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Identidade e Vida de Educadores Narrativas na primeira pessoa · A interactividade entre pessoa e contextos presente nesta afirmação ... A história de vida narra-nos a viagem ao

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Identidade e Vida

de Educadores

Rio-Grandenses

Narrativas na primeira pessoa

(... e em muitas outras)

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler:

Dom Dadeus Grings

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Norberto Francisco Rauch

Vice-Reitor:

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Conselho Editorial:

Antoninho Muza Naime

Antonio Mano Pascual Bianchi

Délcia Enricone

Helena Noronha Cury

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Marília Gerhardt de Oliveira

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Urbano Zilles (presidente)

Diretor da EDIPUCRS:

Antoninho Muza Naime

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Identidade e Vida

de Educadores

Rio-Grandenses Narrativas na primeira pessoa

(... e em muitas outras)

ORGANIZADORA:

MARIA HELENA MENNA BARRETO ABRAHÃO

AUTORES:

♦ Berenice Gonçalves Hackmann ♦ Gilberto Puntel ♦

♦ Helena Sporleder Côrtes ♦ João Dornelles Júnior ♦

♦ Jorge Luiz da Cunha ♦ Jussara da Rocha Freitas ♦

♦ Lenira Weil Ferreira ♦ Magda Tyska Rodrigues ♦

♦ Maria Helena Menna Barreto Abrahão ♦

♦ Mari Nunes de Barros Coelho ♦ Protasio Pletsch ♦

♦ Salete Campos de Moraes ♦

♦ Silvio Henrique Filippozzi Lafin ♦

♦ Vanessa Besestil da Rocha ♦

Porto Alegre 2004

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© EDIPUCRS, 2004

Capa: AGEXPP

Organização dos originais: Andréa Kutner

Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lemos

Revisão de normas: Anaí Zubik Camargo de Souza

Revisão: da organizadora

Diagramação da versão digital: Paolla Monticelli

Editoração e composição: Suliani Editografia

Impressão e acabamento: Gráfica EPECÊ

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

I19 Identidade e vida de educadores rio-grandenses: narrativas na primeira

pessoa (... e em muitas outras) / Organizadora, Maria Helena Menna

Barreto Abrahão; Autores, Berenice Gonçalves Hackmann... [et al.]. — Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

260 p.: il.

ISBN 85-7430-468-9

1. Educadores Rio-Grandenses — Biografias. 2. Educação — Rio

Grande do Sul — História. I. Abrahão, Maria Helena Menna Barreto. II.

Hackmann, Berenice Gonçalves.

CDD 370.71098165

923.78165

Ficha Catalográfica elaborada pelo

Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

EDIPUCRS

Av. Ipiranga, 6681 — Prédio 33

Caixa Postal 1429

90619-900 — Porto Alegre — RS

Brasil

Fone/fax: (51) 3320.3523

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E-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

Prefácio

Isabel Alarcão 7

Primeiras palavras...

Maria Helena Menna Barreto Abrahão 13

Águeda Brazzale Leal Uma vida dedicada à educação

Vanessa Besestil da Rocha 25

Alexandre Kieling Diretor da Rádio e TV Unisinos um gestor com sensibilidade

Magda Tyska Rodrigues 35

Carlos Nelson dos Reis De menino de rua a economista e professor universitário ou: a história que tinha tudo

para não dar certo

Maria Helena Menna Barreto Abrahão 45

Dom Luiz Felipe de Nadal Pioneiro na educação de base por meio da escola radiofônica

Protasio Pletsch 62

Edy Medeiros Gil Uma estranha no ninho – Uma história (diferente) de escolarização e vida profissional

feminina, no interior do RS, nos anos 40 do século XX

Helena Sporleder Côrtes e Salete Campos de Moraes 97

Irmão Elvo Clemente Um apaixonado pela arte de educar

João Dornelles Júnior 104

Isolda Holmer Paes A constante aprendiz, a eterna educadora

Berenice Gonçalves Hackmann 117

Itália Aronne de Leão Uma história de vida

Helena Sporleder Côrtes e Jussara da Rocha Freitas 143

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Maria Antunes Bernardes Saenger Uma inesquecível educadora que fez da docência seu jeito útil de ser

Mari Nunes de Barros Coelho 157

Marina Silvia Filippozzi Lafin Uma educadora pioneira e criativa à frente de seu tempo

Silvio Henrique Filipozzi Lafin 169

Olga Acauan Gayer A historicidade na construção de gênero, memória e formação docente

Lenira Weil Ferreira 175

Paschoa Maria Puntel dos Santos Sentidos e significados de uma trajetória docente

Gilberto Puntel e Jorge Luiz da Cunha 184

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Prefácio 7

Prefácio

Isabel Alarcão

A começar

Aconteceu um dia, um mês atrás. A minha vida profissional levou-me até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. E, nessa ocasião, assaltou-me um desejo grande de rever colegas que outrora tinha conhecido em encontros sobre formação de professores. Há largos tempos que não nos encontrávamos. Uns telefonemas e estava tudo combinado. Ultrapassada a surpresa, o encontro estava

marcado para o dia seguinte. No dia seguinte, minha amiga Maria Helena Menna Barreto Abrahão

apareceu, contente por me rever. Trazia consigo duas marcas da sua recente produção científica, aliás uma co-produção, pois os seus estudantes de pós-graduação eram co-autores. Um dos livros estava já publicado: História e histórias de vida. O outro, ainda em gestação, vinha escondido no pequeno disquete. De ambos, falou com entusiasmo. Contou do seu percurso nos últimos anos, da sua linha de pesquisa sobre histórias de vida, do trabalho dos seus

alunos, das narrativas sobre destacados educadores rio-grandenses, da abordagem metodológica, do impacto das investigações realizadas. Narrou a história da sua vida recente (não sem antes querer saber da minha).

Quando o encontro se aproximava do final, esclareceu-se aquilo que até ao momento se me tinha apresentado como o mistério do disquete. Maria Helena pediu-me que prefaciasse o livro que estava ainda em gestação. Acedi com muito gosto.

Descrito o contexto da minha intrusão no trabalho dos autores do livro Identidade e vida de educadores rio-grandenses — narrativas na primeira pessoa (... e em muitas outras), desoculto, para vós, autores, e também para os leitores que convosco vão reconstruir os significados possíveis daquelas histórias de vida, os pensamentos que vivenciei nesse processo interactivo a que damos o nome de leitura. Agrupei-os em sete ideias que sucessivamente comentarei.

A história de vida como narrativa

Os dois termos (―história de vida‖ e ―narrativa‖) utilizam-se na nomenclatura actual dos estudos em ciências sociais e humanas em que se inserem as ciências

da educação. Uma pesquisa relatada por Hatch and Wisniewski (1995, p. 114)

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8 Isabel Alarcão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

refere a opinião de vários pesquisadores quando confrontados com uma pergunta a respeito da diferença entre história de vida e narrativa. A maioria dos pesquisadores considerou que as histórias de vida são uma subcategoria da

narrativa. Um deles, porém, afirmou não sentir necessidade de estabelecer a distinção uma vez que os dois gêneros se interpenetram. E justificou do seguinte modo: ―Cada um se baseia na história, em relatos subjectivos, em sentidos construídos pelas pessoas em situações. Cada um incide sobre a vida como ela foi vivida — uma experiência que não se encaixa facilmente em disciplinas, categorias ou compartimentos. Cada um assume um passado vivo, dinâmico, um passado aberto à interpretação e reinterpretação, à construção do sentido no presente e para o presente‖.

As histórias de vida que constituem o núcleo duro deste livro, quer narradas pelo próprio, na primeira pessoa, quer narradas pelo pesquisador, na terceira pessoa, atribuem sentido ao que, de significativo, aconteceu ao longo do percurso de uma vida, esclarecem os contextos situacionais envolventes e recorrem ao tempo como eixo que lhe confere coerência.

A interactividade entre pessoa e contextos presente nesta afirmação traz-me à mente a metáfora do trem de que se socorre Bronfenbrenner (1979) para nos

transmitir a sua perspectiva ecológica de desenvolvimento humano. O trem é o amplo contexto sociocultural que, no seu movimento, põe em acção outros contextos que, de uma forma mais próxima, interagem com a pessoa, também ela em movimento, isto é, em desenvolvimento.

A história de vida narra-nos a viagem ao longo da existência individual. Insere o ser biológico nos contextos físicos e sócio-culturais e reconhece a sua interactividade. Revela-nos o que aconteceu e o que, dos acontecimentos, se

reteve. Dá visibilidade à personalidade da pessoa em foco, manifesta os seus anseios, as suas realizações. Mas também as suas frustrações. Revela ideais e valores. Como todos sabemos é bem menos freqüente que sejam desocultados os fracassos como se esses tivessem sido apagados da memória ou impedidos de se manifestarem.

A narrativa como releitura da realidade

A narração das histórias de vida permite remexer no passado, reordená-lo, contextualizá-lo no tempo, no espaço e no contexto de cada indivíduo, entretecê-lo na teia da história — a história de uma pessoa — e compreendê-la

na sua natureza multifacetada. A terminar o seu ensaio sobre a multiplicidade, Ítalo Calvino pergunta:

―Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma

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Prefácio 9

enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objectos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis‖ (1994, p. 138).

Contar a história de uma vida permitir que se perceba o sentido da sua vida, numa conjugação do que Bruner designou, também de um modo metafórico, por as duas paisagens: a paisagem da acção e a paisagem da consciência (1985, p. 14). Ao acto de narrar subjaz uma atitude e uma capacidade de observar e de interpretar fenômenos e acontecimentos inseridos nos contextos da sua ocorrência e nas suas relações de espaciais e temporais.

O elemento humano, pessoal, interpretativo marca nesse processo uma presença muito forte. Ao jogo que, no intuito de comunicar o experienciado, se

joga com o pensamento e, através deste, com as palavras, está inerente um processo interpretativo. No caso das histórias de vida narradas pelo investigador a partir de entrevistas ao protagonista da ―história‖, a primeira releitura da realidade a que atrás aludi, sofre uma segunda interpretação, uma nova leitura.

A polissemia gerada na interacção entre o autor e o leitor

Um terceiro nível interpretativo é introduzido pela pessoa do leitor. A subjectividade trazida pelo sujeito que narra, ou pelo sujeito que interpreta o que o informante narrou, acresce o modo projectivo como cada um de nós lê e reconstrói o texto, como acolhe as idéias que em si mais ressoam, como descarta

aspectos que, para os outros ou até para si próprio num posterior momento, se podem revelar de outro significado. Relacionando com o ponto anterior, podemos dizer que estamos perante uma terceira releitura da realidade.

O papel do investigador na construção e na reconstrução das histórias de vida

Poderá perguntar-se — e tem-se perguntado — a respeito do papel do investigador: deve ou não interferir na narração, orientá-la, reescrevê-la? É ou não um intruso? O investigador das histórias de vida é sempre um intruso, na minha opinião. É, por natureza, alguém com uma dupla intencionalidade:

conhecer e dar a conhecer. Estabelece o fio condutor, edita, contextualiza, tenta dar-lhe unidade, assegura-se da veracidade triangulando com outras fontes numa abordagem interdocumental, possibilita um ―entendimento orgânico‖, como diz Maria Helena Abrahão. Pode interferir em maior ou menor grau, mas, em geral, não apresenta uma narrativa pura. Interfere em função da riqueza, da organização da narração ou dos seus objectivos. A variabilidade no grau de interferência é bem patente no livro que temos diante de nós. Torna-se-nos evidente, por exemplo, as razões pelas quais a investigadora Maria Helena Abrahão decidiu

manter a genuinidade da narração de Carlos Nelson. Mas penso que, para que a

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10 Isabel Alarcão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

―organicidade‖ se revelasse quase espontaneamente muito deve ter contribuído a relação interpessoal criada pela investigadora e sustentada num clima de confiança e respeito. Como contribui também a relação que a autora estabelece com o leitor através do comentário inicial, enquadrador da história.

O valor formativo das histórias de vida

As histórias de vida, tal como as narrativas, não têm como objectivo argumentar, convencer, Descrevem, representam, colocam diante de nós instâncias de percursos. Suscitam entusiasmo, enfado ou indiferença, adesões ou rejeições. Desencadeiam reflexões, motivam iniciativas. Têm um valor inspirador, questionador, auto- reflexivo. Mexem conosco e quantas vezes nos transformam.

Incitam-nos a questionarmo-nos, mas também a questionar a ordem social configuradora. Permitem estabelecer relações temporais e perspectivar a humanidade num presente com passado e com futuro. Permite-nos realizar operações cognitivas de comparação, caracterização, avaliação, juízo crítico. Mas também escutar sentimentos, nos outros e em nós próprios. Perceber a multidimensionalidade da existência humana. Ajudam-nos a aprofundar a nossa identidade na consciência da diferenciação relativamente aos outros.

No processo interpretativo que as envolve, as histórias de vida podem, porém, ter um papel ―deformativo‖, conformador, se aceites acriticamente como resultado de um destino, de um fado que a pessoa não pode alterar.

O porquê do actual interesse pelas histórias de vida

É interessante interrogarmo-nos sobre o sentido do actual interesse pelas histórias de vida. Este interesse não se restringe apenas à sua utilização como metodologia de investigação. Manifesta-se na ênfase que os mídia concedem às entrevistas pessoais, no número de biografias e autobiografias que inundam as livrarias e na avidez com que espectadores e leitores lhe dedicam a sua atenção.

Parece que as histórias de vida se inserem muito adequadamente no espírito da nossa época. Penso que é possível identificar indicadores que caracterizam o pensamento e a vivência da actualidade. Referirei alguns: a centralidade do sujeito pessoa; a relevância do autoconhecimento; o sentimento de culpabilidade que trouxe ao de cima a dádiva de voz que hoje se concede às diversas minorias; a atracção pela compreensão da complexidade; a natureza multimodal do acesso ao conhecimento; a valorização da experiência e certo descrédito em relação aos

formalismos teóricos; o reconhecimento da influência dos factores contextuais; a relevância da linguagem e o seu papel na atribuição de sentidos; os caminhos que

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Prefácio 11

hoje se abrem ao conhecimento dos aspectos imateriais; o reconhecimento da natureza holística da pessoa e da vida.

As narrativas e as meta-narrativas

Como já acentuei, as narrativas reportam a acontecimentos, descrevem os contextos de ocorrência, combinam, articulam e associam elementos que

entrelaçam em função de fio condutor que lhe atribui coerência. Se, por si só, é interessante conhecer percursos de vida individuais, novas

perspectivas se abrem quando, a partir das histórias de vida, nos lançamos num tipo de análise transversal, meta-narrativa, em busca de configurações, de semelhanças, de singularidades, isto é, quando reorganizamos as narrativas segundo uma lógica paradigmática que nos permita reduzir, sistematizar, depurar, conceptualizar, generalizar analiticamente. Estas duas formas de

trabalhar põem em evidência os dois tipos de cognição designados por Bruner (1985): o narrativo e o paradigmático. São modos complementares de acesso ao conhecimento. Ambos necessários.

A finalizar

Sobre o conteúdo das histórias de vida que o livro nos apresenta vou apenas revelar alguns pensamentos que a leitura, no seu conjunto, despertou em mim, assumindo a subjectividade da minha interpretação.

Enquanto me movia de história para história ia compreendendo a interacção que, nos percursos de vida, se estabelece entre os indivíduos e os seus contextos

existenciais. Para uns, parecia que as coisas aconteciam naturalmente. Para outros, alcançaram-se pela vontade férrea, pela luta, pela persistência. Atravessa-as, porém, a idéia da recompensa pela qualidade do que se é.

Um outro aspecto chamou a minha atenção. E que, apesar de o título apontar para o mundo da educação, nem todos os protagonistas são ou foram professores. E, contudo, todos foram considerados educadores, como que a deixar-nos a mensagem de que, na essência do professor que ensina, está a

pessoa que educa. Será este um traço da sua identidade? Uma terceira nota que gostaria de destacar diz respeito à natureza

sistemática e continuada das investigações que, sobre esta matéria, a Professora Maria Helena Abrahão tem vindo a desenvolver na PUCRS. E neste destaque quero registrar duas dimensões: o aprofundamento do conhecimento sobre os educadores rio-grandenses, mas também o desenvolvimento das metodologias de acesso a esse conhecimento.

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12 Isabel Alarcão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Referências

BRONFENBRENNER, U. The ecology of human development: experiments by nature and design. Cambridge: Harvard University Press, 1979.

BRUNER, J. Actual minds, possible words. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

HATCH, I. A.; WISNIEWSKI, R. (Eds.). Life history and narrative: questions, issues and exemplary works. London: The Falmer Press, 1995, p. 113-137.

Aveiro, 7 de Maio de 2004.

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Primeiras palavras... 13

Primeiras palavras...

Maria Helena Menna Barreto Abrahão*

O presente livro se consubstancia na continuidade da pesquisa, 1cuja

primeira fase teve rica produção2. Esse segundo volume traz à luz, semelhante ao primeiro, histórias de vida de

profissionais que se destacaram no cenário da educação rio-grandense como personagens que, por construírem uma identidade profissional e pessoal consistente, exerceram positiva influência em pessoas que com elas tiveram a felicidade de conviver: colegas, chefes, alunos, pais, familiares, amigos. Como

contraponto, traz, igualmente, a história de vida de uma personagem que, tendo sofrido forte influência social para se constituir professora — como em geral era a profissão destinada às mulheres, tivessem ou não vocação para o magistério — num movimento de rebeldia para a época, construiu sua identidade profissional diferentemente e, por isso, ―considerada uma ave fora do ninho‖, mas que nem por isso deixou de ―educar‖ pelo exemplo que deu. E, também, por ser um destacado educador no campo em que atua, traz a história de vida de um personagem que

dirige a Rádio e TV educativa de uma importante universidade. Cabe, nesse momento, trazer alguns elementos de natureza teórico-metodológica para pontuar entendimentos que norteiam nosso estudo: Ao trabalhar com narrativas para construir Histórias de Vida o pesquisador

conscientemente adota uma tradição em pesquisa que reconhece ser a realidade social multifacetária, socialmente construída por seres humanos que vivenciam a experiência de modo holístico e integrado, em que as

pessoas estão em constante processo de autoconhecimento. Por esta razão, sabe-se, desde o início, trabalhando antes com emoções e intuições do que com dados exatos e acabados; com subjetividades, portanto, antes do que com o objetivo. Nesta tradição de pesquisa, o pesquisador não pretende estabelecer generalizações estatísticas, mas, sim, compreender o fenômeno em estudo, o que lhe pode até permitir uma generalização analítica.

* Doutora em Ciências Humanas – Educação pela UFRGS. Professora Titular na PUCRS. Docente

na Graduação e no Programa de Pós-Graduação da FACED/PUCRS. Pesquisadora I CNPq. 1 Ver: Pesquisa e Grupo de Pesquisa, ao final do texto, p.26. 2 Ver: Produção relacionada à pesquisa, ao final do texto, p.26.

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14 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

As narrativas3 permitem, dependendo do modo como nos são relatadas, universalizar as experiências vividas nas trajetórias de nossos informantes. Nessa perspectiva, Denzin (1984, p. 32) nos ensina que ―As pessoas

comuns universalizam, através de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem‖.

O método (auto)biográfico se constitui, dentre outros elementos, pelo uso de narrativas produzidas por solicitação de um pesquisador, estabelecendo, pesquisador e entrevistado, ―uma forma peculiar de intercâmbio que constitui todo o processo de investigação‖ (Moita, 1995, p. 258), com a intencionalidade de (re)construir uma memória4 pessoal ou coletiva procedente no tempo histórico.

Quando nos referimos a destacados educadores, fazemo-lo conscientes de que esses profissionais, embora tenham se destacado positivamente — razão pela qual foram indicados para participar da pesquisa5 — não foram pessoas infalíveis. Não deixamos de ter presente que nossos destacados educadores foram/são, antes de tudo, seres humanos e, portanto, longe de se constituírem em ―super-homens‖ e ―supermulheres‖. Não obstante as Histórias de Vida estejam realçando as positividades antes do que as debilidades desses

educadores, o constructo das respectivas histórias não perde em consistência, em virtude de que, embora não sendo infalíveis, eles foram por nós escolhidos, intencionalmente, justamente porque apresentam características muito especiais que os colocaram na lembrança das pessoas com essa feição tão positiva, ―quase heróica‖. E foi, naturalmente, com a memória reconstrutiva das pessoas-fonte que trabalhamos, embasadas em Fraser (1990, p. 148), ao relatar entrevista com pessoas que participaram da Guerra Civil na Espanha:

3 ―Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma

seqüência, encontram possíveis implicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos

que constroem a vida individual e social‖ (Jovchelovich e Bauer, 2002). Sobre narrativas no cenário educacional, em especial: Larrosa ET AL., 1995; McEwan e Egan (Orgs.), 1995;

Larrosa, 1999; Fabra e Doménech, 2000. 4 Memória é trabalhada, neste texto, especialmente como memória individual, tanto do narrador,

como do pesquisador, não obstante imbricada às relações vivenciais – sociais e culturais- e por elas informada/significada/ressignificada. Outras compreensões sobre memória, como memória coletiva

e memória pública (ver: Halbwachs, 1976). Sobre memória reconstrutiva encontramos explicitação

teórica na literatura; podemos referenciar, dentre outros: Fraser (1990), Bosi (1994), Thompson

(1998), Oliveira (2000), Catroga (2001), Jovchelovitch e Bauer (2002), Abrahão (2003). 5 O termo ―destacados‖ não significa heroísmos ou fama. Nossos destacados personagens foram

indicados por pessoas que com eles conviveram – colegas, alunos, parentes, amigos – justamente

porque marcaram a vida dessas pessoas indelevelmente, de modo o mais positivo (e, por isso,

foram intencionalmente escolhidos como nossos personagens da pesquisa). Não quer dizer, no entanto, que sejam infalíveis, ou que sejam famosos. Muitos, a quase maioria, são só conhecidos

no restrito meio em que atuaram/atuam.

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Primeiras palavras... 15

―Não esperava recolher de meus informantes novos feitos históricos... os testemunhos podiam contar-me não só o que recordavam ter feito, mas também o que pensavam que estavam fazendo àquela época e o que hoje

pensam que haviam feito‖. O caráter temporal da experiência humana, pessoal/social, é articulado pela

narrativa, em especial quando clarifica a dualidade ―tempo cronológico/tempo fenomenológico‖. A correlação tempo e narrativa em Paul Ricoeur leva a indagar sobre a procedência da narração histórica de uma consciência histórica, em que o presente, o passado e a expectativa do futuro se imbricam numa perspectiva tri-dimensional (Ricoeur, 1995).

A perspectiva tridimensional do tempo narrado, também se apresenta no

tempo pensado/vivenciado, com as ambigüidades e, mesmo, contradições no seio dessas três instâncias, passado, presente, futuro. Essa característica do tempo narrado pode ser detectada em diversas narrativas (auto)biográficas, tanto no que respeita a reconstruções e ressignificações que o sujeito que rememora faz sobre a própria trajetória, como no que se refere à reflexão sobre as relações trajetória pessoal e os condicionantes sociais que influenciaram nessa trajetória e essas ressignificações. O

ressignificar os fatos narrados nos indica que, ao trabalharmos com memória, fazemo-lo conscientes de que tentamos capturar o fato sabendo-o reconstruído por uma memória seletiva, intencional ou não.

Essa metodologia de pesquisa tem, segundo Santamarina e Marinas (1994), uma dimensão ética e política na medida em que ―aposta na capacidade de recuperar a memória e de narrá-la desde os próprios atores sociais‖ (p. 259), rompendo com formas cristalizadas de investigação que valorizam mais o

dado acabado e partindo para a ―intenção de capturar sentidos da vida social que não são facilmente detectáveis... (buscando) o sentido do tempo histórico e o sentido das histórias submetidas a muitos processos de construção, de reelaboração de identidades individuais, de grupo, de gênero, de classe em nosso contexto social‖ (p. 259). Catroga (2001), em artigo intitulado Memória e História, também aborda a memória como sendo uma construção seletiva do sujeito, eis que, na visão do autor, com a qual concordamos, a memória é, mais que um mero registro, pois esta objetiva-se ―numa narrativa

coerente que, em, retrospectiva, domestica o aleatório, o casual, os efeitos perversos do real passado quando este foi presente, actuando como se, no caminho, não existissem buracos negros deixados pelo esquecimento‖ (p. 46). Da mesma forma Bosi (1994, p. 55), nos alerta que ―na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado... A lembrança é uma imagem construída pelos

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16 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

materiais que estão agora à nossa disposição no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‖.

Reconhecendo os riscos de se utilizar a memória, que assumimos como

reconstrutiva, por definição, como única fonte de análise, trabalhamos na pesquisa com triangulações de fontes e com Histórias de Vida de Relatos Cruzados. O material coletado que triangulamos com as narrativas (documentos, vídeos, fotos, cruzamento de relatos de Histórias de Vida) e a metodologia de análise empregada nos permitiram um entendimento mais orgânico, não só das individualidades em estudo como, igualmente, do contexto socioeducacional rio-grandense do qual essas individualidades foram/são produto/produtoras. Assim, a memória de nossos (as) narradores

(as), embora respeitada em sua racionalidade reconstrutiva, teve modos de verificação justamente por meio das referidas triangulações. O fato de reconhecermos e aceitarmos a reconstrutividade da memória como percepções pessoais da ―realidade‖, que é ressignificada ao longo das trajetórias de vida, em virtude de novas vivências e, mesmo, da perspectiva tridimensional do tempo narrativo, a que já nos referimos, não elide que, na interpretação das informações, também lhes imprimamos sentido, fundamentadas no todo dos

elementos de que dispomos, pela triangulação do conteúdo das narrativas com o de outras fontes: documentos, narrativas de outras pessoas, etc.

A interpretação do investigador não desqualifica a interpretação/reinterpretação do narrador, que será respeitada em seu ―estabelecimento de verdade‖, mas representa uma leitura do material narrativo, tendo em vista uma ―referência de verdade‖ para além das narrativas, no esforço de compreender o objeto de estudo em duas

perspectivas: na perspectiva pessoal/social do narrador — que representa as individualidades — e na perspectiva da dimensão contextual da qual essas individualidades são produto/produtoras.

Na pesquisa deu suporte à produção de informações a corrente apresentada por Santamarina e Marinas (op. cit., p. 268-269) como de caráter dialético, segundo a qual as Histórias de Vida são entendidas como inseridas em um sistema, de tal modo que, sem serem desvinculadas do momento da enunciação ou do enunciado, são tratadas como histórias de um sujeito

(indivíduo ou grupo) que se constroem desde dentro dos condicionantes micro e macroestruturais do sistema social.

Coerente com a corrente teórica adotada que sustentou o processo de produção de informações para a construção das Histórias de Vida, o processo de interpretação utilizou para nortear os procedimentos de análise e de interpretação das informações a concepção de que as categorias de sujeitos são entendidas como espaço de enunciação, em que os elementos pertinentes vão

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Primeiras palavras... 17

se desenhando na medida da relação das narrativas com seus contextos. A esse modo Santamarina e Marinas (op. cit., p. 270) chamam de ―comprensión escénica‖, que traduzimos por compreensão de contexto. Esta compreensão

privilegia, ao invés da estrutura amostral de uma história segundo o sentido originário dos textos ou dos elementos de profundidade de seus sentidos ocultos, o entendimento de que a origem e o sentido profundo dos textos é algo que construímos pari passu, diuturnamente. Os autores supracitados enunciam o que denominamos de três planos da compreensão de contexto: o contexto vivido no passado, que comporta a totalidade de referenciais biográficos e sociais dos sujeitos entrevistados; o contexto do presente dos sujeitos, que supõe as redes de relações sociais do presente dos sujeitos, desde as que se

elaboram mediante a concreta situação de entrevista estabelecendo seu sentido para o presente; o contexto da entrevista, que supõe as formas de acordo e cooperação para a efetivação da própria entrevista, como a relação de escuta e transmissão em reciprocidade como condição para a reflexão. A compreensão de contexto interpreta o processo no qual os sujeitos ―reatualizam, reelaboram o sentido, as posições ideológicas coletivas dos processos vitais‖ das histórias (op.cit., p. 272). Sem deixar de considerar tanto o momento da enunciação

como o momento do enunciado, ―trata- se de interpretar as histórias nos jogos e dimensões de sua tessitura (contexto é o que está tecido com), mas, também, na dimensão da construção do sujeito... para situar as histórias de vida em seus sujeitos e processos plurais‖ (op. cit., p. 272). Esses autores advertem que o trabalho com Histórias de Vida em contexto exige ―uma redefinição mais aberta das fases de todo o processo de investigação‖ e que nos ―encontramos com histórias de pessoas e de grupos, cujo sentido contribuímos para

estabelecer‖ (op. cit., p. 281). Esses planos de compreensão de contexto foram analisados tendo em vista duas dimensões complementares: (a) o desenvolvimento profissional, compreendendo, na visão de Vonk e Schras (1987), a perspectiva do desenvolvimento pessoal — que entende o desenvolvimento profissional como resultado de um crescimento individual; a perspectiva da profissionalização — que entende o desenvolvimento profissional como resultado de um processo de aquisição de competências e a perspectiva da socialização — que entende a profissionalização docente como

centrada na inserção do sujeito no meio profissional em que atua e (b) a construção da identidade profissional,6 entendida por Lessard (1986) como a relação que o sujeito estabelece com a profissão, com seus colegas e a

6 ―Construção de Identidade‖, conforme adotamos, foge de discussões que estão sendo realizadas na área de Psicologia Social. Nossos estudos, quando aludem a esse termo, têm referência em autores

como Lessard (op. cit.).

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18 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

construção simbólica que essa relação implica, tanto no campo pessoal como no interpessoal, com base nas representações que os professores elaboram a respeito dos aspectos da atividade docente que compreende: o capital de

conhecimentos — saber fazer e saber ser — que embasam a prática docente; as condições do exercício da prática docente, em especial de autonomia, controle e contexto de atuação; pertinência cultural e social da prática pedagógica; estatuto profissional e prestígio social da profissão docente. Esta dialética pode, igualmente, ser encontrada em Ferrarotti, quando afirma que, nos estudos autobiográficos, fica clara a imbricação já referida entre o eu pessoal e o eu social, permitindo ―reconstruir os processos que fazem de um comportamento a síntese activa de um sistema social a interpretar a

objectividade de um fragmento da história social a partir da subjectividade não iludida de uma história individual‖ (1988, p. 30). As interpretações da pesquisadora e dos pesquisadores

associados nesta pesquisa não se dão somente a partir da leitura conjunta dos elementos que formam a história de cada personagem, tentando entender a totalidade de dimensões que imbricadas lhe atribuem sentido, mas, igualmente dos elementos contidos na leitura transversal de um conjunto de

histórias de vida, seus personagens e seus contextos. No primeiro livro que organizamos, contendo as Histórias de Vida de outros 12 educadores rio-grandenses, essa leitura transversal, que nos permitiu trazer à tona as dimensões Formação, vida pessoal/profissional, Construção de identidade, comuns a todos, foi registrada em capítulo específico. Sob diversos outros prismas, foi explicitada, essa leitura, em diversos artigos e capítulos em livro. 7Na presente obra, optamos por deixar ao leitor a possibilidade de fazê-lo por

si. Certamente, há muitas maneiras de se estabelecer esse olhar transversal e

7 ABRAHÃO, M. H. M. B. Elementos histórico-sociais — um olhar transversal no contexto

espaço-temporal das histórias de vida. In: ——. (org.). História e histórias de vida — destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.

253-279. ——. Teacher education and outstanding educators: universal characteristics. Journal

of the International Society for Teacher Education — JISTE, USA/England, v. 8, n. 1, p. 48-56,

Jan. 2004. ——. Brazilian teacher education revealed through (he life stories of selected great educators. Journal of Education for Teaching — JET, England, v, 28, n. 1, p. 7-16, Apr. 2002. —

—. Educação e destacados educadores rio-grandenses: características universais em docentes.

Educação, Porto Alegre, ano 25, n, 46, mar. 2002, p. 7-26. ——. O professor e o ciclo de vida

profissional. In: ENRICONE, D. (Org.). Ser professor. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. ——. Construindo histórias de vida para compreender a educação e a profissão docente no Estado do

Rio Grande do Sul. In: ABRAHAO, M. H. M. B. (Org.). História e histórias de vida —

destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS,

2001, p. 13-33. ——. Um olhar transversal no contexto espaço-temporal de histórias de vida de destacados educadores rio-grandenses. In: TAMBARA, E.; PERES, E. Pesquisa em história da

educação: perspectivas comparadas. Pelotas: ASPHE/UFPEL, 2001, p. 10-30.

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Primeiras palavras... 19

de possíveis significações daí decorrentes. Cada leitor terá seu próprio referencial para obviar esse processo. Diferentemente, apenas trazemos a publico uma categoria — identidade pessoal/profissional — que aparece em

todos os nossos personagens. Essa marca, representamos pela figura, a seguir, onde se podem perceber palavras representativas dessa dimensão, inerente a nossos personagens. As Histórias de Vida, apresentadas a seguir, embora estudadas, analisadas e

construídas pelos integrantes do Grupo de Pesquisa, em conjunto, foram organizadas para os relatos que seguem pelos autores que as subscrevem. Optamos por não uniformizar, nem a forma, nem o conteúdo específico de cada

História de Vida, permitindo que a construção final refletisse o estilo de cada autor, certamente influenciado sobremaneira pelo estilo dos narradores que lhes proporcionaram as informações mais relevantes a respeito de cada personagem. Os autores das Histórias de Vida apresentadas eram, primeiramente, alunos — doutorandos ou mestrandos — do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS, integrantes do Grupo de Pesquisa por nós coordenado naquela universidade,

hoje já concluintes; um mestrando — hoje mestre do Programa de Pós- Graduação da Universidade de Santa Maria; duas colegas, docentes no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, que conosco participaram da pesquisa e um colega docente no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS.

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20 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Criação: Berenice Gonçalves Hackmann

Arte finalização: Flávia de Paula Pires

As Histórias de Vida estão apresentadas em ordem alfabética pelo nome do (da) personagem, como segue:

Águeda Brazzale Leal, Alexandre Kieling, Carlos Nelson dos Reis, Dom Luiz Felipe de Nadal, Edy Medeiros Gil, Irmão Elvo Clemente, Isolda Holmer

Paes, Itália Aronne de Leão, Maria Antunes Bernardes Saenger, Marina Silvia Filippozzi Lafin, Olga Acauan Gayer, Paschoa Maria Puntel dos Santos.

Referências

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educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

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Primeiras palavras... 21

vida — destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 13-33.

———. Elementos histórico-sociais — um olhar transversal no contexto espaço- temporal das histórias de vida. In: ———. (Org.). História e histórias de vida — destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 253-259.

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———. Um olhar transversal no contexto espaço-temporal de histórias de vida de destacados educadores rio-grandenses. In: TAMBARA, E.; PERES, E.

Pesquisa em história da educação: perspectivas comparadas. Pelotas: ASPHEIUFPEL, 200l, p. 10-30.

———. Brazilian teacher education revealed through the life stories of selected

great educators. Journal of Education for Teaching — JET, England, v. 28, n. 1, p. 7-16, Apr. 2002.

———. Educação e destacados educadores rio-grandenses: características universais em docentes. Educação, Porto Alegre, ano 25, n. 46, mar, 2002, p. 7-26.

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Primeiras palavras... 23

European Journal of Teacher Education, n. 10, p. 95-110, 1987.

1. Pesquisa: identidade e Profissionalização Docente — Narrativas na Primeira Pessoa. Grupo de Pesquisa: Coordenadora: Profª Drª Maria Helena Menna Barreto

Abrahão. Pesquisadores Associados: Profª Drª Berta Weil Ferreira; Profª Drª Lenira

Weil Ferreira; Prof. Dr. Silvio Laffin. Doutorandos: Alzira Elaine Meio Leal:

Berenice Gonçalves Hackmann: Clarisse Gorodicht; Cleuza Maria Sobral Dias;

Eliana Perez Gonçalves de Moura; Helena Sporleder Côrtes; João Dornelles Júnior;

Jussara da Rocha Freitas; Maria Valeska Cruz. Mestrandos: Mari Terezinha Nunes

de Barros Coelho; Protasio Pletsch; Rejane de Oliveira Abreu; Susana Almeida

Dornelles; Vanessa Besestil da Rocha. Bolsistas IC: Rosemary Liedtke —

FAPERGS (até dezembro de 1999); Rafael Preussler de Aguiar — PUCRS (até dezembro de 2000); Jacqueline Machado Bastos CNPq (até agosto de 2002);

Glimanis Wachter — CNPq (até fevereiro de 2006). Apoio:

CNPq/FAPERGS/PUCRS. Observação: O GP está nominado com a titulação

acadêmica que apresentava quando preparamos o presente livro.

2. Além da apresentação em eventos nacionais e internacionais, no país e no exterior, conta com as seguintes produções, entre outras: ABRAHÃO, M. H. M. B. Teacher

education and outstanding educators: universal characteristics. Journal of lhe

International Society for Teacher Education — JISTE, USA/England, v. 8, n. 1, p.

48-56, Jan. 2004. ———. Zilah Mattos Totta, verbete in: FAVERO, M. de L. de A.; BRITTO, J. de M. Dicionário de educadores no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002,

p. 984-990. ———. Brazilian teacher education revealed through lhe life stories of

selected great educators. Journal of Education for Teaching — JET, England, v. 28.

n. 1, p. 7-16, Apr. 2002. ———. Educação e destacados educadores rio-grandenses:

características universais em docentes. Educação, ano 25, n, 46, mar. 2002, p. 7-26.

Porto Alegre. ———. (Org.), História e histórias de vida — destacados educadores

fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, 279 p.

———. O professor e o ciclo de vida profissional. In: ENRICONE, D. (Org.). Ser

professor. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. ———. Construindo histórias de vida

para compreender a educação e a profissão docente no Estado do Rio Grande do Sul.

In: ABRAHÃO, M. H. M. B. (Org.). História e histórias de vida — destacados

educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS,

2001, p. 13-33. ———. Zilah Mattos Totta: síntese da educação e do educador, In:

ABRAHÃO, M, H. M. B. (Org.). História e histórias de vida — destacados

educadores fazem a história da educação rio-grandense, Porto Alegre: EDIPUCRS,

2001, p. 207- 241. ———. Elementos histórico-sociais — um olhar transversal no

contexto espaço-temporal das histórias de vida. In: ABRAHÃO, M. H. M. B. (Org.). História e histórias de vida — destacados educadores fazem a história da educação

rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 253-279. ———. Um olhar

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24 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

transversal no contexto espaço-temporal de histórias de vida de destacados

educadores rio-grandenses. In: TAMBARA, E.; PERES, E. Pesquisa em história da

educação: perspectivas comparadas. Pelotas: ASPHE/UFPEL, 2001, p. 10-30.

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Águeda Brazzale Leal Uma vida dedicada à educação

VANESSA BESESTIL DA ROCHA

Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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26 Vanessa Besestil da Rocha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

PRISIONEIRA

Da janela gradeada do meu quarto, vejo o mundo em quadrados e retângulos. São figuras geométricas

dos seres e das coisas que me cercam, pedaços coloridos da natureza exuberante, desenhos animados da vida emocionantes. Perdeu-se a beleza da visão total e o encanto da liberdade. A violência limitou meus passos,

meu direito de ir e vir sem medo. Fez de mim, sem culpa, prisioneira. Já não posso debruçar-me à janela nem estender meus braços para o abraço. Através da janela gradeada do meu quarto, só meu pensamento voa livre, ousado, inteiro,

à procura da felicidade perdida.

Águeda Brazzale Leal

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Águeda Brazzale Leal 27

Nascida a 8 de novembro de 1913, na cidade de Santa Maria, a professora

Águeda Brazzale Leal é um dos destacados nomes que fizeram a história da educação de sua cidade natal.

Falar sobre esta educadora requer, muito mais do que simples admiração, mas completo respeito pelo trabalho que ela desenvolveu e que vem desenvolvendo ao longo destes anos. Sua trajetória, como profissional da educação, iniciou-se em 1931 e se estende até hoje, quando ela divide seu tempo com aulas particulares e com a poesia.

Traçar-lhe o perfil, falar sobre sua vida profissional e pessoal, registrar louvores e dignidades recebidas por ela é viajar no tempo, é lembrar fatos, buscar memórias e recordações. É um desafio...

Viajando no tempo...

Era o ano de 1787. Iniciavam-se as primeiras derrubadas da mata onde hoje se localiza o início do Calçadão e a Rua do Acampamento, onde foram erguidos os primeiros ranchos de moradores, muitos descendentes de açorianos, vindos de Curitiba e Paranaguá.

Os anos que vieram foram transformando a cidade... Em 1801 o Acampamento de Santa Maria passa a ser Povoação. Em 1812 é

elevada a Curato. Em 1819, Santa Maria passa a constituir-se no 4º Distrito da

Vila Nova de São João da Cachoeira (atual Cachoeira do Sul). Em 1837 Santa Maria passa à categoria de Freguesia de Santa Maria da Boca do Monte. Em 1857 a localidade se emancipa, sendo elevada a vila. E em 1876 o município recebe o título de cidade com o nome de Santa Maria da Boca do Monte.

Passados quase 100 anos do início de sua povoação, Santa Maria recebe, em 1877 os primeiros imigrantes italianos, originários de Venécia, norte da Itália.

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28 Vanessa Besestil da Rocha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Assim como muitos outros estrangeiros, a família Brazzale adota a cidade e participa da construção da sua história.

Nasce...

Consolidado com o passar do tempo, o progresso em Santa Maria, através da força e dedicação de homens e mulheres, a cidade transformou-se e uma nova paisagem despontou: ruas se alargaram, bairros foram surgindo, prédios foram construídos e outros demolidos, mais pessoas foram chegando,

universidades, quartéis, comércio movimentado, gente transitando de um lado para outro, numa luta diária, vivências e sobrevivências, atropelos, violência. A cidade perde o ritmo calmo de décadas atrás e muitos sentem-se prisioneiros...

Em 1913 nasce Águeda Brazzale — filha de João Batista Brazzale e Lina Mercedes Colla Brazzale — cuja presença se tornaria em um dos destacados nomes da cidade.

A vida revela...

Da Águeda menina — estudiosa, teimosa e piedosa — à Águeda mulher — trabalhadora, corajosa, mais teimosa ainda, menos piedosa e um tanto cética, como ela mesma se descreveu em uma das entrevistas feitas, formou-se uma profissional realizada pessoalmente e que se destaca na História da Educação de Santa Maria.

Águeda procurou sempre estar em movimento. Quando jovem praticou

esportes, fez teatro, tocou violão e estudou piano. Também procurou trabalhar sua espiritualidade, fazendo parte da Ação Católica e sendo membro da Sociedade Nova Aurora, sociedade exclusivamente feminina, hoje lamentavelmente extinta.

No seu tempo, ―mulher se encaminhava ao Magistério ou ficava em casa esperando o marido‖. As decisões tomadas, naquela época, implicavam grandes rupturas, pois as mulheres sofriam uma forte discriminação e tinham que ser

muito corajosas e destemidas para arcarem com as conseqüências de seus atos. Águeda esteve dividida entre a música e o Magistério, mas escolheu este, pois desejava entrar logo no mercado de trabalho. Devido a essa opção, a educação em Santa Maria só veio a ganhar.

De seu casamento com José João Leal teve quatro filhos e cinco netos e duas bisnetas, constituindo uma numerosa família para os padrões atuais.

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Águeda Brazzale Leal 29

A vida ensina...

De presença meiga, porém altiva, de olhos vivos e brilhantes, que o tempo não conseguiu apagar, Águeda apresenta-se como uma mulher decidida, dona de palavras fortes, cuja vida é um exemplo.

Sua vivência enquanto educadora atesta a grandiosidade de suas ações. No decorrer da entrevista, aprendi muito com Professora Águeda, cujas

palavras ecoam como preciosos ensinamentos. Ela revelou-me que se sente realizada além das suas expectativas, porém,

frustrada em termos de valorização da educação e, principalmente, dos educadores, pois antigamente o professor era autoridade respeitada e muito cobrada em suas ações, o que não acontece hoje em dia.

Na arte de ensinar, a educação seguia, no passado, duas linhas em especial: a que se dirigia à inteligência para desenvolvê-la e a que se

voltava ao coração para formá-lo. O melhor método era o que alcançava o educando no equilíbrio deste fazer.

Segundo ela, hoje, os homens são muito informados e pouco formados, em razão da prevalência do ter sobre o ser e que a sociedade é reflexo desse equívoco. Nesse sentido, ela reflete sobre o trabalho gigantesco que está reservado à educação: repensar a formação do homem, recuperar valores e reencaminhar a sociedade.

Sua formação profissional tem como modelos as Irmãs Franciscanas, de

quem recebeu influência e orientação, realizando seus estudos em Santa Maria, onde se formou na Escola Complementar, na primeira turma de alunas-mestras.

Nessa época, Águeda aprendeu que a Pedagogia é a arte de ensinar e que o bom método é aquele que alcança o aluno, ou seja, que lhe oportunize significar o conhecimento. Ela ainda revela que naquele tempo não havia a estrutura curricular atual, como a Didática Geral e as didáticas de cada disciplina.

A vida profissional...

Dando um exemplo de humildade, Águeda afirma que as coisas em sua vida foram acontecendo meio que por acaso, uma vez que, seu desejo era ser somente professora de classe primária. A verdade é que tudo que lhe foi confiado foi por

merecimento e reconhecimento pelo seu trabalho. Sua primeira contribuição para o Magistério em Santa Maria foi como

professora da Escola de Alfabetização da Economia de Fretes da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, no período de 1933 a 1937.

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30 Vanessa Besestil da Rocha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Quase ao mesmo tempo (1934 a 1937), ocupou-se da Escola Feminina de Artes e Ofícios dos Empregados da Viação Férrea Santa Terezinha, também como professora.

Em 1952 a 1975, exerceu o cargo de Professora de Língua Portuguesa, no Curso de Formação de Professores Primários da Escola Normal ―Olavo Bilac‖, assim como ministrou, cumulativamente a disciplina de Literatura, em 1954.

Nesse período, também ministrou essas mesmas disciplinas no Curso Colegial Centenário (1954 a 1956).

Também participou, como colaboradora, na inspetoria Seccional do Ensino Secundário de Santa Maria, em 1960.

Já em 1961, atuou como professora de Língua Portuguesa no Curso Normal

— 2° Ciclo, da Escola Normal ―Coração de Maria‖ e em 1967 a 1975 como professora de Língua Portuguesa e de Literatura no Instituto Riachuelo.

Desempenhou outras funções públicas: foi Diretora da Instrução Pública Municipal em São Gabriel no período de 1940 a 1943; cumulativamente com a função de professora, foi diretora da Escola Normal ―Olavo Bilac‖ em 1955 a 1959, retornando ao mesmo cargo nesta Instituição em 1963 a 1965; e no Ginásio Intensivo Noturno do Instituto Riachuelo em 1971 a 1974. Ao assumir

a direção do Instituto, incumbiu-se de realizar o 1° Curso de Especialização para Orientadores do Ensino Rural. Foi Co-Diretora do Centro Piloto da Campanha de Erradicação do Analfabetismo em Santa Maria e Membro da Representação de Professores do Rio Grande do Sul no Congresso de Professores em Goiânia em 1962.

Como figura importante e merecedora, foi Coordenadora do Curso de Preparação aos exames do artigo 91 da Lei Orgânica do Ensino Secundário de

Santa Maria em 1955. Em 1960 exerceu o cargo de Superintendente do Departamento Municipal de Ensino. Registra-se, ainda, nesse ano, a participação como membro da Comissão de Assistência Educacional de Estudo e Classificação dos Candidatos à bolsa de estudo do Fundo Nacional de Ensino Médio. Foi colaboradora no II Curso de Puericultura Social, promovido pelo Departamento da Criança da Secretaria da Saúde em colaboração com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria, no ano de 1965.

