas

ao seu governo.

Tarde demais. Faltava apenas um “empurrão” para o governo cair. E este veio. Sem

esperar a senha da direita que “... seria qualquer ato de força do governo, quer contra o

Congresso, quer contra os governadores que lhe eram hostis” 32, o general Olímpio Mourão

Filho, de pijamas 33, desencadeou a Revolução, com alguns disparos pelo telefone. Iniciou-se

o movimento militar em Minas em 31 de março. As tropas marchavam rumo ao Rio de

Janeiro. “Castelo Branco, Odílio Denys, Golbery, Mamede e Olímpio Mourão (...),

governadores Ademar de Barros, Lacerda, Magalhães Pinto e Ildo Meneghetti” 34

conspiraram e o Exército acabou por dormir janguista no dia 31 e acordar revolucionário no

dia 1º 35.

“Ante a ofensiva de Mourão, Goulart caiu sem resistência, não acionando seu

‘dispositivo militar’ (...) pretendeu evitar uma ‘guerra civil’, ou apenas avaliou que seria

inútil resistir” 36. Goulart caiu. O Brasil assistiu a queda de um governo democraticamente

eleito.

Enquanto Goulart, depois de ir do Rio a Brasília, se dirigia a Porto Alegre, Rio Grande

do Sul, Auro de Moura Andrade, presidente do Senado (senador do Partido Social

Democrático pelo Estado de São Paulo) presidia o Congresso Nacional. Convocou uma sessão

32 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. p. 56. 33 “Às cinco horas, Mourão anotou: “Eu estava de pijama e roupão de seda vermelho (...), creio ter sido o único

homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama. (A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. p. 68). 34 O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. Emilia Viotti da Costa. p. 164. 35 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. pp. 81- 83. 36 Além do golpe. Carlos Fico. p. 18.

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extraordinária, que foi realizada durante a madrugada do dia 2 de abril, na qual declarou vaga

a presidência da República.

O Levante aparentava defender a ordem constitucional, que supostamente seria

abalada pelo governo Goulart, mas a declaração de vacância foi um início inconstitucional.

Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu a presidência. A Constituição

previa que, em caso de vacância do cargo de presidente, na segunda metade do mandato, a

vaga seria preenchida pelo Congresso. Mas Goulart estava no Brasil. Era o presidente. O

cargo não estava vago. Desfecho legítimo? Aparentemente. Apesar disso, o presidente do

Congresso Nacional, na sessão de 2 de abril afirmou: “Comunico ao Congresso Nacional que

o Sr. João Goulart deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a Nação é

conhecedora, o governo da República (...). O Sr. Presidente da República (...) deixou a sede

do governo. (...) Deixou a Nação acéfala (...). Não podemos permitir que o Brasil fique sem

governo, abandonado” 37.

Goulart deixou o país. Foi para o Uruguai. A ditadura estava instaurada. Mas havia

ainda a preocupação com a legitimidade do governo excepcional. Com isso, dia 9 de abril de

64 foi baixado o Ato Institucional nº1, num primeiro momento sem número, pois seria o

único, de autoria dos juristas Francisco Campos, autor do preâmbulo, e de Carlos Medeiros,

autor do texto. No preâmbulo, era afirmado que “... a revolução vitoriosa, como Poder

Constituinte, se legitima por si mesma”. Não encontrou, assim, legitimidade através do

Congresso Nacional. Ao contrário, o Congresso recebeu legitimação do Ato, pelo qual a

Constituição de 1946 foi mantida, com algumas inovações de cunho punitivo.

Pelo artigo 7º, caput, foram suspensas as garantias constitucionais e legais de

vitaliciedade e estabilidade, de funcionários públicos, militares e civis, por seis meses. Nos

termos deste artigo, Oficiais das Forças Armadas foram transferidos para a Reserva, pelos

Atos nos 3, de 9 de abril de 64, 6, de 13 de abril e 7, também de 13 de abril. Ressalta-se ainda

que pelo art. 7º, § 4º, o controle jurisdicional das suspensões das garantias ficou limitado ao

exame das formalidades extrínsecas, tendo sido “... vedada a apreciação dos fatos que o

motivaram, bem como da sua conveniência e oportunidade”.

37 Declaração feita pelo presidente do Congresso Nacional da vacância do cargo de presidente da República e

posse do presidente da Câmara. In: Além do golpe. Carlos Fico. pp. 329-330.

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Já pelo artigo 10, os “comandantes-em-chefe” 38 puderam suspender direitos políticos

por dez anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, dos que tivessem

praticado atos contrários ao interesse da paz e da honra brasileira. Os atos dos Comandantes e

do Presidente, que dentro de sessenta dias após a posse, poderia fazer uso deste artigo, por

indicação do Conselho de Segurança Nacional, estariam excluídos da apreciação judicial.

Com base neste artigo, foram baixados os seguintes Atos do Comando Supremo da

Revolução: Ato nº 1, baixado dia 10 de abril, Ato nº 4, baixado dia 13 de abril e Ato nº 5,

também do dia 13 de abril, pelos quais foram suspensos os direitos políticos de diversos

cidadãos, dentre os quais Luiz Carlos Prestes, João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes

entre outros; Ato nº 2, baixado também no dia 10 de abril, pelo qual foram cassados os

mandatos de membros do Congresso Nacional.

Ainda, pelo artigo 8º do Ato, inquéritos e processos que visassem apurar a

responsabilidade pela prática de crimes contra o Estado, contra seu patrimônio, contra a

ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderiam ser instaurados

individual ou coletivamente, para que fosse cumprida a finalidade da instauração do inquérito,

qual seja, “... apurar fatos e as devidas responsabilidades de todos aqueles que, no país,

tenham desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas leis que

definem os crimes militares e os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social” 39 (letra

“A” da Portaria nº1 do Comando Supremo da Revolução, de 14 de abril de 1964). Por meio

do Ato do Comando Supremo da Revolução nº8, também de 14 de abril, ficou estabelecido

que os “encarregados” de inquéritos e de processos poderiam delegar atribuições

investigativas (realização de diligências e investigações) a “servidores”, em qualquer ponto do

território nacional. Também poderiam requisitar quaisquer inquéritos ou sindicâncias,

concluídos ou em curso, desde que versassem sobre a mesma matéria que necessitasse ser

investigada ou já estivesse sob investigação.

Com isso, os comandantes da repressão política estabeleciam a sistemática para as

punições, que seriam precedidas por inquéritos policial-militares, peças centrais dos processos

na Justiça Militar, instrumentos de combate à corrupção e à subversão, “abertos em todos os

38 Ressalta-se que dia 02 de abril de 1964, o general Arthur da Costa e Silva havia se auto-nomeado comandante-em-chefe do Exército Nacional, e organizado o “Comando Supremo da Revolução”, a partir da nomeação

“...para diversos postos de comando, tendo em vista restabelecer a coesão e a eficiência operativa das grandes

unidades do Exército”. In: Além do golpe. Carlos Fico. pp. 328-9. 39 Portaria nº1 do Comando Supremo da Revolução. In: Além do Golpe. Carlos Fico. p. 338.

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estados e submetidos, inicialmente, ao controle de uma comissão geral de investigações, CGI,

chefiada por um marechal (...). Apuravam desde a subversão nas universidades até a

corrupção no governo federal” 40.

Ressalta-se que os “encarregados” dos inquéritos dispunham de amplos poderes para

apurar denúncias relacionadas à corrupção e à subversão. Inclusive, em casos excepcionais, o

Código de Justiça Militar previa que os oficiais encarregados poderiam decretar a “prisão para

averiguações” ou “prisão provisória”. Entretanto, o uso deste instrumento tornou-se

generalizado na fase de investigação. Ainda, observa-se que os inquéritos muitas vezes eram

conduzidos baseando-se em informações obtidas de maneira ilegal, sendo diversas vezes

utilizadas a delação e a violência. Neste cenário, o Superior Tribunal Militar, órgão máximo

da Justiça Militar foi um instrumento utilizado a fim de o regime obter legitimidade e estava

previsto para ele o papel de órgão complementar ao aparato de coerção política, embora em

alguns momentos ele possa ter se oposto a atos praticados pelos membros do regime militar41.

Ainda, o Ato Institucional nº1 assegurava que, em 11 de abril, haveria as eleições para

Presidente da República e vice e que o mandato presidencial duraria até a data na qual o

próprio Ato perderia validade e eficácia, em 31 de janeiro de 1966.

No dia 11 de abril, foi eleito para a Presidência o General Humberto de Alencar

Castelo Branco, que tomou posse em 15 de abril. Já no dia 17 de julho, o Congresso aprovou

a prorrogação do mandato presidencial até 15 de março de 1967, adiando, assim, a eleição

presidencial para 3 de outubro de 1966.

40 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. p. 134. 41 Para mais detalhes, ver “Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-

1969)”. Organização de Renato Lemos.

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O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS PRIMEIROS MOMENTOS DO REGIME

MILITAR

O Supremo passou a conviver com uma ambigüidade jurídica: ao lado das leis e da

Constituição, relacionadas ao Estado de Direito, havia o poder militar que havia deposto um

governo, e procurava legitimar-se por meio de um Ato Institucional, relacionado a um poder

de fato, reconhecido pelo Judiciário na medida em que ele conferia aplicabilidade às normas

de exceção, que foram sendo ditadas pelo Comando Revolucionário e pelo Presidente.

Ressalta-se a presença do Presidente do Supremo quando da declaração de vacância do cargo

de Presidente da República, a 2 de abril.

Além disso, o Supremo vivia uma época de expectativas. Seriam, por meio do ato

institucional, suspensas as garantias de vitaliciedade e estabilidade de alguns de seus

membros?

De certa forma, a suspensão das garantias era almejada por diversas alas da sociedade,

impacientes com a “operação limpeza” iniciada pelo governo militar. Com isso, já neste

primeiro momento do regime militar, havia ameaças contra Hermes Lima e Evandro Lins e

Silva, os dois ministros nomeados durante o governo de Goulart, através de uma campanha no

jornal O Estado de São Paulo, na qual se dizia que a Revolução seria inerte com dois

comunistas na Suprema Corte.

Neste sentido, o jornal O Estado de S. Paulo, no dia 14 de abril de 1964 publicou um

artigo denominado “Expurgo no âmbito do Judiciário”42, no qual era afirmado que, nos meios

forenses e políticos de São Paulo, se comentava “... que a operação de depuração geral por

que está passando o País, orientada segundo as diretrizes mestras da luta contra a corrupção

e contra o comunismo, deverá ampliar-se, também, no âmbito do Poder Judiciário, a exemplo

do que ocorre nos campos do Executivo e do Legislativo”. E, de maneira enfática, os nomes

de Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, eram citados:

42 Documento fornecido pelo próprio jornal O Estado de S. Paulo, a partir da solicitação de uma pesquisa.

Observa-se que o jornal O Estado de S. Paulo apoiou o governo militar desde o início do mesmo.

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Recorda-se, a propósito, que enquanto montava o seu ‘dispositivo sindical-

militar’, o sr. João Goulart, manobrando de acordo com os comunistas e

filocomunistas, voltou também suas vistas para o Supremo Tribunal Federal, órgão de cupula do Poder Judiciário, levando para a nossa mais alta corte de

justiça os srs. Hermes Lima e Evandro Lins, cuja orientação política é

notória, que foram seus ministros e que se desempenharam profunda e

publicamente na campanha de agitação ‘reformista’.

No dia 17 de abril, três dias após a publicação do artigo, o recém-empossado

presidente Castelo Branco foi fazer uma visita protocolar ao Supremo e, antes mesmo de se

sentar ao lado do então presidente da Corte, Moutinho Ribeiro da Costa, dirigiu-se a Evandro,

a Hermes Lima e a Vítor Nunes Leal, dando a impressão, pelo menos para Evandro, de que

ele não pretendia fazer nada contra eles. Durante a visita, tanto Castelo quanto Ribeiro da

Costa, fizeram pronunciamentos, através dos quais o Marechal Humberto de Alencar Castelo

Branco manifestou sua reverência à Corte, afirmando: “A primeira vez que saio da sede do

Governo é para visitar outro Poder da República, o Supremo Tribunal Federal. E, aqui

vindo, singelamente, a este meio tão elevado para o País, desejo manifestar-lhe o apreço do

Chefe do Executivo e o respeito do brasileiro. Era o que tinha a dizer” 43.

Pelas palavras do presidente, representante do Supremo como instituição, afirmava

Ribeiro da Costa:

A Justiça, Eminente Senhor Presidente, quaisquer que sejam as

circunstâncias políticas, não toma partido, não é a favor nem contra, não

aplaude nem censura. Mantém-se, equidistante, ininfluenciável pelos

extremos da paixão política. Permanece estranha aos interesses que ditam os atos excepcionais de governo. Nosso poder de independência há de manter-

se impermeável às injunções do momento, e acima de seus objetivos,

quaisquer que se apresentem suas possibilidades de desafio às nossas resistências morais44.

Ao certo, Ribeiro da Costa preocupava-se em manter a autonomia do Supremo, com

relação às decisões oriundas dele e com relação à preservação de seus membros, e Castelo

dava indícios de que não interferiria na Corte, primeiro pelo respeito que mostrava ter em

43 O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. p. 25. 44 O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. p. 26.

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relação a ela e segundo porque o regime almejava preservar, apesar da “operação limpeza” e

da edição de normas de exceção, uma faceta democrática e constitucional, e a intervenção em

outro Poder, neste momento, poderia corroborar para desestabilização do princípio da

separação de Poderes e até revelar uma face ditatorial do regime, e a ditadura, neste momento,

ainda encontrava-se envergonhada.

Mas, apesar da visita cordial do representante do regime militar, no dia seguinte, dia

18 de abril, O Estado de S. Paulo prosseguiu, pedindo a continuidade das medidas de

saneamento, exigidas para que a Revolução permanecesse. Com isso, no artigo intitulado “A

Revolução e a Suprema Justiça”45 era afirmado que o Comando Revolucionário ainda estava

longe de expurgar os elementos que perigosamente comprometiam a República, pois, segundo

o artigo, apenas os elementos de segunda ordem haviam sido atingidos pelas medidas de

saneamento, tão necessário à continuidade da Revolução.

Prosseguiu o artigo, ressaltando a importância do Supremo Tribunal Federal no

sistema presidencialista e, por isso, a inadmissibilidade da permanência dos “traidores”,

líderes de badernas:

No sistema presidencialista tudo depende, em última analise, da sua

mais alta corte de Justiça. É a ela que cabe a ultima palavra na interpretação do texto constitucional e de todo o Direito brasileiro. E isso é quanto basta

para tornar inadmissível, por mais uma hora sequer, a permanencia, entre os

seus magistrados, daquele que não soube honrar a confiança que o País nele

depositou. O caudilho sabia perfeitamente o que fazia quando colocou o sr.

Hermes Lima entre os primeiros magistrados da Nação e, a seu lado, com a

mesma incumbencia de traição, esse outro líder da baderna chamado Evandro Lins. Não se concebe, por isso mesmo, a permanencia desses dois

cidadãos no Supremo Tribunal da República. Se a decisão daqueles a quem a

Nação entregou as funções do alto comando revolucionário é a de deixarem estar onde estão esses dois perigosos inimigos das instituições democraticas,

o melhor então é abrir as portas das prisões aos que dentro delas padecem as

consequencias de crimes incomparavelmente menores e às centenas de

figuras de segunda ordem das forças subversivas.

45 Documento fornecido pelo próprio jornal O Estado de S. Paulo, a partir da solicitação de uma pesquisa.

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Mas o artigo não parava por aí. Era enfático ao pedir o afastamento dos “camaradas”

da Suprema Corte, pois, sendo eles traidores e elementos que atulhavam o sistema judiciário

brasileiro, não poderiam se manifestar, como ministros do Supremo, já que a este cabia

pronunciar-se nas questões mais relevantes do país:

A Justiça tem de começar pelo alto, apanhando em suas malhas os que

assumiram a repugnante tarefa de trair o País, corrompendo e desvirtuando a peça mestra do Estado. A nossa opinião é de que é este o momento de se

proceder à revisão total dos elementos com que a ditadura getulista e os

governos que a sucederam atulharam o sistema judiciario brasileiro. Mas se esse deveria um dos principais atos dos chefes do movimento vitorioso de 31

de março, a missão precipua e indeclinavel que lhes cabe é expurgar, sem a

menor perda de tempo, os quadros do Supremo Tribunal Federal. Se não procederem desde já a esse imperativo da revolução nacional, contribuirão

para que esta falhe naquilo que melhor a podia justificar.

A partir do primeiro dia em que entrou em funcionamento o Comando

Revolucionário, aguardamos ansiosamente a inclusão dos “camaradas” Evandro Lins e Hermes Lima na lista dos atingidos pela justiça desse

comando. Baldadamente, porém. Já se passaram quinze dias desde o início

da operação de limpeza, e entre os milhares de criminosos mui justamente expurgados pela ação saneadora do comando, os nomes desses dois

ministros da Suprema Côrte são os que milagrosamente resistem à varredela

revolucionaria. E entretanto, os srs. Hermes Lima e Evandro Lins lá vão

continuando a dar seu voto nas mais graves questões sobre as quais compete pronunciar-se o Supremo Tribunal Federal. Por quê? – pergunta com muita

razão todo o País aos que têm nas mãos os destinos do mais belo movimento

civico que já se registrou na nossa Historia.

A fim de protestar, os dois ministros escreveram uma carta, que foi entregue a Ribeiro

da Costa, Presidente do Supremo na época. Este, no meio da sessão, leu a carta a todos os

ministros. Evandro acredita que, a partir desse momento, os ataques contra ele e seu colega

acalmaram, até porque o episódio revelou a solidariedade do Tribunal para com eles. A partir

daí, Ribeiro da Costa se mostrou um defensor da instituição e de seus membros, respondendo,

prontamente às agressões, em nome do Supremo.

Ressalta-se que tanto o episódio da carta quanto a própria atuação de Ribeiro da Costa

causaram uma espécie de revolta por parte do jornal O Estado de S. Paulo, que no dia 27 de

abril de 1964 noticiou, através do artigo “O Supremo Tribunal e a Revolução”46, que os

ministros Ribeiro da Costa, Hahnemann Guimarães e Vitor Nunes Leal pretendiam responder

46 Documento fornecido pelo próprio jornal O Estado de S. Paulo, a partir da solicitação de uma pesquisa.

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ao comentário do jornal, no qual era pedida a exclusão dos ministros Hermes Lima e Evandro

Lins, comentário este que, segundo o jornal, exprimia “... o sentir geral da opinião pública

brasileira”. O fato de os ministros pretenderem responder ao jornal foi interpretado por este

como uma afronta, uma forma de revelar “... não aquele espírito de eqüidade, equilíbrio e

objetividade que seria de esperar da Suprema Corte Federal, mas um autêntico sentimento de

casta”.

Afirmava ainda o artigo que o ministro Ribeiro da Costa havia ultrapassado os limites

da questão que estava em debate, já que havia pronunciado que “a incompreensão desse

grande órgão da imprensa de São Paulo tem sido reiterada em relação ao Supremo Tribunal

Federal, em várias oportunidades”.

E o jornal prosseguia, se referindo à carta escrita por Hermes Lima e Evandro e

dirigida a Ribeiro da Costa:

No que se refere às cartas dirigidas ao presidente do Supremo Tribunal

pelos srs. Hermes Lima e Evandro Lins, cartas essas que provocaram a

explosão de falsa revolta do ministro Ribeiro da Costa, cabe-nos dizer que os seus proprios termos são a melhor defesa que podemos apresentar em favor

da nossa atitude, já que os seus autores vêm a publico confirmar que

efetivamente lhes coube um papel de primordial importancia na preparação do movimento subversivo cuja iminencia obrigou as nossas Forças Armadas

a deporem da Presidencia da Republica o sr. João Goulart. E realmente:

ambos exerceram, naquele sinistro período, as funções de ministro do

Exterior, cargo que, como é do dominio publico, era confiado unicamente a quem se dispusesse a trabalhar contra a nossa tradicional linha de conduta

diplomatica e a favor das potencias do mundo socialista. Foi por serem

adeptos incondicionais da politica que levou o sr. Janio Quadros a dar mão forte à Cuba de Fidel Castro e a combater os Estados Unidos, que tanto um

como outro dos dois ministros do Supremo Tribunal vieram a ocupar o

Ministerio que tanto deslustraram.

Ora, nada disso ignora o sr. Ribeiro da Costa, assim como não pode ignorar que o Comando Revolucionario não teve outro motivo, além desse,

para cassar, por dez anos, os direitos políticos do antecessor do sr. João

Goulart na Presidência da República. Nessas condições, como consegue s. exa. ver no nosso comentario uma ofensa à dignidade do Tribunal a que

preside? Como pode s. exa. solidarizar a mais alta Corte de Justiça do País

com a indefensavel posição daqueles dois cidadãos ante os ultimos acontecimentos politicos?

Não confundimos, de maneira nenhuma, os srs. Hermes Lima e

Evandro Lins com simples agitadores, como o sr. Ribeiro da Costa pretende.

O que fizemos, e continuaremos a fazer enquanto a justiça revolucionaria não cumprir o seu dever indeclinavel, foi inclui-los entre os mais perigosos

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elementos de que se serviu o homenzinho de São Borja para solapar o

regime que o movimento revolucionario salvou em 31 de março.

(...) Verá então o sr. Ribeiro da Costa com quem está efetivamente a razão: se com s. exa., ou com aqueles que, contra tudo, inclusive contra os

seus acobertados inimigos, se propõem a defender, neste instante, a

Revolução vitoriosa.

Do exposto, apreende-se que o jornal atribuía aos “camaradas” uma alta

periculosidade. Considerando-os inimigos das instituições democráticas, Evandro e Hermes

Lima não poderiam ser acobertados nem pelo Supremo, nem pelo governo revolucionário, já

que, em prol da Revolução, se fazia necessária uma operação limpeza no âmbito do Supremo,

com a “varredela revolucionária”, capaz de expurgar os perigosos elementos que, para

espanto de muitos, permaneciam na Corte, concedendo votos nas graves questões de

competência do Supremo. Como então os camaradas poderiam permanecer no órgão de

cúpula do Judiciário, ao qual compete dar a última palavra na interpretação da Constituição e

do Direito como um todo?

Relacionavam, assim, os defensores do “mais belo movimento cívico registrado na

História”, os membros do Supremo com seu passado, revolucionário ou contra-

revolucionário, e, neste instante, o passado de Evandro e de Hermes Lima se encaixava nos

anseios da “operação limpeza”, capaz de sanear o país destes traidores. Percebe-se que

relacionavam os vínculos político-partidários de um ministro com sua atuação judicante.

Mas a atuação enérgica de Ribeiro da Costa somada à própria moderação de Castelo

Branco foi responsável pelo não afastamento dos dois ministros, ao menos neste primeiro

momento.

No entanto, ainda neste período, Evandro Lins e Silva continuava alvo de pressões por

parte dos partidários do governo revolucionário, como o então ministro do Supremo Pedro

Chaves, que declarou, no habeas corpus nº 40.910, de 24 de agosto de 1964, cujo paciente era

Sérgio Cidade de Rezende, que “as idéias de revolução e de Constituição não combinavam e

era preciso que os votos se baseassem no AI-1”47. Dessa maneira, Pedro Chaves combatia as

idéias expressas por Evandro, que resolvia os conflitos de acordo com a Constituição de 1946.

47 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. p. 386.

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LIBERDADE DE CÁTEDRA E DE PENSAMENTO

Caso Sérgio Cidade

Foi oferecida ao juiz da 3ª Vara Criminal do Recife denúncia contra o professor Sérgio

Cidade de Rezende, professor da cadeira de Introdução à Economia da Faculdade de Ciências

Econômicas da Universidade Católica de Pernambuco, sob acusação de o professor ter

distribuído em aula, aos 26 alunos presentes, um manifesto que contrariava a situação política

da época. Alegava a acusação que o professor tinha a intenção de fazer propaganda de ódio de

classe e de processos violentos, com a finalidade de subverter a ordem política e social.

Observa-se ainda que na denúncia era afirmado que a conduta do professor estava em

consonância com suas idéias comunistas, inclusive pelo fato de ele, durante o exercício de sua

atividade, ter escrito em um pedaço de papel dizeres que, segundo a acusação, eram

subversivos: “Viva o PC”.

Observa-se que no manifesto o professor proferiu crítica desfavorável à situação

política do país, “...acentuando, afinal, que aos estudantes ‘cabe uma responsabilidade, uma

parcela na decisão dos destinos da sociedade e para isto têm que optar entre “gorilizar-se”

ou permanecerem sêres humanos. A êstes cabe a honra de defender a democracia e a

liberdade”48.

O juiz, recebendo a denúncia, decretou a prisão preventiva do professor, baseando-se

no art. 11 da lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que dispunha: “Fazer publicamente

propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social; b) de

ódio de raça, de religião ou de classe; c) de guerra”.

Com isso, os advogados Justo Mendes de Morais, Joaquim de Carvalho Júnior e Inezil

Penna Marinho impetraram ordem de habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal. Alegava a

defesa que os fatos imputados ao paciente não constituíam crime, na medida em que ele havia

exercido a liberdade de pensamento, garantida pelo art. 141, § 5º, que dispunha:

48 HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Ministro Edgard Costa. p. 8.

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É livre a manifestação do pensamento sem que dependa de censura, salvo

quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e

na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e

periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém,

tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a

ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

Além disso, pelo fato de ser professor e de estar em aula, estaria exercendo a liberdade

de cátedra, garantida pela Constituição no art. 168, VII, no qual era afirmado: “A legislação

do ensino adotará os seguintes princípios: VII – é garantida a liberdade de cátedra”.

A fim de conceder o habeas corpus, Evandro se utilizou, segundo ele mesmo afirmou,

de uma estratégia política: citou, durante todo o seu voto, William O. Douglas, juiz da

Suprema Corte dos Estados Unidos, que era favorável à liberdade de pensamento e de cátedra

e que combatia a ausência de liberdade de expressão na Rússia soviética e na China

comunista. Assim, Evandro afirmou:

Fiz muita questão de calcar meu voto na opinião de Douglas, até por

estratégia política, para mostrar que aquelas acusações que me faziam, de

esquerdismo quando votava, não procediam, porque eu estava baseado na

opinião de um liberal, de um juiz da Corte Suprema americana. Não há dúvida de que houve aí, talvez, até uma certa malícia política. Tanto que

quando o ministro Pedro Chaves dizia que estava inteiramente contrário às

minhas idéias, estava contrário às idéias do Douglas, e não às minhas, porque eu não as expus como minhas49.

Dessa forma, Evandro, por meio das falas de Douglas, afirmava:

O govêrno não pode privar os cidadãos de qualquer ramo do conhecimento,

nem impedir qualquer caminho para a pesquisa, nem proibir qualquer tipo de

debate. A proibição se estende aos debates particulares entre os cidadãos, aos pronunciamentos públicos através de qualquer meio de comunicação ou ao

ensino nas salas de aula (...) O espírito da livre pesquisa deve dominar nas

escolas e universidades (...)50.

49 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. p. 387. 50 HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Ministro Edgard Costa. p. 9.

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Também por meio das palavras do juiz da Suprema Corte, Evandro se referia à

liberdade, considerando-a um bem precioso: “A liberdade é um bem precioso que deve ser

guardado por todos que a têm, pois onde não existe liberdade pessoal não há senão medo,

vazio e desespero”51.

Ainda, Douglas cita Chafee, “The Blessinge of Liberty”: “As Universidades não

devem ser transformadas, como na Alemanha Nazista, em repetidoras dos homens que detêm

o poder político”52.

Nestes termos, Evandro afirmava que no escrito do paciente, ele havia se oposto à

situação dominante, mas o escrito poderia ser considerado como uma crítica desfavorável,

mas não criminosa. Afinal, além de o documento não propagar o uso de meios violentos para

a subversão da ordem política e social, havia de ser consideradas as garantias constitucionais

que, segundo Evandro, estavam em pleno vigor.

Com isso, Evandro concedeu a ordem de habeas corpus por falta de justa causa para o

procedimento penal.

Já Pedro Chaves, embora tenha concedido o habeas corpus dizia:

Senhor Presidente, eu me coloco com o eminente Ministro Relator53

exclusivamente no terreno legal. No terreno político-ideológico, estou em

completo desacôrdo com as idéias emitidas no voto do Sr. Ministro Evandro

Lins e Silva e sustentadas da tribuna pelo impetrante. Há nesta revolução, no momento em que estamos vivendo, uma

evidente contradição; alguma cousa positivamente errada, porque se há

idéias que se repelem (...) são estas – de “revolução” e de “Constituição”. E o Ato Institucional que procurou dar colorido ao Movimento de 31 de março,

no art. 1º diz que “está em vigor a Constituição de setembro de 1946”. Esta

Constituição, como tôdas as Constituições inspiradas nos princípios da

Liberal Democracia, é uma Constituição que não fornece meios de defesa às instituições nacionais e é uma Constituição onde se prega um liberalismo à

Benjamim Constant, pleno, amplo e absoluto, mesmo contra os interêsses

51 HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Ministro Edgard Costa. p. 10. 52 HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Ministro Edgard Costa. p. 9. 53 O relator no HC nº 40.910 era Hahnemann Guimarães, que afirmou não haver no manifesto nada que pudesse ser considerado “...propaganda de processos violentos para subersão da ordem política ou social (Lei nº 1.802,

art. 11, A e parágrafo 3º), ou instigação pública à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem

pública (Lei nº 1802, art. 17)”. HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

Ministro Edgard Costa. p. 8. Ressalta-se que o habeas corpus foi concedido por unanimidade de votos.

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que se presumem ser da nacionalidade, porque consagrados por uma

Assembléia Constituinte.

Assim, há abuso de imprensa, há abuso de liberdade de pensamento, há abuso das imunidades parlamentares e há abuso da liberdade de cátedra

(...) Êstes que abusam da liberdade são os maiores responsáveis pela situação

atual (...) São homens como êste, que é professor de Introdução à Ciência

Econômica e que vai incutir nos seus discípulos – 26 rapazes – idéias de desprestígio das Fôrças Armadas, matéria inteiramente fora do âmbito da

cátedra, porque, embora tenha relação com a ciência política, é estritamente

prêsa à Introdução das Ciências Econômicas. E não foi no desenvolvimento de uma tese em que êle sustentasse uma opinião contrária à de seus

opositores; não foi dando aula, que o paciente emitiu idéias marxistas, que

êle podia acalentar, sem dúvida, mas não da sua cátedra, que não podia

transformar em meio e local de propaganda da sua própria conduta para com os seus jovens alunos. Foi expondo matéria econômica que êle emitiu os

aludidos conceitos? Não. Foi distribuindo um manifesto, um memorial, para

concitar os seus alunos a que pensassem na situação atual, que evitassem de se “gorilizar”, porque, para êle, aquêles que derrubaram o Comunismo, que

estava sendo implantado dia a dia nesta terra, eram “gorilas”.

A mim, ao contrário, acho que eram ‘gorilas’ aquêles que queriam fazer da nossa independência, da nossa liberdade de opinião, do nosso direito

de sermos brasileiros e democratas, tábula rasa, para transformar-nos em

colônia soviética, onde êles não seriam capazes de manifestar um

pensamento sequer em favor das idéias liberais para êles (...) Êsses são, na minha opinião, os “gorilas” e não os democratas que fizeram a Constituição

de 1946, que asseguraram ampla liberdade e infelizmente se esqueceram de

assegurar medidas de defesa dessas mesmas liberdades para que não se voltassem contra os nossos interesses, nacionais e coletivos54.

Nota-se que Pedro Chaves acreditava haver uma contradição entre revolução e

Constituição, pois, embora o ato institucional se relacionasse ao governo militar, “desse

colorido ao movimento”, havia assegurado que a Constituição permanecia em vigor.

Entretanto, o Constituinte de 1946, segundo Pedro Chaves, havia se esquecido de

assegurar medidas de defesa das liberdades, o que causava um abuso já que a Constituição

pregava um liberalismo amplo e absoluto.

Ao que parece pelas suas opiniões, ele não estava muito inclinado a conceder o habeas

corpus. Mas concedeu. Evandro, um juiz que se utilizou das falas de Douglas para corroborar

com sua tese, e Pedro Chaves, que pedia cautela no uso da liberdade. Dois pontos de vista

antagônicos, que ajudaram a libertar o professor Sérgio Cidade, que merece algumas

reflexões.

54 HC nº 40.910. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Ministro Edgard Costa. pp. 11-12.

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Segundo Pedro Chaves, o professor utilizou o local onde exercia sua liberdade de

cátedra para fazer propaganda aos alunos, na medida em que o professor distribuiu um

manifesto, ou seja, não estava expondo matéria econômica quando tratou dos conceitos

subversivos.

Neste sentido, pode-se indagar: a liberdade de cátedra incluiu a possibilidade de o

professor fazer proselitismo político?55.

Talvez neste julgamento estivesse em pauta não a liberdade de cátedra, mas a

liberdade geral, em sentido amplo. Nestes termos, o Supremo poderia ter se utilizado da

liberdade de cátedra a fim de que o julgamento aparentasse estar sendo técnico, ou seja, para

que o julgamento não fosse considerado político, quando na verdade o era.

55 Estas reflexões são oriundas de uma análise feita pelo professor Virgílio Afonso da Silva, em uma das

atividades da Escola de Formação no ambiente da Sociedade Brasileira de Direito Público, em dezembro de

2003.

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O CASO DOS GOVERNADORES

Um dos grandes embates entre o Supremo Tribunal Federal e o Executivo se

relacionou ao sistema federativo de governo, assegurado pela Constituição de 1946 nos

artigos 1º, caput, o qual afirmava que o Brasil mantinha, sobre o regime representativo, a

Federação e a República, e 216 § 6º, que excluía a possibilidade de deliberação de projetos de

emendas que objetivassem abolir a Federação.

Apesar disso, o movimento militar dava indícios de que atentaria contra a autonomia

dos Estados, na medida em que vários governadores e secretários estavam sendo depostos e

entregues à Justiça Militar, revelando que o regime militar pretendia privar os altos

funcionários do foro privativo, forma de privar de proteção constitucional as representações

que exerciam.

Entretanto, dispunham os ministros do Supremo de dispositivos legais para coibir as

pretensões do governo militar. O artigo 108 da Constituição, que previa a competência da

Justiça Militar para processar e julgar militares, por eles terem direito a foro especial, e civis,

em caso de “...repressão de crimes contra a segurança externa do País ou as instituições

militares” (CF, art. 108 § 1º), alcançava os atos dos governadores? Havia provas de que eles

tivessem atentado contra a segurança externa ou as instituições militares? E mesmo que os

crimes atentassem contra a segurança externa ou contra as instituições militares os altos

funcionários teriam direito ao foro privativo ou a Justiça Militar seria competente para

processá-los?

Havia previsão constitucional para crimes de responsabilidade cometidos pelo

Presidente da República (CF, art. 89) e, como extensão dessa previsão, levando-se em conta a

lei nº 1079, de 10 de abril de 1950, que regulava esse artigo e as Constituições Estaduais,

afirmou-se que, nos casos de crimes de responsabilidade cometidos pelos governadores, os

mesmos deveriam se sujeitar ao impeachment, meio pelo qual se preservaria a autonomia

estadual, pois o procedimento se realizaria no âmbito do Estado, ainda que observadas as leis

da União.

Afirmavam assim, os membros da Corte, a necessidade de prévio pronunciamento da

Assembléia Legislativa Estadual competente para declarar, por maioria absoluta de seus

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membros, a procedência da acusação. Se julgada procedente, haveria, então, a necessidade de

os governadores responderem criminalmente perante o Tribunal de Justiça (Justiça Comum)

ou Militar. Com relação à competência da Justiça Militar, os ministros divergiam, mas ficou

assentado o entendimento de que qualquer que fosse a justiça competente, seja a jurisdição

civil ou a militar, como não tinha ocorrido o impeachment, nem a Assembléia Estadual havia

se pronunciado, o processo não poderia prosseguir.

Estes foram os principais argumentos que levaram o Supremo a conceder, por

unanimidade, os habeas corpus a Mauro Borges e a Miguel Arraes56.

Caso Mauro Borges

O habeas corpus preventivo concedido por unanimidade a Mauro Borges despertou na

época muita atenção por parte dos militares. De acordo com o comentador Osvaldo Trigueiro

do Vale, Mauro Borges, na época governador de Goiás, era a maior expressão do PSD do

Estado, partido favorável à situação vigente. Ocorre que, graças a seu caráter liberal, tinha a

tendência de não punir integrantes de seu corpo administrativo considerados “esquerdistas”.

Há que se perceber também que o fato de ele ter lutado, em 1961, pela posse de Goulart deve

ter despertado uma precaução em relação a ele, por parte do regime militar. Passou, assim,

Mauro Borges a ser ameaçado de prisão e deposição por alas das Forças Armadas. Além de

comandar o 10º Batalhão de Caçadores, o tenente-coronel Danilo Darcy de Sá da Cunha e

Mello, após deixar o gabinete do ministro Costa e Silva, assumiu o comando de Goiânia e

passou a chefiar os inquéritos policiais militares goianos.

Em um desses inquéritos almejava inserir o nome do então governador, já que tinha

pretensão de prendê-lo. Após a prisão do advogado João Batista Zacariotti, subchefe do

gabinete civil do governo, exibiu-se um plano de subversão em Goiás, no qual era mostrado

que núcleos guerrilheiros envolvidos com cubanos estavam articulados. Apesar disso, as

provas mostraram-se insuficientes para relacionar o governador a este núcleo de subversão de

Goiás.

Mas o tenente-coronel mostrava-se interessado em prosseguir em sua “caçada”: uma

operação, envolvendo assessores do governador passou a ser investigada. Nela, diversas

56 Ressalta-se que os argumentos elencados não foram utilizados por todos os ministros.

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pessoas acabaram sendo presas e torturadas, a fim de assinarem confissões. O coronel acabou

afastado da direção dos inquéritos, sendo substituído pelo general Riograndino Kruel (chefe

da Polícia Federal)57, que prosseguiu nas investigações. Interessante notar que os inquéritos,

de fato, pela legislação de exceção, poderiam ser instaurados legitimamente, por serem meios

pelos quais seriam apurados fatos e responsabilidades dos que possivelmente estariam agindo

contra o Estado ou contra a ordem política e social. De fato, por meio do art. 8º do AI-1, da

portaria nº 1 e do Ato do Comando Supremo da Revolução nº 8, os inquéritos seriam meios

eficazes para o movimento deflagrar em investigações, muitas vezes sumárias e arbitrárias.

Assim sendo, Mauro Borges Teixeira passou a sofrer, por parte de seus adversários

políticos, pressão para que fosse afastado de seu cargo. Por várias horas, com o intuito de

desmoralizá-lo, seu depoimento foi tomado e, além disso, foi instaurado um Inquérito Policial

Militar, que foi transferido para o Departamento Federal de Segurança Pública, a fim de

colher provas para afastar Mauro Borges de seu cargo, provas estas que, segundo sua defesa,

eram forjadas. Com isso, os advogados do Governador impetraram habeas corpus preventivo

no Supremo, sob a alegação de que Mauro Borges estaria prestes a ser submetido a processo

militar embora, graças a sua função, tivesse prerrogativa de foro e, portanto, caso tivesse

praticado crimes comuns, deveria ser julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado.

Também neste acórdão, Evandro se utiliza das palavras do magistrado norte-

americano Douglas: “Como assinala William O. Douglas, eminente Juiz da Côrte Suprema

americana, a extensão da jurisdição de tribunais militares sôbre civis deve ser sempre

‘estreita e limitadamente definida’(...)”58.

Em seu voto, Evandro afirma não ser necessário exame aprofundado da matéria já que:

“A incompetência da Justiça Militar resulta flagrante do texto constitucional e da lei de

crimes de responsabilidade”59.

Além disso, o ministro discorre sobre a função do Supremo Tribunal Federal:

57 Para mais detalhes, ver o livro “A ditadura envergonhada”. Elio Gaspari. p. 187 e ss. 58 HC 41.296. RTJ 33/607. 59 HC 41.296. RTJ 33/606.

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Não há necessidade, sequer, de invocar os nossos podêres implícitos, que

advém das elevadas funções do Supremo Tribunal Federal como órgão de

cúpula do sistema federativo. Já sustentei, aqui, que somos Côrte de Cassação e Côrte Constitucional. Dentro da órbita do poder judiciário, o

Supremo Tribunal Federal tem a supervisão e pode interferir, até com função

correcional, junto a quaisquer juízes ou tribunais. Como Côrte

Constitucional compete-lhe julgar os atos dos demais podêres políticos da República e dirimir os litígios federativos. É justamente no uso de suas

atribuições de Côrte Constitucional que o Supremo Tribunal Federal, como

também sucede com a Côrte Suprema dos Estados Unidos, tem sido mais vêzes criticado e incompreendido. Desconhece em geral o vulgo que, no

exercício de tais funções, temos de compor conflitos de poder, com base,

inclusive, no critério da utilidade pública ou do bem comum60.

Como podemos depreender das palavras expostas pelo ministro, ele se mostra

insatisfeito com a repercussão que as decisões do Supremo estavam tendo. Ao certo, neste

pronunciamento, pôde enfatizar um pouco de suas convicções quanto ao papel do Supremo,

como órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Caso Miguel Arraes

Um outro caso que demonstra o regime de autoritarismo crescente foi o julgamento do

pedido de habeas corpus, cujo paciente era o ex-governador do Estado de Pernambuco,

Miguel Arraes. Ele foi deposto de seu cargo no dia 1º de abril de 1964 e preso. Removido

para Fernando de Noronha, permaneceu incomunicável por meses e, após este período, foi

transferido para o Quartel da Companhia de Guardas, em Recife, e depois para o Quartel do

Corpo de Bombeiros. Em 21 de maio de 64, foi decretada sua prisão preventiva, pelo

Conselho Permanente de Justiça do Exército, a fim de apurar atos subversivos ou de

corrupção.

