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5/14/2018 iconologia, alegoria, signo - slidepdf.com
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Signo, Alegoria e Iconologia
Luciano de Oliveira Fernandes
Santo Agostinho lança os fundamentos teóricos da tipologia quando “classifica os
signos em seu De Doctrina christiana (sobre a doutrina cristã). A classificação opõe
mundo sensível e inteligível. Assim, Deus fala por coisas, que são signos; a linguagem
humana produz signos das coisas e, desta maneira, signos de signos”1. Pensados
interpretativamente, os signos são: naturais (signa naturalia), que “correspondem ao que
os semióticos hoje chamariam de índice”2); e instituídos (signa data), também chamados
signos intencionais, “são por exemplo as insígnias, emblemas, divisas (...) Dirigem-se a
vários sentidos (...) e todos podem ser expressos por palavras (...). Assim, dos signos
instituídos, a palavra é o principal”3. Retoricamente, os signos são classificados como
próprios (servem para significar as coisas para as quais foram instituídos) e translatos (indicam uma coisa que é metáfora de outra). Estes, sendo figurados ou alegóricos,
“referem-se a exemplos da natureza”; e quando “retirados da natureza, são ao mesmo
tempo signos e coisas”4. Santo agostinho identificara ainda “sentido figurado com
sentido alegórico e sentido próprio com sentido literal”5. São Tomás de Aquino “afirma
que o ponto de partida para o simbolismo generalizado das Escrituras é o poder de Deus,
que ordena o curso das coisas de modo que elas também se tornam símbolos de outras”6.
Observe-se aqui que a doutrina cristã medieval apontou para o sentido “de que a Natureza
1 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 1092 Idem.3 Ibidem. p 109-104 Idem Ibidem. p 1125 Ibidem Ibidem.6 Ibidem Ibidem. p 118-9
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e a História são um tecido de símbolos, presença de uma Escrita sem letras e de uma Voz
sem palavras, a ser pesquisada na letra das Escrituras e incessantemente reposta e
repetida em exemplos”7.
Segundo Saussure, o signo lingüístico8 é uma Entidade psíquica que, por um
vínculo de associação, une em nosso cérebro um “conceito” e uma “imagem acústica” –
estando esses dois elementos intimamente unidos e reclamando um ao outro. Os termos
“conceito’ e “Imagem acústica” foram substituídos respectivamente, por “significado” e
“significante” , referindo-se o primeiro ao conjunto de traços básicos e genéricos que
caracterizam aquilo a que se refere o signo; e o segundo à impressão psíquica de um som
(material) e à representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos
(constituindo uma imagem sensorial). O efeito produzido pela associação entre
significado e significante origina a “significação”, que pode sofrer alterações de acordo
como o contexto no qual o signo está inserido. Essas alterações ocorrem pela mudança do
“valor” do signo lingüístico (por exemplo: O cão latiu; O homem fez um pacto com o
cão). Conforme Saussure, todo meio de expressão aceito numa sociedade repousa em um
hábito coletivo, na convenção. Assim, o laço que une o significante é arbitrário, ou seja,
convencionado pela comunidade de fala; não havendo, portanto, relação direta entre o
significado e a cadeia de elementos (fonemas) que formam o significante. Por essa razão
este último é, via de regra, imotivado. Quanto à possibilidade de uso motivado dos
signos, o autor assinala as onomatopéias e exclamações como argumentos para objeções
à teoria da arbitrariedade do signo, porém, refuta tais argumentos por considerar as