Dando continuidade, foi chefe do setor Regional da Campanha Nacional de

Alimentação Escolar, no período de 1967 a 1970. Nos anos que se seguiram ela integrou a Comissão de Cultura dos festejos alusivos ao aniversário dos 115 anos de emancipação política do município de Santa Maria, em 1975; contribuiu como Auxiliar de Assuntos Educacionais do MEC junto à representação da Delegacia Regional — a de número 6 do MEC, de 1974 a 1975. Também desempenhou a função de Presidente do Conselho do instituto Riachuelo em 1973 a 1975.

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Águeda Brazzale Leal 31

No decurso de sua carreira, exerceu o cargo de Delegada da 8ª Delegacia de Educação do Rio Grande do Sul, compreendendo o período entre 1975 a 1979.

Entre todas essas atividades também foi Catequista do Curso Ginasial da

Escola Normal ―Olavo Bilac‖ e no Colégio Perpétuo Socorro, em São Gabriel. Idealista, Águeda revelou que descobriu na prática a diversidade pessoal e a

obrigação de ensinar, respeitando a individualidade. Foi desenvolvendo e ajustando o seu trabalho com o objetivo de alcançar a todos por caminhos diferentes.

Segundo ela, até hoje seu trabalho segue essa linha de pensamento, trabalhando de acordo com a realidade que se apresenta:

Se o aluno é ágil, eu enriqueço o comum, apresentando-o de modo mais

amplo, enriquecido; se o aluno é lento, e com pouca base, apresento o essencial,

para que o mais flua, ou não, do essencial. (grifos da entrevistada)

Águeda ainda acrescenta: ―Entendo que cada disciplina tem, como nós,

uma espinha dorsal e, dela, se enriquece o todo com muito ou com menos, porém com o necessário‖.

Retratando seu perfil profissional enquanto educadora, salienta- se que o desenvolvimento de suas aulas partia do trabalho mais simples até chegar ao mais complexo, do concreto para o abstrato, associando a visão à audição para que o aluno visse e, vendo, aprendesse e não apenas memorizasse.

Sua prática era norteada pela criatividade. Em sendo a educação arte, o

trabalho de ensinar era muito pessoal, exigindo muito conhecimento e habilidade. Apesar de acreditar nisso, Águeda não descuidava do trabalho em grupo, da interação com os colegas para a troca de conhecimentos e de vivências. Essa experiência, segundo ela, era um trabalho árduo, pois os professores apresentavam uma certa resistência nesses momentos.

A imagem construída pelos educadores naquela época era a de que professores do ginásio eram mais preparados do que os professores do

primário. Tal imagem se perpetuou, de modo geral, até hoje, pois ainda não existe interdisciplinaridade entre as diferentes áreas; cada professor se acha dono de um determinado conhecimento.

Águeda lembra, com prazer, do início do magistério. Ela tinha 18 anos quando recebeu um aprendizado da diretora, uma irmã franciscana, que avaliara sua prática pedagógica. Esta, fez a seguinte recomendação em seu caderno de aula:

Professora, esqueceu que a pressa é inimiga da perfeição? Observou a queda

no rendimento de sua classe? Não seriam necessários mais exercícios em cima das

teorias apresentadas? — Revise seu trabalho!

Segundo Águeda, ela havia apresentado conteúdos novos sem domínio de pré-requisitos. Naquele tempo o professor era muito ―cobrado‖, principalmente

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32 Vanessa Besestil da Rocha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

quanto à qualidade do ensino. Se uma turma não apresentasse bons rendimentos, o professor precisava rever sua prática em sala de aula.

Sobre a avaliação, Águeda comentou que esta é a parte mais delicada e que

merece atenção especial. Segundo ela parece ser a avaliação por conceitos a mais correta, com critérios bem definidos, de tal modo que se possa observar o envolvimento do aluno com a disciplina. É contrária à recuperação no final da série, pois acredita na avaliação paralela, a partir da insuficiência detectada.

Hoje, passados mais de 65 anos de dedicação à Educação, a professora Águeda é uma árvore que continua a dar frutos, pois mantém aulas particulares em sua residência num total de 20 horas semanais e ainda se dedica à poesia como Membro da Associação Santa-Mariense de Letras (ASL).

Em suas aulas particulares, Águeda criou um sistema de redação baseado no concreto de realidades objetivas, segundo uma lógica. De acordo com ela o trabalho é modesto, mas o resultado tem sido satisfatório e serve, especialmente, para os que sentem dificuldade na arte de colocar no papel as melhores idéias. ―O jovem, hoje, tem muitas informações e, por isso, dificuldade em selecioná-las e ordená-las‖.

Distinções recebidas...

Como a artista que cinzela a rocha primitiva, retira-lhe as arestas, aplaina as superfícies, dá-lhe forma e a transforma em obra de arte, o professor molda a grande e invejável obra, elaborada na oficina da educação, e cuja matéria-prima é a inteligência humana. Colocando em cada ação uma dose de simpatia, sorriso e amor, sincronizadas com sua capacidade, a Professora Águeda Brazzale Leal é um destaque que ilustra a galeria dos grandes nomes que

fizeram a história da educação de Santa Maria (Aristilda Rechia — Fragmento na obra Santa Maria — panorama histórico cultural, no capítulo intitulado ―Personalidades‖, 1999).

Várias foram as dignidades e louvores recebidos, que vêm legitimar o reconhecimento do trabalho desenvolvido pela Professora Águeda: Portarias de Louvor, destacando a do Inspetor do MEC em Santa Maria, Dr. Luiz Alves Rolim Sobrinho — 1960 —, do Subsecretário do Ensino Médio da Secretaria de Educação e Cultura do Estado — Dr. Airton Vargas — em 1965, do Secretário de

Educação e Cultura — Adroaldo Mesquita da Costa, em 1959, da Delegacia Regional do MEC — DR 6, em 1975 e 1976 e do Secretário da Educação, Dr. Airton Santos Vargas, em 1975. Atestando também o reconhecimento, foi Madrinha do Tiro de Guerra n° 36, na 6ª Circunscrição de Recrutamento/RS, em 1932. Entre as honrarias conferidas, destaca-se também, as turmas em que foi

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Águeda Brazzale Leal 33

Paraninfa: Turma de professoras da Escola Normal e do Instituto de Educação Olavo Bilac nos anos de 1955, 1959, 1961, 1963, 1964, 1973 e 1976; Turma de Formandos de Música do Conservatório Carlos Gomes em 1975; paraninfou os

Licenciados na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Imaculada Conceição. No ano de 1973, recebeu o Prêmio Imembuí; recebeu Menção Honrosa, do Comando da 3ª Divisão de Exército em 1976 e do Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul em 1978. Nesse mesmo ano, foi homenageada por ocasião da comemoração dos 35 anos de criação da Escola de Teatro Leopoldo Fróes, com o Diploma de Elevado Mérito.

A trajetória da Professora Águeda tem sido oficialmente reconhecida. No dia 14 de outubro de 1977, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul conferiu-lhe o

título de Educador Emérito, numa solenidade no Palácio Piratini em Porto Alegre. Em Santa Maria, a Câmara Municipal de Vereadores, conferiu-lhe o título, em 1985, de Cidadão Emérito. Recebeu a outorga da Medalha do Mérito Literário, conferida pela Associação Santa-Mariense de Letras em 1989 e, em 1991, o Troféu Santa Maria pelo Teatro Santa Maria. Também é portadora da Medalha do Pacificador — 1979.

Registra-se, igualmente, Mulher de Expressão de Santa Maria em 1996,

Homenagem Especial na 26ª Feira do Livro em 1997, evento promovido pelo Centro de Comunicação/ UFSM e Prefeitura Municipal de Santa Maria e Destaque Especial em educação, em 1999, recebendo troféu da Prefeitura Municipal de Santa Maria.

Vale, ainda, registrar a homenagem do Rotary Club de Santa Maria — Nordeste à cidadã Águeda Brazzale Leal:

Durante esse tempo de convívio com a Professora Águeda Brazzale Leal

reconheci o que há de mais substancial em nós: a vida. Uma vida que chega aos 90

anos com toda a graça dos 15 e com uma enorme bagagem de conhecimento

adquirida nesses anos.

Entre o conjunto de valores que nos constituem como humanos encontrei nessa

educadora a dignidade e o amor pela profissão escolhida que a peleja do dia a dia não conseguiu apagar ou manter esquecida no âmago das decepções e frustrações.

São muitos anos dedicados à educação e ao cuidado com o outro. São anos de palavras faladas e palavras escritas... na lousa, no caderno, no livro e artisticamente reveladas, na poesia.

A competência refletida nos louvores recebidos, nos cargos confiados e no reconhecimento de amigos, alunos, ex-alunos, colegas e familiares foi desvelada

em nossas conversas, nos diálogos trocados em que compareci como educanda, sedenta de conhecer um passado do qual não participei.

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34 Vanessa Besestil da Rocha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

À Águeda só tenho a agradecer. Muito obrigada, Professora!

Deixo os leitores na companhia de mais um poema da lavra de nossa

homenageada.

VIDA URBANA São milhares nas ruas da cidade. Muitos vêm, muitos vão,

Atropelando-se no meio do caminho. Alguns andam depressa, Outros mal podem andar. Filas para o pão-nosso de cada dia, Outras para o transporte de corpos e ilusões. Pés amassam calçadas,

Sonhos povoam corações. Lotados, ônibus desfilam coloridos, Insistentes, veículos buzinam apressados. Alguns trauseuntes correm nervosos, Outros são atropelados.

É a vida andando, De cá para lá, de lá para cá, Como as ondas do mar. Encontros e desencontros multiplicam-se aos milhares Entre quatro paredes, a céu aberto, Em cada quadrante. E a cada sol que aparece,

O cotidiano se repete No vaivém da cidade delirante.

Águeda Brazzale Leal

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Águeda Brazzale Leal 35

Alexandre Kieling Diretor da Rádio e TV Unisinos um gestor com sensibilidade

MAGDA TYSKA RODRIGUES

Aluna especial do PPG em Educação da PUCRS na disciplina de Narrativas, Biografias e Histórias de Vida – o método autobiográfico em pesquisa educacional. Coordenadora do

curso de Secretariado Executivo Bilíngüe da UNISINOS.

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36 Magda Tyska Rodrigues Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Esta não tem a pretensão de contar uma história de vida, mas de gestão,

feita a partir dos princípios de vida. A alegria e a satisfação das pessoas que trabalham na TV UNISINOS 1 foram

os ingredientes que chamaram a atenção para ver o que era diferente naquele Local. Por que o pessoal que ali trabalha esbanja alegria, comprometimento, profissionalismo e satisfação? O motivo? A gestão. Um jovem gestor que traz da sua vida, os princípios construídos a partir da sólida base familiar e os espalha pela equipe que coordena. Diz que a construção do seu personagem (Alexandre

Kieling), foi feita através dos laços fortes que teve com os avós, do exemplo do pai — um homem extremamente ético, Sr. Pitágoras Kieling e da figura da mãe, uma mulher muito afetuosa, a Srª Danila Schimer Kieling.

Muitas coisas resultaram no que eu sou hoje. Tem coisas definitivas que são o

berço e a cultura inicial. Eu acredito muito. Tive relações muito boas com meus avós

com meus pais que eram pessoas muito boas, muito bem resolvidas. Meus avós tinham uma tranqüilidade, um jeito muito peculiar de resolver as coisas. Meu pai era um

homem muito ético. Muito leal com as coisas que ele acreditava. Minha mãe é uma

mulher extremamente afetiva. De uma afetuosidade impressionante. Então é um

somatório: pessoas tranqüilas, pessoas leais, pessoas afetuosas e isso é um conjunto que

vai resultando na formação.

Ele é jovem, 42 anos, muito simpático, assertivo, extremamente profissional e tem algo que o diferencia — trata as pessoas de forma terna, todas as pessoas — as poderosas, as comunicativas, as fechadas e aquelas comuns.

1 A Rádio e TV UNISINOS, cuja denominação completa é: Complexo de Teledifusão e Tecnologia Educacional, é um projeto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos que visa atender à

comunidade acadêmica (mais especificamente o curso de Jornalismo) e à comunidade em geral.

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Alexandre Kieling 37

Sua forma de gerir chama a atenção no momento em que queremos evidenciar a figura do líder educador. Seu jeito de ser e coordenar a equipe é educativo. Primeiro, por que trabalha na base da delegação — delega porque

confia, porque respeita, porque acredita — e acreditando nas pessoas, faz com que elas passem a se ver de forma diferente. As pessoas envolvidas na sua gestão são seguras, firmes, decididas, Aprenderam com o líder que estão ali porque são parte importante — decisiva ele diz — da história da TV Unisinos.

Define-se como um sonhador. Gosta de literatura sobre o anarquismo, para ele, a base da responsabilidade, pois no momento em que destituído o poder, esse se estabelece pelo caminhar responsável dos indivíduos.

Pai do Bruno, 17 anos, do Lucas, 7 anos, do Iago, 6 anos e da Maria Estela, 4

anos, é um homem extremamente preocupado em incentivar a criatividade dos filhos e das pessoas da sua equipe de trabalho. Sabe que estabelecer limites é dar parâmetros sem cercear a liberdade. Questiona-se constantemente sobre a educação dos seus. Em muitos momentos, os argumentos que usa para educar e criar os filhos são os mesmos que utiliza na sua gestão, na tentativa de incentivar largamente a criatividade da equipe. Sabe que os resultados positivos de cada uma das partes é propulsor de competências, tanto individualmente quanto em equipe.

Sou um sonhador e o pai do Bruno, do Lucas, do Iago e da Maria Estela. São maravilhosos. Fantásticos. Apaixonantes. São meu xodó. Ser um sonhador,

primeiro é viver e fazer o que se gosta, segundo, acreditar que é possível fazer

alguma coisa, por menor que seja, para a construção de uma sociedade melhor.

Repórter por vocação desde muito cedo. Jornalista por formação. Escolheu a forma mais agradável de ver a vida acontecer: ouvir histórias e aprender a recontá-las. Diz que a informação é a arte de saber contar histórias.

Através dessas histórias, de personagens reais, experienciou muitas situações, que apesar não terem sido vividas pessoalmente, proporcionaram uma grande aprendizagem.

Aos 10 anos, vivendo no Paraná com seus pais, longe da família que

morava no Rio Grande do Sul, fazia entrevistas com os familiares, gravava em fitas K-7 e as enviava para os parentes no RS para que soubessem das notícias e das novidades. No colégio, encaminhou-se desde cedo para o Jornal.

Aos 12 anos começou a trabalhar com seu pai, auxiliando-o com a contabilidade do escritório. Era independente, queria ter suas coisas e patrociná-las. Foi movido pelo entusiasmo e poder de quem recebe o primeiro salário que comprou uma roupa nova para o sarau do sábado. Sentiu-se o dono do mundo

com sua calça nova boca de sino, cor de laranja e sua camisa quadriculada. Ele jura que era o ―mais-mais‖ do sarau, apoiado seguramente na dúzia de anos de vida que trazia.

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38 Magda Tyska Rodrigues Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Sua carreira na vida jornalística iniciou-se aos 17 anos, em Santa Maria entregando jornal de porta em porta. Gostava tanto do que fazia, e por isso fazia muito bem, que na segunda semana de trabalho estava liderando um grupo de

distribuição. Organizou o arquivo do jornal, o sistema de distribuição, estabeleceu controles, começou seu envolvimento, pela paixão, com o jornal. Aproximou-se dos jornalistas. Almoçava com eles, saía com eles. Como diz, bebeu muito das coisas que esse pessoal vivia, foi trazendo da experiência deles, sabedorias para o seu aprendizado. Ao concluir o ensino do então segundo grau, fez vestibular para Comunicação Social, na Universidade Federal de Santa Maria. Sua vida profissional estava definitivamente traçada, pois já estava trabalhando na redação do jornal. Em 1985 graduou-se. Depois, encaminhou-se para uma grande empresa

de comunicação, onde construiu uma carreira sólida. Estava prestes a tornar-se um repórter de ponta, muito importante, como aqueles com quem convivia e a quem costumava admirar.

Como em todas as carreiras, chegou um momento em que precisava fazer uma opção — ou se transformava num repórter de ponta, porque foi crescendo, crescendo e chegou a um patamar que não tinha como voltar, ou ia para frente ou saía da empresa. E ir para frente significava simplesmente renunciar à vida

pessoal. Um repórter de ponta, em uma grande empresa é como um objeto, como um carro, um avião, um helicóptero ou qualquer outro. Seguramente teria um salário significativo, mas não teria certeza, nem controle do que faria e onde estaria hoje, amanhã já estaria em outro lugar, enfim, ter que fazer como querem que seja feito, não interessando como se pensa que se tem que fazer.

Quando teve que tomar essa decisão, conversou com os repórteres que estavam lá na ponta, por quem sempre teve respeito e um carinho muito grande.

Esse respeito e carinho eram mútuos. Conversavam bastante sobre esse way of life, Pelo seu poder de empatia, sua sensibilidade não lhe cegava para a angústia que via neles. Cada vez que sentavam para conversar sobre esse assunto, percebia essa angústia. Primeiro porque não conseguiam fazer o que queriam. Segundo, nenhum deles tinha uma vida familiar estável. Ou era a família desestruturada, ou não conseguiam ver os filhos — alguns repórteres não viram os filhos crescerem.

As inquietações lhe ocupavam os pensamentos. Desse jeito, ponderou, não

pode ser: ―Não foi para isso que casei‖.

Aqui a demonstração de sensibilidade e a determinação ficam visíveis, pois a maioria dos gestores opta pela carreira como forma de viabilizar uma família, não se importando com o quanto deverão sacrificá-la para isso. A diferença no Alexandre-Gestor é o seu olhar para a família, como forma de viabilizar uma carreira sólida, não se importando com as trocas necessárias para isso.

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Alexandre Kieling 39

O fato é que achava muito ―gostoso‖ 2ser repórter. Adorava os repórteres. Toda vez que conseguia fazer uma bela matéria, um belo trabalho, que entendia ser socialmente justo, sentia um prazer que não tem como descrever, uma

sensação de êxtase, de satisfação sem equivalência — muito especial. Ao mesmo tempo a angústia, a frustração e a insatisfação que sentia quando fazia coisas que eram contra a sua vontade, também eram grandes sentimentos.

Nessa fase da sua vida profissional já estava se encaminhando para um projeto que envolvia um pouco de gestão além da reportagem cuja implantação se daria num curto espaço de tempo. Era algo que o afastava da reportagem nacional e que era muito desejado.

Seria um repórter a sua maneira. Então surgiu a oportunidade da TV

UNISINOS, apresentando-lhe dois caminhos profissionais a serem seguidos. Deveria optar por um e então pensou:

[...] agora é que vou conseguir fazer o que eu quero; continuar a ser repórter mas à minha maneira, em um programa específico, com características específicas,

que tenham a ver com o que eu gosto de fazer [...].

Que dúvida! O projeto da Unisinos foi amadurecendo, ele foi se envolvendo, e quando o projeto foi aprovado, as propostas ficaram claras, mais uma vez a reflexão:

Eu sempre fiz críticas à formação dos profissionais que saem das Universidades e vão

para o mercado. Eu sempre fiz críticas em relação à concepção da produção, agora, eu

teria uma chance de poder, pelo menos, implantar um sistema em que essas regras

seriam subvertidas. Como que eu vou me olhar no espelho sabendo que renunciei?3

Então, assumiu o projeto. E na medida em que ele toma uma decisão, traça também uma meta a ser executada. E qual era a meta? Que além de realizar tudo o que estava previsto, conseguir fazer com que as coisas funcionassem de

uma maneira diferente. Não daquela maneira como estava habituado a ver nos vários veículos em que trabalhou e onde tentou implantar novas modalidades de fazer jornalismo.

Hoje está feliz porque alguns resultados são visíveis. O sistema, para Alexandre, é simples. É preciso estabelecer a liderança, porque, enfim, num projeto grande como o da TV Unisinos, tem que haver um responsável que tenha uma relação direta com as coisas que estão acontecendo. Mas essa relação direta

2 Seu discurso vem recheado de palavras que exprimem um sensorial apurado. 3 A preocupação em transformar o discurso em prática foi um dos principais motivos que o

levaram a tomar a decisão. Criticar era fácil, no entanto, chamado a participar do processo formativo dos profissionais, teria um desafio. Não estaria agindo com coerência condigo mesmo

se não aceitasse participar do projeto.

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40 Magda Tyska Rodrigues Identidade e vida de educadores rio-grandenses

é aquela relação de norte, de diretrizes. Sem, em nenhum momento, cercear o processo criativo, porque, sobretudo, esta é uma indústria de produção de conteúdo. E se ela produz conteúdo, ela envolve capacidade de criação, ela

envolve talento. Não tem como pegar e congelar dentro de um software, ou colocar dentro de um sistema mecânico, ou manufaturar e entregar embalado. Não existe isso. Só se as pessoas se sentirem à vontade para conseguir liberar esse processo criador e liberar o seu talento. Se sentir à vontade — ele diz — é como um vírus que tende a comer o organismo. Tem que haver um caldo de cultura. Quando se percebe ele toma completamente o comando. A criação é assim. Criar o caldo de cultura para que ela se estabeleça e tome conta do processo. Quando se vê ela já aconteceu. Criar é assim. O talento é assim. Não

tem regra. Só tem que criar oportunidades para que ele (o talento) funcione. Para Alexandre, a única maneira de fazer isso é pela descentralização das decisões. Cada um sendo responsável por aquilo que faz. Não há processo de descentralização onde se descentraliza e daqui um pouco, ao menor deslize, se a pessoa tiver uma ação fora das diretrizes, muda-se de posição e centraliza-se novamente, tirando da pessoa o processo de decisão.

Quando se identifica um processo desses, onde as coisas não acontecem da

forma como inicialmente foram planejadas tem é que conversar. Dizer: olha vamos

de novo, vamos por aí. Olha, isso não pode ser assim. Essa articulação é positiva, é

educativa. Não é punitiva. E parece a mais difícil. Por que tem que estar atento. Nós

temos uma educação repressora e a repressão acaba demandando um ato que é do

tipo não faça isso, não faça aquilo. E isso é ruim. E esse é o meu grande conflito

agora, com os filhos4. Há que estabelecer limites. Mas até que ponto esse limite tem

que ser estabelecido?

Aqui, mais uma vez, é um dos momentos onde fica claro sua total tendência à gestão educativa. Incentivar seus subordinados a tomarem decisões assertivas.

Construir, com eles, alternativas para quando algo não acontecer exatamente como foi planejado. Estimular a reflexão. Não reprimir, nem cercear o processo criativo, nunca. Esse conjunto de formas de gerir vai conduzindo ao pensamento de líder-educador. No momento em que mistura, na sua reflexão particular, filhos e subordinados, evidencia-se a ―pessoa‖ que tem sido buscada nos gestores de todas as empresas, bem difícil de encontrar.

Como repórter, pelo sensorial apurado, refletia muito sobre a construção da

sociedade. Não cobria fatos simplesmente para relatá-los depois, esquecendo-se de cada um no próximo. Nas reportagens que fez, nos trabalhos que expunham casos graves, ele sempre via, lá na ponta, um problema de falta de limite. Por isso traz essa preocupação bem visível: como estabelecê-lo (o limite), sem que ele

4 O discurso do homem profissional vai até a figura do pai.

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Alexandre Kieling 41

represente o cerceamento do processo criativo é um grande desafio. É difícil determinar qual linha, onde está essa linha?

Ainda falando de limites volta aos filhos e os descreve:

Um deles (dos filhos) é completamente serelepe, é a menor, é incontrolável, não tem

como segurar, aí eu fico pensando, caramba, como fazer? Com ela, acabo sendo

bastante rigoroso. E mesmo com todo rigor que se use ela não pára. Então com ela eu sinto que tenho que ter uma energia um pouquinho maior e não flexibilizar. O do meio

negocia tudo. A gente combina vamos fazer isso, ou aquilo. E, se ele, por alguma

razão, pela natureza até por ser urna criança, acaba fazendo o que não estava

combinado, vem pedindo desculpas, e já trazendo urna nova proposta, oferecendo

outras alternativas. E não deixa de fazer coisas de que gosta. Ele busca caminhos para

realizar. O outro é branco no branco, preto no preto. Se diz é assim, é assim. Se não é,

não é assim, sempre. Então é difícil, tenho um cartesiano, um absolutamente subversor,

é subversivo a qualquer regra e tem um negociador, e todos os três são felizes. E por

isso que eu fico pensando às vezes: quais as medidas para um e para outro. Porque a

tendência, de certa forma, num primeiro momento é nivelar, as regras são essas para

todos, porque senão A reclama que B está tendo um tratamento privilegiado e C idem.

Mas será que esse é o modo correto? Quando eu reflito sobre isso, eu também reflito

sobre a gestão. E eu vejo que a gente está passando por certos experimentos. Algumas

coisas temos que agir como em relação ao primeiro filho, outras igual ao do meio,

porque as pessoas não agem igual, não tendem a dar um feed back igual. Mas uma

coisa eu já posso dizer: se se transfere a responsabilidade as coisas funcionam, porque

se cobra o resultado e ele tem que aparecer.

Sua marca registrada, delegar para que as pessoas ajam com responsabilidade e apresentem os resultados que são esperados, não é muito clara para alguns. Nessa forma de gerir algumas pessoas não conseguem se enquadrar e então o Alexandre-Gestor precisa tomar decisões e medidas corretivas para que o processo não seja

afetado no todo. A delegação pressupõe um processo contínuo e encadeado, tendo uma das partes ―desencaixada‖ o todo fica afetado.5

O momento mais difícil que eu passei aqui foi conseguir a liberação de dois

funcionários. Durante todo o meu período eu vi superiores e chefes meus passarem por

esse momento, eu acompanhei nas empresas onde eu trabalhei situações em que era

preciso diminuir o número de funcionários e eu via a angústia que eles passavam. E

uma situação que eu nunca gostaria de passar. Nesse caso não era corte, eu tive que

substituir porque eram pessoas que não conseguiam funcionar dentro deste esquema.

Aí eu tinha que estar o tempo todo chamando, repreendendo e eu pensava, eu não vou

fazer mais nada, vou passar o resto da minha vida cuidando dessas pessoas. E o pior

5 Ao mesmo tempo que quer uma equipe criativa, coesa, responsável pelas suas atitudes, reflexiva e

ativa, preocupa-se em criar as condições para que essa equipe tenha o cenário perfeito para a ação.

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42 Magda Tyska Rodrigues Identidade e vida de educadores rio-grandenses

não era isso. Quando eu pedia e falava até que as coisas funcionavam. O problema era

o relacionamento junto aos demais e com o processo propriamente dito. Eles

atrapalhavam o processo por causa desta postura. Isso é uma coisa interessante: na

medida em que se estabelece a descentralização, estabelece-se também que cada um

tem um papel importante. Se X falhar o processo todo falha. Não interessa A ser certo,

B ser maravilhoso, se o X for regular, o processo todo vem abaixo, e aí todo aquele

esforço que estava envolvido cai. Fazer as pessoas entenderem isso é que é difícil. Elas

vão se dando conta que as coisas funcionariam se todos agissem solidariamente. Aí se

estabelece uma cumplicidade de resultados, natural, não precisa cobrar, porque todos

querem o melhor, Eu quero que o meu produto fique bom, mas isso parte da base. Esse

é um negócio fantástico. Isso se fala em ciência política, e as empresas tinham que estudar um pouquinho de filosofia e ciência política, para ver que só se consegue

estabelecer grandes movimentos se a base quiser. Isso se fala muito em estrutura social.

E também numa estrutura organizacional se precisa ter a cumplicidade da base, e isso

não é uma posição de cima para baixo. Temos que conseguir que as coisas aconteçam

sozinhas. Eu acho fantástico quando as pessoas invadem a minha sala para me mostrar

uma coisa que veio do grupo, eu acho isso muito legal. Isso significa que a proposta

funcionou. Que a coisa está voltando, e não mais só indo. E eu vejo gente que fica

muito preocupada com isso, quando a base começa a apresentar. Eu acho um absurdo.

Penso: não foi feito com essa função? Na medida em que começam a surgir sugestões,

pensam, bom deu problema, bom vão tomar meu cargo. O que é um cargo? Um cargo

não é nada. O que faz com que a gente aprenda a agir assim é o desprendimento de

coisas materiais. Eu vou deixar de viver por causa de algo que perdi? Não vou, Eu

tenho que continuar vivendo. Eu tenho que continuar provendo minhas crianças. Nada

vai mudar. E a experiência acumulada até aqui, ninguém vai tirar. Não tem como, são

conteúdos, são leituras dos conteúdos.Por isso que brinco: o que está nos livros é

universal, o que se lê nos livros é pessoal, agora a interpretação que se tira, isto é muito

individual. A interpretação, a experiência são individuais. E a capacidade de percepção. Então eu não tenho coragem de mudar, de parar de sonhar de querer realizar as coisas.

A forma íntegra de comandar uma equipe passa principalmente pelo respeito, e isso o discurso de Alexandre Kieling evidencia. Fala de respeito e fala do erro como uma forma de aprender:

[...] e o principal é respeitar o processo. Para mim é fundamental não ter

compromisso com o erro. Porque não se é Deus. Se botar na cabeça que não se tem

compromisso com o erro, estamos sempre prontos a reciclar, a rever o processo, a

pedir desculpas e não ter medo de pedir desculpas porque não é um crime errar. 6No momento em que as pessoas entenderem isso as relações pessoais ficam

melhores. O problema todo está em, ao mesmo tempo em que ela (relação

6 Na vida organizacional é muito difícil encontrar gestores sem medo de errar, dispostos sobretudo, a pedir desculpas. Mais comum é encontrar pessoas especialistas em esconder os erros ou em passar sua

autoria para outros.

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Alexandre Kieling 43

interpessoal) tenta voltar-se para uma visão humana, está muito competitiva. Está

muito em cima daquela avalanche selvagem. Selvageria capitalista.

O olhar sempre vinculado a uma Relações Humanas mais humana é soma das suas experiências de jornalista — contando histórias de personagens reais, como ele diz, e aprendendo com a vida desses personagens. Credita à sua profissão uma qualidade muito especial — a de possibilitar experiências de vida, por estar ali ao lado do fato acontecendo para relatá-lo, sem propriamente vivê-las.

Minha experiência como repórter foi muito importante, porque eu aprendi a ouvir as

pessoas. Eu fiz isso durante 15 anos seguidos. Sentado ouvindo. Primeiramente

anotando tudo o que as pessoas falavam, depois gravando, mas sobretudo ouvindo,

Quando se vai ouvindo, ouvindo, ouvindo, se vai somando coisas. É possível gozar de

experiências que não são nossas. Se simplesmente eu abortasse essa possibilidade, eu

não aproveitaria essas experiências.

Para sua gestão traz essa capacidade de ouvir as pessoas com quem trabalha. Não simplesmente ouvir, mas entender, compreender o que está ouvindo. Talvez se

pudesse dizer dele ―um ouvidor ativo‖. É porque ouve e compreende que conhece os seus. É porque conhece os seus que eles se sentem uma parte ativa do processo. É porque se sentem parte importante que trabalham bem, com responsabilidade, com assertividade e principalmente e diferentemente, com alegria. E porque trabalham felizes é que chamam a atenção.

Eu tenho uma paixão muito especial por esta profissão. É difícil definir a construção de

uma história. A reportagem, o documentário, qualquer ato de produção de informação

é a construção de uma história. A diferença é que a gente está em contato com pessoas

reais. Com personagens reais. Ter o contato com eles, ouvi-los e reproduzir depois.

Esse deslocamento do nosso real, do nosso imaginário, para outro real, para outro

imaginário, vai ampliando a visão da gente em relação à vida, em relação ao mundo.

Eu já estive nos cantos mais inacreditáveis. Já fiz coisas inacreditáveis para chegar até

determinadas pessoas, então eu sou muito apaixonado. Cada profissão tem a sua importância, mas saber contar uma história, ser fiel a esta história, respeitar as pessoas

que contaram as experiências para serem reproduzidas, esse é um processo educativo

— recontar verdadeiras histórias. Isso faz com que as pessoas que ouvirem essas

histórias possam tomá-las como referência, como experiência e (re) encaminhar suas

vidas. Essa é a função da informação. E mostrar que há saídas. E encontrar soluções.

Tem pessoas que encontraram caminhos, encontraram soluções e se todo mundo

souber disso, as pessoas tristes vão ter esperança. As pessoas ativas vão se reorganizar

e as pessoas reflexivas vão contribuir para que amadureçam as estruturas sociais.

Aqui o discurso de Alexandre Kieling declara seu compromisso como cidadão, seu compromisso como profissional — fazer do seu trabalho uma forma de interagir com as pessoas, chamando-lhes a atenção para novas alternativas, alegrando-as. Com certeza, esse é o caminho para a construção de uma sociedade

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44 Magda Tyska Rodrigues Identidade e vida de educadores rio-grandenses

mais justa, mais criativa, mas humana. Fica a pergunta: quantos utilizam seu trabalho para interferir de forma positiva na sociedade? Quantos têm na consciência, a importância que o seu trabalho pode ter na sociedade? Quantos estão

preocupados em que o seu trabalho proporcione, além de um bom salário para si, uma forma melhor de viver para a comunidade, para a sociedade?

Para concluir essa que não é uma história completa, pois completa-se a cada dia porque é um processo contínuo e porque a figura de gestor aqui trazida é de um homem muito jovem, fica uma mensagem que Alexandre Kieling tem como um norte na sua forma de viver.

[...] acreditar que é possível fazer alguma coisa, por menor que seja, para a construção

de uma sociedade melhor. Eu entendo que independente dessa questão social, dessa

questão da distribuição do bolo da renda, que esta seja uma sociedade feliz. Que seja

uma sociedade pacífica. Que respeite direitos, que respeite a consciência, que respeite a

ética, que entenda o conceito de relacionamento, e para isso não é necessário que sejam

todos ricos, todos pobres, não é necessário que sejam todos intelectualizados, todos

doutores. Basta que todos tenham direito às mesmas coisas básicas. Que tenham essas

coisas asseguradas. Saúde, educação, habitação, transporte. Somente. Qualquer ser

humano funciona dessa forma. Para mim, não é extremamente difícil pensar assim se considerarmos o PIB que o Brasil tem hoje, que é um PIB considerável. A carga

tributária que se paga é suficiente para gerir esse processo.

As pessoas que trabalham com um gestor que pensa e, sobretudo, age dessa forma, aprendem a construir o melhor com o seu trabalho, com as suas experiências, criando um ambiente profissional melhor e mais justo. Habituam-se a agir assim, porque, sem perceberem, estão sendo educadas

para ser não só bons profissionais, mas cidadãos conscientes do seu papel. É desse tipo de gestor que as empresas necessitam com urgência, pois num momento em que a célula familiar já não se encontra tão sólida quanto em outros tempos, há que se migrar para outros núcleos que se responsabilizem parcialmente pela formação dos cidadãos — as escolas, as igrejas, os clubes, as universidades, as empresas. Em todas essas instâncias, no entanto, é necessário que existam co-responsáveis pela formação do homem integral.

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Carlos Nelson dos Reis De menino de rua a economista e professor universitário ou: a

história que tinha tudo para não dar certo

MARIA HELENA MENNA BARRETO ABRAHÃO Doutora em Ciências Humanas – Educação pela UFRGS. Professora Titular na

PUCRS. Docente na Graduação e no Programa de Pós-Graduação da FACED/PUCRS.

Pesquisadora I CNPq.

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46 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Trabalhar com História de Vida pressupõe um momento próprio do pesquisador

para extrapolar a narrativa da história de uma vida e interpretar o narrado para além do momento da enunciação, construindo uma tessitura da narrativa com a

teoria e a análise dos contextos em que as trajetórias narradas foram vivenciadas e de como foram (re) significadas pelo narrador, tanto no momento vivenciado, como no momento do enunciado. Ao trabalhar dessa forma o pesquisador constrói conhecimento pelo filtro de condicionantes macro e microestruturais que proporcionaram a ocorrência de determinados acontecimentos que influenciaram, ou mesmo condicionaram, a que as vidas tivessem esta ou aquela experiência; vivências que tiveram/têm diferenciados significados para o narrador. Moita

(1995) já nos ensina que trabalhar com Histórias de Vida implica utilizar metodologia com potencialidades de diálogo entre o individual e o sociocultural, pois ―só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos‖ (In Nóvoa, 1995, p. 113). Também Ferrarotti nos indica o diálogo multirreferencial que se estabelece na realização de uma pesquisa autobiográfica que permite ―reconstruir os processos que fazem de um comportamento a síntese activa de um sistema social

a interpretar a objectividade de um fragmento da história social a partir da subjectividade não iludida de uma história individual‖ (Ferrarotti, 1988, p. 30).

No caso de Carlos Nelson, optei por não retrabalhar a narrativa. Ela por si é muito forte. 1Não é necessário que eu teça comentários sobre a comunidade de

1 Acredito que a narrativa foi forte – como forte é a história de vida de Carlos Nelson – em virtude do

saudável rapport que se estabeleceu entre nós. Pesquisadora e seu personagem real tiveram uma

empatia que permitiu a este desnudar-se, sem medo de expor-se. As recordações de um passado ainda

recente, embora amargas, já estão reelaboradas, o que lhe permite ressignificá-las para olhar e fazer a história do tempo presente sem presunção, não obstante com orgulho, antes com uma saudável

humildade. A narrativa, como tudo o que exige rememoração, apresentou-se complexa, num ir e vir de

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Carlos Nelson dos Reis 47

destino a que este professor estava vinculado, da qual teve determinação (e que determinação!), mas também auxílio, para desvincular-se. Carlos Nelson, pobre, negro2 e mais do que isso, menino de rua, já com um primeiro delito

praticado, quer para si um futuro e uma história diferentes, visualiza este futuro e parte para construir essa nova história.3A questão da pobreza e da condição de menino de rua estão bastante estressadas na narrativa. Quanto à cor Carlos Nelson apenas refere que: ―na busca da sobrevivência eu percebi em determinados momentos que a minha cor não ajudava, não favorecia nada, e que pra vencer essas resistências eu precisava saber muito, então eu tive como lema que eu precisava saber duas vezes mais do que um menino não-negro‖, o que nos mostra que ele tinha, desde pequeno, consciência das condições

adversas que enfrentava também em virtude desse aspecto. Ao trazer a público a narrativa de Carlos Nelson não tenho a intenção de

fazê-lo na ingenuidade de pensar que basta querer para extrapolar condicionantes embargadores de que uma classe ascenda enquanto classe para que isto se dê. Sabemos que a sociedade e as relações sociais (condicionadas pelas relações de produção) não funcionam assim. Carlos Nelson, no entanto, negro, pobre, menino de rua, meliante em formação (só não é do sexo feminino

— outro forte condicionante social) supera as condições extremamente adversas que condicionam sua comunidade de destino e tem consciência da função social que deve desempenhar para que outros possam construir uma história de vida digna porque

se eu sou uma exceção, uma das tantas exceções, eu tenho que ajudar a transformar isso em regra, a minha contribuição com a sociedade é fazer com que

muitas pessoas que vieram ou que estão saindo de onde eu saí, se transformem; a

descrições e auto-referências, no tempo e no espaço. O que fiz, sem desfigurar sua forma e conteúdo,

foi apenas organizar o narrado sob determinadas rubricas. Assim: A infância, A Vida na Rua, etc. 2 Tenho evitado a designação ―afro-descendente‖. Salvo melhor juízo, ela me parece conter elementos preconceituosos ao tentar esconder a cor negra da pele de quem a possui e as inerentes conseqüências

nas relações sociais. Os não-negros, quando brancos, seriam cunhados de ―euro-descendentes‖? 3 Entre funções desempenhadas e distinções recebidas por Carlos Nelson, cabe destacar:

Comentarista Econômico da TV Bandeirantes, no Programa Sul TV; Técnico da FEE; Editor da Revista Indicadores Econômicos FEE; Professor e Coordenador do Departamento de economia da

PUCRS; Professor do Mestrado do Serviço Social da PUCRS, professor do Curso de Pós-

Graduação em Marketing na PUCRS, Professor do Curso de Especialização em Sociologia do

trabalho da Universidade de Caxias do Sul e Professor do Mestrado em administração pública na Universidade Federal do Rio grande do Sul. Recebeu por indicação do Vereador Milton Zunazi o

título de Cidadão Emérito de porto Alegre. Em 1996 foi convidado para proferir palestra em Hong

Kong, no Congresso Internacional sobre Wellfare State; em 1997 foi convidado para ser Paraninfo

da turma de Secretariado Executivo da PUCRS; em 1999 foi convidado para participar de Seminário na Universidade de Kassel/Alemanha. Foi membro de Comitê Científico da FAPERGS;

atualmente é Diretor Administrativo-Finaceiro da FAPERGS.

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48 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

sociedade brasileira poderá ter a sua revolução no momento em que as exceções

boas, positivas, construtivas, não sejam mais exceções e sim regras, o direito do

sujeito social, de ser o sujeito social, independente da sua etnia, independente da sua

origem, independente das suas coisas.

Com o leitor, a narrativa de Carlos Nelson, meu colega e, espero, meu amigo.

A infância

Eu não era órfão, eu era um necessitado, mesmo. Em casa eu morei muito pouco. Quando eu tinha.., acho que 2 anos de

idade, mais ou menos, a minha mãe me deu para uma prima ou tia dela, qualquer coisa assim. Eram dois filhos só, nessa época, que a minha mãe tinha e essa senhora veio a falecer. Ela veio a falecer quando eu já estava lá pelos 6 anos. Aí eu retornei para minha mãe; minha mãe me pegou novamente e eu fiquei com ela dos 6 aos 8 anos. Então, ela me deu de novo.

Deu-me para uma família de Uruguaiana, que na verdade era a família dela mesmo, era um tio-avô dela que me levou para Uruguaiana para me criar. Fiquei em Uruguaiana por uns três anos; fiquei até os 11 anos de idade. Não me dei bem lá, acho que um pouco eu sentia falta da cidade, daqui, me rebelei, acho que esta foi a parte da minha vida em que fui rebelde.

A adolescência

Também assim porque estava um pouco inconformado... porque eu passei a ser meio que serviçal da família antes do que propriamente uma criança a ser adotada, ser criada. Eu tinha que lavar a cozinha, louça, roupa, etc. essas coisas assim; isso me deixou numa situação muito desconfortável, desagradável e até que os convenci a me mandarem de volta. Não fugi, convenci a me mandarem de

volta, me botaram num trem lá com um vizinho que vinha para Porto Alegre. Aí consegui encontrar a minha mãe novamente e foi outra decepção porque

o meu imaginário era de que eu voltaria para Porto Alegre, para minha mãe, enfim, eu iria estudar, iria trabalhar, iria ajudá-la para nós termos a nossa vida, nossa casa, enfim, aí encontrei a minha mãe já numa situação da qual eu não gostei; ela estava morando numa vila, numa favela aqui perto da Maria da Conceição e já tinha outros filhos.

O homem com quem ela estava já era outro... já era outro, a minha mãe, ela

teve várias relações. Com o meu pai mesmo ela nunca foi casada e nunca viveu.

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Carlos Nelson dos Reis 49

O pai

O contato que tive com meu pai foi nesse período dos 6 aos 8 anos, alguns lapsos de meses. O meu pai inventou de me tirar da minha mãe e me levou para uma vila em que ele morava. Aqui na, vilaaaa, como é que era? Aqui perto do Colégio Protásio Alves, naquela época era Ilhota, ele morava com uma mulher ali. Ele me levou para morar com ele. Eu fiquei ali acho que só meio ano, qualquer

coisa assim, mas meu pai era uma pessoa... assim, muito desorientada na vida, sabe? O cara tinha uma boa profissão, mas ele era desorientado, ele bebia e ele me deixava.., aquelas coisas de vila, assim. Sabe, acorrentado na mesa para eu não sair? Com cadeado nas pernas! Uma vez ele me surrou, eu tinha 6 ou 8 anos (não me lembro bem a data) porque eu não lavei a louça.., lavei a louça, mas não a enxagüei e aí eles foram pegar o prato e estava com sabão... Ele me deu uma surra da qual eu tenho as marcas nas pernas até hoje, assim com aqueles cinturões de

fivelão... sangrei todo. Aí a minha mãe descobriu e conseguiu me levar de volta.

A mãe

Ela teve os problemas dela. Hoje eu não consigo culpar a minha mãe por

nada porque eu acho que ela teve os seus problemas, só que daí me tirou dali e me deu de novo, né. Então daí quando eu voltei lá de Uruguaiana, quando eu fui encontrar a minha mãe novamente eu não gostei da situação de vida que ela vivia, vivia numa favela. Também, ela trabalhava e sustentava o cara que vivia com ela e com outros filhos mais, já tinha mais dois ou três filhos..., bom eu fiquei ali com ela e comecei a ter que ir buscar, né, ter que trabalhar. Comecei a sair para rua vender jornal, engraxar sapatos, comprar doce velho e vender; fazia

essas coisas assim para tentar ajudá-la e comecei assim. Mas vinha e voltava sempre para casa, não estava na rua, mas eu não gostava da forma como ela utilizava os recursos que eu trazia, porque eu dava para ela e daqui a pouco ela repassava para o cara e o cara bebia, comprava cachaça, fazia essas coisas assim, cigarro, ficava na vagabundagem e eu não estava gostando daquilo, daí que eu comecei a sair, tipo não voltar.

A vida na rua

Não é que tenha sido mais tranquilo (naquela época), os perigos na rua eram os mesmos de hoje, mas a quantidade e a própria violência urbana era menor. Eu sempre digo assim quando eu lembro dessas situações, naquela época havia uma certa compaixão da própria sociedade pelas exclusões que ela mesma fazia; hoje há

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50 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

medo, há insensibilidade, também, mas a insensibilidade é pelo medo, pelo medo porque se uma pessoa está numa calçada, hoje, e vêm dois ou três meninos, a pessoa atravessa com medo de ser assaltada ou qualquer coisa assim, O próprio

fato de um menino desses se dirigir para a pessoa ela já desconfia. Naquela época, não, sabe, naquela época havia uma compaixão, não havia esse temor, esse receio e essa insensibilidade da própria sociedade, então sempre havia alguém que alcançava um pão, alcançava um prato de comida ou qualquer coisa assim; naquela época também se tinha alternativas de sobrevivência, tipo: a gente vendia jornal e os trocos do jornal, antes de a gente pagar para a pessoa que dava o jornal pra gente vender, a gente ia num armazém ou num mercado e dava o troco para eles que nos davam a quantidade inteira, porque eles precisavam de troco para fazer as vendas.

Então, como retribuição, nos davam um bom café ou davam um sanduíche ou davam qualquer coisa desse gênero. Havia essa alternativa de buscar alguma sobrevivência. Agora, a rua... para não voltar para casa o abrigo é marquise, é tipo alguma coisa que abrigue. Naquela época era isso, não havia pontes, nem elevadas. Nós estamos falando de 1959, 60, então as próprias pontes ainda não existiam, acho que só existia a ponte até a Getúlio Vargas; depois é que veio a ponte de Praia de Belas, depois que veio a ponte da Borges; então era assim, casas velhas no

centro da cidade, marquises, mas nada fixo. Era muito circulando e, às vezes, ia dormir na casa de um garoto, num

determinado bairro qualquer coisa assim, entende, o importante era não voltar para casa.

Determinadas classes sociais se solidarizam muito mais na dificuldade, na miséria mesmo; essa coisa de dividir um sanduíche. Às vezes se dividia até o que não se tinha: ah não tenho, hoje tá ruim, ah vou voltar para casa, então

vamos junto, aqueles que podiam levar, que os pais aceitavam, nos levavam, algumas vezes, com eles. Banho, isso não existe, não faz parte.

Saindo da rua, dando a volta por cima...