Segundo informações do Superior Tribunal Militar, Arraes fora apontado como

ativista do movimento comunista, promovendo a subversão da ordem na região do Nordeste.

Para tal, conduzia camponeses a greves, visando dar fim à resistência das classes patronais.

Impetrou, então, Miguel Arraes, ao Superior Tribunal Militar, habeas corpus, em 9 de

dezembro de 1964. No entanto, o pedido foi denegado. Seus advogados, visando obter do

Supremo Tribunal Federal o habeas corpus, tentaram demonstrar a ilegalidade da prisão,

60 HC 41.296. RTJ 33/607.

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através dos seguintes fundamentos: a incompetência da Justiça Militar para processar e julgar

Arraes, o excesso de prazo de prisão preventiva, a competência por prerrogativa de função,

além da delimitação, dada pelo art. 108 de Constituição Federal, do âmbito do foro militar,

“que só pode julgar civis, nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições

militares”61.

A fim de enquadrar Arraes nesses limites, o “...decreto de prisão preventiva

empregou, textualmente, a expressão ‘por inspiração estrangeira’”62. Evandro,

pronunciando-se favoravelmente à concessão do pedido, fez referência à Súmula nº 394, que

revelava a jurisprudência predominante do Tribunal: “Cometido o crime durante o exercício

funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa da função, ainda que o

inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação do exercício funcional”.

Lembra ainda Evandro, que no exercício de suas funções, os governadores poderiam

ser julgados por crimes de responsabilidade. Se acusados fossem, sofreriam como sanção o

impeachment. Caso este já tivesse sido decretado ou mesmo se o mandato já tivesse se

encerrado, o suposto acusado por crime comum, deveria responder perante o foro privativo,

pois “Desde que o titular do cargo tenha fôro privativo, por prerrogativa de função, o seu

julgamento, fora dos casos de crimes de responsabilidade, se dará perante êsse fôro, seja

qual fôr a natureza da infração”63. Ainda, acresce Evandro que, em caso idêntico ao caso de

Arraes, o Supremo Tribunal Militar se pronunciou em sentido diverso. Assim foi no caso do

também ex-governador, João de Seixas Dória, para o qual o Tribunal Militar concedeu o

habeas corpus, sob o fundamento do direito ao foro especial.

Afinal, foi concedido o habeas corpus por decisão unânime. Segundo Evandro, tal

conduta do Supremo se deve ao fato de a prisão ser totalmente ilegal. “Não há lei que

autorize uma prisão preventiva de mais de ano. Ele estava preso arbitrariamente por uma

autoridade que o conservava lá entre as grades porque queria conservar. Onde estava o

processo? Não havia”64.

61 HC 42.108. RTJ 32/615. 62 HC 42.108. RTJ 32/616. 63 HC 42.108. RTJ 32/621. 64 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. p. 389.

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Evandro conta que soube, segundo Osvaldo Trigueiro, de um telefonema dado pelo

então Presidente Castelo Branco a este, afirmando que estava encontrando dificuldades para

executar a decisão do Supremo porque os ministros da “linha dura” não estavam dispostos a

colocar Arraes em liberdade. Apesar disso, a ordem foi cumprida, mas o Supremo se tornou

cada vez mais alvo da preocupação dos militares.

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CONTEXTO PARA A EDIÇÃO DO ATO INSTITUCIONAL Nº 2

Apesar dos traços de moderação e legalismo de Castelo, que se mostrava disposto a

restaurar a ordem e a lutar pela extinção das punições revolucionárias, o regime caminhava

para um endurecimento e o aparato repressivo progressivamente se institucionalizava.

Neste sentido, pode-se afirmar que a grande vitória de Castelo foi a realização de

eleições diretas para governadores, que ocorreram no mês de outubro de 1965, ao longo de 11

Estados65. A 3 de outubro, venceram governadores da oposição na Guanabara e em Minas

Gerais e já no dia 5 militares da linha dura manifestaram-se contrários à posse dos

governadores de oposição e, com isso, Costa e Silva, ministro da guerra, projetou-se como

líder da linha dura e Castelo não logrou impedir a conquista do poder político por parte dos

militares radicais, não conseguindo nem fazer seu sucessor.

65 Ressalta-se que os mandatos dos governadores não eram coincidentes.

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O STF E OS DIAS QUE ANTECEDERAM A EDIÇÃO DO AI-2

No dia 13 de outubro de 1965, duas mensagens que continham projeto de emenda

constitucional foram enviadas ao Congresso, visando à ampliação da competência da Justiça

Militar e a exclusão judicial das punições feitas com base no AI-1, o que geraria novos casos

de intervenção federal nos Estados. Ainda, o Executivo, a fim de ampliar sua atuação,

prosseguiu com novos pedidos de emendas constitucionais, sendo que uma delas incluía as

eleições indiretas para Presidente da República e uma outra a reforma do Judiciário.

Os dias passavam. O Congresso parecia resistir às novas investidas

revolucionárias. O Presidente da Republica (sic) advertia da necessidade das novas leis revolucionárias. Os quartéis não se iludiam quanto à necessidade

do enrijecimento. Os núcleos liberais apontavam tais iniciativas como a

preparação para a reabertura revolucionária dos processos de repressão, e o Supremo, através de seu presidente, Min. Álvaro Moutinho da Costa,

proclama-se contra qualquer iniciativa do Executivo-Revolucionário de se

imiscuir nos assuntos privativos de um dos poderes autônomos da República, o Poder Judiciário66.

Assim, sete dias antes da edição do AI-2, em entrevista67, Ribeiro da Costa afirma

serem as medidas propostas de aumento dos membros do Poder Judiciário, inseridas na

emenda constitucional referente à reforma do Judiciário, inúteis e inconvenientes. Além de

aumentarem as despesas públicas, dificultariam a celeridade dos julgamentos do Supremo,

pois a apuração feita pelo órgão judicante levaria mais tempo. Além disso, afirmava que as

medidas seriam responsáveis pelo conflito entre os Poderes da República, visto que, com elas,

haveria a invasão do Poder Executivo e do Legislativo (em caso de aprovação das emendas)

de área específica e privativa do Judiciário. Com isso afirmava:

Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes

democráticos não lhes cabe o papel de mentores da Nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres os sargentos,

instigados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a

militar a estes que, sob sagrado compromisso, juram fidelidade à disciplina,

às leis e à Constituição (...) Por que tanta insistência e tão descabido

66 O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. p. 101. 67 A entrevista foi integralmente publicada pelo Correio da Manhã, do dia 20 de outubro de 1965. In: O Supremo

Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. p. 102.

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propósito em aniquilar um dos atributos básicos da independência do Poder

Judiciário e da autonomia do Supremo Tribunal Federal? Com que

vantagens, senão o seu desprestígio ofensivo de suas tradições mais caras a este País que, desse modo, se mostra indiferente à sorte de suas próprias

instituições?68.

Por fim, concluiu a entrevista dizendo ter a esperança de que o Presidente Castelo

Branco ficaria imune “...às influências superficiais e interesseiras, que tendem à distorção

dos princípios tradicionais da organização de um dos Poderes da República e ao

enfraquecimento de suas bases constitucionais”69, a fim de garantir a evolução, dentro dos

ditames da lei, da Constituição e da democracia.

A resposta a Ribeiro da Costa era certa. O ministro da Guerra logo afirmara, em

discurso-resposta:

Aí estão as palavras com que nós, militares, somos brindados por Sua

Exa., o Presidente do Supremo Tribunal Federal que nós, militares, tendo-o a nossa mercê em 1º de abril de 1964, preservamos de qualquer mutilação, na

esperança – que ilusão – de que esse alto Tribunal saberia compreender a

nossa revolução, que acabávamos de tornar vitoriosa. Quando atendendo às aspirações do povo fomos às ruas para acabar com o comunismo que se

procurava implantar neste País. Quando os jangos e brizolas procuravam

subverter e fechar o Congresso Nacional e conspurcar a todos os juízes, o Exército veio à rua para restabelecer a ordem, a disciplina, a justiça e a

autoridade do governo. Na ocasião, nós não defendíamos nenhum posto,

nenhum partido, mas defendíamos, isto sim, a integridade pátria. Agora

fomos brindados pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, porque, nós não nos recolhemos aos quartéis e sim saímos dos quartéis a pedido do povo,

a pedido da sociedade que se via ameaçada. E só voltaremos para os quartéis

quando tudo aquilo terminar. A agressão não nos atinge, mas não posso deixar de responder a essa

afronta.70.

Numa resposta sutil ao titular da pasta da guerra, na antevéspera da publicação do AI-

2, o Supremo se reuniu e, por unanimidade, aprovou uma emenda regimental, prorrogando o

mandato de presidente de Ribeiro da Costa até o término de sua judicatura, fato que revelou o

68 O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. pp. 108-110. 69 O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. Entrevista. pp.

108-110. 70 Trecho de discurso – resposta publicado no jornal Correio da Manhã. In: O Supremo Tribunal Federal e a

instabilidade político-institucional. Osvaldo Trigueiro do Vale. p. 126.

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respeito e a solidariedade da instituição para com seu presidente: “O Min. Ribeiro da Costa

deixará, assim, a atividade judiciária no mais elevado posto da magistratura, que tem

honrado nas circunstâncias mais difíceis, arrostando dissabores e incompreensões”71.

71 Trecho da emenda regimental. In: O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Osvaldo

Trigueiro do Vale. p. 131.

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ATO INSTITUCIONAL Nº 2

Do exposto, pode-se notar que a grande derrota de Castelo foi a edição do AI-2,

relacionado ao fato de os militares estarem inconformados com a perspectiva de não

aprovação do governo pela opinião pública e ao paulatino endurecimento do regime, com a

vitória parcial da linha dura. Desta vez, o Supremo não seria poupado de uma intervenção,

apesar das reivindicações de Ribeiro da Costa e da solidariedade demonstrada pelos demais

membros do Tribunal para com ele.

ALTERAÇÕES NA ORDEM JURÍDICA

O governo militar, por meio do novo Ato Institucional, editado no dia 27 de outubro

de 1965 e que vigoraria até 15 de março de 1967, reafirmava sua legitimidade. Neste sentido,

o preâmbulo do AI-2 lembrava o que fora dito no preâmbulo do AI-1, frisando em um de seus

pontos que a revolução “edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela

normatividade anterior à sua vitória, pois graças à ação das forças armadas e ao apoio

inequívoco da Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o

povo é o único titular”.

Desta vez, percebia-se o paulatino endurecimento do regime, que buscava, por meio da

conduta de seus componentes e de alterações relevantes no ordenamento, a sistemática e

progressiva institucionalização do aparato repressivo.

Neste contexto, o ato incorporou em seu texto as medidas previstas nas emendas que

seriam votadas pelo Congresso no dia 28 de outubro (dia posterior à data da assinatura do ato)

e foi além destas medidas.

O art. 8º, § 1º do Ato alterou o art. 108, § 1º da Constituição de 1946. A nova redação

que passou a vigorar manteve o caput do art. 108 da CF, que dizia “À Justiça Militar compete

processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhe são

assemelhadas” sendo que o § 1º passou a dispor que “Esse foro especial poderá estender-se

aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional

ou as instituições militares”.

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Ressalta-se que a alteração foi significativa. Afinal a expressão do art. 108, § 1º “para

a repressão de crimes contra a segurança externa ou as instituições militares” foi substituída

pela expressão “para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições

militares”. Interessante notar que o Supremo, em diversos momentos, tinha defendido presos

políticos com base nesta diferenciação, de que os crimes políticos deveriam ter atentado

contra a segurança externa ou às instituições militares para que a competência da Justiça

Militar fosse estendida. Com isso, diversos presos políticos haviam deixado de ser

processados e julgados pela Justiça Militar, tendo o Supremo e o Superior Tribunal Militar

concedido diversos habeas corpus.

Por conta disso, alterou-se a expressão para “segurança nacional”, tendo a Justiça

Militar estendido sua competência aos civis em geral, ou seja, inclusive nos casos em que os

civis fossem acusados de crime contra a “segurança nacional”.

Mas a ampliação da Justiça Militar não se deu apenas através dessa disposição. O art.

8º, § 3º conferia ao Superior Tribunal Militar a competência de processar e julgar,

originariamente, os governadores de Estado e seus secretários, o que privava os altos

funcionários do foro privativo, e impossibilitava a defesa do Supremo da tese do foro

privilegiado para ministros, governadores e secretários.

O objetivo era claro: cada vez mais procurava-se tipificar as condutas dos presos

políticos como criminosas, deixando a Justiça Comum (e o Supremo, cúpula da Justiça Civil)

distante de poder lutar pela liberdade dos presos políticos.

Neste mesmo sentido, o art. 12 alterou a última alínea do § 5º do art. 141 da

Constituição, passando a nova redação a dispor: “Não será, porém, tolerada propaganda de

guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe”. Anteriormente,

falava-se em “processos violentos para subverter a ordem política e social”, o que também

havia possibilitado defesa com base na possibilidade de não serem os processos violentos.

O art. 14 reafirmou o art. 7º, caput, do AI-1 pelo qual foram suspensas as garantias

constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, sendo que o art. 7º,

caput, do AI-1 previa que as suspensões ocorreriam em tempo determinado (seis meses),

enquanto que o art. 14 não previa um período para que as suspensões fossem realizadas.

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Ainda, o art. 10 do AI-1 foi retomado pelo art. 15, no qual houve a previsão de

suspensão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e da

possibilidade de cassação de mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.

Com isso, o art. 16 dispôs:

Art. 16 – A suspensão de direitos políticos, com base neste Ato e no art. 10 e

seu parágrafo único do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, além do disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6º da Lei Orgânica dos

Partidos Políticos, acarreta simultaneamente: I – a cessação de privilégio de

foro por prerrogativa de função; II – a suspensão do direito de votar e de ser

votado nas eleições sindicais; III – a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV – a aplicação, quando necessária à

preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado.

Dessa forma, foi sendo retirada do Judiciário, pouco a pouco, a possibilidade de julgar

com base nas leis e na Constituição, elaboradas durante o Estado de Direito. Ao contrário,

devia o Judiciário reconhecer a existência de “poderes revolucionários”, que estavam

interligados à tentativa de institucionalização do regime.

Neste sentido, pelo art. 19, ficaram excluídos da apreciação judicial:

I – os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução e pelo governo federal, com fundamento no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no

presente Ato Institucional e nos atos complementares deste” e “II – as

resoluções das Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores,

Deputados, Prefeitos ou Vereadores, a partir de 31 de março de 1964, até a

promulgação deste Ato.

Por meio do art. 18, houve a extinção dos partidos políticos (origem do

bipartidarismo) e a cassação dos respectivos registros. Ainda, o art. 9º previu que as eleições

para Presidente e vice seriam indiretas, realizadas pela maioria absoluta dos membros do

Congresso em sessão pública e votação nominal.

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Ressalta-se a ampliação dos poderes do Executivo: pelo art. 30 do Ato nº 2, ao

Presidente foi conferido o direito de baixar atos complementares e decretos-leis que

versassem sobre matéria de segurança nacional, expressão vaga que poderia dar margem a

diversas interpretações. O presidente, pelo art. 31, por meio de ato complementar, adquiriu o

direito de decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das

Câmaras dos Vereadores, em estado de sítio ou fora dele. Por fim, o Poder Executivo ficou

autorizado a legislar sobre todas as matérias previstas na Constituição e na lei Orgânica,

mediante decretos-leis, em caso de o recesso parlamentar ter sido decretado (art. 31, § único).

Observa-se do exposto que, devido às “intervenções cirúrgicas” feitas nos dispositivos

legais e constitucionais do Estado de Direito, cada vez mais acentuadas, a dicotomia “Estado

de Direito” “Regime de exceção” tornava-se mais presente.

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A DISSOLUÇÃO DA CORTE

De acordo com a Constituição de 1946, art. 7º, inciso VII, alíneas “b” e “g”, o

Governo Federal não poderia intervir nos Estados, exceto para assegurar a observância dos

princípios de independência e harmonia dos Poderes e garantias do Poder Judiciário. Com

isso, a Constituição dispunha, em seu art. 98: “O Supremo Tribunal Federal, com sede na

Capital da República e jurisdição em todo o território nacional, compor-se-á de onze

ministros. Esse número, mediante proposta do próprio tribunal, poderá ser elevado por lei”,

o que significa dizer que a estrutura da Corte apenas poderia ser alterada por uma medida

interna corporis, ou seja, por iniciativa privativa do Judiciário e, mais especificamente, do

Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, desta vez, o Supremo não ficou imune à pressão dos militares, tendo o

número de integrantes aumentado de 11 para 16, por decisão do AI-2. Disto decorre a

primeira fenda entre Judiciário e Executivo, já que o presidente do Supremo, Ribeiro da

Costa, revelou-se contrário a qualquer intervenção na cúpula do Judiciário. Ressalta-se a frase

do ministro Ribeiro da Costa ao General Castelo Branco: “Ai da revolução que aviltar a

Justiça. Fecharei a casa e lhe entregarei as chaves”72. Mesmo assim, a intervenção ocorreu.

Os novos integrantes eram oriundos de destacada militância político-partidária na

UDN. Foram nomeados pelo presidente Castelo Branco, Adalício Coelho Nogueira, Aliomar

de Andrade Baleeiro, Carlos Medeiros Silva, José Eduardo Prado Kelly e Osvaldo Trigueiro

de Albuquerque Melo e tomaram posse no dia 25 de novembro de 1965.

Entretanto, os novos nomeados para integrar a Corte, embora tidos como partidários

da revolução, segundo Evandro, votavam, nos processos políticos, como os outros membros

do Supremo. Segundo Evandro, essa alteração na composição da Suprema Corte teve a

intenção de neutralizar os ministros que eram conhecidos como contrários ao regime. Em

entrevista, Evandro afirmou:

72 Documentário “As Chaves da Democracia – A resistência do Supremo Tribunal Federal em tempos de

opressão” transmitido pela TV Justiça em abril de 2004.

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Evidentemente o objetivo oculto era neutralizar a atuação desses supostos

carbonários73 que estavam no Supremo Tribunal Federal. Mas eles se

enganaram porque nomearam homens de bem74.

Decerto, os militares intencionavam conquistar as decisões políticas do Supremo, que

desagradava, a cada concessão de habeas corpus às pretensões revolucionárias. Faziam os

militares a correlação entre os vínculos político-partidários anteriores dos membros da Corte

com as decisões que dela emanavam75.

Mas a atuação judicante dos ministros não era restrita a casuísticas partidárias, mas

sim ao respeito ao direito posto, ao julgamento oriundo da lei e da Constituição, imanentes ao

Estado de Direito.

A ótica dos membros da Justiça era jurídica e político-social e não político-partidária.

Ressalta-se trecho do voto do ministro Orosimbo Nonato, que esteve no Supremo entre os

anos 1941 e 1960:

Como juiz, procuro julgar não a lei, mas segundo a lei. E nem essa

orientação amesquinha a função do julgador. Cabe-lhe a este, sempre,

adaptar a lei ao fato, e entre várias interpretações que legitimamente possa o mandamento do Legislador oferecer, adotar a que mais se afine com a

justiça, orne com a eqüidade e responda às exigências do bem comum76.

De fato, difícil crer que um juiz possa julgar numa ótica estritamente positivista, sem

levar em conta suas convicções políticas e a busca pela justiça.

73 Evandro se referiu a ele próprio, a Hermes Lima e a Vitor Nunes, os ministros que eram considerados

contrários à revolução. 74 Documentário “As Chaves da Democracia – A resistência do Supremo Tribunal Federal em tempos de

opressão” transmitido TV Justiça em abril de 2004. 75 Neste sentido, havia prevenção em relação aos ministros indicados por João Goulart, no caso Evandro e Hermes Lima, e por Juscelino Kubitschek, no caso Vítor Nunes. 76 Trecho do voto do ministro Orosimbo Nonato, no caso de cancelamento do registro do Partido Comunista. In:

História do Supremo Tribunal Federal. Lêda Boechat Rodrigues. Tomo IV. p. 21.

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ATO INSTITUCIONAL Nº 3

O Ato Institucional nº 3 foi editado em 5 de fevereiro de 1966. Nele, ficaram

estabelecidas as eleições indiretas para governadores e vices. Em 3 de outubro, foi realizada a

eleição presidencial, na qual foi eleito pelo Congresso o Marechal Artur da Costa e Silva,

representante da chamada “linha dura”.

ATO INSTITUCIONAL Nº 4 E A CONSTITUIÇÃO DE 1967

Através do decreto 58.198, foi constituída uma Comissão de Juristas77, sob orientação

do ministro Mem de Sá, encarregada de elaborar o anteprojeto de um novo texto

constitucional.

Em 19 de agosto de 1966, a Comissão entregou o anteprojeto para o titular da Justiça,

Carlos Medeiros Silva, mas o governo considerou o texto da Comissão, cujos membros ele

havia escolhido, excessivamente liberal. Com isso, o ministro Mem de Sá foi substituído pelo

jurista Carlos Medeiros Silva78, que foi encarregado de rever o texto, adequando-o aos

objetivos revolucionários. Desta forma, pode-se afirmar que “O trabalho da Comissão de

Juristas foi sufocado pelo anteprojeto do Ministério da Justiça”79.

Neste sentido, o anteprojeto, que havia sido publicado na véspera da edição do Ato

Institucional nº 4, foi encaminhado pelo governo ao Congresso.

Com isso, o Ato Institucional nº 4, editado em 7 de dezembro de 1966, afirmava a

necessidade de uma nova Carta Constitucional:

Considerando que a Constituição federal de 1946, além de haver recebido

numerosas emendas, já não atende às exigências nacionais;

77 Castelo, inicialmente, conferiu à Comissão o papel de rever o texto constitucional de 1946, adaptando-o às

“inserções revolucionárias” (emendas e Atos até então editados). 78 Ressalta-se que Roberto Campos, que exercia papel relevante na economia, coordenou a reestruturação do

texto ao lado de Carlos Medeiros Silva, a fim de que fossem considerados critérios econômicos que norteavam o

sistema de governo. 79 História Constitucional do Brasil. Paulo Bonavides; Paes de Andrade. p. 436.

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Considerando que se tornou imperioso dar ao País uma Constituição que,

além de uniforme e harmônica, represente a institucionalização dos ideais e

princípios da Revolução; Considerando que somente uma nova Constituição poderá assegurar a

continuidade da obra revolucionária;

Considerando que o Governo continua a deter os poderes que lhe foram

conferidos pela Revolução; O Presidente da República resolve editar o (...) Ato Institucional nº 4.

Sendo assim, por meio do Ato, o Congresso, que estava em recesso, foi convocado

para reunir-se extraordinariamente de 12 de dezembro de 1967 a 24 de janeiro de 1968 (art.

1º) para discussão, votação e promulgação de um novo texto constitucional, cujo projeto seria

apresentado pelo Presidente da República (art. 2º).

Neste sentido, o Congresso, tendo recebido o anteprojeto, foi investido de um Poder

Constituinte Congressual, que era

(...) uma adaptação do Legislativo para que, transformado em reformador ou redator de um texto novo para o país, evitasse a convocação de uma

assembléia popular e, de outra parte, também evitasse mais um ato de força

com a imposição de um texto originário do Executivo80.

Era uma adaptação na medida em que os membros do Congresso haviam sido eleitos

para exercerem uma função parlamentar, relacionada à legislação ordinária e não uma função

constituinte, que lhes não era própria nem devida, pois os parlamentares não estavam

investidos de faculdades constituintes, não tinham os poderes constituintes autorizados pelo

eleitorado81.

Além disso, pode-se afirmar que o governo aproveitou-se do fato de a oposição estar

enfraquecida e desarticulada. Afinal, grande parte das lideranças, inclusive do Congresso,

haviam sido expurgadas, através das cassações de mandatos e de direitos políticos. Ainda,

tornou-se uma tarefa praticamente impossível mobilizar a oposição para defender

80 História Constitucional do Brasil. Paulo Bonavides; Paes de Andrade. p. 432. 81 Observa-se que o Legislativo apenas tinha o poder de emendar a Constituição, de reformá-la.

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reivindicações e direitos no curto prazo (pouco mais de quarenta dias) conferido ao Congresso

para aprovação e promulgação do novo texto.

Afinal

Nada adiantou a contribuição da Comissão de Juristas.

O Governo manteve-se no ritmo de arbítrio que marcara o início de sua ação direta sobre o Congresso e, afinal, foi o texto oficial que prevaleceu com

pequenas modificações admitidas previamente nas reuniões com as

lideranças do Executivo no Senado e na Câmara82.

De qualquer forma, valendo-se do enfraquecimento da oposição e do fato de a tarefa

dos parlamentares estar cerceada pela legislação de exceção, o governo revolucionário atingiu

seu objetivo: o Congresso aprovou e promulgou um texto “...centralizador no plano federal

com uma enorme concentração do poder político”83, o que corroborou para dar a impressão

de que o Brasil vivia um regime democrático.

Afinal, havia a preocupação com a caracterização do regime militar num mundo

democrático e o fato de o Congresso ter votado a Carta facilitava a imposição desta idéia.

Além disso, o novo texto pode ser caracterizado como um dos estágios do processo de

institucionalização do movimento.

Já em 24 de janeiro de 1967 foi promulgada uma nova Constituição. Costa e Silva

tomou posse no dia 15 de março, data na qual a nova Constituição entrou em vigor, podendo

ela ser considerada como uma afirmação da legislação de exceção, pois, de maneira geral, ela

formalizou os Atos Institucionais e Complementares até então decretados.

82 História Constitucional do Brasil. Paulo Bonavides; Paes de Andrade. p. 436. 83 História Constitucional do Brasil. Paulo Bonavides; Paes de Andrade. p. 434.

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ANO DE 1968

Quando os militares deram o golpe em abril de 64, abortaram uma geração

cheia de promessas e esperanças (...) Onipotente, generosa, megalômana, a

cultura pré-64 alimentou a ilusão de que tudo dependia mais ou menos de sua ação: ela não só conscientizaria o povo como transformaria a sociedade,

ajudando a acabar com as injustiças sociais. Essa ilusão terminou em 64; a

inocência, em 6884.

De fato, “...68 pode ter sido planejado para servir como uma espécie de ponto de

referência histórico”85 e, no Brasil, foi o ano em que uma geração perdeu a inocência na

medida em que as inconsistências legais que haviam sido criadas pelo hibridismo de uma

ordem na qual instituições democráticas conviviam com instituições ditatoriais, deram origem

à radicalização política.

Em 28 de março, o estudante Edson Luís de Lima Souto foi morto no Rio de Janeiro,

durante um conflito com a polícia militar. O incidente sensibilizou a opinião pública para a

luta estudantil e foi importante para a mobilização dos brasileiros que, liderados pelo

movimento estudantil, pela Igreja e por outros segmentos da sociedade, saíram em passeata

pelo Rio de Janeiro. A sociedade civil organizava-se na Passeata dos Cem Mil, realizada no

dia 26 de junho.

Olhada, a passeata era uma festa. Manifestação de gente alegre,

mulheres bonitas com pernas de fora, juventude e poesia86. Caminhava em

cordões. Havia nela a ala dos artistas, o bloco dos padres (150), a linha dos deputados. Ia abençoada pelo cardeal do Rio de Janeiro, o arquiconservador

d. Jaime Câmara (...) Muitas pessoas andavam de mãos dadas. Todo o Rio de

Janeiro parecia estar na avenida. A serena figura da escritora Clarice Lispector e Norma Bengell, a desesperada de Terra em transe; Nara Leão,

Vinicios de Moraes e Chico Buarque de Hollanda (...) Personagens saídos da

crônica social misturavam-se com estudantes saídos do DOPS. Do alto das

janelas a cidade jogava papel picado. Catedral frentista, a Passeata dos Cem Mil saiu da Cinelândia, jovem, bela e poderosa. Parecia o funeral do

consulado militar.

84 1968 O ano que não terminou. Zuenir Ventura. p. 44. 85 O ano em que os profetas falharam. Publicado na Folha de São Paulo de 10 de maio de 1998. Caderno MAIS!

Eric HOBSBAWM. pp. 4-5. 86 Ressalta-se que a década de 1960 no Brasil foi marcada pela liberdade sexual e por sentimentos libertários.

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Ouvida, era maravilhoso veículo do anacronismo político. O slogan

mais repetido da manifestação anunciava o fim do regime. Um pedaço

gritava: “O povo organizado derruba a ditadura”. O outro pedaço corrigia: “O povo armado derruba a ditadura”. Não se contrapunham,

complementavam-se (...) A passeata fora a maior vitória conseguida pela

oposição desde as eleições de 1965, mas seu capital político era

inconversível. Nela não havia uma só alma que admitisse a hipótese da continuação do regime87.

Apesar de ter sido realizado o maior protesto contra o regime militar, os slogans da

manifestação da sociedade civil não se cumpriram. Se alguma esperança de democratização

existia, oriunda da Constituição de 1967, que poderia ser emendada para que as liberdades

fossem ampliadas, e da organização da sociedade civil para “derrubar a ditadura”, ela

terminou no ano de 1968. De fato, a geração de 1960 ainda teria de conviver com o mais

repressor dos atos institucionais, o ato institucional nº 5, que fez com que a Constituição de

1967 se tornasse “...mera formalidade, natimorta porque submetida e anulada pelos atos.

Que sentido poderia ter o capítulo ‘Dos Direitos e Garantias Individuais’ diante do arbítrio

instaurado pelos atos?”88.

A “utopia revolucionária” chegou ao auge. Desde que assumiram o poder em 1964,

acreditavam os militares serem superiores por serem responsáveis pelo saneamento do perigo

comunista e esquerdista que adentrara o organismo social e por exercerem o papel de

“civilizadores”, já que eles haviam sido encarregados de suprirem as deficiências do povo

brasileiro, despreparado para exercer direitos próprios da democracia, como o voto, e

manipuláveis pelos políticos corruptos e pelos ataques à moral e aos bons costumes. Exerciam

assim o papel de mentores da Nação brasileira. Entretanto, em 1968 os militares enrijeceram

os mecanismos de dirigismo, de que se utilizavam, a fim de se manterem no poder e

conservarem ainda distantes as esperanças de democratização. Com isso, o autoritarismo

acentuara-se. O AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, sepultou as esperanças de

democratização.

(...) Gama e Silva anunciou diante das câmeras de TV o texto do Ato

Institucional nº 5. Pela primeira vez desde 1937 e pela quinta vez na história do Brasil, o Congresso era fechado por tempo indeterminado (...) Pedro

87 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. pp. 296-297. 88 História Constitucional do Brasil. Paulo Bonavides; Paes de Andrade. p. 430.

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Aleixo queixara-se de que “pouco restava” da Constituição, pois o AI-5 de

Gama e Silva ultrapassava de muito a essência ditatorial do AI-1: o que

restasse, caso incomodasse, podia ser mudado pelo presidente da República, como ele bem entendesse89.

O “FAMIGERADO” AI-5 E AS ALTERAÇÕES NA ORDEM JURÍDICA

De acordo com o art. 1º do novo Ato, foram mantidas as Constituições de 24 de

janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais, com as modificações constantes no novo texto.

O art. 2º retomou a previsão do art. 31 do AI-2, o qual afirmava que o Presidente poderia

decretar, por meio de Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, o recesso do

Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. Entretanto,

o art. 2º do novo Ato previa que as Casas só voltariam a funcionar quando convocadas pelo

Presidente.

Pelo art. 3º, caput, foi conferido ao Presidente da República a possibilidade de decretar

a intervenção nos Estados e Municípios, “...sem as limitações previstas na Constituição”.

Ainda, pelo parágrafo único, foi afirmado que os Interventores dos Estados e Municípios

seriam nomeados pelo Presidente e exerceriam todas as “...funções e atribuições que caibam,

respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e

vantagens fixados em lei”.

No art. 4º, mais uma vez90 foi prevista a suspensão de direitos políticos de quaisquer

cidadãos, por 10 anos, e a cassação de mandatos eletivos. Com isso, as punições sumárias

foram restabelecidas.

O art. 5º previu as conseqüências da suspensão dos direitos políticos, retomando o

disposto no art. 16 do AI-2, com algumas inovações, feitas a partir do acréscimo de dois

parágrafos, pelos quais fora afirmado que o ato pelo qual fosse decretada a suspensão poderia

restringir ou mesmo proibir o exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados (art.

5º, § 1º). Ainda, o § 2º ressalvava que as medidas de segurança (liberdade vigiada, proibição

89. A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. p. 340. 90 De certa forma, o art. 4º do AI-5 retomou o que havia sido previsto no art. 10 do AI-1 e no art. 15 do AI-2.

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de freqüentar determinados lugares, domicílio determinado) seriam aplicadas pelo Ministro de

Estado da Justiça, “...defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário”.

Já o art. 6º ampliou a previsão do art. 14 do AI-2 e do art. 7º, caput, do AI-1, dispondo

que o Presidente poderia, mediante decreto, suspender as garantias constitucionais ou legais

de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade de quaisquer titulares dessas garantias,

“...assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia

mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias

militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao

tempo de serviço”. Ainda, segundo o § 2º, o disposto no caput do art. 6º e no seu § 1º, seria

aplicável também nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

Pelo art. 7º, o Presidente da República foi autorizado a decretar e prorrogar o estado de

sítio, em qualquer dos casos previstos pela Constituição (pelo art. 152 da Constituição de

1967, o estado de sítio poderia ser decretado nos casos de “I – grave perturbação da ordem

ou ameaça de sua irrupção; II – guerra”), fixando o prazo (pela Constituição de 1967, art.

153, a duração do estado de sítio não poderia ultrapassar sessenta dias, excetuado em caso de

guerra. Ainda, poderia ser prorrogado por igual prazo). Ressalta-se que o art. 7º do AI-5 não

estipulava prazo, deixava a cargo do Presidente a fixação do mesmo e respectiva prorrogação.

Ainda, o art. 11, pelo qual era afirmado: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial

todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares,

bem como os respectivos efeitos”, retomou a previsão feita pelo art. 19 do AI-2,

estabelecendo, entretanto, uma relevante alteração: a grande modificação neste artigo se deu

com a inserção da palavra “efeitos” pois não só os atos praticados com base na legislação de

exceção foram excluídos da apreciação do Judiciário, mas também os efeitos dos atos foram

excluídos de qualquer controle.

Por fim, o artigo 10 suspendia a garantia de habeas copus:

A pior das marcas ditatoriais do Ato, aquela que haveria de ferir toda uma

geração de brasileiros, encontrava-se no seu artigo 10: “Fica suspensa a garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança

nacional”. Estava atendida a reivindicação da máquina repressiva. O habeas

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corpus é um inocente princípio do direito, pelo qual desde o alvorecer do

segundo milênio se reconhecia ao indivíduo a capacidade de livrar-se da

coação ilegal do Estado. Toda vez que a Justiça concedia o habeas corpus a um suspeito, isso significava que ele era vítima de perseguição inepta, mas

desde os primeiros dias de 1964 esse instituto foi visto como um túnel por

onde escapavam os inimigos do regime. Três meses depois da edição do AI-

5, estabeleceu-se que os encarregados de inquéritos políticos podiam prender quaisquer cidadãos por sessenta dias, dez dos quais em regime de

incomunicabilidade. Em termos práticos, esses prazos destinavam-se a

favorecer o trabalho dos torturadores (...) Estava montado o cenário para os crimes da ditadura91.

Ressalta-se que o Ato não tinha prazo de duração92. Assim, a legislação de exceção se

estendia no tempo e as franquias constitucionais, as quais ela suspendia não tinham prazo para

retornarem, diferentemente dos demais Atos.

A MUTILAÇÃO

De fato, o processo coercitivo de desmobilização política chegou ao auge em 1968,

graças ao fenômeno de mutilação, pelo qual instituições foram violadas e os abusos das

autoridades do Poder Público ficaram impossibilitados de serem contidos. Perante o poder de

fato, o movimento de mecanismos que atemorizaram saía fortalecido. Causava medo e

adesão, aniquilava instituições e derrubava os núcleos de liderança oposicionista, a cada onda

de cassações.

No dia 16 de janeiro de 1969, por meio de um decreto, 44 cidadãos foram atingidos

pelas “punições revolucionárias”, que encontrava respaldo no art. 4º do AI-5. Com as

atribuições que haviam sido conferidas ao Presidente e com a indicação do Conselho de

Segurança Nacional, 34 deputados federais, 2 senadores, 1 vereador, dentre outros, foram

atingidos. As punições apenas variavam quanto ao tipo: uns foram atingidos por cassações de

mandatos eletivos com suspensão dos direitos políticos, por dez anos, enquanto que outros

tiveram seus mandatos eletivos cassados, mas não tiveram direitos políticos suspensos.

91 A ditadura envergonhada. Elio Gaspari. pp. 340-341. 92 O AI-5 foi revogado em 1º de janeiro de 1979.

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Mas as punições da “operação limpeza” atingiram também, por meio de

aposentadorias compulsórias. O General-de-Exército Pery Constant Bevilácquia, foi

aposentado do cargo de ministro do Superior Tribunal Militar. Além disso, mais uma vez o

Supremo não pôde resistir às inserções. Teve sua estrutura enfraquecida e sua autonomia

desrespeitada, com a interferência direta do Executivo, pela qual três membros da Corte foram

aposentados compulsoriamente: Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal e Hermes Lima.

Certo é que este foi um dos lances dramáticos que marcou a história do Supremo e da

política nacional. Perante o poder de fato, lograva êxito a hipertrofia do Executivo e a falta de

equilíbrio entre autoridade e liberdade tornava-se cada vez mais patente.

Tornava-se tarefa praticamente impossível cumprir a função de sentinela das

liberdades públicas num regime no qual a proteção jurídica dos direitos constitucionalmente

assegurados havia sido violentamente abalada. Afinal, o que seria da cúpula do Judiciário

diante do arbítrio do Ato Institucional nº 5?

(...) o Supremo Tribunal, com o Ato Institucional nº 5, perdeu o seu poder político. Não podia mais julgar nada que dissesse respeito a ato do Poder

Executivo, não podia mais julgar os atos do Presidente da República, não

podia mais julgar habeas-corpus em favor de presos políticos. Tornou-se apenas um tribunal judicial e não um Poder da República, como deve ser o

Supremo Tribunal Federal (...) Com o AI-5 suprimiu-se o poder que o

Supremo deve ter, como órgão da soberania nacional, de julgar as ações do Executivo ou as leis do Congresso, de declarar a inconstitucionalidade de

atos abusivos que o presidente da República pudesse praticar, a pretexto de

que estava defendendo o país contra a subversão ou a corrupção. Na

verdade, o Supremo (...) foi castrado no seu poder de órgão que compõe o sistema dos três poderes independentes e harmônicos entre si. O presidente

da República passou a dispor de poderes muito acima dos do Supremo

Tribunal Federal. Ele passou a julgar o Supremo, passou a poder demitir um ministro do Supremo, sem que isso pudesse ser objeto de exame pelo

Supremo Tribunal Federal. Quando o Supremo é que tem, pela Constituição,

o poder de julgar os atos do presidente da República!93

De fato, a “intervenção cirúrgica” no ordenamento jurídico fez com que o arbítrio se

instalasse definitivamente e fez com que a sociedade ficasse emudecida. A sociedade perdera

não apenas a esperança de resistência democrática como também a inocência. Diante do

93 O Salão dos Passos Perdidos. Evandro Lins e Silva. pp. 404 e 407.

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autoritarismo, calava-se uma geração e suas instituições. O Supremo deixara de ser um órgão

político, deixara de ter impacto na conduta dos demais Poderes e da população.

Com o AI-5, expurgaram-se Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins

e Silva. Da corte saiu o único caso de protesto do período. Demitiram-se o

presidente da casa, Antônio Gonçalves de Oliveira, e seu substituto imediato, o ministro Antônio Carlos Lafayete de Andrada (...) foram os únicos

funcionários de alto nível dos poderes republicanos a se valer do espírito de

renúncia para impedir o prosseguimento da confusão entre a história do

regime e suas biografias94.

Ao certo não se sabe se os ministros Gonçalves de Oliveira e Lafayete de Andrade,

com a renúncia, quiseram impedir uma confusão entre a história do regime e suas biografias

na medida em que, segundo Evandro, talvez os dois ministros não estivessem agradando ao

governo.

Neste sentido, Evandro contou que recebeu a informação, pelo ministro Luís Gallotti

de que Lafayete de Andrada não havia sido cassado porque o deputado José Bonifácio, seu

irmão, assumiu o compromisso com o governo de colher seu pedido de aposentadoria. E,

apesar de Gonçalves de Oliveira ter escrito uma carta no sentido de afirmar que sua

aposentadoria se relacionava à aposentadoria dos três, em caráter de solidariedade, existem

especulações contrárias a esta idéia de solidariedade. Afinal, Gonçalves de Oliveira havia sido

ligado ao Juscelino e, de acordo com Evandro, tinha posição liberal no Tribunal, de modo que

talvez fosse aposentado compulsoriamente caso não requeresse a aposentadoria.

Mas o fato é que o Supremo teve o número de integrantes reduzido para 11.

Novamente, a composição da Casa era de 11 membros (as cinco novas vagas não foram

preenchidas, pois o art. 1º do AI-6 restabeleceu a antiga composição da Corte – 11 ministros),

como antes do AI-2, o que leva a crer que, de fato, a alteração na composição do Supremo,

pelo AI-2, tinha tido a intenção de neutralizar os ministros considerados contrários ao

governo. Ocorre que esta estratégia não deve ter surtido efeito, na medida em que houve a

necessidade de decretar a aposentadoria compulsória de membros da Corte, dos supostos

carbonários (membros de uma sociedade secreta e revolucionária) que, desde o início do

94 A ditadura escancarada. Elio Gaspari. p. 228.

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movimento, eram considerados perigosos elementos que entulhavam o Judiciário, proferindo

votos na mais alta Corte do país.