onomatopéias e exclamações como elemento de importância secundária e de pouca
7 Ibidem Ibidem. p 1178 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral.
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expressividade quantitativa com relação ao léxico de uma língua. Além disso, o fato de se
agregarem a uma língua faz com que tais elementos percam algo de seu caráter primeiro
para adquirir o do signo lingüístico em geral, que é imotivado. Percebe-se que o conceito
de “motivação” em Saussure se refere a um possível vínculo entre significado e
significante, sendo a escolha deste último motivada pela relação que sua cadeia de
elementos sensoriais (imagens sensoriais originadas pelos fonemas) apresenta como o
primeiro. Em oposição ao “significante visual” (que pode oferecer complicações
simultâneas em várias dimensões), o “significante acústico” (por sua natureza auditiva)
desenvolve-se unicamente no tempo, possuindo as características que toma deste,
representando uma linha mensurável numa só dimensão. Ou seja, os elementos (fonemas)
que formam a imagem sensorial (que é o significante) são ordenados em cadeia, um após
o outro, assumindo um caráter linear. O significado não apresenta esse caráter linear por
não se desenvolver no tempo, em cadeia. Saussure considera que um indivíduo, ou
mesmo a massa, é incapaz de modificar a escolha feita pela comunidade de fala com
relação a um signo pelo fato de a língua se apresentar sempre como a uma herança da
época precedente. Apresenta como argumentos em favor da “imutabilidade do signo”: o
caráter arbitrário do signo; a multidão do signos necessários para constituir qualquer
língua; o caráter demasiado complexo do sistema; e a resistência da inércia coletiva a
toda renovação lingüística. Assim, a “mutabilidade” do signo está condicionada a um
deslocamento da relação entre significado e significante. O tempo assegura a
continuidade da língua, contribuindo para a “imutabilidade do signo” através da tradição;
e, paradoxalmente, altera mais ou menos rapidamente os signos lingüísticos. Por este
paradoxo é possível tratar imutabilidade e mutabilidade ao mesmo tempo, ou seja, a
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língua se transforma sem que os indivíduos possam transformá-la. A relação entre
significado e significante é de natureza arbitrária e associativa. Por isso, a língua
(entendida como uma instituição que se difere dos demais pelo caráter arbitrário do
signo) é vista por Saussure como forma, não como substância. Os significantes são
escolhidos para serem associados aos significados, ou seja, convencionados; o mesmo
ocorre com as relações e estruturas do “sistema” que coordena o léxico. Desse modo,
tudo que deve ser expresso (substância) apenas o é se condicionado à estrutura formal
que é a língua. O signo se difere do símbolo por este último manter ainda um rudimento
de vínculo natural entre o significante e o significado que o compõem, não sendo,
portanto, completamente arbitrário. No símbolo “o próprio conceito é mostrado no
mundo corpóreo, e em imagem o vemos, direta ou indiretamente. Assim, o simbólico é
marcado pelo momentâneo; este falta ao alegórico, em que ocorre a progressão lenta de
uma série de momentos”9 e imagens.
A Semiologia “estende os conceitos da Lingüística, de Ferdinand de Saussure (...)
aos demais signos”10; opera por “dicotomias ou relações diádicas
(significante/significado, denotação/conotação, paradigma/sintagma)”11. Fundada pelo
filósofo e lógico-matemático norte-americano Charles Sanders Pierce, a Semiótica ou
Teoria Geral dos Signos, difere da semiologia por indagar “sobre a natureza dos signos e
suas relações, entende-se por signo tudo aquilo que representa ou substitua alguma coisa,
em certa medida e para certos efeitos”12. A semiótica “arma um sistema de classificação
9 Creuzer. Simbolik und Mythologie der alten Volker, besonders der Griechen, citado por Walter Benjaminin: Il Dramma Barroco Tedesco, 2ª ed. Torino: Einaudi, 1971. pp 172-3. (Apud HANSEN).
10 PIGNATARI, Décio. Semiótica & literatura. p 2211 Idem.12Ibidem. p 21
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dos signos onde se encaixa o signo verbal”13; opera por “tricotomias ou relações triádicas
(signo/referente/interpretante, ícone/índice/símbolo, sintaxe/semântica /pragmática)”14.
Duas formas fundamentais e fundantes de associação (segundo o filósofo inglês David
Hume, do século XVIII) são “a similaridade e a contigüidade”15. Na Semiótica de Pierce
“os signos que se organizam por similaridade, por analogia, são ícones, são ‘figuras’ (...).