Mas eu sempre tive dentro de mim essa coisa de que não era o que eu gostava

esse tipo de situação, assim como eu não gostava da vida que a minha mãe levava eu também não gostava da minha, de ficar nessa coisa, então eu dizia: olha, eu vou estudar, eu vou estudar para ter um emprego, para ter uma casa e eu poder tirar a minha mãe lá daquela coisa que ela vive e, sabe, então eu falei, mas eu tenho que arranjar um colégio para estudar. Então eu passava assim, eu vendia jornal, eu engraxava sapatos e teve um tempo, um período, que eu pertencia a um grupo de meninos do centro (zona central da capital) que faziam coisas que não deviam ser feitas, mas para nós isso naquela época era normal, né, até chegar no ponto assim

do assalto, roubar carteira, esse tipo de coisa e foi exatamente nesse momento que,

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Carlos Nelson dos Reis 51

para mim, as coisas ficaram definidas, que a minha vida não era essa, não era isso que eu queria. A represália que foi feita a mim pelo próprio grupo por não querer continuar nesse tipo de situação, não fazer o segundo assalto, não roubar a segunda

carteira, foi drástica: eu apanhei, eu tive que sair daquele meio, daquela região, eu tive que me esconder e ir para outra região e aí eu passei a fazer pura e simplesmente assim, engraxar sapatos e vender jornal. Vendia a Última Hora. Mas aí eu não pude mais engraxar sapatos, fui vender jornal. O bom de vender jornal naquela época era nos restaurantes, a gente entrava nos restaurantes, à tarde nos cafés... mas aí tive que sair do centro e vender jornal nos bondes, no Teresópolis, no Glória, no Partenon, onde era mais difícil de vender porque o poder aquisitivo das pessoas dos bairros era menor, além do pouco interesse por compra de jornal.

Eu pulava de um bonde a outro; uma hora eu estava no Glória, outra hora eu estava no Teresópolis, outra hora no Partenon, depois, ia para o Petrópolis. Na época, 1960, 61 os bondes não tinham portas. A gente podia entrar, descer e vender e sair... então passava o dia assim, até que eu conheci os meninos da Casa do Pequeno Jornaleiro. Conheci pelo fardamento deles, eles eram diferenciados, eles eram jornaleiros diferenciados porque usavam uniforme.

Começando a mudar a história...

Eu comecei a namorar esse tipo de possibilidade, descobri onde era o internato, passava pelo portão. A casa ficava na rua Miguel Teixeira, 86, onde hoje é a Perimetral, ali, ali na praça Cônego Marcelino, do lado da Igreja Santo Antônio do Pão dos Pobres. Aí um dia... mas, assim, durante esse período que eu

perambulava às vezes voltava para minha mãe, às vezes não voltava e perambulava, às vezes dormia na rua e esse tipo de coisas. Claro que eu não contava essas coisas para minha mãe; nunca falei nada para ela até para ela não sofrer mais, porque eu também tentava protegê-la, e um dia, falando para ela sobre esse colégio, ela lembrou de uma senhora de quem ela tinha sido empregada doméstica, que tinha casado com um funcionário da Legião Brasileira de Assistência (LBA), que era a mantenedora da Casa do Pequeno Jornaleiro. Aí

ela disse que ia falar com ela e, daí, ele pediu que eu fosse lá na LBA. Ah, mas não precisou pedir duas vezes, né, eu ia todos os dias (risos). Isso já era final de 61, mais ou menos. Eu estava com 11 anos. De tanto eu buscar, buscar, buscar, aí ela conseguiu, eu entrei para Casa do Pequeno Jornaleiro ah, no início de 1962 em janeiro ou fevereiro de 1962, eu lembro bem disso porque logo em seguida a isso, estourou o Movimento da Legalidade. Foi como entrei para a Casa do Pequeno Jornaleiro.

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52 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

A nova história.., a nova vida:

a vida na Casa do Pequeno Jornaleiro

Ali era o seguinte, tinha uma estrutura que, quando os meninos entravam, passavam a ter todo o regime da casa; qual era o regime: levantar às seis da manhã, tomar café, ir até lá na Caldas Júnior pegar o Correio do Povo e a Zero, na época era Ultima Hora, a gente pegava a Última Hora ali na própria escola, ia lá e pegava o Correio e a Folha da Manhã e saia a vender nas ruas. Isso tinha que ser feito até as oito e meia da manhã porque às nove horas tínhamos que entrar

para a sala de aula. Às oito e meia voltávamos para prestar contas, tomávamos um outro lanche e às nove estávamos dentro da sala de aula. Lá, na Casa do Pequeno Jornaleiro, havia primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, até o quinto ano do Primário, ensino seriado; era meio que um núcleo da Secretaria de Educação, professoras do Estado davam aulas, lá dentro mesmo. Isso, era o Primário, então o regime ali era bem rígido, né: levantar às seis, vender jornal... esse jornal da manhã, voltar. Aula, às nove; ao meio-dia terminava a aula a gente almoçava, do meio-dia e meia até a uma e meia, ah, era recreação, ou tinha a

parte de música, ou jogo de futebol, ou fazer qualquer outra coisa. Era recreação, inclusive com música, né, aula de música, etc. Depois, pegávamos o jornal Folha da Tarde, para vender, Folha da Tarde e Última Hora, continuávamos vendendo, a partir das 14; voltávamos às 18 e trinta, porque às 19 horas tinha janta. Havia também as aulas técnicas, de sapataria, de tipografia. Eram à tarde, quando a gente estava nessas aulas não ia vender jornal. Às 19 horas a janta, aí tinha uma recreação das 19 às 21 e às 21, cama. Mas, não tinha outra, claro que nós

tínhamos equipes também, escalas de ajudar na lavagem dos pratos, na lavagem dos banheiros. Os banhos aconteciam às quartas-feiras e aos sábados, obrigatoriamente (risos) e não tinha chuveiro quente. Dia de banho... nas quartas-feiras a gente saia mais cedo da aula, era das 11 e meia ao meio-dia, para depois almoçar; aos sábados, pela manhã. Por idade: primeiro os menores, depois os médios, depois os grandes.

A renda da venda dos jornais era assim distribuída: um percentual ficava

para cada um, outro percentual ia para uma caderneta de poupança e outro percentual ia para a própria instituição, para ajudar, então dava para pagar as verduras e essas coisas assim. Nosso percentual podíamos gastar no que quiséssemos. Uns sábados à tarde a gente tinha livre e domingo depois de vender o Correio do Povo e também o Jornal de Domingo a gente ficava livre; era o momento que a gente ia ao cinema ou ia à praia, que a praia naquela época era Ipanema, as praias do Guaíba, ali,.., ia para a Redenção, andar de bicicleta.

Íamos em grupo de dois, três. Os médios não andavam com os grandes para

não serem molestados, porque também havia tentativas de aproveitamento, essa

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Carlos Nelson dos Reis 53

coisa toda assim, né. Então ali, quando eu entrei em 62, final de 61 eu fui tentado, mas eu me defendi, eu tive que pegar uma faca, porque eu entrei como pequeno e um médio tentou me pegar uma hora no vestiário quando fui mexer no meu

armário; o cara veio, eu tinha um canivete me defendi, é a lei do cão, esses negócios assim não têm perdão, ou você vai se prostituir, vai entrar nesse negócio ou não. Tem que mostrar força, tem que mostrar força. Quando eu entrei para a Casa, deu o Movimento da Legalidade, como eu tinha muita experiência da rua, eu já tinha até a ―universidade da rua‖, eu não tinha sido alfabetizado mas eu sabia ler, pelas placas, pelas coisas, eu sabia contar dinheiro, eu sabia, conhecia toda a cidade e coisa e tal.. .então eu entrei para a Casa e duas coisas aconteceram: primeiro, eu me tornei um aluno diferenciado porque pela experiência que eu trouxe da rua eu

passei a ser um dos melhores jornaleiros dali, principalmente quando deu o Movimento da Legalidade eu era o que mais vendia jornal, tanto a Folha da Manhã, quanto a Ultima Hora. Era a notícia, todo mundo queria ler, tinha uma saída maior de jornal, então eu me diferenciei por isso, e me diferenciei assim em sala de aula porque eu entrei em março no primeiro ano primário, em julho me passaram para o terceiro ano primário.., aí passei para a terceira série de março a julho e aí fiz a terceira, fiz a quarta, fiz a quinta. Claro que alguma coisa foi

recuperada depois no primeiro ano, no quarto ano, no quinto ano. Aí, fiz até o quinto ano primário ali na Casa do Pequeno Jornaleiro, fazendo as atividades, vendendo jornal, fazendo todas essas coisas, aprendendo música, a tocar sax.

A nova história.., a nova vida: a continuidade da educação escolar e

a “ascensão profissional” na Casa do Pequeno Jornaleiro

Quando foi, acho que foi em 1965 ou 66, eu fiz o Exame de Admissão ao Ginásio, no Protásio Alves, e tirei o quarto lugar. Eram mil e cem alunos e eu fui o quarto colocado, então foi festa na Casa em função dessa ascensão meteórica. Dali, então, como eu passei a me destacar e estava bem na escola, de vender jornal na rua eu passei a cuidar dos que vendiam jornal, ou seja... fui promovido.

O Ginasial e o Técnico em Contabilidade fiz no Protásio. Após passar para o

Ginasial continuei morando na Casa do Pequeno Jornaleiro. Fiquei de Supervisor de Vendas da Caldas Junior, mas lá dentro mesmo da Casa; os meninos que saiam para vender depois tinham que prestar contas para mim, aí eu fiquei nesse período ali, mas fazendo esse tipo de atividade. Eu tinha a renda da venda de jornais, mas aí ou a Caldas Junior ou a Zero Hora, por eu fazer isso, me davam uma comissão. Dessa comissão eu tinha que continuar a dar um percentual para a casa, um percentual para poupança, etc.

E aí, ali eu fiquei, como passei a ter mais tempo então no ginásio comecei

também a me destacar, porque aí eu estudava, eu não saía para vender jornal à

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54 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

tarde, minha aula era à noite. Fui um dos melhores alunos do ginásio, sempre notas acima de nove, minha média era entre nove e dez. Aí fiquei ali fazendo isso até 1967 quando terminou. Em 67 fechou a Casa do Pequeno Jornaleiro. Eu

ainda não havia concluído o ginásio, aí eu saí dali.., voltar a morar com a minha mãe não dava, não tinha condições.

A nova história... a nova vida: aprendendo a viver (sobreviver?)

fora da Casa do Pequeno Jornaleiro

Com o fechamento da Casa, acabou a comissão da venda e da supervisão de vendas de jornal, bem como o teto seguro, mas a profissão que eu tinha aprendido na casa, a de sapateiro, permitiu que eu fosse trabalhar em uma sapataria. Fui trabalhar de sapateiro para continuar estudando e poder pagar uma pensão. No ano seguinte, em 68, eu consegui ser office-boy da LBA, porque a LBA, como era ex-mantenedora da Casa do Pequeno Jornaleiro, sabia do meu histórico. Ela resolveu me aproveitar; entrei como office-boy, depois fui contratado como funcionário. Aí a vida já melhorou, porque eu já podia pagar uma pensão melhor, já podia me

alimentar, essa coisa toda, sempre fui por mim, eu por mim. Eu ajudava minha mãe, economicamente. Sempre continuei ajudando, dava

os meus trocos. Mas me doía quando eu ajudava; era uma coisa ambivalente, sabe, porque não era para ela, eu sabia que ia para os outros irmãos que já existiam ou ia para o cara que estava com ela. Eu continuei na LBA, terminei o Ginásio, fui servir o Exército, depois retornei para LBA. Olha, eu tinha até um sonho, o de ficar no Exército para ter um emprego melhor qualquer coisa assim,

uma vida, ter casa, ter cama... então minhas metas continuaram a ser, vou estudar para ter uma casa, ter uma cama, ter isso, ter aquilo e aí continuei trabalhando na LBA, fui servir, voltei, já estava terminando o Ginásio. Não fiquei no Exército porque não era uma vida para mim, era uma disciplina muito diferente daquela que eu havia aprendido e a perspectiva de carreira era muito difícil, dado que minha formação ainda era muito pouca. Daí, voltei para LBA e continuei os estudos. Terminei o Ginásio e fiz o Técnico em Contabilidade. De 70 a 73 eu fiz

o Técnico em Contabilidade, no Protásio Alves, já como funcionário da LBA e um funcionário num plano mais elevado até. Aí o que eu fazia, eu fui para a contabilidade não era mais office-boy, era agente administrativo na tesouraria e depois na contabilidade. Por eu estar cursando o Técnico em Contabilidade, em 72, me passaram para chefe da contabilidade.

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A nova história.., a nova vida: a formação universitária

Uma coisa interessante que aconteceu em 73 na minha vida, que me marcou até hoje eu lembro, foi assim: eu trabalhava na LBA à tarde, fazia o último ano do Técnico em Contabilidade à noite e fazia o pré-vestibular, no IPV, na parte da manhã e o meu sonho era passar na UFRGS porque não precisava pagar. Naquela época eu nem tinha noção do que era a UFRGS, entende, o meu negócio era não pagar e me esforcei para isso. Todo esse

esforço que eu fiz de pagar cursinho, comprar livro, comer menos para poder fazer isso, não ir passear, porque, aí então eu já estava com 22 anos e eu ainda não tinha tido adolescência, não tinha tido juventude; enquanto o pessoal da pensão ia para festas eu ficava porque eu não tinha roupa e, ao invés de comprar roupa, eu preferia comprar livros, e tinha que estudar... aí então eu, em 73, fiz esse esforço hercúleo. Fiz o vestibular e não passei.

Fiz vestibular para Economia porque eu não queria mais Contabilidade, porque também não era o que eu queria na vida ser contador, então fiz para

Economia e rodei. Foi uma decepção, uma frustração muito grande, mas como eu estava também inscrito para fazer na PUCRS, na semana seguinte eu fiz na PUCRS e aí passei, passei bem na PUCRS. Só que daí tinha que pagar, mas eu era muito querido na LBA, sabe, havia pessoas como a dona Amélia, a dona Arilde, que acompanhavam a minha trajetória e sempre me alcançavam alguma coisa, ou para comprar livro, ou para comprar uma camisa, elas ajudavam, assim, então disseram, tu vais, pode deixar que para a matrícula nós vamos te ajudar.

Sim, mas para as mensalidades tinha que sair do meu. Mas, fui indo e consegui os dois primeiros anos pagar sem problema, a partir do terceiro ano é que eu fiz APLUB, crédito da bolsa rotativa da APLUB, o terceiro e quarto ano de Economia eu fiz com APLUB. Na LBA eu já era chefe da contabilidade, ganhava um pouco melhor, estava numa pensão melhor, aí como universitário arrumei uma vaga na Casa do Estudante da Sagrada Família. Isso, eu consegui com o padre Severino. Lá eu fiquei de 73 até 75, morei 2 anos ali na Casa do

Estudante. Ali a vida começou a melhorar porque eu era chefe da contabilidade, o salário melhorou, aí conseguia conhecer a vida um pouco melhor sem passar tanta necessidade.

Um ano depois de formado eu paguei a bolsa rotativa da APLUB. Trabalhei na LBA até 76, em 76 eu pedi demissão porque eu arrumei um estágio na Secretaria da Fazenda e consegui uma vaga na Fundação de Economia e Estatística (FEE), porque eu queria ser economista, sabe, então eu saí da LBA e fui para a FEE.

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56 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Em 77 eu me formei aqui na PUCRS (27-12-77), minha mãe não se fez presente em minha formatura, ela não acompanhava esses processos. Uma das grandes mágoas que eu tive em todas essas andanças, sendo sempre o

melhor ou um dos melhores alunos, é que eu nunca tive platéia minha nos momentos... ainda fui o orador da turma.

A nova história.., a nova vida: o trabalho como economista

Era menos do que eu ganhava na LBA e no estágio, mas eu queria ser

economista, eu tinha que aprender, aí eu fui para FEE em 76, 15 de setembro de 76 eu entrei na FEE. Em 78 eu passei a técnico na FEE, fui promovido a técnico e ali comecei a ser pesquisador e buscar a qualificação. A FEE me proporcionou fazer o Curso de Especialização em História Econômica do Rio Grande do Sul, na UFRGS, depois me proporcionou o Mestrado em Economia, também na UFRGS, e aí em 85 eu entrei para PUCRS como professor, era uma coisa que eu... passei a querer ser.

A nova história.., a nova vida: o trabalho como professor

Para entrar na PUCRS foi o seguinte: havia vaga, eu havia mandado currículo, mas tinha um professor que era meu chefe na FEE, o professor Raimundo Guimarães que se dava muito bem com o professor então coordenador do Departamento de Economia da PUCRS, Vicente Pessato Neto, e aí eles conversando, o Vicente dizendo que precisava de alguém com o perfil

assim, assim, assim, ele disse olha eu tenho uma pessoa para te indicar assim, assim, assim, aí ele disse, ó, mas esse currículo já está lá, o cara foi aluno da PUCRS, aí o Vicente me contratou, e ali realmente eu comecei a minha carreira de professor; ali eu vi que eu tinha queda para isso, que eu gostava disso, que eu conseguiria ser um bom professor.

Quando iniciei na PUCRS eu não havia defendido a Dissertação, eu tinha terminado os créditos e estava fazendo a Dissertação. Eu entrei na PUCRS no dia

05 de março de 1985, para lecionar duas disciplinas: Introdução à Economia (no sábado pela manhã) e Análise Microeconômica, para o curso de Administração. A primeira era para repetentes que vinham de vários lugares, sábado pela manhã... era horrível; a segunda era para o Curso de Administração. Isso, no primeiro semestre, no segundo semestre de 85 eu já passei a lecionar Introdução à Economia para o curso de Economia, quando da reforma curricular de 85 na Economia. De 90 até 2003 eu fui o coordenador do Curso de Economia, conseguindo fazer todos esses processos de mudanças, de alterações. E essa minha ida agora para a FAPERGS

(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul), eu lhe

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Carlos Nelson dos Reis 57

digo, com toda a sinceridade, é o resultado dessa trajetória.

A nova história.., a nova vida: a FAPERGS

Estar na FAPERGS... foi uma indicação da PUCRS, porque na minha área até então a PUCRS não tinha representação lá, e como eu estava muito na mídia e coisa assim, fui indicado e fui aceito. Isso foi em 1996. Fiquei como integrante até 1999 e como coordenador do Comitê de 99 a 2003, no comitê, como Assessor de Economia e Administração, e agora como diretor foi uma coisa

inusitada. Foi bem assim: teve uma reunião de coordenadores, eu não estava presente, estava o meu substituto, e ali estavam iniciando um movimento para indicação de nomes para Diretor Científico da FAPERGS; passaram os nomes de dois, três, e aí chegaram no meu nome e o meu substituto disse, ah, não, mas o Carlos Nelson poderia ser o Diretor Administrativo-financeiro...

E essa minha participação na FAPERGS, eu repito, é o resultado de minha trajetória. Seguramente, eu tenho claro para mim que é a minha contribuição à comunidade científica, ainda que isso signifique um ônus para mim, porque o bônus

pelo que eu já passei na vida, e pelo que eu conquistei, e pelo que eu gosto de fazer hoje, é estar dentro do ambiente acadêmico, dentro da universidade com meus alunos, pesquisando, buscando coisas, descobrindo coisas. Mas, olhando para trás, eu não posso negar, que isso (estar na FAPERGS) é a minha contribuição e que eu tenho que fazer, e procurar que seja bem feito, para que eu possa retribuir a esta sociedade da forma como ela encontrou para me alcançar, eu tenho que retribuir a ela de maneira produtiva, de maneira elegante.

A nova história.., a nova vida: a (re) construção de si e

do ser professor/pesquisador

Até aí, antes da FEE, eu estudava era pela sobrevivência, estudar e ter formação para ter um emprego melhor, ter um salário melhor, ter condições de

vida razoáveis. No momento que eu entro para Fundação que mudou o meu ambiente, que eu comecei a ver as pessoas como elas trabalhavam, o conteúdo delas, como elas falavam, como elas se posicionavam, eu passei a ter uma identificação com isso, eu passei a olhar os meus professores de maneira diferente, eu passei a selecionar aqueles que realmente eram professores e aqueles que não eram professores, e passei a querer ser, e comecei a perceber que eu tinha uma boa comunicação, pois eu já ensinava os meus colegas. Como sempre fui um dos

melhores alunos, então foi nascendo em mim isso, ou despertando porque já estava lá dentro, foi despertando esse interesse a partir da minha vivência na Fundação de Economia e Estatística. Com o Curso de Especialização isso ficou melhor e com o

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58 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Mestrado então isto se acentuou, porque eu comecei, sei lá, a me destacar, a minha avaliação desse primeiro semestre na PUCRS foi muito boa e eu fiquei no céu, inclusive passei dentro da Fundação de Economia e Estatística a ser visto

diferentemente, porque eu também passei a tomar consciência de que eu não tinha conteúdo. Eu tinha me formado em Economia, eu tinha passado, conseguido chegar a esses espaços, mas eu não tinha formação, eu não tinha conteúdo porque todo esse período anterior foi muito mais em torno da sobrevivência, ser o melhor sem ter a qualidade para ser o melhor. Eu tinha consciência disso, então eu tinha que buscar. O Mestrado me deu um pouco mais disso, as leituras que eu comecei a fazer começaram a me dar um pouco mais disso. Eu era um péssimo pesquisador, eu não era um bom técnico na FEE, então eu não era bem-visto neste sentido, no

resultado qualitativo do meu trabalho e na medida em que eu consegui vir para a PUCRS e essas coisas começaram a despertar e eu passei a ter uma expressão maior. Comecei a ser melhor visto na FEE, comecei a entrar no rol dos melhores técnicos da FEE, e comecei a ter produções que confirmavam isso. Defendi minha Dissertação, então começou a crescer meu espaço na PUCRS e na FEE.

Minha Dissertação foi sobre o ICMS e as exportações no Rio Grande do Sul. A defesa foi em 18 de novembro de 1986, na época em que a Faculdade

de Economia da UFRGS ainda fazia defesa pública de Dissertação, agora não faz mais.

Ser técnico na FEE e ser professor na PUCRS eram duas coisas que estavam acontecendo paralelamente e estavam me realizando, estavam me realizando como pessoa, como homem, estavam mexendo comigo, estavam fazendo transformações nos meus conceitos, nos meus valores, na forma como eu percebia a sociedade, tanto é que eu havia me prometido, que eu ia dar uma paradinha para respirar um

pouco, porque eu agora estava ganhando melhor, eu estava com dois salários, já pensava em comprar um apartamento, essas coisas assim. Eu ia parar, mas nas férias de 87 eu resolvi passear, ir de ônibus para o Rio de Janeiro, passei por São Paulo, pela UNICAMP (Universidade de Campinas), e me inscrevi para fazer o Doutorado, aí fui até o Rio, voltei e comecei a estudar para fazer a seleção. Em 18 de maio de 87 eu estava indo para São Paulo para fazer o meu Doutorado na Unicamp. Minha tese foi: ―A indústria brasileira de calçados, dinâmica interna e inserção internacional‖.

Morei em Campinas de 87 até 1990. Uma bela cidade, na realidade foi assim um período muito marcante na minha vida, seguramente que do ponto de vista da minha formação como homem, como professor e até se eu puder dizer como intelectual, realmente se fundaram as bases exatamente nesse período.

Fui recebendo salário pela PUCRS e pela FEE; também, naquela época, tinha o PICD. Foi tranqüilo, até acumulei, consegui na volta ter condições de comprar um apartamento para mim. Então, mas assim, ali foi importante para mim pelo fato

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da reformulação de valores e de conceitos, porque em Campinas eu não precisava me proteger de nada, ninguém me conhecia, ninguém sabia da onde eu vinha, de onde eu não vinha, enfim, em Campinas eu voltei a sorrir, a minha vida me

permitiu esse tipo de coisa, eu não precisava me defender.

A nova história.., a nova vida: a vida sentimental auxiliando

na reconstrução de si, como homem e profissional

Eu me casei em Porto Alegre em 1975, antes de terminar a faculdade eu me

casei. Na época eu tinha aquele sonho, aquele idealismo, de todo o jovem, de me casar com uma pessoa do meu meio, uma pessoa que viesse das minhas origens e que quisesse vencer como eu, e me casei naquele período. Claro que havia sentimento, mas hoje eu percebo que havia muito mais uma reciprocidade de ajuda. Como eu não tinha casa e eu buscava uma casa, a minha namorada da época também não tinha casa e buscava uma casa, então resolvemos juntar as necessidades. Tivemos, um só filho, é um que eu tenho. Foram quatro anos, só, de casamento; em 79 eu me separei. Em 1980 nos encontramos, novamente, e houve

uma segunda tentativa e aí é que nasceu o meu filho, mas essa segunda tentativa teve curta duração: foram quatro meses.

Foi só para ter o menino, mesmo, e aí me separei; ela tinha uns dois meses de gravidez, então o que me veio à mente quando eu me separei é que eu não queria para o meu filho o que aconteceu comigo, em termos de não ter ambiente. Eu não tinha condições de dar ambiente familiar para ele. Então, seria melhor eu me separar dele desde o início e apenas oferecer a ele aquilo que ele precisasse. Ele

sempre me acompanhou, eu sempre estive presente, nunca fui um pai ausente, e quando eu fui para Campinas ele era a visita ilustre que sempre estava presente em todos os feriados e férias, me visitando.

Acho que naquela época andou mais de avião do que eu. Até me divorciei; quando estava em Campinas eu confirmei o divórcio. Mas Campinas me ajudou nesse sentido assim de eu conseguir fazer toda uma vida.., inclusive namorei uma filósofa, lá,..me ajudou muito, não tenho a menor dúvida de que, Márcia Reame

Pechula é uma marca na minha identidade feminina, o início do resgate da minha identidade feminina, até no sentido de eu, te digo isso com toda a sinceridade, sem nenhum constrangimento, de eu passar a respeitar o feminino, tanto aquele que habita em mim, quanto aquele que me rodeia, não mais de maneira raivosa, de maneira rancorosa, de maneira destrutiva, sabendo que foi um feminino que me fez, que me pôs no mundo e que, também pelas suas contingências da ida, não me deu aquilo que eu precisava para tratar o meu feminino, a ser um homem propriamente. Então, ali em Campinas, isso começou a ser trabalhado a ser

reelaborado, a ser revisto. Não tenho dúvida que em Campinas eu me tornei

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60 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Identidade e vida de educadores rio-grandenses

homem, que até então não tinha sido na plenitude, pelas marcas da vida, as mágoas, enfim. E refiz todos esses valores, todas essas coisas, passei a sorrir e cresci como profissional, cresci como homem, principalmente. Quando voltei

para cá essas coisas vieram junto e eu passei, então, a ter outra postura acadêmica. na FEE, como profissional, com meu filho, daí ele veio morar comigo, aí eu passei a ser pam (pai e mãe) e fui enfrentando a vida até chegar a ter a credibilidade que eu tenho hoje como professor na PUCRS, felizmente.

Hoje não tenho mais rancor, eu hoje faço terapia, foi a forma que eu achei para me livrar de vários pesos e várias.., porque às vezes as pessoas me vêem pelos corredores mas elas não sabem quem é, o que é, o que passa, o que não passa, o que passou, e isso é normal, a sociedade é assim, então eu já estou conseguindo ser

uma pessoa bem mais calma, mais tranqüila, mais senhora de si, mais orgulhosa de si, sem ser pedante, sem ser petulante, eu acho que, o Irmão Reitor disse algo num ―Reflexões‖ 4que eu fui, e a partir disso eu consegui até melhorar um pouco mais, que nós temos que ser simples e realmente eu comecei a perceber e me olhar que eu tenho essa característica. Eu jamais fui prepotente com os meus alunos, jamais demonstrei saber mais do que eles, pelo contrário eu busco é neles o conhecimento, então eu falo a linguagem que eles entendem e sou humilde para com os outros,

porque eu preciso antes de ser com os outros eu preciso ser humilde comigo, porque se eu sou uma exceção, uma das tantas exceções, eu tenho que ajudar a transformar isso em regra, a minha contribuição com a sociedade é fazer com que muitas pessoas que vieram ou que estão saindo de onde eu saí, se transformem; a sociedade brasileira poderá ter a sua revolução no momento em que as exceções boas, positivas, construtivas, não sejam mais exceções e sim regras. O direito do sujeito social, de ser o sujeito social, independente da sua etnia, independente da

sua origem, independente das suas coisas, mas é uma trajetória um tanto difícil, são caminhos árduos.

É bem mais, eu sempre me refiro assim, que eu não sou um vitorioso, eu não me considero um vitorioso, eu me considero um conquistador, porque isso é meu, a vitória é fugaz, ela é hoje e amanhã não existe mais, a conquista é permanente.

Referências

FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (Orgs.). O método (auto) biográflco e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde, 1988,

4 O Projeto reflexões tem por objetivo proporcionar aos professore e funcionários da PUCRS um espaço de escuta, reflexão e diálogo sobre a identidade e as finalidades da Universidade. Esta iniciativa

envolve dirigentes, docentes e funcionários da PUCRS em processo de reflexão sobre a universidade.

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Carlos Nelson dos Reis 61

MOITA, M. C. Percursos de formação e de trans-formação. In: NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1995.

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Dom Luiz Felipe de Nadal Pioneiro na educação de base por meio da escola radiofônica

PROTASIO PLETSCH Professor do Campus de Uruguaiana – PUCRS e Mestre em Educação pela PUCRS.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 63

Dom Luiz foi um homem que sempre esteve à frente de seu tempo. Foi um

pioneiro, um empreendedor. Se usarmos um conceito atual, um intrapreneur. A sua atuação em diferentes setores da sociedade representa um conjunto cases para o estudo de administração, educação e pastoral.

Teve muitas paixões. O rádio foi a maior delas. Visualizou e explorou com maestria a potencialidade desse meio de comunicação, tanto para a evangelização como para o desenvolvimento da educação e cultura dos seus paroquianos e diocesanos. Nele o religioso e o educador carismático se

confundiram. A sua presença, o seu relacionamento e sua comunicação foram tão marcantes que, após quase quarenta anos de seu desaparecimento, ao lembrarem de Dom Luiz as pessoas se emocionam, chegando às lágrimas com freqüência. Foi um irrequieto construtor de utopias, um animador cultural, um líder social, mas foi também um enérgico realizador. No seu relacionamento, ternura e severidade se alternavam, mas sempre indicaram uma grande simpatia pelas pessoas, pelos seus afazeres, pelos seus problemas. Onde ele andava, era

uma fonte irradiadora de energia e de bem-estar, relatam os seus contemporâneos. Pela forma como viveu, pelo seu caráter, pelos seus sentimentos e pelas obras educacionais que realizou, todos credenciam-no a participar da galeria dos grandes educadores do Rio Grande do Sul.

Dom Luiz foi um educador no modo informal de fazer educação, pioneiro da escola radiofônica e um criador de escolas. No momento em que a idéia de educação permanente começava a tomar corpo, Dom Luiz já propunha transformar todo o tempo e todo o lugar em oportunidade de aprender. Visualizava, de certa

forma, uma cidade educativa para seus diocesanos. A atividade educacional de Dom Luiz foi abrangente: atingiu pessoas de todas as idades, de todas as categorias sociais, da cidade e do campo. Para todos os segmentos da população tinha um projeto, tinha uma mensagem.

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64 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

A nota mais marcante de sua personalidade foi a alegria. “Obediens in

leatitia” — obediente e pleno de alegria — foi o seu lema episcopal. A alegria de viver foi certamente a sua maior mensagem.

Como resultado da investigação que realizamos pretendemos dar uma visão, ainda que limitada, da obra educativa desse religioso-educador-empreendedor, recuperando aspectos importantes da sua formação inicial e continuada, da sua trajetória, simultaneamente, religiosa e educacional.

Os dados foram obtidos por meio de narrativas de pessoas- fonte, de relatos escritos e da análise documental. A narração da vida e da obra de Dom Luiz resulta, portanto, do olhar e da representação de seus contemporâneos; da evocação de mananciais de emoções e de lembranças gratificantes; da reconstrução coletiva

de sonhos e de realizações de um personagem quase lendário que, por sua simplicidade, por sua alegria de viver e pelo desejo de construir um mundo melhor, marcou de forma inolvidável todos aqueles que com ele conviveram.

A família

Luiz Felipe de Nadal nasceu em 1º de maio de 1916 na localidade denominada ―Linha 4ª Série‖, na margem direita do rio Taquari, na época pertencente ao Município de Guaporé. Essa localidade, atualmente denominada ―Linha Dom Luiz Felipe de Nadal‖, pertence ao Município de Muçum. Alguns documentos indicam Santa Teresa como local de seu nascimento. Na verdade, Santa Teresa, antigo distrito de Bento Gonçalves, hoje município, localizado entre Muçum e Monte Belo, era desde 1909 a sede da paróquia carlista do

mesmo nome, com jurisdição sobre a linha onde nascera. Então, pelo critério político, o nosso personagem nasceu em Guaporé; já, pelo critério religioso, é oriundo de Santa Teresa.

Luiz Felipe nasceu primogênito, filho de Francisco de Nadal e de Tereza Dendena de Nadal. De família numerosa, eram 13 irmãos. Os pais de Luiz Felipe foram agricultores, pessoas simples, mas com sólida formação cristã consolidada na prática religiosa. Além de Dom Luiz, a família contribui para a igreja com

outros religiosos: Cônego Paulo de Nadal, conhecido como o grande construtor da ―Cidade de Deus‖ em Porto Alegre, Cônego Gregório de Nadal, que foi professor no Seminário Menor de Gravataí e a Irmã Luiza, religiosa vicentina.

O Cônego Gregório de Nadal, em seu diário espiritual, tem uma explicação para esse fenômeno: ―Minha mãe desde os 15 anos rezou o terço, todos os dias, pelas vocações e para ter uma família cristã, pedindo a Deus um filho sacerdote e Deus exagerou. Não só lhe deu uma família cristã, um marido cristão, mas 13 filhos, um Bispo, um cônego, uma irmã, um padre e os outros todos casados e

bem‖. O autor continua: ―Obrigado, mamãe pelo exemplo de fé que nos deste.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 65

Com tua paciência na dor, na enfermidade. Obrigado mamãe, pelo muito que nos transmitiste na união com o papai‖ (Zanotelli, 1999, p. 43).

Dom Vicente Scherer (1963, p. 208), também faz menção à influência do

lar na vida de Dom Luiz:

Mas, homem de arraigada piedade, de filial temor a Deus e total direção da vida para as realidades luminosas e promissoras da fé, herança preciosa que lhe legaram os

exemplos e os ensinamentos dos virtuosos progenitores, estimulado sempre pelas

indestrutíveis influências recebidas no ambiente de um lar cristão modelar, santuário de

paz, alegria, simplicidade, otimismo, respeito e amor ao trabalho.

Estudos básicos

Com a idade de 12 anos, Luiz Felipe deixou a casa dos pais em Guaporé para iniciar os seus estudos seminarísticos. Conforme consta nos livros de matrícula do extinto Seminário Central Imaculada Conceição de São Leopoldo,

Dom Luiz ingressou nesse educandário em 1928, onde durante cinco anos freqüentou o Curso Ginasial. Durante esse curso participou de turmas que reuniam entre 28 e 49 alunos. Nas avaliações anuais, a classificação de Dom Luiz oscilava entre o 10º e l4º lugar. Integrava, portanto, o primeiro grupo.

Estudos superiores

No mesmo estabelecimento, no edifício do Seminário Maior, no período de 1933 a 1935, cursou Filosofia e, em seguida, de 1936 a 1939, cursou Teologia.

Ordenação sacerdotal

Sua Ordenação sacerdotal, segundo o registro em três livros que elencam as ordenações, deu-se em Porto Alegre, na cripta da Catedral Metropolitana, pelas mãos de Dom João Becker, Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Porto Alegre. Conforme registrou o Padre Olmiro Hartmann (1961, p. 15): ―No dia 22 de agosto de 1939, Luiz ouvia esta música divina: ‗Tu es sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedec‘. Participava então do sacerdócio de Nosso Senhor Jesus Cristo‖.

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66 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Cargos

No início de sua vida sacerdotal, o Padre Luiz Felipe atuou sucessivamente como cooperador das paróquias do Rosário, São Geraldo, Auxiliadora e Catedral, até 1943. Nesse tempo, desempenhou também as funções de capelão militar do 7º Batalhão de Caçadores e de auxiliar das obras da nova catedral. Depois de dirigir por alguns meses, como substituto, a paróquia do Rosário, em 20 de novembro de 1943 foi-lhe confiada a direção e organização da recém- criada

paróquia de Santa Cecília. Ali permaneceu até ser elevado, em 19 de abril de 1952, a cura da catedral metropolitana. Promoveu intensamente a Ação Católica como assistente arquidiocesano, primeiro das Benjaminas, desde 1947 e, depois, da Juventude Feminina Católica, de 1950 a 1954.

Do Boletim da Arquidiocese Unitas (Parabéns, 1955, p. 70-7 1), transcrevemos o seguinte extrato retirado de uma nota da Cúria Metropolitana, publicada em 15 de maio de 1955, por ocasião de sua nomeação para Bispo de Uruguaiana, emitindo uma apreciação de seu trabalho:

Nos diversos cargos que exerceu o Padre Luiz Felipe revelou rara capacidade de trabalho, visão clara dos graves problemas morais, religiosos e sociais da atualidade, seguro tino administrativo, feliz ajustamento do apostolado às necessidades e condições do mundo moderno. À paróquia de Santa Cecília, em poucos anos, deu organização modelar, sob o ponto de vista material, espiritual e social.

Nesse período o padre, cônego e depois monsenhor Luiz Felipe,

apostolado, criando, produzindo e apresentando diversos programas com um talento excepcional, revela-se um grande comunicador. Utiliza intensivamente o rádio como instrumento de seu diários e semanais com grande audiência em Porto Alegre e interior do Estado. A ―Primeira Oração do Dia‖ e ―Hora do Angelus‖, programas diários por ele dirigidos. Também apresentava ―Histórias do Tio Valeriano‖, de extraordinária audiência, voltado para as crianças que, no auditório da Rádio Difusora, cantavam, recitavam poesias e também aprendiam

a rezar e a conhecer muito da vida religiosa. Conseguiu criar e dirigir uma missa dominical só para crianças, também irradiada.

Sagração episcopal e posse na Diocese

Osservatore Romano de 14 de maio de 1955 publicou a nomeação do Cônego

Luiz de Nadal, cura da Catedral Metropolitana de Porto Alegre, para Bispo da Diocese de Uruguaiana, vaga desde janeiro de 1954. A notícia divulgada pelas estações de rádio, à tarde do mesmo dia, despertou viva satisfação entre o clero da

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Dom Luiz Felipe de Nadal 67

arquidiocese, distinguido pela elevação de um de seus membros ao ônus episcopal, e entre a população católica em geral que conhece e admira os dotes pessoais, as virtudes e os trabalhos apostólicos que indicaram Mons. Luiz de Nadal para as

honras e responsabilidades do episcopado. ―[...] Mons. Luiz de Nadal, de grande bondade e sensibilidade de coração, familiarizado com as mais diversas formas de atividade, ocupará com brilho o trono episcopal da futura Diocese de Uruguaiana‖ (Parabéns, 1955, p. 69).

Sobre a nomeação de Mons. Luiz de Nadal, o ―Jornal do Dia‖ em 14 de maio (apud Parabéns, 1955, p. 70-71), publicou em seu editorial:

Está de parabéns o clero do Rio Grande do Sul, com a elevação de uma de suas mais

expressivas figuras às honras e às responsabilidades do episcopado. O Cônego Luiz

de Nadal foi sempre um autêntico sacerdote e esta foi sem dúvida a melhor

preparação para a dignidade a que foi conduzido. Não há quem não o conhecia

através de sua múltipla atividade apostólica. Suas virtudes sacerdotais fizeram-no

conquistar inúmeros admiradores. Suas virtudes sociais facilitaram-lhe,

extraordinariamente, o exercício dos seus misteres pastorais. [...] Santidade e ciência

se exige de um sacerdote católico. O Cônego Luiz procurou-as ambas, com

infatigável zelo. [...]

A sagração como bispo ocorreu no dia 29 de junho de 1955, com 39 anos de idade. Foi sagrante Dom Vicente Scherer, arcebispo metropolitano, e como co-sagrantes, Dom Cláudio Colling, Bispo de Passo Fundo e Dom Antônio Zattera,

bispo de Pelotas. Após a sagração episcopal foi nomeado bispo de Uruguaiana, tendo sucedido Dom José Newton Batista. Foram paraninfos o Dr. Liberato Saizano Vieira da Cunha, Secretário de Estado de Educação e Cultura, e o Senhor Luiz Polônia, cunhado do sagrando, casado com sua irmã Judith. A revista Unitas assim registrou o evento:

Além de numerosas autoridades civis e militares, assistiu à tocante cerimônia uma

extraordinária multidão de fiéis, manifestando assim sua estima e apreço ao novo Prelado, que como primeiro pároco de Santa Cecília, depois como Cura da Catedral,

assistente arquidiocesano da Juventude Feminina Católica e especialmente como

locutor de diversos apreciadíssimos programas radiofônicos formara em torno de si

vasto círculo de admiradores, não só em Porto Alegre, mas em todo o Rio Grande do

Sul e nos Estados vizinhos (Sagração, 1955, p. 172).

A edição do jornal A Fronteira de 13 de agosto de 1955 assim anunciava a expectativa da cidade em relação à posse do novo bispo:

Procedente de Porto Alegre chegará dia 14, às 16 horas, via aérea, acompanhado de brilhante comitiva, S. Excia. Revdma. D. Luiz Felipe de Nadal, terceiro Bispo da Diocese de Uruguaiana, devendo o ato de posse

verificar-se dia 15, às 9 horas, na Catedral, em imponente cerimônia, segundo o

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68 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

ritual católico, presidida por S. Excia. Revdma. D. Vicente Scherer, Arcebispo do Rio Grande do Sul.

Nos meios católicos reina inusitado entusiasmo para a recepção a ser

prestada ao eminente Antístide da Igreja e, por tudo isso, espera-se constituam as referidas homenagens um acontecimento social e religioso de magnífico relevo (A Cidade, 1955, p.4).

No dia 14 de agosto, D. Vicente Scherer — Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, D. Luiz Felipe de Nadal — Bispo de Uruguaiana — e ilustre caravana foram recepcionados no aeroporto da cidade pelo clero, autoridades civis, militares e consulares, entidades de classe, religiosos, associações, colégios e povo em geral.

Acompanhados por um grande cortejo de automóveis, rumaram do aeroporto para a frente da catedral, onde receberam as boas- vindas em nome da Diocese de Uruguaiana pelo Dr. Dirceu Cachapuz de Medeiros.

Nessa recepção festiva, a jovem estudante Maria Helena Menna Barreto, aluna da 4ª série do curso ginasial da Escola Normal Nossa Senhora do Horto saudou o novo bispo de Uruguaiana, representando a juventude estudantil da Diocese de Uruguaiana.

No Dia da Assunção de Nossa Senhora, data da fundação da Diocese de Uruguaiana, 15 de agosto, na Catedral de Sant‘Ana foi dada a posse a Dom Luiz, como 3º bispo de Uruguaiana, por Dom Vicente Scherer, Arcebispo Metropolitano, com a leitura da Bula Pontifícia de Nomeação.

O Padre Assis Pinheiro Dias, vigário de Santiago, saudou o novo bispo em nome do clero da Diocese. Dom Luiz entoou o Te Deum em ação de graças, oficiando, em seguida, a solene Missa Pontificial.

O governo do Município, em homenagem a Dom Luiz Felipe de Nadal, decretou feriado municipal simbólico.

Por ocasião da posse do novo bispo em Uruguaiana, Dom Vicente Scherer (1955, p. 201-202), em determinado momento de seu discurso, elogia Dom Luiz e pede o apoio dos diocesanos nestes termos:

Por exímios que sejam os predicados pessoais de um bispo, por mais altos que

sejam os seus propósitos e geniais os seus planos, nada ele fará sem a leal e

perseverante colaboração do clero, dos religiosos e do povo fiel. Precisa ele contar

com o filial devotamento da família diocesana.

Dom Luiz, logo no início de sua atividade pastoral, impressionou os

uruguaianenses. A seguir, transcrevemos um trecho do depoimento do ex-prefeito de Uruguaiana, Antônio Chiareilo (2001):

Em pouquíssimos dias, após haver chegado a Uruguaiana, o Bispo Dom Luiz Felipe de Nadal já havia conquistado a simpatia do povo da sua Diocese. Afável,

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Dom Luiz Felipe de Nadal 69

alegre, simpático, carismático, o novo Bispo logo demonstrou que era muito

diferente do seu antecessor e que não ficaria enclausurado, nem permaneceria

indiferente aos problemas de Uruguaiana. Um pequeno gesto logo demonstrou

isso: o bispo compareceu pessoalmente para benzer... uma casa de modas

feminina! Era um fato inédito em Uruguaiana.

O ecumenista

A abertura para o diálogo com outras confissões religiosas foi uma das notas distintivas do ―bispado‖ de Dom Luiz Felipe de Nadal. Com a aproximação do Concílio Vaticano II, e tendo conhecimento de que o ecumenismo seria um dos principais itens da pauta conciliar, Dom Luiz Felipe antecipou-se e, por sua inspiração, no dia 27 de agosto de 1962, realizou-se um encontro assim relatado

pelo jornalista Luiz Stabile para o Diário de Notícias que circulou no dia 2 de setembro de 1962:

Tendo por local o Instituto União, realizou-se um encontro de alta significação para as igrejas cristãs desta cidade: o do Bispo Diocesano que se fazia acompanhar do

Monsenhor Assis e dos líderes do evangelismo local, revends. Wilbur Smith, Pedro

Ferreira Martins e Glauco S. de Lima. O próximo Concílio Ecumênico foi o tema do

encontro que transcorreu em ambiente da mais franca cordialidade, oportunidade

para a troca de idéias sobre a matéria [...].

Às vésperas de sua viagem à Roma, convocado como os demais bispos brasileiros para participar do Concílio Ecumênico, Dom Luiz Felipe de Nadal recebeu a reportagem do Diário de Notícias no Palácio Episcopal quando comunicou:

Da Rádio do Vaticano recebi convite pra falar ao Brasil, diariamente, dentro

do espaço reservado ao nosso país, no horário brasileiro, das 20 às 20, 15 horas, nas freqüências de 16, 19, 25 e 31 metros. Respondi aceitando o convite e informando que estou disposto a fazer diariamente um comentário de 5 minutos, em torno dos acontecimentos de cada dia. Espero poder ser escutado já no dia 10, que deve ser o dia da nossa chegada em Roma.

Irei representar a Diocese de Uruguaiana. Levo comigo os sentimentos, a afetividade fraternal para todos os que residem dentro dos limites desta Diocese, já que o Concílio pretende transmitir a Mensagem do Evangelho em sua original

pureza, que é de amor para com todos: ―amai-vos uns aos outros, assim como eu os amei‖ (Jo, 13, 34). Não só os católicos da Igreja Romana estão convidados pelo Santo Padre a elevar preces aos Céus pelo êxito do Concílio, mas os nossos irmãos cristãos também foram convidados e, por sua vez, muitos responderam ao convite, recomendando preces nas mesmas intenções.

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70 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Para esclarecer a participação de Dom Luiz no Concílio Vaticano II trazemos novamente as palavras do ex-prefeito Chiarello (2001):

Dom Luiz Felipe de Nadal participou ativamente dos trabalhos do Concílio

Ecumênico, organizado pelo Papa João XXIII, para ―abrir na Igreja uma janela por

onde entrasse uma leve brisa de renovação, sem poder adivinhar que entraria num

verdadeiro vendaval‖. Na volta, em vários encontros, relatava-me o que ocorrera,

demonstrando estar plenamente consciente e em dia com os temas debatidos e com a

visão da função histórica do Cristianismo. E em mais de uma vez, ao ouvi-lo, um

pensamento formava-se em meu espírito: ―Eis aí um homem que tem tudo para ser,

algum dia, um grande Papa!‖

O bispo conciliador

Por ocasião das eleições de outubro de 1955, Dom Luiz, utilizando a sua posição de autoridade religiosa, manifesta-se conciliador: dirigiu uma mensagem aos cidadãos de Uruguaiana cujo extrato transcrevemos abaixo.