Pois bem, tendo sido o ordenamento jurídico violado e a instituição mutilada, a

ditadura tornou-se escancarada.

Violaram os militares a autonomia e estabilidade do Judiciário, mas não tinham apenas

estas pretensões. Almejavam os militares que a justiça fizesse parte do aparelho repressivo.

Ao menos em parte, os militares venceram: o Supremo deixou de ser um órgão político e de

sua autonomia restou a saudade e página que cada um de seus membros, como Evandro Lins e

Silva, escreveu em sua história. De fato

‘Fica a saudade. Fica a lição de um homem (que) em 90 anos de vida ensinou-nos a capacidade de indignar-se, sem ódio, a capacidade de ser

tolerante, sem intransigência. Orgulha-se o Supremo Tribunal Federal de ter

a passagem de Evandro Lins e Silva pela Casa, como página luminosa de sua história’95.

95 Pleno do STF presta homenagem ao ministro Evandro Lins e Silva. Solicitado em:<[email protected]>.

Acesso em: setembro de 2004.

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INTRODUÇÃO AO RELATÓRIO FINAL

O aspecto fundamental do primeiro relatório foi a análise do contexto histórico,

político e social da década de 1960. Como suporte para essa análise estudou-se, do ponto de

vista teórico, o ordenamento jurídico do período correspondente, tendo por base as

Constituições de 1946, de 1967 e os Atos Institucionais. Além disso, uma pesquisa

quantitativa foi elaborada, na qual uma série de variáveis relacionadas à atuação judicante do

ministro Evandro Lins foi computada.

Pois bem, neste segundo relatório, objetiva-se conhecer o modo como o Supremo

Tribunal Federal conferiu aplicabilidade às Constituições e aos Atos Institucionais, nos casos

concretos. Todos os casos que foram analisados qualitativamente neste segundo relatório

foram decididos pelo Supremo no ano de 1968, ano no qual toda a pesquisa quantitativa se

baseou, isto porque foi neste ano que se chegou ao auge do autoritarismo e também pelo fato

de que foi o último ano em que o ministro Evandro Lins proferiu votos no Supremo, na

medida em que já foi aposentado no início de 1969.

Ressalta-se que 613 acórdãos de 1968 foram analisados do ponto de vista quantitativo.

Nesta pesquisa quantitativa encontra-se um panorama da atuação judicante do ministro

Evandro Lins, a qual será discutida neste relatório.

Paralelamente a esta discussão, foram analisados 15 acórdãos, oriundos na pesquisa

quantitativa, já que, dentre os 212 acórdãos nos quais o ministro proferiu seu voto, 15 foram

selecionados, pois foi considerado que neles o ministro revelou sua ideologia, suas convicções

políticas.

A análise desses 15 acórdãos envolveu os votos de todos os membros do Supremo, a

fim de que pudessem ser estabelecidas comparações com as conclusões a que chegou o

ministro Evandro Lins. Para tanto, estudou-se a composição do Supremo em 1968. Porém,

observa-se que a análise dos votos do ministro Evandro Lins foi a mais profunda, visto ser ele

o personagem central do trabalho.

A partir da discussão da pesquisa quantitativa e dos 15 acórdãos e levando-se em conta

o contexto histórico e político do país na época dos julgamentos e os próprios depoimentos de

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Evandro Lins e Silva, em suas entrevistas para o CPDOC (O Salão dos Passos Perdidos:

depoimento ao CPDOC) e para a TV Justiça (Documentário “As Chaves da Democracia – A

resistência do Supremo Tribunal Federal em tempos de opressão” transmitido pela TV

Justiça) pretende-se responder à seguinte questão: As decisões do ministro Evandro Lins

levaram de algum modo à sua aposentadoria compulsória?

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COMPOSIÇÃO DA CORTE EM 1968

No presente tópico, intenciona-se construir um panorama da composição do Supremo

Tribunal Federal em 1968. Afinal, quais eram os ministros que proferiam votos na mais alta

Corte do país? Quais foram os traços gerais de suas carreiras profissionais? Quais os pontos

de convergência entre as histórias dos ministros? Por quais presidentes da República haviam

sido nomeados?

Adalício Coelho Nogueira, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar de Andrade Baleeiro,

Antônio Carlos Lafayette de Andrada, Antônio Gonçalves de Oliveira, Carlos Thompson

Flores, Djaci Alves Falcão, Elói José da Rocha, Evandro Cavalcanti Lins e Silva, Hermes

Lima, Luís Gallotti, Moacir Amaral Santos, Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, Rafael

de Barros Monteiro, Temístocles Brandão Cavalcanti e Vítor Nunes Leal, os homens do

Supremo Tribunal Federal em 1968.

Alguns haviam ingressado na magistratura. Lafayette de Andrada fora juiz de direito,

desembargador e integrou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sendo que em 1946 chegou a

ser membro efetivo do TSE e seu presidente entre fevereiro de 1947 e outubro de 1950.

Também Djaci Falcão ingressara na magistratura e fora desembargador do Tribunal de Justiça

de Pernambuco em 1957. Integrara o Tribunal Superior Eleitoral, sendo que fora, em 1972,

seu vice-presidente e presidente. Luís Gallotti também exerceu cargo de juiz no TSE, sendo

seu presidente de setembro de 1955 a janeiro de 1957. Vítor Nunes Leal fora designado, em

1966, para compor o Tribunal Superior Eleitoral. Rafael de Barros Monteiro ingressou na

magistratura no estado de São Paulo em 1935, sendo em 1949 nomeado desembargador do

Tribunal de Justiça de São Paulo e seu presidente em 1965. Fez parte do Tribunal Regional

Eleitoral de São Paulo e integrou o Tribunal Superior Eleitoral, sendo seu vice-presidente em

1971 e presidente em 1973. Adalício Nogueira fora juiz de direito, desembargador em 1944,

presidiu o Tribunal Regional Eleitoral baiano de 1950 a 1954 e fora presidente do Tribunal de

Justiça da Bahia de 1962 a 1963. Antônio Gonçalves de Oliveira integrou o Tribunal Superior

Eleitoral durante as sessões de abril a maio de 1955. Elói da Rocha fora nomeado em 1928

juiz municipal da comarca de São Francisco de Paula, Rio Grande do Sul, cargo que exerceu

até 1930. Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, em 1961, foi nomeado ministro do

Tribunal Superior Eleitoral, cargo que exerceu por quatro anos. Carlos Thompson Flores, em

1933, fora nomeado juiz distrital. Ainda durante este ano, fora juiz de paz e juiz municipal.

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Durante os anos 1945 e 1946, fora juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul.

Anos mais tarde, em 1953, foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul sendo, em 1964, seu vice-presidente e presidente. De 1956 a 1960, foi corregedor-geral

da Justiça e a partir de 1972, foi membro de Tribunal Superior Eleitoral, tendo sido seu

presidente no ano de 1973.

Outros haviam exercido destacada atividade política. Alguns foram fundadores de

partidos políticos, outros foram deputados, vereadores etc. Interessante notar que muitos dos

integrantes do Supremo haviam tido ligação com o partido União Democrática Nacional

(UDN), partido este fundado numa solenidade oficial na Associação Brasileira de Imprensa

no Rio de Janeiro, no dia 7 de abril de 1945, mas que somente obteve registro definitivo como

partido político em 10 de novembro, sendo seu programa e estatutos aprovados, em definitivo,

em agosto. Ora, quais eram os aspectos relevantes da UDN? Desde a fundação, o princípio

básico do partido era a crítica a Getúlio Vargas96. O grupo que fundara a UDN reunia a maior

parte dos opositores de Vargas, apesar de ser heterogêneo97.

96 Em 1929 teve início a campanha para a sucessão do presidente Washington Luís, que indicou a candidatura do

paulista Júlio Prestes, ao invés do mineiro Antônio Carlos. Diante de tal situação, Antônio Carlos aproximou-se

das oligarquias gaúchas e, com isso, articulou-se a candidatura de Getúlio Vargas. Apesar de terem atraído o

apoio das camadas urbanas e de oligarquias dissidentes, como os tenentes, o resultado eleitoral foi favorável a

Júlio Prestes. Foi então que eclodiu, em Porto Alegre, a revolução de 1930, sendo entregue o governo, em novembro deste ano, a Getúlio Vargas. Era o início da Era Vargas. Já o Estado Novo foi instaurado em

novembro de 1937 pelo presidente Getúlio Vargas. Em maio de 1945, por decreto presidencial, foram

convocadas eleições para presidente da República e para a Assembléia Constituinte, a serem realizadas em

dezembro. Em outubro de 1945, foi articulado, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que contava com o apoio dos

comunistas, o Movimento Queremista, cujo lema era “constituinte com Getúlio”. Este movimento objetivava

adiar a eleição presidencial para depois da aprovação da nova Constituição. Com isso, persistiam temores de que

Vargas continuaria no poder e esta suposição, somada a algumas medidas governamentais, fizeram com que

Vargas perdesse o apoio das elites dominantes e das forças armadas. Com isso, acabou sendo deposto por um

movimento militar chefiado pelo ministro da Guerra, general Góis Monteiro, e o poder foi entregue a José

Linhares, então presidente do Supremo Tribunal Federal, que chegou a presidir o processo eleitoral, no qual o

general Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Getúlio, foi o candidato vitorioso. Ainda assim, Vargas voltaria a assumir a presidência da República. Nas eleições de outubro de 1950, apoiado pelo Partido Trabalhista

Brasileiro, foi eleito presidente. Entretanto, em meio à crise político-militar, o presidente Getúlio suicidou-se, em

24 de agosto de 1954, sendo substituído pelo vice-presidente João Café Filho. 97 Em 1943, surgiu a idéia da criação de um partido capaz de agrupar as diferentes correntes anti-Estado Novo.

Assim sendo, foi articulada a criação de um partido com caráter nacional e capacidade de agrupar as diversas

oposições. Para tanto, a articulação buscou um candidato à presidência que estabelecesse o consenso entre as

correntes heterogêneas que comporiam o partido. O brigadeiro Eduardo Gomes, ex-“tenente” foi o escolhido

como candidato à sucessão presidencial, cujas eleições foram marcadas para dezembro de 1945. Concorreria

com ele Eurico Gaspar Dutra, candidato da situação. Neste contexto de agregar a oposição a Vargas, a União

Democrática Nacional foi fundada. Pouco tempo depois, foi fundado o Partido Social Democrático (PSD),

criação esta que, segundo Maria do Carmo Campelo de Sousa, “...foi uma iniciativa tomada com o beneplácito,

senão por orientação direta de Vargas, que desejaria preparar-se para a nova situação política do país...”. Ainda, em meados de maio surgiu um terceiro partido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Com relação à UDN,

ressalta-se que, graças à heterogeneidade do seu grupo formador, “...alguns setores se desligaram, formando

pequenos partidos. Assim, a facção mineira vinculada ao ex-presidente Artur Bernardes constituiu o Partido

Republicano (PR), enquanto os gaúchos liderados por Raul Pilla se afastaram para formar o Partido Libertador

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Aliomar Baleeiro fundou a UDN baiana, após o surgimento da UDN do Rio de

Janeiro, sendo que foi um dos principais expoentes de oposição a Vargas. Na legenda da

UDN, elegeu-se deputado pela Bahia à Assembléia Nacional Constituinte, em 1945, sendo

que, em 1946, integrou, na Assembléia, a Comissão Constitucional, encarregada de elaborar o

projeto de Constituição.

Por causa das críticas reiteradas ao governo Vargas, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio

Cardoso e alguns outros colegas ficaram conhecidos como a “Banda da Música da UDN”.

Ainda na legenda da UDN, elegeu-se deputado constituinte do estado de Guanabara, no dia 3

de outubro de 1960.

Adauto Lúcio Cardoso, que também se destacou pela sua posição de opositor de

Vargas, em janeiro de 1947 elegeu-se vereador no Distrito Federal na legenda da UDN; em

outubro de 1954 foi eleito deputado federal e em outubro de 1958, reeleito. Em abril de 1955

foi eleito vice-presidente da UDN, sendo, em junho de 1960, escolhido para a vice-liderança

do partido na Câmara dos Deputados.

Também Evandro Lins98 teve ligação com a UDN. Em 1945 foi um dos signatários da

ata de fundação do partido. Posteriormente, fora membro da organização política Esquerda

Democrática, a qual defendia o socialismo com liberdade, criada em junho de 1945, que atuou

em associação99 com a UDN. Ainda, pertenceu durante algum tempo ao Partido Socialista

Brasileiro, que sucedeu a Esquerda Democrática. Trajetória semelhante à de Evandro teve

(PL). Embora desligados da UDN, esses dois partidos mantiveram o apoio integral à candidatura Eduardo

Gomes, formando as chamadas “Oposições Coligadas”. Em setembro, Ademar de Barros abandonaria a UDN,

organizando em São Paulo o Partido Republicano Progressista (PRP), depois chamado Partido Social

Progressista (PSP). A Esquerda Democrática, movimento de tendência socialista que também manteve ligações com a UDN em 1945, viria a se transformar em partido autônomo no ano seguinte, adotando em 1947 o nome de

Partido Socialista Brasileiro (PSB)”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 2921. 98 Em 1936, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criado o Tribunal de Segurança Nacional (TSN), cuja

finalidade era o julgamento de envolvidos na revolta comunista de novembro de 1935. Em 1937, com a

decretação do Estado Novo, sua competência foi ampliada e, com isso, os indiciados no movimento integralista

de maio de 1938 e, posteriormente, os processos de espionagem relacionados à segunda Guerra Mundial (1939-

1945) passaram a ser julgados por este Tribunal. Observa-se que Evandro Lins defendeu, a partir de 1936,

grande número de presos políticos, tanto comunistas quanto integralistas. 99 Amélia Coutinho afirma que, segundo Maria Vitória Benevides, a União Democrática Nacional (UDN) e a

Esquerda Democrática (ED) nunca foram integradas, embora entre elas tivesse sido estabelecida uma coligação,

que apoiou a candidatura de Eduardo Gomes à presidência. A aliança entre as duas agremiações era benéfica, na

medida em que a ED era capaz de melhorar a imagem conservadora que marcava a UDN. Afinal, a ED era formada por “...conhecidos intelectuais, elementos de prestígio de tradição tenentista e socialistas democráticos”.

De outra parte, a ED se utilizava do vínculo com a UDN para “...driblar a nova Lei Eleitoral, de 28 de maio de

1945, que exigia o mínimo de dez mil assinaturas, em pelo menos cinco estados, para o registro de partidos

nacionais”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 3151.

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Hermes Lima, que também participou da fundação da União Democrática Nacional e,

posteriormente, fora membro do grupo que fundou a Esquerda Democrática, tendo, em agosto

de 1947, integrado, ao lado de colegas socialistas da ED, o grupo trotskista que era liderado

por Mário Pedrosa. A fusão da Esquerda Democrática com este grupo trotskista culminou no

surgimento do Partido Socialista Brasileiro, cujo programa tinha por base a transformação da

estrutura da sociedade brasileira, o que seria obtido com a progressiva socialização dos meios

de produção. Esta socialização seria realizada de maneira gradual, à medida em que o país

necessitasse, o que levou os trotskistas a considerarem essa postura reformista e, com isso, em

1948 houve a cisão do partido. Ainda com relação a Hermes Lima, cabe ressaltar sua agitada

trajetória política: em 1924, foi eleito deputado estadual na legenda do partido Concentração

Republicana da Bahia; foi relacionado com a frente política ligada ao Partido Comunista

Brasileiro (à época, Partido Comunista do Brasil), que englobou os intelectuais liberais e

socialistas, conhecida como Aliança Nacional Libertadora, que, no início do ano de 1935,

fazia oposição ao movimento integralista. Luís Carlos Prestes, presidente de honra da

entidade, divulgou manifesto no qual se pregava a insurreição e clamava-se pela concentração

de poderes à ANL. Com a radicalização de suas posições políticas, a entidade acabou por ser

fechada em julho de 1935. Na clandestinidade, a frente política passou a se preparar para

depor Vargas através de um movimento armado, o qual eclodiu em novembro de 1935, em

Natal, tendo os rebeldes ocupado, por quatro dias, o governo do Rio Grande do Norte.

No dia 24 a insurreição eclodiu em Pernambuco, onde a luta durou dois dias.

No Rio, o movimento só começou na madrugada do dia 27, com o levante da

Escola de Aviação Militar e do 3º Regimento de Infantaria (3º RI), sendo

entretanto esmagado em poucas horas. Na onda repressiva que se seguiu à insurreição, Hermes Lima foi imediatamente preso (...) e permaneceu preso

durante 13 meses, sem processo e sem julgamento100.

Anos mais tarde, em 1946, foi eleito para a Assembléia Nacional Constituinte, pela

legenda da UDN do Distrito Federal. Em fevereiro de 1946, durante o exercício de seu

mandato, foi designado membro da comissão que organizaria o anteprojeto de Constituição,

ponto de convergência entre a história de Hermes Lima e de Aliomar Baleeiro. Participara da

comissão como membro da sub-comissão relacionada à ordem econômica e social. Quatro

anos depois, nas eleições de outubro de 1950, candidatou-se à Câmara Federal, obtendo

100 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 3150.

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somente uma suplência. Com isso, no final de janeiro de 1951, ao final de seu mandato,

deixou a Câmara. Em 1953 entrou para o Partido Trabalhista Brasileiro, a convite de

Francisco de San Tiago Dantas.

Moacir Amaral Santos, em 1945, também participou da fundação da União

Democrática Nacional, partido ao qual permaneceu vinculado até sua extinção, em 1965.

Também Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo foi um dos fundadores da UDN e pela

legenda desse partido elegeu-se governador da Paraíba em janeiro de 1947 e deputado federal

pela Paraíba, em outubro de 1950.

Já outros membros haviam sido ligados a Vargas, como Temístocles Cavalcanti que

fora nomeado por Getúlio, em dezembro de 1930, procurador do Tribunal Especial101, que,

em dezembro de 1931, fora nomeado procurador-da-República, que fora indicado em 1932,

após a Revolução Constitucionalista de São Paulo, para integrar a Comissão do Itamarati,

criada com a finalidade de elaborar um anteprojeto de uma nova Constituição, promulgada em

julho de 1934 e que, em maio de 1945, fora nomeado por Vargas consultor-geral da

República. Já em 1946, Temístocles foi nomeado procurador-geral da República pelo

presidente general Eurico Gaspar Dutra e ainda, em 1946, foi nomeado procurador-geral da

Justiça Eleitoral. Em maio de 1955, foi nomeado pelo presidente João Café Filho consultor-

geral da República e, em 1960, foi eleito deputado à Assembléia Constituinte da Guanabara

na legenda da UDN, juntamente com Aliomar Baleeiro.

Trajetória diferente teve Elói da Rocha, que apesar de ter se apresentado como

voluntário aos comandantes revolucionários de Porto Alegre, durante a Revolução de 1930,

após a instauração do Governo Provisório, uniu-se aos que pressionaram Vargas a orientar o

regime para um caminho liberal. Sem perspectiva de ver seu objetivo atendido, rompeu com o

governo e em 1932 apoiou a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Em dezembro de

1945, elegeu-se na legenda do Partido Social Democrático deputado à Assembléia Nacional

Constituinte pelo Rio Grande do Sul – Baleeiro havia sido eleito pela Bahia. Já Moacir

Amaral Santos chegou a combater junto às forças paulistas na Revolução Constitucionalista

de São Paulo, em 1932.

101 O Tribunal Especial havia sido criado com a finalidade de apurar e julgar supostos fatos irregulares ocorridos

no país durante o governo do presidente Washington Luís.

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Luís Gallotti fora, em 1927, eleito deputado à Câmara estadual de Santa Catarina; em

1928, um dos signatários da terceira Constituição de Santa Catarina; em 1929, procurador-da-

República no Distrito Federal; em 1934, após a reconstitucionalização do país, integrou a

Comissão Revisora dos Atos do Governo Provisório. Já em junho de 1947, com a criação do

Tribunal Federal de Recursos, fora designado subprocurador-geral da República. Em outubro,

foi nomeado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra procurador-geral da República, em

substituição a Temístocles Cavalcanti.

Alguns outros marcos históricos também podem ser relacionados às trajetórias dos

ministros de 1968.

Vargas suicidou-se em agosto de 1954 e, então, assumiu o vice João Café Filho. Um

ano depois, em agosto de 1955, foi criado um movimento que ficou conhecido como Liga de

Defesa da Legalidade, do qual fizeram parte Evandro Lins e Vítor Nunes Leal, dentre outros.

As eleições presidenciais estavam previstas para 3 de outubro de 1955 e participariam

do pleito Juscelino Kubitschek, candidato a presidente, e João Goulart, candidato a vice. Os

candidatos obtiveram apoio de uma coligação formada pelo Partido Social Democrático e

pelo Partido Trabalhista Brasileiro.

Em favor da defesa da Constituição estava a Liga de Defesa da Legalidade. De outra

parte, a UDN, aliada a setores militares, visava impedir a participação dos candidatos à

eleição, a fim de justificar um golpe para favorecer a UDN e os setores a ela ligados, e

impedir o retorno do getulismo ao poder.

Com isso, Evandro, um dos principais articuladores da Liga, enviou, em setembro de

1955, uma carta ao almirante Edmundo João Amorim do Vale, ministro da Marinha, a fim de

que ele se pronunciasse em defesa da Constituição.

O calendário de eleição foi mantido e Juscelino e Goulart venceram em outubro de

1955. Com isso, a UDN tentou contestar a legitimidade da vitória dos candidatos, levantando

a tese de que os candidatos não haviam obtido a maioria absoluta dos votos. Ainda, os

udenistas, como o então deputado Carlos Lacerda, faziam apelos às forças armadas, a fim de

que impedissem a posse dos candidatos eleitos. Os rumores de golpe intensificaram-se. No dia

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8 de novembro, o presidente Café Filho, por motivo de saúde, se licenciou e, com isso,

assumiu a presidência Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, que era identificado

com a corrente golpista. Apesar de todas as conspirações, a tentativa de golpe foi afastada

pelo Movimento de 11 de novembro, chefiado pelo general Henrique Teixeira Lott, que havia

se exonerado do Ministério da Guerra na véspera, responsável pelo afastamento do então

presidente Carlos Luz, suspeito de estar envolvido na conspiração que levaria ao golpe. Com

isso, Carlos Luz foi substituído por Nereu Ramos, vice-presidente do Senado.

Pois bem, Vítor Nunes e Evandro Lins integraram a Liga de Defesa da Legalidade e,

mais tarde, ocuparam cargos de confiança, respectivamente, nos governos de Juscelino e de

Goulart.

Vítor Nunes Leal exerceu as funções de procurador-geral da justiça do Distrito Federal

entre março e novembro de 1956. Posteriormente, assumiu a chefia do Gabinete Civil do

presidente Juscelino, deixando o cargo em agosto de 1959. Foi nomeado advogado da

prefeitura do Rio de Janeiro, procurador de contas de Brasília e consultor-geral de República,

cargo que exerceu de fevereiro a outubro de 1960. Antônio Gonçalves de Oliveira, no começo

do mandato de Juscelino, em 1956, também fora nomeado consultor-geral da República,

tendo exercido o cargo por quatro anos. Anteriormente, em 1938, fora promotor público no

Rio de Janeiro e consultor-geral da República, de setembro de 1954 a março de 1955, durante

o governo de João Café Filho.

Evandro Lins, durante o governo Goulart, fora procurador-geral da República, chefiou

o Gabinete Civil e foi ministro das Relações Exteriores.

Hermes Lima também exerceu diversos cargos de confiança durante o governo

Goulart. Jânio Quadros renunciou à presidência em agosto de 1961 e, duas semanas depois,

instituído o regime parlamentarista no país, Goulart foi empossado. Tancredo Neves foi

nomeado primeiro-ministro e Hermes Lima passou a chefiar o Gabinete Civil da Presidência

da República, tendo assumido o cargo em setembro de 1961. Meses depois, em junho de

1962, Tancredo renunciou, provocando um novo período de instabilidade política. Para

substituí-lo, fora proposta a nomeação de Francisco de San Tiago Dantas, que tinha o apoio

do movimento sindical, mas cujo nome foi recusado na Câmara dos Deputados. Com isso,

Goulart propôs ao Congresso o nome do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, cujo

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nome fora aprovado em julho, mas que, devido à recusa de Goulart em aprovar o gabinete por

ele proposto, renunciou dois dias depois. Em substituição, fora proposto o nome de Francisco

de Paula Brochado da Rocha, nome aprovado pelo Congresso no dia 10 de julho, tendo sido,

assim, solucionado o impasse. O novo ministério fora homologado no dia 13. Neste período,

Hermes Lima foi substituído na chefia do Gabinete Civil, passando a ocupar a pasta do

Trabalho.

Levando em consideração a intenção de Goulart em restaurar o regime

presidencialista, Brochado da Rocha encaminhou ao Congresso uma proposta, cujo objetivo

era antecipar para 7 de outubro de 1962 o plebiscito, inicialmente previsto para abril de 1965,

pelo qual seria decidido sobre a permanência do parlamentarismo. Brochado da Rocha teve

seu projeto rejeitado e, com isso, junto com todo o gabinete renunciou, no dia 14 de setembro.

A renúncia, seguida de uma greve geral que fora decretada pelo Comando Geral dos

Trabalhadores, gerou, por parte do Congresso, a necessidade de revisar suas posições, sendo,

com isso, aprovada no dia 15 de setembro a Lei Complementar Capanema-Valadares,

responsável pela antecipação do plebiscito para 6 de janeiro de 1963.

Com isso, Goulart teve de formar um gabinete interino, o qual atuaria até que o

plebiscito fosse realizado. Para tanto, Hermes Lima foi nomeado, no dia 18 de setembro de

1962, primeiro-ministro e, cumulativamente, seis dias depois, foi nomeado ministro das

Relações Exteriores.

De difícil trânsito na bancada do PTB, que o tinha na conta de muito

moderado, só no dia 29 de novembro, depois de seis votações, o nome de Hermes Lima recebeu a sanção parlamentar. Segundo o jornalista Carlos

Castelo Branco, Goulart o indicou para o cargo dado o reflexo favorável que

seu nome provocava fora da área governista102.

A partir da realização do plebiscito, o país voltou a ter um regime presidencialista e,

com isso, Hermes Lima permaneceu exercendo as funções de primeiro-ministro até o dia 23

de janeiro de 1963, quando da revogação da Emenda Constitucional nº 4, que fora responsável

102 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 3153.

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por instituir no país o parlamentarismo. Depois da emenda ser revogada, Hermes Lima

continuou a ser titular da pasta das Relações Exteriores.

Apesar do retorno do regime presidencialista, permanecia a instabilidade política no

país.

Nessa época, o ministério de Goulart sofria incessantes ataques da ala radical

do PTB, liderada pelo então deputado Leonel Brizola, cunhado do presidente, e por outros setores da esquerda. Dirigidos sistematicamente

contra San Tiago Dantas (ministro da Fazenda), Amauri Kruel (ministro da

Guerra) e Antônio Balbino (ministro da Indústria e Comércio), os ataques da

esquerda provocaram a necessidade de uma reformulação ministerial, que veio a ocorrer a 23 de junho de 1963. O Ministério das Relações Exteriores

passou então a ser ocupado por Evandro Lins e Silva e Hermes Lima três

dias depois foi nomeado para o STF (...)103.

Ressalta-se que a “Banda da Música” da UDN, composta por Aliomar Baleeiro e

Adauto Lúcio Cardoso, dentre outros, voltou a tocar durante a presidência de Juscelino

Kubitschek – a oposição feita pela banda era ferrenha. Ainda, tanto Baleeiro quanto Adauto

destacaram-se por assumirem uma postura de adversários do presidente Goulart e por

participarem dos preparativos que levaram ao movimento que depôs Goulart. Afinal, os

líderes da UDN, no ano de 1963, entraram em contato com militares contrários a Goulart.

Adauto Lúcio Cardoso manteve contatos com o general Humberto de Alencar Castelo Branco

e com outros chefes militares desde novembro de 1963, sendo que o último desses contatos

ocorreu em março de 1964, ficando combinado que o movimento deflagraria no dia 2 de abril,

data que fora antecipada por iniciativa dos generais Olímpio Mourão Filho104 e Carlos Luís

Guedes105.

Já Baleeiro, em outubro de 1963, junto com Olavo Bilac Pinto estabeleceu contato

com o general Castelo Branco e neste primeiro encontro ficou acordado que as forças armadas

deveriam ficar em alerta contra o governo. Baleeiro voltou a se encontrar com Castelo no dia

103 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 3153. 104 Olímpio Mourão Filho era comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais. 105 Carlos Luís Guedes era comandante da Infantaria Divisionária da 4ª Região Militar, sediada em Belo

Horizonte, Minas Gerais.

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14 de março de 1964 para informá-lo de que o general Amauri Kruel, comandante do II

Exército, apoiaria o movimento contra Goulart.

Deposto Goulart, em fevereiro de 1965, Adauto foi escolhido presidente do Bloco

Parlamentar Revolucionário, o qual era formado por parlamentares que apoiavam o novo

regime. Em março, foi designado para assessorar, na coordenação das eleições de nove

Estados, marcadas para outubro, Luís Viana Filho, chefe do Gabinete Civil de Castelo.

De outra parte, Baleeiro, de abril de 1964 a novembro de 1965, foi um dos mais

próximos colaboradores de Castelo.

Do exposto, percebe-se que apesar da trajetória profissional dos ministros de 1968 ser

diferente, muitas vezes tangenciam-se, convergem em pontos comuns, em semelhanças entre

as carreiras profissionais e políticas, entre as ideologias que acompanharam a vida dos

homens de 1968. Pois bem, ainda assim, após este panorama, há que se apontar por quais

presidentes os membros do Supremo haviam sido nomeados.

Antônio Carlos Lafayette de Andrada foi nomeado por José Linhares, que era

presidente do Supremo Tribunal Federal. Quando Getúlio foi deposto, Linhares assumiu a

presidência da República, no dia 29 de outubro de 1945. Lafayette de Andrada tomou posse

no dia 8 de novembro de 1945 e pediu sua aposentadoria no dia 17 de janeiro de 1969. Entrou

para a história como um ministro que pediu a aposentadoria em protesto contra a

aposentadoria compulsória de Vítor Nunes, Hermes Lima e Evandro Lins.

Alguns anos mais tarde, ingressou no Supremo Luís Gallotti, que tomou posse em 22

de setembro de 1949 e aposentou-se no dia 15 de agosto de 1974. Observa-se que, de

dezembro de 1966 a dezembro de 1968 foi o presidente da Corte, sendo que, ao “...assumir o

cargo, justificou o uso das armas em 1964, ressalvando, porém, o dever do tribunal em não

permitir que ‘o ruído das armas o impedisse de ouvir a voz das leis’”106.

Já em 1960, passaram a integrar a Corte Antônio Gonçalves de Oliveira e Vítor Nunes

Leal, ambos nomeados por Juscelino Kubitschek. Tomaram posse, respectivamente, em 15 de

106 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 2468.

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fevereiro e 7 de dezembro de 1960. Gonçalves de Oliveira107, assim como Lafayette de

Andrada, entrou para a história como um dos ministros que se aposentou para protestar contra

a medida excepcional do governo militar, de interferir no número de integrantes do Supremo.

Deixou o Tribunal no dia 17 de janeiro de 1969. Já Vítor Nunes entrou para a história como

sendo um dos ministros aposentados no dia 16 de janeiro de 1969.

Também foram aposentados pela medida arbitrária Hermes Lima e Evandro Lins,

ambos nomeados pelo presidente João Goulart, respectivamente, nos dias 26 de junho e 4 de

setembro de 1963. Ambos foram aposentados no dia 16 de janeiro de 1969, assim como Vítor

Nunes.

No dia 25 de novembro de 1965, três novos nomes tomaram posse no Supremo.

Adalício Coelho Nogueira, Aliomar de Andrade Baleeiro108 e Oswaldo Trigueiro de

Albuquerque Melo aceitaram o convite feito pelo presidente Castelo Branco e ocuparam as

cadeiras criadas no Supremo com a edição do Ato Institucional nº 2, que elevou o número de

integrantes da Corte de 11 para 16. Haviam recusado as vagas, em sinal de protesto contra o

AI-2, Milton Campos, Pedro Aleixo e Adauto Lúcio Cardoso109, que fora novamente

107 Gonçalves de Oliveira assumiu a presidência do Supremo no dia 12 de dezembro de 1968. Trinta e sete dias

depois renunciou ao cargo. 108 Segundo Paulo Brandi, Baleeiro, durante sua permanência no Supremo “...distinguiu-se como um dos

principais defensores das liberdades públicas, principalmente após a decretação do AI-5...”. Assumiu, em

fevereiro de 1969 a vice-presidência do Supremo, sendo, em 1971, seu presidente. Ainda, de acordo com o

comentarista, “...a exemplo de outros liberais que haviam apoiado o movimento de 1964, desiludiu-se com o

regime dele decorrente, tornando-se um de seus mais contundentes críticos. Em fevereiro de 1971, Baleeiro

assumiu a presidência do STF (...) Em dezembro de 1972, fez um dos primeiros pronunciamentos públicos

contra o AI-5, denunciando as restrições ao Judiciário pela legislação de exceção, e comparando o ato a ‘uma

espada de Dâmocles sobre a Justiça brasileira’. Em 7 de fevereiro de 1973, ao deixar a presidência do STF,

Baleeiro defendeu a volta ao estado de direito e a imediata concessão de garantias para o livre exercício

profissional dos advogados de presos políticos (...) Em 2 de maio de 1975 Baleeiro deixou o STF, por motivo de

saúde (...) Nos anos seguintes (...) defendeu insistentemente a volta ao estado de direito em inúmeros artigos, entrevistas e conferências”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 463. 109 Adauto Cardoso recusou-se a assumir uma das vagas criadas pelo AI-2 “...alegando que preferia disputar as

eleições para um novo mandato de deputado. Ainda no final de 1965, obteve a indicação para disputar a

presidência da Câmara dos Deputados, pelo bloco parlamentar governista (...) Em março de 1966 foi eleito

presidente da Câmara dos Deputados” In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 1078. No início

de 1966, quando da criação dos novos partidos políticos – Aliança Renovadora Nacional (Arena), que apoiava o

regime militar, e Movimento Democrático Nacional (MDB), que se opunha à situação, filiou-se à Arena, sendo

seu primeiro presidente no Estado da Guanabara. Em outubro, Castelo cassou o mandato de seis parlamentares

da oposição. Adauto estava no Rio de Janeiro, em campanha eleitoral. Retornou a Brasília, reassumiu a

presidência da Câmara, não reconheceu a cassação dos parlamentares, que continuaram a participar das sessões

na Câmara, fato que levou à decretação de recesso do Congresso Nacional, até 20 de novembro.

“Simultaneamente, uma tropa de choque da Polícia Militar (...) cercou e invadiu o Congresso, obrigando os parlamentares ali presentes a se retirarem. Reaberto o Congresso um mês depois, a Comissão de Constituição e

Justiça da Câmara declarou extintos os mandatos dos parlamentares cassados. Em represália, Adauto Cardoso

renunciou, em 28 de novembro, à presidência da casa”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930.

p. 1079.

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convidado por Castelo, não mais para ocupar as vagas criadas pelo AI-2, e acabou tomando

posse no dia 2 de março de 1967 e aposentando-se em 19 de março de 1971110.

Além dessas quatro cadeiras, Castelo preencheu mais duas. Nomeou Elói José da

Rocha, que tomou posse em 15 de setembro de 1966 e se aposentou no dia 3 de junho de

1977, e Djaci Alves Falcão, que tomou posse em 22 de fevereiro de 1967 e aposentou-se em

30 de janeiro de 1989.

Por fim, o quadro de integrantes do Supremo de 1968 fora completado com a

nomeação de mais quatro ministros pelo presidente Costa e Silva. Rafael de Barros Monteiro

tomou posse em 7 de julho de 1967, tendo falecido em 1974, quando ainda exercia o cargo;

Moacir Amaral Santos, que fora empossado em 18 de outubro de 1967 e que se aposentou no

dia 25 de julho de 1972; Themístocles Brandão Cavalcanti, que tomou posse em 18 de

outubro de 1967 e aposentou-se em 14 de outubro de 1969, e Carlos Thompon Flores, cuja

posse foi no dia 14 de março de 1968. Aposentou-se em 26 de janeiro de 1981.

Foram estes os 16 homens que proferiram votos no Supremo no ano de 1968.

Acompanhando a trajetória política do Brasil, os 16 membros não só proferiam votos, mas

antes libertavam pessoas e também as mantinham aprisionadas, davam suas opiniões jurídicas

e muitas vezes deixavam transparecer suas convicções políticas e ideológicas.

110 Ressalta-se que Adauto Cardoso “...requereu sua aposentadoria do STF, em protesto contra a decisão daquele

tribunal, que, contra o seu voto isolado, não acolheu a representação do MDB, pedindo a decretação da

inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 1.077, do presidente Emílio Garrastazu Médici, que instituía a censura

prévia a livros e periódicos”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 1079.

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CASUÍSTICA DE 1968

Feito o panorama da composição do Supremo Tribunal Federal, os seguintes acórdãos

serão analisados: HC nº 45.214, HC nº 45.215, Inquérito Policial nº 2, HC nº 45.231,

Representação nº 753, MS nº 18.973, RHC nº 45.907, Representação nº 718, RE nº 62.556,

HC nº 46.118, Reclamação nº 777, HC nº 46.415, HC nº 46.060, RHC nº 45.904 e RHC nº

46.264.

Ao todo, serão analisados 15 acórdãos do ano de 1968. Apesar de serem diferentes

(alguns se relacionam a movimento comunista, outros a movimentos estudantis, outros

apresentam um cunho político e ainda há aqueles que não se inserem em nenhuma dessas

categorias, são casos comuns) e de apresentarem peculiaridades, todos apresentam um ponto

em comum: foram selecionados a partir da pesquisa quantitativa que fora elaborada. Dentre os

acórdãos nos quais o ministro pronunciou seu voto, foram selecionados aqueles nos quais o

ministro revelou sua ideologia. São estes os acórdãos que serão objeto de análise.

Entretanto, cabe uma consideração anterior à análise dos acórdãos: o que seria revelar

ideologia política?

Primeiramente, ressalta-se o caráter subjetivo da busca por um texto no qual o ministro

tivesse revelado sua ideologia, até porque a análise se baseia numa leitura feita nos dias de

hoje. Embora a variável “revelar ideologia” não escape a um grau de subjetividade, através

dela foi possível agrupar acórdãos nos quais o ministro proferiu, de maneira a mais clara

possível, suas convicções, não político-partidárias, uma vez que o vínculo político-partidário

não está vinculado necessariamente à atuação judicante de um ministro. Para a finalidade

deste trabalho considerou-se, de modo geral, que as convicções políticas são aquelas

reveladas no momento em que o julgador ultrapassa o debate meramente jurídico do caso,

exprimindo, com isso, seus pensamentos, suas posições e idéias.

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O CASO JOSÉ GERALDO E ALMYR VELOSO

HC nº 45.214 RTJ 46/387; HC nº 45.215 RTJ 47/41

No dia 12 de março de 1968, a Segunda Turma do Supremo, na qual estavam

presentes os ministros Evandro Lins, Themistocles Cavalcanti, Adaucto Cardoso e Aliomar

Baleeiro, julgou os casos referentes a José Geraldo de Castro Amino111 e a Almyr Sozzi

Veloso112.

Ao todo, a denúncia compreendia 26 indiciados, os quais eram relacionados aos

artigos 2º, IV e 9º da lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que dispunham:

Art. 2º. Tentar:

IV – subverter, por meios violentos, a ordem política e social, com o fim de

estabelecer ditadura de classe social, de grupo ou de indivíduo; Pena: (...) no caso do item IV, reclusão de 5 a 12 anos aos cabeças, e de 3 a 5

anos aos demais agentes.

Art. 9º - Reorganizar ou tentar reorganizar, de fato ou de direito, pondo logo em funcionamento efetivo, ainda que sob falso nome ou forma simulada,

partido político ou associação dissolvidos por fôrça de disposição legal ou

fazê-lo funcionar nas mesmas condições quando legalmente suspenso. Pena: - reclusão de 2 a 5 anos; reduzida da metade, quando se tratar da

segunda parte do artigo.

A acusação apontava a relação entre os denunciados e a atividade do Partido

Comunista. Através de meios violentos eles objetivavam estabelecer uma ditadura de classe

social, de grupo ou indivíduo. Para tanto, procuravam, na clandestinidade, reorganizar o

Partido Comunista, além de executarem aliciamento, organizarem Diretório Municipal e

Organização de Bases, recolherem dinheiro e fazerem experimentos de terrorismo, como a

explosão de bombas em edifícios e lugares públicos. Portanto, de acordo com a acusação, os

denunciados exerceram atividades, principalmente na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, e

regiões circunvizinhas.

111 HC nº 45.214. RTJ 46/387. 112 HC nº 45.215. RTJ 47/41.

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Tendo em conta a participação de cada um dos envolvidos, a denúncia esclarecia os

atos por cada um deles praticado. Apontava José Geraldo de Castro Amino como ativista. Era

indicado como “...uma das mais novas revelações de aliciamento, doutrinação e captação

dos outros ativistas...”113. Já quanto a Almyr Sozzi Veloso, a denúncia afirmava ser ele

(...) um dos mais extensivos ativistas do Partido Comunista Brasileiro, nesta

cidade, vindo, desde os tempos de acadêmico de medicina até muito depois da eclosão do Movimento Revolucionário de 31.3.64, guindando, cada vez

mais, posições de relevo dentro da escala hierárquica das hostes subversivas

e comunizantes, tendo chegado, até, à chefia de fato do comunismo e da comunização nesta cidade; é ativista confesso (...) e contribuinte do PCB

(...). É um dos responsáveis pela infiltração e comunização dos Diretórios

Acadêmicos da Universidade local (...). Com a autoridade e responsabilidade de distribuição de tarefas nos vários setores de atividades sociais desta

cidade, nos moldes internacionais comunistas (...). É chefe da Organização

de Base Estudantil chamada ’25 de Março’, subordinada ao Diretório

Municipal do Partido Comunista Brasileiro nesta cidade114.