Já os signos que se organizam por contigüidade são símbolos (as palavras, faladas ou
escritas, são os símbolos por excelência)”16. Mas assim como “um conceito jamais poderá
substituir uma forma, um símbolo jamais poderá substituir um ícone”17. No que diz
respeito ao índice, “é um signo que mantém uma relação direta – física digamos – com a
coisa à qual se refere (...) constituindo um argumento – que é o signo mais lógico e
genérico de que é capaz o interpretante (equivale à formulaçao de uma lei)” 18. Para Pierce
“a Lógica não era senão um outro nome possível para a Semiótica (...) ‘todo pensamento
é um signo’ ”19.
À Ideoscopia das tricotomias de Pierce, “referentes ao processo de significado e à
classificação dos signos”20, são atribuídas três categorias da experiência (categorias
cenopitagóricas): primeiro (“experiências monádicas ou simples, em que os elementos
são de tal natureza que poderiam ser o que são sem inconsistência ainda que nada mais
houvesse na experiência”21); segundo (“experiências diádicas ou recorrências, sendo,
13 Idem Ibidem. p 2114 Ibidem Ibidem. p 2215 Ibidem Ibidem.16 Ibidem Ibidem. p 2417 Ibidem Ibidem. p 2518 Ibidem Ibidem. p 25-619 Ibidem Ibidem. p 39-4020 Ibidem Ibidem. p 4021 Ibidem Ibidem. p 41
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cada uma, uma experiência direta de um par de objetos em oposição”22); terceiro
(“experiências triádicas ou compreensões; sendo, cada uma, uma experiência direta que
liga outras experiências possíveis”23). Nesse sentido: a primeiridade é um “modo ou
modalidade de ser aquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a outra
coisa”24; a secundidade é o “modo se ser daquilo que é tal como é, com respeito a um
segundo, mas sem levar em consideração qualquer terceiro”25; e a terceiridade é o “modo
de ser daquilo que é tal como é, ao estabelecer a relação entre um segundo e um terceiro
(...). A terceiridade não é apenas a consciência acerca de algo, mas também a sua força
ou capacidade sancionadora”26; implica “generalização e lei”27, a qual “possui aspecto
compulsivo que se impõe a nós – distinguindo-se portanto do simples pensar”28. São
primeiros os “sentimentos e sensações, a indeterminação do mundo físico, qualidades,
crenças, artes”29; são segundos “o querer e a volição, a força, os fatos, a dúvida, o mundo
dos negócios”30; são terceiros “o conhecer e a cognição, a regularidade estática do mundo
físico, as leis, o hábito, a consciência”31.
Observemos, portanto, que “o nível sintático de um signo, sendo o nível das suas
relações formais, é um primeiro; que o nível semântico, que é o nível das suas relações
com o objeto, é um segundo; e que o nível pragmático, que é o nível das suas relações
com o interpretante, é um terceiro”32. A partir desse ‘diagrama triangular’, apontaremos
22 Ibidem Ibidem.23 Ibidem Ibidem.24 Ibidem Ibidem. p 4325 Ibidem Ibidem.26 Ibidem Ibidem. p 43-527 Ibidem Ibidem. p 4528 Ibidem Ibidem.29 Ibidem Ibidem.30 Ibidem Ibidem.31 Ibidem Ibidem.32 Ibidem Ibidem. p 50
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“as três tricotomias mais importantes de Pierce – as referentes ao signo, ao objeto e ao
interpretante, que situaremos respectivamente, no vértice do signo, no vértice do objeto e
no vértice do interpretante”33. No vértice do signo pode ele ser classificado em
qualissigno34, sinsigno
35 e legissigno36. No vértice do objeto, o signo em relação ao seu
objeto, pode ser um ícone37, um índice38 ou um símbolo39. No vértice do interpretante, o
signo em relação ao interpretante, pode o signo se dividir em Rema40, Dicissigno ou
Signo Dicente 41 e Argumento42.