No dia de hoje, em que a luta pré-eleitoral, pela sentença das urnas, definiu o novo governo, dando ganho de causa a um dos grupos partidários, permitindo-nos à iniciativa de dirigir a mensagem de Bispo aos municípios de Uruguaiana.

[...]

Agora, pois, conhecido o resultado das urnas, com a mesma solicitude com a qual nos manifestamos sobre o dever cívico do voto, dirigimos apelos veementes para a pacificação dos ânimos e dos corações nos municípios da Diocese de Uruguaiana.

Entramos agora em nova fase: a fase das realizações. Realizações que, para serem benéficas à família municipal, é preciso que estejam isentas de animosidade, purificadas pela magnanimidade, esquecidas dos dias de luta partidária que as

antecedeu. É preciso que vencedores e vencidos se dêem as mãos, se olhem com serenidade e coloquem acima dos sentimentos pessoais de satisfação ou de desgosto a preocupação de realizar algo em benefício da família municipal, a qual pertencem tanto os vencidos como os vencedores nas eleições.

Erguemos aos Céus, pela intercessão da Virgem Santíssima do Rosário, ardentes preces para que aqueles que obtiveram a preferência do eleitorado, possam realizar um governo feliz e um governo de todos.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 71

O bispo dos gaúchos

O ―Bispo Gaúcho‖, assim Dom Luiz era chamado pelos tradicionalistas. Oriundo da Serra Gaúcha, do ambiente colonial italiano, ele percebeu imediatamente a necessidade de uma identificação cultural com os seus diocesanos. Estudou, aprendeu, assimilou pessoalmente e incorporou na sua atividade pastoral, com incomum entusiasmo, os valores e o modus vivendi do homem da campanha gaúcha. O jornalista Meirelles Duarte (1999, p. 21), assim

registrou o envolvimento de Dom Luiz com os tradicionalistas gaúchos: Na época era muito raro encontrar um religioso que fosse participar dos

eventos tradicionalistas em CTGs ou qualquer entidade social. Dom Luiz, desde o início demonstrou grande inclinação para as lides tradicionalistas que logo ficou famoso no estado inteiro, sendo convidado para rezar missas nos eventos mais importantes como congressos tradicionalistas, fundação de CTGs. Sua presença sempre era ponto alto e nunca recusou convite algum, indo, praticamente por todo o estado, levar sua mensagem aos irmãos gaúchos e tradicionalistas.

O professor Raul Pont (1983, p. 192) ratifica essa opinião:

Espírito eminentemente tradicionalista, soube amar as coisas do Rio Grande e por sua colaboração como poeta fez parte da Estância da Poesia Crioula. Criou popularidade

com a Prece do Gaúcho, utilizando-se de profunda simplicidade e conhecimento do

nosso vocabulário.

O bispo radioamador

Dom Luiz Felipe de Nadal foi um dos religiosos pioneiros no radioamadorismo do Rio Grande do Sul. PY3ATR era o seu prefixo, O Dr.

Manuel D‘Arriaga (2000), em seu depoimento, ilustra muito bem o comportamento amador do nosso bispo:

Nós conseguimos através de muitas conversas ter uma visão da sua personalidade extremamente humana, um homem que ia a fundo em tudo, em tudo o que se metia e assim foi como educador, foi como prelado, como religioso, a sua expectativa de poder servir a comunidade como pessoa, como religioso enfim, em todo o aspecto um homem extraordinário. O elo de união foi o radioamadorismo do qual éramos apaixonados. Eu poderia dizer que era uma

visão um pouco estranha, nos domingos, quando três pessoas em cima do teto de uma casa da rua Santana estavam lá a orientar, a ajustar antenas, antenas direcionais de rádio, eu digo, interessantes porque eram três pessoas de certa respeitabilidade: uma era o Bispo Dom Luiz Felipe de Nadal, a outra o Juiz

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Diretor do Fórum, o Dr. Clóvis Pacheco de Assis e o terceiro o dono da casa, este que fala, que éramos todos radioamadores.

Dom Luiz, mesmo quando se envolvia em atividades de lazer, estava atento

a sua missão de homem religioso. Para a confraria dos radioamadores criou uma oração específica, sublimando, dando um significado espiritual a esta singular forma de comunicação entre pessoas:

ORAÇÃO A SÃO GABRIEL

Glorioso Mensageiro São Gabriel, padroeiro dos radioamadores, enquanto aquecem os filamentos, saúdo-te, reverente modulando para ti meu primeiro QSO. Abençoa meu ―chasque‖, com toda a ―tripulação‖. Inspira-me ao microfone, a fim

de que meu DX e QSO sejam proveitosos e sirvam, para, em espírito de fraternidade cristã, aproximar os homens. Defende-me em meio aos ―estáticos‖ da vida, para que não enfraqueçam meus esforços e jamais entre em QRT no caminho do Bem. Ampara meus ―torpedos‖, para que recebam do Céu boa acolhida e pronta constatação. Faço o propósito de tratar aos outros assim como desejo ser tratado. Agradecido e em QRV para a Divina Providência. Amém (Rodrigues, 2001).

O bispo radialista

Dom Luiz de Nadal foi em toda a sua vida um homem dinâmico e criativo, escolhendo o rádio como instrumento para transmitir sua mensagem. Desde seus primeiros tempos como sacerdote ligou- se a esse meio de difusão, criando programas para diferentes segmentos da população como ―Histórias do Tio Valeriano‖, ―Primeira Oração do Dia‖, a ―Hora do Angelus‖, entre outros, sempre com grande audiência.

Uma das primeiras providências de Dom Luiz Felipe de Nadal, assim que tomou posse como bispo titular de Uruguaiana, foi tentar conseguir uma emissora de rádio para a Diocese. Foi uma longa e difícil jornada, mas que serviu para provar sua criatividade e tenacidade.

Em 22 de maio de 1957, foi assinado contrato para a criar a sociedade por cotas ―Rádio São Miguel Limitada‖, com sede em Uruguaiana, sendo seus atos constitutivos devidamente arquivados na Junta Comercial do Estado sob o no. 100.233, em sessão de 7 de outubro de 1957 e registrado no Cartório de Títulos

e Documentos da Comarca de Uruguaiana, no Livro ―A‖ nº 2 do Registro de Pessoas Jurídicas, a fls. 17 sob o número 79. Para atender a legislação específica, que só admitia pessoas físicas, foram os quotistas instituidores da Rádio São Miguel: Dom Luiz Felipe de Nadal, Monsenhor Leopoldo Khun e

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Dom Luiz Felipe de Nadal 73

Heitor Rossato. No aditivo ao mesmo contrato firmado em 4 de janeiro de 1958, publicado no Diário Oficial do Estado de 9 de janeiro de 1958, devidamente arquivado no Junta Comercial do Estado, sob n o 102.539 em

sessão de 10.3.1958, o quotista Heitor Rossato é substituído pelo Pe. Abramo Dezem. A Comissão Especial da Faixa de Fronteiras, vinculada ao Conselho de Segurança Nacional, autoriza essa alteração no contrato social ―[...] em sessão de vinte e três de junho de 1961, decidiu nada haver ou opor quanto à segurança nacional a que a Rádio São Miguel Limitada, constituída dos sócios Luiz Felipe de Nadal, Leopoldo Khun e Heitor Rossato, brasileiros, e estabelecida no município de Uruguaiana, Estado do Rio Grande do Sul, altere seu contrato social com a substituição do sócio Heitor Rossato por Abramo

Dezem. A Comissão Especial da Faixa de Fronteiras, vinculada ao Conselho de Segurança Nacional assim se pronunciou:

[...] em sessão de vinte e três de junho de 1961, decidiu nada haver ou opor quanto à segurança nacional a que a Rádio São Miguel Limitada, constituída dos sócios Luiz

Felipe de Nadal, Leopoldo Khun e Heitor Rossato, brasileiros, e estabelecida no

município de Uruguaiana, Estado do Rio Grande do Sul, altere seu contrato social

com a substituição do sócio Heitor Rossato por Abramo Dezem [...] (Conselho de

Segurança Nacional, 1961).

Fazia parte da prática administrativa de Dom Luiz assessorar-se de pessoas competentes e assim o fez na área técnica tendo em vista a instalação da Rádio São Miguel.

O projeto técnico foi elaborado pelo renomado engenheiro Homero Carlos

Simon, da Rádio Guaíba de Porto Alegre. Diz ele no preâmbulo ―O presente

estudo, refere-se à instalação de um sistema de onda direcional, na cidade de

Uruguaiana, Rio Grande do Sul a ser utilizado pela Rádio São Miguel, na

freqüência de 1.210 Kc/s., com 1,00/0,25 kw, de acordo com o parecer 373/61 da

Comissão Técnica de Rádio.

No projeto o autor deixa claro o objetivo da Rádio São Miguel:

Consta do elenco da programação da Rádio São Miguel de Uruguaiana, como

objetivo básico, a escolarização através de sua onda das populações daquela região

do Estado. Com tal objetivo social seria digno considerar um projeto técnico que

possibilite, dentro das limitações da concessão a maior cobertura possível em

território nacional (Simon, 1961, p. 2).

Dom Luiz tinha em mente operar uma emissora de rádio para o

desenvolvimento educacional e cultural de seus diocesanos. Como a sua Diocese ocupava uma faixa de território ao longo da fronteira Brasil-Argentina, com a imaginação criativa que o caracterizava, solicitou a um dos mais competentes engenheiros eletrônicos do Rio Grande do Sul, Homero C. Simon,

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74 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

a viabilização de uma emissora com onda direcional para cobrir o território de sua diocese. Simon (1961), assim registra, no projeto, essa pretensão:

Ora Uruguaiana situa-se a menos de uma dezena de quilômetros da República

Argentina e a utilização de um sistema irradiante clássico, constituído de uma só torre

de radiodifusão só poderia promover uma cobertura omnidiricional, e,

conseqüentemente em grande parte dentro do território argentino. Ocorre, portanto, de imediato, a idéia de utilização de um sistema direcional, cujo aproveitamento da

potência permitida seja a maior possível dentro do território brasileiro.

Por esta razão, a Rádio São Miguel estudou o problema com dois propósitos

principais: máxima cobertura dentro do Estado compatível com as limitações técnicas

ditadas pela douta Comissão Técnica de Rádio que regula assunto desta natureza, com

vistas a um aproveitamento máximo do espectro de radiodifusão e proteção mútua da

rede nacional de radiodifusão (op. cit., p. 3).

Assim, depois de uma luta de sete anos nos campos jurídico, econômico, administrativo e técnico, no dia 1° de maio de 1963, no dia do trabalhador e do seu aniversário, Dom Luiz inaugurou a Rádio de seus sonhos: a Rádio São Miguel, que existe até hoje com grande penetração em toda a região da fronteira. Agora Dom Luiz dispunha do sempre sonhado recurso para falar com seus diocesanos, liderar campanhas para os mais necessitados, estimular a cultura,

divulgar o tradicionalismo e, principalmente, proporcionar educação de base para o homem do campo e da cidade, através das escolas radiofônicas.

O médico e companheiro de radioamodorismo, o Dr. Manuel D‘Arriaga (2000) assim comentou sobre o envolvimento de Dom Luiz na criação da rádio.

Você sabe que a emissora ―quero-quero‖ até hoje o prefixo continua aquele que ele captou indo no interior com gravador para ouvir o grito do quero-quero, é o que usa até hoje a Rádio São Miguel. Essa rádio foi criada com o objetivo

muito especial: educativa. Era educação para a campanha. Foi um programa extraordinário que infelizmente já não existe mais [...]

O projeto de Dom Luiz para a Rádio São Miguel era consistente, dosando qualidade e inovação.

Utilizou na época, o que hoje a moderna administração chama de ―Benchmarking‖, quer dizer, copiar a excelência. Pois bem, Dom Luiz tomou por modelo a Rádio Guaíba, emissora padrão na década de sessenta, utilizando os seus profissionais para seleção de locutores. Por exemplo, Milton Braz Rubim, primeiro

locutor da Rádio São Miguel, foi selecionado após um concurso de locução organizado e executado por profissionais da Rádio Guaíba. Assim como a emissora espelho, a Rádio São Miguel não adotava ―gingles‖ na propaganda.

O arrojo e a criatividade da jovem rádio pode ser comprovada pelo depoimento abaixo:

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Dom Luiz Felipe de Nadal 75

Tão arrojada era sua iniciativa nos meios radiofônicos que levou sua emissora até o

Vaticano e conseguiu transmitir as cerimônias de coroação do Papa João XXIII.

Foi algo tão importante e inédito que todos que na época testemunharam, lembram

até hoje essa transmissão (D‘Arriaga, cit,).

Dom Luiz, homem de comunicação e ligado aos comunicadores, sempre aproveitou as oportunidades para atrair as pessoas à pratica religiosa. Para tanto, introduziu na vida católica do nosso Estado a ―Comunhão dos Radialistas e Jornalistas‖, anualmente celebrada no dia 29 de outubro.

Walter Spalding (1969, p. 154), registrou um momento significativo do relacionamento de Dom Luiz com comunicadores gaúchos: ―Especial atuação teve no Congresso dos Jornalistas Gaúchos, realizado em Livramento, do qual foi presidente de honra, tendo num inesquecível discurso de encerramento,

feito uma modelar profissão de fé jornalística‖. Dom Luiz também praticou jornalismo, tendo sido assíduo colaborador do

Jornal do Dia.

O bispo poeta

O apoio dispensado por Dom Luiz Felipe aos movimentos tradicionalistas não se limitava somente a sua presença nos principais eventos do Estado. É autor de várias poesias e até orações com termos gauchescos que foram e são, até hoje, revividas em atos religiosos de cunho tradicionalista, inclusive aqui em nosso meio, pois são muitos os sacerdotes, hoje, que rezam, a ―Missa Crioula‖. Dom Luiz foi admitido como membro da Estância da Poesia Crioula, que é a Academia de Letras dos vates e prosadores nativistas gaúchos. A

seguir, transcrevemos a ―Prece do Gaúcho‖, escrita por Dom Luiz com a colaboração do Padre Paulo Aripe, o ―Potrilho de Padre‖, por ele ordenado:

PRECE DO GAÚCHO

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e com licença do Patrão Celestial.

Vou chegando, enquanto cevo o amargo das minhas confidências,

porque, ao romper da madrugada e ao descambar do sol, preciso camperear por outras invernadas e repontar do Céu a força e a coragem para o entrevero do dia que passa.

Eu bem sei que qualquer guasca, bem pilchado, de faca, rebenque e esporas, não se afirma nos arreios da vida, se não se estriba na proteção do céu.

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Ouve, Patrão Celeste, a oração que Te faço, ao romper da madrugada e ao descambar do sol.

Tomara que todo mundo seja como irmão! Ajuda-me a perdoar as afrontas

e a não fazer aos outros o que não quero pra mim. Perdoa-me, Senhor, porque rengueando pelas canhadas da fraqueza

humana, de quando em vez, quase sem querer, eu me solto porteira-a-fora. Eta, potrilho chucro, renegado e caborteiro... Mas eu Te garanto, meu Senhor, quero ser bom e direito.

Ajuda-me, Virgem Maria, primeira prenda do Céu. Socorre-me, São Pedro, capataz da Estância Gaúcha.

Pra fim-de-conversa, vou Te dizer, meu Deus, mas somente pra Ti: que

Tua vontade leve a minha de cabresto pra todo o sempre e até a querência do Céu. Amém (Spalding, 1969, p. 154).

O amigo das crianças

Dom Luiz foi, podemos afirmar, um apóstolo das crianças, cuja linguagem

sabia falar, Grande parte de seus programas radiofônicos a elas se destinava. Em Porto Alegre, como cura da Catedral Metropolitana dedicava a missa das nove de Domingo às crianças. A seguir apresentamos um depoimento para mostrar como as crianças daquela época encaravam essa proposta pastoral:

O Dom Luiz, eu lembro perfeitamente dele, lá na minha infância, lá, eu acho que pelos

8 anos idade, 7, 8, 9, 10, por aí, e que ele rezava na Catedral Metropolitana a missa das

nove, que era a missa das crianças. Então ele tinha uma professora, uma senhora que

até eu chego a enxergar essa pessoa assim, eu não lembro o nome dela eu lembro

perfeitamente dela com véu na cabeça, tudo isso aí, ela como auxiliar então ela cantava

conosco. A missa era toda cantada e a gente era preparada para aquilo ai, tinha uma série de atividades e o Dom Luiz de Nadal, ele rezava a missa muito sorridente sempre.

Eu me lembro da figura sorridente e que para nós as crianças era uma coisa assim

muito boa. Era tão boa essa missa que eu me lembro que no Domingo a minha mãe me

dizia assim: ―quem sabe se tu vai numa missa mais tarde e a gente podia dormir um

pouco mais‖ e eu não, eu tinha que ir na missa das nove, que era rezada por ele. E

depois eu já tinha feito a primeira comunhão também que ele orientou, e eu tinha que ir

na missa que ele rezava e comungar a gente se confessava, todo aquele ritual tomava

comunhão (Pereira, 2001).

Enquanto pároco da Catedral Metropolitana, Dom Luiz estabeleceu parcerias com as escolas confessionais e públicas com o objetivo de aproximar os alunos da prática religiosa. Este contato produziu resultados e uma grande amizade se estabeleceu entre o pároco e os alunos. O depoimento abaixo

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registra a homenagem a Dom Luiz, na despedida, quando deixava a Catedral Metropolitana para assumir o bispado em Uruguaiana:

Dom Luiz eu me lembro assim, como eu estudei no ―Paula Soares‖, o ―Paula

Soares‖ era escola vizinha, ele tinha muitas atividades com o ―Paula Soares‖. Eu me lembro assim de uma vez quando ele iria para Uruguaiana, eu lembro da nossa despedida pra ele foi da Cripta da Catedral. Por que foi na cripta eu não sei, mas eu sei que foi na cripta. Eu não sei o motivo, isso me escapa. Impressionante, eu nunca tinha ido à cripta. Eu lembro dele sentadinho, recebendo a homenagem. E nós crianças do ―Paula Soares‖ eu lembro que nós aprenderemos uma música do Tio Valeriano:

Lá vai Dom Valeriano

de mitra à cabeça

e cajado na mão.

Lá vai Dom Luiz

cumprir sua missão (Pereira, 2001).

Como cura da Catedral Metropolitana, utilizando a sua capacidade criativa e ação criadora, organizou a preparação para a primeira comunhão para crianças precoces, a quem chamou de ―Anjinhos de Pio X‖. Essas comunhões eram realizadas anualmente para crianças a partir de 3 anos, cujos pais também fossem comungantes.

Já em Uruguaiana, como bispo diocesano, no Natal de 1955, Dom Luiz organizou um ato religioso em homenagem ao Menino Jesus, que reuniu num estádio de futebol 10.000 pessoas, sendo que 6.000 crianças receberam presentes.

Transcrevemos a seguir o registro de um jornal da época: Inegavelmente, a Festa de Confraternização de Natal organizada e levada a

efeito pelo Bispado de Uruguaiana, sexta-feira à noite no Estádio ―Eurico Lara‖, soube constituir um acontecimento inédito entre nós e assumiu contornos impressionantes, não só pelo significado de que se revestira, como pelo brilhantismo e volume de assistência que a prestigiou com a sua presença.

A festividade, transmitida pela Rádio Charrua e ―Voz da Fronteira‖, esteve

além de toda expectativa, pois a música executada pela Banda Militar, os cânticos entoados por centenas de crianças, as representações do nascimento de Jesus, em todos os seus quadros desde a mangedoura até a adoração pelos três Reis Magos, inclusive a presença na estrebaria de animais domésticos, a revoada dos anjinhos, a narração do grandioso e universal evento, ao microfone, por S.Excia. Rvdma. D. Luiz Felipe de Nadal, dd. Bispo Diocesano, tudo, enfim, esteve à altura do memorável e histórico acontecimento, agradando imenso ao numeroso público que

superlotou todas as dependências do Estádio aurinegro.

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78 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Foi, enfim, uma festa maiúscula, pelos objetivos e pelo deslumbramento, festa de

encantamento e deleite espiritual, que há de ficar assinalada nos fatos da história

sócio-religiosa de Uruguaiana e que, fazemos votos, repita-se anualmente para maior

confraternização da nossa gente e glória maior do Redentor da Humanidade

(Confraternização, 1955, p. 1).

Além de cuidar da educação e da formação religiosa da infância, Dom Luiz

também se preocupava com a sua saúde, para tanto participava e emprestava o seu prestigio pessoal na realização de campanhas de educação sanitária voltadas para a infância. Exemplo disso é a notícia recortada de um jornal da época que demonstra a sua participação em campanhas de saúde pública, tendo a criança com centro da atividade:

Sob os auspícios do Centro de Saúde e Legião Brasileira de Assistência, com a

colaboração do Serviço Especial de Saúde Pública, a Semana da Criança, cujo

encerramento verificar-se-á no próximo dia 17 do corrente.

Iniciando-se, proferiu, ontem as 8:30 horas, no Centro de Saúde, interessante

palestra a visitadora Sanitária D. Rosa assistida por um numeroso grupo de mães e

que teve como tema o esclarecimento da Semana da Criança. As 12 horas ocupou o

microfone da Rádio Charrua Dom Luiz Felipe de Nadal D. D. Bispo Diocesano que

pronunciou admirável palestra aos pais e filhos (Inaugurou-se, 1955, p. 1).

No Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955, fez uma alocução especial para as crianças, muito bem recebida.

O bispo piloto

Homem de ação, amigo da locomoção rápida, Dom Luiz de Nadal ―brevetou-se‖ como piloto civil. Conforme depoimento do Padre João Righi (2001), Dom Luiz pretendia usar o avião como meio de encurtar a distância entre o bispado e as suas paróquias.

Dom Luiz, relata o radialista Milton Souza, acertou com Jorge Japur, diretor da Rádio Quaraí, fazer a benção da emissora. No dia e hora aprazados

o radialista aguardava o bispo para a benção e nada do bispo chegar. Eis que de repente um teco-teco sobrevoa a rádio. Era Dom Luiz com alto-falantes instalados na aeronave anunciando que daria a benção do ar. E assim o fez. Abençoou a rádio e a cidade toda. Os transeuntes ajoelhavam-se nas ruas de Quaraí para receber a benção do bispo voador.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 79

O líder criativo e inventivo

Dom Luiz foi, incontestavelmente, um líder. Essa liderança manifestou já na sua juventude quando ainda era estudante. O depoimento do Padre Marobim (2001), seu conterrâneo, ilustra muito bem sua precocidade na habilidade de liderar:

Outro traço inconfundível de Dom Luiz Felipe de Nadal era a liderança natural. De

porte alto, atlético, olhos azuis, com grande facilidade de expressão, de imediato

cativava os interlocutores. A liderança começou cedo, com os colegas seminaristas da

região. Nas férias, ele era o líder que organizava as festas nas paróquias vizinhas. Uma

vez organizou um passeio com um velho caminhão para a Paróquia de Nova Roma, onde era pároco um parente seu, Pe. José Ben. Programou uma liturgia solene. O

público ficou entusiasmado com o brilho litúrgico das cerimônias religiosas orientadas

pelos futuros sacerdotes.

O Padre Marobim (2001) complementa, indicando de uma forma muito precisa como a capacidade de liderança se apresentava no jovem estudante associada à inventividade e à capacidade de motivação:

Nas férias encenava, com seus colegas de seminário, pequenas peças teatrais, que

encantavam o público. Tinha grande capacidade de organização, de criar iniciativas em

que os jovens da região tomavam parte lado a lado com os seminaristas. Os

seminaristas mais jovens sentiam-se estimulados em prosseguir na sua vocação

sacerdotal. Daí o grande índice de perseverança desses futuros sacerdotes. Dentre eles

houve eminentes figuras do clero do Rio Grande do Sul.

A dinamicidade, a criatividade e a liderança são traços da personalidade de

Dom Luiz que irão acompanhá-lo por toda vida. Na direção da Diocese, criando paróquias, escolas, rádio, faculdade, superando as dificuldades inerentes e mobilizando pessoas para a sua concretização demonstram a efetiva prática desses atributos pessoais.

Para confirmar o que foi afirmado sobre esse aspecto marcante da personalidade de Dom Luiz, trazemos um precioso depoimento do Cônego Abramo Dezem (1999) que com ele colaborou na administração do Seminário, da Rádio e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras:

Por ser dotado de uma forte personalidade, ele exerceu sensível influência entre os seus padres e colaboradores mais próximos. Quando atingida a realização de um projeto,

mergulhava num permanente estado de ―incubação‖. Vivia-se num clima de constante

e aguda inquietação, até dar à luz um novo projeto. Sentia-se em incessante ebulição

mental. Ele se rebelava contra o imobilismo. Eu lhe observei mais vezes que parecia

sentir-se contagiado por uma ―sarna‖, visto que entrava em situação de irrequieta

criatividade. Ele não se acomodava.

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80 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Espírito esportivo

O espírito jovial de Dom Luiz, essa permanente disposição para a alegria, se associa ao espirito esportivo. E o padre Marobim (2001) que nos dá a primeira informação:

Dom Luiz Felipe de Nadal tinha tudo para ser esportista. De corpo robusto e atlético,

cultivava as longas caminhadas, as pescarias e a caça. Conseguiu um velho mosquetão

do Exército e nas férias instalava-se no alto do sarandi com as ramagens sobre as águas

do rio Taquari. Lá aguardava a passagem dos grumatás. A cada estampido, que

reboava ao longe nas encostas das montanhas, um grumatá virava de lado morto, boiando na água. Era tão hábil na mira que derrubava abacates das árvores altas,

acertando apenas o pedúnculo que prendia o abacate ao ramo.

Na Fronteira Oeste corria a fama da pontaria certeira do bispo. Ele atirava com as duas mãos, e com facilidade abatia perdizes em pleno vôo. Domingo à tarde, era hábito de Dom Luiz ir às estâncias de Uruguaiana para caçar perdizes. Muitos foram seus companheiros, mas o Irmão Thiago, do Colégio Sant‘Ana foi

certamente o mais assíduo. Longe de casa e do campo, Dom Luiz não resiste a exercitar-se no tiro-ao-

alvo, protagonizando uma cena insólita como nos conta o Padre Marobim (2001):

Essa habilidade na caça, no intervalo de uma das sessões do concílio Vaticano II em

Roma, na década de 60, lhe causou sérios aborrecimentos. Um dia pegou uma arma de

caça, saiu a passeio pela praça de São Pedro e começou a abater pombas que esvoaçavam nas proximidades das colunatas. Imediatamente vieram os ―carabinieri‖, a

polícia e cercaram o estranho caçador. As mulheres lhe gritaram: ―No ucciderle, sono e

si carine‖ — Não mate as pombas, reverendo, são tão carinhosas‖.

Dom Luiz freqüentava amiúde o aeroclube de Uruguaiana onde tinha grandes amigos como Sadi Sanchotene e o Dr. Cleber Bidegain Pereira, entre outros. E, como nos diz o Padre Marobim (2001): ―O espírito esportivo o levou a tirar licença de pilotar pequenos aviões no interior do estado do Rio Grande do Sul‖.

A cozinha e a música também faziam parte de suas atividades de lazer. Dizem seus amigos que era insuperável na preparação de perdizes ao escabeche. O instrumento musical que tocava era o violão.

O comunicador

Indiscutivelmente, uma das notas mais características de Dom Luiz foi sua criatividade. Esta qualidade manifestou-se na constante curiosidade, no senso de humor, extensão de interesses, na visão empática dos outros, Mas é no nível

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expressivo que a criatividade se manifesta de forma mais notável e intensa, pois sua ação educativa e pastoral foi uma constante descoberta de novas formas de expressar vida e alegria e principalmente a mensagem do evangelho.

O extrato do depoimento de Padre Marobim (2001), transcrito a seguir, demonstra a versatilidade de Dom Luiz em se comunicar com diferentes segmentos da população, em diversas regiões:

Outro traço relevante de seu rico perfil era a comunicação. Comunicava-se com extrema facilidade com as crianças, com os jovens e com os adultos. Em toda parte onde esteve, na Capela do Rosário, na Paróquia de Santa Cecília de Porto Alegre, na Catedral de Porto Alegre, em Uruguaiana, nos campos da região da fronteira, Dom Luís Felipe de Nadal deixou fama de grande comunicador. As

suas apresentações nas rádios eram ouvidas em todo o Rio Grande. A ação comunicativa de Dom Luiz trazia em si a capacidade mobilizadora,

atraía as pessoas para os seus objetivos:

Quando foi nomeado Pároco da Catedral de Porto Alegre, organizou uma missa

especial para as crianças. No começo, umas pessoas idosas estranharam o barulho.

Pouco tempo depois, as próprias crianças se encarregavam de levar os pais para a

Missa. As grandes celebrações do ano litúrgico eram encenadas pelas crianças. As Missas eram irradiadas para todo o Rio Grande. Num Natal, na Diocese de

Uruguaiana, chegou a lotar um estádio de futebol. O atrativo principal foi a encenação,

pelas crianças, das cenas principais da gruta de Belém (Marobim, 2001).

O Padre Marobim (2001), retorna ao nosso texto, para colocar a grande finalidade percebida em todo o esforço de Dom Luiz em relacionar-se comunicativamente com as pessoas:

Com a sua grande capacidade de comunicação, tornava simpáticas as idéias Centrais da Religião — Deus Uno e Trino, a Redenção, a salvação, a prática

religiosa. Dom Luiz Felipe de Nadal sabia envolver o interlocutor de todas as classes, crianças, adultos, intelectuais, gente do campo e da fronteira. O dom da comunicação era empregado para levar os homens para Deus.

O bispo cidadão

Em Dom Luiz, o bispo e o cidadão se confundiam. As coisas da cidade lhe diziam respeito. Soube usar sua posição privilegiada para influenciar e para realizar ações no sentido de melhorar a qualidade de vida de seus concidadãos. A participação, fundamento da cidadania e da democracia, foi vivenciada exemplarmente por ele. Sua ação cívica atingiu vários setores da vida pública. Em nível local, o ex-prefeito Chiarello (2001) exemplifica: ―Ainda com o mesmo entusiasmo que o caracterizava, Dom Luiz fundou, organizou e presidiu o

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82 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Conselho da Comunidade, visando — e conseguindo em parte — a unificação da sociedade local em torno de aspirações e reivindicações‖.

O mesmo ex-prefeito nos informa sobre a participação de Dom Luiz em

organismos de representação regional:

Após reuniões preliminares feitas em alguns municípios da Fronteira-Oeste, o saudoso deputado Ruy Ramos e eu elaboramos, (em Botafogo, Rio, onde ainda era a capital) o

projeto de lei que criava a Superintendência de Valorização Econômica da Fronteira

Sudoeste. Para garantir os votos dos deputados das demais regiões fronteiriças, o

projeto teve ampliada a sua área de ação. A superintendência ficou conhecida como

SUDESUL e deveria ter, em seu Conselho, um representante do Rio Grande do Sul.

Sugeri ao então Governador Leonel Brizola o nome de Dom Luiz Felipe de Nadal. O

governador o aprovou e Dom Luiz foi designado Conselheiro da SUDESUL, função

que desempenhou com assiduidade e grande brilho. Foi da SUDESUL, aliás que,

atendendo a pedido oficial meu, o Dr. João Goulart consignou os recursos para a

construção das casas da chamada Vila Ruy Ramos, construídas pela Prefeitura, em

minha gestão. E Dom Luiz, como conselheiro, deu o seu apoio (Chiarello, 2001).

Dom Luiz foi um dos fundadores e incentivadores da Frente Agrária Gaúcha. Também dedicou-se à causa da recuperação das terras da fronteira gaúcha, sendo

membro do Conselho de Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste. O texto abaixo ilustra o nível de colaboração e o grau de amizade que se

estabeleceu entre o bispo e o então prefeito de Uruguaiana Antônio Chiarello (2001) narrado por este:

[...] quando Dom Luiz de Nadal vinha a Porto Alegre, no meu tempo de prefeito,

telefonava-me oferecendo-se para tratar de qualquer assunto de interesse da

Prefeitura nos escalões oficiais da capital. E concluía dizendo, em brincadeira, que

deixava a Diocese em minhas mãos. E eu, quando viajava, procedia da mesma

forma, afirmando que deixava em suas mãos os destinos do município.

Sobre a vida cívica de Dom Luiz, Chiarello (2001) no seu panegírico, por ocasião das exéquias, foi concludente:

[...] foi o cidadão perfeito, que se integrou e se enraizou por inteiro na vida da sua

Comunidade e deu por ela o que de melhor tinha, o seu coração. Soube, como

ninguém, transmitir aos seus concidadãos as inquietações benéficas do seu espírito

superior e, como ninguém, soube também despertar o sentimento coletivo para a

prática do Bem, do Amor e da Igualdade.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 83

Homem de Deus

Para uma adequada compreensão da trajetória de Dom Luiz, temos que ter presente a sua opção pela vida religiosa. Durante toda a sua vida, seja como estudante, como pároco ou como bispo, seus empreendimentos sempre tiveram uma meta muito bem definida: aproximar os homens de Deus. Espiritualidade, onde se destaca a devoção por Nossa Senhora Conquistadora e Miguel Arcanjo, e idealismo irão embasar a sua ação pastoral. Nesse sentido, o depoimento de seu colaborador Cônego Abramo Dezem (1999) é muito significativo:

Com respeito à sua trajetória religiosa e pessoal, marcada por conflitos e vitórias,

demonstrou extraordinária capacidade de recuperação pessoal, não apenas por ser

dotado de talentos especiais, mas, sobretudo, por sólido embasamento espiritual.

Personalidade fora de série, extremo poder de decisão, destemido, irrequieto

perante o imobilismo frente aos problemas, antevia os acontecimentos por uma

permanente postura profética. Em permanente ebulição mental, vivia sempre

―sonhando‖. Dos sonhos eclodiam os projetos que, depois de debatidos, se

converteram nas principais realizações do seu episcopado.

Dom Luiz compreendeu a situação econômica e social dos seus diocesanos e movido por afeição humana e compromisso cristão, corajosamente, aplica os

fundamentos da Doutrina Social da Igreja e as recentes orientações do Concílio Vaticano II, optando por uma ação pastoral com vistas à realização da justiça social e do ideal evangélico da vida plena. O depoimento a seguir é esclarecedor:

Dom Luís, chocado pelos sofrimentos do seu rebanho, especialmente após seu retorno do Concílio Ecumênico Vaticano II, fez clara sua evangélica opção preferencial pelos pobres. Apesar de cercado pelo conservadorismo das classes dirigentes, não teve medo de pautar sua ação pastoral com o compromisso pela

justiça social. Este fato lhe causou períodos de isolamento. Mas este marasmo não o impediu de romper os entraves à sua ação evangelizadora.

Visão profética, inconformismo face ao estado de pobreza do seu povo, criatividade arrojada e surpreendente, paciente confiança em Deus e na

capacidade da população, mesmo quando parado, conservou-se sempre de

―motor‖ ligado aos compromissos por uma sociedade mais justa e solidária

(Dezem, 1999).

Sobre Dom Luiz enquanto pastor, investido do ministério episcopal, teve do então prefeito Chiarello (1963), a seguinte apreciação: ―Dom Luiz Felipe de Nadal foi o Bispo virtuoso, zeloso pastor do seu rebanho, guia e mestre magnânimo dos seus milhares de diocesanos. Mas foi, ao mesmo tempo, o homem puro, bom e simples, que amou a todos e por todos foi compreendido e amado‖.

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Para completar a exposição sobre a percepção das pessoas sobre o religioso que Dom Luiz encarnou com tanta propriedade, julgamos oportuno trazer o depoimento de uma pessoa que foi sua paroquiana nos tempos de

Santa Cecília: ―Mas eu acho que naquela calma, naquela tranqüilidade tinha amor, a gente sentia solidariedade, [...] Ele parecia muito próximo de Deus‖ (Azevedo e Souza, 2001).

O bispo educador

Na área educacional Dom Luiz revelou-se líder, empreendedor e estrategista: optou iniciar sua obra educacional pelo ensino superior, para formar líderes cristãos e preparar recursos humanos qualificados para implementar seus projetos, especialmente, o da educação popular, através das escolas radiofônicas.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Uruguaiana

Nos anos da década de 1950, Uruguaiana sentia necessidade de ter seu

ensino superior. Naquela época começavam a florescer as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de São Leopoldo, Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria e Santa Cruz do Sul, impulsionados pelos bispos e pelos licenciados da PUCRS, escreveram os irmãos Faustino João e Elvo Clemente (1997, p. 228).

Antes da posse como bispo da Diocese de Uruguaiana, Dom Luiz escreveu uma Carta Pastoral onde declarou a sua intenção. O Dr. Dirceu Cachapuz de Medeiros encarregou-se de divulgar o ambicioso plano de Dom Luiz para a Região da Fronteira Oeste desprovida de uma instituição de ensino superior:

Tivemos o prazer de ler essa Pastoral, ainda não distribuída, em mãos do amigo P. Heitor Rossato.

Efetivamente, é um documento que testemunha os firmes desejos de D. Luiz

Felipe de ―dedicar-se inteiramente à Diocese que a Divina Providência lhe confiou‖.

E mais, é um documento que atesta a nítida compreensão de S. Excia. sobre as

reais necessidades do meio em que vai atuar.

Estão de parabéns os intelectuais e a mocidade estudiosa de Uruguaiana, pois

o novo Bispo propõe-se envidar esforços para a fundação de cursos superiores

nesta cidade.

Diz ele textualmente: ―E propósito nosso iniciar em Uruguai- ana alguns cursos

superiores que, no andar do tempo, possam se transformar numa Universidade da

Fronteira‖ (O Novo, 1955, p. 1).

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Dom Luiz Felipe de Nadal 85

Ante a iniciativa de Dom Luiz Felipe de Nadal de criar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Uruguaiana, houve vibração e apoio de Uruguaiana e de cidades vizinhas.

Os irmãos maristas Faustino João e Elvo Clemente (1997, p. 230) assim escreveram sobre o nascimento da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Uruguaiana:

A idéia foi propalada e iniciativas foram sendo tomadas, maxime nos anos de

1957/58 para ocasionar o surgimento da primeira faculdade da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Dificuldades mais diversas foram surgindo. Entretanto, o arrojo e

o pioneirismo de Dom Luiz Felipe de Nadal souberam contorná-las, sempre com

acentuado entusiasmo. Um dos maiores entraves inicialmente encontrado foi, sem

dúvida, a inexistência de uma mantenedora. Para constituí-la associaram-se as

seguintes entidades: Mitra da Diocese de Uruguaiana, Ordem Carmelita, Sociedade

Meridional de Educação, Filhas de Nossa Senhora do Horto, Filhas do Amor Divino,

Pia Sociedade das Filhas de São Paulo, e Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado. A

associação denominou-se inicialmente Consórcio Universitário Fronteira Oeste.

Posteriormente passou a chamar-se Consórcio Educacional Fronteira Oeste.

A definição e a finalidade desse consórcio constam do Artigo. 1º de seus estatutos:

Art. 1º — É uma associação civil, sem intuito lucrativo, que se destina a fundar e manter dentro dos limites da Diocese de São Miguel de Uruguaiana, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, estabelecimentos de Ensino Superior, isolados ou constituídos em Universidade, na forma da legislação em vigor.

Os objetivos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foram assim

explicitados por Dom Luiz Felipe de Nadal (1959): a) dar a seus alunos sólida cultura superior, filosófica, científica e literária; b) habilitar os candidatos ao exercício do magistério secundário, normal e

superior; preparar trabalhadores intelectuais para o exercício de atividades culturais e técnicas;

c) contribuir para o definitivo estabelecimento da solidariedade humana, especialmente no campo social, moral e cultural em defesa da civilização cristã;

d) em face de situação geográfica privilegiada de Uruguaiana, incentivar o intercâmbio cultural com as nações vizinhas, para maior conhecimento mútuo e maior entrelaçamento de amizade dos respectivos povos.

O reconhecimento dos cursos da Faculdade aconteceu no dia 28 de novembro de 1958, pelo Decreto n. 44.915, assinado por Juscelino Kubitchek, Presidente da República, e por Clóvis Salgado, ministro da Educação e Cultura.

A Faculdade iniciou a funcionar com os cursos de Filosofia, História e Pedagogia, no dia 14 de março de 1959 com Aula Magna ―Sapientia‖, proferida

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no salão de atos da Prefeitura de Uruguaiana, pelo Prof. Comendador Dr. José Mariano da Rocha Filho, então Diretor da Faculdade de Medicina de Santa Maria. As aulas iniciaram a 15 de março de 1959 no colégio Sant‘ Ana.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Uruguaiana funcionou de 1959 a 1969, no Colégio Sant‘Ana, de propriedade dos irmãos maristas da Província de Santa Maria e, no seminário Sagrado Coração de Jesus, da Diocese de Uruguaiana, a partir de 1970.

Em 1966, a FAFIUR foi agregada a PUCRS e, em 1987, passou a integrar o Campus Universitário II da PUCRS em Uruguaiana. O ensino superior em Uruguaiana iniciado por Dom Luiz conta hoje com quatro Faculdades e 15 cursos.

Sobre a criação da FAFIUR, a Diretora, Profª. Maria de Lourdes Souza

Vilella (apud João e Clemente, 1997, p. 229) declarou:

Desde o início de sua atividade pastoral, percebeu a necessidade de ser criada, na Fronteira Oeste, uma Faculdade com vistas a uma Universidade, para promover o

aprimoramento cultural do grande número de estudantes, quer de Uruguaiana, quer

das cidades vizinhas, que, concluído o curso secundário, eram obrigados a deixar

sua cidade para buscar um curso superior ou, o que mais frequentemente ocorria,

eram obrigados a interromper seus estudos.

Dom Luiz envidou todos os esforços, lançou-se à tarefa da fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Uruguaiana, procurando enovelar a comunidade toda nessa causa, cuja finalidade era o crescimento da pessoa e conseqüente busca de desenvolvimento social, cultural e econômico.

Dom Luiz também cuidou do crescimento de sua Faculdade, conforme relato do ―Jornal a Fronteira‖, a Faculdade

Precisava ampliar seus cursos, estender seu raio de ação. Foi quando reunidos o Sr. Prefeito Municipal, o prof. José Gomes de Souza, o Dr. René Walter Cobelli, o Dr.

Gregório Beheregaray Filho, o Revdo. Padre Rubens Pilar, Vice-reitor e outros,

pensou-se em antiga palavra do Sr. Pedro Surreaux, abastado fazendeiro e homem de

negócio de nossa cidade. Consistia na doação de um terreno para esse propósito. De

imediato, a comissão visitou o Sr. Pedro Surreaux, tendo a grata confirmação do ato.

Contará agora a Faculdade com terrenos na zona de São Miguel fundos da Igreja do

mesmo nome. Tais terrenos são lindeiros com os da Mitra Diocesana, que, caso

necessário, poderão ser igualmente aproveitados.

O gesto de Pedro Surreaux é dos que merecem os encômios da população, e que bem o caracterizam. Permitirá a nossa Faculdade, o seu lugar próprio,

numa zona que progride diariamente, dotada que já está de boas casas comerciais e um excelente cinema. Atitudes como estas são dignas de todos os louvores, de vez que vivemos numa época de imediatismo, em que escasseiam

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Dom Luiz Felipe de Nadal 87

gestos de tanta nobreza e de tão simpática repercussão no seio de uma coletividade agradecida.

Dom Luiz e o ensino público

Sobre a participação de Dom Luiz, em relação ao ensino público, temos o seguinte depoimento do ex-prefeito Chiarelio (2001), num momento em que usou decisivamente sua autoridade episcopal:

Recebi, certa vez, em Uruguaiana, a visita do Dr. Justino Quintana, Secretário de

Educação do Estado. Queria falar com o Bispo sobre o seguinte: o Estado, através

de um plano chamado SEDEP (Serviço Descentralizado do Ensino Primário),

estava fazendo convênios com os Municípios para a construção de escolas primárias nas áreas rurais. Todos os municípios haviam assinado os convênios,

menos um, situado na área da Diocese de Uruguaiana. Lá, os colégios dos irmãos e

das irmãs, com apoio da igreja local, estavam pressionando o Prefeito a ficar fora

do convênio, Quem quisesse estudar, teria que ir até a cidade, onde os colégios

religiosos mantinham seus estabelecimentos e a exclusividade do ensino. Tão logo

lhe foi exposta a situação, Dom Nadal, sem hesitar, entrou em contato com a

autoridade religiosa daquele município e, com firmeza, disse que as crianças das

colônias tinham o mesmo direito ao estudo das crianças urbanas. Assim, o último

Prefeito assinou o seu convênio e o plano SEDEP construiu 5.902 escolas rurais.

Dom Luiz sempre esteve presente nos atos significativos de sua comunidade, emprestando o prestígio de sua posição para estimular o desenvolvimento do ensino público. O ex-prefeito CHIARELLO (2001) em poucas palavras sintetiza esse apoio: ―Em Uruguaiana, construí 42 escolas, em muitas das quais, Dom Nadal esteve presente nos atos inaugurais‖.

A sociedade magistério do ar e as escolas radiofônicas

O ex-prefeito de Uruguaiana, Antônio Chiareilo (2001), contemporâneo, amigo e colaborador de Dom Luiz nos informa sobre a intenção de Dom Luiz de implantar o projeto das escolas radiofônicas: ―Uma de suas mais fortes preocupações era a educação. Sempre teve em mente a realização de um plano: as Escolas Radiofônicas, isto é, o aproveitamento de uma emissora de rádio para difundir a instrução e a cultura, Várias vezes me falou nesse projeto‖.

―A Sociedade Magistério do Ar — SOMAR — foi mais uma das

instituições criadas pelo espírito inventivo do saudoso bispo Dom Luiz Felipe de Nadal, no ano de 1963‖, nos diz o Professor Hélvio Kotz (2001), ex-diretor da Rádio São Miguel.

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88 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Sobre os objetivos da Escola Magistério do Ar, o Prof. Kotz (2001), assim se pronunciou:

Queria Dom Nadal contar com um meio de comunicação que chegasse a todas as

casas de seus fiéis. A par de informar, dar entretenimento, queria também formar

as pessoas, principalmente as de camadas sociais menos favorecidas.

E aí entra seu ambicioso projeto das escolas radiofônicas, uma iniciativa primeira no sul do país. Tanto assim, que um dos ―slogans‖ que divulgava a SM dizia: ―Esta é a Rádio São Miguel de Uruguaiana, transmitindo em 1.210 kilociclos — Primeira na educação de base do sul do país‖.

A SOMAR e suas escolas radiofônicas se dedicavam a promover a alfabetização de adultos e fornecer-lhes os ensinamentos relativos ao ensino primário.

A sistemática de funcionamento das escolas radiofônicas era

surpreendentemente simples, iniciando por um processo de sensibilização. Sobre a estrutura e funcionamento das escolas radiofônicas assim se pronunciou o nosso entrevistado:

Era feita a motivação e mobilização nas comunidades de vilas e bairros e nas comunidades do interior.

Também eram selecionadas e treinadas as chamadas ―monitoras‖ que seriam como que as professoras a atuar diretamente com os alunos em cada sala da

informal escola radiofônica. Estas salas funcionavam em salas de casas de famílias, garagens, capelas, igrejas, clubes, sedes de CTGs.

Em cada uma delas havia um rádio, alimentado a pilhas, com freqüência fixa ou cativa que só captava a transmissão da Rádio São Miguel e que fora produzido e fabricado com exclusividade para o ensino por rádio pela Philips do Brasil, em São Paulo, com a supervisão de um especial amigo de Dom Luiz, o Eng. Homero Simon, já falecido, e na época, supervisor técnico da Rádio Guaíba.