Com isso, foram os pacientes denunciados perante a Auditoria de Guerra da 4ª Região

Militar, sendo que o Auditor recusou a denúncia, argumentando que as passagens das reuniões

que foram encontradas nos autos se relacionavam com a obtenção de finanças do partido,

distribuição de tarefas, as quais não foram delimitas (quais tarefas?), críticas, problemas

relacionados com a legalização do partido, doutrina, captação de adeptos etc.

Apesar disso, o Superior Tribunal Militar determinou o recebimento da denúncia, de

acordo com o parecer da Procuradoria-Geral, que considerava que havia justa causa para a

instauração penal contra os denunciados, excluindo apenas Raimundo Nonato Lopes dos

Santos, pois, segundo o parecer, os elementos que o acusavam não eram consistentes.

Frente ao caso, em favor de José Geraldo e de Almyr Veloso, o advogado José

Roberto Machado requereu habeas corpus. Alegava que os pacientes haviam sido

denunciados frente à Auditoria, mas o Auditor havia rejeitado a denúncia; o Promotor deveria

ter recorrido dessa decisão e não da mesma apelado e a instância superior (no caso, o Superior

Tribunal Militar) não deveria ter conhecido o recurso; os fatos narrados na denúncia foram

113 RTJ 47/389. 114 RTJ 47/43.

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anteriores ao Ato Institucional nº 2 e, com isso, a Justiça Militar seria incompetente para

julgar e processar os pacientes; a denúncia era inepta e faltava justa causa para o processo na

medida em que a denúncia envolvia 26 indiciados e a todos atribuía os crimes relacionados à

lei 1.802, mas um dos co-réus havia sido excluído do processo pelo próprio Superior Tribunal

Militar; os pacientes, como a denúncia havia explicitado, eram comunistas, chefes das

organizações de base “25 de março” e teriam se reunido de maneira clandestina com

Raimundo Nonato Lopes, exatamente o indiciado que havia sido excluído do processo. Em

resumo, a defesa procurava alegar o caráter pessoal da denúncia, na medida em que diversas

pessoas que também haviam confessado suas participações nas reuniões consideradas

subversivas, não foram denunciadas.

Após fazer o relatório, o ministro Evandro Lins passou à análise do caso, em seu voto.

Recordou as razões pelas quais teria havido o despacho de rejeição da denúncia, que eram as

seguintes: o art. 2º, IV da lei 1.802 era um tipo legal que exigia dois requisitos, ou seja, exigia

que o crime tivesse sido pelo menos tentado e que nesta tentativa tivessem sido utilizados

meios violentos. Entretanto, com base nos autos, não havia que se falar em violência. Quando

muito teria havido atos preparatórios, como reuniões e discussões, que são penalmente

impuníveis.

Além disso, o Auditor teria enfatizado que o art. 9º da lei 1.802 exigia plena execução

do crime e não simples tentativa ou preparação e não havia que se falar que o objeto das

reuniões escapasse disso. Com relação às razões de ordem jurídica geral para a rejeição, o

Auditor afirmou ser o ser humano composto por pelo menos três personae: o cidadão, o

profissional e o familiar. Por ser cidadão, o ser humano seria titular de direitos políticos, civis,

de crença, opinião, manifestação do pensamento, nacionalidade etc. Por ser profissional, teria

direito ao trabalho, à propriedade, a exercer atividade sindical etc. Por ter a manifestação

familiar, a pessoa envolvia-se em atividades sociais, educativas, recreativas etc.

Os comunistas não foram privados de suas personaes. Ao contrário, como cidadãos

brasileiros, a lei lhes garantia o pleno gozo de seus direitos. Obrigatoriamente, participariam

no processo eleitoral e, com isso, teriam direito de debater e participar em atividade política e

partidária. Enquanto trabalhadores e sindicalizados, os comunistas poderiam participar em

atividade classista. Como estudantes, os comunistas não estariam inibidos a participar de

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qualquer movimento. Ainda, os comunistas, por lei, poderiam desenvolver suas ações

pessoais nos clubes, associações e entidades de qualquer espécie.

O Auditor comentava sobre o ser humano por acreditar que o juiz, no caso de haver

acusação de subversão oriunda de comunistas, deveria atentar com relação aos direitos dos

mesmos.

Ressaltava o Auditor que os fatos atribuídos aos pacientes eram anteriores a 31 de

março de 1964, mas a denúncia fora oferecida depois de três anos, no dia 7 de junho de 1967.

Lembrava ainda que na data do julgamento, março de 1968, não estava mais em vigor

a lei 1.802, de 1853. Já havia sido editada a “atual” Lei de Segurança Nacional, de 11 de

março de 1967. Nesta, os limites dos tipos de delito relacionados aos pacientes haviam sido

ampliados e, com isso, a simples tentativa, independentemente de violência, era considerada

criminosa (art. 21 do dec-lei nº 314), assim como a simples tentativa de reorganização de

partido político (art. 36 do dec-lei nº 314). Apesar de não estar mais em vigor a lei 1.802, ela

ainda acompanharia os pacientes, já que a nova lei de segurança nacional não poderia ter

efeito retroativo, por não ser mais benéfica para os réus. Com isso, o Auditor procurava

limitar o caso a lei 1.802. Dessa forma, o Auditor intimava o representante do Ministério

Público para, querendo, recorrer da decisão.

Evandro, após transcrever em seu voto diversos argumentos do Auditor, com os quais

concordava, salientou o fato de a denúncia ter deixado de envolver outras pessoas que haviam

sido acusadas dos mesmos fatos atribuídos aos pacientes, o que não poderia ocorrer, visto que

a lei não conferia ao Promotor o poder de escolher dentre os acusados aqueles que iriam

abranger o procedimento penal. Entretanto, vários indiciados não foram incluídos na

denúncia, tendo sido, portanto, inobservado o princípio da indivisibilidade da ação penal.

Assim, o ministro concedia a ordem de habeas corpus para restaurar o despacho que

rejeitou a denúncia.

Em seguida, votou o ministro Themístocles Cavalcanti, que negava a ordem, dada a

complexidade do caso e porque o Superior Tribunal Militar havia recebido a denúncia.

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Após pedir vista dos autos, o ministro Adaucto Cardoso votou, acompanhando o voto

de Themístocles Cavalcanti. De acordo com seu entendimento, a complexidade do caso e o

fato do Superior Tribunal Militar ter reformado a decisão do Auditor já eram motivações

suficientes para se denegar a ordem de habeas corpus. Mas ainda existia para ele uma outra

motivação: o fato de não se encontrarem nos autos os mesmos elementos de prova que

pudessem demonstrar infração ao princípio do simultaneus processus. Caso outras pessoas

devessem ser classificadas como ativistas, por serem confessadamente comunistas e por terem

participado de reuniões e planos, essa apreciação deveria ser feita com ministração de prova

no processo regular, o qual já havia sido instaurado. Com isso, indeferia o habeas corpus.

Após o voto de Adaucto Cardoso, Evandro Lins ratificou seu voto afirmando que,

apesar de ter desenvolvido o princípio da indivisibilidade e da obrigatoriedade da ação penal,

que deve abranger todos os co-autores (princípio da simultaneus processum) haviam outros

argumentos, a seu ver, procedentes, como o fato de não haver referência na denúncia de meios

violentos para subverter a ordem política e social. Além disso, reiterou que os fatos que

envolviam José Geraldo e Almyr haviam ocorrido antes de 31 de março de 1964. Segundo o

ministro os fatos atribuídos aos pacientes não configuravam os tipos definidos na lei.

O ministro Adaucto Cardoso tomou a palavra para afirmar que no despacho de

rejeição da denúncia pelo menos a tentativa de reorganização e funcionamento do partido

comunista era um delito a ser admitido.

O ministro Evandro, por sua vez, contra-argumentava que, apesar de os

acontecimentos envolverem diversas pessoas, o Ministério Público escolheu a seu arbítrio

determinados acusados. Mantinha, assim, o seu voto anteriormente proferido.

Por fim, o ministro Aliomar Baleeiro acompanhava o voto de Evandro, afirmando:

“Na dúvida, prefiro errar no sentido da liberdade”115.

Pois bem, o caso relacionava os pacientes, comunistas, com a antiga lei de segurança

nacional (lei 1.802). O grande embate travado se relacionava com o princípio segundo o qual

a ação penal é indivisível com relação a todos os acusados. Teria a denúncia caráter pessoal?

115 A mesma passagem encontra-se publicada na RTJ 46/397, HC nº 45.214 e na RTJ 47/51, HC nº 45.215.

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Afinal, diversos acusados que foram excluídos do processo também eram confessadamente

comunistas. O Auditor argumentava nesse sentido. O ministro Evandro, valendo-se

fortemente dos argumentos trazidos à baila pelo Auditor, também concluía nesse sentido.

Afinal, o ser humano comunista não teria mais direitos, simplesmente por sua orientação

política? Evandro, valendo-se do despacho do Auditor, acreditava que não. O comunista ainda

tinha direitos, mesmo estando o Brasil sob a orientação de um regime militar, que se opunha

veementemente a qualquer orientação de esquerda. Ora, a lei deveria ser aplicada mais

fortemente aos pacientes por serem de esquerda? De acordo com as convicções de Evandro,

não. Afinal, reuniões sem o uso de violência poderiam ser feitas. Além disso, os fatos

atribuídos a José Geraldo e Almyr haviam ocorrido antes de o governo militar ser instalado e

os pacientes não haviam sido envolvidos em qualquer outro caso. Foi assim, no sentido da

liberdade, que Evandro orientou seu voto.

Juntando-se a ele Aliomar Baleeiro, ainda com dúvidas a respeito do caso, foi

concedida a ordem de habeas corpus para restaurar o despacho que rejeitou a denúncia.

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O CASO JOÃO GOULART

Inquérito Policial nº 2 RTJ 46/490

Na sessão de 27 de março de 1968, esteve na pauta de julgamento do Supremo o

inquérito-policial nº 2, no qual, dentre os indiciados, encontrava-se João Belchior Marques

Goulart.

O ministro Gonçalves de Oliveira, responsável por fazer o relatório do caso, afirmou

que nos autos de inquérito-policial militar figuravam como acusados Goulart e outros, pois,

segundo representante do Ministério Público, eles haviam cometido crime capitulado no

Código Penal. O inquérito havia sido desmembrado, na medida em que somente os acusados

que gozavam de privilégio de foro haviam permanecido no Supremo, enquanto que os

processos dos outros acusados haviam sido devolvidos à justiça de origem.

Entretanto, em petição dirigida ao ministro Gonçalves de Oliveira, o Procurador-Geral

pedia a remessa dos autos de inquérito (inclusive o que envolvia João Goulart) à Justiça

Comum da Guanabara. Fundamentava seu pedido no disposto no Ato Institucional nº 2.

O ministro Gonçalves de Oliveira, com isso, despachou a petição no dia 13 de

dezembro de 1966, para que, dessa forma, fosse submetido o pedido do representante do

Ministério Público ao Plenário do Tribunal. O ministro ainda observava que, após ter entrado

em vigor a Constituição de 1967, havia tomado o parecer da Procuradoria-Geral, que havia se

manifestado pela competência da Justiça Comum.

Pois bem, o embate no caso se relacionava com a questão da competência para o

julgamento de crime contra as pessoas que tiveram direitos políticos cassados. O conflito se

aguçava na medida em que um dos indiciados era o ex-presidente João Goulart. Como ficaria

a questão do foro privilegiado? Seria estendido ao ex-presidente?

O Ato Institucional nº 2, art. 16, dispunha que:

Art. 16 – A suspensão de direitos políticos, com base neste Ato e no art. 10 e

seu parágrafo único do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, além do

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disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6º da Lei Orgânica dos

Partidos Políticos, acarreta simultaneamente:

I – a cessação de privilégios de foro por prerrogativa de função; II – a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III – a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza

política;

IV – a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado.

Nota-se, portanto que, o Ato previa a cessação de privilégio de foro no caso de

suspensão de direitos políticos. Ressalta-se que o Ato Institucional, de acordo com sua própria

previsão, art. 33, estaria em vigor até o dia 15 de março de 1967. Sobreveio a Constituição de

1967 que, embora iniciasse um novo ordenamento jurídico, havia ressalvado, em seu artigo

173 que os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal,

baseado nos Atos, permaneceriam aprovados e excluídos de apreciação judicial116.

Quanto à competência do Supremo em relação a Presidentes da República, a

Constituição previa que competia ao Tribunal, originalmente, processar e julgar, “Art. 114

(...) I (...) (a) nos crimes comuns, o Presidente da República, os seus próprios Ministros e o

Procurador-Geral da República”. Ainda, interessante observar que o art. 114, I, “j”, conferia

ao Supremo a competência originária de processar e julgar a declaração de suspensão de

direitos políticos, na forma do art. 151, no qual era afirmado que:

Art. 151 – Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos § § 8º,

23, 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a

ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo

Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República,

sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla defesa (...).

116 Art. 173 – Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da

Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I – pelo Governo federal, com base nos Atos Institucionais nº

1, de 9 de abril de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e nº 4, de 6 de dezembro

de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais.

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Ora, João Goulart já havia tido seus direitos políticos cassados logo que o movimento

militar chegou ao poder, pelo Ato do Comando Supremo da Revolução nº 1, que fora editado

nos termos do art. 10 do Ato Institucional nº 1.

Neste sentido, a ele seria aplicado o art. 114, I, “a” da Constituição de 1967 e a súmula

394117 do Supremo? O art. 16, “a” do AI-2, ou seja, o julgamento por outro Tribunal que não

o Supremo, seria uma pena? Como os ministros resolveram a questão?

Após longo debate, realizado em sessões dos dias 20 e 27 de março de 1968, decidiu-

se pela competência da Justiça Federal, contra os votos dos ministros Gonçalves de Oliveira,

Temístocles Cavalcanti, Adaucto Cardoso, Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes e

Lafayette de Andrade.

O ministro Evandro Lins, em seu voto, reiterou o caráter transitório e excepcional do

Ato Institucional nº 2, cujas regras relacionadas ao foro não deveriam continuar a serem

aplicadas, uma vez que a Constituição de 1967 havia restabelecido a situação preexistente de

foro privativo de certas autoridades. Afirmava não ser possível argumentar que, com base no

art. 173, I da Constituição de 1967, o Ato havia se projetado no tempo. Procurava

exemplificar esta posição argumentando que o AI-2 havia deslocado, no julgamento dos

crimes políticos, a competência do foro comum para o militar e a Constituição repetiu essa

regra. Entretanto, segundo o ministro, caso essa disposição não estivesse prevista na

Constituição, o julgamento dessas infrações deveria retornar à justiça comum, uma vez que

não seria possível alargar a incidência dos Atos Institucionais a situações não reproduzidas, de

maneira taxativa, pela Constituição.

Concluía seu voto utilizando passagens do jurisconsulto Afonso Arinos de Melo

Franco (parecer enviado juntamente com o memorial do advogado) que, segundo Evandro

demonstrava que havia se restabelecido o foro privativo dos ex-Presidentes que tiveram seus

direitos políticos suspensos com base nos Atos Institucionais nº 1 e nº 2. Evandro citou

diversas passagens do parecer de Afonso Arinos. Em uma delas, ele, por meio do

jurisconsulto afirmava:

117 Súmula 394: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por

prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele

exercício”.

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Nos termos do art. 173, os atos cuja apreciação fica excluída, são, na

parte que interessa: a) “os praticados pelo Comando Supremo da Revolução

de 31 de março; b) os praticados pelo Governo Federal com base nos Atos Institucionais e Complementares”.

Os atos praticados pelo Comando Supremo da revolução são aqueles

assinados pela Junta Militar que governou o país entre 1 e 9 de abril de 1964.

Não têm qualquer relação com o assunto em exame. Os demais atos excluídos da apreciação judicial são os praticados

‘pelo governo federal’ revolucionário, isto é, pelo órgão juridicamente

instituído pela revolução como delegado dela. Ora, o AI-2 não foi expedido pelo Governo Federal como órgão

instituído, mas sim pelo Presidente da República e seus ministros, como

poder constituinte revolucionário (...)118.

Após os votos dos ministros, surgiu no caso a necessidade de uma questão de ordem,

na medida em que não havia sido alcançado o quorum mínimo de votos. Com relação a esta

questão, Evandro afirmou veementemente:

(...) Não há, no caso, argüição de inconstitucionalidade. O que se

propõe ao Tribunal é a aplicação de uma disposição da Constituição de

março de 1967. Se houvesse necessidade de quorum qualificado para fazer viger a

Constituição, nós estaríamos subvertendo o próprio estado de direito que se

instituiu com a promulgação desta Carta. Ela, ao meu ver, fez tabula rasa, revogou, suprimiu todas as disposições anteriores, mormente as disposições

de caráter emergencial, provisório, excepcional.

Pretende-se fazer viger a Constituição apenas por maioria qualificada,

o problema, data vênia, está sendo invertido: tenta-se declarar a inconstitucionalidade de uma norma que era equiparada à norma

constitucional, em virtude de uma situação emergencial.

A norma do Ato Institucional deixou de existir no dia 15.3.67. Não é possível, data vênia, fazê-la projetar no futuro. (...) Tudo aquilo que não se

reproduziu, não se repetiu na Constituição de 1967, penso que não pode

reger a vida e os destinos do País na sua estruturação jurídico-constitucional (...)119.

Observa-se, portanto, que o ministro Evandro Lins considerava que o estado de direito

havia sido instituído com a promulgação da Constituição de 1967. Neste sentido, expôs a

opinião segundo a qual o país não estava sob um regime de estado de direito antes da

Constituição de 1967, quando dos Atos Institucionais.

118 Inquérito Policial nº 2. RTJ 46/501. 119 Inquérito Policial nº 2. RTJ 46/510-511.

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Neste sentido, não colocava num mesmo patamar Atos Institucionais e Constituição,

uma vez que os Atos tinham caráter excepcional, vigoraram durante um período emergencial.

Assim sendo, para ele, as sanções que vigeram sob a égide dos Atos Institucionais não se

projetariam no tempo, a não ser no caso de elas terem sido taxativamente reproduzidas pela

Constituição, pois esta sim que deveria reger a vida e os destinos do país.

Por fim, cabe ressaltar trecho do voto do ministro Aliomar Baleeiro, no qual ele não se

ateve a questões jurídicas, expondo suas convicções políticas, a fim de saber se deveria se

declarar impedido:

Notoriamente, fui adversário político do Dr. João Marques Goulart,

durante uns 14 anos, e não sei mesmo quantas vezes me pronunciei sobre atos dele, quer como ministro do Trabalho, quer como Vice-Presidente ou,

finalmente, Presidente da República. Muitas vezes, por certo.

Devo adiantar que não tenho nenhum agravo daquele concidadão. Nas

raras vezes em que mantive contato pessoal, dele só recebi gentilezas e atitudes de inteira cordialidade, mas fiz reiteradas críticas, sobre tantos

assuntos, de seu Governo ou de seu procedimento político, que de memória

mesmo, não sou capaz de lembrar de cada uma delas. Então pergunto se sou impedido (...)120.

De fato, o ministro Aliomar Baleeiro havia sido adversário político de Goulart e, neste

caso, trouxe à baila as seguintes questões: todos os juízes do Brasil ofereciam as mesmas

garantias e a mesma segurança aos cidadãos brasileiros? Até que ponto as convicções

políticas de um julgador poderiam interferir em seus votos? No caso, entendeu-se que o

ministro não deveria se dar por impedido, uma vez que a grande questão que se debatia no

caso era técnica (saber se os Presidentes da República, que tinham foro privilegiado,

perderiam esse foro com a suspensão de direitos políticos). Com isso, o ministro pôde

pronunciar seu voto, tendo acompanhado a maioria, que decidiu pela competência da Justiça

Federal, por acreditar que os efeitos do AI-2 sobreviviam no tempo.

120 Inquérito Policial nº 2. RTJ 46/513.

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O CASO JOSÉ RODRIGUES

HC nº 45.231 RTJ 46/98

Segundo fatos apurados em um inquérito policial-militar, foram distribuídos em

organização de núcleos de subversão materiais que visavam o terrorismo. José Rodrigues

Vieira Neto e outros pacientes pretenderam, então, obter habeas corpus do Superior Tribunal

Militar, o qual não foi concedido. Com isso, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal,

tendo sido julgado pela Segunda Turma, no dia 16 de abril de 1968. Segundo informações

obtidas pelo Superior Tribunal Militar e pelo juiz auditor, o processo estava em condições de

ser julgado, pois o sumário estava quase terminado (faltava apenas a devolução das

precatórias para ouvir as testemunhas de defesa) e as alegações feitas no pedido constituiriam

matéria a ser apreciada no julgamento.

De acordo com o relatório do ministro Themístocles Cavalcanti, os pacientes foram

incluídos na denúncia oferecida pelo promotor da 5ª Auditoria Militar, em 11 de dezembro de

1967. Em virtude de fatos apurados em inquérito policial-militar, foram incursos nos artigos

23 e 26 do decreto-lei 314, de 1967 (Lei de Segurança Nacional), nos quais era afirmado:

Art. 23. Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou

subversiva: Pena – reclusão, de 2 a 4 anos.

Parágrafo único. Se a guerra sobrevém em virtude deles:

Pena – reclusão, de 4 a 12 anos.

Art. 26. Tentar desmembrar parte do território nacional, para constituir país

independente:

Pena – reclusão, de 2 a 8 anos.

Suas atitudes foram relacionadas à distribuição de material subversivo, na organização

de núcleos de subversão, que visavam à própria subversão e o terrorismo, sob orientação de

grupos de orientação comunista. Os impetrantes alegavam que os inquéritos policiais-

militares não constituíam procedimento legal para a instrução de processos da Lei de

Segurança (para isto existia a Polícia Federal) e que a denúncia não havia atribuído nenhuma

ação típica aos indiciados (não havia relação entre a acusação e a realidade dos fatos).

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Em seu voto, o ministro Themístocles Cavalcanti enfatizou que a denúncia se referia a

atividades comunistas e detalhava a participação de cada um dos indivíduos no preparo da

subversão. Ressaltava que não aceitava o princípio segundo o qual os comunistas seriam

necessariamente agentes da subversão material da ordem pública. Entretanto, não admitia a

inépcia da denúncia nem a ausência de justa causa porque, segundo o ministro, somente o

processo criminal poderia apurar a procedência ou não dos elementos indicados. Com isso,

negava a ordem.

O ministro Aliomar Baleeiro também negou a ordem por entender que a Justiça

Militar não estava impedida de apreciar nos processos de crimes contra a segurança nacional

as fontes de informações colhidas em IPM. Ressaltava ainda que, com relação à questão de

justa causa, o ministro Themístocles Cavalcanti havia assegurado que cada um dos indiciados

teria dado pelo menos indícios suficientes para a denúncia.

Também o ministro Adalício Nogueira negou a ordem. Para tanto, enfatizou o

entendimento do ministro Themístocles Cavalcanti, o qual afirmara estar delineada a atitude

de cada um dos indiciados. Ainda, ressaltava o caráter instrutivo da denúncia, afirmando que

ela não teria validade no campo da prova porque a prova seria colhida pela Justiça quando,

após a denúncia, se procedesse à formação de culpa. Por isso, não concordava com o

argumento segundo o qual as autoridades militares eram incompetentes para procederam a

IPMs.

Por fim, votou o ministro Evandro Lins. Segundo ele, não haveria nulidade no

inquérito, embora fosse mais aconselhável que os inquéritos policiais contra civis fossem

realizados por autoridades policiais civis. Apesar disso, concedeu a ordem, uma vez que

considerava haver ausência de justa causa para o procedimento penal:

No caso, um dos pacientes é professor catedrático de Direito Civil na

Faculdade de Direito do Paraná; homem ilustre, que tem produzido notáveis

defesas neste Tribunal. Todos somos testemunhas disso. Acho que são muito fluídos e vagos os fatos a êle atribuídos. Além disso, parte de um co-réu a

acusação a êle feita, com a negativa formal por parte do denunciado. A

submeter alguém aos vexames de um procedimento penal com essa fluidez de elementos, essa vagueza de provas, em matéria de opinião política,

parece-me que é preferível, desde logo, reconhecer que tais fatos não

constituem infração penal, porque não se apresentou um fato demonstrativo

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de que o paciente estivesse conspirando para subverter a ordem política e

social vigente, para derrubar o regime121.

Pois bem, contra o voto do ministro Evandro Lins, negou-se a ordem de habeas

corpus. Interessante notar a importância que o ministro conferia à apresentação de um fato

que demonstrasse que o paciente estava conspirando para derrubar o regime.

Por fim, cabe refletir acerca do seguinte: o ministro Themístocles Cavalcanti, relator,

havia afirmado que a denúncia detalhava a participação de cada um dos indivíduos envolvidos

com atividades subversivas. Os ministros Aliomar Baleeiro e Adalício Nogueira

acompanharam o ministro Themístocles Cavalcanti e ressaltaram ser um dos fundamentos de

seus votos o fato de Themístocles Cavalcanti ter assegurado o detalhamento da participação

dos pacientes. Por outro lado, alegava Evandro, para conceder a ordem, a vagueza de provas.

Nota-se, portanto, que os argumentos se opunham e nenhum dos ministros efetivamente

trouxe para a discussão demonstrações, exemplos, das atividades dos pacientes. Com isso, não

há como saber se a denúncia abrangia elementos fluidos ou não. De qualquer forma,

interessante observar que o ministro Evandro Lins procurou relacionar os pacientes com a

vagueza de provas da denúncia, a fim de que o habeas corpus fosse concedido. Afinal, para

ele, principalmente em matéria de opinião política, os elementos não poderiam ser vagos.

121 HC nº 45.231. RTJ 46/101.

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O CASO DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DE SÃO PAULO

Representação nº 753 RTJ 46/441

O Procurador-Geral da República, Haroldo Valadão, em consonância com a

solicitação do governador do Estado de São Paulo, representou perante o Supremo sobre a

inconstitucionalidade de diversas disposições, as quais estavam inseridas na Constituição do

Estado de São Paulo. Dentre os dispositivos considerados inconstitucionais pela Procuradoria

estava o artigo 11 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição do Estado de São

Paulo, o qual dispunha:

São reintegrados em seus cargos os servidores públicos, bem como os

empregados de autarquias ou de sociedades sob controle acionário do Estado, ou das ferrovias, dispensados sem as formalidades legais, a partir de

1 de abril de 1964, até a data da vigência deste Ato.

Alegava a Procuradoria Geral da República que o artigo citado deveria ser declarado

inconstitucional, pois, de acordo com o art. 103, parágrafo único122, da Constituição de 1967,

a reintegração só poderia ser admitida por meio de sentença. Além disso, alegava a

inconstitucionalidade, uma vez que a reintegração, pelo art. 11 do ADCT, estava prevista para

empregados de empresas e ferrovias, desde que o controle acionário fosse do Estado.

Entretanto, as empresas e ferrovias citadas pelo artigo seriam pessoas jurídicas de direito

privado, cujos trabalhadores teriam suas relações de trabalho regidas pela Consolidação das

Leis de Trabalho (CLT) e pela Constituição Federal (e não estadual), e, portanto, somente

essa legislação poderia determinar e estabelecer o modo e a forma de reintegração do pessoal.

Com relação a este dispositivo da Constituição estadual, o ministro Evandro Lins

afirmou:

122 Art. 103 da Constituição de 1967: “A demissão somente será aplicada ao funcionário: I – vitalício, em virtude de sentença judiciária; II – estável, na hipótese do número anterior, ou mediante processo administrativo, em que

se lhe tenha assegurado ampla defesa. Parágrafo único – Invalidada por sentença a demissão de funcionário, será

ele reintegrado e quem lhe ocupava o lugar será exonerado, ou, se ocupava outro cargo, a este será reconduzido,

sem direito à indenização”.

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(...) Não há manifesta inconstitucionalidade na disposição atacada,

porque, na realidade, ao que ela atende é à reparação de ilegalidades

cometidas contra servidores empregados de autarquias, de sociedades sob o controle acionário do Estado. Claro que essas ilegalidades serão verificadas

pelos processos normais de sua apuração. Não vejo eiva de

inconstitucionalidade no artigo. Rejeito, por isso, a Representação, neste

ponto. (...) parece que a Constituição Federal é expressa, em sentido

contrário, dando autonomia aos Estados nessa matéria. Vamos verificar o

que diz o art. 173 da Constituição: “Art. 173. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos

praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964,

assim como:

I - ............................................................................................................ II – as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmara dos

Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o

impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos Atos Institucionais”.

Já dentro da sistemática do A.I. nº 2, não se excluíam, no art. 19, da

apreciação do Judiciário, os atos praticados pelos Governos estaduais. O A.I. nº 2 e a Constituição de 1967 permitem que o Poder Judiciário

examine os atos praticados pelos Governos estaduais, com base nos Atos

Institucionais.

Temos sentenciado, no Supremo Tribunal, que o exame desses atos está limitado às formalidades extrínsecas. Mas há opiniões abalizadas

entendendo que esse exame possa ir até o mérito dos Atos dos Governos

estaduais. O Supremo Tribunal tem concedido diversos mandados de segurança, contra atos praticados por Governos estaduais com base nos Atos

Institucionais.

(...) Onde está a proibição dos Governos estaduais reverem as punições por eles mesmos aplicadas?

(...) Procurou-se vencer um período anormal, em que as garantias não

foram respeitadas e em que vários Governadores abusaram da faculdade de

demitir e de impor sanções aos seus inimigos políticos. Se a lei permite a revisão – não se trata de anistia – estabelecendo condições para verificar se

esses atos foram praticados com abuso de poder, sem garantir aos

funcionários o direito de defesa ou com inobservância de formalidades legais, onde há inconstitucionalidade, em face do direito federal?

Peço permissão, Sr. Presidente, para rejeitar a argüição de

inconstitucionalidade123.

Após o voto do ministro Evandro Lins, o ministro Victor Nunes, acompanhando o

voto de Evandro Lins, completou:

Sr. Presidente, peço vênia ao Senhor Ministro Relator e aos que o

apóiam, para acompanhar o Sr. Ministro Evandro Lins.

123 Representação nº 753. RTJ 46/485-486.

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É função deste Tribunal restabelecer direitos. Não consigo

compreender, data vênia, como podemos declarar inconstitucional uma

disposição que manda restabelecer direitos. Vamos censurar um Estado que tomou a iniciativa de fazer a revisão de suas próprias ilegalidades?

Não se trata, no caso, de corrigir injustiças, do ponto de vista moral ou

subjetivo. O que determina o preceito ora impugnado é que sejam revistos os

atos que foram praticados ilegalmente, em face da própria legislação revolucionária (...)124.

Pois bem, ao menos numa leitura feita nos dias de hoje, o ministro Evandro Lins e

também o ministro Victor Nunes revelaram, de maneira explícita, um pouco de suas

ideologias políticas. Chama a atenção o fato de o caso não ser de repercussão nacional, o que

significa que os holofotes não estavam voltados para o Supremo. Era um caso importante, na

medida em que diversas normas da Constituição do Estado de São Paulo estavam sendo

atacadas, mas não era um caso de repercussão nacional. Talvez por isso mesmo, Evandro

tenha mostrado de maneira mais explícita suas convicções, afirmando que durante o regime

militar, diversas ilegalidades haviam sido cometidas. O art. 11 do ADCT estaria contribuindo

para a reparação das ilegalidades. Afinal, durante um regime anormal, algumas garantias não

foram respeitadas, como as sanções descabidas a simples inimigos políticos.

Neste sentido, o ministro Victor Nunes completou o pensamento de Evandro,

ressaltando a função do Supremo de restabelecer direitos, direitos estes que haviam sido

cerceados, o que originou as ilegalidades. Com isso, o Estado deveria ter a possibilidade de

revisar seus erros, seus atos arbitrários e ilegais.

Por fim, cabe ressaltar o exame das formalidades extrínsecas e de mérito dos atos do

governo, questão suscitada pelo ministro Evandro Lins, segundo o qual o Ato Institucional nº

2 e a Constituição de 1967 permitiam ao Judiciário examinar os atos praticados pelos

governos estaduais, baseados nos Atos Institucionais. O exame dos atos estaria limitado às

suas formalidades extrínsecas, mas o ministro procurou salientar que haveria a possibilidade

de se examinar o mérito de tais atos, uma vez que havia opiniões abalizadas que entendiam

que o exame do mérito dos atos dos Governos Estaduais poderia ser feito.

124 Representação nº 753. RTJ 46/486.

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Apesar dos argumentos suscitados pelos dois ministros, eles tiveram seus votos

vencidos (no que diz respeito ao debate relacionado ao art. 11 do ADCT) e, com isso, o art. 11

das Disposições foi declarado inconstitucional, na sessão do Plenário do dia 12 de junho de

1968, na qual estavam presentes os ministros Thompson Flores, Amaral Santos, Themístocles

Cavalcanti, Barros Monteiro, Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Oswaldo

Trigueiro, Adalício Nogueira, Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes e Gonçalves de

Oliveira.

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O CASO DOS JUÍZES SUBSTITUTOS

Mandado de Segurança nº 18.973 – RTJ 46/179

No dia 22 de junho de 1968, o Supremo Tribunal Federal julgou um mandado de

segurança no qual figurava como requerido o Presidente da República e como requerentes

Jarbas dos Santos Nobre e outros, os quais eram juízes substitutos federais em São Paulo.

Haviam sido nomeados independentemente de concurso, de acordo com a lei 5.010, de 30 de

maio de 1966, a qual admitia o livre provimento dos cargos da Magistratura Federal nas

primeiras nomeações. Ressalta-se que o art. 20 do AI-2 tratava da matéria no mesmo sentido

que a lei, afirmando: “O provimento inicial dos cargos da Justiça federal far-se-á pelo

Presidente da República dentre brasileiros de saber jurídico e reputação ilibada”.

Sobreveio a Constituição de 1967 que, em seu art. 118125, afirmou a necessidade de

concurso de títulos e provas para que o Presidente da República nomeasse os juízes federais.

Entretanto, como ainda estavam vagos alguns cargos na Magistratura Federal, o Presidente

nomeou juízes federais, fato que gerou nos impetrantes a pretensão de serem efetivados no

cargo de juízes federais, por acesso, ou seja, acreditavam Jarbas dos Santos Nobre e outros

terem o direito ao provimento dos cargos vagos, uma vez que os substitutos eram os cargos

iniciais de uma carreira e também pelo fato de a nova legislação não regular a situação dos

juízes substitutos.

Pois bem, a questão era saber se os Atos Institucionais poderiam se projetar no tempo,

mesmo estando em vigor a Carta de 1967. De fato, os cargos providos sem concurso de

primeira investidura antes da Constituição eram legítimos. Restava saber se os novos

preenchimentos também o eram, resposta que dependia da extensão conferida aos Atos

Institucionais.

O ministro Evandro Lins ressaltava que a regra geral para ingresso na magistratura era

o concurso de títulos e provas e, sendo assim, as normas excepcionais que permitissem o

ingresso de outra maneira que não esta, deveriam ser interpretadas restritivamente. E exaltava:

“Não vejo como estender o império dos Atos Institucionais além da data da promulgação da

125 Art. 118, caput da CF/67: “Os Juízes Federais serão nomeados pelo Presidente da República dentre

brasileiros, maiores de trinta anos, de cultura e idoneidade moral, mediante concurso de títulos e provas,

organizado pelo Tribunal Federal de Recursos, conforme a respectiva jurisdição”.

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Constituição de 1967, e permitir o ingresso na Magistratura de cidadãos, que podem ser

muito respeitáveis, mas que não fizeram concurso”126.

Com isso, o ministro concedia em parte a segurança “...para que eles tenham o direito

à substituição, até que, regularmente, por concurso, sejam investidos os novos juízes, em que

nova legislação regule a situação dos Juízes Substitutos”127.

Neste caso, o ministro Evandro Lins foi voto vencido, assim como os ministros

Hermes Lima e Victor Nunes, que também concediam a segurança em parte. Foi denegada a

segurança, tendo sido o caso apreciado pelo Plenário, em sessão na qual estavam presentes os

ministros Themístocles Cavalcanti, Eloy da Rocha, Adalício Nogueira, Evandro Lins, Luís

Gallotti, Adaucto Cardoso, Victor Nunes, Barros Monteiro, Hermes Lima, Gonçalves de

Oliveira, Thompson Flores, Amaral Santos, Djaci Falcão e Oswaldo Trigueiro.

Interessante observar a postura do ministro Evandro Lins com relação aos Atos

Institucionais: ele era explícito ao revelar sua convicção segundo a qual os atos, normas

excepcionais, deveriam ter interpretação restritiva. Afinal, os Atos haviam imperado antes de

vigorar a Constituição de 1967.

Do exposto, nota-se a superioridade que a Constituição tinha para o ministro. Afinal,

era ela que representava o Estado de Direito e somente com a aplicação dela poderia ser

restringido o poder de fato. Por fim, ressalta-se que o ministro julgou contra os interesses do

Presidente da República.

126 MS nº 18.973. RTJ 46/186. 127 MS nº 18.973. RTJ 46/187.

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O CASO DOS OPERÁRIOS

RHC nº 45.907 RTJ 51/737

No dia 21 de agosto de 1968, julgaram os ministros do Supremo um caso no qual o

advogado Raul Chaves requereu habeas corpus em favor de Diógenes Alves, Vitor dos

Santos, Ari Vicente da Silva, Joel Domingos Lage, Eduardo Pimentel, Virgilio de Oliveira,

José Costa Ferreira, Ernani Barbosa, Clarivaldo Lima Santos, Antônio Bittencourt e

Ascendino da Silva Bina, operários que pertenciam a Associações e Sindicatos Ferroviários.

Estava em pauta a competência da Justiça Militar para processar e julgar os pacientes.

O Superior Tribunal Militar havia negado a ordem de habeas corpus, sob a alegação

de que a Justiça Militar era competente para processar e julgar todos os crimes previstos na lei

nº 1.802128, de 5 de janeiro de 1953.

Alegava a defesa a incompetência da Justiça Militar para julgar os pacientes, pois os

fatos atribuídos a eles haviam ocorrido antes da edição do Ato Institucional nº 2. Ainda,

sustentava que a denúncia havia exposto os fatos de maneira vaga, sem os firmar em

elementos probatórios convincentes.

A principal acusação feita aos operários é de que haviam incitado a greve (haviam

participado de movimentos de classe e colaboraram para a paralisação de serviços públicos) e

participado em atividades subversivas no Estado da Bahia e no Estado de Sergipe, a partir de

1962 até os primeiros dias de abril de 1964, visando transformar, segundo a denúncia, a

ordem político-social do país, através de processos violentos. Assim, seja através de

manifestações em grupo ou individuais, objetivavam implantar uma república sindicalista e,

para tanto, acatavam ordens oriundas da cúpula sindical, que emanavam da CGT, da PUA e

da Federação Nacional dos Trabalhadores Ferroviários.

Em seu voto, Evandro Lins, primeiramente, reiterou que as atividades desenvolvidas

pelos pacientes eram anteriores ao movimento de março de 1964. Afirmou não ser a denúncia

precisa com relação à ação pessoal de cada envolvido. Segundo ele, apesar de os operários

terem participado de movimentos de classe, apoiados pelo governo da época, tendo

128 A “antiga” Lei de Segurança Nacional. Posteriormente, fora editado o decreto-lei 314, de 13 de maço de 1967

– na época, a “atual” Lei de Segurança Nacional.

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colaborado na paralisação de serviços públicos, na época dos acontecimentos, as greves não

eram reprimidas e, de acordo com o ministro, diversos movimentos idênticos haviam ocorrido

na vigência do governo anterior ao regime militar, e não havia notícias de procedimentos

penais contrários a eles.

Afirmou não ser possível relacionar aos pacientes o disposto no art. 2º, IV, da lei nº

1.802, de 5 de janeiro de 1953, pelo qual era afirmado que:

Art. 1º São crimes contra o Estado e a sua ordem política e social os definidos e punidos nos artigos desta lei, a saber:

Art. 2º Tentar: IV – subverter, por meios violentos, a ordem política e social,

com o fim de estabelecer ditadura de classe social, de grupo ou de indivíduo.

Considerava que as acusações feitas aos pacientes estavam previstas em diversas

disposições da lei 1.802, mas, na data do julgamento do Supremo, 21 de agosto de 1968,

poderiam ser englobadas no art. 33 do decreto-lei 314, de 13 de março de 1967, no qual era

afirmado:

Art 33. Incitar publicamente:

I - à guerra ou à subversão da ordem político-social;

II - à desobediência coletiva às leis; III - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes

sociais ou as instituições civis;

IV - à luta pela violência entre as classes sociais;

V - à paralisação de serviços públicos ou atividades essenciais; VI - ao ódio ou à discriminação racial.

Pena - detenção, de 1 a 3 anos.

Parágrafo único. Se o crime for praticado por meio de imprensa, panfletos ou escritos e de qualquer natureza, radiodifusão ou televisão, a pena será

aumentada de metade.