Segundo João Adolfo Hansen, a “alegoria (grego allós = outro; agourein = falar)
diz b para significar a. A Retórica antiga assim a constitui, teorizando-a como
modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso”43. Retomando
Aristóteles, Cícero, Quintiliano e outros, Lausberg assim a redefine: “A alegoria é a
33 Ibidem Ibidem. p 5134 Corresponde à primeiridade – “uma qualidade que é um signo; só é signo quando fisicalizado, mas não é
a fisicalização que o caracteriza como signo”. Ibidem Ibidem.35 Corresponde à secundidade – “(Sin = ‘aquilo que é uma vez só’, como em ‘singular ’). Coisa ou eventorealmente existente que é um signo; envolve um ou mais qualissignos.” Ibidem Ibidem.
36 Corresponde à terceiridade – “uma lei que é um signo. É um tipo geral e não um objeto singular. (...) semanifesta e se significa por corporificaçoes concretas chamas réplicas. (...) de maneira geral, as palavras,faladas e escritas, são legissignos.” Ibidem Ibidem.
37 “(escala de correspondência: primeiridade, sintaxe, qualissigno, possibilidade) – é um representante que,em virtude de qualidades próprias, se qualifica como signo em relação a um objeto, representando-o portraços de semelhança ou analogia” Ibidem Ibidem. p 51-2
38 “(escala de correspondência: secundidade, semântica, sinsigno, existente) – signo que se refere ao objetodesignado em virtude de se realmente afetado por ele”. Mesmo tendo “alguma qualidade comum com oobjeto”, é “sua ligação direta com este último que o caracteriza como índice, não os traços desemelhança”. Ibidem Ibidem. p 53
39 (escala de correspondência: terceiridade, nível pragmático, legissigno, lei ou pensamento) – signo que serefere ao objeto em virtude de uma convenção, lei ou associação gela de idéias. Atua por meio deréplicas.” Ibidem Ibidem.
40 “(escala de correspondência: primeiridade, sintaxe, qualissigno, possibilidade) – signo, para o seuinterpretante, de uma possibilidade qualitativa; termo ou função proposicional que tal ou qual espécie deobjeto possível, destituída da pretensão de ser realmente afetada pelo objeto ou lei à qual se refere. (...) oque chamamos de estilo é um Rema.” Ibidem Ibidem. p 54
41 “(escala de correspondência: secundidade, sinsigno, nível semântico, índice, existente) – signo, para oseu interpretante, de existência real. É uma proposição ou quase-proposição, envolvendo um Rema”.
42 “(escala de correspondência: terceiridade, legissigno, nível pragmático, símbolo, lei) – signo, para o seuinterpretante, de uma lei, de um enunciado, de uma proposição-enquanto-signo. Ou seja, o objeto de umArgumento, para o seu interpretante, é representado em seu caráter de signo; esse objeto é uma lei geralou tipo.” Ibidem Ibidem.
43 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 7
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metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do
pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de
semelhança, a esse mesmo pensamento”.44 Nesse sentido, a alegoria é um procedimento
construtivo que a antiguidade greco-latina e cristã, assim como a idade média, chamou de
alegoria dos poetas: “expressão alegórica, técnica metafórica de representar
abstrações”45. Há outra alegoria que não se confunde com a dos poetas egípcios greco-
romanos e medievais nem com a dos autores hebraicos do Velho Testamento: a alegoria
dos teólogos, também denominada de figura, figural, tipo, antítipo, tipologia, exemplo.