O rádio a pilha tinha sua razão de ser: muitas das salas de aula não contavam com luz elétrica e os ambientes eram aclarados com lampiões.

O material didático objeto de cada aula e cada disciplina era produzido por uma equipe de professores constituída por Elvira Ceratti, Zilah Máscia, Eloilda Bilhalva, Nilza Canazaro e Evaldo Benvegnú. Os mesmos professores cuidaram também da transmissão propriamente dita das aulas, no horário de 20 às 22:00 horas de segundas às sextas-feiras.

Valendo-se de uma Kombi que fora doada para esse fim pela SUDESUL da

qual Dom Luiz era membro-conselheiro, a equipe fazia o trabalho de supervisão nas escolas radiofônicas.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 89

As escolas funcionavam a exemplo das regulares, sendo que para a aprovação era exigida a freqüência e avaliações. A condição de ingresso era a de idade: 14 anos ou mais.

Muitas pessoas, sem dúvidas, foram beneficiadas com o projeto que por ele, melhoraram sua condição de vida.

As escolas radiofônicas se anteciparam ao MOBRAL quando este surgiu em 1966. Como era de caráter nacional e obrigatório, ministrado com todo o apoio oficial, perderam sua razão de ser e o projeto foi encerrado (Kotz, 2001).

Incentivador das escolas católicas

Dom Luiz tinha um carinho todo especial pelas escolas católicas de sua diocese. Ele visitava sistematicamente essas escolas, orientando, estimulando os religiosos e religiosas que se dedicavam a esse ensino. Mas o centro de suas atenções sempre foram os alunos com os quais se encontrava periodicamente. A presença de Dom Luiz nas formaturas era assegurada, muitas vezes, como paraninfo. O Dr. Otoni Bastos (2001) nos relata sobre o relacionamento de Dom

Luiz com os estudantes das escolas católicas:

Eu lembro, recordo os idos de 1956, que eu era um menino com 12 anos de idade, vim para o Colégio Santana, internato, e ali conheci Dom Luiz Felipe de Nadal.

Ele costumava nos visitar, semanalmente, 10 dias no máximo. Lembro que,

quando o bispo chegava e entrava no corredor principal do colégio, todos os

internos tanto da divisão dos menores como dos maiores, eram mais ou menos

150, todos corriam, se achegavam. Isso preocupava muito os irmãos, porque

naquela época o bispo era uma autoridade. Dom Luiz era uma pessoa tão amável

que irradiava, ele tinha magnetismo. Até me emociono ao lembrar a pessoa

maravilhosa, nos achegávamos a ele. Ele tinha uma palavra, um gesto para cada

um daqueles que estavam ali. Ele tinha magnetismo pessoal.

Narrativa, no mesmo sentido, foi feita pela Drª Maria Helena Menna Barreto Abrahão, que estudou um ano em Uruguaiana, relativamente à atenção que Dom Luiz dava às alunas do Colégio Nossa Senhora do Horto, bem como ele era estimado por todas.

Ao mesmo tempo que Dom Luiz manifestava, concretamente, o seu apoio à educação religiosa das escolas católicas, desencadeou, de forma pioneira, em Uruguaiana, o Movimento Familiar Cristão. Para levar adiante esse projeto, colocou na coordenação do movimento casais de diferentes profissões, com sólida

formação cristã.

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90 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Traços da pedagogia de Dom Luiz

Para transmitir sua mensagem, Dom Luiz utilizou recursos e instrumentos diversos, mas também soube usar seus recursos pessoais. A música, o canto, o teatro e a encenação foram recursos pedagógicos largamente usados por Dom Luiz. Deve-se observar que Dom Luiz nunca atuou como regente de classe no ensino sistemático. Para os seus aprendizes, independente do conteúdo, a participação e o envolvimento sempre se realizavam de forma espontânea. A

existência de interlocutores sempre foi uma conquista. O lúdico, traço pedagógico coerente com o seu temperamento, sempre

esteve presente no seu fazer educativo. Mas a alegria era a nota mais marcante da sua maneira de ser e de fazer.

O depoimento da professora Vera Pereira (2001) confirma a ludicidade como um traço peculiar de sua forma de interagir com o público-alvo:

Eu o acho um grande educador. Hoje, assim, ele bateria um Paulo Freire. Bateria

fácil porque ele tinha uma coisa, por exemplo, Paulo Freire, um grande educador, é

pesado. Fala muito na dor, no sofrimento. E o Dom Luiz, Dom Valeriano, só coisa

boa, aquela coisa para criança para ser boa, para ser generosa. Até a confissão não

era pesada. Tudo era leve. Ele conseguia tornar tudo lúdico. [...] eu lembro daquela

batina voando e ele cantando conosco e aquela coisa assim, muito sorridente eu

lembro sempre do rosto sorridente dele [...]. Com a sua maneira de ser e atuar Dom

Luiz funda a ―Pedagogia da Alegria‖.

A professora Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza (2001), da Paróquia de Santa Cecília, segue a mesma linha de depoimento, reafirmando a presença do fator alegria como elemento constitutivo da ação pastoral e pedagógica do

bispo e educador:

Dom Luiz Felipe de Nadal faz parte da minha infância. Como paroquiana da Igreja Santa Cecília, lembro que sentia alegria que era renovada a cada Domingo pela manhã:

a gente esperava com ansiedade a hora da missa, porque tudo era tão empolgante.

A ―Pedagogia da Alegria‖ se concretiza no uso magistral do canto, da música, da expressão corporal, para cativar seus infantes paroquianos:

Tudo era alegre, muito cantado. Tudo era na base da música. A expressão do rosto, a

movimentação cênica, aquela coisa, não como Padre Marcelo. Jogo de corpo, a batina

voando, pano voando, não eram os braços. Parecia que era a roupa que voava. Parecia

que era a roupa, tudo era muito brilhante (Pereira, 2001).

Já a Professora Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza (2001), rememorando experiências de infância, com a sua atual compreensão das

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questões educacionais, considera Dom Luiz um grande educador. A Professora vai além, define o seu método, indica o paradigma educacional a que pertence e fornece informações preciosas sobre o seu temperamento. Eu penso que ele pode

ser considerado um grande educador. A metodologia dele era a do diálogo, da aproximação, da conquista. A corrente era bem humanista. Um Humanismo de fato e não é feito somente em alguns momentos. Para mim, um educador humanista o é sempre, todos dias.

Eu era muito pequena, mas no meu entendimento eu lembro: era calmo, uma tranqüilidade com vivacidade, com dinâmica. Ele tinha carisma. Tinha carisma. Era um espaço de conquista, a gente ia naturalmente à igreja, não somente ao Domingo às nove horas. Dava gosto ver aquelas crianças cantando

bem alto, bem entusiasmadas. Acho que a definição era carismático, pois era benquisto. Um humanista.

Influências

A principal fonte de inspiração de Dom Luiz para orientar sua ação pastoral

foi o Papa João XXIII que propunha uma adequação da mensagem evangélica às características culturais da população. A proposta do papa consistia basicamente em traduzir o evangelho ao nível do entendimento das classes populares. Nesta tarefa Dom Luiz foi bem-sucedido. A declaração de Dom Vicente Scherer (1963), abaixo transcrita, comprova esse entendimento:

D. Luiz não conheceu preocupações outras, fora das metas e dos deveres da missão

sacerdotal e episcopal. Segundo a linha luminosamente marcada pelo imortal Papa

João XXIII, procurou os modos e os métodos adequados para tocar a alma da gente

do nosso tempo e do campo preciso de sua atividade, tomando-lhe compreensível,

atraente e, por isto, aceita, a mensagem do Evangelho, com suas dulcíssimas

esperanças cristãs e seus austeros deveres morais. Daí o zelo carinhoso e o

estímulo perseverante que o rádio, o linguajar gaúcho, o cultivo dos usos e

tradições da terra, especialmente mantidas nos Centros de Tradições Gaúchas, de sua parte sempre tiveram.

Já, em relação à educação, segue a linha de Paulo Freire, conforme depoimento do Padre Abramo Dezem (1999):

Alfabetização de adultos, sob a inspiração do renomado pedagogo, Prof. Paulo

Freire e a exemplo do Movimento de Educação de Base, instalado pelos Bispos da

Igreja Católica do Nordeste. O SOMAR representou, por vários anos,

empreendimento inédito no sul do nosso País.

Além do já apontado Paulo Freire, exerceu grande influência em sua formação o profético Papa João XXIII e a transformadora experiência

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92 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

desencadeada em sua formação pelo Concílio Vaticano II.

A morte de Dom Luiz

Breve foi a vida de Dom Luiz e curto o seu apostolado. Morreu na pujança de seus 47 anos de idade, 23 de sacerdócio e 8 de episcopado. Sua morte teve grande impacto na imprensa da capital e do interior que registrou os fatos e a repercussão da tragédia. Em consequência de sua longa atuação nos meios populares do Rio Grande do Sul, inclusive no campo, a sua morte foi por todos

sentida, provocando uma verdadeira comoção popular. No clero gaúcho, onde o bispo era respeitado e admirado, o prematuro desaparecimento de Dom Luiz provocou profunda consternação e dor. As instituições religiosas e colégios católicos foram tomados de uma grande tristeza. Todos queriam entender o acontecido. ―[...] e a gauchada, para quem escreveu a Prece do Gaúcho, custou a acreditar naquele desastre de avião ocorrido no dia 1º de julho de 1963, às 17h30 min., a cinco quilômetros de Passo Fundo‖ (Spalding, 1969, p. 151).

A revista Unitas (1963, p.2O5) da Arquidiocese de Porto Alegre assim

relatou o desaparecimento de Dom Luiz:

Pavoroso acidente aviatório verificou-se, em 1 de julho, nos arredores da cidade de Passo Fundo pelas 17 horas. Um avião Douglas da VARIG, que partira de Porto

Alegre, talvez por imprudência do piloto que tentava aterrissar apesar da escassa

visibilidade, chocou-se contra uma árvore e projetou-se em seguida ao solo, em

pedaços. Pereceram 12 pessoas e salvou-se apenas um passageiro que, gravemente

ferido, foi recolhido ao hospital da cidade. Entre as vítimas achava-se também DOM

LUIZ FELIPE DE NADAL, Bispo de Uruguaiana, que viajava para Passo Fundo

para ali iniciar, no mesmo dia, um curso de exercícios espirituais destinado aos

superiores da Congregação dos Irmãos Maristas.

Até cerca da meia-noite o corpo de Dom Luiz foi velado na catedral diocesana de Passo Fundo e transportado depois, via terrestre, para Uruguaiana, onde chegou pelas 18 horas de 2 de julho, passando a ser velado em sua própria catedral.

No dia 3, de manhã, as solenidades de sepultamento tiveram a assistência de todos os bispos do Rio Grande do Sul, com exceção do senhor bispo de Frederico Westphalen, impossibilitado de comparecer. A missa exequial, rezada pelo Arcebispo Metropolitano, bem como a solene encomendação, realizou-se em

altar armado na frente da catedral, para onde também fora levado o corpo. Ao evangelho, Dom Vicente Scherer (1963, p, 205-206) assim iniciou sua alocução:

Ontem, passados oito anos, a diocese e a cidade fizeram nova recepção ao mesmo senhor Dom Luiz Felipe De Nadal, mas, ai! Desta vez ao som plangente dos sinos,

em profunda consternação e tristeza, estampada na fisionomia das pessoas de todas

as condições sociais, que esperavam nas calçadas ou desfilavam ininterruptamente,

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Dom Luiz Felipe de Nadal 93

até altas horas da noite, na igreja catedral, para tributar uma derradeira homenagem

de estima e formular um último adeus ao pai da família diocesana, arrebatado cruel e

tragicamente ao viajar no cumprimento da missão sacerdotal e episcopal de ensinar,

dirigir e santificar.

Dom Luiz foi um personagem surpreendente: foi homem de igreja inserido no seu tempo, entusiasmado pelas mudanças que a convocação do Concilio Vaticano II anunciava. Foi um educador no modo informal. Revestido de autoridade, foi um homem simples. Foi gaúcho com os gaúchos, radialista, poeta desportista.

Em seu discurso de despedida o então prefeito Antônio Chiarello (2001), sintetiza a obra de Dom Luiz:

Quanto se poderia dizer de Dom Luiz Felipe, nesta hora amarga de tristeza e

de saudade!

Do seu amor à infância, pelo carinho com que tratava as crianças, pelo impulso

decisivo que deu às obras da Creche do Lar da Criança, pelo simbolismo expressivo e

quase místico do Natal da Comunidade. Do seu amor à juventude, para a qual entregou

a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, monumento de pertinácia, de idealismo e

de capacidade realizadora. Do seu amor ao Ministério de Deus, com a conclusão das

obras do Seminário. Do seu amor à Comunidade, que ele sonhou unir dentro do

Conselho da Comunidade que idealizou, organizou e presidiu. Do seu amor à cidade, à

Fronteira, ao Estado e à Pátria, na preocupação com que cumpriu suas funções de

Conselheiro da Fronteira Oeste, Do seu amor à verdade, à justiça, à paz, à bondade,

diariamente manifestado na suavidade das suas ―Mensagens da Noite‖. Do amor à cultura, com a última floração do seu trabalho, que é a Rádio São Miguel.

Ao encerrar o ex-prefeito Chiarello (2001) conclama a todos a concluírem a sua obra:

Entre nós, fica o que ele disse. Entre nós, fica o que ele fez. Fica entre nós,

também, o que ele queria fazer, o que ele tanto sonhou fazer, na incansabilidade

dos seus dias, na inexaustão dos seus esforços: a irmanização de todos, a união da

comunidade nos caminhos da paz, da fraternidade e do amor.

O reconhecimento

Sobre homenagens prestadas a Dom Luiz, transcrevemos abaixo um trecho

da entrevista do Padre Abramo Dezem (1999):

Dom Luís na verdade aborrecia ―passarelas e pedestais‖. Dentre todas as homenagens,

sem sombra de dúvida, foi a que o povo do Rio Grande do Sul e das 3 Fronteiras lhe

rendeu, comovida e respeitosamente, quando massivamente lhe demonstrou, por

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94 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

ocasião do seu trajeto fúnebre, na travessia pelo chão gaúcho, até o seu solene

sepultamento na Catedral de sua Diocese.

Algumas homenagens a Dom Luiz foram materializadas como a denominação de localidade no Município de Muçum, de ruas, em Uruguaiana e Alegrete, de escola em Uruguaiana, de Diretório Acadêmico na Faculdade por ele criada, e de centros de tradição gaúcha, pelo Estado do Rio Grande do Sul.

A maior homenagem, no entanto, é aquela que está na mente e no coração daqueles que o conheceram. O Padre Marobim (2001) expressou com precisão a imagem ainda presente entre seus amigos, colegas, paroquianos e diocesanos:

―Apesar de passados tantos anos, guardo viva a imagem do Bispo sorridente, comunicativo e simpático‖.

Referências

A CIDADE recepcionará condignamente o seu novo bispo: D. Luiz de Nadal. A Fronteira, 13 ago. 1955, p. 4.

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DUARTE, Meirelles. Passo Fundo foi palco no dia l de julho de 1963 do maior desastre aéreo quando aqui caiu o avião da Varig PP-BVB. O Nacional, Passo Fundo, 1/2 maio 1999, p. 21.

————. A vida e morte de Dom Luiz Felipe de Nadal — o prelado dos

gaúchos que morreu em acidente de aviação em nossa cidade. O Nacional, Passo Fundo, 8/9 maio 1999, p. 21.

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INAUGUROU-SE ontem a ―Semana da Criança‖. A Fronteira, Uruguaiana, out. l955, p. 1.

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HARTMANN, Olmiro E. 50 anos diocese de Uruguaiana. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1961.

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Dom Luiz Felipe de Nadal 95

NADAL, Luiz Felipe de. Brasão da Faculdade de Filosofia Ci6ncias e Letras de Uruguaiana, 1959.

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ZANOTELLI, Beatriz et al. Uma caminhada: diário espiritual do Pe.Gregório de Nadal. Porto Alegre: [s. ed.], 1999.

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BASTOS, Otoni. Advogado e professor universitário. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Uruguaiana, 11 de janeiro 2001.

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96 Protásio Pletsch Identidade e vida de educadores rio-grandenses

CHIARELLO, Antônio. Ex-prefeito de Uruguaiana. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Porto Alegre, 7 fev. 2001.

D‘ARRIAGA, Manuel. Médico. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Uruguaiana, 8 dez. 2000.

DEZEM, Abramo. Padre católico. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Três de Maio, 18 ago. 1999.

KHUN, Romanus. Advogado e professor universitário. Entrevista concedida a ProtasioPletsch. Uruguaiana, 9 jun. 1999.

KOTZ, Hélvio. Advogado, professor e radialista. Depoimento escrito. Uruguaiana, 8 mar. 2001.

MAROBIM, Luiz. Padre jesuíta. Depoimento escrito. São Leopoldo, 8 mar. 2001.

PEREIRA, Vera. Professora universitária. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Porto Alegre, 8 mar. 2001.

RIGHI, João Valentim. Padre católico. Depoimento escrito. Uruguaiana, 2001.

RUBIM, Milton Braz. Advogado e político. Entrevista concedida a Protasio Pletsch. Uruguaiana, 24 de jan.2001.

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Edy Medeiros Gil Uma estranha no ninho – Uma história (diferente) de

escolarização e vida profissional feminina, no interior do RS,

nos anos 40 do século XX

HELENA SPORLEDER CÔRTES Doutora em Educação pela PUCRS. Professora na FACED-PUCRS.

SALETE CAMPOS DE MORAES Doutoranda em Educação. Professora na FACED-PUCRS.

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98 Côrtes e Moraes Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Quando se pretende relatar uma trajetória profissional, em especial de uma

mulher, talvez o primeiro aspecto a considerar seja, justamente, essa sua condição de gênero, que associada às injunções sociopolíticas e históricas do

contexto de sua vida pessoal, constituíram e configuraram os elementos essenciais de sua construção enquanto sujeito de uma história de vida.

Entendendo-se ―história de vida‖ a partir da concepção de Marre (1990), como uma técnica inserida em um método biográfico e que é capaz de relatar a trajetória vivida por um grupo social, a proposta de resgatar a história de vida de Edy Medeiros Gil — mulher, brasileira, gaúcha, esposa, mãe e profissional — assume relevância expressiva, na medida em que ―recorta‖ um personagem

único e original em sua subjetividade, mas recorta, igualmente, uma circunstância espaço-temporal também única e originalmente exposta à análise.

Edy Medeiros Gil — Dona Edy, como a conhecemos — é, acima de tudo, uma pioneira: nascida em 1925, em uma família de classe média, de pequenos produtores e comerciantes rurais, no interior do município de São Francisco de Paula, e vivendo em Canela toda sua existência, foi a primeira mulher a trabalhar em um estabelecimento bancário, na região serrana do Rio Grande do Sul.

Numa época em que à mulher estava reservado apenas o lugar especial de

―esposa e mãe‖, paradoxalmente ampliado e restringido à possibilidade de exercer o magistério — ―para os alfinetes‖... — D. Edy entendeu de ser ―bancária‖, isto é, arvorou-se o direito de buscar uma profissão que se definia como pertencente a um terreno, até então, exclusivamente masculino.

Tendo iniciado seus estudos em casa, como era de hábito em regiões rurais, onde o acesso à escola era difícil ou quase impossível, dadas as condições das vias de comunicação e as longas distâncias entre os incipientes centros urbanos,

D. Edy acompanhou os anos iniciais da década de 30 em aulas particulares, primeiro junto à própria mãe e, depois, com o auxílio de uma professora. Diz ela, sobre essa iniciação, que era em sua casa que os alunos se reuniam:

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Edy Medeiros Gil 99

De noite, depois do trabalho na loja e na pensão (da família), mamãe juntava todo

o mundo — nós, eu e meus irmãos, os filhos dos empregados — e ensinava a ler, a

escrever e a fazer contas. Foi ela que nos alfabetizou... A mamãe sempre insistia:

―Tem que estudar!‖.

É interessante ressaltar que, após esse período, que dura aproximadamente dois anos, é seu próprio pai que solicita à prefeitura de São Francisco de Paula, a designação de uma professora para atender a esse distrito. Instala-se, então, com a vinda dessa professora, moradora de Caxias do Sul e, mais tarde, de mais um professor municipal, uma escola em duas das salas da residência dos Medeiros — que já comportava uma pensão para eventuais viajantes e contava com um contingente de nove pessoas: pai, mãe e sete filhos, quatro mulheres e três homens, Como ela mesma explicita,

Nos primeiros anos, estudei em casa, com meus irmãos mais velhos, quando morava no interior. Eram dois professores, que, depois, inclusive, vieram a casar,

lá na minha casa. Éramos nós, os vizinhos, todo mundo junto, uns alfabetizados,

outros não [...] Papai ―abriu‖, em casa, no Apanhador (distrito de São Francisco),

uma escola municipal, com professora paga pelo Município!

Esse período serve como base de escolarização para Edy e o irmão mais velho, até o momento em que se torna necessária a preparação para o famigerado Exame de Admissão, que selecionava os alunos aptos a ingressarem no antigo Ginásio, então só oferecido em Caxias do Sul.

D. Edy conta que ela e o segundo dos irmãos seguiram, então, para Caxias, na esteira do irmão mais velho, Osmar, que antes assim o fizera e já estudava em Viamão, na Escola Técnica de Agronomia: o irmão Otemar ingressa no Ginásio,

e ela, no ―Propedêutico‖, ambos no Colégio São Carlos, em Caxias, instalando-se, para isso, cada um num pensionato.

É importante ter em mente o contexto em que esta escolarização da família Medeiros se dá. A sociedade brasileira encontrava-se em processo de transição — de uma sociedade marcadamente agrário-exportadora, para uma sociedade urbano-industrial, onde as atividades econômicas ligadas à produção agropecuária estavam em processo de dissolução/reconfiguração.

A família Medeiros, cujo pai (provedor) era, além de pequeno produtor rural, proprietário de uma pensão também situada no meio rural, tinha como clientes, principalmente, tropeiros que conduziam gado entre as diferentes regiões do estado do Rio Grande do Sul. A atividade de tropeiro, que permanecera praticamente inalterada desde o período colonial, estava, a partir dos anos 30, fadada ao desaparecimento. Assim, todo o corolário de atividades econômicas que se desenvolviam em torno desta atividade estava, igualmente, em processo de

dissolução/reconfiguração.

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100 Côrtes e Moraes Identidade e vida de educadores rio-grandenses

É neste contexto transicional que vemos o encaminhamento dos filhos do Sr. João Medeiros — pertencente às camadas médias da sociedade agrário-exportadora — a níveis de escolaridade inéditos na família.

Podemos ver, neste encaminhamento, uma estratégia da família Medeiros para manter sua posição na estrutura social, se entendermos ―estratégia‖ em um dos sentidos indicados por Foucault (1988, p. 3) ―para designar a eleição dos meios empregados para construir um fim; se trata da racionalidade empregada para alcançar um objetivo‖. Neste sentido, o patriarca dos Medeiros, atento às transformações que ocorriam na sociedade brasileira, e visando manter seus filhos na mesma situação de classe, encaminha-os para a escola de nível médio, o que já se configurava como uma formação mais adequada à sociedade urbano-

industrial que se desenhava. Assim, por volta dos 13, 14 anos (ela não lembra exatamente), D. Edy está se

preparando — como indica, à época, a própria forma usual de designação do curso — para o ingresso em uma formação profissionalizante, e, aqui, a história de sua vida funcional e pessoal começa a modificar os contornos iniciais que ela pretendera conferir-lhe. Seu depoimento a respeito é elucidativo:

Eu saí de casa pra ser professora, pra fazer vestibular para o Magistério, pra ir pra

Escola Normal. Mas, quando cheguei no Pensionato, falaram num curso novo, no São

Carlos, de Contabilidade, (que era) só de três anos, e ―me deu uma coisa‖, uma vontade

de experimentar, e eu fui pra lá! [...] Fui me preparando, no próprio colégio, pra esse

curso. Precisava Francês, e eu não sabia nada; o resto, até, eu sabia, mas tive que

estudar Francês, com uma freira, que dava aula de Francês. Como o curso era novo, era

―o máximo‖!

Percebe-se, assim, que a escolha fortuita de D. Edy passa a constituir o ponto de referência fundamental para a construção de uma trajetória profissional inédita

para as mulheres da época. Vive- se aí, já na década de 40, um momento histórico marcadamente delineador das características sociopolíticas da construção da ―Era Vargas‖, e a tímida apropriação, por parte da mulher, do papel efetivo de ator social e profissional, está voltada para o exercício do magistério, carreira feminina por excelência, conforme os ditames da sociedade em relação às questões de gênero. Durante esse período, ―mulher, em princípio, não trabalha‖: prepara-se para o casamento e, se quiser, de fato, exercer uma atividade profissional

socialmente aceita — e o marido permitir que assim o faça — deverá abraçar a função de professora, já muito adequadamente ―naturalizada‖, face à sua inata condição de maternagem...

D. Edy não foi a única a se deixar seduzir pela nova proposta implantada pelo Colégio São Carlos, de Caxias do Sul, em 1943. Várias outras mulheres se dispuseram a integrar a turma do curso de Contabilidade. O relato de suas lembranças, porém, indica que, apesar de ―apostarem‖ na possibilidade de

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Edy Medeiros Gil 101

profissionalização e se inscreverem num curso cuja proposta de formação fugia à regra, essas mulheres, depois de devidamente diplomadas, não exerceram, em sua maioria, a profissão para a qual se qualificaram...

Das seis que concluíram o curso, quase todas casaram e passaram a se dedicar à casa, ao marido, aos filhos, reiterando, curiosamente, a ―formatação‖ que lhes era prevista, ainda que tivessem tentado, de certa forma, a ela insurgir-se. Mais do que isso, as que passaram a trabalhar, fizeram-no lecionando — por mais paradoxal que isso possa parecer... Algumas começaram a lecionar certas ―matérias‖ que haviam aprofundado, por conta da realização do curso (Matemática, Estatística, etc.), em aulas particulares. Outras, após o curso, matricularam-se na Escola Normal, formaram-se e construíram sua vida

profissional como ―Professoras‖ (contrariando, na prática, o que buscaram teoricamente com o curso que as preparou para atuarem como ―Contadoras‖...)

Assim, após a formatura em 1946, apenas D. Edy e uma outra colega passaram a atuar como profissionais na área: a colega, integrando a equipe de um escritório de Contabilidade, em Caxias do Sul, e ela, que, submetendo-se a um concurso específico (onde concorreu apenas com homens), iniciando sua carreira de 27 anos ininterruptos no Banco Nacional do Comércio (depois

Banco Sul - Brasileiro). Como indica,

Fiz concurso para Escriturário do Banco, e fui trabalhar em tudo, lá, porque uma coisa dependia da outra: trabalhei na Carteira de Contas Correntes, na Carteira de

Pagamentos, na Carteira de Cobranças, fiz tudo, só não fui Caixa. Me ofereceram,

mas não quis. [...] E, naquele tempo, era tudo a ―bico de lápis‖, tinha uma

calculadora e uma ―Facitizinha‖, com fita, mas era ―a bico de lápis‖...

É curioso ressaltar que, quando D. Edy comenta sua atuação profissional na área de Contabilidade, rememora, com nostalgia e contentamento, esse período. Enfatiza que ―nunca foi discriminada‖, já que sua percepção dos cuidados especiais que lhe dispensavam os colegas (todos homens), não lhe fez entendê-los como ligados a questões de diferenciação de gênero.

Do relato oral de D. Edy, obtido através de entrevista gravada, emerge

uma rica história de vida, marcada por condicionamentos e inovações, permanências e rupturas.

Poder-se-ia pensar, por conta de um ―açodamento intelectual‖, ou por um ―objetivismo‖ de cunho estruturalista, que a trajetória que D. Edy desenhou foi uma trajetória subordinada às relações de ordem econômica. Poder-se-ia, por outro lado, pensar — igualmente através de um ―açodamento intelectual‖ — que sua trajetória, por ser única, deve-se apenas a questões de ordem subjetiva

(escolhas, preferências, ações individuais), ligadas à sua experiência imediata.

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102 Côrtes e Moraes Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Para que se possa entender a história de vida pessoal e profissional de D. Edy, é preciso que trabalhemos sob a perspectiva de uma teoria da ação, conforme indicado por Pierre Bourdieu, pela qual se entende que não é o

indivíduo isolado (com seus gostos e reflexões pessoais), nem o sujeito determinado (submetido às condições objetivas), o verdadeiro ator social. Esta perspectiva nos ensina que:

Em contraposição ao subjetivismo, Bourdieu afirma, de modo radical, o caráter

socialmente condicionado das atitudes e comportamentos individuais. O indivíduo, em Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos detalhes. Os gostos

mais íntimos, as preferências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação de voz, as

aspirações relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmente construído. Se, por

um lado, Bourdieu se afasta, então, do subjetivismo, por outro ele critica, igualmente,

as abordagens estruturalistas, definidas por ele como objetivistas, que descreveriam a

experiência subjetiva como diretamente subordinada às relações objetivas

(normalmente, de natureza linguística ou socioeconômica). Segundo ele, faltaria a

essas abordagens uma teoria da ação capaz de explicar os mecanismos ou processos de

mediação envolvidos na passagem da estrutura social para a ação individual.

Reconhecer-se-iam as propriedades estruturantes sem, no entanto, analisar os processos

de estruturação, de operação da estrutura no interior das práticas sociais (Nogueira e

Nogueira, 2002, p. 19-20).

Sob esta perspectiva, é possível entender os condicionamentos e as

inovações, as permanências e as rupturas na história de vida de nossa entrevistada. Lembremos que sua formação educacional/profissional foi encaminhada por uma estratégia paterna de manutenção de posição na estrutura social. Lembremos, também, que a estratégia se deu em um período em que a profissionalização feminina não era a regra, que as funções reservadas ao gênero eram a de esposa e mãe e, no caso de haver profissionalização feminina, esta era, via de regra, através da formação em curso Normal ou Complementar,

que conduziam ao magistério, considerado, então, uma profissão ―aceitável‖ para mulheres, na medida em que manteria uma afinidade ―natural‖ com a condição feminina.

Freqüentar o curso de Contabilidade, e não o curso Normal, trabalhar em um estabelecimento bancário — e, mais do que isso, ser a única mulher a trabalhar naquela agência, a única bancária naquela cidade e em toda a região serrana do Rio Grande do Sul — significa uma ruptura com os condicionantes, significa que a ação do ator social (e neste caso, mesmo contrariando o jargão da área, talvez

devêssemos dizer ―atriz social‖), não é predeterminada a priori. Se, por um lado, D. Edy ―conformou-se‖ com a estratégia paterna, por outro, ela rompe com a tradição de profissionalização feminina, construindo a sua trajetória.

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Edy Medeiros Gil 103

Podemos ver, assim, na história de vida de D. Edy Medeiros Gil, uma relação dialética entre uma situação e um habitus. Podemos, parafraseando Micelli (1987), dizer que as práticas e estratégias por ela desenvolvidas retratam

claramente que as condutas são algo distinto da pura execução de uma norma social coletiva e onipotente. As condutas se constroem na interação das subjetividades individuais com os determinantes objetivos da vida social.

D. Edy — mulher, brasileira, gaúcha, esposa e mãe — foi semelhante à maioria das mulheres de sua geração. Mas, foi também uma profissional diferenciada: bancária, quando as poucas outras profissionais eram professoras; sua escolarização, em nível médio, não se deu na Escola Normal, mas num Curso de Contabilidade, território expressivo de ocupação masculina. A ruptura

por ela empreendida, mediante tal escolarização, permitiu-lhe construir uma história diferente de escolarização e vida profissional feminina, no interior do RS, nos anos 40 do século XX e, mais do que isso, favoreceu-lhe constituir-se, ao mesmo tempo, não só como ―uma Estranha no Ninho‖, mas como construtora de ―novos Ninhos‖, pois que ajudou a desbravar novos espaços para mulheres de outras gerações.

Referências

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MARRE, Jaques. História de vida e método biográfico. XIV Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 22-26 out. 1990. (mimeo)

MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: MICELI, Sérgio (Org.). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

NOGUEIRA; Cláudio Marques Martins; NOGUEIRA, Maria Alice. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação

& Sociedade, n. 78, p. 15-36, abr. 2002.

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Irmão Elvo Clemente

Um apaixonado pela arte de educar

JOÃO DORNELLES JÚNIOR

Administrador de Empresas, Especialista em Análise de Sistemas e em Ciência da

Computação. Mestre em Administração. Doutor em Educação. Professor na PUCRS.

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Irmão Elvo Clemente 105

Nasceu em 30 de outubro de 1921, num dia brumoso de outono, frio, com um

sol refletido na neblina, na pequena cidade de Maróstica, em Vicenza, na Itália. Era o primogênito da família de Ângelo e de Emília Scodro Mottin e viera

povoar o velho casarão em que seus pais viviam com outros 15 netos do patriarca Antônio Mottin. Recebeu o nome de Antônio João para homenagear os dois avós, sendo-lhe acrescentado o nome de Silvestre para diferenciá-lo dos vários Antônios existentes na família.

A sua permanência na Itália foi muito curta, tendo que viajar com seus pais em busca de trabalho e de mais qualidade de vida. Essa viagem representou uma mudança radical na vida da sua família, com sucessivas adaptações às duras

condições de trabalho que encontraram aqui no Brasil. Sua família encontrou dificuldades para conseguir atingir o nível de vida,

divulgado na Itália, que alguns imigrantes tinham conseguido no Brasil. As dificuldades crescentes fizeram com que seu pai mudasse constantemente de lugar e de emprego, em busca da sobrevivência e da manutenção dos seus filhos.

Acostumado a passar dificuldades e sendo obrigado a trabalhar desde pequeno, só conseguiu aprender a ler em idade mais avançada. O tempo disponível era usado para ajudar a família nas atividades da lavoura, não

podendo ser dispensado delas para estudar regularmente em uma escola. Quando isto foi conseguido, já tinha 10 anos e uma dura experiência de vida, fazendo com que a vontade e a motivação para aprender fossem muito grandes.

O desenvolvimento dos estudos em Escola Marista marcou uma nova fase na sua vida, na qual passou a cultivar o gosto pelos estudos e a admirar os seus professores religiosos. A convivência diária com os Irmãos fez com que optasse por seguir a vida religiosa, saindo da casa dos seus pais na cidade de Garibaldi e

indo estudar e morar no Seminário na pequena vila de Bom Princípio. A vida do Irmão Elvo sempre foi marcada por desafios aos quais sempre

enfrentou com sucesso devido, sem dúvida, às qualidades de sua origem. A vinda

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para o Brasil, a conquista de um espaço para viver numa terra estranha, a escolha da vida religiosa e a dedicação com a educação e a cultura são os aspectos principais que marcaram a sua trajetória de vida. Essa trajetória foi percorrida, em

grande parte, com dedicação e muito trabalho prestado à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS, a qual pode contar em livros história da sua convivência com aqueles homens que criaram e incentivaram o ensino superior na Universidade.

A vinda para o Brasil

Aos 3 anos de idade o pequeno Antônio João Silvestre Mottin foi surpreendido com a notícia da sua vinda para o Brasil. Seu pai tinha recebido um convite para vir morar no Brasil e resolvera trazer toda a família para essa terra maravilhosa. Além do mais, as notícias que chegavam dos italianos radicados Brasil eram sempre permeadas de histórias de fortunas estruturadas em poucos anos.

As condições na Itália estavam cada vez piores, com muita gente morando na mesma casa e com pouco trabalho remunerado para todos. Não havia condições de

viver em tranqüilidade e harmonia numa casa habitada por pessoas tão diferentes e com temperamentos tão diversos. A única saída era fazer o que muitos italianos já estavam fazendo: imigrar para a América. A decisão de virem para o Brasil foi reforçada pela existência de um tio morando em São Paulo, que fazia propaganda das Maravilhas dessa nova terra nas suas viagens à Itália. As informações que trazia do Brasil eram fascinantes, com muitas oportunidades de trabalho e com melhora na condição de vida para todos. Era impossível querer ficar na Itália, com

tantas privações e dificuldades de toda a ordem, sabendo que nesse novo País a vida era muito mais fácil e havia maiores possibilidades de ganhos. Para Mottin (1990, p. 31) esta euforia ocorria porque:

Poucos imaginavam o depois. Poucos mediam os sofrimentos. Todos pensavam no

êxito, na fortuna que viria logo, assim como o tio Eugênio mostrava. Como outros

contavam. Por que ficar na Itália, sujeitos a tantas vicissitudes e privações, quando no Brasil seria tudo melhor?

Resolvida a viajar, a família, composta de quatro pessoas, embarcou no dia 10 de outubro de 1924 no navio que os levaria ao Brasil. Ficaram alojados nos dormitórios da terceira classe do navio, enfrentando momentos de calmaria e de tumulto na travessia do Atlântico. Seu destino era o porto da cidade de Santos,

onde iriam começar uma caminhada para uma vida melhor e mais prazerosa. Foi um momento de muita tristeza para o casal e seus dois filhos a saída de

Maróstica, pela despedida chorosa dos familiares e pela sensação de nunca

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mais vê-los. A tristeza sentida na saída da Itália é assinalada por Mottin (1990, p. 33) quando descreve que

o silvo do apito se faz ouvir, um toque de sino marca o levantar ferros, é o momento

da partida. O navio vai-se afastando, os lenços brancos no cais, os lenços brancos nas

amuradas do navio, as lágrimas nos rostos tolos, a angústia nos corações...

A estada no Brasil

Depois de vinte dias de viagem no mar, o navio finalmente atracou no cais da cidade de Santos. A família Mottin sentia que agora começava uma nova etapa da vida e o importante era ir ao encontro de parentes na cidade de São Paulo. Tiveram que percorrer a distância que separava as duas cidades em diligências, com a esperança de encontrar uma nova oportunidade de trabalho.

Permaneceram pouco tempo na casa de parentes em São Paulo, pois resolveram sair em busca de outros parentes sediados no sul do País. As promessas de trabalho feitas pelo primo em São Paulo, no entanto, não se concretizaram e, por isso, novamente tiveram que sair em viagem, desta feita, para o Rio Grande do Sul. Escolheram vir para Garibaldi porque lá moravam alguns primos e seria muito mais fácil iniciar uma nova vida entre parentes.

A família chegou a Garibaldi em 15 de novembro de 1924, acompanhada de

outros imigrantes italianos, em um trem maria-fumaça com bancos de segunda classe. A surpresa na chegada foi que não havia ninguém os esperando na estação; nenhum parente e nem mesmo o pessoal responsável pela imigração.

Não tendo onde ficar quando chegaram a Garibaldi, foram para a casa de um primo que os alojou por um tempo. Depois foram trocando de lugar, da casa do primo para diversos locais na cidade, até fixarem residência na periferia de Garibaldi.

Tinham muita expectativa com as promessas de emprego que faziam para o pai, que nunca se concretizavam. Apesar de querer trabalhar na agricultura, seu pai ficou empregado como ajudante de pedreiro numa empresa construtora de um convento na cidade. Mottin (1990, p. 54) narra da seguinte maneira como o seu pai conseguiu o emprego:

Conversa vai, conversa vem, papai soube que precisavam de serventes nos trabalhos de

construção do convento das freiras, aquela parte mais ao lado da Capela, ainda hoje

existente no hotel Mosteiro. Papai dispôs-se a ir trabalhar, recebendo o salário de

servente. Era pouco, mas era sempre um dinheiro garantido.

Aproveitando que o marido estava trabalhando no Convento, a mãe tentou matricular o filho no colégio das freiras, o que não foi possível já que o colégio era

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só de meninas e ele já estava perto do 9 anos, idade em que não era mais permitido que meninos estudassem junto com meninas.

Em 1931, com quase 10 anos de idade, foi matriculado no Colégio Santo

Antônio, dos irmãos, e começou a ler dois meses depois de freqüentar a escola. Não foi fácil a vida no Colégio, pois tinha que cumprir as suas atividades caseiras e fazer os deveres estipulados pelo professor. A vontade de aprender a ler fez com que se dedicasse muito à escola, como pode ser visto na narrativa de Mottin (1990, p. 60):

Algumas noites adormecíamos sobre os livros ou cadernos mal-alumiados pelos

lampiões da sala. No fim do mês de abril, graças à ajuda de meu pai que lia o texto

do livro eu repetia, sabia ler com certa firmeza. Lembro-me que o Irmão Romualdo

havia prometido um canivete para quem aprendesse a ler primeiro. Ganhei o

canivete! Ainda hoje quando rememoro esses acontecimentos fico deveras

espantado pela pobreza e rudeza do método e os resultados. Papai não falava

português, pode-se imaginar que tipo de língua portuguesa que ele lia...

Tendo que ajudar em casa, aproveitava a ida matinal para o Colégio e levava com ele os litros de leite para entregar para a freguesia do pai. Quando retornavam à tarde, recolhia os litros para prepará-los para o outro dia. Era dessa forma que

ajudava os seus pais a manter a casa e a sobrevivência dos seus irmãos. Passados dois anos de convivência com os Irmãos no Colégio, começou

a admirar o tipo de vida que levavam e a maneira como se dedicavam a árdua tarefa de ensinar. Esta admiração levou-o a pensar em estar com eles, querendo ser um dos Irmãos para ensinar aos outros da mesma maneira como eles ensinavam. Essa admiração começou a surgir desde cedo, iniciada quando da participação nas aulas no Colégio e no convívio com os Irmãos. O marco significativo da decisão tomada para a escolha da vida

marista foi narrado por Mottin (1990, p. 68) quando afirma o seguinte:

O Ir. José ia falando sempre da beleza da vida marista e do professor. Aí veio-me a idéia de ser como ele, mestre dos pequenos e grandes. Certo dia passando por

minha carteira me abordou com as palavras: vuoi esse anche te, marista? Respondi

automática- mente: ―si‖. Estava lançada a primeira opção de vida. Seria marista

para ensinar aos meninos e aos jovens. Os Irmãos estimulavam os serviços dos

monitores, aí se podia sentir o gosto de lecionar...

A escolha de ser um Irmão Marista marcou muito a sua família, que chorou a sua saída de casa para o Colégio Sagrado Coração de Jesus, em Bom Princípio. A preparação para a viagem foi muito rápida, pois o aviso da partida chegara no dia anterior e tinha de estar pronto para o deslocamento até o Seminário. Iniciava, naquele momento, a longa caminhada para o novo estilo de vida que tinha escolhido: a vida religiosa.

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A vida religiosa

A estada no Seminário foi traumática para o jovem Antônio Mottin porque lá existiam alunos de origem italiana e alemã. Os alunos de origem italiana falavam o dialeto vêneto e aprendiam muito mal a língua portuguesa, já que se falava mais o alemão, no Seminário. Eram uns vinte e poucos alunos de origem italiana e havia uns trinta e poucos alunos de origem alemã no Seminário em Bom Princípio. Esse foi um problema linguístico, porque dentro do Seminário e na

pequena vila de Bom Princípio a língua falada era o alemão, embora o grupo de Garibaldi discursasse em italiano e tentasse balbuciar algumas palavras em alemão. Esta experiência é narrada por Mottin (1990, p. 72) quando descreve o tempo que esteve no Seminário:

De minha parte ia-me habituando aos novos usos e costumes. Fui- me adaptando

bastante facilmente. Já aprendia algumas palavras em alemão com os coleguinhas. O

curioso é que me afeiçoei mais aos alemãezinhos que os italianos... Até que os longos

sermões em alemão de que não entendíamos patavina não me aborreciam tanto. Até

mesmo cantávamos aqueles hinos sem saber o que dizíamos. O mesmo se dava com a recitação das ladainhas...

Naquele tempo, o Padre rezava a missa em latim na Igreja do Seminário sendo que os sermões e as orações eram feitos todos na língua alemã. Nas ruas, na vila de Bom Princípio, no entanto só se falava em alemão, mas como o pequeno Mottin tinha sido alfabetizado em português e só falava o italiano em

casa, essa foi a primeira dificuldade enfrentada, superada, no entanto, com a sua integração aos demais colegas.

Ao concluir o terceiro ano primário em Bom Princípio, o seu professor na época foi muito dedicado e o entusiasmou a fazer exame de admissão para o ginásio. Por isso, em 1934, veio para Porto Alegre cursar o ginásio no Instituto Champagnat. Depois de terminado o ginásio, foi guindado ao postulantado. É um ano em que a pessoa fica começando a pensar mais

seriamente na vida que vai abraçar. Para isso, a pessoa precisa tomar consciência dos compromissos futuros para

que, depois do postulantado, possa assumir o chamado noviciado. O noviciado é o tempo em que a pessoa pensa em abraçar a nova vida, refletindo sobre o porquê de todo aquele ideal de perfeição religiosa, dos estudos religiosos e da fé religiosa. É o momento da sua entrega a Deus. Pode ser comparado a uma espécie de noivado, em que o rapaz procura a moça para contratar um futuro

casamento. Por esta razão, o noviço é a pessoa que está na nova vida religiosa, pensando em matérias religiosas, em estudos e em exercícios.

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Em janeiro de 1938, o então noviço concluiu o noviciado, professando os seus votos de religião por um ano, Estava iniciando uma nova fase, o ano de Escolasticado em que foi preparado para o magistério. Neste mesmo ano,

surgia mais uma modificação na sua vida. Estava vestindo a batina, ingressando definitivamente na vida religiosa e mudando o nome de Antônio Mottin para Irmão Elvo Clemente.

O exercício da docência

Em 1940, o Irmão Elvo começou a ministrar aulas no Colégio Champagnat, sendo posteriormente designado para lecionar no Colégio Marista São Francisco, em Rio Grande. Ficou seis anos em Rio Grande, lecionando com outros cinco irmãos, jovens que como ele, sob orientação do irmão Roque Maria.

A convivência com o Irmão Roque em Rio Grande e, posteriormente em Porto Alegre, fez com que se tornasse um fiel admirador dos seus feitos como educador, como religioso e como ser humano. Esta admiração é ressaltada por Clemente (200la, p. 179) quando assinala o seguinte:

Lançar no papel alguns dados sobre a bela e exuberante vida do Irmão Roque Maria ou de Ernesto Daniel Stefani é motivo de alegria e de grande responsabilidade. Existência

de 83 anos e 4 meses toda dedicada à obra de Deus em benefício da infância e

juventude e de pessoas necessitadas é um poema que merece melhor escriba. No

entanto tratarei de perlustrar os caminhos deste homem que viveu espargindo alegrias,

belos ideais e frutos de virtudes.

Pelas amizades que construiu, o novato Irmão teve uma afeição toda especial pela cidade de Rio Grande. Ainda hoje considera a vida em Rio Grande como um marco maravilhoso que aconteceu na sua vida, pois participou na formação de jovens postulantes, da primeira à quarta série, nível de ensino que representava o ginásio naquele tempo.

No ano de 1940 foi instalada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no atual prédio junto à Praça São Sebastião onde se localiza o Colégio Rosário.

Três anos depois, ou seja, no ano de 1943 o Irmão Elvo fez o vestibular para as Letras Clássicas. Não pôde freqüentar logo as aulas, pois precisava lecionar mais alguns anos no Colégio Marista em Rio Grande.

Em 1946 retornou de Rio Grande e começou o Curso de Licenciatura em Letras Clássicas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Na Faculdade, formou um grupo de amigos entre os colegas. Nesta época começou com a política estudantil na Faculdade, tornando-se fundador e secretário do Centro Acadêmico

São Tomás de Aquino — CASTA. Depois disso, foi convidado, por várias vezes, a permanecer no posto de secretário, por diferentes candidatos vencedores nas eleições do Centro Acadêmico.