Neste sentido, considerava que se o art. 49 do decreto-lei 314, pelo qual era afirmado

que “O juiz, em face das circunstâncias, poderá isentar de pena o revolucionário, o

insurrecto ou o rebelde que, antes de ser aprisionado, deponha as armas, desde que não haja

cometido, em conexão com a atividade subversiva, algum delito comum, a cuja pena não se

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eximirá”, poderia ser aplicado ao revolucionário, ao insurreto ou ao rebelde, para isentar de

pena

(...) com muito maior razão se deve aplicar a quem foi acusado de vagas

atividades subversivas, apenas ligadas à paralisação do trabalho, decorridos

mais de quatro anos dos fatos de que são acusados (...) Acho que não há base para processar operários que participaram de movimentos grevistas antes da

revolução de março de 64. Já são decorridos mais de quatro anos, e não vejo

como submeter esses homens, que são chefes de família, a um processo por

atividades subversivas.

De outra parte, o ministro Aliomar Baleeiro afirmava: “Determinados indivíduos

arrancaram dormentes de estradas de ferro, invadiram propriedades etc”. E Evandro

considerava:

A denúncia não compreende isso. Os pacientes estão todos englobados num

só artigo da Lei de Segurança Nacional. É de perguntar se, dentro do contexto da época, esses homens estavam praticando infrações penais. Esse é

o problema.

Pois bem, o argumento central suscitado por Evandro é o de que os operários estavam

envolvidos em atividades que não eram condenadas na época em que foram praticadas, muito

embora estivesse em vigor a lei 1.802/53. Ocorre que o contexto político do país era outro

quando do julgamento e o fato de os operários terem incitado greves, neste outro contexto, era

considerado prática de infração penal e a lei, neste momento, não estava apenas em vigor, ela

era, de fato, aplicada, tanto que Evandro foi voto vencido e nenhum de seus colegas o

acompanhou. Ressalta-se a preocupação do ministro em afirmar a vagueza da denúncia em

relação aos atingidos, pois, na sua opinião, aqueles homens, chefes de família, não poderiam

ser submetidos a um processo por atividades subversivas.

Com isso, negou-se a ordem de habeas corpus. Observa-se que estavam presentes à

sessão os ministros Evandro Lins, Adalício Nogueira, Aliomar Baleeiro, Adaucto Cardoso e

Themístocles Cavalcanti.

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A QUESTÃO DA REFORMA AGRÁRIA

Representação nº 718 RTJ 50/3

Através do decreto 4.527, de 11 de outubro de 1965, do governador do Estado do Rio

Grande do Norte, foram declaradas de interesse social, para efeito de desapropriação, partes

das propriedades rurais “Mangueira”, “Boa Vista” e “Macacau”, localizadas em “Periqui”,

município de Canguaretama, no Estado do Rio Grande do Norte. O governador do Estado

pretendia, com a desapropriação, promover a distribuição das áreas expropriadas, que seriam

objeto de doação, alienação ou locação, a fim de que fossem atendidos problemas de

habitação, trabalho e consumo.

Em face da lei 4.132, que conferia competência para a desapropriação, por interesse

social, ao Poder Executivo Federal e não aos Estados-membros, o Procurador-Geral da

República levou à apreciação do Supremo, por meio da representação, a argüição de

inconstitucionalidade do decreto 4.527.

O caso foi julgado no dia 22 de agosto de 1968, pela Segunda Turma, em sessão

Plenária, na qual estavam presentes os ministros Luiz Gallotti, Thompson Flores, Amaral

Santos, Themistocles Cavalcanti, Barros Monteiro, Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da

Rocha, Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, Adalício Nogueira, Evandro Lins, Victor Nunes

e Gonçalves de Oliveira.

Pois bem, a questão em si não suscitou longos debates: estava relativamente assentado

no Tribunal que a política de reforma agrária deveria ser comandada pela União, tanto assim

que, por unanimidade de votos, foi declarado inconstitucional o decreto do governador.

Ressalta-se que a questão em si da reforma agrária também não estava em discussão, ou seja,

não era o objeto da análise do julgamento saber se haveria ou não a necessidade da reforma.

Também não estava em discussão a verificação dos meios através dos quais ela deveria

ocorrer. O decreto do governador não gerou esta discussão. Entretanto, em seu voto, o

ministro Evandro Lins ultrapassou o debate puramente jurídico, revelando uma postura

favorável à tal reforma:

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Há mais de um século, José Bonifácio formulou um projeto de

reforma agrária. O certo é que o regime das terras ainda continua, em

grandes setores do País, regido por uma legislação anacrônica, com latifúndios improdutivos e terras improdutivas, provocando uma inquietude

social, que não se soluciona, a meu ver, enquanto a crise do campo não for

resolvida.

O problema é eminentemente político, e o Brasil, infelizmente, ainda não encontrou um estadista na direção de seus destinos que tivesse achado o

termo médio, a justa solução que a Nação aceitasse para resolver o problema

(...) Faltou, e a realidade demonstra que 2/3 da população do campo vive na miséria, dificultando o desenvolvimento do País. Há uma pequena faixa de

população brasileira que tem condições normais de vida... (...) Mas o

problema da reforma agrária tem ficado no terreno demagógico de propostas

inaceitáveis ou tem sido paralisado nos canais burocráticos de repartições que se criaram para arrecadar dinheiro e nada têm sabido fazer. Sucedem-se

escândalos sobre esse assunto. Ainda recentemente, veio à tona um deles,

nos jornais, em torno de um dos órgãos destinados a encaminhar e solucionar o problema da reforma agrária. (...) A inércia do Poder Central tem levado os

Estados a tentar resolver o problema. Isso revela que a União não tem sido

eficiente. Assim, os Estados procuram solucioná-lo, de acordo com as necessidades locais. (...) Enquanto não se resolver o problema do campo, a

maior parte da população do país que aí reside não terá condições de vida

compatíveis com a dignidade humana. É preciso dar ao homem do campo

capacidade para participar do progresso da Nação. O problema há de ser resolvido, e as próprias necessidades do País obrigarão a resolvê-lo.

Façamos votos para que seja no menor espaço de tempo possível129.

Nota-se que o ministro ultrapassou a análise jurídica do caso e discorreu acerca da

importância da reforma agrária, por acreditar que a raiz da crise brasileira estava no campo.

Completou seu raciocínio, refletindo acerca da inércia do Poder Central, que não era capaz de

solucionar o problema. Pois bem, esse acórdão se torna relevante na medida em que, em seu

depoimento ao CPDOC, ao fazer referência ao governo de Goulart, Evandro afirmou que: “A

reforma agrária era o lema, era o slogan do seu governo. E isso, sem dúvida alguma,

contribuiu muito para a sua derrubada”130. Entretanto, mesmo sabendo disto, no acórdão ora

tratado revelou sua crença na necessidade da reforma agrária o que, de certa forma, demonstra

uma manifestação de ideologia política.

129 Representação nº 718. RTJ 50/13. 130 SILVA, Evandro Lins. O Salão dos Passos Perdidos. p. 375.

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O CASO DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA DO JUIZ

Recurso Extraordinário nº 62.556 RTJ 47/389

Leandro de Freitas de Oliveira, juiz de direito da comarca de Foz do Iguaçu, requereu

mandado de segurança contra o governador do Estado do Paraná que o aposentara com base

no art. 7º do Ato Institucional nº 1, o qual dispunha:

Art 7º - Ficam suspensas, por 6 (seis) meses, as garantias constitucionais ou

legais de vitaliciedade e estabilidade.

§ 1º - Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os titulares dessas garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda,

com vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos

em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados,

mediante atos do Comando Supremo da Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em se

tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado, desde

que tenham atentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública, sem prejuízo das sanções penais a que

estejam sujeitos.

§ 2° - Ficam sujeitos às mesmas sanções os servidores municipais. Neste caso, a sanção prevista no § 1° lhes será aplicada por decreto do Governador

do Estado, mediante proposta do Prefeito municipal.

§ 3° - Do ato que atingir servidor estadual ou municipal vitalício, caberá

recurso para o Presidente da República. § 4° - O controle jurisdicional desses atos limitar-se-á ao exame de

formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram,

bem como da sua conveniência ou oportunidade.

Em sua defesa, alegava que fora nomeado por concurso em 17 de abril de 1953,

cumprindo com seus deveres, tendo, inclusive, contrariado vultosos interesses. Sustentava ser

da competência privativa dos Tribunais de Justiça julgar os juízes de Direito, de acordo com o

art. 124, IX, da Constituição de 1946, segundo o qual:

Art. 124. Os Estados organizarão a sua Justiça com observância dos arts. 95

a 97 e também dos seguintes princípios:

IX – é da competência privativa do Tribunal de Justiça processar e julgar os juízes de inferior instância nos crimes comuns e nos de responsabilidade.

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Finalmente, ressaltava que o Judiciário só poderia examinar a obediência às exigências

formais dos processos de demissão. Assim sendo, requereu mandado de segurança para ser

sujeito ao controle jurisdicional e para que fosse decretada a nulidade do ato do governador.

Para tanto, juntou o impetrante documento no qual era alegada a suspeição de dois membros

da comissão de inquérito, constituída pelo Consultor-Geral do Estado, por um alto funcionário

e por um general. O juiz havia sido submetido a inquérito policial, presidido por um delegado

de carreira, comissionado pela Comissão Estadual de Investigação Sumária (criada no Paraná

pelo decreto 14.634, de 10 de abril de 1964), a qual era constituída somente por servidores do

Poder Executivo. Após a audiência do Poder Judiciário, através do decreto 15.782, de 24 de

agosto de 1964, representou ao governador do Estado pela punição do investigado com a pena

de aposentadoria compulsória.

O Tribunal de Justiça do Paraná, por maioria de votos, concedeu a segurança ao

recorrido. No teor do acórdão do Tribunal de Justiça fora sustentado que havia sido violado o

princípio constitucional que protegia o foro especial por prerrogativa de função, na medida

em que se tratava de investigação de caráter policial instalada na própria jurisdição do juiz,

que exercia sua função.

Descontente com a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, o Estado do Paraná

recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que julgou o caso no dia 24 de setembro de 1968,

estando presentes à sessão da 2ª Turma os ministros Themístocles Cavalcanti, Evandro Lins,

Adalício Nogueira e Aliomar Baleeiro.

Alegava o Estado do Paraná ter sido violado o art. 200 da Constituição (“Só pelo voto

da maioria absoluta dos seus membros poderão os Tribunais declarar a

inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público”) por ter deliberado o Tribunal de

Justiça sem o quorum constitucional previsto para matérias constitucionais (o Tribunal era

composto de 15 desembargadores e na sessão estavam presentes 12, dos quais apenas 9

haviam votado). Ainda, sustentava que a decisão recorrida havia violado o art. 7º do AI-1, o

qual havia sido obedecido, na medida em que havia tido investigação, defesa e a autoridade

era competente.

Após relatar o caso, o ministro Themístocles Cavalcanti votou dando provimento ao

recurso extraordinário segundo o fundamento de que o acórdão do Tribunal de Justiça deveria

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ser anulado porque a maioria absoluta dos membros do mesmo não obteve as suas conclusões

(no mínimo seriam necessários 8 juízes).

A seguir, depois de pedir vista dos autos, votou o ministro Evandro Lins, segundo o

qual, no caso, atentou-se contra a forma da investigação sumária, na medida em que a

investigação havia sido atribuída a pessoa que não tinha idoneidade hierárquica para presidi-

la.

Além disso, dispunha o ministro que a Comissão havia invadido atribuições, uma vez

que o Poder Judiciário havia encaminhado ao Executivo as sugestões para aplicação das

penalidades previstas no art. 7º do AI-1, a determinados membros da magistratura. Entretanto,

a Comissão atribuiu a si a faculdade de apontar outros juízes às mesmas punições, como no

presente caso do juiz de Direito de Foz do Iguaçu.

Ressaltava sua divergência em relação ao voto do ministro relator por concordar com a

preliminar de conhecimento do acórdão recorrido, segundo a qual o caso era de mandado de

segurança porque ele se enquadrava na exceção do § 4º do art. 7º do AI-1, segundo a qual

havia a limitação do controle jurisdicional dos atos praticados com base no Ato Institucional

ao exame das formalidades extrínsecas, e o acórdão do Tribunal de Justiça havia se limitado

ao problema das formalidades extrínsecas, uma vez que a segurança havia sido concedida em

relação ao não cumprimento de formalidades da investigação sumária e não quanto ao seu

conteúdo, tanto que na parte do mérito a decisão recorrida começava por dizer que os votos do

Plenário haviam acolhido as principais alegações do impetrante. Não se tratava, pois, do

exame do merecimento das investigações, mas da forma pela qual elas foram realizadas.

Com isso, afirmava:

Ora, como tem decidido o Supremo Tribunal Federal, os atos dos

Governadores de Estado, praticados com base nos atos institucionais, não

estão imunes de apreciação judicial quanto às suas formalidades extrínsecas. A meu ver, não se cuidou, na hipótese, de declarar a

inconstitucionalidade do ato do governador do Estado, mas a ilegalidade

desse ato, tendo em vista direito subjetivo individual, assegurado na Constituição e no próprio AI-1131.

131 RE nº 62.556. RTJ 47/393.

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104

Por estas razões, o ministro Evandro Lins não conhecia do recurso.

O ministro Adalício Nogueira também não conheceu do recurso por não considerar

razoável mandar-se um delegado de polícia apurar atos de um juiz de Direito, uma vez que o

juiz tinha foro próprio e o delegado em questão não primava pela correção da sua conduta.

Segundo ele, no caso, havia um “Delegado arvorado a apurar o comportamento de um

juiz”132.

O ministro Aliomar Baleeiro também não conhecia do recurso. Acreditava que o

delegado podia fazer diligências, mas não era possível basear tudo nessas diligências:

(...) Não desprezo as informações de um policial, que devem ser

consideradas, pelo que valerem, a critério do julgador, mas não posso aceitar

que somente essas investigações, destituídas de qualquer assistência de membro da comissão, tenham valor suficiente133.

Assim, contra o voto do relator Themístocles Cavalcanti não se conheceu do recurso.

Pois bem, o acórdão em questão é paradigmático, na medida em que embora o art. 7º §

4º do AI-1 não tenha sido o objeto de apreciação por parte do Supremo, o fundamento da

decisão baseou-se nele. Assentado estava no Tribunal que o controle jurisdicional dos atos de

suspensão das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade estava

limitada ao exame de formalidades extrínsecas. De fato, os ministros não apreciaram os fatos

que motivaram a aposentadoria do juiz. Também não apreciaram a conveniência e a

oportunidade da aposentadoria, mas a conduta do governador foi apreciada e anulada.

Ressalta-se, além disso, que o ministro Evandro Lins afirmou ser o ato do governador

ilegal. Afinal, a forma pela qual as investigações haviam sido realizadas não havia sido

correta, não havia respeitado a lei. O ministro Adalício Nogueira chegou a chamar o delegado

de arvorado.

132 RE nº 62.556. RTJ 47/394. 133 RE nº 62.556. RTJ 47/394.

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105

Observa-se que, argumentando que o controle dos atos do Executivo estavam sendo

apreciados extrinsecamente, o que não era proibido pelo AI-1, os ministros foram contra o ato

do governador do Estado do Paraná, pelo qual o juiz Leandro de Freitas havia sido

aposentado, o que revela a postura do Tribunal no sentido de conter as arbitrariedades do

Executivo, procurando respeitar “(...) direito subjetivo individual, assegurado na

Constituição e no próprio AI-1”134.

134 RE nº 62.556. RTJ 47/393.

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106

O CASO JÂNIO QUADROS

Habeas Corpus nº 46.118 RTJ 52/435

Após ter mantido diálogo com repórteres, Jânio Quadros teve suas opiniões

estampadas em todos os diários do Brasil, as quais foram insuscetíveis de agitar o país, não

afetando a ordem e a paz pública. Com isso, nenhuma providência desfavorável aos veículos

da imprensa que noticiaram as opiniões do ex-Presidente foi tomada. Entretanto, a situação foi

outra para com Jânio. Um inspetor da polícia foi à sua residência a 24 de julho a fim de

entregar a ele uma intimação, à qual Jânio recusou-se a aceitar por ela estar mal escrita,

rasurada e omissa. Pouco tempo depois, o investigador retornou com um ofício, desta vez em

forma devida, assinado pelo General Sylvio Correia de Andrade, que era Delegado Regional

de São Paulo, do Departamento de Polícia Federal.

Com isso, Jânio compareceu à Delegacia e respondeu a todo o questionamento. No dia

29 de julho, o domicílio do ex-Presidente foi invadido, sendo ele preso e transferido para

Corumbá, no Estado do Mato Grosso, por decretação do Ministro da Justiça, Luiz Antônio da

Gama e Silva. Seria confinado nessa localidade por 120 dias, com base no art. 16, IV, “c” do

AI-2, o qual afirmava:

Art. 16 – A suspensão de direitos políticos, com base neste Ato e no art.

10135 e seu parágrafo único do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, além

do disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6º da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, acarreta simultaneamente:

IV – a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social,

das seguintes medidas de segurança: c) domicílio determinado.

Foi impetrada no Tribunal Federal de Recursos ordem de habeas corpus, mas esta foi

indeferida. Assim sendo, o caso chegou ao Supremo.

135 Art. 10, “caput”, do AI-1: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos

pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação

judicial desses atos”.

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107

Sustentavam os impetrantes que, embora Jânio estivesse com seus direitos políticos

suspensos, tinha direito à manifestação de pensamento; as situações jurídicas que se

constituíram quando vigorava os Atos Institucionais e Complementares (que foram

revogados) foram excluídas da apreciação do Poder Judiciário, mas os efeitos dessas situações

seriam regidos pela nova lei. Pois bem, o fundamento principal do habeas corpus era a

ilegalidade do constrangimento sofrido pelo paciente (vício de inconstitucionalidade da

medida de confinamento imposta por ato do ministro da Justiça), uma vez que o AI-2

continha a norma justificadora do ato ministerial, mas ele fora revogado pela Constituição de

1967 que, em seu art. 173 dispunha:

Art. 173 – Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos

praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como:

I – pelo Governo federal, com base nos Atos Institucionais nº 1, de 9 de abril

de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e nº

4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais;

II – as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores

que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos

Atos Institucionais;

III – os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I;

IV – as correções que, até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em

decorrência da desvalorização da moeda e elevação do custo de vida, sobre

vencimentos, ajuda de custo e subsídios de componentes de qualquer dos Poderes da República.

O caso foi apreciado pelo Supremo, em sessão Plenária, no dia 2 de outubro de 1968.

O primeiro a votar foi o ministro Barros Monteiro, segundo o qual não cabia ao Judiciário

examinar o conteúdo das declarações de Jânio Quadros para verificar se nelas continha ou não

ilícito penal. Ao Judiciário caberia apenas indagar a legalidade do ato da autoridade que

tomou a medida político-administrativa que entendeu cabível. Afirmou que o fato de não ter

sido tomada qualquer providência contra os que contribuíram para a infração não poderia

favorecer o paciente porque era uma medida de conveniência do governo. Ressaltava a

inexistência de dispositivo legal que condicionasse a execução da medida de segurança à sua

aprovação pela Justiça. Quanto à vigência do art. 16 do AI-2, observou que ela estaria

condicionada à existência de pessoas com direitos políticos suspensos por dez anos, uma vez

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que tais pessoas apenas seriam reintegradas por modificação constitucional concernente à

matéria ou por efeito de anistia. Observava, citando Wilson de Souza Campos Batalha que

“...o Supremo Tribunal Federal não homologa Atos Institucionais e não se anula a Revolução

por via judicial”136. Por estes fundamentos, indeferiu o pedido.

Também o ministro Thompson Flores denegou a ordem de habeas corpus. Segundo

ele, o Supremo dispunha de poderes oriundos da Constituição e das leis: “Não integramos um

super-poder, superior aos demais, mas independente como eles e com eles guardando

integral harmonia. Só assim há de sobreviver o regime democrático que nos rege”137. A

partir dessa afirmação, considerava a medida aplicada a Jânio Quadros legal porque estava na

lei, fora aplicada por autoridade competente, segundo procedimento próprio e por fato que

importou atividades políticas.

Em seguida, votou o ministro Themístocles Cavalcanti, para o qual a suspensão dos

direitos políticos não tinha cessado de produzir os seus efeitos, os quais só poderiam

desaparecer com a extinção do prazo ou por ato que revogasse a sua eficácia. Ressaltava que,

no caso, não se tratava de prisão, mas de medida administrativa, criada por lei e aplicada por

prazo determinado. Sendo assim, sua legitimidade não haveria de ser contestada, uma vez que

a legislação era legítima e os pressupostos de fatos exigidos pela aplicação da medida

impugnada existiam. Com isso, denegou a ordem.

Também o ministro Djaci Falcão votou pelo indeferimento do pedido, uma vez que

considerava que o ato de suspensão dos direitos políticos havia trazido restrições enumeradas

no art. 16 do AI-2 e, com isso, aquele que teve seus direitos políticos suspensos não estaria

subordinado às regras previstas pelo art. 144 da Constituição138, pois apesar da lei excepcional

ter sido extinta haveria a necessidade de que seus efeitos fossem preservados.

136 HC nº 46.118. RTJ 52/438 e 442. 137 HC nº 46.118. RTJ 52/443. 138 Art. 144 da CF/67: “Além dos casos previstos nesta Constituição, os direitos políticos: I - suspendem-se: a)

por incapacidade civil absoluta; b) por motivo de condenação criminal, enquanto durarem seus efeitos; II –

perdem-se: a) nos casos do art. 141; b) pela recusa, baseada em convicção religiosa, filosófica ou política, à

prestação de encargo ou serviço impostos aos brasileiros em geral; c) pela aceitação de titulo mobiliário ou

condecoração estrangeira que importe restrição de direito de cidadania ou dever para com o Estado brasileiro; §

1º - No caso do nº II deste artigo, a perda de direitos políticos determina a perda de mandato eletivo, cargo ou

função pública; e a suspensão dos mesmos direitos, nos casos previstos neste artigo, acarreta a suspensão de mandato eletivo, cargo ou função pública, enquanto perdurarem as causas que a determinaram; § 2º - A

suspensão ou perda dos direitos políticos será decretada pelo Presidente da República, nos casos do art. 141, I e

II, e do nº II, b e c, deste artigo e, nos demais, por decisão judicial, assegurando-se sempre ao paciente ampla

defesa”.

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109

No mesmo sentido, votou o ministro Eloy da Rocha, que salientava a desnecessidade

de se discutir no caso, princípios de direito intertemporal, em face de norma transitória do art.

173 da Constituição. Também o ministro Aliomar Baleeiro votou pelo indeferimento do

habeas corpus. Em seu voto, enfatizou:

Afinal, todo esse problema, Senhor Presidente, vamos dizer com toda

franqueza, é um problema político, na mais alta e nobre expressão da palavra. (...) A revolução explode, porque o direito latente não mais

comporta as forças que, dentro dele, se geraram e que não suportam o status

quo. Tudo isso é conseqüência de um fato histórico e não é dado ao Poder Judiciário modificar essa situação. O eminente impetrante pertence ao Poder

Legislativo e é de lá que se há de criar uma situação nova ou, lentamente,

modificar-se, por vários modos, o direito que a revolução criou139.

A seguir, votou o ministro Oswaldo Trigueiro, para o qual a aprovação contida no art.

173 da Constituição devia ser entendida como asseguradora da sobrevivência dos atos, com

todos os seus efeitos, uma vez que o poder constituinte havia ressalvado a validade das

medidas políticas de exceção, praticadas na vigência dos Atos Institucionais e havia se

recusado a anistiar as pessoas atingidas por aquelas medidas e, além disso, não havia

manifestado nenhum propósito de modificar as situações decorrentes. E enfatizava: “Pode-se

pôr em dúvida a sabedoria dessas normas, não, porém, a clareza de seus intuitos”140. Com

isso, indeferiu o pedido.

Votou também pela denegação do pedido o ministro Adalício Nogueira, segundo o

qual os efeitos do ato suspensivo de direitos políticos haveriam de perdurar e completar-se tal

como disposto no artigo editado, sob pena de se entender que o legislador constituinte teve a

intenção de nulificar a regra que expediu, de frustrar a própria finalidade que o inspirou.

Já o ministro Evandro Lins concedia a ordem. Iniciou seu voto relembrando a

proibição constante do AI-2: a proibição de “atividades ou manifestação sobre assuntos de

natureza política” aos indivíduos cujos direitos políticos haviam sido suspensos com a

instauração do regime militar. A partir dessa proibição, foi permitida a aplicação das seguintes

medidas de segurança: liberdade vigiada, proibição de freqüentar determinados lugares e

139 HC nº 46.118. RTJ 52/448. 140 HC nº 46.118. RTJ 52/449.

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110

domicílio determinado. Pois bem, o Ato Complementar 1 regulamentou estas disposições e

estabeleceu no art. 1º, § 2º:

Se o crime for praticado por meio de imprensa, rádio ou televisão, o

responsável pelo órgão de divulgação será também processado e julgado

pelo juiz singular e a pena será acrescida de multa de 100.000 a 1.000.000 de cruzeiros.

Ainda, o ministro relembrava que o AC 3, no art. 6º havia estabelecido:

Art. 6º. Além da iniciativa do Ministro da Justiça, qualquer autoridade ou

pessoa do povo poderá representar àquele, por escrito e com firma

reconhecida, sobre a infração a que se refere o art. 1º do AC 1, de 27.10.65. § 1º Aplica-se aos casos previstos neste artigo o disposto no art. 3º e seu

parágrafo único.

§ 2º Os elementos da investigação sumária ou, nos casos de fato público e

notório, o ofício do ministro da Justiça constituirão peças de instrução do inquérito policial para a ação penal a que se refere o art. 1º do AC 1.

A partir da citação dos artigos da legislação, o ministro afirmou ter passado a

constituir crime a manifestação de caráter político daqueles que tivessem tido seus direitos

políticos cassados: o juiz singular poderia aplicar a pena de detenção e o ministro da Justiça,

de acordo com previsão do Ato Complementar poderia aplicar outra sanção, a medida de

segurança. Se um crime havia sido cometido, a autoridade deveria enviar os elementos de

investigação sumária para instruir o inquérito e a ação penal (art. 6º § 2º do AC 3). A sanção

não poderia ser imposta com base apenas no art. 2º do AC 1, pois, ela, segundo o ministro,

não era isolada ou meramente administrativa. O autor da infração ficaria sujeito à pena

criminal, perante a autoridade judiciária, após processo regular. Teria direito à ampla defesa,

nos termos da Constituição. Assim sendo, afirmava que a autoridade não poderia escolher

apenas a aplicação da medida de segurança, uma vez que esta seria complementar à pena (a

aplicação da medida de segurança significaria a configuração do crime e, com isso, não ficaria

ao arbítrio da autoridade executiva punir ou deixar o acusado sem punição).

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111

Após esta análise, o ministro passou a refletir sobre o caso. Em primeiro lugar,

afirmou não ter havido erro ou omissão da autoridade, que não tomou as medidas cabíveis

para o início do procedimento penal. Com isso, explicava:

(...) É que o crime estava definido em lei excepcional e temporária, tendo decorrido o prazo de sua duração. Realmente, os Atos Institucionais

tiveram duração limitada, o de nº 2 até 15.3.67, e o fato atribuído ao paciente

foi praticado após a expiração do período de vigência daquela legislação excepcional.

Assim aconteceu não apenas com o art. 1º, mas, também, com o art.

2º, da Lei Complementar nº 1. Ambas as sanções – pena e medida de

segurança – estavam condicionadas à prática da infração, no limite de vigência do AI 2.

O Código Penal, que a Lei Complementar nº 1 manda observar, na

disposição em que se esteiou o ato punitivo, estabelece a regra de não retroatividade da lei de caráter efêmero, a fatos a ela posteriores, no art. 3º,

verbis:

“A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato

praticado durante sua vigência”.

O AI 2 limitou, expressamente, o tempo de sua vigência. Não havia

necessidade de lei que o revogasse expressamente. A Constituição de 1967 revogou e substituiu todo o ordenamento jurídico anterior.

O ato praticado pelo paciente é muito posterior ao tempo de vigência

dos Atos Institucionais e Complementares, que o definiram como crime. A Constituição de 1967 aprovou e excluiu da apreciação judicial os

atos praticados com base nos Atos Institucionais e Complementares. Veja-

se: - os atos praticados e não os atos a praticar. A regra do art. 173, da Constituição, refere-se ao passado, como é óbvio, e não podia referir-se ao

futuro, pois os fatos ocorridos após a promulgação da nova Carta Magna

passaram a ser por esta regidos. O raciocínio levaria a admitir a vigência

simultânea de dois sistemas constitucionais. Devemos acentuar que estamos examinando matéria penal,

extremamente sensível quando se trata de resguardar o princípio da reserva

legal. As regras contidas nos arts. 1º e 2º do C. Pen. derivam diretamente da Constituição. “Não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem

prévia cominação legal” (artigo 1º). “Ninguém pode ser punido por fato que

a lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a

execução e os efeitos penais da sentença condenatória” (art. 2º). Eis ai, no texto da lei penal, a cessação dos efeitos penais da própria

sentença condenatória. Assim, é contra legem e contra os princípios gerais

que regem o direito penal, fazer projetar no futuro os efeitos de lei penal revogada ou de lei excepcional ou temporária141.

141 HC nº 46.118. RTJ 52/452.

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Após esta análise, o ministro afirmava que caso estivesse em vigor o art. 2º do AC 1

também estaria em vigor o art. 1º, pelo qual era considerado crime a infração do art. 16, III do

AC 2 e, neste caso, o procedimento não poderia apenas cingir-se à pessoa do paciente, uma

vez que o § 2º do art. 1º do AC 1 mandava processar e julgar também o responsável pela

divulgação da manifestação política do cassado. Com isso, deveria prevalecer o princípio da

indivisibilidade do procedimento penal, pelo qual todos os co-réus deveriam ser reprimidos,

sob pena de invalidade da ação penal.

Ressaltava que os cassados estariam sujeitos a sanções dispostas na Constituição de

1967 e na legislação permanente e, com isso, não poderiam participar da vida pública, nem

exercer cargo eletivo, nem ter função pública, nem participar de eleição sindical e nem tinham

o direito de votar e ser votados. Essas seriam as restrições que perduraram na legislação.

Segundo o ministro, isso era verdade, uma vez que a Constituição previa em seu art. 151142 a

suspensão de direitos políticos. As conseqüências de tal medida seriam as previstas nas leis

em vigor, na medida em que não era possível considerar que as sanções do AC 2 haviam se

projetado no futuro. Com isso, Evandro afirmava que o AC 1 era lei morta, que não poderia

ser ressuscitada. Considerava, assim, que o fato atribuído ao paciente não poderia estar

coberto por lei revogada anteriormente. Por fim, discorria acerca do Estado de Direito:

No estado de direito, o que prevalece é a liberdade de manifestação do

pensamento, garantida pela Constituição e pela Declaração Universal dos

Direitos do Homem. O paciente está confinado porque externou o seu pensamento em matéria política. O argumento de que se trata de medida de

segurança e não de pena é sibilino. Os autores mostram a hipocrisia da

distinção. Na realidade, o paciente está privado de sua liberdade de locomoção, por 4 meses, sem poder desenvolver as suas atividades normais.

Além disso, o art. 2º do AC 1, nem qualquer outra lei, fixa sanção ou prazo

para a medida de segurança. Onde encontrou o ato impugnado, na lei, o

prazo de 4 meses para o confinamento do paciente? Não há pena, nem sanção de caráter penal, mesmo medida de segurança, sem prévia cominação

legal. E se a duração da medida fosse de 10 anos? Os efeitos do Ato

autorizariam esse absurdum? Até que ponto se concede arbítrio, nessa matéria de sanção punitiva?

142 Art. 151, “caput” da CF/67: “Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23, 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá

na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal,

mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível,

assegurada ao paciente a mais ampla defesa”.

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113

Num estado de direito, ninguém pode ser condenado, a não ser pelo Poder

Judiciário, com as garantias asseguradas na Constituição e nas leis.

Considero arbitrário e ilegal o confinamento do paciente143.

Após o voto do ministro Evandro Lins, votou o ministro Hermes Lima, o qual também

concedeu o habeas corpus. Primeiramente, afirmou que a medida de “domicílio determinado”

prevista no art. 16, IV, “c”, do AI-2 não existia mais em face da Constituição de 1967, uma

vez que, segundo ele, o art. 173 da Constituição não aprovou atos praticados que não fossem

compatíveis com as normas constitucionais, e o domicílio determinado apenas estava previsto

no caso de estado de sítio (CF, art. 132, II, § 2º, letra “a”). Em seguida, o ministro discorreu

acerca da liberdade de pensamento, tendo afirmado:

Em matéria de livre manifestação do pensamento, de convicção

política ou filosófica, os que tiveram direitos políticos suspensos, estão

sujeitos, pelos abusos que cometer, às leis em vigor. Basta ver que um cidadão com direitos políticos suspensos não se poderia proibir que se

manifestasse a favor ou contra o monopólio estatal de atividades

econômicas; contra a suspensão dos bombardeios no Vietnam ou a favor do mesmo; nem que criticasse eleições indiretas ou favorecesse modificações

constitucionais. Essa liberdade de pensamento abrange a própria crítica da

política governamental ou de atos governamentais. Porque é da liberdade do pensamento do cidadão dizer se a política

financeira do governo é boa ou má. Isso é da liberdade do pensamento. O

que não é da liberdade do pensamento, o que está proibido, é ingressar em

partido político ou organizar comícios ou assembléias para combater a política governamental. Mas, dizer que ela é boa ou má, isso integra a

liberdade de pensamento, que é, como já se disse, uma dimensão maior dos

direitos políticos. (...) De modo que a suspensão dos direitos políticos não pode ter como

efeito calar qualquer manifestação de opinião daqueles que tiveram seus

direitos políticos cassados. O que se proíbe, como referiu o eminente Senhor

Evandro Lins, é que participe da vida pública organizada, da vida política militante; mas não que sejam proibidos de manifestar pensamentos e

convicções. Porque, então, aí, não estaríamos num regime democrático como

é definido na Constituição; estaríamos, num regime ditatorial144.

Em seguida votou o ministro Victor Nunes, que também concedia o habeas corpus.

Reiterou o fato de o governo ter aplicado uma norma penal a fato posterior ao período de

vigência dela. Afirmou que dentro do próprio raciocínio do governo, o confinamento do

143 HC nº 46.118. RTJ 52/453-454. 144 HC nº 46.118. RTJ 52/454-455.

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paciente não poderia ter resultado apenas do estado de suspensão de direitos políticos, mas

antes da conjugação desse estado com um fato novo: a manifestação de ordem política do

paciente. Ocorre que essa manifestação havia ocorrido já na vigência da Constituição de 1967

e não havia que se falar em ultra-atividade da lei penal, uma vez que impor a alguém um

constrangimento de ordem física que não estava previsto no ordenamento constitucional se

relacionava à inconstitucionalidade e não à ultra-atividade.

Ressaltava que o regime jurídico brasileiro, antes do governo militar, conhecia o

estado de suspensão de direitos políticos. Entretanto, a suspensão de direitos políticos nunca

fora o confinamento. Apesar disso, segundo ele, alegava-se o esvaziamento da suspensão dos

direitos políticos por causa da falta da conseqüência do confinamento. Por fim, observava que

a conseqüência do confinamento atingia fundamentalmente o direito de opinião e, com isso,

afirmou:

O que se quer, agora, é acrescentar àquela medida a perda – e por dez anos –

do direito de opinião. É contra isso, Sr. Presidente, que eu me insurjo, em nome da própria Constituição vigente, que protege o direito de opinião em

sua plenitude. Não pode prevalecer uma norma anterior, que suprime o

direito de opinião, contra o que a Constituição dispõe a este respeito145.

Também concedeu o habeas corpus o ministro Gonçalves de Oliveira, para o qual

apenas no caso de estado de sítio poderia a norma ser aplicada ao ex-Presidente.

Acompanhava o voto do ministro Evandro Lins, ressaltando a vigência limitada dos Atos

Institucionais e a não necessidade de os mesmos serem derrogados expressamente pelo

legislador constituinte.

O ministro Lafayette de Andrada também concedeu a ordem, por ter sido a medida

impugnada pelo impetrante aplicada com base em legislação revogada.

Já o ministro Luiz Gallotti votou pela denegação do habeas corpus, uma vez que

acreditava que os efeitos dos atos deveriam ser apreciados com base nos Atos Institucionais,

legislação que dispôs que a suspensão de direitos políticos vigoraria por dez anos, período que

145 HC nº 46.118. RTJ 52/456.

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não havia decorrido quando do julgamento. Ressaltava que não admitiria a possibilidade de o

governo após ter entrado em vigor a Constituição de 1967, praticar novos atos suspendendo

direitos políticos, como os que antes da Constituição praticara. Porém, segundo o ministro, os

efeitos da lei antiga teriam sobrevivido e teriam aplicação, uma vez que ela não foi substituída

por outra. Discordava da alegação segundo a qual os atos imputados ao paciente eram

posteriores à lei antiga, pois, de acordo com seu entendimento, os atos imputados ao paciente

eram os que a lei proibia durante dez anos, período que não havia transcorrido. Sendo assim,

as medidas de segurança que deveriam ser aplicadas ao caso deveriam ser as estabelecidas na

lei antiga, já que a suspensão de direitos políticos e seus respectivos efeitos haviam sido

regulados por ela. Também discordava da alegação segundo a qual o disposto no inciso IV do

art. 16 do AI nº 2 (previsão das medidas de segurança) não estaria vinculado ao inciso III

(proibição aos suspensos de direitos políticos de exercerem atividade ou manifestação sobre

assunto de natureza política), já que essa atividade ou manifestação é que poderia tornar

necessária a medida de preservação da ordem política e social. Por fim, considerava que a

suspensão de direitos políticos ficaria esvaziada sem as medidas de segurança previstas.

Com isso, contra os votos dos ministros Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes,

Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, foi denegado o habeas corpus. Pois bem, o

grande embate travado no caso se relacionava à extensão a ser conferida aos Atos

Institucionais, ou seja, a grande questão suscitada se relacionava com a necessidade ou não de

serem preservados os efeitos da legislação excepcional. De fato, o art. 16 do AI 2 afirmava

que a suspensão de direitos políticos poderia acarretar a aplicação de medidas de segurança,

como o domicílio determinado. Essa determinação embasou os fundamentos dos ministros

que votaram pela denegação do habeas corpus. Afinal, havia que se preservar os efeitos dos

Atos, muito embora não estivessem mais em vigor, isto porque o cidadão, cujos direitos

políticos haviam sido suspensos, deveria respeitar, por dez anos (prazo de suspensão), as

restrições impostas pela legislação que regulamentava a matéria que, segundo esses ministros,

se relacionava aos Atos Institucionais.

De outra parte, a minoria que votou pela concessão do habeas corpus fundamentava

sua concepção na ilegalidade do constrangimento sofrido pelo paciente, sendo que alguns dos

ministros chamaram a atenção para o direito de manifestação do pensamento que, na verdade,

era o grande direito que estava sendo atingido com o confinamento do paciente. Em passagem

de seu voto, o ministro Evandro Lins discorreu acerca da prevalência da liberdade de

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manifestação do pensamento, tendo inclusive afirmado que Jânio Quadros estava confinado

por ter externado seu pensamento em matéria política o que, na visão do ministro, era

arbitrário. O ministro Hermes Lima completara a lógica de pensamento iniciada por Evandro

Lins, afirmando que a restrição à manifestação do pensamento se relacionaria com um regime

ditatorial e não com um regime democrático.

Nota-se, pois, que, neste caso, o ministro Evandro Lins ultrapassou o debate

meramente jurídico, tendo, em seu voto, inclusive, chamado a atenção para um dos direitos

que mais fora restringido durante o regime militar: a liberdade de manifestação do

pensamento. Ressalta-se que também os ministros Hermes Lima e Victor Nunes chamaram a

atenção para a necessidade de preservação desse direito. Por fim, cabe observar que este

julgamento fora emblemático, na medida em que um ex-Presidente fora confinado por suas

entrevistas a órgãos de imprensa e estava preso a quatro meses em Corumbá. Certamente, o

caso chamou a atenção da opinião pública, dada sua repercussão. Apesar disso, o ministro

tratou da liberdade de expressão e revelou sua concepção, segundo a qual os Atos

Institucionais deveriam ser interpretados restritivamente.

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O CASO DA INEXECUÇÃO DE ACÓRDÃO

Reclamação nº 777 RTJ 47/343

No dia 10 de outubro de 1968, os ministros do Supremo, em sessão Plenária146, por

unanimidade de votos, julgaram procedente a reclamação nº 777. O caso se relacionava a

aeronautas que pediam a remuneração de aposentadoria de acordo com o salário base vigente

à época. O Departamento Nacional da Previdência Social havia resolvido por unanimidade

que a revisão dos proventos dos aeronautas inativos deveria ter por base o coeficiente da

época. Em 10 de março de 1967, o Supremo concedeu a segurança impetrada pelos ora

reclamantes. O acórdão do Tribunal reconhecia a legalidade da resolução administrativa do

Departamento.

Com isso, o IAPFESP (órgão subordinado ao Departamento Nacional da Previdência

Social) baixou resolução no sentido de atender à resolução do Departamento e, com isso,

pagou aos aposentados, durante dois anos (contados a partir da resolução do Departamento e

não da decisão do Supremo, ocorrida em março de 1967), a aposentadoria baseada no

coeficiente da época.

Entretanto, dois anos após a resolução do Departamento, uma Junta Interventora

baixou uma resolução mandando que os proventos da aposentadoria fossem computados em

base inferior. Para tanto, alegava o reclamado Instituto Nacional de Previdência Social que o

Supremo, em sua decisão, não havia cogitado o mérito da questão, atendo-se apenas a

reconhecer a legalidade da resolução do Departamento.

O ministro Hermes Lima, após ter feito o relatório do caso, argumentou no sentido de

que o acórdão não havia reconhecido uma legalidade apenas formal, mas antes uma

legalidade que tinha conseqüência (o pagamento aos aeronautas aposentados de proventos da

aposentadoria conforme o salário vigente na época).