Não é um modo de expressão verbal retórico-poética, “mas de interpretação religiosa de
coisas, homens e eventos figurados em textos sagrados.”46 O verbo grego állegorein
“tanto significa ‘falar alegoricamente’ quanto ‘interpretar alegoricamente’”47. Portanto ,
há duas alegorias ‘complementares e simetricamente inversas’: a alegoria dos poetas
(semântica de palavras, expressão construtiva e retórica, maneira de falar e escrever); e a
alegoria dos teólogos (interpretação, hermenêutica, modo de entender e decifrar;
semântica de realidades supostamente reveladas por coisas, homens e acontecimentos
nomeados por palavras, em seu sentido próprio ou figurado).48
Operada como hermenêutica49 a alegoria é “uma técnica de interpretação que
decifra significações tidas como verdades sagradas em coisas, homens, ações e eventos
das Escrituras”, as quais “significam verdades morais, místicas, escatológicas. Por isso, a
prática interpretativa dos primeiros Padres da Igreja e da Idade Média lê coisas como
44 LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literária. Madrid: Gredos, 1976, t. II, pp. 283 e ss.45 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 746 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 847 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 848 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. pp. 8-9; 9249 do grego hermenéia, hermeneuiein = trasporte, transferir, termos traduzidos pelos latinos por
interpretatio, interpretare, interpetação, interpretar
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figuras alegóricas – e não as palavras que as representam – para nelas pesquisar o sentido
espiritual.”50 Assim, ao passo que a retórica greco-latina teorizou a alegoria como
simbolismo lingüístico, os padres primitivos da Igreja e da Idade Média a adaptaram,
“pensando-a como simbolismo lingüístico revelador de um simbolismo natural (...) os
padres fizeram a distinção entre sentido literal próprio (expresso por letras de palavras
humanas), sentido literal figurado (metafórico) e sentido espiritual (revelado por coisas,
homens e acontecimentos das Escrituras)”.51 A idade média distinguiu alegoria de
tipologia, “pensando a primeira por meio de categorias lingüísticas da retórica greco-
latina, como metáfora continuada ou alegoria verbal e, ainda, como sentido literal
figurado”52. A tipologia então “uma semântica de realidades, espécie particular e
propriamente cristã da alegoria: ela é alegoria factual ou allegoria in factis.”53 Segundo
Hansen:
“É nessa linha que, no século XVII, o Padre Vieira escreveu uma História do
Futuro, tomando como modelo de história as histórias da Escrituras, que para
ele eram história, numa mescla de tipologia, relação figural de realidades; e
alegoria, relação figurada de palavras. O objetivo de Vieira era teológico-
político e suas alegorias compõem o futuro de Portugal profeticamente, como
realização de um projeto já anunciado por deus no passado.”54
Nos séculos XV e XVI retorna a teoria do simbolismo, adaptação feita por Santo
Agostinho no século V d.C.: “pensa o verbo divino como uma ‘palavra’, no sentido que a
50 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 9151 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p1252 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 10453 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 10454 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 108
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retórica chamaria de figurado ou metafórico.”55 A interpretação cristã das coisas das
Escrituras é realizada de acordo com três coordenadas: “consideração da presença de
deus nas coisas sensíveis; consideração da presença de deus nos seres espirituais, almas e
puros espíritos; consideração da presença de deus na alma humana”.56 Os teólogos leram
as marcas de Deus no mundo e nos textos segundo três graus de proximidade: “a sombra,
figuração distante e confusa de deus; o vestígio, figuração distante, mas distinta; a
imagem, figuração próxima e distinta”57. Devemos observar que os textos abundam de
exemplos, “o exemplarismo não é defeito, mas decorrência do método, que situa cristo
como premissa”58 e como exemplo.