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Durante a época da Faculdade pôde conviver com os professores Elpidio Ferreira Paes e Francisco da Silva Juruena, a quem sempre demonstrou muita admiração, além do Irmão Faustino João, Irmão José

Otão e Irmão Dionísio Fuertes Alvarez. Todos esses educadores, considerados como os pilares da PUCRS, foram lembrados em livro por Clemente (2001a, p. 8) da seguinte maneira:

Os obreiros eram poucos, os alunos eram um punhado de rapazes ansiosos por novos

horizontes, o espírito operante e decisivo estava nos corações, nas vontades de vencer, no ideal da nova Universidade Católica e Marista. Constituíram-se então os pilares da

nova entidade de ensino, de pesquisa e extensão.

Em 1946 ficou estabelecido que o Irmão Elvo deveria ministrar aulas no Colégio Champagnat e, de forma concomitante, deveria atuar na Faculdade instalada no Colégio Rosário. A sua rotina diária era lecionar pela manhã no Colégio Champagnat e, no período da tarde, ministrar aulas na Faculdade.

Quando retornava ao final da tarde, ocupava-se com os estudos dos meninos no regime de internato. Essa rotina se manteve até o ano de 1950, quando assumiu as funções de Diretor do Colégio Champagnat. Permaneceu até o ano de 1955 na Diretoria do Colégio, contribuindo significativamente para o engrandecimento da escola no meio educacional da cidade de Porto Alegre.

Em 1953 concluiu o Doutorado na PUCRS, com o trabalho sobre o livro do Lopo da Costa, que lhe conferiu o grau de Doutor em Letras. A novidade da

sua tese foi a pesquisa que realizou para aprofundar a vida e a obra do Lopo da Costa, autor genuinamente gaúcho. Naquele tempo, o doutorado não compunha um curso regular como nos dias atuais. O diretor, a Congregação e o Conselho Departamental, como se denomina hoje, designavam para cátedra um determinado professor que queria fazer uma tese sobre um assunto específico. O Irmão Otão, Diretor da Faculdade de Filosofia na época, designou o professor Guilhermino Cezar para ser o orientador do irmão Elvo.

No ano de 1957, com o doutorado concluído, ganhou uma bolsa de

estudos para Salamanca para cursar o pós-doutorado. A bolsa contemplava os estudos da filologia hispânica, com ênfase na parte da estilística. Depois de realizar o pós-doutorado, passou nove meses na França para um aperfeiçoamento da parte religiosa e da parte profissional, como também para reflexão sobre sua vida e existência.

Retornou em julho de 1957 sendo designado para o Colégio Rosário, junto ao Reitor Irmão José Otão, assumindo, também, a função de Secretário Geral

da Universidade. O Secretário Geral naquela época era um chefe de gabinete especial, visto que não havia pró-reitores e só existiam um Vice-Reitor e um

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Reitor. Permaneceu trabalhando como Secretário, junto com o Irmão Otão, de 1957 até o ano de 1977.

Em 1959 fez concurso de cátedra na Universidade. Naquele tempo havia a

chamada livre-docência para se conquistar a cátedra. Conquistou a cátedra de Português em Língua e literatura e começou a trabalhar muito nas suas aulas. O expediente como Secretário não exigia muitos esforços e nem muito tempo, pois a Universidade tinha um pouco mais de dois mil alunos. Ao mesmo tempo que exercia a função de Secretário da Universidade, assumiu como vice-diretor da Escola de Jornalismo. Em 1960, ajudou a fundar a Faculdade de Engenharia junto com o Irmão Otão e foi designado como secretário da Faculdade.

Neste período sua vida acadêmica e cultural enfrentava uma efervescência

muito interessante. Na parte pedagógica, recebia a orientação da maneira Marista de se comportar por intermédio de um orientador, que era espécie de guia pedagógico. Este orientador lhe passava as informações sobre como um Irmão Marista deveria se comportar em aula, como devia falar, como devia preparar as aulas. Tudo isso fazia parte da sua aprendizagem pedagógica.

A educação é considerada pelo Irmão Elvo como a transformação do sujeito, sempre de acordo com as circunstâncias. A sua formação como educador sempre

teve a presença de um guia, representado por um Irmão Marista mais experiente, que o acompanhava enquanto estava ministrando a sua aula. Havia coisas que o guia observava e que, depois da aula, comentava para melhorar o seu desempenho. Para o Irmão Elvo, esta prática era reconhecida como um acompanhamento pedagógico extraordinário e gerava aquela confiança de um educador experimentado, estimulando e orientando sobre a pedagogia marista.

O Irmão Elvo sempre foi um apaixonado pela leitura e, ainda hoje,

identifica-se como um apaixonado por ela. No período dos estudos, aproveitava o tempo do deslocamento do Champagnat até o centro para ler os livros que lhe interessavam. No fundo do bonde, que era o meio de transporte da época, ia sempre sentado nos bancos de madeira com um livro nas mãos, absorto pela leitura e indiferente ao andar do veículo.

Era um apaixonado pelos novos métodos de ensino e por novas maneiras de educar. Sempre que uma novidade sobre a educação aparecia, examinava-a e pesquisava-a por meio de leituras sobre a pedagogia.

O Irmão Elvo é um apaixonado pela arte de educar. Reconhece que a esperança e a realidade, para o bem da nossa gente, será concretizada pela educação. É a família a responsável pela educação das crianças, desde pequenas. A escola deve continuar essa preparação, para formar a inteligência, formar o caráter, formar a vontade e, sobretudo, formar o coração, já que sem a formação do coração, nada é possível. Considera que a vida tem sentido pelo coração, pelo amor que se tem ao próximo.

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Irmão Elvo Clemente 113

O Irmão Elvo sempre viu a educação como um elemento fundamental e insubstituível para a vida social e para toda a formação da pessoa, para a formação da família, para a estrutura da sociedade. A educação, segundo ele, é

perseguida pela cultura como um meio, como uma forma de a pessoa se comunicar e de se entrosar com as outras, valorizando a si próprio e aos outros, construindo um mundo melhor.

Como educador marista, lembra a figura de Marcelino Champagnat. Cresceu da mesma forma que Champagnat, sem poder ir à escola até ao final da sua infância. Do mesmo modo, tem uma forte paixão pela leitura e pela religião. Não abriu escolas como São Marcelino, mas ajudou a mantê-las e a construí-las para ensinar as pessoas a ministrar aulas, mostrando aos seus

alunos o respeito e o amor ao outro. A Conferência Marista considera que Marcelino Champagnat possuía algumas características pessoais que se assemelham às apresentadas pelo Irmão Elvo.

As características de Champagnat, enunciadas pela Conferência Marista (2002), são as seguintes:

um aspecto essencial: a paz de sua alma e a serenidade de seu rosto;

um atitude constante: a alegria;

caminho da eficácia: a sua grande atividade; e

a graça de Deus sempre presente.

O seu trabalho como professor e gestor na PUCRS, sempre evidenciou uma

postura que relembra um indivíduo voltado para o ensino e a cultura. Por esta razão, sempre demonstrou uma preocupação com a melhoria das condições humanas, por intermédio de uma formação humanística e, nela, sempre presentes, os aspectos ligados à religião.

A dedicação à cultura

O Irmão Roque foi sempre considerado pelo Irmão Elvo como um homem de uma atividade inovadora muito grande na parte pedagógica, que o marcou

muito nos cinco anos que estiveram juntos em Rio Grande. Foi ele quem lhe desenvolveu o gosto pela leitura, pelo aprofundamento dos estudos, pelo fazer notas e pelo escrever. Certamente, foi ele quem encaminhou o Irmão Elvo para a formação da bagagem cultural, apoiada pela leitura prazerosa.

Essa admiração por aqueles que o ajudaram a tomar gosto pela cultura é reforçado por Clemente (2001b) ao verbalizar que ―são exemplos que estavam na minha frente que não posso deixar. Eu seria cego se não visse ou não

imitasse o Irmão Roque ou Irmão Otão. O Irmão Roque me deu esse gosto pela leitura e pelas novidades da literatura‖.

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Sua dedicação à cultura é muito significativa e de longa data. Participou do Conselho de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul por quase dez anos, sempre contribuindo nas atividades culturais. Desde 1965 é membro da cadeira nº 6 da

Academia Rio-Grandense de Letras, além de fazer parte como membro de honra da Academia Uruguaia de Letras, do Círculo de Pesquisas Literárias, da União Brasileira de Escritores, entre outras tantas associações vinculadas à cultura. Toda a sua vida foi dedicada à finalidade de melhorar as condições do homem e, por conseqüência, da sociedade, através da cultura.

Como escritor possui mais de trinta livros publicados, tendo participado em outros três livros como tradutor de obras literárias. Escreveu livros voltados ao campo da linguística, da história de vida de personalidades e de instituições, bem

como livros de poesia e de educação religiosa. O reconhecimento da sua vida voltada para a educação e para a cultura rendeu-

lhe muitos prêmios e distinções ao longo da vida. Isto torna o Irmão Elvo uma pessoa representativa da cultura e da educação na sociedade gaúcha, fazendo com que a sua história de vida seja passível de um estudo aprofundado porque, segundo Freire (1986, p. 61), ―nenhuma ação educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem e de uma análise sobre as suas condições culturais‖.

Dentre as premiações, o Irmão Elvo recebeu em 1963 a Comenda do Infante Dom Henrique do Governo de Portugal, em retribuição ao seu trabalho pela cultura portuguesa. Também recebeu a Comenda Medalha Irmão Afonso, ofertada pela Reitoria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; o título de Gaúcho Honorário promovido pela Rede Brasil Sul e o título de Cidadão Emérito entregue pela Câmara Municipal de Porto Alegre.

Em 2001 recebeu a Medalha Simões Lopes Neto do Governo do Estado

do Rio Grande do Sul, agraciada por sua excepcional atuação nos campos da cultura, das artes, das letras, da educação e do magistério. No mesmo ano, o Irmão Elvo foi também empossado na cadeira 10 da Academia Sul - brasileira de Letras, cujo paraninfo e o poeta pelotense Francisco Lobo da Costa, objeto de estudo na sua tese de doutorado.

A contribuição para a PUCRS

As contribuições do Irmão Elvo são inúmeras, tanto para a PUCRS como para o Rio Grande do Sul. Sempre preocupado com a cultura e com o registro dos acontecimentos ligados a PUCRS, o Irmão Elvo possui uma importante produção em sua área de conhecimento.

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Irmão Elvo Clemente 115

Tem procurado escrever a história da PUCRS1 ao longo destes últimos dez

anos. Para isso tem recolhido um amplo material nas suas pesquisas que, somados a sua vivência na Universidade, tem possibilitado a descrição da história de vida

daqueles que construíram a Universidade, bem como a história da própria instituição. Tem sido um defensor ferrenho da criação da memória da Universidade, como parte de um acervo que demonstra a dura caminhada que os pioneiros desenvolveram para construir a PUCRS. Por isso, verbaliza o seguinte:

Vou continuar nisso, nessa coisa de deixar os exemplos. Estou dando a idéia de

fazer a história da Engenharia, a história da Medicina está pronta, a história da

Comunicação Social. Se a gente não escreve agora, daqui a 40 ou 50 anos não se

encontra; se encontram somente coisas esparsas nos anuários (Clemente, 2001b).

Além dos livros que tem escrito sobre a PUCRS, Irmão Elvo tem dado uma contribuição significativa ao longo dos anos com o desempenho de funções administrativas ou como docente em diversos cursos de graduação e pós-

graduação. Tem ocupado diversos cargos na Universidade. Atualmente, exerce o cargo de Assessor da Reitoria.

Porém, a contribuição do Irmão Elvo para a PUCRS não pára no exercício de cargos administrativos. Tem construído um patrimônio cultural de extrema importância para a Universidade, por intermédio do registro da história da Instituição que, ao mesmo tempo, ajudou a construir. Nesse sentido, escreveu recentemente a nistória da Medicina da PUCRS, que relata os fatos principais

da criação dessa importante Faculdade, e os Pilares da PUCRS, que narra a história das pessoas que ajudaram a construir a Universidade. Toda a obra do Irmão Elvo Clemente tem a forte marca da ordem Marista, representada pela sua compreensão do ser humano e pela sua fé e religiosidade.

Perguntado sobre a sua vivência na Universidade, Clemente (2001b) verbaliza com um alegre sorriso afirmando que ―têm sido uma carreira belíssima graças a Deus, estou muito feliz, realizado e contente com aquilo que fiz e com a vida que conquistei‖. Mesmo tendo feito muitas contribuições à cultura e à

educação, que foram reconhecidas no País e no exterior, não pensa em parar de escrever sobre os fatos culturais da sociedade e que marcaram a sua atuação como educador. O espírito aguerrido, voluntarioso, disciplinado e sintonizado com a filosofia marista, torna o Irmão Elvo um destacado educador marista.

1 Além do já referido (2001a), juntamente com Ir. Faustino João, é autor de importante

trilogia sobre a história da instituição: João, F. e Clemente, E. (1997, 1999, 2000)

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Referências

CLEMENTE, Elvo. Pilares da PUCRS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001 a.

———. História de vida. Porto Alegre, PUCRS, 10 abr. 2001b. Entrevista concedida a João Dornelles Júnior.

CONFERÊNCIA MARISTA. Marcelino Champagnat. Disponível em: <http://www.conferenciamarista.es/los_maristas/marcelino_champagnat/marcelino _biografia.htm>. Acesso em: 20 jan. 2002.

FREIRE. Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

JOÃO, F.; CLEMENTE, E. História da PUCRS. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. v. 1, 1931-1951.

———. História da PUCRS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. v. 2, 195 1.1978.

———. História da PUCRS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. v. 3, 1978-1998.

MOTTIN, Antônio, De Maróstica a Garibaldi: memórias da imigração italiana. Porto Alegre: EDIPUCRS/Acadêmica, 1990.

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Banco de dados ZH.

Isolda Holmer Paes A constante aprendiz, a eterna educadora

BERENICE GONÇALVES HACKMANN

Licenciada em História Natural pela Universidade Federal do Rio grande do Sul –

UFRGS. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul – PUCRS. Doutoranda em Educação – PUCRS.

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Marcante.

Foi essa a primeira impressão que me proporcionou a professora Isolda Holmer Paes ao conhecê-la, no final da década de 70, em uma reunião de

planejamento de um projeto educacional. Entusiasmada. Os olhos azuis fitavam-me diretamente ao explicar o projeto. Eram firmes,

mas, ao mesmo tempo, doces. Eram brilhantes e mostravam que ela acreditava naquele significativo trabalho para a educação.

Criativa. A força daquela mulher — na época, com 67 anos — era contagiante.

Ousada. Sob sua orientação, o projeto foi concretizado e veiculado por um

periódico de Porto Alegre, com grande repercussão, em todo o Estado. Passaram-se mais de duas décadas desse encontro e aqui estou,

pretendendo ser narradora desta história de vida, elemento de ligação de várias pessoas que estão, agora, num único grupo: você, leitor ou leitora, eu, nossa professora Isolda e outras pessoas que tiveram o prazer de usufruir,

com ela, de algum período de convivência. Acredito que esses momentos que passaremos juntos serão ricos de

aprendizagens e penso estabelecer uma identificação entre todos nós. Não esqueçamos que, ao iniciar esta narrativa, estou marcada por muitos

―eus‖. Estou ―plurivocal‖ (mesmo que fale na primeira pessoa do singular), pois o ―eu‖ reunirá todos os envolvidos nesta história. Uma bela história.

Ao começar a escrever, resolvi não realizar sozinha esta narrativa. Convido outras vozes para juntarem-se a nós e, de maneira muito marcante, ouviremos

também a voz da professora Isolda. Quem a conhece poderá, inclusive, ouvi-la com os sons da memória (afinal, lembranças têm aroma, cor e texturas). Quem

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não a conhece, aposto que gostará de, um dia, apertar-lhe a mão e dizer-lhe que tem a sensação de conhecê-la há muitos anos.

E qual o porquê de minha escolha incidir sobre a professora Isolda?

Porque a considero um ser humano muito especial. Numa época em que a maioria das meninas cursava o ―primário‖ e eram encaminhadas ―às lides domésticas‖, nossa professora casa-se, sai de sua pequena cidade situada na Encosta da Serra, passa a residir em Porto Alegre, capital do Estado, começa a circular em um meio de maiores exigências intelectuais e vence etapas: em apenas alguns anos, cursa ―ginásio‖, ―colégio‖, ingressa na Universidade e conquista espaços importantes no cenário educacional.

Décadas mais tarde, num período de vida em que muitos se acomodam

devido à aposentadoria — algumas vezes, em idade precoce — vejo uma mulher, com quase 70 anos, olhar à frente e prosseguir. E há uma significação especial nessa trajetória: mesmo ocupando um novo espaço, onde passa a ter uma projeção internacional, não deixa de ser professora e continua espalhando, com amor, a arte de ensinar.

É uma caminhada ímpar. Passaram-se 21 anos e esse horizonte continua ainda enorme e sempre se

alongando para Isolda (dessa forma denominada, carinhosamente, nesta narrativa). Isso é uma lição de vida para todos nós! Outros adjetivos? Corajosa. Carismática.

Recortes da infância

A educadora, que eu sinto que fui e sou, não nasce de repente. Ela vem, cria-se e desenvolve-se na infância, ainda no lar.

Isolda nasceu em Taquara, na primavera de 1911, aos 27 dias do mês de setembro, no seio de uma família com 10 filhos.

Sua casa, na subida do Morro dos Palacetes (que também abrigava a avó, viúva), era povoada por vozes e musica: um irmão tocava flauta, outro, violino e uma irmã tocava uma romântica cítara. Após o jantar, muitas vezes os sons viajavam nas costas da brisa suave. A musica erudita era vivida de uma forma

singela, embalando os sonhos de Isolda. Aquele espaço era muito significativo, carregado de afetos e emoções e

ela o considera o lastro de toda sua vida. Ela acreditava que para uma pessoa se interessar pela educação e pelo destino do ser humano é necessário que tenha vivido num ambiente especial, rico em vivencias e

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estímulos. O lar precisa ser de tal forma construído, que o futuro educador1 comece a valorizar, desde cedo, a importância de participar do crescer e do desabrochar das potencialidades de uma criança.

E ela usufruiu desse ambiente. E teve amor, compreensão e oportunidades. Um dia deparou-se, pela primeira vez, com a morte, que para ela foi um

espanto, uma interrogação, um mistério que não conseguia compreender. Com apenas 4 anos viu saírem de sua casa, em um intervalo de 20 dias, ―duas caixas pretas‖. Seus pequenos olhos espiavam, arregalados, aquele movimento e chorava mesmo sem entender o que significa aquelas ausências. Eram ―tirados‖ da sua vida o pai e um irmão, com apenas 16 anos, que permaneceram para sempre na memória. As vagas lembranças que colhe de seu pai resgatam uma presença

amorosa que fazia a vida correr ―mansa e tranqüila‖. Era uma força harmoniosa que unia e protegia a todos. Além disso,

as tradições e as experiências culturais do velho dinamarquês, meu avô, teriam influído no estilo de vida familiar cultivada por meu pai. Mesmo morrendo muito

moço (42 anos) conseguiu deixar para os filhos a influência de princípios e valores

que cultivava.

A partir daquelas perdas, todos concentraram muito amor naquela menina. E ela crescia a olhos vistos rodeada de muito, muito carinho.

— Cuidado, Isolda! Está muito frio! Cuidado com a tua asma! E deliciada, ela viajava nos braços dos irmãos até a cozinha para tomar café.

Lembra-se da irmã Maria. Como foi maravilhosa para ela! Era uma verdadeira mãezinha! E a avó? Outra mãe especial.

Mãe. Os olhos de Isolda brilham com lágrimas que teimam em correr, lembrando

o amor, a saudade, o querer bem ainda muito presentes na sua vida. D. Maria José (chamada carinhosamente de D. Zeca),

nos filhos e com os filhos buscou a resistência indispensável para vencer as

precariedades da vida, como também tentava suprir, em parte, a falta, no plano

psicológico e econômico, do chefe da família.

A mágica das lembranças colhe o tempo passado e ele se faz presente, nem

que seja por alguns instantes. Minha mãe... a minha mãe maravilhosa, que me ensinou o amor, a ternura

pelas pessoas, a compreensão dos seres humanos. Mas também depois me cobrava:

1 Observe que os termos educador e professor não foram, nesta narrativa, considerados

em relação a gênero. Segui a própria maneira de falar da professora Isolda, que ao se

referir ―educador‖ ou ―professor‖, está vinculando o termo à profissão. É claro que,

quando o gênero requisitava, foram empregadas as necessárias concordâncias.

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―Minha filha, você deve saber isso porque depois poderás ter crianças para ensinar!‖ E a minha mãe passava a vida ensinando-me! Isso tudo, lá em Taquara.

D. Zeca falava-lhe sobre plantas, sobre o chegar da primavera, sobre um

mundo que aos poucos era apresentado a Isolda. Como sofria de uma incômoda enxaqueca, caminhava muito ao amanhecer, pois diziam que o sereno da noite, que ainda persistia nos primeiros clarões do dia, lhe faria muito bem. E lá iam elas, passeando pelas ruas e caminhos quando o sol mal tinha surgido: E eu ia com ela, pela mão dela. Tinha 6 ou 7 anos e contava-me coisas que não eram para contar para uma criança daquela tenra idade. Falava sobre a sua vida, seus afetos, felicidade e tristezas. ―Eu era uma companheira para ela‖.

Ao conversar com a pequena Isolda, revelava sabedorias do povo:

Penso que ela não gostava muito do inverno. Um dia, andando para além da casa da Dona Olinda Müller, olhando a extensão verde que se oferecia a nossos olhos,

disse apenas, sem qualquer comentário: ―O inverno vem antes do tempo neste ano;

os maricás já estão floridos‖...

Isolda revela-me que nos últimos 80 anos ainda se comove quando identifica, na paisagem, os maricás floridos: ―É um instante mágico e feliz, em que atualizo a presença forte e iluminada de minha mãe no tempo e no espaço‖.

As coisas que D. Zeca dizia, começaram, gradativamente, a despertar em Isolda o desejo de aprender para depois ensinar.

Foi a sua primeira professora, que lhe passava, com amor, candura e

dedicação, as primeiras ―regras‖ essenciais para a convivência humana, com muita sensibilidade e intuição. Complementa Isolda:

Com ela aprendi, por exemplo, a conhecer os sinais característicos da mutabilidade das estações: a primavera anuncia-se na inquietude dos ninhos e no verde tenro e claro da

folhagem dos jardins e dos campos; no verão, as nuances do verde são outras e os

animais refugiam-se na sombra fresca dos capões.

E lembra-se do que sua mãe ensinava sobre nossa paisagem:

Quando conheceres outros lugares no Brasil, verás que os campos são diferentes. Aqui, temos coxilhas, aquela sucessão de morrinhos que vemos quando andamos

pela ―estrada da serra‖. Não sei se há coxilhas em outras partes do país...

E Isolda relata que 40 anos mais tarde reviveu ―essa singela lição de geografia no texto premiado pela Academia Brasileira de Letras, de Darcy Azambuja:... coxilhas... ‗ondas de um mar parado‘...‖

Todos os anos, na Semana Santa (na quinta-feira da Paixão), iam em busca

de barba-de-pau e flores nos matos para fazer um ninho enfeitado. A elas integravam-se algumas amiguinhas para correrem livres pelos relvados. Depois, as meninas comiam a merenda, sentadas à sombra de uma árvore. Com as

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boquinhas cheias de bolos, as maçãs do rosto tingidas de carmim e os cabelos soltos ao vento, ouviam o relato sobre os ninhos trançados com barba-de-pau. Havia sabedoria por trás daquela história que iria se perpetuar no tempo! D. Zeca

estava ensinando uma tradição guardada pela memória. E aquilo era revivido muitas vezes: ―Minha filha, você se lembra da época

em que você era pequena e buscava barba-de-pau...‖ E exclama Isolda: ―Quantas coisas lindas que se faziam antigamente e que

agora estão se perdendo! Essa ‗memória‘ está perdida. O mundo mudou. Os ninhos desapareceram‖.

Anos mais tarde ensinou aquela história a Tânia Mara, sua filha adotiva. Ninguém precisou dizer-lhe: ―Faça!‖. O fez de forma intuitiva e com ela repetiu a

tradição, indo buscar barba-de-pau. Até hoje faz ninhos que envia a São Paulo, para os filhos de Tânia, acondicionados em Caixas.

Em um dia desses, essa filha do coração disse-lhe: ―Tia, o que vocês me ensinaram na infância é o que eu faço com os meus filhos hoje: a busca no mato, o ninho com a barba-de-pau. Eu sinto que é uma cultura adquirida, assimilada...‖.

E o Natal? Era uma época encantada. A árvore, os presentes, a Noite Feliz. E disse-lhe, um dia, Tânia Mara:

O meu filho não ganha um presente de Natal antes de, seriamente, diante do Presépio e da Arvore Natal, cantar a Noite Feliz. Todos cantam-na. Mas o que é

essa Noite Feliz? É uma canção que contém toda uma história da Humanidade. E,

na barba-de-pau, no ovo pintado que tu fazias para nós e que hoje pinto para os

meus filhos, existe uma cultura que eu não quero perder.

São detalhes como esses que, unidos a outros, tecem a história das pessoas especiais.

Suaves lembranças e reflexões:

Eu possuí coisas que nem todas as pessoas têm. E sou grata a Deus e grata a essas

pessoas que encontrei no meu caminho.

Isolda tem uma memória bastante privilegiada e, quando me conta parte de sua vida, novamente emociona-se:

Quando me lembro de Taquara, lembro-me daquelas pessoas e famílias

maravilhosas com as quais eu convivi! Lembro-me dos Amoretti, dos Vargas e da

D. Margarida, tão linda! E os palacetes? Tinha o palacete do Coronel Theobaldo

Fleck, o do Janguta Correia, o do Felipe Néri (que me ensinava teatro)... Eram os

palacetes do Morro. Meu Deus! Aquela gente toda pertencia à minha vida. Hoje eu

até podia morar em Taquara. Saí de lá porque ela era ―pequena‖ para mim. Hoje eu sou pequena para ela. Hoje eu podia morar lá e trabalhar por ela. Tem muita coisa

linda a se fazer neste mundo!

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Na sua lembrança também afloram o Prof. Rodolfo Diethisch — sério, grave, humano — e a D. Pascoalina Amoretti Faedrich, que um dia a convidou, juntamente com três coleguinhas, para irem à sua casa, à tarde, e receberem

aulas de francês duas vezes por semana: “C’est te crayon, c’est te livre, c’est te...” Ali, Isolda teve a sua iniciação em Língua Francesa e começou a amar esse idioma, um conhecimento muito importante na sua vida.

Havia ainda a D. Amanda Hack, sua primeira professora de alfabetização: “Ela tinha umas ternuras por mim!”.

E foi com duas sobrinhas, que haviam sido criadas por D. Zeca devido à perda dos pais, que Isolda começou o seu ofício de professora. Ensinou-as a ler um livro, a cantar canções folclóricas

e até a rezar a Ave Maria! Pareciam suas filhas e dedicou-lhes muito amor.

Vislumbrava-se a força da futura professora

Neste segmento, optei por trazer Isolda para falar conosco. Pensei que ouvir a sua voz, sem interrupção, seria uma oportunidade de um maior contato com ela.

A idéia, inicialmente vaga e imprecisa, de dedicar-me ao magistério e, em sentido mais amplo, à educação, surgiu na fase da adolescência.

Há certas profissões que tendem a ser determinadas por várias influências a que está submetido o ser humano, nas complexas relações do mundo moderno, entre outras, o sucesso no plano econômico, a maior oportunidade de boas ofertas de trabalho, o número de vagas no ensino superior, enfim, muitos fatores que interferem numa escolha que visa corresponder, o mais exatamente possível, ao

apelo mais profundo e autêntico das tendências do jovem. No meu caso, os tempos eram outros; a tendência definida para o magistério, foi, apenas, o resultado das minhas experiências de vida, na limitada cultura do interior dos anos vinte.

A educadora que me tornei mais tarde, foi-se configurando, no dia-a-dia, ao longo dos anos. O pensamento muitas vezes retomado, inicialmente, talvez um tanto impreciso, tomou corpo e tornou-se história integrada, confundida, com a história maior, a que veio do berço, tornou-se criança, atravessou a juventude e

alcançou a maturidade. E tornou-se um tanto perturbadora, pelas dificuldades de realização, ao final do meu curso primário. Como era natural, a Escola Normal, o único caminho a seguir, surgiu como meu maior objetivo e meu constante pensamento.

Houve um momento em que cheguei a acreditar na realização do meu projeto, pela compreensão de minha mãe. Mas as limitadas circunstâncias econômicas de vida familiar e pelo fato de morar numa cidade onde a escola primária era a última etapa de estudos oferecida aos jovens, compreendi que a

mudança para Porto Alegre era a única solução que me cabia, mas, de outra

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parte, era uma barreira intransponível. Portanto, o caminho era a renúncia à minha aspiração que, no entanto, permaneceu em estado latente, vindo a concretizar-se muitos anos mais tarde.

Não nasci educadora, o que é bem compreensível. Mas creio que foi na escola e no lar, ainda na infância, que meu destino humano foi se delineando, independente de minha participação consciente, para configurar-se definitivamente entre os 25 e 30 anos, já, então, em outra dimensão, mais ambiciosa e mais abrangente quanto a objetivos.

Essa percepção ocorreu-me, quando em plena realização de minha vida profissional, voltei-me para o caminho percorrido... Tudo o que, com esforço, ia conseguindo realizar, era uma decorrência da compreensão e do amor dos meus e,

depois, do incomparável companheiro de minha vida adulta. Ele veio conduzido pela minha boa estrela, já de antemão, pressentindo o quanto me poderia oferecer para a minha autodescoberta e realização.

*

Você, leitor ou leitora, voou no tempo junto conosco e quase vivenciou a

sua infância e aquela renúncia temporária de ideais que já se esboçavam? Vislumbrou a importância que teve, na vida de Isolda, seu companheiro?

Mas vamos prosseguir...

O casamento e a preparação para um novo salto e educadora que me tornei mais

tarde, foi-se configurando, no dia-a-dia, ao longo dos anos.

Em 1930, casou com Elpídio Paes e ficou morando definitivamente em Porto Alegre.

Dr. Elpídio, advogado de renome, era professor (e posteriormente diretor) da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, responsável pela formação jurídica dos futuros advogados. Além disso, atuava no Departamento de Cultura e Literatura Latinas, do Instituto de Letras. Para ele, o conhecimento era um fim e um meio de realização.

Nessa nova vida, a educadora que já existia dentro de Isolda, começou a evoluir, influenciada pelo marido. E ela ressalta: ―Apesar de sua formação jurídica, foi para o magistério que ele se voltou de corpo e alma. Era um

autêntico educador. E, para isso, fez do estudo o ponto alto de sua vida inteligente, criadora e sensível‖.

E ele acreditou que ao seu lado existia alguém com muitas potencialidades. Isolda, com aquela convivência, começou a sentir que precisava estudar

mais, pois ―como poderia viver ao lado de alguém especialista em antigüidade greco-romana sem ter uma cultura maior‖? Compreendeu, espontaneamente, o quanto eram diferentes os seus espaços culturais. Ele tinha a liberdade de pensar

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e atuar num vasto e ilimitado espaço cultural e ela, como relembra, ―tinha um limitado campo de expansão para minha vida intelectiva. O que me ajudava para as necessárias adaptações no meu novo mundo, eram a intuição e a sensibilidade

para absorver e reelaborar experiências inusitadas‖. As paredes de uma das salas de sua casa eram cobertas por prateleiras ricas

em títulos diversos. Formavam uma biblioteca eclética com mais de 10.000 volumes e constantemente atualizada com os últimos lançamentos.

Considerava seu marido um desafio para ela e todas as influências recebidas encaminharam-na para uma nova proposta de vida: ―Humano e compreensivo, por excelência, buscou levar-me para sua realidade‖.

Um dia em que ele preparava uma aula de Língua Latina, com absoluta

naturalidade, perguntou-lhe: ―Não gostarias de estudar Latim? Talvez consideres isso um estudo meio fora de propósito. Mas é uma língua, culturalmente, muito importante e esse conhecimento poderá te servir muito‖.

Isolda pergunta-se: ―Será que ele está pensando em me conduzir, de modo indireto, para a complementação de meus estudos, já que tenho somente o primário?‖

Surpreendida pela pergunta e sem muita segurança, responde rapidamente:

―Latim... não sei. Sou capaz de tentar!‖ E ele começou a ensinar-lhe Latim, iniciando uma história que teria

continuação. Inclusive, mais tarde, esse estudo ser-lhe-ia muito importante para realizar o colégio e fundamental para o curso universitário.

Meses depois, voltou a fazer-lhe uma nova pergunta: ―Não queres estudar um pouquinho de Francês?‖

E ela, que sempre teve paixão pela França, que tinha vontade de, algum

dia, poder aproximar-se da cultura francesa, começou a aprender, com muito entusiasmo, o idioma francês.

Mais uma vez o Dr. Elpídio tecia as bases para o seu futuro. O próprio depoimento de Isolda fala-nos da importância daquele homem em

sua vida: ―O meu marido ensinou-me um outro tipo de amor. O amor humano, mais alto, lindo! Jamais ele procurava julgar uma pessoa. A justiça era a sua palavra fundamental. E ele foi tão maravilhoso. E me entendeu tanto, tanto!‖

Em 1940, morre sua mãe. Foi um período muito difícil. Ela era

profundamente apegada a D.Zeca. Como diariamente o Dr. Elpídio saía para dar aulas na Universidade, ela

ficava sozinha em casa, desolada. Conhecendo bem a esposa e compreendendo seus sentimentos, um certo

dia convidou-a para acompanhá-lo à Faculdade, para que não ficasse tão sozinha. Lá poderia, com o conhecimento de francês que já possuía, assistir às aulas do Professor René Ledoux, considerado um brilhante professor.

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Ela concordou, cheia de expectativa. Mas, na primeira aula, constatou que o francês elegante do professor era

difícil. Não entendeu muita coisa. Seu conhecimento era insuficiente para

compreender uma pessoa falando de um assunto tão complexo, no caso, Literatura Francesa.

Como não tinha formação literária e era portadora, a seu ver, de um vocabulário ainda insuficiente, decidiu prosseguir seus estudos formais. Cursaria a Faculdade de Letras.

Ao contar ao Dr. Elpídio a sua decisão, recebeu como resposta: — Mas não tens o secundário, que é indispensável! — Mas vou fazê-lo.

Assumia um grande compromisso: cursar o ginásio e o colégio. E o ―professor de Latim e Francês‖ passou a auxiliá-la em todas as disciplinas, desde as humanísticas, até as ciências exatas.

Cursou o ginásio pelo Artigo 100, que exigia bastante do aluno, pois era formado por matérias muito extensas e variadas. Aplicada, estudava no cursinho e em casa, com o Dr. Elpídio.

Realizou, com sucesso, os exames no Ginásio Anchieta, e depois ingressou

no Colégio Sevigné. Nessa escola, como era mais velha que a maioria das colegas e era casada, não queria usar o uniforme de menina de colégio, azul e branco, com listinhas. Porém, a Madre Sainte Odile disse-lhe que ela seria um excelente exemplo e incentivo para as jovens.

No final do 2º ano, foi publicado o ―Decreto do Ministro Capanema‖. Com ele, aqueles que tivessem cursado o ginásio — ou primeiro ciclo — pelo Artigo 100, não precisariam freqüentar o 3º ano do colégio. Poderiam candidatar-se ao

vestibular, uma vez que aquele Artigo incluía matérias do último ano do colégio, como Física, Química, Trigonometria, dentre outras.

Assim, prestou, com êxito, o vestibular de Letras na UFRGS. Já no final do curso, Graciema Pacheco, professora de Didática, convidou-a

para ser sua assistente naquela disciplina, o que lhe trouxe uma grande alegria e, ao mesmo tempo, dúvidas: ―Ah, D. Graciema, nem sei... Nunca pretendi lecionar. Vou pensar. A senhora é uma professora excepcional e trabalhar com a senhora é uma honra. Mas eu vou pensar.‖ No dia seguinte, o professor de

Frances, René Ledoux, também convidou-a para uma nova função: lecionar a disciplina de Didática Especial de Francês.

Dessa forma, abriram-se as portas da Universidade para a professora Isolda. Mas faltava ainda uma última etapa na sua vida acadêmica: a formatura,

cerimônia acalentada e esperada durante muitos anos. E, naquela noite de festa, uma surpresa era-lhe reservada, como ela

mesma nos conta:

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No dia em que ―colei grau‖, soube que havia obtido o primeiro lugar no vestibular. Chamaram o Elpídio para entregar o diploma para a ―aluna que tirou o 1º lugar do vestibular e o 1º lugar do Curso de Letras‖. Foi uma emoção! Eu

ignorava esse fato.

A professora

Nunca fui aquilo com que sonhei, que era ser professora de primário. Na Universidade, lecionava para alunos de nível superior, mas com a fundação do

Colégio de Aplicação, eu passei a trabalhar com adolescentes. Na Universidade, Isolda descobre-se como professora do ensino superior:

―Meu destino para o magistério, vinha de longe. Desde a infância e adolescência, alimentava essa idéia: finalmente descobrira claramente minha vocação‖.

E, à medida em que Isolda lecionava, sentia que a professora que vivia dentro de si, desabrochava. Apaixonou-se pela profissão e descobriu-se internamente.

Eu tinha lido um romance, A Mulher de 30 Anos, de Balzac, e num momento o autor dizia sobre a personagem: ―Ela tinha tudo, era uma mulher

de 30 anos, era uma revelação‖. Nessa ocasião eu tinha 28-29 anos e quando comecei a me descobrir como educadora, o prazer que eu tinha em preparar uma aula, de descobrir os caminhos para ensinar a metodologia do ensino da língua portuguesa e da literatura (ao mesmo tempo em que fazia a parte didática, como assistente, e ocupava-me da metodologia do ensino do Francês, que era algo apaixonante), fez-me pensar no romance de Balzac: ‗eu sou a mulher de 30 anos‘, eu desabrochei. Enquanto a baizaquiana se

expressava como encanto feminino, eu me via como uma nova pessoa, percebia a possibilidade de realizar-me de maneira mais completa.

Naquele período, o Reitor da UFRGS, Dr. Elyseu Paglioli, solicitou a Isolda e à professora Graciema que planejassem uma escola, exigência do Ministério da Educação, para a realização do estágio dos ―alunos-mestres‖ nas diferentes disciplinas da ―escola secundária‖.

Nascia então o Colégio de Aplicação, uma fonte inesgotável de

criatividade. Inaugurado em 14 de abril de 1954, uma época efervescente na educação brasileira, em que novas idéias surgiam para revigorar o ensino:

O Dr. Anísio Teixeira, com grande cultura pedagógica, com tendência de esquerda — diziam — foi combatido durante certo período. Mas suas idéias, no entanto, passaram a sugerir mudanças na educação. Escrevia muitos artigos que, de certo modo, responsabilizaram o governo e a nossa vida cultural por não darmos um outro sentido à educação. Nós estávamos bastante impressionados com essas idéias novas que surgiam, não só dele como de outras pessoas também (como

Arthur de Azevedo). Em 15 dias, planejamos o Colégio de Aplicação e tudo o que

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nós sabíamos e o que desejávamos para o ser humano, inserimos como princípio para a educação do adolescente. E conseguimos realizar os nossos objetivos.

O Colégio de Aplicação sempre foi considerado um núcleo extremamente

importante no cenário educacional do Rio Grande do Sul. Incontáveis projetos eram seguidos por outros professores do Brasil que ali se abasteciam de idéias novas e arrojadas. E a professora Graciema, possuidora de uma ampla cultura pedagógica, incentivava, exigia e desafiava os educadores daquela instituição.

E como Isolda amava os alunos daquela instituição! As ―suas crianças‖ eram especiais e para elas trabalhava todos os dias da semana, inclusive aos sábados e domingos. Muitas madrugadas foram dedicadas a projetos e estudos. Havia prazer e envolvimento naquele trabalho. Em retribuição, aqueles alunos nunca a

esqueceram. Há um forte elo que persiste entre eles até hoje. Na época da Feira do Livro, participou da Feira um escritor — Flávio Moreira

— que fora aluno do Aplicação. Hoje é Prêmio Jaboti. Na dedicatória do livro que adquiri, escreveu: ―A D. Isolda que esteve, desde o começo, nas primeiras frases que compus‖. No lançamento de um livro de Luiz Carlos Felizardo, esse escreveu: ―A D. Isolda que me levou a começar coisas das quais hoje eu me orgulho‖. Não seria bem ―a D. Isolda‖, era, isso sim, a influência do colégio nas suas formações.

No dia em que conversava com Isolda, ela contou-me que havia recebido um convite para uma comemoração de 30 anos de formatura de uma turma. Como não poderia comparecer, enviou uma mensagem por fax em que falava do seu carinho por aquela escola. Nela dizia que eles tinham dado sentido à sua vida cultural e que haviam completado a sua vida afetiva, pois o Colégio de Aplicação havia sido uma extensão do seu lar. E reforçou: ―Amo, amei e continuarei sempre amando vocês. Vivia encantada com as ‗respostas‘ de vocês que eu percebia, ouvia e lia.

Respostas criativas, inteligentes, emocionantes. Isso, para um educador, era o máximo que se podia esperar!‖

No Colégio de Aplicação, novas metodologias eram constantemente criadas:

Introduzimos o ensino das línguas por níveis. Uma criança lá iniciava os seus

estudos sabendo um pouquinho de Francês e a outra sabendo muito e ficavam todos na mesma turma. Um não entendia nada do que o professor estava dizendo, o

outro entendia demais e tinha vontade de dormir na classe. Então isso foi uma

coisa belíssima, uma inovação no Brasil inteiro: introduzir o ensino de línguas

estrangeiras por níveis. Fui eu quem fez todo esse trabalho: estabelecer os níveis

para o Francês e para o Inglês (parte metodológica e técnica). Depois nós fizemos

o mesmo para o Latim e por fim uma nova experiência: Filosofia em níveis,

porque alguns alunos traziam muita leitura de casa e outros, coitados, nunca

tinham ouvido falar do que nós tratávamos.

Isolda criou também a utilização da linguagem cinematográfica para o ensino de leitura e de narrações de contos. Com aquela experiência, os alunos

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transformaram-se em magníficos narradores: ―Sabiam como criar ambiente para os seus personagens, sabiam como mostrar a personagem em pontos fundamentais em que surgia como uma estrela em seu conto. Ah! Foi um

espetáculo e foi copiado por muitos Colégios de Aplicação do Brasil.‖ Outros projetos significativos foram desenvolvidos sob a sua coordenação.

Precisaria de uma extensa lista para nomeá-los. Apresento apenas alguns exemplos que nos mostram sua criatividade e capacidade: integração de trabalhos entre áreas diversas, desenvolvimento da capacidade de observação e elaboração escrita e oral a partir das percepções de alunos, criação de um Coral Falado (Coral de Poesias), escrita de ―instantâneos‖:

Em uma época, nós criamos o ―escrever‖ alguma coisa rápida, instantânea,

cinco ou seis linhas. Mas tinham que ser criativas. Íamos para a Redenção2 e saíam ―instantâneos‖ lindos. Até de formigueiros ―saíram instantâneos‖ maravilhosos, sobre o que as formiguinhas carregavam.

O Colégio de Aplicação era um sem-fim de propostas arrojadas, inovadoras e para aqueles alunos as aulas eram um constante descobrir e aprender. Uma das propostas realizadas nasceu de um estágio que Isolda realizou em 1953 na França, no Centre de Recherches Pédagogiques numa escola situada em Sèvres, pequena

cidade perto de Paris. Naquela época, estavam realizando uma grande reforma educacional que atingia principalmente o ensino secundário. Acompanhou uma classe do segundo ano ginasial e aprendeu uma técnica chamada Estudo do Meio, que valorizava a integração do aluno ao meio ambiente. Posteriormente esse conhecimento foi adaptado ao Colégio de Aplicação.

Com aqueles alunos da escola do segundo grau, o ponto de partida e o de chegada eram outros. ―Indispensável fazê-los utilizar, desenvolver suas

capacidades, conscientizá-los de seus recursos pessoais‖, comenta Isolda. Para a criação e desenvolvimento de todas aquelas atividades, Isolda ampliou

sua cultura pedagógica através de várias especializações e cursos de curta duração, pontuais, que abrangiam, cada um deles, um aspecto diferente e necessário para a complementação de sua formação.

Através dos anos, exerceu funções de Chefe de Departamento, onde criou o Laboratório de Metodologia, Ensino e Currículo. Lá foram realizadas dezenas de investigações científicas.

Eram muitas as inovações surgidas naquele verdadeiro laboratório!

2 Parque Farroupilha, em Porto Alegre

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130 Berenice Gonçalves Hackmann Identidade e vida de educadores rio-grandenses

A cultura e o professor

O livro é um bem preciosíssimo e não vai morrer. O livro sofreu um impacto muito grande com a abertura que foi dada à informática, mas já está voltando à sua posição inicial.

Em sua casa, berço de toda a sua formação, havia uma biblioteca com obras diversas deixada por seu pai. Leu muitas delas, mesmo sem apreender plenamente o sentido. Mas apreciava muito aquelas leituras. Lembra-se que havia a Enciclopédia de Obras Célebres onde se encontravam trechos de

romances célebres, contos e excertos de textos de cultura geral. Quando lia sobre povos longínquos pensava: ―Não sei bem quem é esse

povo, mas é lindo. Um dia eu vou saber mais sobre isso...‖ Aqueles textos eram para ela um desafio, um incentivo para conhecer a obra

completa e não apenas um segmento. Essa complementação encontrou, anos mais tarde, em seus estudos literários.

Hoje reconhece que ―A velha Enciclopédia fora uma espécie de bússola norteadora e a leitura tem sido uma fonte perene de prazer intelectual. As

vezes, penso que veio dessa experiência de adolescente algo da diversidade dos meus interesses culturais‖.

Isolda destaca a importância de uma sólida cultura geral, que conquistou graças ao acervo de livros que tinha à sua disposição, em seu lar. Acredita que uma aula só pode ser iluminada com o conhecimento da vida do homem e de uma civilização. Se uma aula se confina dentro de paredes e em pequenos episódios, a imaginação da criança não consegue percorrer espaços e conhecer

o que existe no mundo: ―É uma aula muito morta.‖

E reflete sobre a situação atual da vida de um professor:

Ele ganha muito pouco e tem a sua casa, seus filhos e milhares de compromissos.

Não tem tempo para estudar. Então o professor não tem estímulo para as suas aulas,

que ficam neutras, automatizadas. Todos os dias é a mesma coisa.

Ela acredita que o conhecimento tem uma dinâmica intrínseca e é um meio de comunicação com o mundo. No caso do professor, ―é a relação principal e o elo permanente entre o que ensina e o que aprende‖.

Sempre acreditou que o professor devia levar para a sala de aula uma nova inspiração, um estímulo, um desafio à inteligência e sensibilidade do aluno.

Essa idéia é que embasou o projeto ZH na Sala de Aula: a idéia de trazer o mundo, a cidade, a localidade para a escola. O professor estudava, sabia o que

se passava e levava a ‗criança para‘. A criança tinha de integrar-se na realidade que lhe era oferecida como um convite à busca, à indagação...

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Isolda Holmer Paes 131

Destaca que a criança precisa aprender a caminhar e é o professor que a orienta nessa descoberta. Ela precisa saber ler, aprender, fazer associações e utilizar o que sabe. E é importante para um professor uma ―cultura geral

abrangente para chegar às convergências. Convergir para um ponto que tem que ser alimentado‖.