Neste sentido, o ministro Evandro Lins esclarecia:

146 Estavam presentes à sessão os ministros Thompson Flores, Amaral Santos, Themistocles Cavalcanti, Barros

Monteiro, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Oswaldo Trigueiro, Adalício Nogueira, Evandro Lins, Hermes Lima,

Victor Nunes e Lafayette de Andrada.

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Então a autoridade cumpre, por algum tempo e, depois, descumpre! É

uma forma oblíqua de atentar contra uma decisão do Supremo Tribunal

Federal. (...) O Supremo não pode tolerar que uma autoridade, depois de cumprir uma decisão sua, volte atrás e venha a descumpri-la. (...) A

autoridade não tem o direito de se utilizar de meios indiretos, para não

cumprir decisão do Supremo Tribunal. Tem que cumpri-la na sua

integridade, permanentemente, enquanto não for rescindida essa decisão pelos meios regulares. Deu-se cumprimento temporário ao acórdão, mas a

decisão é permanente, enquanto não for rescindida pelos meios regulares.

Pode-se observar que o ministro Evandro Lins preocupava-se com o cumprimento das

decisões do Supremo. Embora em um caso de pouco repercussão como este, salientava sua

preocupação que, ao certo, estendia-se a todas as decisões da Corte. Todas deveriam ser

efetivamente cumpridas. Afinal, o Supremo não deveria estar à mercê de interesses de grupos,

classes ou mesmo do Poder Legislativo e do Executivo. As decisões da cúpula do Judiciário

deveriam ser respeitadas integralmente e permanentemente, independentemente de ser uma

decisão que envolvia aeronautas aposentados ou governadores de Estado. Sem dúvidas, neste

caso, embora a decisão tenha sido unânime, foi o ministro que mais exaltou sua convicção

segundo a qual as decisões do Tribunal deveriam ter cumprimento efetivamente.

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O CASO DARCY RIBEIRO

HC nº 46.415 RTJ 49/842

No dia 28 de novembro de 1968, o Tribunal Pleno do Supremo, em sessão na qual

estavam presentes os ministros Adaucto Cardoso, Themístocles Cavalcanti, Thompson Flores,

Amaral Santos, Eloy da Rocha, Adalício Nogueira, Evandro Lins, Hermes Lima e Victor

Nunes, julgou um caso de grande repercussão, cujo paciente era Darcy Ribeiro.

O advogado Wilson Mirza impetrou habeas corpus em favor de Darcy Ribeiro, sob

alegação de que este estava na iminência de ser vítima de coação ilegal porque o Superior

Tribunal Militar havia reconhecido a legalidade da prisão do paciente, determinada pelo

Comando da Divisão Blindada do 1º Exército, com base no art. 156 do Código de Justiça

Militar, o qual dispunha:

Art. 156.

Qualquer das autoridades referidas no art. 115 poderá ordenar a detenção ou prisão do indiciado, durante as investigações policiais, até trinta dias.

§ 1º - Se houver necessidade da detenção ou prisão do acusado por tempo

superior a trinta dias, o comandante da região ou autoridade correspondente

na Armada poderá prorrogar esse prazo por mais vinte dias, mediante solicitação fundamentada e por via hierárquica.

§ 2º - O encarregado do inquérito, depois das diligências procedidas, poderá

ainda pedir a prisão preventiva do indiciado nos termos do art. 149. § 3º - Se o indiciado não for oficial, o pedido será feito ao Conselho

Permanente de Justiça: e se for oficial, sê-lo-á ao auditor competente, que

decidirá como de direito. § 4º Nas 1ª e 2ª Regiões, o pedido será dirigido ao auditor mais antigo.

Segundo informações prestadas pela autoridade militar ao Superior Tribunal Militar,

nos autos do inquérito policial-militar constavam indícios de que Darcy Ribeiro estava

envolvido em atividades subversivas, as quais atentavam contra a Administração Militar.

Diante da possibilidade da consumação da violência antes do julgamento da

impetração, o ministro Adaucto Cardoso deferiu uma liminar de habeas corpus preventivo ao

paciente, impossibilitando a prisão do mesmo antes do julgamento do habeas corpus no

Supremo Tribunal Federal.

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Após relatar o caso, o ministro Adaucto Cardoso votou concedendo o habeas corpus.

Ressaltava o conteúdo do tema proposto ao Supremo Tribunal Federal: a ilegalidade da prisão

de Darcy Ribeiro, civil, por ordem não fundamentada da autoridade militar. Segundo ele, no

caso, não se tratava de flagrante delito e de prisão preventiva, mas sim da figura da prisão

para averiguações, a qual havia se tornado incompatível com a ordem jurídica constitucional a

partir de 1934.

Afirmava que, neste sentido, eram procedentes as contestações (levantadas no

Tribunal) relacionadas à eficácia do art. 156 do Código de Justiça Militar, em face do art. 150

da Constituição Federal, segundo o qual:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à

liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 12 – Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de

autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão

ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz

competente, que a relaxará, se não for legal.

Por fim, acrescentava que, além de ser incompatível com o sistema da Constituição de

1967, a prática da prisão para averiguações também era incompatível com o art. 54 do

decreto-lei 314 (lei de segurança nacional), que dispunha:

Art 54. Durante a fase policial e o processo, a autoridade competente para a

formação deste, ex officio, a requerimento fundamentado do representante do Ministério Público ou de autoridade policial, poderá decretar a prisão

preventiva do indiciado, ou determinar a sua permanência no local onde a

sua presença for necessária à elucidação dos fatos a apurar. § 1° A ordem será dada por escrito, intimando-se por mandado o indiciado e

deixando-se cópia do mesmo em seu poder.

§ 2° A medida será revogada desde que não se faça mais necessária, ou

decorridos 30 dias de sua decretação, salvo sendo prorrogada uma vez, por igual prazo, mediante a alegação de justo motivo, apreciada pelo juiz.

§ 3° Quando o local de permanência não for o do domicílio do indiciado, as

despesas de sua estada serão indenizadas pontualmente pela autoridade competente, policial ou judiciária, conforme for o caso, por conta do

Tesouro Nacional.

§ 4° Com a medida de permanência, a autoridade judiciária poderá ordenar a apresentação, diária ou não, do indiciado, em hora e local determinados.

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§ 5° O não cumprimento do disposto na ordem judicial de permanência

justificará a decretação da prisão preventiva.

Já o ministro Themístocles Cavalcanti concedeu a ordem em parte, a fim de que a

prisão administrativa (na qual deve-se realizar as investigações através do inquérito)

dependesse de informação da autoridade encarregada do inquérito, sobre os fatos ou os

motivos da prisão do paciente. Ressalvava considerar válido e aplicável o art. 156 do Código

de Justiça Militar.

A seguir, votou o ministro Thompson Flores, que também concedeu a ordem por

considerar que houve falta da autoridade coatora, que deixou de fundamentar a ordem de

captura. Ressaltava que neste caso cabia em tese a aplicação do art. 156 do CJM.

De outra parte, o ministro Amaral Santos denegava o pedido de habeas corpus porque

não via inconstitucionalidade no art. 156 do CJM, nem ilegalidade ou abuso de poder da

autoridade apontada como coatora. Isto porque, no caso, o procedimento estava correto, uma

vez que após a detenção a autoridade que a determinou comunicaria ao juiz competente, que a

apreciaria mantendo-a ou determinando a soltura do detido.

Em seu voto, o ministro Eloy da Rocha começava por afirmar que o art. 156 do CJM

não poderia ser aplicado porque estava revogado no tocante aos crimes definidos na lei de

segurança nacional. Desta forma, no caso de crime definido no decreto-lei 314, de 1967,

deveria ser aplicado exclusivamente o art. 54. Por fim, concedia a ordem.

Após o voto do ministro Eloy da Rocha, votou o ministro Adalício Nogueira que

entendia que a lei de segurança nacional não havia revogado o art. 156 do CJM porque o art.

54 da lei se referia à prisão preventiva enquanto que o art. 156 do CJM se referia à prisão para

averiguações. Ressaltava seu entendimento segundo o qual a autoridade policial ou militar

que estivesse fazendo o inquérito poderia proceder à detenção de qualquer pessoa, para

averiguações. Entretanto, apontava a necessidade de motivação da prisão e da comunicação

desta à autoridade competente para conceder o habeas corpus.

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A seguir, votou o ministro Evandro Lins. Num primeiro momento, afirmou que o

inquérito policial-militar foi instituído para apurar crimes cometidos por militares e, assim

sendo, nenhuma autoridade militar poderia instaurar um inquérito contra civil para apurar

crime cometido pelo civil. Interferiu então o ministro Amaral Santos afirmando que Evandro

Lins estava revogando a Constituição. De outra parte, Evandro afirmava que a Constituição

que havia determinado o julgamento excepcional de civil pela Justiça Militar.

Em face disso, estabeleceu-se uma discussão entre os ministros Amaral Santos e

Evandro Lins, a qual teve o seguinte teor:

O Sr. Ministro Amaral Santos: - É a própria Constituição, no art. 150, § 12,

que distingue prisão de detenção, permitindo a prisão sem necessidade daqueles requisitos.

O Sr. Ministro Evandro Lins: - Sem ordem de juiz ninguém pode ser preso.

O Sr. Ministro Amaral Santos: - É que a Constituição brasileira foi

reformulada. O art. 150, § 12, é diferente do art. 141 da Constituição anterior. Lembre-se, Excelência, que a Constituição foi reformulada.

O Sr. Ministro Evandro Lins: - Não me parece que tenha sido reformulada...

O Sr. Ministro Amaral Santos: - Vamos ver, faça-se o cotejo. Foi inteiramente reformulada neste ponto.

O Sr. Ministro Evandro Lins: - ...para prender...

O Sr. Ministro Amaral Santos: - Inteiramente. O Sr. Ministro Evandro Lins: - ...todo cidadão.

O Sr. Ministro Amaral Santos: - Vamos ler os dois textos, o anterior e o

atual.

O Sr. Ministro Evandro Lins: - Não é possível que a Constituição desejasse que se transformasse o território nacional numa cadeia.

O Sr. Ministro Amaral Santos: - Esse é outro problema. Estamos falando em

face da lei. O Sr. Ministro Evandro Lins: - Não pode ser o intuito do legislador:

“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de

autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão

ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal”.

(...) Note-se que o juiz dentro das limitações estabelecidas para decretar uma

prisão preventiva, que é remédio de exceção, “tirania judiciária”, como a chamam alguns autores, há de concluir a formação da culpa em 20 dias. Ao

encarregado de um inquérito se concede mais do dobro desse prazo.

(...) Não é possível interpretar a Constituição retroagindo a tempos anteriores a 1891. Não posso entender a Constituição do meu País nesses termos. Acho

que temos uma Constituição liberal, que não autoriza a prisão de civil por

qualquer autoridade, antes de o juiz pronunciar-se sobre essa prisão, a não

ser em flagrante delito. A lei positiva determina expressamente que o Inquérito Policial Militar só pode ser aberto ex officio contra militar; é o art.

114, § 1º, do Código. E diz o § 2º: “ A determinação para instauração do

inquérito compete, observada a ordem hierárquica ou administrativa, ao superior ou à autoridade a que se refere o parágrafo anterior”. Quer dizer,

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inquérito militar foi feito para apurar infração praticada por militar, não por

civil. É o que está na lei.

A Justiça Militar se destina a julgar militares. Só excepcionalmente é que esse foro se estende aos civis, em casos de crime contra a segurança

nacional. O civil não é julgado perante o foro militar nem nas infrações

militares. O art. 82 do C. J. Militar dispõe a respeito, dizendo: “Os civis, co-

réus em crime militar em tempo de paz respondem no foro comum, salvo se se tratar de delito definido em lei contra a segurança externa do país ou

contra as instituições militares”.

Quer dizer, nem nos crimes militares propriamente ditos o civil é submetido, pela lei, à Justiça Militar. Poderá um civil, um cidadão, qualquer, ficar

submetido a essa prisão por trinta dias e mais vinte, a critério da autoridade

militar, sem que esta disponha de um mandado de um juiz? Data vênia, a

construção que se pretendeu fazer encontra obstáculos na legislação positiva e, sobretudo, na Constituição do País, porque ela não permite, de modo

algum, que alguém seja preso a não ser em flagrante delito ou por ordem

escrita da autoridade competente e a autoridade competente é a autoridade judiciária. Esta é a exata interpretação da Constituição. Só há exceção da

prisão administrativa, prevista no Código Penal e destinada aos que

malversam o erário público. É a única exceção, em que o peculatário só pode libertar-se por habeas corpus se pagar o pagamento do débito ou da

apropriação.

Na hipótese, estamos diante da seguinte situação: se a infração é militar, o

foro competente é o comum na forma do art. 82 do CJM; se for política, foro competente é a Justiça Militar. Se se tratar de crime contra a segurança

nacional, dever-se-á obedecer ao que dispõe o art. 54 da Lei de Segurança:

submeter o procedimento à autoridade judiciária, que poderá decretar ou não a prisão preventiva por trinta dias e mais trinta de prorrogação.

Assim, Sr. Presidente, mesmo de acordo com o Código de Justiça Militar,

elaborado em plena Ditadura, ainda assim, a prisão decretada contra o paciente é flagrantemente ilegal.

O art. 156 do C.J.Militar tem sido objeto de exame no Supremo Tribunal

Federal. Tal disposição é incompatível com a Constituição. Já era

incompatível com a de 1946 e, agora, com a de 1967. De qualquer forma, mesmo que ele não fosse declarado inconstitucional, - a prisão que ele

permite só se aplicaria a militares e não a civis, isso mesmo dependendo de

aprovação pelo juiz competente, a quem a prisão deverá ser comunicada. (...) O Sr. Ministro Themístocles Cavalcanti: - Exigi não somente a

fundamentação, como a comunicação à autoridade judiciária.

O Sr. Ministro Amaral Santos: - Quer dizer que o suspeito jamais pode ser

detido? O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: - Desde que a suspeita seja fundamentada,

poderá ser detido.

O Sr. Ministro Amaral Santos: - O Supremo Tribunal vai consagrar essa tese de que o suspeito não pode ser detido. Que fique lavrado o meu protesto.

O Sr. Ministro Evandro Lins: - Para alguém ser preso, é preciso ser acusado

de qualquer crime, não suspeito, vagamente. Mas, Sr. Presidente, para ver como essa disposição é incompatível com o sistema constitucional vigente,

basta verificar, como acabei de ler, que essa prisão pode ser feita, segundo a

lei de então, sem comunicação ao Judiciário. Um juiz, para decretar prisão

preventiva, tem que fundamentá-la. A autoridade imparcial do juiz tem de dar as razões da prisão e não tem a liberdade de prender sem submeter seu

ato à verificação da autoridade superior, através de habeas corpus, através de

recursos. Tem que fundamentar seu despacho, justificá-lo plenamente. O Sr. Ministro Amaral Santos: - Prisão.

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O Sr. Ministro Evandro Lins: - Por mera suspeita, a autoridade executiva não

pode prender os cidadãos. Isso repugna à minha formação jurídica. Nem

mesmo o juiz pode prender sem justificar as razões da prisão (...) meu voto é no sentido de conceder o habeas corpus147.

Após esta longa discussão, o ministro Hermes Lima pronunciou seu voto afirmando

que Darcy Ribeiro estava sendo acusado de crime capitulado na Lei de Segurança Nacional e

no Código de Justiça Militar, mas como o crime estava capitulado na lei, os crimes do Código

seriam absorvidos pela lei. Assim, concedia a ordem. Também o ministro Victor Nunes

concedia a ordem.

Com isso, o habeas corpus foi concedido, por maioria. Pois bem, sem dúvida o caso

Darcy Ribeiro foi um caso de grande repercussão. Afinal, ele era um homem público que,

inclusive, havia sido ministro durante o governo de Goulart. Mas a relevância deste caso não

está apenas na repercussão que teve, mas também e principalmente no voto proferido pelo

ministro Evandro Lins, que acabou por exprimir diversas de suas convicções, dentre as quais

a necessidade de uma ordem de prisão fundamentada, até porque repugnava sua formação

jurídica considerar-se que numa mera suspeita se baseasse uma prisão.

Além de ressaltar a necessidade de fundamentação, o ministro se opôs à prisão para

averiguações e, neste sentido, considerava o art. 156 do CJM incompatível com a

Constituição de 1967, isto porque a Constituição não autorizava prisão de civil por qualquer

autoridade antes do pronunciamento do juiz, visto que, sem ordem do juiz ninguém poderia

ser preso, exceto em flagrante delito. Opunha-se, assim, a um instrumento que fora muito

utilizado no regime militar ainda durante a fase de investigação: a prisão para averiguação ou

prisão provisória.

Ainda em seu voto, afirmava que o inquérito policial-militar foi feito para apurar

infração praticada por militar e não por civil, convicção que, de certo modo, contrariava a

maneira como o regime estava exercendo a sistemática de punições, que eram precedidas

pelos IPM’s, fosse contra militares, fosse contra civis.

147 HC nº 46.415. RTJ 49/855-858.

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MOVIMENTOS ESTUDANTIS

Alguns acórdãos, dentre os selecionados para a análise, são os casos que se relacionam

aos movimentos estudantis que, sem dúvida, agitaram o cenário político nacional e

representaram destacada oposição ao regime militar. A fim de tratar dos movimentos

estudantis ocorridos em 1968, é necessário mencionar a organização estudantil União

Nacional dos Estudantes, a UNE, visto ser ela o órgão de representação dos estudantes e

bandeira de luta dos mesmos.

Fundada extra-oficialmente em agosto de 1937, foi reconhecida oficialmente em

dezembro de 1938, quando da aprovação de seu estatuto e eleita sua primeira diretoria oficial.

A partir de então, a organização fortaleceu-se, exercendo destacada atividade no movimento

estudantil brasileiro e ampliando sua atuação no cenário político do país.

Durante o XXIV Congresso da UNE, realizado em 1961, foi eleito presidente o

estudante Aldo Arantes, apoiado pela Associação Civil Juventude Universitária Católica

(JUC), a qual objetivava ampliar, no meio universitário, os ensinamentos da Igreja. Em meio

à crise nacional, relacionada à renúncia do presidente Jânio Quadros, iniciou sua gestão,

sendo uma de suas primeiras atribuições participar da “campanha da legalidade”, cujo

objetivo era garantir a posse do vice-presidente João Goulart. Assim, provisoriamente, a sede

da UNE foi transferida para o Rio Grande do Sul148, onde se encontrava o então governador

Leonel Brizola, responsável pela articulação da campanha. Ainda, como forma de protestar

contra a tentativa golpista dos militares, foi organizada uma greve estudantil.

A gestão do goiano Aldo Arantes também foi marcada pela ascensão, no movimento

estudantil, da Ação Popular (AP), grupo católico que surgiu em maio de 1962, devido à

“...dissensão entre a JUC e a hierarquia religiosa. Integrada por membros da JUC, a AP

visava a transformação radical da estrutura brasileira numa sociedade socialista”149.

148 A sede oficial da UNE era na cidade do Rio de Janeiro. 149 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 5.848.

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Essa ascensão do grupo católico refletiu nas eleições à presidência da UNE, tendo a

AP saído vitoriosa em julho de 1962 e em julho de 1963, com a eleição de seus candidatos,

respectivamente, Vinícius Caldeira Brant e José Serra.

Durante a gestão de Serra, o país já estava vivendo um período conturbado, tanto

política quanto socialmente e a UNE participou ativamente no cenário brasileiro,

pronunciando-se nas diversas questões que se debatiam

(...) defendendo a ampliação das liberdades democráticas, a proteção dos interesses nacionais – como o fortalecimento da Petrobrás, a reforma

universitária e a democratização do ensino (com intensa participação na

campanha nacional de alfabetização de adultos) -, a defesa da autodeterminação dos povos e uma política externa independente para o

Brasil.

Às vésperas do movimento político-militar de 31 de março de 1964, a entidade emitiu um manifesto ao povo brasileiro em forma de panfleto,

denunciando o ‘golpe reacionário’ em marcha, desejado pelos grupos

estrangeiros, pelos ‘gorilas militares e civis’, pelos latifundiários,

comerciantes, inescrupulosos etc. O ‘golpe’ estaria sendo articulado, segundo o manifesto, através da evocação de sentimentos religiosos – como

a Marcha da Família com Deus pela Liberdade -, da exploração da crise

disciplinar na Marinha, da associação dos governadores Carlos Lacerda, da Guanabara, Ademar de Barros, de São Paulo, Ildo Meneghetti, do Rio

Grande do Sul, Nei Braga, do Paraná e José Magalhães Pinto, de Minas

Gerais, e da união da maioria parlamentar, composta pelo Partido Social

Democrático (PSD) e pela UDN, em torno do impeachment do presidente João Goulart. O manifesto conclamava o povo a se manter organizado à

espera da palavra de ordem de seus líderes e concluía que ‘golpe é senha do

levante popular pelas reformas’ e ‘senha de greve geral’150.

Tendo sido o movimento militar vitorioso, a UNE passou a ser vítima de diversos atos

arbitrários cometidos pelo regime. Já no mês de abril de 1964, teve sua sede incendiada por

participantes do movimento militar, o que obrigou seus dirigentes a exilarem-se. Meses

depois, em novembro, teve de passar a atuar na clandestinidade151, pois foi posta na

150 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 5.848. 151 “Em junho de 1964, Castello enviara ao Congresso uma mensagem propondo a extinção da UNE e das

demais organizações estudantis. Com essa providência o regime (...) pretendia a tarefa impossível de despolitizar

as universidades. Seu efeito imediato foi a inibição da esquerda acadêmica. O efeito profundo foi bem outro.

Colocou-se gradativamente o movimento estudantil na clandestinidade, juntando-o aos partidos comunistas, ao radicalismo brizolista e, sobretudo, às centenas de sargentos e suboficiais que haviam sido expulsos das Forças

Armadas (...) A criminalização da política nas escolas foi um mau passo dado num país onde o movimento

estudantil, pela sua tradição, tinha um pé na esquerda e outro na elite, permitindo um tráfico de idéias e

sobrenomes”. GASPARI, Élio. A ditadura envergonhada. pp. 226-227.

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ilegalidade pela Lei Suplicy de Lacerda (lei nº 4.464), do dia 9, sendo que todas as instâncias

de representação dos estudantes ficaram submetidas ao MEC (Ministério da Educação).

Com a criminalização da política estudantil, ficou sem diretoria até julho do ano

seguinte quando, então, foi realizado, em São Paulo, seu XXVII Congresso, no qual foi eleito

Antônio Xavier para a presidência da entidade. Durante a realização desse evento, procurou

mobilizar os estudantes numa campanha contra a Lei Suplicy de Lacerda e contra o Decreto

Aragão, editado com a intenção de proibir qualquer organização estudantil em nível nacional,

permitindo-se apenas a organização em diretórios por universidade e escola.

Mesmo na ilegalidade, em julho de 1966, foi realizado, em Belo Horizonte, o XXVIII

Congresso da UNE, marcado pela oposição do movimento estudantil ao Acordo MEC-

USAID, o qual, estabelecido entre o governo federal e a United States Agency for

International Development, procurava, dentre outras coisas, transformar as universidades

mantidas pelo Estado em fundações, estimulando, com isso, a privatização do ensino superior

brasileiro.

Ainda em 1966, em setembro, 178 estudantes paulistas foram presos, durante a

realização de um congresso em São Bernardo do Campo. No dia 18 do mesmo mês, a UNE

decretou uma greve geral. No dia 22, a UNE elegeu o dia 22 como o Dia Nacional de Luta

contra a ditadura, caracterizando-se, cada vez mais, como uma entidade que lutava contra o

regime e pelo retorno das liberdades democráticas. Já em agosto de 1967, sempre na

ilegalidade, foi realizado o XXIX Congresso da UNE, no qual Luís Travassos foi eleito para

exercer a presidência da organização.

Porém, foi no ano de 1968 que os conflitos entre o movimento estudantil e o governo

ganharam nova dimensão. A opinião pública se mobilizou com a morte do estudante

secundarista, de 18 anos, Edson Luís Lima Souto, que, durante uma manifestação contra o

fechamento do restaurante Calabouço, ocorrida em 28 de março, foi morto à bala pela polícia,

no Rio de Janeiro. Durante a agressão policial, cerca de 20 estudantes saíram feridos.

No dia seguinte, aproximadamente 60 mil pessoas estiveram presentes ao cortejo

fúnebre do estudante. A manifestação transcorreu pacificamente, sem intervenção policial,

mas, em outros pontos do país, em demonstrações e marchas de protesto, estudantes e

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populares entraram em confronto com a polícia e, com isso, a UNE decretou uma greve geral

dos estudantes.

Despertava-se, assim, uma espécie de comoção por parte da sociedade civil. Apesar

disso, segundo o então presidente Costa e Silva, a juventude tinha que ouvir. Publicado no dia

5 de abril de 1968, no jornal O Estado de São Paulo, a matéria intitulada “A Juventude tem de

ouvir” revela a maneira como o governo procurou lidar com os acontecimentos que

mobilizaram, ao menos em parte, a sociedade brasileira:

‘A juventude tem de ser entendida, porém, antes de tudo, ela tem de escutar

e tem de ouvir’ – declarou ontem o presidente Costa e Silva, ao proferir a aula inaugural da Universidade de Pelotas (...) A juventude, prosseguiu o

presidente, ‘em sua lógica analítica e implacável, tem de ser entendida’ (...)

A tônica do discurso presidencial foi a juventude. Também o governador Abreu Sodré, ao chegar a Marília para proferir a aula inaugural da Faculdade

de Medicina (...) referiu-se à juventude e a seu desejo democrático de

recolocar o País na tranqüilidade indispensável para o trabalho. Na aula inaugural, referiu-se ao ‘estudante conscencioso’ – e não ao ‘conscientizado’

já que o neologismo indica a voz passiva na formação da consciência –

dizendo que ele é uma voz necessária no processo universitário e no

universo político (...) Ontem, dia em que se celebraram missas por intenção da alma de Edson Souto, os incidentes registrados em todo o País foram de

pequena gravidade. Uma bomba explodiu na catedral de Porto Alegre,

durante a celebração da missa – a qual não ocasionou vítimas. Incidentes registraram-se com alguma violência em Recife; em João Pessoa, ao saírem

da igreja, os estudantes foram dispersados pela polícia quando iniciavam um

comício, que se haviam comprometido a não realizar (...) Em Fortaleza, também houve incidentes sem maior gravidade. No Rio, o aparato militar e a

pronta ação repressiva impediram qualquer incidente maior. Em Santo

André, um manifestante foi agredido pelos que faziam a passeata, por não

concordar com a linha de radicalização política152.

Desenvolviam-se tentativas dos estudantes de manter a UNE funcionando, embora

enfrentassem restrições por parte do governo. Tornava-se, assim, mais do que uma entidade

que congregava os estudantes do Brasil, mas uma bandeira de luta.

Promoveu passeatas em diversas cidades do país, às quais se juntavam outros setores

da sociedade civil. A Passeata dos Cem Mil, marco da amplitude do movimento estudantil,

152 Páginas da História. Uma coletânea das primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo nos seus 125 anos

de história. p. 130.

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129

paralisou a cidade do Rio de Janeiro durante quase todo o dia 26 de junho. Era o palco de

protesto contra as violências que haviam sido praticadas pela polícia. Aglomeravam-se

entidades estudantis, lideradas por Vladimir Gracindo Soares Palmeira, intelectuais,

professores, religiosos, profissionais liberais, escritores e artistas, a fim de reivindicar o

retorno das liberdades democráticas, o fim da censura à imprensa e o aumento de verbas

destinadas à educação.

Dias depois, em 2 de julho, o então presidente Costa e Silva recebeu uma comissão de

estudantes, dentre os quais Vladimir, e intelectuais, para que a ele fossem transmitidas as

reivindicações da passeata. Como houve a recusa do governo em atender às reivindicações,

em protesto, uma nova passeata foi realizada na cidade do Rio de Janeiro, a passeata dos

Cinqüenta Mil.

Foi então que Gama e Silva, ministro da justiça, em 5 de julho proibiu a realização de

qualquer tipo de manifestação no território brasileiro, o que gerou o agravamento da tensão

entre o governo e o movimento estudantil. Os protestos prosseguiram e, com eles, a repressão.

Estudantes procurados e presos. O fato é que os jovens, segundo o regime, tinham que ouvir.

Mas ainda estava por vir uma das maiores derrotas da UNE: o Congresso de Ibiúna.

Na ilegalidade, fora programado o XXX Congresso da UNE, realizado numa fazenda na

cidade de Ibiúna, São Paulo, no mês de outubro de 1968. Seja por inocência, seja por desejo

de um confronto armado entre a segurança do Congresso e a polícia ou por um desejo de

prisão em massa, o fato é que foram convocados cerca de mil estudantes para que fosse eleita

a nova diretoria da UNE. Fantasia acreditar que o governo não perceberia. O Congresso fora

arruinado com a presença das tropas policiais militares, que cercaram a reunião na madrugada

de 12 de outubro. Cerca de setecentos estudantes foram presos pelos órgãos de repressão do

regime militar, dentre eles o presidente eleito Luís Travassos e os diversos líderes estudantis,

como Vladimir Palmeira, José Dirceu, Franklin Martins e Jean Marc van der Weid. O jornal

O Estado de São Paulo, do dia 13 de outubro de 1968, relata o caso, em matéria intitulada

“Prêsa cúpula da ex-UNE”:

A detenção de 720 estudantes numa fazenda perto de Ibiúna, efetuada

ontem pela manhã, desarticulou a cúpula da ex-UNE, e lançou um início de

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130

pânico no setor estudantil de esquerda. Estão detidos, entre outros, Wladimir

Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos, Antônio Ribas, Edson Soares, Paulo

Sgeller, e Matta Machado, tendo-se como certa a prisão de todos os presidentes das UEEs153 e representantes eleitos nos diferentes Estados da

Federação.

Aprisionados às 7 e 30, ao fim de uma operação policial que envolveu

170 elementos da Força Pública e 30 do DOPS, os estudantes foram transportados em ônibus, caminhões e peruas Kombi para São Paulo, aonde

chegaram por volta das 17 e 30. As lideranças mais notoriamente conhecidas

passaram inicialmente pela Casa de Detenção, sendo em seguida transportadas para o DOPS. Nessa divisão policial, procede-se à

identificação e triagem dos detidos.

Wladimir Palmeira, valendo-se do fato de ser desconhecido da polícia

paulista, veio num ônibus e não na Kombi que transportou os líderes. Na altura do cruzamento da av. Prestes Maia com a av. Tiradentes, saltou por

uma janela, sendo detido, no entanto, 50 metros mais adiante. Conduzido à

Detenção, de lá foi transportado para o DOPS.

Tristeza

Em cada ônibus ou caminhão, totalmente lotado, havia 5 soldados

armados. No interior dos veículos, o silêncio era total. Os estudantes abrigavam-se do frio com cobertores colocados sobre os ombros. Os rostos

dos que estavam próximos das janelas dos ônibus denunciavam a tristeza, o

cansaço e a frustração de que se achavam possuídos.

“Armadilha” Estranhando a realização do congresso da ex-UNE na região de

Ibiúna, o coronel Barsotti, comandante do 7º Batalhão Policial de Sorocaba,

que dirigiu a operação, declarou que os estudantes haviam caído numa armadilha. Em fonte altamente credenciada, soube-se, no fim da noite, que a

Polícia desde muito tempo sabia que o congresso seria realizado em Ibiúna, e

permitiu que os estudantes lá se reunissem. A Polícia afirma ter apreendido farto material subversivo. Uma caixa

de bombas, cujo tipo ninguém soube explicar qual fosse, também foi trazida

para São Paulo. Apesar de os estudantes não terem oposto a menor

resistência à ação policial, acredita-se que haja armas enterradas no local onde estavam encampados154.

Também o jornal Folha de S. Paulo, de domingo, 13 de outubro de 1968, em matéria

denominada “Congresso da UNE: todos presos”, relatou o episódio:

Cerca de mil estudantes que participavam do XXX Congresso da UNE,

iniciado clandestinadamente num sitio, em Ibiuna, no Sul do Estado, foram

presos ontem de manhã por soldados da Força Publica e policiais do DOPS.

Estes chegaram sem serem pressentidos e não encontraram resistencia. Toda a liderança do movimento universitario foi presa: José Dirceu, presidente da

UEE, Luís Travassos, presidente da UNE, Vladimir Palmeira, presidente da

153 Uniões Estaduais de Estudantes. 154 Páginas da História. Uma coletânea das primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo nos seus 125 anos

de história. p. 135.

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131

União Metropolitana de Estudantes, e Antonio Guilherme Ribeiro Ribas,

presidente da União Paulista de Estudantes Secundarios, entre outros. Eles

foram levados diretamente ao DOPS155. Os demais estão recolhidos ao presidio Tiradentes. Desde segunda-feira os habitantes de Ibiuna notaram a

presença de jovens desconhecidos, que iam à cidade comprar pão, carne,

escovas e pasta de dentes, despertando suspeitas ao adquirir mais de NCr$

200 de pão de uma só vez. Essas informações foram transmitidas ao DOPS e à Força Publica, que desde quinta-feira já conheciam segundo afirmaram —o

local exato do Congresso. A denuncia de um caboclo, que fora barrado ao

tentar chegar até o sitio Muduru, onde estavam os estudantes, fortaleceu a convicção da Policia de que o congresso seria realizado ali. Depois de

avançar alguns quilometros de carro e outro trecho a pé, por causa da lama

da estrada, 215 policiais chegaram ao local às 7h15 de ontem, organizaram o

cerco aos estudantes e dispararam algumas rajadas de metralhadora para o ar, para intimidá-los. Sem resistir, os congressistas foram colocados em fila e

levados aos onibus requisitados para transportá-los para a capital. O

governador Abreu Sodré, ao ser homenageado por trabalhadores do DAE, no Horto Florestal, referiu-se ao episodio e reafirmou sua disposição de ‘manter

a paz e a tranquilidade para a população que deseja trabalhar’. E

acrescentou, referindo-se à prisão dos participantes do congresso da UNE: ‘Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei,

após horas de angustia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que

participavam do congresso da UNE’ (...)156.

A maioria dos estudantes, após ser fichada e enquadrada na Lei de Segurança

Nacional, ficou presa por pouco tempo157. Entretanto, os líderes estudantis, que totalizavam

155 Delegacias de ordem política e social, o Dops era a polícia política. 156 “Congresso da UNE-todos presos”. Banco de Dados – Acervo de Jornais. In:

[file://A:\Banco%20de%20Dados%20Folha%20-%20Acervo%20de%20Jornais.htm]. 157 O Supremo Tribunal Federal teve um papel muito importante, concedendo habeas corpus a diversos

estudantes que haviam participado do Congresso da UNE em Ibiúna, realizado no dia 12 de outubro de 1968.

Entre os dias 10 e 11 de dezembro de 1968, o Tribunal julgou três habeas corpus, de números 46.471, 46.472 e

46.470, impetrados por Heleno Cláudio Fragoso e Aldo Lins e Silva, em favor de diversos estudantes

universitários, residentes em São Paulo, que haviam sido presos e denunciados no dia 22 de outubro, como

incursos nas sanções do decreto-lei 314, perante a 2ª Auditoria da 2ª Região Militar. Basicamente, a defesa

alegou que o ato de flagrante deveria ser anulado, por ter sido realizado pela polícia estadual, autoridade

incompetente; que a reunião que os estudantes pretendiam realizar em Ibiúna havia sido abortada e, além disso, não havia que se falar em flagrante de funcionamento da UNE, inclusive porque a prisão dos estudantes havia se

efetuado às primeiras horas da manhã (por volta das 8 horas), quando os estudantes ainda dormiam; que a

denúncia era inepta, uma vez que não havia indicado a ação que os pacientes teriam praticado; que na denúncia

não havia sido evidenciado o elemento essencial para a configuração do ilícito penal previsto no art. 36, III da

Lei de Segurança Nacional, uma vez que a entidade não havia sido configurada na denúncia como legalmente

dissolvida ou suspensa; que não constituiria crime contra a segurança do Estado reestruturar e fazer funcionar a

UNE e que o prazo da prisão preventiva havia sido ultrapassado, uma vez que ele não poderia exceder 60 dias

(lei de segurança nacional, art. 24). Pois bem, a 2ª Turma do Supremo concedeu, por unanimidade de votos,

habeas corpus a José Benedito Pires Trindade, Omar Laino, Marcos Aurélio Ribeiro, Francisco Antônio

Marques da Cunha, Walter Aparecido Cover, Marcos Henzi Netto e Franklin de Souza Martins e, como

extensão, foi concedido em favor de Helenira Resende de Sousa Nazareth (HC nº 46.471). Também, por

unanimidade, foi concedido habeas corpus a Ivo Malerba, Gilberto Reis, Maria Augusta Carneiro Ribeiro e Maria Helena Malta Rezende (HC nº 46.472). Já no dia 11, por maioria de votos, um habeas corpus semelhante,

cujos pacientes eram José Dirceu de Oliveira e Silva e Luiz Gonzaga Travassos da Rosa, a que se acrescentaram

os pedidos em prol de Antônio Guilherme Ribeiro Ribas e Vladimir Gracindo Soares Palmeira foi denegado

quanto ao excesso de prazo da prisão. Entretanto, no dia seguinte, unanimemente, o habeas corpus foi concedido

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15 estudantes, permaneceram encarcerados, tendo sido, em 16 de outubro, Vladimir Palmeira,

Luís Travassos, Franklin Martins e José Dirceu, entre outros, condenados pela Justiça Militar

de São Paulo.

A fim de que os 15 prisioneiros políticos fossem libertados, um grupo de militantes da

Dissidência Estudantil da Guanabara, ligados à Aliança Libertadora Nacional (ALN) e ao

Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)158 seqüestraram, no Rio de Janeiro, no dia 4

de setembro de 1969, o embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick. Em troca do

refém, o grupo pedia a libertação dos 15 militantes e a publicação, na grande imprensa, de um

comunicado, assinado pelos dois grupos de esquerda, no qual manifestavam seu “repúdio à

ditadura militar”.

O episódio teve fim poucos dias depois, tendo o governo cedido às exigências. Já no

dia 5, foi baixado o Ato Institucional nº 13, pelo qual foi instituído o “banimento do território

nacional de pessoas perigosas para a segurança nacional”. No dia 6, os 15 prisioneiros

políticos “...foram libertados e embarcados imediatamente num avião que os conduziu ao

México”159.

Sem dúvida, o episódio chocou a população brasileira. Foi um dos maiores arrastões,

senão o maior, da história nacional. A classe média que achava graça na rebeldia dos filhos

atemorizava-se com o regime que ajudara a instalar, um regime que, para alcançar seus

(HC nº 46.470; diligência). Nota-se, pois, que muitos estudantes foram postos em liberdade, sem prejuízo da

ação penal, a qual prosseguiu principalmente para os líderes. Com certeza, o caso da UNE em Ibiúna despertou

muita atenção da opinião pública. Afinal, um dos maiores arrastões da história do Brasil, senão o maior, havia

ocorrido e o Supremo deveria se pronunciar a respeito. Apesar de ter sido um caso de grande repercussão, não há

como se afirmar que foi o responsável pela aposentadoria compulsória dos ministros Evandro Lins, Hermes Lima e Victor Nunes, como fora publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, em artigo denominado “A derrota

na vitória?”, do dia 25 de março de 1994, no qual Márcio Moreira Alves afirmou: “Em 1968, o Supremo

concedeu um habeas-corpus aos líderes estudantis presos no Congresso da UNE, realizado em Ibiúna, e os três

ministros foram, finalmente, aposentados pelo AI-5”. Isto porque o ministro Evandro Lins nem sequer votou,

uma vez que estava impedido (Aldo Lins e Silva, seu parente, era um dos impetrantes). Também o ministro

Hermes Lima não votou em nenhum dos casos e Victor Nunes, apesar de ter votado, não pronunciou em seu voto

nenhuma convicção política ou ideológica que pudesse ocasionar sua aposentadoria. Inclusive, deve-se ressaltar

que as votações foram unânimes, ou seja, todos os ministros, seja por convicção, seja pelo coração (ao proferir

seu voto na petição de HC nº 46.470, p. 940, o ministro Amaral Santos afirmou: “Somos levados a concedê-lo,

mais levados pelo coração do que pelo sentimento jurídico”) ou mesmo por um influxo de caridade (o ministro

Aliomar Baleeiro, na p. 943 da petição de HC nº 46.470 afirmou: “...é possível que o fundo cristão de minha

educação (...) a despeito de possível dúvida, ainda sofra um influxo de caridade”, concederam os habeas corpus aos estudantes presentes no Congresso da UNE em Ibiúna. 158 A Dissidência Estudantil da Guanabara passou a apresentar-se como Movimento Revolucionário 8 de

Outubro (MR-8), homenagem a Ernesto Che Guevara, líder guerrilheiro e herói da Revolução Cubana. 159 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 4.246.

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objetivos, não se intimidava. Preferia bater em estudantes que se atreviam a falar. E mesmo

clandestinamente eles falaram, buscando transformar as estruturas do país, para que ele se

tornasse melhor. Perderam a inocência porque, de fato, não cabiam no papel que o regime

militar lhes oferecia. Era perigoso falar.

(...) Dividido entre o prestígio da AP e a ação burocrática do Partido

Comunista, o movimento estudantil brasileiro foi apanhado pela deposição de Goulart num momento radical porém sinceramente transformador. Na

retórica de sua cúpula, era socialista. Na base, os jovens podiam até ser

anticomunistas, mesmo porque isso não tinha muita importância. Eles acreditavam, acima de tudo, na capacidade de a mobilização popular – ou,

pelo menos, estudantil – mudar para melhor as estruturas de poder da

sociedade brasileira através do exercício das franquias democráticas. Não cabiam no papel que o regime lhes oferecia160.