Durante o século XV em Florença, textos filosóficos e poéticos gregos e latinos
são traduzidos e simultaneamente interpretados por meio de referências variadas como
hieróglifos egípcios, astrologia, alquimia, Patrística, Escolástica, Cabala, etc. Para os
eruditos florentinos, não há diferença essencial entre a autoridade das fontes cristãs e não-
cristãs. As releituras da tradição efetuadas pelos eruditos de Florença são retomadas, por
sua vez, nos séculos XVI e XVII por pintores e poetas classificados hoje com a rubrica de
maneirismo. “A alegoria deixa de ser pensada como a antiga instituição retórica a
pensara: tradução figurada de um sentido próprio. Deixa, também, de funcionar como na
hermenêutica medieval”59. Passa então a ser considerada o “instrumento principal de
interpretação e construção dos discursos”60. O método de interpretação alegórica dos
florentinos “desloca as escrituras” e baseia-se antiguidade oriental e greco-romana. Os
55 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 5956 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 9257 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. pp. 9858 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. pp. 9959 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 14160 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 139
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vários sentidos da interpretação medieval (histórico, alegórico, tropológico, anagógico)
são unificados como alegóricos. A interpretação florentina busca sempre um mesmo
significado: “o destino da alma humana que ‘volta’ para o mundo das essências”.61 A
alegoria é construída sobre a diferença entre o visível e o legível e articula signos
esotéricos. Não é necessariamente a tradução da obra interpretada em formas que
concretizam abstrações, não mais ornamentação do discurso. A “alegoria é ars
inveniende ou Invenção, modo de construir da imaginação poética.”62 O fundamento
último da alegoria florentina é “a crença de que, para a alma humana consciente dos
outros mundos, a realidade terrena é da natureza dos sonhos, metáfora de uma filiação
primordial.”63 A alegoria é instrumento para
“(...) por a alma humana em estado de receptividade poética da unidade
invisível. (...) Assim, a própria vida é alegoria: sonho sensível do inteligível,
espelho embaçado do inefável, teatro, pó, sombra, nada – na alegoria
neoplatônica se lê, hoje, uma das matrizes do que o século XX chama de‘Maneirismo’ e ‘Barroco’. (...) Tanto quanto a concepção do mundo como teatro
e sonho, a doutrina do todo contido na parte torna-se lugar comum (...) nos
séculos XVI e XVII.”64
Os neoplatônicos florentinos do século XV teosofaram a alegoria como expressão
e interpretação de mistérios. Paralelamente a essa tradição mística, “as traduções e o
exame da Poética, recém-descoberta (1499), tornam-se cada vez mais freqüentes no
século XVI e, ainda, no XVII, quando a retórica é apropriada pela Contra-Reforma em
61 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 17162 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 17263 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 17464 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 176-8
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sua pompa e circunstância.”65 A vertente aristotélica propõe a alegoria como simples
tropo convencional, determinado por regras finitas. A alegoria torna-se “definição
ilustrada”66. Da Lógica aristotélica deriva-se então a técnica de definição como
classificação em gêneros, subgêneros, etc. Da Retórica, mantém-se a teoria da metáfora
(dá-se preferência à ‘metáfora de proporção’). O aristotelismo permitiu uma regulação
técnica da alegoria no século XVI e, extensivamente, no século XVII:
“(...) o procedimento geral de figuração alegórica passa a funcionar baseado nos
seguintes pressupostos: a invenção do poeta ou artífice é um produto de seupensamento; a imitação de modelos artísticos é um instrumento da invenção; a
arte é o ato de execução por meios técnicos, adequados aos gêneros,
verossimilhanças e decoros. (...) o conceito pensado pelo poeta ou artífice passa
a ser figurado por um emblema, uma divisa, um enigma ou outra forma
alegórica.”67
A tradição neoplatônica e o aristotelismo se misturam e teóricos neoplatonicos
operam com aplicações de Aristóteles. Entre eles Cesare Ripa, autor da obra Iconologia,
publicada em 1593. Pela primeira vez se emprega o termo ‘iconologia’ para descrever e
interpretar obras do gênero emblemático relacionadas à alegoria. Propõe-se a iconologia
como “lógica das imagens (...) articulada duplamente como (...) técnica construtiva e
técnica interpretativa. Sendo uma transposição da retórica à constituição de imagens
pictóricas, a formulação de Ripa toma o discurso como modelo: as imagens da pintura
imitam o discurso”68. O Iconologia se tornou texto-chave na constituição do classicismo,