E coloca-nos dois exemplos:

Se eu digo para a criança: ―Olha, isso é uma maratona que nós fizemos hoje‖ e as

crianças perguntam ―o que é maratona, professora?‖, respondo que maratona é.. [descreve a origem da palavra, remontando à História Grega]. Isso é cultura geral

que o professor tem que saber explicar. E para isso há o livro, o cinema, o conversar

com pessoas. E interesse e assimilação. E saber onde estão as informações que são

boas. E precisa-se fazer também associações: ler, aprender e utilizar o que sabe. Há

pessoas que atravessam a vida inteira a Praça da Matriz e encontram em Copacabana

a ―Rua Décio Vilares‖ e não associam a nada. Mas há outra que reflete: ―Mas Décio

Vilares é o artista que fez o monumento da Praça da Matriz e seu nome está aqui, no

Rio de Janeiro. Será que ele nasceu aqui‖?

Para Isolda, o professor precisa ter compreensão, sobretudo nos dias atuais, em que a criança está, em muitos lares, praticamente abandonada. Muitas famílias estão com poucas condições para educar, pois pai e mãe saem para o trabalho. Com tristeza, diz que o lar perdeu aquele encanto que possuía, pois perdeu o sentido do encontro e aconchego. Além disso, se o pai e a mãe não lêem, a criança pode conservar esses hábitos familiares, situação alterada somente quando encontra fora do ambiente familiar estímulos e oportunidades

para ampliar a sua cultura. Neste ponto da entrevista, Isolda mostra um semblante de preocupação

sobre alguns rumos da educação. Observa que a informática entrou de uma maneira muito violenta na escola. O que deveria ser um recurso, um complemento, uma ferramenta, tomou-se o motivo principal:

Precisamos revisar essa questão. E claro que temos de aproveitar essa tecnologia ao máximo, naquilo que ela tem de bom, mas há certos colégios em

que a criança passa horas a fio no computador, na Internet. Perde um tempo muito grande até achar o que quer e, quando acha, encontra uma informação linear, com pouca coisa, que lhe é ―dada‖ e não ―conquistada‖. Resolve o problema prático, limitado. Isso é prejudicial porque, dessa forma, ela está perdendo o contado com o livro, que é uma fonte muito mais rica e é uma cultura eterna. Usá-lo, significa refletir, reler... Outro dia assisti à conferência de um americano, brilhante, reelaborando idéias sobre o computador, a Internet e o

livro. E ele disse que um homem só se firma no mundo, só participa do mundo, das realidades, só se torna um ser valioso para ele e para o mundo, porque ele sabe, ele conhece e, sobretudo, ele tem a memória para guardar o que aprendeu e

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132 Berenice Gonçalves Hackmann Identidade e vida de educadores rio-grandenses

o que sabe. Mas como é que ele desenvolve essa memória? Não é do nada. Essa memória se faz com conteúdos de todos os níveis, diversificados, é uma coisa rica, que o leva para todas as partes do mundo, estabelece relações no espaço e

no tempo; liberta o ser humano. Essa memória é seu patrimônio, que ele utiliza e com ela colhe os elementos de que necessita. O homem que não tem essa memória, conservada, guardada, do que existe da civilização de ontem e de hoje, é um homem que não ―participa‖. E onde está tudo isso? Está no livro.

Continuando suas reflexões, pensa que aquele que é realmente educador tem desejo espontâneo e natural de crescer em seus conhecimentos e consegue realizá-lo através de um constante estudo. Mas precisa compartilhar o seu saber com outras pessoas e não guardá-lo apenas para si. Vamos acompanhar esses

pensamentos de Isolda: O interesse do professor é fazer o aluno participar das suas ―conquistas‖: elas

são mais valiosas quando incorporadas por outro, que é uma extensão das nossas experiências atualizadas. Transcende ao simplesmente ―ensinar‖. Há uma convocação espontânea da inteligência, sensibilidade, emoções do educando. O conhecimento é reelaborado de maneira singular, pela convergência de todas as potencialidades do aluno. Mais do que ensinar, é conduzir o educando à

descoberta de si mesmo no plano de uma educação humana, criadora e independente.

Isolda reconhece que a sua vida foi escrita em etapas felizes. A assimilação de valores desde a infância formou a base para torná-la uma verdadeira educadora:

O educador, da forma como o identifico hoje, é o que eu acredito ter sido e continuo

sendo. Embora meus interesses tenham tomado outra direção depois da aposentadoria,

o espírito do educador permanece, dando, em muitos casos, parte do sentido da minha

vida na intenção de busca da integração com o outro, visando uma troca, exatamente

como acontece na relação professor-aluno. O educador é visto mais como aquele que ―dá‖, enquanto guia, orienta, ensina. E o aluno apenas como o que ―recebe‖. Mas não é

bem assim. No sistema intelectual de inter-relação, o aluno, salvo exceções, se revela e

essa revelação é um momento único para o professor. É nessa realidade complexa,

singular para cada ser, que o educador descobre direções válidas para organizar uma

experiência que se complete no plano intelectual e humano.

Uma cultura milenar: o vinho

Nesses 20 anos em que só estudo a história de vinhos, posso dizer que ainda não sei o que quero saber... E gosto de ensinar o que aprendi. Gosto de

ensinar essa história de vinhos.

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Isolda Holmer Paes 133

Isolda aposentou-se com 69 anos de idade. Alguns dias depois do início da aposentadoria, estava ela sentada em sua sala e lembrou-se de dois livros, recém-comprados, que nem tinham sido abertos. Eram livros de linguística aplicada.

Chegando à sua biblioteca pensou: ―Vou aproveitar as minhas férias agora e fazer essa leituras‖. Abriu o primeiro livro sobre linguística e não quis prosseguir a leitura. Havia uma fundamentação matemática muito complexa. Refletiu que já passara 40 anos presa ao contexto educacional. Queria mudar, traçar novos caminhos.

Então pegou um livro — uma obra esgotada — sobre enologia e viticultura. Começou a ler e pensou: ―Meu Deus, eu tenho paixão por vinhos! Eu vou ler este livro antes de tudo.‖

Estava iniciando uma nova direção na sua vida intelectual. A professora que sempre viveu dentro de si, voltou a se manifestar. Só que agora era outro o tema de estudos, outro o desafio. E começou a estudar enologia como se fosse uma aluna preparando-se para ser professora sobre esse campo do conhecimento.

Hoje, Isolda é uma pessoa que ministra e organiza cursos e dá assessorias sobre a cultura do vinho. E continua a compartilhar: ―Se vou à França e descubro um vinho, a primeira coisa que eu tenho vontade de fazer é contar a

minha experiência. E aí escrevo para alguém. Mas preciso aprender mais‖. A sua vida foi sempre voltada entre o querer, o saber e depois o querer

―legar‖ para o outro o que lhe ensinaram: ―Tudo que eu aprendi sempre tenho que contar para o outro. E hoje, continuo igual.‖

A biblioteca atual de Isolda tem quase 500 volumes sobre enologia. Para aprimorar seus estudos, lê muito e viaja mais sistematicamente do que fazia antes, visitando as caves da França.

Organizou sua experiência sobre o assunto e reconhece que possui muita leitura sobre esse tema que preenche quase todos os dias de sua vida atual.

Hoje eu acho que ainda não sei nada. Falta-me um conhecimento que eu nem vou adquirir, que não terei tempo para isso, que é o conhecimento do vinho dentro do copo. Sei muitas coisas, mas não sei ainda algumas que eu queria saber. O assunto é mais complexo do que parece.

Conhece também in loco a cultura vinícola de Portugal, Itália e Espanha. Em sua casa, reúne pessoas que querem conhecer mais sobre vinhos. Para

elas, organiza materiais escritos e promove aulas de degustação, ensinando-lhes a arte de degustar.

A sua alma é esta: ser educadora. As pessoas que conhecem Isolda e sabem de sua competência sobre o

conhecimento do vinho, fazem a mesma pergunta que eu não consegui deixar de fazer: se ela está escrevendo um livro sobre essa cultura, pois esse saber

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134 Berenice Gonçalves Hackmann Identidade e vida de educadores rio-grandenses

precisa ser compartilhado com um maior número de pessoas. E ela responde-me:

Não, eu não estou escrevendo, É uma tristeza! Sou exigente. Para escrever, quero

me dedicar. De vez em quando, eu escrevo coisas que acho muito boas e ponho de

lado. Eu acho que quero escrever um livro. Muitos, até, porque tanta coisa eu tenho

―apontado‖! Mas corno sou tão absorvida por tudo e todo mundo me solicita tanto,

nunca tenho tempo! Alguma coisa eu escrevi sobre episódios muito pitorescos da

minha vida, das minhas viagens. Muitas vezes escrevo cartas. Mas o que me atrai é o

que se relaciona com a educação. Eu poderia ter escrito... tantas as experiências que

foram feitas na educação!

No momento em que terminei de escrever esta história, baseada naquela narrativa tão significativa realizada em sua sala, num edifício próximo à Praça da

Matriz, no coração de Porto Alegre (rodeada de obras de arte e móveis que também nos contam histórias), reli a trajetória de Isolda e questionei-me sobre como seria a visão de outras pessoas sobre esta figura tão carismática.

Minha escolha recaiu sobre um casal de amigos que realizou uma viagem à França e que, para conhecer mais sobre vinhos, contou com a assessoria e orientação de Isolda nas visitas às caves de algumas vinícolas. Achei interessante contar com o olhar de pessoas que conheceram a professora no seu lado da ―paixão pelo vinho‖. A coleta desses dados reforçou a minha convicção

de que, quando se é um professor e educador, se é por inteiro, sempre. Apreciadores da arte do vinho, Rubem e Valéria Kunz viveram dias

inesquecíveis e constataram que a professora que sempre habitou Isolda, continua muito forte: ―Ela nunca deixou de ser professora e está usando tudo o que sabe de pedagogia para ensinar as ‗coisas‘ do vinho‖.

Apenas ―supervisionei‖ essa narrativa. A tessitura dos depoimentos, mais uma vez, foi urdida e penso que você,

meu leitor ou leitora, vai deliciar-se com este relato tanto quanto eu! Confesso que não foi difícil reconstruir mentalmente aquela viagem e, ao trazê-la a este texto, a história de vida de Isolda ganha novas cores e nuances.

E, agora, dou voz a essas outras vozes. A primeira vez em que ouvimos falar de Isolda, foi através de um artigo

publicado na Zero Hora, na década de 70, sobre uma viagem sua a Palmira, um lugar cheio de ruínas, no deserto do Líbano. Ela havia feito aquele roteiro com

uma sobrinha, de táxi, deserto adentro, para ver o fenômeno que lá ocorre no entardecer e no amanhecer, quando o sol dá um tom avermelhado belíssimo às areias e pedras. Ficamos curiosos para conhecer aquele local.

Passaram-se aproximadamente 20 anos e só em 1994 conhecemos Isolda, pessoalmente, em Bento Gonçalves, num evento de degustação de vinhos. Uns dois anos depois, a convidamos para vir a Taquara para participar de uma reunião

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Isolda Holmer Paes 135

que um grupo de pessoas interessadas em conhecer e degustar vinhos organizou. Escolhemos alguns vinhos sobre os quais ela falou longamente.

Alguns dias depois, juntamente com amigos apreciadores de vinhos, fomos

à sua casa. Lá, nos foram apresentados três vinhos e recebemos mais uma aula sobre o assunto. Começamos, a partir daquele dia, em um grupo menor, a ir semanalmente a essas agradáveis reuniões de estudo, e convivemos com esse seu lado de professora! Ela preparava, durante a semana, um polígrafo datilografado (depois passou a usar textos elaborados no computador) que nos entregava, junto com mapas das regiões vinícolas abordadas.

E a aula sobre tal vinho começava. Ela explicava-nos, ensinava- nos e mostrava-nos também, indiretamente, a sua permanente e contínua capacidade

de aprender. E como sabia tornar o assunto interessante, descontraído! Deixava-nos ―ligados‖, atentos e apresentava seus saberes de uma maneira tão especial, que demonstrava sua longa experiência de docente. Era agradável ouvir suas explanações, com idéias expostas de forma clara, num fluir de observações extremamente organizadas e pertinentes.

Nesse tempo de convivência, vimos que Isolda é ser humano ímpar, com muita vida interior. Consegue, por isso, transmitir essa alegria de viver através

do ensino de coisas prazerosas. Sabemos que antes, tinha o foco de atenção na educação e hoje no vinho e, como é reconhecida pelos enólogos, recebe convites de várias partes do Brasil e do mundo para proferir palestras e orientar assuntos específicos.

Soubemos que, muitas vezes, ela colaborava (e ainda colabora) com autores de livros sobre enologia e que, pela modéstia, não exige que seu nome seja identificado na publicação.

Isolda já havia viajado pela Europa muitas vezes com roteiros e objetivos diferentes, que incluem igrejas românicas, góticas, mosteiros, realizando, por assim dizer, viagens temáticas. Possui uma cultura enorme, fantástica, em várias áreas de conhecimento: história, geografia, antropologia...

Então, para interessar-se pelo vinho, que tem toda uma cultura que embasa a sua compreensão, pois está ligado à história da humanidade, foi um passo. Era um assunto que despertava sua atenção. Como ela já conhecia a França, onde o vinho é bastante valorizado, começou a revisitar muitos locais, fazendo roteiros por regiões

e ficando, todos os anos, por dois ou três meses naquele país. Em 1997, resolvemos viajar pela Europa e planejamos permanecer de sete a

dez dias na França. Perguntamos se ela aceitaria planejar e realizar uma parte do roteiro conosco. Ela aceitou e preparou a nossa viagem durante meio ano. A cada semana ela mostrava-nos um ―capítulo‖ do planejamento. Havíamos escolhido a região da França a ser visitada e ela criou um roteiro que incluía um estudo sobre as vinícolas daquelas localidades, com seus vinhos, história, costumes...

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136 Berenice Gonçalves Hackmann Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Viajamos e começamos os nossos passeios que, a cada dia, ampliavam nossa ―bagagem‖ de conhecimento, pois eram, na verdade, extremamente culturais.

Um dia, estávamos percorrendo um lugar e procurávamos um hotel para

nos hospedarmos. Ela, prontamente, exclamou: — ―Ah! Aqui do lado há uma cidadezinha que tem uma igreja tal...‖ e

contou-nos detalhes incríveis, que indicavam que conhecia minúcias sobre o lugar (sobre todos os locais visitados ela sabia contar uma história; não que necessariamente os tenha visitado, mas lia muito e os livros são portais para conhecer o mundo).

Um dia a observamos lendo um livro. Vimos que, à medida que ia lendo, fazia anotações com uma caneta ao lado do texto. Acreditamos que é assim que

ela aprende e consegue ir fazendo associações, alicerçada em uma grande bagagem cultural. Por exemplo: como ela conhecia a história dos fundadores dos mosteiros que divulgaram os vinhos pela região de Borgonha até abraçar toda a França e Europa e como ela havia visitado todos esses lugares, conseguia fazer as relações necessárias para compreender aquele assunto mostrado no livro.

Sua facilidade imensa em comunicar-se e em relacionar-se foi demonstrada

já no primeiro dia em que chegamos a Paris. Constatamos essa habilidade enquanto jantávamos num restaurante. Ela começou a conversar com o garçom em francês (língua que fala fluentemente) e, após algum tempo, tinham estabelecido tal empatia que ele a convidou para visitá-lo, e à sua família, em sua casa situada em uma cidadezinha próxima.

Isolda mantém uma intensa correspondência, conseqüência da admiração que despertou nas pessoas que conheceu. Elas não a esquecem e continuam os

contatos através de cartas. Certo dia, fomos visitar, pela primeira vez, uma vinícola. Ao chegarmos lá,

confirmamos que ela já tinha lido tudo sobre os melhores vinhos daquela empresa, sobre a fabricação — propriamente dita — daquele vinho e sobre o prédio — que era histórico. Realmente, havia feito uma fundamentação para realizar a visita. É claro que isso a diferencia das outras pessoas.

Durante a viagem, Isolda quase não dormia à noite e, inclusive, brincava conosco, dizendo:

— O que vocês têm tanto que dormir? Ela lia durante horas o programa planejado para o dia seguinte e assim sabia

a história da cidadezinha por onde íamos passar, sobre seu patrimônio e outros detalhes. Sempre levava junto, uma pasta enorme, onde colocava as pesquisas, as anotações. De cada região ela sabia, inclusive, a comida ou os pratos típicos. Quando perguntava algo, anotava, pedia para soletrar, solicitava detalhes e outras informações. Ia valorizando o fato, sempre com muito bom humor.

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Isolda Holmer Paes 137

Igualmente, mantinha um diário onde escrevia tudo o que acontecia durante o dia. Desses relatos, nascem as dezenas de pastas que possui, organizadas em sua biblioteca e que contam, cada uma delas, uma viagem realizada, com seus

roteiros minuciosamente registrados, com comentários, fotos e descrições do tipo ―Jantamos em tal lugar‖...

Possui uma incrível agilidade e, às vezes era muito difícil acompanhá-la! Uma noite, estávamos combinando o horário para o dia seguinte. A agenda era bem extensa e já começávamos a sentir o cansaço. E mais uma vez ela surpreendeu-nos:

— Isolda, amanhã pela manhã, a que horas vamos nos mexer? Nove horas está bem?

— Às 9 horas já perdemos um monte de coisas‘! —8 e meia? — Oito horas está bem! — Está bem, Isolda. Oito horas! — Oito horas aqui! Prontos para sair! Finalizamos aquele roteiro planejado e prosseguimos a viagem. Ela

retornou a Paris.

Após 15 dias, marcamos um jantar com Isolda para conversarmos e brindarmos, mais uma vez, aquela maravilhosa viagem. Foi um encontro agradável e soubemos que ela esperava para o dia seguinte a chegada de uma amiga, de Porto Alegre, que permaneceria duas ou três semanas na Europa. Juntas partiriam para a Itália! Mais outra viagem, mais outro roteiro!

Meus Deus! Ela tem muita energia! E é maravilhoso constatar a capacidade e o gosto que ela tem, de ensinar e

de se fazer lembrar. Se passou alguma vez por algum lugar, a pessoa que conversou ou com ela conviveu, mesmo que por breve intervalo de tempo, não vai esquecê-la.

Certa vez, no sul da França, ela visitou uma vinícola e fez amizade com o vinhateiro. Tempos depois, ele escreveu-lhe uma carta, lírica, falando que ela precisava voltar lá. Dizia ele, mais ou menos assim, que era a época em que...

...as folhas estavam ficando amareladas,

...que era próximo do outono,

...que as uvas estavam maduras nos pés,

...que iam começar a colheita,

...que os campos estavam bonitos,

...que havia um aroma especial... e que ela precisava retornar.

É sinal que ele havia guardado essa pessoa tão especial em sua memória.

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Palavras finais

Quando realizava a revisão dessa narrativa, em setembro de 2001, Isolda mais uma vez preparava-se para ir para a França, e dela recebi uma correspondência com seu ―endereço temporário‖, em Paris. Lá estava findando o verão e logo chegaria o outono.

Lembrei-me então que sua mãe insistia para que ela percebesse a diferença

entre ―a luz branca e fria do verão e a luz do outono, suave, pura, de um brilho nítido, em que havia qualquer coisa de bruma azulada, cedo pela manhã e ao cair da tarde‖. O outono era a trégua entre o verão vibrante e o frio e melancólico inverno. E comentou Isolda:

Ainda hoje, esse é o outono que amo. Percebo a suavidade, o brilho e a atmosfera levemente irreal, em que, se não vejo, imagino a bruma azulada. Sou uma libriana, portanto fantasia e realidade estão presentes na minha

visão de mundo. Sei que ela está feliz em Paris. É outono, está aprendendo mais ―coisas

sobre o vinho‖, comunica-se e... continua olhando novos horizontes. Sobre Isolda, ainda há assunto para um livro inteiro, mas outras pessoas

poderão prosseguir, completar e reescrever sobre essa história de vida. Levanto-me da cadeira frente ao meu computador e olho pela janela. No

horizonte vejo o Morro do Ferrabrás, onde há uma plataforma para vôo livre, E penso nos vôos de Isolda. Vôos que procuram sempre um infinito aprender,

compartilhar e viver. Acredito que a nossa amiga já caminhou pela encosta do morro, onde hoje está

a minha casa e imagino que aqui existia um arvoredo cheio de barba-de-pau. Num passe de mágica, vejo a pequena Isolda procurando os ―enfeites‖ para

o seu ninho e colhendo macela carregadinha do orvalho da noite. — Mamãe, olha só o que descobri! Um ninho de pássaro caído no chão! E D. Zeca, amorosamente, responde:

— Querida, vamos tentar devolvê-lo para o galho de onde caiu. Olha, vamos fazer assim...

Mais uma lição. Mais um fio para essa teia mágica de amor que agora Isolda, também a nós, ensina a tecer.

Professor é aquele que precisa ter sempre um aluno para sempre aprender, ensinando.

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Isolda Holmer Paes 139

Taquara, primavera de 2001. 3

*

ISOLDA HOLMER PAES Local de nascimento: Taquara. Data de nascimento: 27-09-1911. Filiação: Francisco Otto Holmer e Maria José Wellausen Holmer.

Bacharelado e Licenciatura em Letras (1946/1947) pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Cursos de Extensão, Especialização e Aperfeiçoamento nas áreas de Linguística; Teoria e Crítica Literárias; Estilística Aplicada; Filologia Portuguesa; Literatura Portuguesa; Filosofia Grega.

Estágios nos ―Centre de Recherches Pedagogiques de Sêvres‖ — França e no ―Consejo Superior de Pesquisas de Madrid‖ — Universidade de Madrid — Espanha (como convidada especial).

Exercício do Magistério no Instituto de Letras — Faculdade de Educação/UFRGS; Instituto de Educação ―General Flores da Cunha‖ (Porto Alegre) e Escola Técnica Ernesto Dornelles (Porto Alegre).

Publicações: ―Fundamentos do Estudo Dirigido para as escolas do SENAI‖; ―A experimentação especificamente didática‖, 1973; ―Formação intensiva do professor — Microexperiência de ensino com modalidade de treinamento‖ — Edição INEP (Esgotado); ―Cadernos de Metodologia — Comunicação e

Expressão — v. 1 (Projeto prioritário para o ensino de l grau)‖ — Edição do MEC, 1976.

Presidente das Comissões Especializadas em Ensino de Língua e Literatura, Linguística Aplicada, Educação/UFRGS; da Comissão de Supervisão e Execução do Concurso Vestibular da Faculdade de Direito/UFRGS; da

3 Este texto foi construído, em uma forma dialógica, através das entrevistas realizadas

com Isolda Holmer Paes, Rubem e Valeria Kunz, permeadas pelos contatos que

mantive, ao longo de vários anos, com a ―nossa‖ professora. O texto transcrito retornou

às suas mãos, que realizou algumas alterações, completando, inclusive varias

passagens. Efetivadas as modificações, reenviei-lhe a narrativa para que pudesse fazer

a validação e outras interferências ocorreram. Movimento semelhante foi realizado com

os outros narradores que se uniram à nós.

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Associação Lígia Averbuch (em duas gestões); da Associação dos Amigos do Museu de Artes do Rio Grande do Sul (por duas gestões); do Conselho da Associação do Ex-aluno da UFRGS e, durante 10 anos, da COPERSO (Comissão Permanente de Seleção e Orientação/UFRGS),

Coordenadora do Laboratório de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação (foi também Membro Fundador); da Arca de Linguística do Colégio

de Aplicação da UFRGS; dos Exames de Suficiência da Faculdade de Filosofia da UFRGS.

Participação no planejamento do Colégio de Aplicação de Florianópolis e Belém do Pará; em Congressos de Educação em Porto Alegre e em outros Estados (com apresentação de trabalhos); no planejamento e execução do projeto ZFI na Sala de Aula/RBS — 1980.

Membro das Comissões: do Concurso para a Faculdade de Filosofia da UFRGS; dos Exames de Suficiência de Francês, Espanhol e Língua Portuguesa — Faculdade de Filosofia/UFRGS; do Planejamento, Implantação e Desenvolvimento da Faculdade de Educação/UFRGS; da Banca Examinadora dos Exames de Suficiência para Professores do Ensino Profissional do RS; do Conselho Consultivo da Associação de Bibliotecários do RS; do Concurso de

Provas para Registro Definitivo dos Professores do Ensino Comercial — Faculdade de Ciências Econômicas/UFRGS; do Anteprojeto de Reestruturação dos Quadros do Pessoal dos Serviços das Escolas Técnicas do Estado — Superintendência do Ensino Profissional; do Anteprojeto de Registro Interno do Colégio de Aplicação/UFRGS. Foi também membro do Conselho Estadual de Cultura; da Sociedade Brasileira de Planejamento; da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência: do Conselho Consultivo da Sociedade Rio-

grandense de Educação; do Conselho Consultivo da Associação dos Amigos da Biblioteca Pública do Estado; do Conselho Consultivo da Associação de Bibliotecários do RS; do Conselho Deliberativo do Centro Cultural Franco- Brasileiro — Alliance Française: do Instituto de Cultura Hispânica/PUCRS; do Conselho Deliberativo da Fundação Teatro São Pedro.

Outras Atividades e Funções: Participou da fundação das lª e 10ª Alliance Française de Porto Alegre, em 1947 e 1968: do planejamento e instalação do Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia/UFRGS, por designação do Reitor Elyseu Paglioli, em colaboração com a Professora Graciema Pacheco; da Direção do Colégio de Aplicação/UFRGS; foi Educadora-Assistente da

CADES/Ministério de Educação junto às classes experimentais do Instituto de Educação General Flores da Cunha e do Colégio Americano; foi Chefe do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação/UFRGS;

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Isolda Holmer Paes 141

organizou a equipe especializada das diversas disciplinas do Ensino Médio para a elaboração de provas objetivas do Vestibular em convênio com a Fundação Carlos Chagas; ministrou cursos e proferiu palestras na área da educação em

diversos municípios do Rio Grande do Sul, como Porto Alegre, São Leopoldo, Caxias do Sul, Pelotas. Lajeado, Jaguarão, Rio Grande, Santa Maria; participou de dezenas de congressos e encontros nas áreas da educação, folclore e tecnologia aplicada à educação; foi representante da Alliance Française no Centenário das Alliances Françaises dos cinco continentes, em Paris, em 1986; produziu artigos, proferiu conferências e concedeu entrevistas, em jornais, rádios e emissoras de televisão do sul do Brasil, sobre a França e vinhos franceses; participou de várias edições da VINEXPO (Salão Mundial de Vinhos e

Destilados, maior evento anual do setor realizado tradicionalmente em Bordeaux/França).

Outras Participações e Distinções: ―Officier d‘Académie‖, título concedido pelo Governo da França por serviços prestados à cultura francesa, 1955; ―Personalidade Feminina do Ano‖ em Educação, 1976; ―Professora Benemérita‖ da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), 1987; ―Professora Emérita‖ da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); ―Prêmio em Educação Tereza Noronha‖, 1997; ―Mulheres de Ouro‖, 1992; ―Destaque Profissional‖ da Associação Diplomadas Universitárias, 1991; Medalha da Academia Brasileira de História; Presidente da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho/RS, sendo responsável pela

apresentação e degustação de vinhos franceses: Membro da ―Association of Wine Tasters‖, Maastrick, na Holanda, e ―Chevaliers du Taste-Vin‖, na Borgonha/França; Título de Chevalier, conferido pela ―Association Internationale de Maitres Conseils en Gastronomie Française‖ — 1989; Título de ―Cofrère Compagnos‖, recebido na Holanda em maio de 1996; ―Membro Honorário da Confraria De Landier‖, título conferido pela Bacardi-Martini do Brasil através de sua Divisão de Vinhos Finos de Garibaldi no RS — 1996; ―Madrinha de Honra da 1 Feira de Vinhos de Flores da

Cunha‖ — 1997; ―Embajadora Universal de los Vinos dei Mundo 1998‖, título conferido pela Confraria Internacional Los Vinos y la Pachamama — Mendoza/Argentina — 1998; ―Troféu Vitis‖ da Associação Brasileira de Enologia — ABE em Bento Gonçalves — 1998; Participação no ―Congresso Mundial e Concurso La Mujer Elije‖ em Mendoza — Argentina — 1999/2000; ―Troféu Enoteca Italiana‖ e o título de ―Sócia Honorária da Soaves‖ — ES — 2000. Por seus trabalhos junto à enologia, recebeu dedicatória especial em sua homenagem no

―Guia dos Vinhos Brasileiros‖ publicado pela Academia do Vinho —2001.

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142 Berenice Gonçalves Hackmann Identidade e vida de educadores rio-grandenses

*

Isolda Holmer Paes faleceu subitamente em 26 de janeiro de 2002, vitimada por um ataque cardíaco, ocorrido em sua residência.

A mestra e ―dama do vinho‖ viajou para outros horizontes, mas permanece conosco o exemplo de sua vida: seu caráter, sua maneira especial de ser e viver, sua grandeza, espírito de doação e sua enorme cultura e sede de aprender.

Continuará sempre sendo a ―nossa‖ eterna Professora e orgulho-me de

tê-la conhecido.

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Itália Aronne de Leão Uma história de vida

HELENA SPORLEDER CÔRTES Doutora em educação pela PUCRS. Professora da FACED-PUCRS

JUSSARA DA ROCHA FREITAS

Doutora em educação pela PUCRS. Professora e Vice-Diretora da FACED-PUCRS

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144 Côrtes e Freitas Identidade e vida de educadores rio-grandenses

A tarefa de reconstruir a trajetória profissional e pessoal de Itália Aronne de

Leão se reveste de um duplo valor, na medida em que se, por um lado, representa a possibilidade de resgate e reconhecimento à sua condição essencial de ―educadora‖, por outro configura a oportunidade de divulgar o papel decisivo e a posição de importância que a ―mulher-gaúcha-professora‖ desempenhou, ao longo da história da educação rio-grandense e brasileira.

Itália Aronne nasceu em Porto Alegre, no bairro Menino Deus, em 23 de outubro de 1912, filha de Gaetano e Genoveva Aronne, imigrantes italianos.

Casou-se, em 25 de janeiro de 1936, com Mário Borges de Leão, do qual enviuvou em 1972, após 36 anos de uma união estável, que não gerou filhos, mas na qual sonhos e ideais profissionais foram compartilhados e vividos com a mesma intensidade.

Tendo ingressado no Grupo Escolar 13 de Maio (atual E. E. Presidente Roosevelt, no Menino Deus), lá terminou o curso Primário, passando, em seguida, para a chamada Escola Complementar Estadual, que funcionava na Rua

Duque de Caxias, esquina com a Rua Gen. Auto (onde hoje se localiza a Casa Civil do Governo do Estado). Ingressou, depois, na Escola Normal do Estado (onde, mais tarde, passou a funcionar o Colégio Sévigné), concluindo o curso de Magistério, em 1929, nesta escola de formação de professores que seria o embrião do tradicional Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha.

Aluna comprometida e estudiosa, fugiu aos padrões do seu tempo ao matricular-se, na mesma Escola Normal, no Curso de Aperfeiçoamento — na época, uma espécie de pós-graduação, com duração de dois anos, equivalente à

Especialização — já por querer viver de forma mais intensa o objetivo de vida profissional a que se propusera: ser professora.

Concluído o referido curso, em 1932, Itália recebeu sua primeira nomeação para o exercício do cargo de professora da Rede Estadual de Ensino no Grupo

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Itália Aronne de Leão 145

Escolar Cassiano do Nascimento, na cidade de Pelotas, onde lecionou durante o período de um ano, que, à época, era o tempo regulamentar que as jovens e recém-formadas professoras tinham que cumprir no interior do Estado, ao

iniciarem suas carreiras no magistério público. Tendo obtido sua transferência para a capital, começou a lecionar, em

1933, no Grupo Escolar Voluntários da Pátria, onde ficou até 1939. Nesse ano, transferiu-se para o Grupo Escolar Fernando Gomes, tendo lá trabalhado até 1946, quando a escola foi transformada em Colégio Profissional Técnico Ernesto Dornelles.

Em 1947, realizou Curso de Aperfeiçoamento em Língua Portuguesa, com o Prof. Guilhermino César, evidenciando, mais uma vez, a personalidade inquieta,

em permanente busca de evolução profissional, que sempre a caracterizou. A esse tempo, Itália ingressou no então Grupo Escolar Paula Soares (hoje, Escola Estadual Pio XII), onde trabalhou até sua aposentadoria, em 1962.

Ao longo de sua vida como professora primária do ensino público, no Rio Grande do Sul, muitas foram as ocasiões em que Itália Aronne de Leão se destacou como educadora e manifestou seu talento peculiar para a atividade profissional que abraçara, não só produzindo alguns trabalhos expressivos relacionados à área

pedagógica (participação ativa na produção de textos para periódicos educativos da época e na realização de pesquisas oficiais sobre a história da educação rio-grandense), como mantendo sempre vivo e comprometido o prazer que o trabalho junto a seus alunos, em sala de aula, lhe proporcionava.

Assim, na década de 50, escreveu para a prestigiosa Revista do Ensino, periódico tradicional da Secretaria Estadual de Educação, os artigos ―A mãe e a criança‖ e ―A mentira na criança‖, que, subjacente aos singelos títulos,

característicos desse período histórico, revelavam sua preocupação pedagógica com as questões afetivas que envolvem a formação essencial do ser humano, desde a mais tenra infância.

Também é desta fase a pesquisa que empreendeu, junto a uma seleta equipe de professores, sobre grandes personalidades da cultura rio-grandense da época, o que lhe permitiu entrevistar pessoalmente figuras como Erico Verissimo, Eloy José da Rocha, Adroaldo Mesquita da Costa, Elpídio Paes, Manoelito de Ornelias, Ruy Cirne Lima, Dante de Laytano, Lila Ripoli, entre

outras expressões consagradas do cenário cultural gaúcho. Apesar dessa significativa produção intelectual — pouco comum em

tempos em que às professoras primárias estava destinado o trabalho rotineiro de desenvolverem os conteúdos programáticos oficiais, à espera das inspeções e avaliações regulamentares definidas pelos órgãos superiores, em nível estadual e nacional — quase tudo se perdeu em meio ao usual descaso brasileiro com a preservação de sua memória: a desocupação e demolição do

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146 Côrtes e Freitas Identidade e vida de educadores rio-grandenses

prédio onde seu grupo de pioneiras escrevia (à mão, e sem cópias...) a história de grandes expressões da cultura gaúcha, ainda incompleta, fez desaparecer, sem que ninguém soubesse como, a pesquisa realizada, e um incêndio

(criminoso) de certas proporções, na então Secretaria de Educação Estadual, transformou em cinzas as revistas didáticas em que escrevera e que ali estavam armazenadas, restando algumas poucas de que já não se têm notícias.

Essa, talvez, seja uma das questões essenciais a ser apontada como referência básica neste trabalho de ―garimpo‖ dos ―pedaços de vida‖ de pessoas que construíram, de alguma forma expressiva e marcante, a história de nossa educação: onde estão ―os produtos‖ de tantos que se dedicaram, por toda uma vida, à causa da formação de crianças, jovens e adultos? Quanto esforço e

dedicação à tarefa tão fundamental foram esquecidos e perderam a oportunidade de valorização e reconhecimento públicos? Quantos anônimos foram descobridores ou estimuladores de múltiplos talentos que, mais tarde, obtiveram destaque, mas nunca tiveram reconhecidas as suas próprias qualidades? A tentativa de resgatar um pouco desta memória individual e coletiva, que mesmo perdida em suas comprovações concretas, pode ser abstratamente reconstruída por uma tarefa como essa que aqui empreendemos,

define-se quase que como um mea culpa histórico-educativo... ―Dona Itália‖, como todos a chamavam, representou para os que com ela

tiveram o privilégio de conviver, a síntese do que se costuma denominar de ―Mestre‖, no bom e velho sentido da proposta pedagógica da Grécia Antiga — aquele que congrega junto a si um grupo de discípulos sedentos de saber. Mas, talvez mais do que desenvolver construtivamente com seus alunos um diálogo sempre aberto, de inspiração ―socrática‖, agregava à sua ação docente — por

estar naturalmente agregado à sua forma pessoal de viver — um ―otimismo pedagógico‖ digno de alguns dos mais proeminentes pensadores da educação contemporâneos. Havia nela, desde um arraigado senso de respeito à individualidade de seus alunos, característico de uma visão educacional humanista, quase ―rogeriana‖, até uma inquebrantável fé em suas condições de aprender ―qualquer coisa‖, desde que quisessem (pois que todos têm capacidade para isso), numa rara demonstração, à época, dos princípios de uma ―educação inclusiva‖, tal como hoje a concebem teóricos progressistas.

Não só foram testemunhas desta ―filosofia educacional‖ seus alunos regulares, nas escolas públicas por onde passou, na capital e no interior, como, talvez principalmente, os inúmeros e diversificados alunos particulares que atendeu, em sua própria casa, transformada em escola de todos os níveis e graus de ensino, por mais de trinta anos.

Por conta disso, aliás, é que sua trajetória profissional precisa ser divulgada e, até discutida, à luz das concepções pedagógicas que norteiam a caminhada

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Itália Aronne de Leão 147

atual de professores em exercício e de alunos universitários que se preparam para o magistério. Itália Aronne de Leão é figura de destaque na educação gaúcha, não só por ter trabalhado incansavelmente, por mais de trinta anos, como professora

da escola pública, no Rio Grande do Sul, mas por ter se constituído, durante esse período e depois dele, talvez, na mais famosa Professora Particular do Estado. E é a singularidade de sua ação docente, nessa condição, que determina a importância de que seja aqui, mais do que uma referência de história profissional, um objeto de reverência como exemplo de vida pessoal.

O aprendizado de conceitos, princípios, hábitos e atitudes, que promovia singularmente, reunindo ao redor da mesa de sua sala de jantar, um conjunto de alunos de extrema heterogeneidade: adolescentes em ―segunda época‖

(denominação dada ao exame de ―recuperação‖ à segunda e definitiva chance oferecida pelas escolas a quem não havia conseguido a aprovação final e a conseqüente promoção para a série seguinte, em alguma disciplina do antigo Ginasial ou do Colegial); jovens em preparação para o Concurso Vestibular (ainda não existiam os hoje famosos e ―indispensáveis‖ ―Cursinhos‖); crianças com dificuldades de aprendizagem em alguma área específica, atendidas em ―aula particular‖ (instrumento então muito disseminado, essencial, inclusive, para a

superação de problemas de relacionamento professor-aluno, já que, quase sempre, segundo a família, a professora de classe ―perseguia‖, ―não dava atenção‖ ou ―não compreendia‖ as características pessoais e a excelência dos atributos do seus ―pimpolhos‖); jovens e adultos que se preparavam para realizar provas de qualificação em concursos públicos e privados; meninas que, como nós, estudavam para o exame de seleção do Curso Normal — e cujo sonho de se tornarem um dia ―Normalistas‖ dependia de uma acirrada disputa pelas poucas vagas de cada uma

das prestigiosas Escolas Normais da época... A trajetória de vida profissional de D. Itália é, portanto, como já foi indicado,

singular. Ao contrário de inúmeras outras colegas, que fizeram da sala de aula convencional o espaço de sua ação comprometida, ela se destaca — paradoxalmente — por ter aberto e sedimentado com sucesso, uma alternativa pedagógica aos problemas oriundos desta sala de aula: dificuldades de aprendizagem em certas áreas; reforço ao que não foi significativamente aprendido; retomada do que não se aprendeu em tempo hábil; possibilidade de

aprender o novo e o diferente, em relação ao já aprendido; oportunidade de atualizar e aperfeiçoar o que se aprendeu há mais tempo.

Se é na escola que devemos aprender como fazer da vida uma oportunidade de crescimento permanente, não menos verdadeira é a constatação de que é igualmente na escola que, muitas vezes, não conseguimos apreender a relevância e a utilidade dos conteúdos ensinados, ou não nos são oferecidas as condições de desenvolver suficientemente nossos hábitos e atitudes em relação

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ao estudo desses conteúdos (e ao nosso correspondente compromisso com eles) — não ―gostamos‖ de Língua Portuguesa, não entendemos ―por que‖ estudar Matemática, não compreendemos o valor das Ciências, e a conseqüência,

natural e institucionalizada, é buscar uma alternativa de reversão desta postura na famosa ―aula particular‖.

Todavia, uma das características desse modus operandi didático é definida pela própria designação: buscamos alguém que nos ensine de um modo particular, individualizado, que nos permita superar as lacunas de conhecimento identificadas, já que não obtivemos resultados significativos (ou práticos), quando nos ensinaram a(s) mesma(s) coisa(s) junto aos demais colegas de classe. É aí, então, que emerge a singularidade do fazer pedagógico

de D. Itália — ela conseguia, como ninguém, ministrar aulas particulares ―em grupo‖, não que agrupasse os alunos por algum critério específico (idade, série, conteúdo a estudar, por exemplo) que indicasse possibilidade de integração de interesses e/ou de otimização do atendimento prestado, mas, sim, porque atendia a todos simultaneamente!

A peculiaridade dessa forma de organização docente, aliada à originalidade de sua qualificação (uma vasta cultura geral) e aos seus inequívocos dotes de

personalidade (otimismo constante, crença na capacidade de todos, gosto por ensinar) faziam dos momentos desfrutados a seu lado — e nessa insólita situação — uma experiência única e, hoje sabemos, inesquecível.

Vivemos essa experiência, e é por isso que a reconhecemos como muito especial, para nossa profissão e para nossas vidas. Com D. Itália, descortinamos, pela primeira vez, a provável diferença entre ser ―professor‖ e ser ―educador‖, o que comprovaríamos, mais tarde, à medida que construíamos nosso próprio

caminho nessa área; com ela, também, descobrimos que o comprometimento com a tarefa educativa, centrado na consideração do aluno como ―pessoa‖, caracteristicamente único, é elemento fundamental para uma aprendizagem significativa; no contato com ela, aprendemos que a escolha da profissão é, também, uma escolha de sentido para a vida.

A diversidade dos alunos que circulavam pelo velho e imponente sobrado da Rua João Manoel, no centro de Porto Alegre, conhecido como ―o Colégio da D. Itália‖, ou ―o Cursinho da D. Itália‖, era curiosamente contemplada: grupos

de pessoas diferentes, reunidos em um mesmo espaço, estudavam conteúdos também diferentes, ao mesmo tempo, mas eram acompanhados e atendidos em suas dificuldades, pela professora, de modo particular e individual, o que conferia à situação um caráter, no mínimo, peculiar.

Como indicou uma de suas ex-alunas, a professora estadual Maria Apparecida Basso Morandi, quando por nós entrevistada,

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Itália Aronne de Leão 149

Nas escadas da casa de Dona Itália, na sua sala de jantar e até mesmo na sua

cozinha, conviviam pessoas muito diferentes, mas que ali estavam com um

objetivo comum — aprender. O universo de seus alunos era de crianças em fase de

alfabetização, adolescentes, candidatos a vestibular, adultos que iam prestar

concurso para cargos públicos, etc. Todos se conheciam, contavam suas aspirações

e, de alguma forma, socializavam um pouco o saber. Era comum crianças e adultos

falarem de seus projetos de vida e trocarem experiências. Naquela casa, crianças

eram ouvidas e respeitadas.

Seu sobrinho (que, na realidade, foi o filho que não pôde gerar), o advogado e professor universitário Gilberto Aronne, ao ser consultado, lembra, em relação à D. Itália, que era

seu ―ponto alto‖, o que realizava com grande prazer e satisfação, muitas vezes até

gratuitamente, era o Ensino Particular, de aulas em geral, em sua residência.

Lecionou particularmente durante uns sessenta anos, sem interrupção, formando

grupos para exames de admissão ao Ginásio, ingresso para a carreira do

Magistério, para Vestibulares, matérias para provas e para concursos públicos.

E reforça:

Neste ensino particular que se realizava, pois se entregava de corpo e alma para os

ensinamentos, chegando a reunir quase trinta alunos por tarde, sem preocupações de horários e entrando noite adentro em várias ocasiões. Em épocas de provas,

dava aula aos sábados, domingos e feriados, era só os alunos solicitarem.

D. Itália lecionou para um sem-número de alunos, não só de todas as idades, como de todas as classes sociais. O mesmo empenho e dedicação com que se lançava à ―missão‖ de alfabetizar o pedinte da esquina, ou a empregada doméstica, repetiam-se no atendimento às necessidades de membros de tradicionais famílias

gaúchas — Ministros de Estado, Governadores e Deputados, representantes destacados da tradicional sociedade porto-alegrense — confiavam em sua capacidade de encaminhar as soluções de ensino correspondentes aos obstáculos de aprendizagem que se apresentassem a seus filhos.

Assim, em seus depoimentos, recolhidos ao longo dos vários encontros que com ela mantivemos, especialmente ricos pela lucidez de suas lembranças gratificantes, tanto foram citadas histórias cujos personagens tiveram destaque no cenário de nossa cultura (sendo, hoje, políticos de expressão ou grandes

nomes da área jurídica, médica e empresarial), como foram referidas personagens especiais,

como aquela empregada da D. Geci, que era o nome da patroa — nunca vou

esquecer o nome da patroa, ela falava muito nela — que me enviou a moça que cuidava das crianças dela, sem salário, em troca de a ensinarem a ler e a escrever..,

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ela dizia, ―graças à senhora, tem um analfabeto a menos no Brasil‖... e quando tu

vias, ela já sabia ler, ali, no meio daquele burburinho!

As longas conversas que tivemos com a personagem central de nossa história fizeram emergir os muitos significados que se pode encontrar na tentativa de construir, mesmo que por aproximações, a história de vida de alguém. Na análise de uma vida que é sempre, simultaneamente, profissional e pessoal, é importante que não se perca de vista essa dimensão. É preciso não só buscar o resgate de uma trajetória profissional/pessoal, em suas peculiaridades mais expressivas — até porque este é o objetivo que norteia nossa pesquisa — mas fazê-lo tendo em mente

que as características pessoais do biografado de certa forma ―ditam‖ esta trajetória. Muito já foi discutido a respeito da construção da subjetividade humana,

especialmente nos tempos atuais, em que reconhecemos a importância da interação com o meio e com o outro, nessa construção. Nossa singularidade é construída a partir desta interação e a riqueza do mundo que nos cerca e da comunidade com a qual convivemos desempenha papel capital na configuração do ―eu‖ de cada um. Fazemo-nos sujeitos em interação com os outros, que igualmente se fazem sujeitos

por intermédio de nossa ação individual e coletiva, e retiramos, todos, do mundo exterior, os elementos a serem agregados à bagagem genética, para definir nossa subjetividade, sempre em construção.

Sendo assim, a história de vida de D. Itália Aronne de Leão nos indica alguns caminhos curiosos, na consideração desses princípios. As características profissionais mais marcantes de nossa biografada - o entusiasmo pela sua profissão, a fé na capacidade do aluno, o orgulho de ser professora, o prazer

permanente no ato de estudar, o amor pela leitura, a necessidade de atender o outro, antes de si mesma, entre tantas outras — são, na verdade, atributos pessoais. Seu entusiasmo pela vida, sua fé no ser humano, seu orgulho por ter alcançado seu maior objetivo, seu prazer de ensinar, seu amor pela busca constante do saber, sua generosidade e solidariedade para com as pessoas, por exemplo, são transpostos para sua ação docente, definindo-a e singularizando-a.

O mundo à sua volta desenhou perspectivas talvez pouco usuais, para quem, como nós, acredita no poder de uma sólida formação teórica — D. Itália

enfatizou as inúmeras dificuldades enfrentadas durante o seu período de estudos e em seus tempos de professora de escola pública. Assim, quando indagada a respeito do arcabouço teórico-metodológico de sua condição de professora, de forma original e até ingênua, foi quase sempre enfática em indicar propostas de ensino extremamente tradicionais (ou, às vezes, inexistentes...), como exemplificam os diálogos a seguir, retirados das gravações realizadas.

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Itália Aronne de Leão 151

P — Durante o seu Curso Normal, quais os professores que mais a

influenciaram, quais os que a senhora lembra que tenham sido importantes para a sua formação? Por quê?