Apesar disso, a UNE procurou manter uma direção, tendo sido empossados mais dois

presidentes: Jean Marc van der Weid, que fora preso em 1969, e Honestino Guimarães,

desaparecido em 1973. Entretanto, sem condições políticas para a atuação da entidade, até

1979 ela viveria um período de paralisação de suas atividades.

Para isso contribuiu o Decreto-Lei nº 477, baixado pelo presidente da

República, general Artur da Costa e Silva, em 26 de fevereiro de 1969, dois

meses depois da promulgação do AI-5. O decreto previa as infrações disciplinares de cunho político dos professores, alunos e funcionários de

estabelecimento de ensino, bem como as penas, bastante severas, a eles

aplicáveis. Os professores e funcionários seriam demitidos, não podendo ser contratados por outros estabelecimentos de ensino durante o prazo de 5 anos.

Os estudantes seriam desligados dos cursos que estivessem fazendo e

proibidos de se matricular em qualquer outro estabelecimento de ensino durante os três anos seguintes. O Decreto-Lei nº 477 foi aplicado mais

intensamente até 1973, período em que atingiu 263 pessoas, quase todas

estudantes161.

160 GASPARI, Élio. A ditadura envergonhada. p. 228. 161 Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. p. 5.849.

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O CASO VLADIMIR PALMEIRA

HC nº 46.060 RTJ 50/558

No dia 3 de agosto de 1968 o estudante Vladimir Gracindo Soares Palmeira foi preso

por seu envolvimento em movimentos estudantis ocorridos nos dias 19, 20 e 21 de julho de

1968, no Estado de Guanabara. Sua prisão foi feita pela polícia, Dops, sendo ele entregue ao

Exército, que o manteve preso em um quartel para que o encarregado do inquérito policial-

militar, nomeado por autoridade militar, procedesse a investigações policiais, a fim de que os

fatos constantes da portaria nº 8, de 28 de junho de 1968, do comandante do I Exército,

fossem apurados, por haver fortes e evidentes indícios de que o paciente havia infringido

dispositivos do dec-lei 314/67. O fundamento utilizado para o pedido de prisão preventiva foi

o art. 156 do Código de Justiça Militar162, no qual era afirmado:

Qualquer das autoridades referidas no art. 115163 poderá ordenar a detenção ou prisão do indiciado, durante as investigações policiais, até trinta dias.

§ 1º - Se houver necessidade da detenção ou prisão do acusado por tempo

superior a trinta dias, o comandante da região ou autoridade correspondente

na Armada poderá prorrogar esse prazo por mais vinte dias, mediante solicitação fundamentada e por via hierárquica.

§ 2º - O encarregado do inquérito, depois das diligências procedidas, poderá

ainda pedir a prisão preventiva do indiciado nos termos do art. 149164. § 3º - Se o indiciado não for oficial, o pedido será feito ao Conselho

Permanente de Justiça: e se for oficial, sê-lo-á ao auditor competente, que

decidirá como de direito.

§ 4º Nas 1ª e 2ª Regiões, o pedido será dirigido ao auditor mais antigo.

162 O Código de Justiça Militar - CJM - foi baixado com o decreto-lei nº 925, de 2 de dezembro de 1938. 163 O art. 115 do CJM assim estipula: A polícia militar será exercida pelos Ministros da Guerra e da Marinha,

Chefes do Estado-Maior do Exército e da Armada, inspetores e diretores de Armas e Serviços, Diretor Geral, ao Pessoal da Armada, comandantes de regiões, divisões, brigadas, guarnições e unidades e comandos

correspondentes na Marinha, chefes de departamentos, serviços, estabelecimentos e repartições militares e

navais, por si ou por delegação a oficial; § 1º Nos casos de indícios contra oficial, a delegação far-se-á a oficial

de patente superior à do indiciado; § 2º Para funcionar como escrivão no inquérito, a autoridade que o instaurou

nomeará, por proposta do encarregado do mesmo um sargento, se o indiciado não for oficial, ou um oficial

subalterno ou capitão, se for o indiciado oficial; § 3º Em casos excepcionais, a autoridade que instaurou o

inquérito poderá, a pedido do encarregado do mesmo, solicitar que o promotor acompanhe as diligências; § 4º O

prazo para conclusão do inquérito é de trinta dias. Por motivos excepcionais, poderão prorrogá-lo os Inspetores e

Diretores de Armas e de Serviços e os comandantes de região por mais vinte dias, e o Ministro da Guerra ou da

Marinha pelo prazo que se fizer justificadamente necessário à sua conclusão. O pedido de prorrogação deve ser

feito em tempo oportuno de modo a ser atendido antes da terminação do prazo. 164 Art. 149. Fora do flagrante delito, a prisão, antes da culpa formada, poderá ser ordenada em qualquer fase do processo, quando a ordem, a disciplina ou o interesse da justiça o exigir, ocorrendo em conjunto, ou

isoladamente, as condições seguintes: a) declaração de duas testemunhas, que deponham sob compromisso e de

ciência própria, ou prova documental, de que resultem veementes indícios de culpabilidade; b) confissão do

crime.

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Além desse artigo, embasavam a prisão no dec-lei nº 314/67, art. 54:

Art 54. Durante a fase policial e o processo, a autoridade competente para a

formação deste, ex officio, a requerimento fundamentado do representante do

Ministério Público ou de autoridade policial, poderá decretar a prisão preventiva do indiciado, ou determinar a sua permanência no local onde a

sua presença for necessária à elucidação dos fatos a apurar.

§ 1° A ordem será dada por escrito, intimando-se por mandado o indiciado e deixando-se cópia do mesmo em seu poder.

§ 2° A medida será revogada desde que não se faça mais necessária, ou

decorridos 30 dias de sua decretação, salvo sendo prorrogada uma vez, por igual prazo, mediante a alegação de justo motivo, apreciada pelo juiz.

§ 3° Quando o local de permanência não for o do domicílio do indiciado, as

despesas de sua estada serão indenizadas pontualmente pela autoridade

competente, policial ou judiciária, conforme for o caso, por conta do Tesouro Nacional.

§ 4° Com a medida de permanência, a autoridade judiciária poderá ordenar a

apresentação, diária ou não, do indiciado, em hora e local determinados. § 5° O não cumprimento do disposto na ordem judicial de permanência

justificará a decretação da prisão preventiva.

Percebe-se que a finalidade da instauração do IPM, neste caso, era a apuração de fatos

e a devida responsabilidade do líder estudantil. Desta vez, o IPM funcionaria como

instrumento de combate à subversão nos movimentos estudantis porque, de fato, os IPM’s

eram peças centrais dos processos da Justiça Militar. Ainda, a prisão fora utilizada, muito

embora o caso se encontrasse na fase de investigação o que, mais uma vez, revela a utilização

da prisão para averiguações, também conhecida como prisão provisória.

Ora, o caput do art. 156 do CJM dispunha que a detenção ou prisão do indiciado

poderia ser ordenada durante as investigações policiais, por até 30 dias. Entretanto, esse

dispositivo apenas teria aplicação por autoridades militares aos seus subordinados e a pessoas

que tivessem sido indiciadas em crime militar – para a repressão de crimes contra a segurança

nacional ou as instituições militares. Mas este não era o caso. O jovem, civil, havia

participado de movimentos estudantis e a apuração de infrações relacionadas a civis não

competia à autoridade militar, mas antes à autoridade policial (Polícia Federal Civil), face ao

art. 54 do dec-lei 314/67 e ao art. 8º, VII, “c” da Constituição de 1967, que dispunha:

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Compete à União:

VII – organizar e manter a polícia federal com a finalidade de prover:

c) a apuração de infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e social, ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União,

assim como de outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual e

exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

Sendo assim, seria competente para decretar a prisão preventiva, prorrogá-la ou

mesmo revogá-la a autoridade judiciária e não a militar.

Ainda quanto à prisão, somente quando terminado o IPM poderia o encarregado,

baseado no art. 149 do CJM, pedir a prisão preventiva, tendo sido o crime confessado ou

tendo sido duas testemunhas ouvidas. No entanto, o pedido de prisão era desfundamentado,

pois Vladimir apenas havia confessado ser líder estudantil e haver liderado os movimentos

estudantis de rua a que os jornais e revistas da época haviam divulgado. Quanto às

declarações das testemunhas, as mesmas eram inexistentes, uma vez que o encarregado do

IPM pretendia preencher o requisito exigido pela lei com o seguinte: fazendo referência a

passeata dos estudantes, ocorrida no dia 4 de julho e ao comício, afirmava:

Como provas testemunhais e devido à premência de tempo em tomar a

termo, este encarregado indica Jorge Elias Burgelli, residente à rua Marquês

de Valença, nº 57/304 – Tijuca, e Atenor Mariano Carvalho Vasconcelos, residente à alameda São Boaventura, 364, casa 22 – Niterói, para

testemunharem quanto ao discurso proferido por Vladimir Gracindo Soares

Palmeira, frente ao STM, no dia 4 de julho próximo passado165.

Pois bem, o advogado Marcelo Nunes de Alencar requereu ordem de habeas corpus ao

Superior Tribunal Militar, sob o fundamento do art. 150, § 12 da Constituição de 1967,

dispositivo no qual era afirmado:

Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à

liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

165 Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Organização de Renato

Lemos. p. 256.

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137

§ 12 – Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de

autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão

ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.

Esteve em pauta no Superior Tribunal Militar o caso Vladimir Palmeira, nas sessões

dos dias 9, 12 e 14 de agosto de 1968. Sem dúvidas, o caso repercutiu tanto na esfera civil,

quanto na militar, na medida em que o julgamento do líder estudantil chamava a atenção da

opinião pública e também pelo fato de estar em pauta a tensão que fora muito comum durante

o governo militar, qual seja, a dicotomia civil - militar.

Na época, um dos membros do Superior Tribunal Militar era o general-do-Exército

Peri Constant Bevilaqua que, apesar de integrar o Superior Tribunal Militar e de ter conferido

apoio inicial ao governo militar, por acreditar que com o mesmo seria restabelecida a ordem

legal, o general passou a ser considerado um dos cidadãos que deveria ser expurgado pela

operação limpeza166.

Neste caso, o general foi voto vencido e fundamentou seus argumentos em questões

bastante relevantes. Vejamos.

Desde 2 de fevereiro de 1965, deveria ter cessado a instauração de IPMs, contra civis, que não cometeram crime previsto no COM. Com efeito, o

Comando Supremo da Revolução, por portaria nº 1, de 14 de abril de 1964,

designou um oficial general para, como encarregado de um Inquérito Policial Militar, de âmbito nacional, apurar fatos e as devidas responsabilidades de

todos aqueles que, no país, tenham desenvolvido ou ainda estejam

desenvolvendo atividades capituláveis nas leis que definem os crimes militares e os crimes contra o Estado e a ordem política e social. Tal portaria

foi complementada pelo Ato 9, também de 14 de abril de 1964, que lhe deu

maior amplitude. Em 2 de fevereiro de 1965, o Diário Oficial, à página

1.264, publicou um decreto da véspera, concedendo dispensa por conclusão dos trabalhos que lhe foram atribuídos ao general do exército Hugo Panasco

Alvim, que, em substituição ao marechal R/1 Estevão Taurino de Resende

Neto, fora, por decreto de 6 de agosto de 1964, designado encarregado daquele IPM de âmbito nacional. Logicamente deveriam ter sido encerrados

todos os 763 IPMs, até então abertos, a partir da conclusão dos trabalhos

referidos naquele decreto e cessadas as instaurações de novos IPMs, contra

civis, e cessadas também as prisões destes, por ordem das autoridades

166 O General-do-Exército Peri Constant Bevilaqua foi aposentado do cargo de ministro do Superior Tribunal

Militar por decreto de 16 de janeiro de 1969, o mesmo decreto pelo qual foram atingidos Evandro Lins e Silva,

Vitor Nunes e Hermes Lima, membros do Supremo Tribunal Federal.

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militares (inclusive, em muitos casos, por ordem dos próprios encarregados

de IPM, como temos assistido). Mas assim não aconteceu; até hoje, como

estamos vendo, continuam autoridades militares a proceder como se não tivesse sido baixado aquele decreto de 1º de fevereiro de 1965, pelo

presidente da República, concedendo dispensa ao general Hugo Panasco

Alvim, por conclusão dos trabalhos que lhe foram atribuídos e o Brasil não

tivesse reingressado em regime de normalidade constitucional com a vigência, desde 15 de março de 1967, da Constituição de 24 de janeiro de

1967167.

Com isso, acreditava o general estar sendo Vladimir Palmeira submetido à coação

ilegal. Afinal, não havia sido ele preso em flagrante delito e não havia sido preso por

autoridade competente, pois era ele um civil que não havia cometido nem era suspeito de ter

cometido crime militar.

Assim sendo, Vladimir não deveria continuar sujeito a prestar depoimento, como

indiciado, perante autoridade incompetente, em inquérito que, segundo o general Peri, versava

sobre assunto que estava fora da ação legal das autoridades militares. Com isso, afirmava ser

necessário

(...) trancar o IPM, instaurado ilegalmente, na área estudantil civil, para

apurar fatos que não são da competência de nenhuma autoridade militar, seja do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, sem prejuízo, naturalmente, da

Polícia Federal, se assim o entender, abrir ou prosseguir em inquérito já

aberto, para apurar responsabilidades penais, face ao decreto-lei nº 314/67, nos movimentos estudantis ocorridos nos dias 19, 20 e 21 de julho deste ano,

no Estado da Guanabara. E isso por competir a apuração de infrações penais,

contra a segurança nacional e a ordem política e social, segundo dispõe, de maneira incontroversa, a Constituição do Brasil, no art. 8º, item VII, alínea c,

àquela Polícia Federal168.

Além disso, ressaltava:

Logicamente, se a prisão do estudante Vladimir Palmeira, com fundamento

no invocado art. 156, do CJM fosse legal, não haveria nenhuma razão para o

167 Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Organização de Renato

Lemos. p. 244. 168 Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Organização de Renato

Lemos. p. 242.

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encarregado do IPM solicitar à auditoria a decretação, pelo Conselho

Permanente de Justiça169, da prisão preventiva do indiciado do seu IPM,

quando tal pedido – está expresso no próprio art. 156, § 2º - só poderá ter lugar depois das diligências procedidas170.

Algumas passagens do voto do general, numa leitura feita nos dias de hoje, merecem

destaque, pois escapam a uma análise puramente jurídica do caso. Podem-se destacar as

seguintes passagens:

Os IPMs sobre crimes políticos e os julgamentos de políticos por militares

levam, fatalmente, a política para os quartéis e, quando a política entra por uma porta do quartel, a disciplina sai por outra... Não podem coexistir, sob o

mesmo teto, a política e a disciplina militar (...) Este Egrégio Tribunal tem,

neste momento, uma grave responsabilidade; o julgamento deste processo poderá influir nos destinos da democracia em nosso país. É tempo de pôr um

paradeiro nos abusos que vêm sendo cometidos com as prisões de civis, de

ambos os sexos, por militares, sem base legal para isso. Desgraçado do povo

que perde a confiança na justiça de seu país: é lançado ao desamparo, presa fácil de qualquer aventura totalitária. E os totalitarismos, tanto da direita

quanto da esquerda, são igualmente execráveis; ambos são liberticidas. A

democracia se firma com a lei: ninguém é forte fora da lei (...) As agitações estudantis e alguns erros praticados pelos jovens não serão conseqüência de

falta de bons exemplos dos mais velhos? Não seremos nós, os homens de

idade madura e muitos de idade provecta, os responsáveis pela falta de exemplo aos moços, de respeito às leis do país? Os comunistas autênticos

devem ficar satisfeitos e até eufóricos com os atos de prepotência e de

arbitrariedade, praticados contra os jovens, porque levarão estes ao desamor

à liberdade, a não acreditar nem estimar as instituições democráticas que adotamos, e o pior, a perda da fé na justiça, gerando-se, assim, receptividade

para o comunismo (...) Tenho fundadas esperanças de que o Excelso Pretório

corrija os erros praticados por este Egrégio STM (...) Ainda há juízes em Brasília171.

De certa forma, pode-se afirmar que o general se opunha ao papel que fora previsto

para o órgão máximo da Justiça Militar, qual seja, ser um órgão complementar ao aparato de

coerção política.

169 O pedido de prisão preventiva de Vladimir Palmeira foi formulado pelo Coronel Presidente do inquérito

policial militar, que fora instaurado por ordem do Comando da 1ª Divisão de Infantaria. O pedido foi deferido

por decisão do Conselho Permanente de Justiça da 2ª Auditoria da Aeronáutica. 170 Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Organização de Renato Lemos. p. 270. 171 Justiça Fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Organização de Renato

Lemos. pp. 252-254.

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140

Assim, concedia a ordem de habeas corpus e mandava trancar o inquérito militar na

área civil estudantil. Ressaltava que outro inquérito poderia ser instaurado pela autoridade

civil competente, para que fossem apurados fatos atribuídos ao paciente e a outros estudantes

da Guanabara que tivessem definição penal na Lei de Segurança Nacional.

Tendo sido o general voto vencido, o caso foi para o Supremo Tribunal Federal.

Novamente, o advogado Marcello Nunes de Alencar impetrou habeas corpus em favor

de Vladimir Palmeira, sob alegação de que estava o paciente preso ilegalmente, pois as

autoridades militares não tinham competência para apurar infrações penais contrárias à

segurança nacional ou à ordem política e social; o Conselho Permanente de Justiça da 2ª

Auditoria da Aeronáutica, o qual expediu o decreto de prisão preventiva seria incompetente;

teria havido excesso de prazo para que o IPM fosse concluído, dada a previsão do art. 115, §

4º do Código de Justiça Militar (o prazo para a conclusão do IPM deveria ser de 30 dias) e

haveria falta de fundamentação para o decreto de prisão preventiva.

O ministro Evandro Lins iniciou seu voto afirmando ser exceção o processo e

julgamento de civil perante o foro militar. Ressaltava que, durante a vigência da Constituição

de 1946, o crime deveria ser cometido contra a segurança externa do país ou contra as

instituições militares para que o civil pudesse ser processado e julgado perante o foro militar.

Com a alteração do ordenamento, estabelecida com o advento do AI-2 (que, segundo o

ministro era “...norma de hierarquia constitucional, que teve aplicação imediata172”), a

Justiça Militar teve sua competência ampliada e, com isso, poderia julgar civis também nos

crimes relacionados à segurança interna do país, crimes estes, à época definidos na lei 1802,

de 1953.

A exceção foi mantida na Constituição de 1967 que, em seu art. 122, caput e § 1º173

retomou a previsão estabelecida no art. 8º, caput e § 1º do AI-2. Ora, o texto constitucional,

172 HC nº 46.060. RTJ 50/576. 173 Art. 122 da Constituição de 1967: À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos

em lei, os militares e as pessoas que lhe são assemelhadas; § º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares, com

recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal. Observa-se que a lei ao qual o dispositivo citado se refere é

o decreto-lei 314, de março de 1967 (a “atual” Lei de Segurança Nacional).

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141

ao fazer referência ao processo e julgamento, fazia alusão à ação penal propriamente dita,

iniciada com a denúncia do Ministério Público.

Já a apuração de infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e

social deveria ser feita pela Polícia Federal, pelo disposto no art. 8º, VII, “c” da CF/67. Nestes

casos, a polícia judiciária deveria ser exercida pelo departamento federal de segurança

pública, o qual faria as investigações e remeteria o resultado para a Justiça Militar, que seria

competente para processar e julgar os indiciados no inquérito por ela procedido.

Segundo Evandro, o Constituinte havia estabelecido dessa maneira por dois motivos: a

regra é que o civil deveria estar submetido à autoridade civil e não à militar; a autoridade

militar não era aparelhada para exercer todos os atos necessários a um inquérito judicial, isto

porque a destinação constitucional das Forças Armadas era outra, tanto que o ministro

afirmou:

Acredito que o pensamento do constituinte foi o de não amesquinhar o papel

das Fôrças Armadas, o que aconteceria se lhes desse a atribuição secundária

de exercer a função de Polícia Judiciária. É muito mais nobre e muito mais importante a tarefa que lhe é cometida pela Constituição174.

Isto posto, Evandro afirmava não haver nulidade processual no inquérito, uma vez

que, segundo o ministro, as peças de informação que instruem a denúncia poderiam ser de

qualquer natureza e, neste sentido, o fato de se ter procedido a um inquérito policial-militar

que resultou em elementos que levaram o Ministério Público Militar a oferecer a denúncia

não geraria a nulidade do processo, muito embora fosse mais aconselhável que os inquéritos

contra civis fossem realizados por autoridades policiais civis.

Passou, assim, a analisar se a autoridade militar poderia prender o civil.

174 O ministro fazia referência ao art. 92 da CF/67, o qual estabelecia: As forças armadas, constituídas pela

Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e

dentro dos limites da lei; § 1º - Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes

constituídos, a lei e a ordem; § 2º - Cabe ao Presidente da República a direção da guerra e a escolha dos

Comandantes-Chefes. A passagem citada é encontrada no HC 46.060. RTJ 50/577.

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Entendia que o art. 156 do Código de Justiça Militar não era aplicável aos civis, a não

ser no caso de infração contra a segurança nacional, visto que, neste caso, a lei permitia prisão

por trinta dias, prorrogáveis por mais vinte, desde que houvesse prévia decisão do Judiciário.

Ressaltava o disposto no art. 114175 do CJM e, embasando-se neste artigo, afirmava

que as Forças Armadas não se destinavam a apurar infrações civis, na medida em que só se

permitia a abertura de um inquérito quando o acusado estivesse sob as ordens e fosse

subordinado hierárquico do responsável pela abertura.

Neste sentido, entendia que:

Só por exceção é que o fôro militar estende-se aos civis. Note-se: - o fôro

militar, o julgamento perante a Justiça Militar, porque assim o determina a

Constituição, e não a apuração das infrações, a fase preliminar das investigações, porque contra isso estão a Constituição e o próprio Código da

Justiça Militar. A área da jurisdição da Justiça Militar torna-se mais

abrangedora ratione materiae e ratione personae, em momentos da

exacerbação política, seja em decorrência de guerra externa, seja em conseqüência de acontecimentos internos. Mas essa ampliação não é

permanente; ao contrário, é passageira e há de refluir nos momentos de

normalidade constitucional. A Constituição manteve a exceção do Ato Institucional, permitindo o julgamento de civis, nos crimes contra a

segurança interna, pela Justiça Militar. Essa disposição há de ser interpretada

restritivamente, pelo seu caráter excepcional. Não vejo como estendê-la à apuração das infrações, submetendo os civis, não mais à Justiça Militar, mas

à autoridade militar. Tal interpretação levaria, a meu ver, à eliminação, ou,

pelo menos, ao enfraquecimento do Poder Civil, que, pela Constituição, se

sobrepõe a qualquer outro176.

Isto porque, segundo o ministro, nenhuma disposição permitia que se abrisse inquérito

policial-militar contra civis e, assim sendo, seria nula qualquer prisão que fosse determinada

por autoridade militar.

175 Art. 114. O inquérito pode ser instaurado: a) ex-officio ou em virtude de determinação superior; b) a

requerimento da parte ofendida ou de quem legalmente a represente; c) em virtude de requisição do ministério

público, nos termos da letra a do art. 103 deste código. § 1º O procedimento ex-officio compete à autoridade sob

cujas ordens estiver o acusado, logo que ao conhecimento dela chegue a notícia do crime que a este se atribue; §

2º A determinação para instauração do inquérito compete, observada a ordem hierárquica ou administrativa, ao

superior ou à autoridade a que se refere o parágrafo anterior; § 3º O requerimento e a requisição de que tratam as letras b e c serão dirigidos à autoridade militar sob cujas ordens servir o acusado; § 4º Os Ministros da Guerra e

da Marinha poderão avocar, qualquer inquérito e designar a autoridade que do mesmo se encarregue. 176 HC 46.060. RTJ 50/579.

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Lembrava Evandro que, logo após a instalação do regime militar, o Comando

Supremo da Revolução baixou a Portaria nº 1177. Nesta esteira, dias depois, foi criada a

Comissão Geral de Investigações178. Sendo assim, a própria lei admitia que os inquéritos

policiais-militares fossem feitos. Entretanto, ainda no ano de 1964, fora editado o decreto

54.600, extinguindo a Comissão. Com isso, a ampliação da competência das autoridades

militares para apurar infrações de natureza política fora restrita a um período anormal e, em

1968, os delitos dessa natureza deveriam ser apurados pela Polícia Federal e remetidos à

Justiça Militar.

Pois bem, Evandro, apesar de considerar que a autoridade militar não poderia

determinar, ex officio, a abertura do IPM contra civis, não entendia ser nulo o decreto de

prisão preventiva, solicitado por esta autoridade e, com isso, acreditava que a nulidade não

poderia ser declarada depois da prisão preventiva ser decretada. Dessa forma, não concedeu o

habeas corpus, tendo salientado, entretanto, que caso o mesmo “... estivesse sendo julgado

antes do decreto de prisão preventiva, não teria dúvida em concedê-lo”179. Esta foi a

conclusão à qual o ministro chegou com relação à questão da competência da autoridade

militar para realizar o inquérito. De outra parte, concedia a ordem “... porque a Auditoria da

Aeronáutica, que decretou a prisão preventiva, era incompetente para fazê-lo. A jurisdição já

estava preventa, com a distribuição do inquérito da DOPS à Auditoria da Marinha”180.

Complementava seu voto com relação à competência da autoridade militar, afirmando:

“...Determino que os inquéritos em andamento, o da DOPS e o IPM, sejam remetidos à

Polícia Federal”181.

Do exposto, apreende-se que o ministro Evandro Lins proferiu seu voto no caso

Vladimir Palmeira, caso este de grande repercussão na época, atendo-se, basicamente, a

questões jurídicas, sem nem citar o fato de a acusação estar alegando que o paciente estava

envolvido em desfiles, passeatas, as quais, de certa forma, contrariavam o regime vigente à

época. Com relação a opiniões políticas, as mesmas não foram encontradas no voto do

177 Basicamente, o ministro fazia referência à letra A da Portaria nº 1, de 14/04/1964, pela qual era afirmado:

“Determinar a abertura de Inquérito Policial Militar, a fim de apurar fatos e as devidas responsabilidades de

todos aqueles que, no país, tenham desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas leis

que definem os crimes militares e os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social”. 178 A Comissão Geral de Investigações foi criada pelo decreto 53.897, baixado no dia 27/04/1964. 179 HC nº 46.060. RTJ 50/580. 180 HC nº 46.060. RTJ 50/591. 181 HC nº 46.060. RTJ 50/591.

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ministro. Ele se ateve às suas fundamentações jurídicas, sem divagar a respeito do contexto

histórico e político vivido pelo país, diferentemente do general Peri Bevilaqua, que revelou

opiniões explícitas sobre o período vivido. Ora, então qual foi o motivo pelo qual se

considerou que, neste caso, Evandro Lins revelou ideologia?

Primeiramente, vale ressaltar que o caso chamava muita atenção da opinião pública.

Afinal, um jovem, civil, estudante, estava preso. Os holofotes estavam voltados para os 16

ministros que compunham o Supremo, esperança de o jovem ser libertado, mas não apenas

disso. Esperança de que o Supremo corrigisse os abusos que estavam sendo cometidos, os

quais o Superior Tribunal Militar, de maneira geral, não corrigia. Esperança de que o poder

civil se sobressaísse.

Em segundo lugar, ao afirmar que era exceção o processo e julgamento de civis

perante autoridades militares e depois procurar determinar que os inquéritos que estivessem

em andamento, fossem remetidos à Polícia Federal, talvez o ministro estivesse, de forma sutil,

procurando afastar as autoridades militares, procurando, como ele mesmo afirmou, “não

amesquinhar o papel das Forças Armadas”, que deveriam exercer as funções que lhe eram

próprias, atendo-se a sua área de competência, na medida em que a ampliação das

competências das autoridades militares não haveria de ser permanente, mas antes era exceção,

estava relacionada a um período anormal.

Se de fato havia esperanças, por parte da opinião pública e da sociedade civil, de que o

habeas corpus fosse concedido, estas esperanças se concretizaram. Adauto Cardoso, Hermes

Lima, Victor Nunes e Gonçalves de Oliveira foram votos vencidos no que se referia à

argüição de nulidade por incompetência das autoridades militares para procederem à

inquéritos policiais-militares, pois, contra o voto deles, fora rejeitada a argüição de nulidade.

Ao mesmo tempo, fora concedido o habeas corpus para que fosse anulado o decreto de prisão

preventiva, por estar preventa a competência da Auditoria da Marinha. Fora concedido contra

os votos182 dos ministros Amaral Santos e Barros Monteiro.

182 Estavam presentes à sessão os ministros Thompson Flores, Amaral Santos, Themístocles Cavalcanti, Barros

Monteiro, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, Adalício Nogueira, Evandro Lins,

Hermes Lima, Victor Nunes e Gonçalves de Oliveira, sendo esta realizada em Tribunal Pleno, no dia 18 de

setembro de 1968.

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Por fim, cabe uma observação: muita embora, segundo Evandro, fosse aconselhável

que os inquéritos relacionados a civis fossem realizados por autoridades civis, ele não

considerava nulo os inquéritos realizados por autoridades militares contra civis, apesar de, à

época, os inquéritos policiais-militares serem peças centrais no processo de repressão política,

já que a sistemática das punições era precedida por eles, os quais muitas vezes eram

conduzidos baseando-se em informações ilegais. Ora, Evandro, embora soubesse da

importância dos IPM’s no processo de repressão, não os considerava nulos, mesmo que um

civil estivesse submetido a ele. Esta era sua convicção, muito embora o fato de a maioria dos

ministros não votarem pela argüição de nulidade fazia com que a mesma fosse rejeitada, fazia

com que cada vez mais os IPM’s fossem utilizados como meios viáveis para a repressão

política, na medida em que, para o Supremo, a utilização deste instrumento não era ilegal, não

era um abuso por parte das autoridades militares, que tivesse de ser sanado e, sendo assim,

não se abria um precedente para que em outros casos, pacientes alegassem a nulidade dos

IPM’s contra civis. Nota-se, pois, que, seja por convicção política, seja por manobra política,

Evandro Lins não saiu da análise jurídica do caso.

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O CASO DA UNE EM BELO HORIZONTE

RHC nº 45.904 RTJ 48/36

Desde novembro de 1964, a União Nacional dos Estudantes passara a atuar na

clandestinidade. Apesar de ilegal, os estudantes procuravam manter a entidade funcionando, o

que lhes custou à origem de ações penais e de prisões.

No dia 24 de setembro de 1968, foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal um caso

envolvendo a entidade. Uma passeata estudantil havia ocorrido na cidade de Belo Horizonte

no dia 2 de junho de 1967 e os integrantes e patrocinadores eram confessadamente

participantes das Uniões Estaduais de Estudantes e da União Nacional dos Estudantes.

Embora tivessem conhecimento de que as mesmas haviam sido cassadas por lei, as

proclamavam legítimas.

Anteriormente, o caso fora julgado pelo Superior Tribunal Militar que, de maneira

unânime, cassou o despacho de prisão preventiva, que havia sido ordenado contra Jorge

Batista Filho e outros, e não reconheceu a ausência de justa causa para o processo que, com

isso, prosseguiria até a apuração final dos fatos. Responderiam, assim, os pacientes, em

liberdade a ação penal que havia sido instaurada.

De acordo com o entendimento do Superior Tribunal Militar fazer funcionar

associação que era ilegal era crime, na medida em que assim determinava o art. 36 do decreto-

lei 314/67, o qual dispunha:

Art. 36. Fundar ou manter, sem permissão legal, organizações de tipo militar

seja qual for o motivo ou pretexto, assim como tentar reorganizar partido

político cujo registro tenha sido cassado ou fazer funcionar partido sem o

respectivo registro ou, ainda, associação dissolvida legalmente, ou cujo funcionamento tenha sido suspenso:

Pena – detenção, de 1 a 2 anos.

Neste sentido, haveria justa causa para a apuração da responsabilidade dos que

colocassem em funcionamento e agissem de acordo com o interesse das associações que

haviam sido dissolvidas por lei. Afinal, as pessoas que se subordinassem a entidades que

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haviam sido dissolvidas agiam contrariamente à lei e ao julgador não era conferida a

possibilidade de examinar se haveria ou não razão para que a associação se tornasse ilegal. A

ele apenas era conferida a possibilidade de apreciar se o fato era ou não criminoso.

Devido ao não reconhecimento da falta de justa causa, o caso fora para o Supremo,

tendo sido apreciado pela 2ª Turma da Corte, em sessão na qual estavam presentes os

ministros Adalício Nogueira, Evandro Lins, Aliomar Baleeiro e Themístocles Cavalcanti.

Alegavam os recorrentes que, como estavam sendo processados perante a Auditoria da

4ª Região Militar, por lhes estar sendo atribuído o delito previsto no art. 36 da Lei de

Segurança Nacional, a prisão preventiva decretada pelo Conselho de Justiça da 4ª Região

Militar contra dois deles era ilegal. Além disso, sustentavam que o procedimento que contra

os mesmos fora intentado carecia de justa causa por inépcia da denúncia.

O ministro Adalício Nogueira iniciou seu voto afirmando não lhe parecer que a

denúncia pudesse ser considerada inepta pois, segundo ele, os fatos atribuídos aos pacientes

haviam sido definidos de maneira clara. Entendia não ser lícito subtrair da justiça

especificamente competente a apreciação dos fatos atribuídos aos pacientes, na medida em

que esta subtração apenas poderia ocorrer “...senão quando a inépcia da denúncia é extrema

de dúvidas ou a ausência de justa causa ressalta límpida e indubitável...”183, pois os fatos

deveriam ser apurados regularmente para, então, concluir-se sobre a existência de crime,

sobre a existência de atentado à segurança nacional etc. Dessa forma, negou provimento ao

recurso de habeas corpus.

A seguir, após pedir vista dos autos, o ministro Themístocles Cavalcanti proferiu seu

voto. Considerava a necessidade de um exame especial do processo pois, para ele, para que o

fato atribuído aos pacientes pudesse ser considerado criminoso, deveria ser revestido de certas

características. Isto porque não admitia a efetiva repressão policial no caso de a manifestação

não ser violenta, além de distinguir as manifestações estudantis em manifestações para

reivindicações, ordeiras, que garantiam o direito de opinião assegurado pela Constituição, e

manifestações nas quais o estudante tornava-se instrumento de interesses políticos e nas quais

183 RHC nº 45.904. RTJ 48/38.

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a autoridade pública deveria se fazer presente para que mantivesse a ordem e garantisse o

direito de terceiros.

Ressaltava que o caso de Jorge Batista Filho e seus colegas, por ser relacionado à

simples manifestação para restabelecer a vida de entidades que haviam sido dissolvidas, a seu

ver, não era relacionado a fatos criminosos. Entretanto, acreditava que faltavam aos autos os

elementos para verificar se os pacientes estariam restabelecendo as sociedades, se estariam

cometendo o delito de restabelecer a existência das sociedades que haviam sido extintas.

Afinal, haviam confessado terem praticado este delito. Dessa forma, por acreditar que o

habeas corpus em questão não era capaz de examinar o mérito do caso, ou seja, por meio

dele, não havia como provar que os pacientes estariam procurando restabelecer as entidades,

negava provimento ao recurso. Acompanhava, portanto, o voto do ministro Adalício

Nogueira.

De outra parte, o ministro Evandro Lins concedia a ordem para o trancamento da ação

penal. Afirmava o ministro que os pacientes haviam tentado legalizar outra vez a União

Nacional dos Estudantes, o que, na sua opinião, não era crime, mas um direito, na medida em

que “...é um direito que os estudantes têm de lutar para que a sua associação funcione

regularmente. Eles não estão pretendendo que essa associação, reconstituída, se torne uma

associação subversiva”184.

Com isso, Evandro considerava que a denúncia não havia tipificado o delito previsto

no art. 36 da Lei de Segurança Nacional, pois, para que este delito ocorresse, o crime deveria

ter ligação com atividades que atentassem contra a segurança nacional.

Novamente, o ministro Themístocles Cavalcanti se pronunciou, salientando que havia

denegado a ordem por falta de prova pois, para ele, era importante distinguir entre os três

estudantes, que requeriam o habeas corpus, que haviam declarado que objetivavam

restabelecer a associação e que referiam-se explicitamente a este objetivo, e os outros quatro

estudantes, que não se referiam à antiga associação.

Evandro se opôs ao pronunciamento, afirmando que à acusação cabia fazer a prova.

184 RHC nº 45.904. RTJ 48/39.

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149

Por sua vez, Adalício Nogueira reiterava que entendia ser legítima a aspiração dos

pacientes de restaurar as entidades. Entretanto, discordava da maneira como faziam isto,

segundo ele, através de demonstrações públicas de caráter subversivo, as quais eram

contrárias ao regime.

Já o ministro Aliomar Baleeiro iniciou seu voto apontando a necessidade de o

Ministério Público provar, quer a materialidade, quer a intenção do fato. Isto porque ninguém

é obrigado a fornecer provas contra si mesmo. Com isso, afirmava não estar se baseando nas

declarações dos três estudantes. Ainda, afirmava sua “experiência” com relação à obtenção de

confissões:

(...) Com minha experiência de homem que na juventude foi jornalista e viu

muitas coisas, sei como se obtém as confissões perante as autoridades

policiais de qualquer natureza. Já ouvi homens de bem contarem o esforço que fizeram para extorquir uma confissão. Levam dias e dias – acredito até

que não podem – mas levam dias e dias para cansar o indivíduo por certos

processos, não muito ortodoxos. Acham que estão no dever de arrancar a

confissão do indivíduo e que ele deve dizer que cometeu o crime. Não devemos encorajar essas práticas, que hoje estão abolidas até nos países que

antes as toleravam185.

O ministro Evandro Lins, então, tomou a palavra para afirmar que faltava na denúncia

uma “...indicação de que a fidelidade dos pacientes à UNE atente contra a segurança do

Estado”186. De outra parte, Aliomar Baleeiro afirmava:

Não tenho nenhuma dúvida de que a UNE, por vezes, foi um foco de

comunistas ou de agitadores. Ouvi de vários Ministros de Educação o que

era anarquia naquela entidade. Mas isso não é propriamente um crime187.

Ainda, Evandro alegava que os pacientes não estavam tentando reconstruir e

restabelecer uma entidade com finalidade subversiva, mas antes os mesmos buscavam a

185 RHC nº 45.904. RTJ 48/40. 186 RHC nº 45.904. RTJ 48/40. 187 RHC nº 45.904. RTJ 48/40.

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entidade representativa dos estudantes “...sem que manifestem qualquer adesão a distorções

que essa entidade possa ter tido no passado”188.

Com isso, Baleeiro concluía:

Parece-me que li que eles não fizeram a UNE funcionar de fato. Eles

querem que ela seja reaberta e posta a funcionar. É coisa diferente. Parece-me que o delito não está caracterizado.

Se o cidadão, ou porque seja marxista, ou porque seja democrata,

sustenta a tese de que convém seja posto em funcionamento o partido comunista, até aí não há crime. É diferente de um sujeito que, em

conciliábulos ou em várias manobras, age como se estivesse funcionando o

partido comunista, financia-o e promove tropelias, etc. Peço vênia aos eminentes juízes para, diante das explicações que me

foram ministradas agora, reformar o meu voto e acompanhar V. Excia.,

Senhor Presidente189, concedendo a ordem190.

Desta forma, deu-se provimento ao recurso, contra os votos dos ministros Adalício

Nogueira e Themístocles Cavalcanti.

Pois bem, o grande embate travado neste caso relacionava-se com a extensão atribuída

ao apontamento do art. 36 de Lei de Segurança Nacional. O delito estaria caracterizado no

presente caso? O ministro Evandro Lins fora o responsável por orientar a convicção segundo

a qual a luta pelo funcionamento regular das UEEs e da UNE era um direito dos estudantes.

Afinal, a princípio, não havia que se relacionar as associações com atividades subversivas e,

assim sendo, os atos cometidos pelos estudantes não atentavam contra a segurança nacional e,

com isso, o delito previsto no art. 36 não havia se caracterizado.

Através de seus argumentos, conduziu a “virada” no julgamento e a ordem, com isso,

fora concedida.

Interessante notar não apenas que seu voto conduziu a maioria para conceder a ordem,

mas também a maneira como essa condução foi articulada: sua convicção de direito à

188 RHC nº 45.904. RTJ 48/40. 189 Nesta sessão, o presidente era o ministro Evandro Lins. 190 RHC nº 45.904. RTJ 48/40.

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representação e de fidelidade às associações, independentemente de quais fossem as

associações, aflorou, o que fez com que o ministro sustentasse veementemente que a luta dos

estudantes não era criminosa, mas antes um direito.

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O CASO BERNARDINO

RHC nº 46.264 – RTJ 49/174

No dia 15 de outubro de 1968, a 2ª Turma do Supremo, na qual estavam presentes à

sessão os ministros Evandro Lins, Adalício Nogueira, Aliomar Baleeiro e Themístocles

Cavalcanti, julgou o recurso de habeas corpus nº 46.264. Tratava-se de mais um caso de preso

político. Desta vez, estava preso Bernardino Ribeiro de Figueiredo, presidente do Grêmio da

Faculdade de Filosofia.

Em favor de Bernardino, o advogado Juarez A. A. de Alencar requereu habeas corpus,

alegando que Bernardino havia sido preso no dia 26 de julho de 1968 e levado ao DOPS de

São Paulo, onde foi autuado em flagrante por ter sido reconhecido como presidente do

grêmio, embora no momento da prisão não estivesse cometendo nenhum crime, não havendo,

portanto, nenhum crime tipificado. Sustentava ainda a defesa que o Promotor havia excedido

o prazo de 5 dias para oferecer a denúncia, além de ter requerido a devolução dos autos à

Polícia para promover diligência e recolher provas.