65 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 17966 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 17967 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 179-8068 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 181
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“pois expõe a fatura de imagens adequadas”69. Retornam as categorias da Retórica
Antiga, principalmente de conveniência, adequação ou decoro: “para coisas do
conhecimento, imagens de coisas elevadas; para coisas elevadas moralmente, coisas
esplêndidas; para coisas censuráveis, imagens de coisas vis, etc., observando-se a
transposição, para a pintura, da distribuição retórica dos estilos em sublime, médio e
humilde.”70 Contrariando o mito muito difundido de uma total liberdade e exuberância
‘barrocas’, ressalta-se aqui a antiga componente retórica da alegoria, mantida nas artes do
conceito engenhoso como instrumento petrificado na produção de efeitos de exuberância
e liberdade. “Por isso, ainda, no século XVII, a invenção e o engenho tendem mais e mais
a ordenar-se como técnica, que determina as regras para a tópica, imagens da pintura ou
tropos da poesia.”71 Antonio J Saraiva, na obra O discurso engenhoso, faz as seguintes
considerações sobre o papel da imagem no encadeamento do discurso:
“A imagem (...) – a do discurso clássico – é a evocação pelas palavras de uma
percepção sensorial (...) a fim de tornar sensível à imaginação um pensamento
abstrato, ou de descrever, por comparação, um objeto concreto. Esta definição
supõe dois termos co estatutos diferentes: o pensamento e sua imagem, a qual
tem, no discurso, papel secundário. (...) A imagem tem apenas uma realidade
secundária e depende da realidade primeira, a do pensamento. (...) Na metáfora,
a imagem é incorporada à palavra (...) Por isso a retórica clássica considera a
metáfora como um ‘ornato’ do discurso, e não como elemento de sua estrutura.
(...) A palavra e a imagem (...) combinam-se e entremeiam-se no tecido do
discurso. (...) A imagem, um significante no discurso clássico, pode tornar-se,
no discurso engenhoso, um significado; e o conceito, por sua vez, um
significante”.72
69 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 18270 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 18571 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 18772 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso. pp. 32; 34; 53
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Portanto, no que diz respeito ao discurso engenhoso, a imagem deixa de ser “um
ornamento às margens do discurso” e torna-se “uma etapa na estrada real da
demonstração”73. Segundo Panofsky, o homem é “o único animal que deixa registro atrás
de si, pois é o único animal cujos produtos ‘chamam à mente’ uma idéia que se distingue
da existência material destes.”74 Logo, “uma pintura, sobretudo na época barroca, é um
efeito de ilusão: de real só tem a aparência.”75 Segundo Panofsky, perceber a relação de
significação é “separar a idéia do conceito a ser expresso dos meios de expressão”. E
perceber a relação de construção é “separar a idéia da função a ser cumprida dos meios de
cumpri-la. (...) Os signos e estruturas do homem são registros porque (...) expressam
idéias separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de assinalamento e
construção.”76 Observa ainda que os objetos feitos pelo homem (os que não exigem a
experiência estética) são comumente chamados de ‘práticos’ e podem dividir-se em duas
categorias: “veículos de comunicação e ferramentas ou aparelhos. O veículo ou meio de
comunicação obedece ao ‘intuito’ de transmitir um conceito. A ferramenta ou aparelho
obedece ao intuito de preencher uma função”77. A Iconografia é “o ramo da história da
arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma.”78
Ao passo que a iconologia “é um método de interpretação que advém da síntese mais que
da análise.” Logo, a exata identificação dos motivos é o requisito básico para uma
correta análise iconográfica; e a exata análise das imagens, estórias e alegorias é o
requisito essencial para uma correta interpretação iconológica.79
73 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso. p 5374 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais . p 23 75 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso. P4476 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 2477 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 3178 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 4779 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 54
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BIBLIOGRAFIA
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Hedra; Campinas: Unicamp, 2006.
PANOFSKI, Erwin. Significado nas artes visuais. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. 6ª ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
SARAIVA, Antônio J. O Discurso Engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 29ª ed. São Paulo. Cultrix: 2008