Anteriormente, o Superior Tribunal Militar havia apreciado o caso, denegando a

ordem e fundamentando sua decisão no seguinte: a alegação de excesso de prazo para

oferecimento da denúncia não cabia, uma vez que a dilatação de prazo normal de 5 dias para

15 havia sido concedida, de acordo com o art. 190, § 3º do C. J. Militar; o crime estaria

plenamente configurado; as autoridades em função eram competentes; o pedido de

relaxamento da prisão havia sido denegado por unanimidade.

Da decisão do Superior Tribunal Militar houve recurso ordinário, no qual se disse que,

apesar de decorridos 20 dias, a denúncia não havia sido oferecida e as diligências não haviam

sido cumpridas.

O ministro Evandro Lins foi o ministro encarregado de fazer o relatório do caso e, ao

final dele já transmitiu sua opinião afirmando:

(...) a prisão do paciente está sendo cumprida no xadrez da DOPS, contra a

própria Lei de Segurança, que garante ao preso político prisão especial ou

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domiciliar, máxime tratando-se de estudante, que não pode ser tratado como

criminoso comum191.

Iniciou seu voto apontando o caráter excepcional da prorrogação, até o triplo, do prazo

de 5 dias para oferecimento da denúncia , uma vez que, por se tratar de exceção que atingia a

liberdade do cidadão, a norma deveria ser interpretada restritivamente e, sendo assim, a

pretexto de excepcionalidade inexistente, o Promotor não poderia requerer diligência.

Isto porque o flagrante deve ser objeto de denúncia em 5 dias e as diligências

porventura necessárias para esclarecer outros aspectos que não o flagrante, que já deveria

tipificar crime, poderiam ser promovidas durante a instrução criminal porque se o auto de

flagrante precisa ser completado, o réu deve ser libertado, uma vez que as diligências para

melhor apuração do crime deveriam ser feitas com o acusado em liberdade.

Por esses motivos, o ministro deu provimento ao recurso para que Bernardino Ribeiro

se defendesse em liberdade, sem prejuízo da ação penal. Ressalta-se que a decisão foi

unânime.

Pois bem, mais uma vez o Supremo freava as aspirações do Superior Tribunal Militar

e mais uma vez o ministro Evandro Lins se posicionava como defensor da liberdade, ainda

mais se tratando de um caso que envolvia um estudante que, aos olhos de Evandro, não

poderia receber o tratamento de um criminoso comum.

191 RHC nº 46.264. RTJ 49/175.

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154

RESULTADOS DA PESQUISA QUANTITATIVA

Dos 613 acórdãos analisados, 1 (0,16%) refere-se à ação cível ordinária, 3 (0,48%)

referem-se à ação cível originária, 1 (0,16%) trata de ação penal, 11 (1,79%) referem-se à

ação rescisória, 14 (2,28%) ao agravo de instrumento, 1 (0,16%) refere-se ao agravo de

petição, 1 (0,16%) à apelação criminal, 33 (5,38%) referem-se ao conflito de jurisdição, 5

(0,81%) aos embargos no agravo de instrumento (embargos no agr. de inst.), 3 (0,48%) aos

embargos no mandado de segurança (embargos no MS), 20 (3,26%) aos embargos no recurso

extraordinário (embargos no RE), 5 (0,81%) aos embargos no recurso de mandado de

segurança (embargos no RMS), 2 (0,32%) ao exequatur, 2 (0,32%) à extradição, 75 (12,23%)

ao habeas corpus (HC), 1 (0,16%) trata de inquérito policial, 43 (7,01%) referem-se ao

mandado de segurança (MS), 195 (31,81%) ao recurso extraordinário (RE), 7 (1,14%) à

reclamação, 2 (0,32%) ao recurso criminal, 1 (0,16%) versa sobre o tema de recurso eleitoral,

17 (2,77%) referem-se à representação, 49 (7,99%) ao recurso de habeas corpus (RHC), 118

(19,24%) ao recurso de mandado de segurança (RMS), 2 (0,32%) à sentença estrangeira, 1

(0,16%) trata de suspensão de liminar.

Gráfico 1. Distribuição dos acórdãos de acordo com sua categoria

1 = ação cível ordinária, 2 = ação cível originária, 3 = ação penal, 4 = ação rescisória, 5 = agravo de instrumento, 6 = agravo de petição,

7 = apelação criminal, 8 = conflito de jurisdição, 9 = embargos no agr. de inst., 10 = embargos no MS, 11 = embargos no RE,

12 = embargos no RMS, 13 = exequatur, 14 = extradição, 15 = HC, 16 = inquérito policial, 17 = MS, 18 = RE, 19 = reclamação,

20 = recurso criminal, 21 = recurso eleitoral, 22 = representação, 23 = RHC, 24 = RMS, 25 = sentença estrangeira, 26 = suspensão de liminar

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26

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155

Embora presente às 613 sessões, observou-se que dos 613 acórdãos, o ministro

pronunciou seu voto em 212 (34, 58%).

Gráfico 2. Pronunciamento de votos

Constatou-se que dentre os 613 acórdãos, 492 (80,26%) foram decididos por

unanimidade de voto dos membros do Supremo e 141 (23,00%) foram decididos por

maioria de votos. Ressalta-se que, dentre os 141 acórdãos, o ministro Evandro Lins teve seu

voto vencedor em 100 (70,92%) e vencido em 41 (29,07%).

Ainda entre os acórdãos, observou-se que 217 (35,39%) foram decididos em Tribunal

Pleno e 396 (64,60%) em Segunda Turma.

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156

Quanto aos resultados das decisões, 50 (8,15%) acórdãos foram considerados

procedentes, 14 (2,28%) improcedentes, 69 (11,25%) concedidos, 54 (8,80%) não foram

concedidos, 132 (21,53%) foram conhecidos, 114 (18,59%) não conhecidos, 147 (23,98%)

foram providos e 172 (28,05%) não providos.

0

50

100

150

200

1 2 3 4 5 6 7 8

Decisões

Qu

an

tid

ad

e

Gráfico 3. Decisões do Supremo Tribunal Federal

1 = procedente, 2 = não procedente, 3 = concedido, 4 = não concedido, 5 = conhecido, 6 = não conhecido, 7 = provido, 8 = não provido.

Dos 212 acórdãos nos quais houve pronunciamento de voto do ministro Evandro Lins

e Silva, constatou-se que 10 (4,71%) deles eram referentes a movimento comunista, estudantil

e de cunho político, enquanto que 202 (95,28%) tratavam-se de casos comuns. Observou-se

ideologia explícita do ministro em 15 (7,07%) acórdãos. Destes, 9 versavam sobre o tema de

movimento comunista, estudantil e político.

Observou-se ainda que em 179 (84,43%) acórdãos o ministro fundamentou seu voto,

não tendo acompanhado sistematicamente a opinião dos demais componentes do Tribunal.

Ressalta-se que dos 212 acórdãos, em 56 (26,41%) o ministro faz referência à

Constituição Federal, enquanto que em apenas 10 (4,71%) ocorre citação dos Atos

Institucionais.

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157

Tabela 1. Acórdãos com pronunciamento de voto (n = 212)

Variáveis N %

Movimento estudantil, comunista e político 10 4,71

Caso comum 202 95,28

Acresce algo diferente 179 84,43

Parecer 33 15,56

Referência à Constituição Federal 56 26,41

Referência aos Atos Institucionais 10 4,71

Revela ideologia 15 7,07

Não revela ideologia 197 92,92

Dentre os 10 acórdãos que versavam expressamente sobre movimento comunista,

estudantil e político, 5 faziam parte da categoria de habeas corpus e, por isso, esta categoria

foi analisada com maior grau de precisão.

Com relação à categoria de habeas corpus (n = 75), observou-se que em 58 (77,33%)

acórdãos a decisão foi unânime, enquanto a decisão foi por maioria de votos em 17 (22,66%),

dentre os quais o ministro teve seu voto vencido em 6 (35,29%) e voto vencedor em 11

(64,70%).

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Dos 28 habeas corpus nos quais houve pronunciamento de voto do ministro,

constatou-se que em 5 (17,85%) o tema versava a respeito de movimento comunista,

estudantil e de cunho político, em 7 (25%) o ministro fez referência à Constituição, em 2

(7,14%) aos Atos Institucionais e em 6 (21,42%) verificou-se sua ideologia.

Gráfico 4. Categoria de Habeas Corpus

1 = acórdão de movimento comunista, estudantil, de cunho político; 2 = referência à Constituição Federal; 3 = referência aos Atos Institucionais; 4 = revela ideologia

0

2

4

6

8

1 2 3 4

Hab e as co r p u s co m p r o n u n ciam e n to d e vo to

Qu

an

tid

ad

e

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159

DISCUSSÃO DA PESQUISA QUANTITATIVA

Quanto à análise quantitativa, chama à atenção o fato de que o maior número de

decisões foi tomado pela unanimidade de votos dos membros do Supremo Tribunal Federal.

Assim, dos 613 acórdãos analisados foram obtidos 633 resultados das decisões, sendo que 492

foram decididos por unanimidade e os demais por maioria dos votos. Esse fato demonstra

que, embora o Tribunal fosse constituído por membros de diferentes convicções políticas, em

geral, eles revelavam, através de seus votos, uma mesma linha de pensamento.

Com relação ao ministro Evandro Lins e Silva, observou-se que das 141 decisões

tomadas por maioria, em 100 delas o ministro foi voto vencedor. Este percentual elevado

pode demonstrar que o ministro, graças ao seu conhecimento jurídico, tinha grande poder de

persuasão. Por outro lado, apenas em 41 decisões foi voto vencido, mostrando que a

discordância com os demais membros do Tribunal foi pouco expressiva para um ministro que

tinha uma linha de pensamento oposta à do regime militar.

Apesar disso, constatou-se uma pequena quantidade de acórdãos que versavam sobre

movimento comunista, estudantil e de cunho político (apenas 10 dentre 212 acórdãos) e,

nestes casos, a possibilidade de Evandro Lins e Silva revelar uma postura ideológica era

maior, uma vez que, nestas oportunidades, o ministro poderia se opor a discricionariedades

por parte do governo revolucionário, concedendo, por exemplo, habeas corpus.

Neste sentido, verificou-se uma relevante constatação: dentre os 10 casos de

movimento comunista, estudantil e de cunho político, apenas em um deles o ministro não

revela sua ideologia, ao menos de modo que se possa captar em uma leitura feita nos dias de

hoje. Ainda, podemos apontar a grande disparidade de referências que o ministro fez em seus

pronunciamentos: em 56 acórdãos, Evandro pelo menos cita a Constituição Federal, enquanto

que em apenas 10 ele se refere aos Atos Institucionais, que foram editados pelo regime

ditatorial, com o intuito de este alcançar o poder e nele permanecer. Esse fato revela a

preferência do ministro pela Constituição, postura que, de certa forma, era contrária a do

regime que vigorava na época.

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160

Ao analisarmos a categoria de Habeas Corpus separadamente, verificou-se uma

postura semelhante dos membros do Tribunal ainda que, de 75 habeas corpus impetrados, 58

foram decididos pela unanimidade dos membros da Corte.

Apesar disso, o maior número dos habeas corpus foi concedido (41) e provido (2),

sendo que, dos 10 acórdãos de movimento comunista, estudantil e político, 5 chegaram ao

Supremo Tribunal Federal na forma de habeas corpus. Isso revela a importância desta

categoria, visto que o habeas corpus é um “remédio jurídico que visa tutelar a liberdade de

locomoção do indivíduo contra violência ou coação ilegal da autoridade”12.

Outro dado interessante é o fato de o ministro Evandro ter pronunciado voto em 28

habeas corpus, sendo que em 26 deles, Evandro confere ao voto não uma forma de parecer,

contribuindo, assim, para fundamentação de seu voto.

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161

CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho, foram examinados muitos e diversos tópicos em torno de seu

tema central: a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente no ano

de 1968, levando-se em consideração o contexto histórico e político e as circunstâncias

pessoais do julgador Evandro Lins e Silva.

O corpo do trabalho estruturou-se basicamente em três partes: a análise do contexto

político e histórico da década de 1960, juntamente com a análise de 3 acórdãos, a análise

quantitativa de 613 acórdãos e a discussão de seus resultados, focando-se especialmente na

análise de 15 acórdãos, obtidos através da variável “filosofia de pensamento”, os quais

constituem um panorama da atuação judicante do ministro Evandro Lins.

Através da análise do cenário político brasileiro, foi possível visualizar a dificuldade

de o Supremo Tribunal Federal efetivamente cumprir sua função de sentinela das liberdades

asseguradas pela Constituição, uma vez que foi criada uma ambigüidade jurídica: de um lado

o Estado de Direito, representado pelas leis e pela Constituição e de outro o Estado de fato,

representado pelos Atos Institucionais. Um governo excepcional procurava legitimidade e,

com isso, patente tornava-se o insolúvel problema do equilíbrio entre a autoridade e a

liberdade.

A “operação limpeza” iniciou-se rapidamente. Com ela, logo os nomes dos ministros

Evandro Lins, Hermes Lima e Vitor Nunes vieram à tona. Estabeleciam-se relações entre a

atuação judicante dos ministros e seus passados e, com isso, o Supremo Tribunal Federal

tornou-se cada vez mais vulnerável a incursões feitas pelo governo militar. O objetivo era a

conquista das decisões políticas do Supremo e a conseqüência foi a crise de autonomia do

Judiciário. O Supremo fora dissolvido pelo AI-2 e mutilado com o AI-5. Não fora apenas

mutilado porque três de seus membros foram aposentados compulsoriamente, mas também

pelo fato de ter perdido a função política que lhe cabia: se suas decisões tinham impacto sobre

a conduta dos demais Poderes e da população, deixaram de ter, ou pelo menos o impacto

diminuiu, uma vez que os abusos das autoridades do Poder Público ficaram impossibilitados

de serem contidos, na medida em que até mesmo a garantia de habeas corpus nos casos de

crimes políticos, contra a segurança nacional, ficou suspensa. De três membros aposentados,

de sua autonomia e estabilidade restou a saudade. Perdera a função correcional que lhe cabia e

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o processo de desmobilização política chegara ao auge. Apenas com a redemocratização e

conseqüente reconstrução do Estado de Direito, o Supremo pôde se desprender das amarras

dos Atos Institucionais e, com isso, deixar o período marcado pelo seu silêncio.

Emblemático fora o ano de 1968, dada a radicalização política ocorrida nele: o

autoritarismo chegara ao auge e os conflitos entre o movimento estudantil e o governo militar

ganharam nova dimensão. A opinião pública, sensibilizada para a luta estudantil, mobilizou-

se no dia 26 de junho, no maior protesto contra o regime militar, a Passeata dos Cem Mil. A

União Nacional dos Estudantes tornava-se uma bandeira de luta pela democratização, mas,

em contrapartida, os militares enrijeciam os mecanismos de dirigismo de que se utilizavam, a

fim de se manterem no poder.

Pois bem, o ano de 1968 é um ponto de referência na história política nacional e na

história do Supremo, que se confundem, e também foi um ponto de referência no presente

trabalho. Foi o ano da mutilação. Foram aposentados três membros do Tribunal, dentre os

quais o ministro Evandro Lins e Silva, por meio de um decreto, editado no dia 16 de janeiro

de 1969, no qual era afirmado:

(...) O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o § 1º

do art. 6º, do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, resolve APOSENTAR:

O Doutor Evandro Cavalcanti Lins e Silva no cargo de Ministro do Supremo

Tribunal Federal.

Brasília, 16 de janeiro de 1969 (...).

Calavam-se uma geração e suas instituições. Expurgava-se do Supremo, através da

“medida de saneamento”, Evandro Lins e Silva. Suas convicções permaneceram, integrando

página da história da instituição e do Brasil. De fato, o ministro revelou um pouco de suas

convicções políticas e ideológicas em seus votos. Zelava pelo princípio da indivisibilidade e

da obrigatoriedade da ação penal, o que afastava o caráter pessoal da denúncia, tese que

utilizou para defender José Geraldo e Almyr Veloso. Também, a fim de defendê-los, afirmou

que os atos preparatórios seriam penalmente impuníveis. Ressaltou diversas vezes, como no

caso João Goulart e no caso dos juízes substitutos, o caráter transitório e excepcional dos Atos

Institucionais. Segundo ele, com a Constituição, o Estado de Direito havia retornado e, com

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isso, não havia que se estender o império dos Atos Institucionais além da data da promulgação

da Constituição de 1967. Neste sentido, decidia com a Constituição. Isso é comprovado ao

notar-se a disparidade das citações: dos 212 acórdãos nos quais o ministro pronunciou seu

voto, em 57 ele citou a Constituição e, em apenas 10, se referiu aos Atos Institucionais.

Diversas vezes, como no caso José Rodrigues e no caso dos operários, enfatizou a

necessidade de a denúncia ser precisa com relação à ação pessoal de cada envolvido, pois não

admitia que as provas fossem vagas, principalmente em matéria de opinião política.

No caso da Constituição Estadual de São Paulo, afirmou a possibilidade de haver

revisão dos atos praticados com abuso de poder. Chegou mesmo a afirmar que, durante um

período anormal, garantias não foram respeitadas e governadores demitiram e impuseram

sanções aos seus inimigos políticos. Também no caso da aposentadoria compulsória do juiz,

reiterou que os atos dos governadores praticados com base nos Atos Institucionais não

estavam imunes de apreciação judicial quanto às suas formalidades extrínsecas e mais do que

isso: chegou a aventar, no caso da Constituição Estadual de São Paulo, a possibilidade de o

Supremo examinar até o mérito dos atos dos governos estaduais, afirmando haver “opiniões

abalizadas” neste sentido.

Quando apreciou um caso relacionado à questão da reforma agrária, ultrapassou o

debate puramente jurídico e acrescentou a seu voto suas convicções pessoais, favoráveis a tal

reforma e contrárias à inércia do Poder Central. No caso Jânio Quadros e no caso Sérgio

Cidade, ao se deparar com a questão da possibilidade de se restringir o direito de se externar o

pensamento em matéria política, enfatizou a necessidade de respeito ao direito de

manifestação de pensamento que, segundo ele, era um dos requisitos do Estado de Direito. A

restrição a esse direito seria arbitrária e ditatorial.

Preocupou-se com o cumprimento das decisões do Supremo, no caso da inexecução de

acórdão. No caso Darcy Ribeiro, revelou sua repugnância em relação a uma ordem de prisão

desfundamentada. Opôs-se à prisão para averiguações, muito utilizada na fase de

investigação, inclusive ressaltando não ser possível que a Constituição desejasse que o

território nacional fosse transformado numa cadeia. Quanto aos inquéritos policiais-militares

contra civis, embora não os considerasse nulos, afirmava ser mais aconselhável que os

inquéritos relacionados a civis fossem realizados por autoridades civis, por considerar, como

no caso Vladimir Palmeira, exceção o processo e julgamento de civil perante o foro militar.

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Com relação à União Nacional dos Estudantes, considerava ser um direito dos

estudantes legalizá-la. Afinal, para ele, a fidelidade dos pacientes à entidade não estaria

atentando contra a segurança nacional do Estado. Ressaltava ainda, no caso Bernardino, que

os estudantes não poderiam ser tratados como criminosos comuns. Ainda, ao se deparar com o

caso dos governadores Mauro Borges e Miguel Arraes, alicerçou seu voto à necessidade de os

altos funcionários terem direito a foro privativo e, com isso, concedeu os habeas corpus.

Enfatizou, também no caso Mauro Borges, sua convicção segundo a qual o Supremo tinha a

supervisão e podia interferir até com função correcional junto a quaisquer juízes ou tribunais.

Julgava o ministro com base nas leis e na Constituição. Fundamentava seus votos

juridicamente. Decidia de acordo com o ordenamento vigente à época. Não procurava anular

o governo militar por via judicial, nem era este o papel que lhe cabia. Era um ministro que

decidia juridicamente, mas que inseria sua posição política, seus pensamentos e convicções

em seus votos. Revelou, através dos votos, sua maneira liberal de pensar e agir. Ao menos

numa leitura feita nos dias de hoje, percebe-se que nos 18 acórdãos analisados ao longo do

trabalho, e, mais especificamente, nos 15 julgados no ano de 1968, selecionados a partir da

análise quantitativa, o ministro revelou ideologia, ultrapassou o debate meramente jurídico do

caso e exprimiu seus pensamentos, convicções e idéias, e, inclusive, observa-se que apenas

em 1 acórdão, dentre os 10 que versavam sobre o tema de movimento comunista, estudantil e

político, não revelou ideologia. Ressalta-se que, mesmo quando das suas fundamentações

puramente jurídicas, mostrou ser um juiz liberal.

Nesse sentido, destaca-se a conclusão fundamental do trabalho: as decisões do

ministro Evandro Lins o levaram de algum modo à sua aposentadoria compulsória. Não

obstante o fato de o ministro ter revelado ideologia nos votos apresentados, não há como

apontar um voto específico e mesmo um conjunto deles que o tenha levado, isoladamente, à

aposentadoria compulsória, pois um conjunto de fatores foi responsável pela aposentadoria do

ministro. Sem dúvidas, sua postura liberal foi um deles.

Ressalta-se, nesse sentido, que alguns dos casos nos quais o ministro revelou

explicitamente sua ideologia tiveram grande repercussão nacional. O julgamento que

envolveu o ex-Presidente João Goulart despertou atenção por parte da opinião pública, assim

como também o caso Darcy Ribeiro, o qual fora ministro no governo do ex-Presidente

Goulart. Também o julgamento do ex-Presidente Jânio Quadros fora emblemático e necessita

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165

de considerações específicas: o ex-Presidente, homem público, fora confinado por suas

entrevistas a órgãos de imprensa e estava preso a quatro meses em Corumbá. A medida de

confinamento havia sido imposta por ato do ministro da Justiça, Gama e Silva. O caso foi

julgado em sessão Plenária no dia 2 de outubro de 1968 (pouco mais de dois meses depois, o

AI-5 foi decretado, em 13 de dezembro) e cinco ministros votaram a favor da concessão de

habeas corpus ao ex-Presidente Jânio Quadros, tendo sido seus votos vencidos. Coincidência

ou não, os cinco ministros que votaram pela concessão de habeas corpus eram os ministros

Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Vitor Nunes, os ministros que foram aposentados

compulsoriamente, Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada que, apesar de terem

entrado para a história como sendo os dois ministros que se aposentaram em protesto contra a

medida arbitrária do governo militar, pela qual os três colegas haviam sido aposentados,

segundo Evandro Lins os dois ministros, caso não tivessem pedido a aposentadoria, talvez

também tivessem sido aposentados compulsoriamente, uma vez que não estavam agradando

ao governo.

Ressalta-se que a ordem de confinamento do ex-Presidente havia sido emanada da

cúpula do governo militar, representada pelo ministro da Justiça Gama e Silva, e talvez o fato

de os cinco ministros terem votado a favor da concessão de habeas corpus, num momento de

autoritarismo crescente, tenha sido considerado uma afronta à decisão oriunda da cúpula do

governo. Nota-se que era um momento em que o voto alinhado com o governo ou pelo menos

a omissão dos ministros era fundamental. No entanto, além de terem votado favoravelmente à

concessão de habeas corpus, especialmente os ministros Evandro Lins, Hermes Lima e Vitor

Nunes reiteraram a necessidade de no Estado de Direito prevalecer o direito à manifestação

dos pensamentos e convicções, o direito de opinião.

Também os casos relacionados aos estudantes e a seus líderes tiveram grande

repercussão no cenário político brasileiro, como no relacionado a Vladimir Palmeira, um

jovem, civil e estudante, que estava preso. Também o caso da UNE em Belo Horizonte deve

ter tido grande repercussão, uma vez que a entidade congregava os líderes do movimento

estudantil e havia se tornado uma bandeira de luta pela democratização. Também foram

processos de grande repercussão os casos que envolveram o professor Sérgio Cidade e os ex-

governadores Mauro Borges e Miguel Arraes.

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Pois bem, não é a presença do ministro Evandro Lins nesses casos de grande

repercussão que se constituiu num fator que o levou à sua aposentadoria compulsória, mas o

fato de ele, nesses casos, ter revelado sua ideologia.

Por fim, cabe ressaltar que, dada a correlação estabelecida por muitos entre a atuação

judicante de um ministro e seu passado, nada mais natural que o passado de Evandro Lins

tenha sido um dos fatores que o levaram à sua aposentadoria. Em 1947, fora um dos

fundadores do Partido Socialista Brasileiro; durante o governo Goulart exerceu diversas

atividades: foi Procurador-Geral da República, ministro da Casa Civil e das Relações

Exteriores e fora nomeado ministro do Supremo através de um decreto do ex-Presidente

Goulart. Já no Senado, seu nome encontrou resistência para ser aprovado. Posteriormente, já

como ministro, sofreu com a intensa campanha comandada pelo jornal O Estado de São

Paulo, em cujos artigos era pedido seu afastamento do Supremo.

Nota-se, pois, que seu passado “contra-revolucionário” tornava o ministro Evandro

Lins cada vez mais visado pelos mecanismos de saneamento. Quando os militares assumiram

o poder, acreditavam serem responsáveis pelo saneamento do perigo comunista e esquerdista

que adentrara o organismo social do Brasil. Desde o início, procuraram afastar os opositores

do governo, a fim de desarticularem e enfraquecerem a oposição. Entretanto, sempre se

preocuparam com a caracterização do regime militar num mundo democrático e, por isso,

para dar a impressão de que o Brasil vivia um regime democrático, instituições democráticas

conviviam com instituições ditatoriais. Com isso, as “punições revolucionárias” foram

atingindo paulatinamente os núcleos de liderança oposicionista e também paulatinamente as

instituições eram violadas. A legislação de exceção se estendia no tempo, as franquias

constitucionais as quais ela suspendia não tinham prazo para retornarem e, perante o poder de

fato, logravam êxito a hipertrofia do Poder Executivo e o enrijecimento da legislação de

exceção.

Por duas vezes, as “punições sumárias” atingiram diretamente o Supremo: com a

dissolução da Corte, ampliou-se de 11 para 16 o número de assentos no Tribunal, e, com o

fenômeno da mutilação, atingiram-se os ministros que compunham, ao menos aos olhos dos

militares, o núcleo de protesto do Supremo, seja porque eram liberais, seja porque revelavam

suas ideologias, seja porque seus vínculos político-partidários não condiziam com as

aspirações do regime militar.

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Saiu, assim, do Supremo Tribunal Federal o ministro Evandro Lins e Silva que, antes

de opositor do regime militar, era um liberal e a liberdade era a sua utopia.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão. Rio

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Brasileira. Tomo IV – volume I/1930-1963.

26. Revista Trimestral de Jurisprudência. Supremo Tribunal Federal. Volumes 45 a 52.

27. Petição de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A denúncia narra fatos, que evidentemente não

constituem crime. Petição de habeas corpus nº 40.910 - Pernambuco. Impetrantes: Justo de

Morais e outros. Paciente: Sérgio Cidade de Rezende. Relator: Ministro Hahnemann

Guimarães. Brasília, 24 de agosto de 1964. In: Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal

Federal. Ministro Edgard Costa. Retratos do Brasil. 24ª ed.

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28. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Impeachment – Caso do Governador Mauro

Borges, de Goiás. Deferimento de liminar em habeas corpus preventivo por despacho do

Ministro relator, dada a urgência da medida. Os Governadores dos Estados, nos crimes de

responsabilidade, ficam sujeitos ao processo de impeachment, nos têrmos da Constituição do

Estado, respeitado o modêlo da Constituição Federal. Os Governadores respondem

criminalmente perante o Tribunal de Justiça, depois de julgada procedente a acusação pela

Assembléia Legislativa. Nos crimes comuns, a que se refere a Constituição, se incluem todos

e quaisquer delitos da jurisdição penal ordinária ou da jurisdição militar. Os crimes militares,

a que os civis respondem, na Justiça Militar, são os previstos no art. 108 da Constituição

Federal. Os crimes de responsabilidade são os previstos no art. 89 da Constituição Federal

definidos na L. 1.079, de 1950. Concessão da ordem para que o Governador somente seja

processado, após julgada procedente a acusação, pela Assembléia Legislativa. Habeas Corpus

nº 41.296 – Distrito Federal. Impetrantes: Heráclito Fontoura Sobral Pinto e José Crispim

Borges. Paciente: Mauro Borges Teixeira. Relator: Ministro Gonçalves de Oliveira. Brasília,

23 de novembro de 1964. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol.33 (p. 573-896),

setembro, 1965.

29. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Competência. Crime de responsabilidade e crime

comum. Prerrogativa de função. O Governador de Estado será julgado em fôro privativo nos

têrmos da Constituição, da Lei nº 1.079, de 10.4.50, e do Código de Processo Penal. Não há

que distingüir entre crime comum e crime militar para definir a competência ratione personae

e não ratione materiae, quando se trata de julgamento de titulares que têm direito a fôro

especial em decorrência da eminência da função que desempenham. A expressão crime

comum é usada na Constituição em contraposição a crime de responsabilidade. Jurisprudência

predominante do Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus concedido de acôrdo com a

Súmula numérica 394. Habeas Corpus nº 42.108 - Pernambuco. Paciente: Miguel Arraes de

Alencar. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva. Brasília, 19 de abril de 1965. Revista

Trimestral de Jurisprudência, vol. 32 (p. 507-728), abril, 1965.

30. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Denúncia. Inobservância do princípio da

obrigatoriedade e da indivisibilidade da ação penal, acarretando a sua rejeição, por inépcia.

Ausência de tipicidade. Habeas corpus concedido. Habeas Corpus nº 45.214 – MG. Paciente:

José Geraldo de Castro Amino. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva. Brasília, 12 de março

de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46 (p. 281-568), novembro, 1968.

31. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus. Denúncia. Inépcia e

inobservância do princípio da obrigatoriedade e da indivisibilidade da ação penal, acarretando

a sua rejeição. Ausência de tipicidade. Habeas corpus concedido. Habeas Corpus nº 45.215 –

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MG. Paciente: Almyr Sozzi Veloso. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva. Brasília, 12 de

março de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 47(p. 1-282), janeiro, 1969.

32. Inquérito Policial

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Por força do art. 16, inc. I, do AI-2, de 27.10.65,

com efeito retro-operante, a suspensão dos direitos políticos acarreta simultaneamente, a

cessação da competência por prerrogativa de função. A cessação da competência ratione

personae constitui efeito, imediato, da suspensão dos direitos políticos. Os efeitos da

suspensão dos direitos políticos, taxativamente enumerados no art. 16 do AI-2, aprovados

pelo art. 173 da C.F., que os procurou resguardar, hão de viger no decurso do prazo da

suspensão. Inaplicabilidade do art. 144 da C.F., de 1967. A norma ínsita no art. 114, inc. I,

letra a, da Carta Política de 1967, não se aplica àqueles que tiveram suspensos seus direitos

políticos. Competência da Justiça Federal do Estado da Guanabara, para processar e julgar o

ex-Presidente João Goulart. Inquérito Policial nº 2 - GB. Indiciados: João Belchior Marques

Goulart e outros. Relator: Ministro Gonçalves de Oliveira. Brasília, 27 de março de 1968.

Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46 (281-568), novembro, 1968.

33. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Os IPM constituem processo regular para

apuração de fatos criminosos. Apreciação da justa causa. Apuração na instrução criminal dos

fundamentos da denúncia. Denegação do pedido. Habeas Corpus nº 45.231 – GB. Pacientes:

José Rodrigues Vieira Netto e outros. Relator: Ministro Themistocles Cavalcanti. Brasília, 16

de abril de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46 (p. 1-280), outubro, 1968.

34. Representação

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. I – O art. 188, da Carta Política de 1967,

determina a adaptação das Constituições Estaduais ao ordenamento constitucional maior.

Trata-se de processo que não se confunde com o poder ordinário de emenda. As regras objeto

da reforma, votada pelas Assembléias Legislativas, devem ser aquelas que, explícita ou

implicitamente, sofreram alterações, ou já não são compatíveis com o sistema federal (art. 1º,

do Dl. 216, de 27.2.67); II; III; IV; V; VI; VII; VIII; IX; X; XI; XII. Representação nº 753 –

SP. Representante: Procurador-Geral da República. Representada: Assembléia Legislativa do

Estado de São Paulo. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva. Brasília, 12 de junho de 1968.

Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46 (281-568), novembro, 1968.

35. Mandado de Segurança

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Juízes federais. Primeira nomeação sem

concurso, por força do AI-2 e da L. 5.010, de 1966, aprovados pelo art. 173, III, da

Constituição de 1967. Juízes substitutos não integram a carreira da Justiça Federal, sendo a

forma do seu provimento determinado pelo art. 118 da Constituição. Esgotou-se o processo de

livre nomeação com o preenchimento dos cargos em São Paulo. Denegação do mandado de

segurança. Mandado de segurança nº 18.973 – DF. Requerente: Jarbas dos Santos Nobre e

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outros. Requerido: Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Relator: Ministro

Themistocles Cavalcanti. Brasília, 22 de junho de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência,

vol. 46 (p. 1-280), outubro, 1968.

36. Recurso de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Havendo fatos delituosos a apurar por

constituírem crime em tese os narrados na denúncia, indefere-se o habeas corpus. Recurso de

Habeas Corpus nº 45.907 - GB. Recorrentes: Diógenes Alves e outros. Recorrido: Superior

Tribunal Militar. Relator: Ministro Themístocles Cavalcanti. Brasília, 21 de agosto de 1968.

Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 51 (p. 577-864), março, 1970.

37. Representação

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação. Declaração da

inconstitucionalidade do D. 4.527, de 11.10.65, do Estado do Rio Grande do Norte.

Desapropriação por interêsse social: Sòmente a União pode fazê-lo. A lei a que se referia o

art. 147 da Constituição de 1946 é a federal. Procedida pelo Estado e através de decreto, não

pode êste prevalecer. Aplicação do art. 147 da C.F. e da L. fed. 4.132/62, artigos 1.º e 5.º.

Preliminar de conhecimento desprezada; representação provida. Representação nº 718 – RN.

Representante: Procurador-Geral da República. Representado: Govêrno do Estado. Relator:

Ministro Thompson Flores. Brasília, 22 de agosto de 1968. Revista Trimestral de

Jurisprudência, vol. 50 (p. 1-298), outubro, 1969.

38. Recurso Extraordinário

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ato Institucional – Os atos dos governadores de

Estado, praticados com base nos Atos Institucionais, não estão imunes de apreciação judicial

quanto às formalidades extrínsecas. Juiz de Direito aposentado em conseqüência de

investigação sumária de que participou delegado de polícia que “não tinha idoneidade

funcional e hierárquica para fazê-lo”. Alegação, ainda, de suspeição de membros da Comissão

de Investigação. Mandado de segurança concedido pelo Tribunal de Justiça. Recurso

Extraordinário não conhecido. Recurso Extraordinário nº 62.556 – PR. Recorrente: Estado do

Paraná. Recorrido: Leandro de Freitas Oliveira. Relator: Ministro Themistocles Cavalcanti.

Brasília, 24 de setembro de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 47 (p. 283-560),

fevereiro, 1969.

39. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus. Aplicação da medida de

segurança prevista no art. 16, IV, letra c, do A.I. 2, de 27.10.65. Vigência da norma,

condicionada à existência das pessoas aí mencionadas, com os seus direitos políticos

suspensos por dez anos, por fôrça do art. 173 da C.F. de 1967, que reconheceu como válidos,

e os aprovou, excluindo sua apreciação do Poder Judiciário, os atos de suspensão dos direitos

políticos e os de natureza legislativa, baixados com base nos Atos Institucionais e

Complementares. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Ordem indeferida. Habeas

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Corpus nº 46.118 - DF. Paciente: Jânio Quadros. Relator: Ministro Barros Monteiro. Brasília,

2 de outubro de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 52 (p. 291 – 566), maio,

1970.

40. Reclamação

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação. O mandado de segurança foi

deferido para que os reclamantes tivessem os seus proventos pagos na base do salário atual e

não na base dos salários anteriores à lei. O pedido foi para que se reconhecesse aos

reclamantes, aeronautas aposentados, os proventos da aposentadoria como lhes vinha sendo

pago durante dois anos, antes da Resolução da Junta Interventora que mandou que os

proventos fossem computados na base inferior àquela que o mandado de segurança

reconheceu como devido. Procedência da reclamação. Reclamação nº 777 – DF. Reclamantes:

Agostinho Machado Rodrigues e outros. Reclamado: Instituto Nacional de Previdência

Nacional de Previdência Social. Relator: Ministro Hermes Lima. Brasília, 10 de outubro de

1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 47(p. 283-560), fevereiro, 1969.

41. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Prisão ou detenção – A Constituição de 1967

estabeleceu (art. 150, § 12), como as de 1946 (art. 141, § 22) e a de 1934 (art. 113, nº 21), a

judicialidade da prisão ou detenção, dispondo que ela será imediatamente comunicada ao juiz

competente, que a relaxará, se não for legal. Lei de Segurança Nacional – Nos crimes por ela

previstos não se aplica a detenção ou prisão admitida no art. 156 do Código da Justiça Militar,

mas a estabelecida no art. 54 do Dl. 314, de 1967. Habeas Corpus nº 46.415 – GB. Paciente:

Darcy Ribeiro. Relator: Ministro Adaucto Cardoso. Brasília, 28 de novembro de 1968.

Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 49 (p. 567-868), setembro, 1969.

42. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Crime contra a segurança nacional. I.P.M. para

sua apuração. Não é nulo porque competente a autoridade que o determinou e a que o

procedeu. Motivação. Prisão preventiva: nulidade, porque decretada por Conselho de Justiça

sem competência, firmada que fôra o outro por via de prevenção. Aplicação dos art. 8.º, VII,

c, da Constituição Federal, combinado com a L. 4.483, de 1964, e D1. 200-67, art. 200; e 122,

§ 1.º, daquela Carta com o D1. 314-67, arts. 54 e 56 e C.J.M., arts. 75, 83, 84, 115, 156 e seus

parágrafos e 259. Votos vencidos. Habeas corpus deferido. Habeas Corpus nº 46.060 – GB.

Paciente: Wladimir Gracindo Soares Palmeira. Impetrante: Marcello Nunes de Alencar.

Relator: Ministro Thompson Flores. Brasília, 18 de setembro de 1968. Revista Trimestral de

Jurisprudência, vol. 50 (p. 299-594), novembro, 1969.

43. Recurso de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus. União Nacional dos Estudantes.

Simples manifestação para restabelecer o seu funcionamento não tipifica crime. Pleitear o

restabelecimento de uma sociedade extinta, sem atos de subversão, constitui direito

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constitucionalmente amparado. Recurso de habeas corpus provido. Recurso de Habeas Corpus

nº 45.904 – MG. Recorrentes: Jorge Batista Filho e outros. Recorrido: Superior Tribunal

Militar. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva. Brasília, 24 de setembro de 1968. Revista

Trimestral de Jurisprudência, vol. 48 (p. 1-274), abril, 1969.

44. Recurso de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Prazo. É de cinco dias para o

oferecimento da denúncia quando se tratar de réu preso. Esse prazo é fatal no processo

comum (art. 46 do C. Pr. Pen.). O Código da Justiça Militar admite a prorrogação até o triplo,

em casos excepcionais, entre os quais não se encontra a baixa dos autos à Polícia para

diligências. Recurso provido para que o paciente se defenda em liberdade, sem prejuízo da

ação penal. Recurso de Habeas Corpus nº 46.264 – SP. Recorrente: Bernardino Ribeiro de

Figueiredo. Recorrido: Superior Tribunal Militar. Relator: Ministro Evandro Lins e Silva.

Brasília, 15 de outubro de 1968. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 49 (p. 1-290),

julho, 1969.

45. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Havendo excesso de prazo na prisão preventiva,

a prisão é ilegal. Concessão de habeas corpus. Sua extensão a caso idêntico. Habeas Corpus nº

46.471 – SP. Pacientes: José Benedito Pires Trindade e outros. Relator: Ministro

Themistocles Cavalcanti. Brasília, 10 de dezembro de 1968. Disponível em:

http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/pesquisaEmail/ ou [email protected]. Acesso em:

março de 2005.

46. Habeas Corpus (extensão)

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Havendo excesso de prazo na prisão preventiva,

a prisão é ilegal. Concessão de habeas corpus. Concede-se por extensão para paciente em

igualdade de condições. Habeas Corpus nº 46.471 – SP. Pacientes: José Benedito Pires

Trindade e outros. Relator: Ministro Themistocles Cavalcanti. Brasília, 10 de dezembro de

1968. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/pesquisaEmail/ ou

[email protected]. Acesso em: março de 2005.

47. Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Prisão preventiva, cujo prazo se extinguiu.

Habeas Corpus concedido. Habeas Corpus nº 46.472 – SP. Pacientes: Ivo Malerba e outros.

Relator: Ministro Adalício Nogueira. Brasília, 10 de dezembro de 1968. Disponível em:

http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/pesquisaEmail/ ou [email protected]. Acesso em:

março de 2005.

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48. Petição de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Alegação, não acolhida de

excesso de prazo da prisão em flagrante. Adiamento do julgamento, para aguardar

informações, no tocante a outros fundamentos de pedido – Denegação da ordem. Petição de

Habeas Corpus nº 46.470. Pacientes: José Dirceu de Oliveira e Silva e outros. Relator:

Ministro Eloy da Rocha. Brasília, 11 de dezembro de 1968. Disponível em:

http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/pesquisaEmail/ ou [email protected]. Acesso em:

janeiro de 2005.

49. Petição de Habeas Corpus

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Alegação de excesso de prazo

na formação da culpa. Pedido deferido, em face de precedentes. Petição de Habeas Corpus nº

46.470. Pacientes: José Dirceu de Oliveira e Silva e outros. Relator: Ministro Eloy da Rocha.

Brasília, 12 de dezembro de 1968. Disponível em:

http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/pesquisaEmail/ ou [email protected]. Acesso em:

janeiro de 2005.

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ANEXO