R — O professor Meyer, de Matemática, e o professor Alcides Cunha, de Português. Era desses dois que eu gostava mais! (Quanto ao) professor Alcides Cunha, eu acho que ele tinha muito jeito para ensinar, ele fazia bem, porque o colégio, no meu tempo, era um mundo, tinha 139 alunos na mesma aula! Podem imaginar? [...] ele sempre passava redações, mas com aquele número (de alunos), ele não corrigia (todas). Ele dava jeito de corrigir um ou outro número (as redações eram numeradas..), e comentava em aula, e aquilo era muito bom, eu gostava muito, a gente aprendia mais!

P — Quais as disciplinas específicas, de formação pedagógica, que a senhora teve, durante o Curso Normal? Quem eram os professores, como eles ministravam suas aulas?

R — Tinha Psicologia ―para professoras‖, tinha Didática geral, que era dada por D. Olga Acauan Geyer. Ela conhecia (a matéria), a gente sente quando o professor sabe a matéria. Porque, (com) alguns (dos professores), era de livro aberto, né?! [...] Ficavam lendo e ditando. E explicando, com o

livro aberto. P — A senhora se lembra dos livros com os quais os professores

trabalhavam, em sala de aula, durante o Curso Normal? O que era solicitado que os alunos lessem, quando estavam estudando, que livros usavam?

R — Nós passamos um período grande com a Seleta em prosa e verso, era uma maravilha, muito boa! A Seleta me levou a conhecer os autores, todos os autores (que eu li). Aquele foi o melhor livro que nós lemos! [...]

Era o livro de Português que nós tínhamos. [...] A professora de Psicologia, não, ela não adotava (livro), porque era colégio de gente pobre [...] me lembro da professora, muito querida, ela ditava [...] ditava para nós. A gente tinha caderno, o maior dinheiro que se gastava era em cadernos para copiar [...] e ter e ver a matéria. Não tinha livro. O colégio era de (gente) pobre. Tinha uns (professores) maravilhosos, que nos ―botavam tudo na cabeça‖, sem livro! [...] A de Didática, falava, falava e ditava [...] e dizia: ―se acontecer isso, vocês vão fazer assim‖...

Como se explica, então, que essa destacada educadora, com essa formação tão tradicional, tenha sido tão marcante na vida de tantas pessoas, que dela se

lembram com carinho e respeito, a não ser que questionemos nossas convicções didático-pedagógicas? Não poderíamos negá-las, por certo, até porque temos consciência das profundas transformações por que passou e ainda passa o mundo contemporâneo, de lá para cá: o avanço da ciência e da tecnologia provocou

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mudanças expressivas nas concepções pedagógicas que hoje balizam a ação das agências formadoras dos profissionais da educação, ampliando-lhes os horizontes e alterando significativamente os parâmetros e paradigmas de sua ação.

Todavia, ao mesmo tempo em que estas questões se levantam, encaminhando nossa reflexão, algumas considerações devem ser desenvolvidas acerca da excessiva ―cientificidade‖ de uma formação pedagógica que se afaste do âmbito do afeto e da intuição, relegando-os a um segundo plano, em termos de sua relevância para a formação das necessárias competências profissionais nessa área. O caráter idiossincrático do ser humano — suas características individuais e únicas, que o constituem como pessoa singular — talvez não venha sendo suficientemente considerado na análise da formação de educadores.

Se é afirmação corrente entre os leigos que ―quem é bom já nasce feito‖, ou que ―a pessoa ‗nasce‘ professor‖, nós, educadores da academia (que, por óbvio, não compartilhamos dessa visão epistemológica apriorista, de há muito superada), também somos tentados a desconsiderar e/ou não valorizar de modo expressivo a força dos atributos pessoais na construção da formação profissional do professor.

Não mais concedemos à figura do professor, quando avaliamos, direta ou

indiretamente, seu bom desempenho e seu prestígio junto aos alunos, o beneplácito da consideração do peso provável de suas qualidades como pessoa, de certo modo, ―talhada‖ para essa função tão especial e, por isso (também), merecedora da boa reputação de que desfruta na comunidade escolar.

Quando alguém, como D. Itália, diz, apaixonada e entusiasticamente, que

Sempre quis ser professora [...] eu, desde menina, tinha ―inveja‖ de ver as

professoras andarem pelo corredor [do colégio]. Queria ser professora; era ―o

máximo‖! Achava tão bom, tão bonito! [...] Eu dizia [quando via uma professora

rindo]: Ela ―tem‖ que estar sempre rindo — ela é ―professora‖! [...] Nunca

pensei em ser outra coisa! [...] Depois que eu comecei [a trabalhar como

professora], cada vez gostava mais!

De fato, está dizendo que sua ―vocação‖ para essa atividade profissional é muito mais profunda do que geralmente temos a tendência de considerar, em relação a esta questão tão polêmica, nessa época em que o leque de profissões é

tão variado e dinâmico quanto as possibilidades ―vocacionais‖ que determina... Refletir sobre o valor da escolha profissional para o encaminhamento da

felicidade pessoal é sempre uma forma coerente de avaliá-la: se gostamos realmente do que fazemos para sobreviver, lançamo-nos com paixão a esse ofício, superando todos os obstáculos. Mesmo a precariedade de nossa formação pode ser superada pela vontade de viver plena e competentemente a profissão escolhida.

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Ainda que reconhecesse as lacunas de sua formação, D. Itália enfatizava:

[...] os cursos (de formação de professores) eram precários, mas eu superei (isso)

porque eu tinha vontade de ser professora [...] eu tinha compromisso de ensinar

[...] Eu me aperfeiçoei sempre! Ensinando, eu me aperfeiçoei. [...] Ensinar é

aprender! Quando estás ensinando, reforças o que sabes, e vais procurar saber o

que não sabes. Para mim, ensinar é aprender!

Dona Itália possuía uma intuição muito especial, em relação ao modo como devia organizar pedagogicamente a orientação a seus vários e diferenciados

alunos, o que se revela, por exemplo, no depoimento de uma de suas ex-alunas, hoje professora aposentada:

Causou-me espanto quando a vi, pela primeira vez, perguntar a uma criança ―o que

gostaria de estudar‖, Anos mais tarde, quando li os livros de A. S. Neill, sobre sua

experiência em Summerhill, na Inglaterra, que trabalhava com o pressuposto de

que a escola se adaptasse à criança, em lugar de a criança se adaptar à escola,

lembrei que Dona Itália fazia isso intuitivamente.

Era, provavelmente, também por intuição que estimulava em todos o prazer de compartilhar os sucessos — ―quando alguém conseguia aprovação em algo pelo qual havia lutado muito, o fato era comentado e todos festejavam‖, lembra igualmente a mesma ex- aluna, porque, ―para D. Itália, todos tinham capacidade de aprender. Era mais ou menos assim, ‗se ele pode, eu também

posso e vou lutar‘ .― Em sua entrevista, Maria Apparecida Morandi aponta que D. Itália continuou sendo uma referência profissional importante, quando passou a trabalhar no Serviço de Supervisão Escolar de um renomado estabelecimento estadual de Porto Alegre. Diz ela:

Quando um professor expunha grandes dificuldades com um aluno, sentindo-se sem

condições de ajudá-lo, continuei recorrendo ao trabalho de minha antiga professora.

Grandes desafios sempre fizeram parte de sua rotina e, por vezes, ficávamos admiradas

da forma simples com que os resolvia. Muitos alunos, com três anos em classe de

alfabetização, e sem promoção, foram alfabetizados na sala da casa de D. Itália.

Essa postura, ainda que remeta à consideração de uma perspectiva ―escolanovista‖ na condução do processo de ensino (muito em voga, àquela época de contestação do tecnicismo que imperava nos anos 70), indica a

configuração do perfil humanista de nossa biografada, muito mais expressivo, exatamente por estas características do contexto histórico em que se manifestava.

Dona Itália foi, antes de tudo, uma apaixonada pelas pessoas. Por isso, dedicou seus esforços a fazê-las aprender o que queriam (ou precisavam) — às vezes, perguntava ao aluno o que ―precisava‖ estudar, e não o que ―gostaria‖ de estudar, favorecendo uma espécie de auto-avaliação do aprendiz, como

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exemplifica o depoimento da ex-aluna, já referida: ―Ela se mostrava sábia, alternando prazer e necessidade no ato de ensinar‖. Por outro lado, fazia-o de modo carinhoso, pois Maria Apparecida enfatiza:

Tenho certeza de que todos os alunos que, como eu, passaram pelas suas mãos, sentiram que eram pessoas importantes, pelo respeito profundo que ela sempre nos

demonstrou, pela amizade, pelo companheirismo e até por uma certa cumplicidade

no trato fraternal.

Se, como nos indicam Mosquera e Stëbaus (2002, p. 94), o pressuposto inicial da consideração do que venha a ser, realmente, um professor ―é reconhecer que é impossível separar nossa vida afetiva da nossa vida intelectual e de nossas ―manifestações afetivas‖. Daí a importância de conhecer os sentimentos das outras pessoas, suas representações e ―ritmos individuais‖, então talvez essa fosse a característica mais marcante de D. Itália: ela procurava efetivamente ―conhecer‖ seus alunos sob esta perspectiva, o que facilitava a construção de um clima de

respeito e afeto na convivência do grupo, sem desconsiderar a valorização das diferenças individuais.

Depois das pessoas, D. Itália tinha como paixão explícita, os livros. Menina pobre, desde cedo converteu-se em freqüentadora das mais assíduas da Biblioteca Pública do Estado. Visitava, todos os dias, em seus tempos de estudante, o velho prédio da Rua Riachuelo, em busca dos tesouros escondidos que guardava. Cheia de entusiasmo, em um de nossos encontros, contava:

Eu sempre gostei de ler! Embora fosse uma menina pobre, que não podia comprar muitos livros, eu lia dentro da biblioteca. Quando eu soube, ainda menina, que a

gente podia entrar na Biblioteca Pública, e que podia mexer nos livros à vontade,

eu fiquei ―louca‖! Ia muito lá, todos os dias! Nas férias, eu ia! Era muito bom! [...]

Quando fechava, eu marcava que tinha ficado naquele livro, naquela página, e, no

dia seguinte, voltava para continuar a leitura. Eu gostava de Monteiro Lobato, li

muito, porque eu era meninota, né?! E gostava também dos portugueses, do Eça de

Queiroz — Ah! O Eurico, o Presbítero! Como eu gostava! [...] Li muito! Me

ajudou a escrever certo!

Esta paixão (por gente e por livros) fez de D. Itália Aronne de Leão uma professora realmente ―particular‖ — não havia horário para encerrar o estudo;

não havia obediência à periodicidade definida por ocasião do início do atendimento (duas ou três vezes por semana); não havia limite para a paciente atenção com que se dedicava aos alunos; não havia dificuldade de aprendizagem que não pudesse ser superada; não havia restrições à discussão de temas que, eventualmente, se ensejassem, na diversidade dos interesses de classe tão heterogênea; não havia obstáculos que impedissem o exercício de seu bom-humor e disposição para ensinar...

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Itália Aronne de Leão 155

Abrahão (2001), ao desenvolver estudo biográfico de educadores que se destacaram em sua profissão, indica que

A vida profissional dos destacados professores é, sem exceção, de uma riqueza

experiencial, de um comprometimento, de uma paixão pela profissão e pela educação

que se reflete nas demais vivências da vida pessoal, bem como é decorrência do

entrelaçamento coerente de valores e de ações que formam/formaram a totalidade

subjetivo/objetiva desses professores. Outrossim, percebe-se, claramente, pelas

narrativas, o quanto aprenderam e o quanto influenciaram/influenciam as comunidades

em que atuaram/atuam, não só diretamente aos seus alunos, mas indiretamente aos

familiares dos alunos e integrantes de comunidades, em geral, pelos ensinamentos,

pelas relações interpessoais de respeito e de troca, pela criação de escolas e de outras

instituições, enfim, pelo mais substantivo envolvimento como pessoa, como mestre, como expressão de cidadania (Abrahão, 2001, p. 267-268),

Ao longo do agradável período em que retomamos nossos encontros — depois de mais de trinta anos do inevitável afastamento que as mudanças e exigências da vida provocam e que nos fazem abandonar o prazer do contato presencial com aqueles a quem queremos bem e que, de alguma forma,

marcaram nossa história — Dona Itália ainda voltou a nos emocionar, tocando-nos, mais uma vez, com as marcas inconfundíveis de sua afetividade e alegria de viver. Em seus quase noventa anos de idade, o rosto levemente maquiado (sempre foi cuidadosa em relação à aparência, e se mantém vaidosa), traz nos olhos, ainda, o brilho especial que denota seu amor pela vida que teve e pela profissão que escolheu. Não tem arrependimentos, não cultivou mágoas, só guarda na memória (que, às vezes, a trai, fazendo-a confundir, ligeiramente,

datas e nomes), os bons momentos que usufruiu ao longo de sua rica existência. Paixão, amor, amizade, dedicação, comprometimento, alegria, responsabilidade, orgulho de ser professora são palavras e expressões recorrentes, no vocabulário que utiliza para contar sua história.

E, se, nesse sentido, é expressivo o depoimento de seu sobrinho, Gilberto, ao indicar que ―hoje, com seus 88 anos, continua recebendo a visita de ex-alunos e dando informações acerca de qualquer coisa que lhe perguntem, inclusive

esclarecendo dúvidas de Português e Matemática, e ainda se encontra, mensalmente, em almoços e chás, com seu grupo de colegas, professoras aposentadas, com as quais mantém quase sessenta anos de convivência‖, talvez mais significativo ainda, para definir a relevância de nossa biografada, como integrante do seleto grupo dos grandes educadores riograndenses, seja o depoimento de sua ex-aluna, Maria Apparecida, que continua privando de sua companhia, em visitas freqüentes, e que, após ser por nós entrevistada, decidiu descrever num texto, sua emoção em colaborar com nossa tarefa. Ao encerrar seu

relato, ela diz:

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Assim é minha mestra Itália Aronne de Leão, que formou uma árvore maravilhosa

de alunos, desdobrada em galhos e folhas por gerações e gerações. Tenho certeza

de que ela se orgulha de todos: desde os mais humildes, aos que são nomes ilustres

do Rio Grande do Sul. Eu sou uma folha dessa árvore, e isso fez toda a diferença

na minha vida.

Nós, igualmente, somos parte desta árvore, que ramificada em múltiplas direções, fez florescer algumas das razões mais profundas que ajudaram a sedimentar nossa escolha profissional. Dona Itália, além de nos preparar para o ingresso no curso Normal, preparou- nos para que mantivéssemos, para sempre, a convicção, o orgulho e o prazer de viver a profissão de ―Professor‖.

Referências

ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. História e histórias de vida — destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

MOSQUERA, Juan Jose Mouriño; STOBÁUS, Claus Dieter. O professor, personalidade saudável e relações interpessoais: por uma educação da afetividade. In: ENRICONE, Délcia, Ser professor. 3. ed. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002.

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Maria Antunes Bernardes Saenger Uma inesquecível educadora que fez da docência seu jeito

útil de ser

MARI NUNES DE BARROS COELHO Mestre em educação pela PUCRS. Docente na PUCRS/Campus II Uruguaiana.

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158 Mari Nunes de Barros Coelho Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Quando recordo os professores que tive, lembro sempre, instantaneamente, da

Professora Maria. Dona de um sorriso cativante, de uma postura nobre, de um falar macio e determinado, de gestos firmes e um olhar quase desvelador, ela reinava tranqüila entre os professores da Escola Estadual Dom Hermeto, onde a conheci no ano de 1967, como minha professora de Língua Portuguesa. Era respeitada não só pelo conhecimento que demonstrava ter, mas pela pessoa que revelava ser. Ela foi um marco... uma lembrança boa... alguém que contribuiu significativamente na minha formação. Depois, quando cursei Letras, tive o prazer de reencontrá-la e

estreitar os laços daquela relação que começara quando menina. Durante todo o Curso senti o bem que faz ao aluno (a) ter um professor (a) com quem possa manter uma relação afetiva, uma relação de confiança e de troca.

Em meados do ano 2000, ao decidir trabalhar com Histórias de Vida, no Seminário de Pesquisa sobre Autobiografias oferecido no Mestrado em Educação, da PUCRS, voltei logo meu pensamento para a figura marcante da Professora Maria. Manifestei à Drª Maria Helena Menna Barreto Abrahão, Professora desse

Seminário e Coordenadora da pesquisa: Identidade e Profissionalização Docente: narrativas na primeira pessoa, meu desejo de pesquisar a vida de uma professora que contribuiu muito para o aprimoramento da vida educacional de Uruguaiana, chamada Maria Antunes Bernardes Saenger. Para minha satisfação, a Drª Maria Helena também a conhecia (fora aluna dela em Santa Maria) e logo acenou positivamente à minha intenção. Passei, então, a integrar o Grupo de Pesquisa coordenado pela Drª Maria Helena e iniciei o trabalho de investigação. Durante a coleta das narrativas e conversas diversas com alunas e amigas da ―minha

professora‖ e com ela própria, tive a certeza de que havia escolhido o nome certo. A lembrança da pessoa carismática e a obra educacional relevante que desempenhara, não poderia ficar ao sabor do tempo, sem registro.

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Assim, a narrativa que ora apresento está dividida em diferentes dimensões, abordando Dados Pessoais, Formação e Trajetória Profissional, Visão de Educação e Contribuição Prestada à Educação em Uruguaiana pela minha personagem

principal Profª Maria Antunes Bernardes Saenger.

Dados pessoais

A professora Maria é filha de Ilo Carvalho Bernardes e Hygina Morena Antunes Bernardes. Nasceu em 4 de abril de 1928, na fazenda Remanso, no

município de Santa Maria e tem três irmãos. Cresceu na cidade de Santa Maria, numa família grande e unida. Recorda que passava os três meses de férias escolares na fazenda Remanso, junto com a avó e seus irmãos. A Remanso foi um lugar de grande significado em sua vida.

Foi uma criança feliz, uma ―guria‖ campeira, vivenciando as coisas boas que o campo oferece. Ligada à natureza, se diz ―profunda conhecedora de árvores‖. Sua adolescência foi marcada por muitos amigos, muitas leituras, porém, poucas festas. Como passava as férias escolares na fazenda, não participava nem dos

bailes de carnaval. Diz não sentir falta desse tipo de festa e complementa: ―se tu não desenvolves este gosto, tu achas completamente sem sentido‖.

Embora as festas tivessem sido raras, as leituras foram inúmeras e diversificadas. Seus pais gostavam muito de ler. Recorda que seu pai tinha uma grande biblioteca e que lhe dava muitos livros para entretê-la e estimular sua leitura. Seu pai gostaria que ela fosse engenheira química; convenceu-a a fazer o curso Científico mas ela queria mesmo era ser professora. Foi estudar em Porto

Alegre, concluindo o Científico no Colégio Bom Conselho. Então, decidiu-se pelo Curso de Letras sem, no entanto, magoar seu pai que respeitou sua decisão e sua grande vontade de ser professora.

Após seu casamento, veio para Uruguaiana. Dª Maria, como costumo chamá-la, é casada com Nevaldo Saenger, tem dois filhos já casados, o Valério e a Sílvia e tem quatro netos.

Transcrevo, a seguir, estas suas palavras que demonstram a pessoa simples e

cativante que é:

Depois que fiquei adulta, mulher, posso dizer que sou corajosa, forte, segura, tenho uma enorme capacidade de amar mesmo, sempre tive. Sou capaz de me dedicar de

fato às pessoas e ao que faço. Gosto de me repartir. O que eu tenho eu gosto de

passar para os outros, Só as qualidades eu estou dizendo. Claro que tenho vários

defeitos. Tenho sim... E claro que todas essas características se manifestaram na

minha condição de mãe, de esposa, de professora, enfim, características da Maria

que se refletem em qualquer situação em que eu esteja.

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Formação e trajetória profissional

A trajetória profissional da Professora Maria Antunes Bernardes Saenger sempre foi perseguida com muita determinação e lucidez, pois desde cedo sabia o rumo que desejava tomar.

Sua formação e escolha profissional foi certamente influenciada por professores que considerava modelos profissionais. Lembra da Irmã Alaíde, da

escola onde fez o Primário, em Santa Maria. Afirma que era uma ―Irmã terna, doce... Irmã Alaíde — encantadora, terna, doce, mas enérgica‖. Era a professora de Língua Portuguesa. No Ginásio, sua lembrança marcante foi a professora Maria Rocha que, inclusive, brincava com ela dizendo que ia esperá-la para que a substituísse. Teve também uma Diretora, Professora Alda Saldanha, que recorda como alguém que lhe marcou muito pela força e entusiasmo que demonstrava. Afirma que a Professora Alda não tinha ―só a força de quem acredita em educação,

mas uma força cívica. Ela tinha um lema assim: para adiante, sempre além. Esse era o lema dela e da escola que ela dirigia. E ela levava todos juntos com ela‖. Já nos bancos acadêmicos, outro professor que recorda com emoção e diz ser seu grande mestre, foi o professor Celso Pedro Luft. Assim ela diz: ―Este é o meu professor com a competência que até hoje eu respeito. Se o Luft disse, é‖. Também, entre as boas influências recebidas durante a sua formação, destaca seu pai, homem com um alto espírito social e que lhe deu livros a vida inteira.

Cursou o Primário na Escola Santa Terezinha, o Ginásio, na Escola Estadual

Olavo Bilac e começou o Científico na Escola das Irmãs Franciscanas, indo concluí-lo em Porto Alegre, no Colégio Bom Conselho. Nesta época, sua família também já estava em Porto Alegre. Em 1948 iniciou o curso de Letras na Pontifícia Universidade Católica — PUCRS. ―Sou filha da PUCRS desde lá‖, diz ela com emoção. Até mesmo antes de concluir o curso de Letras, já lecionava Língua Portuguesa na Escola de Aprendizado Agrícola de Gravataí, da qual seu pai era o Diretor. Depois, já no último ano de faculdade, se deslocava até Santa

Maria para lecionar na Escola Estadual Manuel Ribas — Maneco — recém-criada, onde trabalhou desde 1951 até 1962.

Após a conclusão do Curso de Letras decidiu cursar Direito por puro prazer, pois sabia que não iria exercer as atividades específicas do Curso, porém encarou-o como mais uma oportunidade de enriquecimento cultural. Terminou o Curso de Direito, também na PUCRS, em 1956. Em 1955, ingressou como professora de Língua Portuguesa na Faculdade Imaculada Conceição, em Santa Maria até 1962.

Em 1963 foi morar em Uruguaiana e, com sua vinda para essa cidade, as perspectivas educacionais da localidade começaram a mudar. Àquela época, Uruguaiana contava apenas com uma professora de Língua Portuguesa, detentora de curso superior. Como era professora da Rede Estadual de Ensino, foi designada

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para trabalhar na Escola Estadual D. Hermeto e, após, na Escola Estadual Elisa Ferrari Valls, Em 1979 encerrou suas atividades como professora estadual, dedicando-se exclusivamente à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de

Uruguaiana — FAFIUR. Desde 1966, quando foi criado o Curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Uruguaiana — FAFIUR, a Professora Maria passou o integrar o seu corpo docente. Depois, surgiu a oportunidade de realizar um Curso em nível de Pós-Graduação em Linguística Aplicada na FAFIUR, em Uruguaiana, que concluiu em 1976. Em 1987, a FAFIUR começou a fazer parte do Campus II da PUCRS e desde lá até o ano 2000, ela ainda continuou lecionando com a mesma paixão e competência de sempre.

Visão de educação

Ao dizer: ―Sempre gostei de lecionar. Eu achava e sentia que era o meu jeito de ser útil... tinha uma definição dentro de mim, de uma escolha mesmo. A docência era o meu jeito de ser útil‖, a Professora Maria evidencia a paixão que sempre teve pela docência. Foi uma escolha definitiva porque sempre acreditou

na educação. Após formada em Direito, teve inúmeros convites e oportunidades para seguir o rumo das Ciências Jurídicas, mas em nenhum momento titubeou. Como ela mesma afirma, o Curso de Direito serviu para enriquecê-la, ainda mais, culturalmente. Com isso, posso perceber o quanto ela sempre foi preocupada com a própria formação pessoal. Seu interesse sempre foi maior que a simples preparação de aulas, por sinal muito bem dadas e preparadas. Acreditou sempre na educação como imprescindível para o crescimento individual e para o

desenvolvimento social. Em relação à educação, assim se expressa: Não pode existir progresso, nem dos indivíduos, nem das pátrias sem

educação. E para mim, o homem é um ser em busca, tanto na dimensão individual como na dimensão social e na dimensão transcendental. É um ser limitado, mas com ânsia de infinito. E a educação é que aponta para o homem os caminhos e a sociedade é que deve oferecer condições para que ele percorra esses caminhos. A sociedade deve realmente servir ao homem, individualmente, assim

como o homem, individualmente, deve fazer uma sociedade que seja capaz de construir o próprio homem.

Para ela a aprendizagem é uma conquista pessoal, um processo do qual o aluno é o próprio construtor. O professor faz parte desse processo, ajudando o aluno a aprender. A esse respeito assim se manifesta:

Eu sempre procurei ajudar o aluno a aprender... procurei orientar o processo de aprendizagem, criar ambiente favorável, oferecer situações férteis, possibilitar condições adequadas, estimular curiosidades e selecionar caminhos amplos que

abrissem mais caminhos. No 2º Grau, a minha preocupação sempre foi melhorar o

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desempenho lingüístico do aluno, levando-o a desenvolver a habilidade de compreensão e expressão de mensagens, através do uso da língua, do ler e escrever. Pela freqüência do uso o aluno automatiza estruturas, interioriza uma

gramática de modo que ele consiga usá-la mesmo sem teorizar sobre ela. Isto no 2º Grau. No 3º Grau não. O aluno deve ser levado a refletir sobre a língua, deve descrever-lhe a estrutura, deve saber o uso da língua e saber sobre o uso da língua. Deve ter, portanto, a posse da língua e a consciência da língua. Procurei trabalhar sempre assim, fazendo com que o aluno conquistasse sua própria aprendizagem.

Concordo com Perrenoud (2000), quando diz que a competência do saber explicitar as próprias práticas é a base de uma autoformação. Na fala descrita acima, a Professora Maria demonstra sua competência e aprimoramento em

relação a sua autoformação. Com a consciência de que o homem vive num contínuo aprender, ela

expressa sua preocupação com a própria formação. Nesse sentido, justifica: A gente não pode perder a oportunidade de se melhorar. Mas eu acho que a

própria condição de ser professor exige uma formação contínua, independentemente de cursos feitos ou não. Isso foi sempre muito marcante. Todos os anos eu reabastecia minha biblioteca, chegava nas férias, eu já tinha

algumas listas do que eu queria; naquela época a Sulina encomendava o que a gente pedia. Era fácil. Então todos os anos eu reabastecia minha biblioteca particular, buscando atualização.

Sobre esse aspecto, Freire (1999, p. 32) esclarece: ―Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar e anunciar a novidade‖.

A ex-aluna e amiga Suzana Dora Velo lembra que, além do Curso de

Especialização feito na área de Linguística e muitos outros Encontros e Seminários Pedagógicos, Professora Maria é alguém que está sempre estudando, sempre pesquisando, sempre buscando. Afirma que ela é uma pessoa em contínua busca e que se aparece uma oportunidade de fazer um bom curso, ela está sempre presente. Complementa Suzana: ―O Nevaldo, marido dela, até brinca, perguntando o que ela quer, se pensa que vai ensinar Português no céu, porque ela não pára de ensinar Português. Acho que isso aí resume tudo, não é?‖.

A Professora Maria diz com convicção:‖Se há pessoa que escolheu ser

Professora de Língua Portuguesa, fui eu‖. Sua prática pedagógica inclui amor, paixão, muito conhecimento, muito estudo, inclui um fazer-se contínuo, muita reflexão, muita busca e muita troca. Tem o dom nato de ensinar, embora entenda ―que ninguém ensina nada a ninguém‖.

Como afirma Nóvoa (1995, p. 17), ―A maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoas quando exercemos o ensino‖. E a Professora Maria expressou a pessoa que é nestes 52 longos anos

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de docência. A pessoa discreta, ética e ponderada nos seus pontos de vista, que se deu por inteiro ao magistério. Há muitos outros adjetivos conforme manifesta sua ex-aluna, Suzana: ―Para a professora eu escolheria os seguintes adjetivos:

inteligente — nem todas são— e ela tem o privilégio de ser também inteligente, brilhante, competente, comunicativa, enfim, uma verdadeira professora e acho que foi uma felicidade ter tido a Dona Maria como professora‖.

Suzana Velo, que prazerosamente falou a respeito da ―nossa professora‖, tem por ela um, sentimento de amizade muito grande que nutre desde que foi sua aluna, em 1967. São, portanto, mais de 30 anos de amizade que Suzana reforça, dizendo: ―É uma amiga que nos faz sentir importantes para ela. Então, esse sentimento que a gente nutre por ela, sente que também ela nutre pela

gente... ela está no fundo do nosso coração porque ela cativa... Então é uma reciprocidade muito grande de afeto que torna uma amizade enorme‖. Recorda Suzana, ainda, que, no seu tempo de faculdade, as aulas mais esperadas eram exatamente as de Língua Portuguesa ―de tão boas que elas eram‖.

Professora Maria desenvolveu uma percepção clara da relação entre o individual e o social e exerce uma atividade mediadora entre o aluno e a cultura social acumulada que ele apresenta. Tem consciência de suas condições para

ajudar os outros a crescerem. E, nesse sentido, ela exerceu sua responsabilidade social através de sua atuação docente. Sobre esse aspecto, Sacristán e Gomes (1998), p. 70) afirmam:

[...] para que o professor/a possa intervir e facilitar os processos de reconstrução e

transformação do pensamento e da ação dos alunos/as, deve conhecer as múltiplas

influências que, previstas ou não, acontecem na complexa vida da aula e intervêm decisivamente no que os estudantes aprendem e nos modos de aprender.

Embora não manifeste claramente, a Professora Maria sente que a profissão hoje não está sendo valorizada como deveria. Disse que na época em que iniciou, exercer o magistério dava mais status, tinha uma remuneração melhor comparando com o momento atual e que ―o professor valia em todo o sentido e

era bem destacado socialmente‖. A visão que tem das múltiplas influências que permeiam o processo ensino/

aprendizagem, faz com que sua prática pedagógica seja exercida com competência, eficácia, rigor, respeito e exigência. Numa conversa informal com uma das suas alunas deste último ano de docência, ouvi o seguinte: ―sua exigência, por vezes, angustiava, mas era uma postura natural do seu jeito de ser e um ingrediente necessário para o sucesso de sua prática‖. Esta qualidade da Professora Maria,

somada a tantas outras, fizeram dela, sem dúvida, uma educadora competente, sensível e preocupada com a formação de tantos jovens que com ela tiveram o privilégio e a oportunidade de ampliar conhecimentos, vislumbrando outros

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horizontes. Em relação ao ser exigente no fazer pedagógico, assim nos fala Rios (1990, p. 69):

O educador competente terá de ser exigente. Quero usar, aqui, a idéia de exigência

associada à de necessidade. Certas circunstâncias exigem de nós determinadas

posturas, e não podemos nos recusar a assumi-las, porque se impõem como

necessárias. O educador exigente não se contentará com pouco, não procurará o

fácil; sua formação deverá ser a formação de um intelectual atuante no processo de

transformação de um sistema autoritário e repressivo; o rigor será uma exigência

para sua prática, contra um laisserfaire que se identifica com o espontaneísmo,

contra o qual se insurgia Gramsci, em sua reflexão sobre a práxis educativa.

No momento em que a atuação docente é tão debatida e questionada, exemplos como esse, de dedicação e competência, podem contribuir

significativamente para elaboração de novas propostas e reflexões sobre a formação de professores.

Contribuição dada ao meio educacional de Uru guaiana

Embora nascida em outros pagos, a Professora Maria é, sem dúvida, das poucas pessoas que contribuíram tão direta e significativamente na área educacional da nossa cidade, principalmente no Ensino Superior.

Além de ter participado de inúmeras atividades educacionais, entre elas

Encontros, Seminários e Cursos, ora como ouvinte, ora como palestrante, a Professora Maria esteve sempre atuante na vida social e cultural da cidade. Participou ativamente do Lions Club, realizando atividades sociais beneficentes. Por duas vezes foi homenageada com o Troféu Destaque, recebendo o ―Destaque 1984‖ em Cultura e o ―Destaque 1996‖, em Educação. Ainda hoje é integrante da Equipe Pastoral de Educação e Membro do Conselho Municipal de Educação e Cultura. Nunca se negou a colaborar. Nesse sentido diz:

Nunca me omiti. Sempre que fui chamada a qualquer atividade que beneficiasse a comunidade, fiz o possível para atender. Desde estudante, ocupei cargos em

agremiações. Como professora, exerci a presidência do Grêmio de Professores, em

Santa Maria. Sempre exerci liderança, mesmo sem gostar de ocupar cargos de

chefia. E é isto... Tive, conscientemente, a intenção de ser útil à minha família, à

minha escola, à minha Igreja e à minha Pátria.

Sua contribuição maior é a que a consagra como educadora, como a professora que deixou uma marca positiva na formação de um enorme universo de alunos que por ela passaram. Ela se entregou à educação de corpo e alma. Professora Maria soube incorporar atitudes e posturas dignas de destacados educadores e fez delas razão para seu sucesso pessoal e profissional.

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Ela, com ética e humanidade, ajudou a transformar a realidade educacional de Uruguaiana. Participou diretamente na formação de professores de Língua Portuguesa de Uruguaiana e Itaqui. Em 1963, quando aqui chegou, havia apenas

uma professora de Língua Portuguesa com Curso Superior na cidade. ―Hoje, penso que todos os professores de 1º e 2º Graus têm formação superior e quase todos passaram por mim‖, diz com satisfação. Entendo que a palavra passaram, grifada por ela própria, queira significar não aquela passagem rápida, mas uma passada que ficou, que foi significativa, que cativou, que deixou cair sementes na terra fértil..,brotou e deu bons frutos.

A professora Maria iniciou a lecionar na FAFIUR em 1966. Como diz Suzana Velo:

Isto significa dizer que todas nós e um universo de professores passaram por ela. Então quer dizer que é uma responsabilidade direta no quadro de Uruguaiana, na

nossa área. Não tem igual. É um papel enorme de pioneirismo que não tem igual.

Hoje o quadro é outro. E nós temos que reconhecer que o quadro é outro graças a

nossa FAFIUR, que não podemos deixar de considerar e graças à Dª Maria que

sempre foi uma professora da FAFIUR e que é a nossa eterna professora de Língua

Portuguesa. Para mim é a minha eterna professora de Língua Portuguesa e acredito

que para ti também, não é? Acho que ela foi pioneira e responsável por toda essa

mudança que teve por aqui.

Segundo Freire (1999), ensinar exige a corporificação das palavras pelo

exemplo e a Professora Maria soube ser exemplo em todos seus atos e atitudes. Suas palavras nunca foram em vão, sempre tiveram um rumo certo. Penso que ela sempre teve a certeza que atingiria o seu objetivo, através do seu exemplo, conhecimento e maneira de ser.

Ao solicitar que seus últimos alunos do Curso de Letras do ano 2000 falassem a respeito das suas aulas, somente ratifiquei informações já comprovadas por muitos. E não poderia ser de outra forma. Nos corredores da

Faculdade e nos mais diversos ambientes sociais, sempre ouvi e ouço até hoje, as pessoas referirem-se a ela destacando as qualidades que lhe são peculiares, com admiração, com respeito e acima de tudo, como se tivessem agradecendo a Deus a presença dela em suas vidas.

Desde o início, em 1966, com a missão de formar professores e até hoje, a postura e a dedicação da Professora Maria foi sempre a mesma. Com a sua sabedoria e conhecimento, soube dar a medida certa da ajuda que seus alunos precisavam na busca do próprio conhecimento, adaptou-se à realidade e

necessidades deles, soube olhá-los com respeito e ajudá-los no processo de construírem-se e transformarem-se em cidadãos conscientes e comprometidos. Enfim, soube cativá-los com o seu saber, com o seu coração, com todo o seu ser.

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Para encerrar e homenagear a ―minha professora‖ e de tantos outros (as), vale lembrar Fernando Pessoa:

Para ser grande, sê inteiro;

Nada teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és no mínimo que fazes.

Assim, em cada lago a lua toda brilha,

Porque alta vive.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

NÓVOA, Antonio (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1995.

PERRENOUD, Philippe. Novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.

RIOS, T Azerêdo. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1990.

SACRISTÁN, Gimeno; GÓMEZ. A. Pérez. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Principais dados

Identificação.Nome: Maria Antunes Bernardes Saenger. Data de nascimento: 4 de abril 1928. Naturalidade: Santa Maria — RS. Formação Profissional. Formação em Nível Superior: Curso: Letras Neolatinas — Licenciatura Plena. Titulação: Licenciada em Letras. Instituição: Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras — PUCRS. Localidade: Porto Alegre. Ano de Conclusão: 1951. Formação em Nível de Pós-Graduação: Curso: Lingüística Aplicada. Titulação: Especialista. Instituição: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras — FAFIUR. Localidade: Uruguaiana. Ano de Conclusão: 1976. Outros cursos: Curso: Ciências Jurídicas e Sociais. Titulação: Bacharel. Instituição: Faculdade de Direito — PUCRS. Localidade: Porto Alegre. Ano de Conclusão: 1956. Cursos de Extensão: Didática das Línguas Vivas — Departamento de Letras / PUCRS— 1954. Psicologia e Didática Geral — CPOE/SEC — Santa Maria —

40h, 1956. Gramática Estrutural — Celso Pedro Luft — Porto Alegre — 36h, 1969. Atualização em Língua Portuguesa e Literatura Infanto Juvenil — FAFIUR — Uruguaiana— 40h, 1978. Correspondência Comercial — SENAC — Uruguaiana, 80h, 1980. Extensão Universitária em Pesquisa Educacional — FAFIUR — Uruguaiana — 40h, 1981. Metodologia do Ensino Superior —

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Maria Antunes Bernardes Saenger 167

PRODERF/CEFO — Uruguaiana— 20h, 1982. Preparação para a Pesquisa Linguística e Literária — FAFIUR —Uruguaiana — 40h, 1982. Formação Permanente: Diálogo e relações humanas, Axiologia e vida, Racionalidade e fé

cristã hoje — PUCRS — Porto Alegre — 20h, 1989. Curso sobre Ensino da Língua Portuguesa — PRAI / l0ª DE, Campus Universitário II e SEMEC/ Uruguaiana — 40h, 1990. Experiência profissional. Professora de Língua Portuguesa — Magistério Público Estadual: Aprendizado Agrícola de Gravataí — 1948/1950. Escola Estadual Manuel Ribas — Santa Maria — 1951/1962. Escola Estadual Elisa Ferrari Valls — Uruguaiana — 1962/1979, Situação Atual: Aposentada. Professora de Língua Portuguesa — Ensino Superior: FIC — Faculdade Imaculada Conceição — Santa

Maria — 1955/1962. FAFIUR — Uruguaiana — agregada à PUCRS — 1966/1986. FAFIUR — Campus Universitário II — PUCRS — 1987/2000. Situação Atual: Aposentada. Outras atividades profissionais: Participação como Professora em Cursos de Extensão. Curso: Ortografia e compreensão de textos — FAFIUR/Uruguaiana — 40h (10h sobre Ortografia). Curso: Atualização em Língua Portuguesa e Literatura Infanto-Juvenil — FAFIUR — Uruguaiana — 40h (8h sobre Revisão Gramatical). Diretrizes Curriculares para a parte de Educação

Geral do Ensino de 2º Grau l0ª DE/Uruguaiana (seleção de conteúdos de Língua Portuguesa). Participação na elaboração de provas de Língua Portuguesa: Prova Escrita de Língua Portuguesa — XXIV Concurso para ingresso na carreira do Ministério Público — julho/1976. Magistério Público Municipal — Itaqui/1986. Vestibular — FAFIUR/Campus Universitário II — PUCRS — 1987 até 2001. Participação em funções administrativas: Chefe do Departamento de Letras — FIC/Santa Maria — 1958. Chefe do Departamento de Letras —

FAFIUR/Uruguaiana — 1979. Secretária do Departamento de Letras — FAFIUR/Uruguaiana — 1983. Coordenadora do Departamento de Letras — FAFIUR/PUCRS — 1989. Diretora da FAFIUR — PUCRS — 1991 a 1993. Participação na vida da comunidade: Membro do Conselho Municipal de Educação e Cultura — Uruguaiana. Membro da Equipe Pastoral da Educação — Uruguaiana. Membro da Comissão Julgadora do Concurso de Redação em Olimpíadas dos Colégios Metodistas do RS — Colégio União, Vice-Presidente para assuntos culturais e comunicação social da 19ª Califórnia da Canção Nativa

do RS. Participação em congressos, seminários e semelhantes. Seminários: Seminários Pedagógicos da FAFIUR/Uruguaiana — I, II e III — 198 1/ 20h — 1982/ 12h — 1983/ 12h — Concepção Dialética da Educação — Projeto Rondon — Uruguaiana — 1983. Municipalização do Ensino — SEMEC/ Uruguaiana — 1988 — 8h. Seminário Regional de Língua Portuguesa — PRAI/ 10ª DE — 1990 — 8h. Seminário de Pesquisa — FAFIUR/ PUCRS — Uruguaiana — 1997 — 8h,

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168 Mari Nunes de Barros Coelho Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Encontros: 1º Encontro Estadual de Professores do lº Ciclo do 3º Grau — FAFIUR/1977. III Encontro Estadual de Professores de Prática de Ensino de 3º Grau — 1977. Encontro de Integração entre os Três Graus de Ensino —

FAHUR/10 DE — 1982. Encontro de Conselhos Municipais de Educação— Conselho Estadual de Educação— Porto Alegre — RS — 1984. Encontro Internacional sobre o Ensino da Língua Portuguesa — PRAI/l0ª DE/Campus Universitário II-PUCRS / SEMEC — Uruguaiana — 1990. Encontro sobre Construção da Identidade — FAFIUR! PUCRS— Uruguaiana- 1997. Distinções. ―Destaque 1984‖ — Destaque em Cultura — Uruguaiana, junho de 1985. ―Destaque 1996‖— Destaque em Educação — Uruguaiana/ 1997.

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Marina Silvia Filippozzi Lafin Uma educadora pioneira e criativa à frente de seu tempo

SILVIO HENRIQUE FILIPPOZZI LAFIN Docente na PUCRS, no programa de Pós-Graduação em Serviço social.

Doutor em serviço Social.

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170 Silvio Henrique Filippozzi Lafin Identidade e vida de educadores rio-grandenses

O Rio Grande do Sul teve e tem em seu meio educadores que fizeram a

História da Educação rio-grandense, cujas histórias individuais correm o risco de perder-se, pois não há acervo a respeito. Ademais, a história pessoal e profissional, antes de ser unicamente individual, tem natureza social, pois se inscreve na e constrói a própria História da Educação e da Profissão Docente em nosso estado (Abrahão, 2001).

Ao ler essa afirmação, achei que seria importante que escrevesse a História de Vida de uma professora pioneira da docência em História da Educação, no Curso de Formação de Professores Primários da Escola Padrão na Formação de Professores do Rio Grande do Sul, o Instituto de Educação General Flores da Cunha. A pedido da Profª Drª Maria Helena Menna Barreto Abrahão, enchi-me de coragem para escrever as experiências desta educadora.

Formação

Marina Silvia Filippozzi Lafin nasceu em Porto Alegre, em 2 de dezembro de 1905. Era filha de Sylvio Luiz Filippozzi e Luiza Santa Lucia Filippozzi, imigrantes italianos.

Casou-se com Henrique Lafin Filho, de cuja união houve três filhos: Silvio

Henrique, Maria Helena e José Carlos. Formou-se com distinção no Curso Complementar da Escola Normal Gal.

Flores da Cunha no ano de 1925. Ingressou no Serviço Público em 1926, sendo a primeira mulher no grupo familiar a exercer profissão fora do lar, o que marcou uma vida de pioneirismo, sendo seguida por sua irmã e por suas primas, todas destacadas educadoras.

Aposentou-se em 1959, com 35 anos de magistério como Regente da Cadeira de História da Educação, padrão XII, do Instituto de Educação (Adjunta Efetiva). Faleceu em 7 de fevereiro de 1976.

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Marina Silvia Filippozzi Lafin 171

Trajetória profissional

A Profª Marina Silvia Filippozzi Lafin, mais conhecida no magistério estadual como Silvia Filippozzi, foi, em 1926, nomeada, como era de praxe na época, como Auxiliar de Ensino para o Grupo Escolar Cassiano do Nascimento, em Pelotas. Naquela cidade, a professora participou da fundação da Associação Sul Rio-Grandense de Professores, para a qual, 25 anos depois, foi convidada a participar nas festividades de seu Jubileu de Prata como uma

das fundadoras. Em 1928, foi promovida a estagiaria de 1ª entrância e, em 1932, transferida

para o Grupo Escolar Emilio Meyer, de Canoas, então município de Gravataí, o qual organizou e dirigiu até 1937.

Em 1936, quando na direção do Grupo Escolar Emilio Meyer, sem solicitação sua, foi a mesma requisitada, por proposição do Dr. Alcides Cunha, para o Instituto de Educação, não tendo aceitado ―por querer deixar bem encaminhadas algumas instituições que iniciara no Grupo Escolar Emilio

Meyer‖, como ela mesma relatou. Esta atitude foi comentada pelo Secretário de Educação, Sr. Otelo Rosa,

em tom de pilheria, dizendo ser este um caso inédito. Em 1937, por estar em véspera de contrair matrimônio e por residir em

Porto Alegre, de onde se locomovia diariamente e levando em consideração as insistências da família, resolveu aceitar a transferência para Porto Alegre, para o curso de Aplicação da Escola Normal Gal. Flores da Cunha, onde passou a

reger o 5º Ano. Pouco tempo depois foi convidada pela Professora Florinda Tubino

Sampaio para substituí-la na cadeira de História da Educação, no Curso de Aperfeiçoamento, tendo em vista de ter a mesma assumido a direção da Escola Normal Gal. Flores da Cunha, em substituição ao Professor Alcides Cunha. Acumulou, então, esta atividade com aquela que exercia.

Em 1938 foi promovida de 1ª para 2ª entrância.

Em 1939 a Professora foi convidada para a Direção do Grupo Escolar Paula Soares, igualmente em Porto Alegre, tendo assumido naquele mesmo ano.

Desse período ela guardou grandes recordações, as quais comentava muitas vezes em família.

Alguns fatos por ela relatados existem em documentos nos arquivos da Escola. Entre estes são dignos de nota o livro que registra minuciosamente o dia-a-dia de sua gestão e o livro intitulado 1940, feito pelos alunos da Sala Uruguai sobre o Bicentenárjo de Porto Alegre.

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172 Silvio Henrique Filippozzi Lafin Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Um aspecto pioneiro de seu magistério foi o Cultivo do Pan- americanismo, marcado em 14 de Abril de 1940, quando as 19 salas de aula da escola receberam nomes de países e regiões do Brasil.

No livro 1940 encontramos o seguinte relato feito pelos alunos:

Estas salas, a 14 de Abril do corrente ano, data em que se comemorou o

cinqüentenário do Dia Pan-Americano, tomaram em homenagem as nações do

Novo Mundo os nomes: Argentina, Estados Unidos, Chile, Bolívia, Paraguai,

México e Uruguai, sendo patronos das mesmas: Rui Barbosa, Mal. Deodoro da

Fonseca, D. Pedro I, Benjamin Constant, General Osório, Floriano Peixoto e Barão

do Rio Branco que tão belos exemplos de amor à Pátria nos legaram; as do

pavimento médio, onde funcionam as aulas do IV ano, têm as denominações de:

Brasil Nordeste, Oriental, Setentrional, Meridional e Central, cujos patronos são:

José de Alencar, José Bonifácio, Irineu Evangelista de Souza, também chamado Visconde de Mauá, Olavo Bilac e Tiradentes; as do pavimento inferior, ocupadas

pelos alunos do I, II e III anos ainda não receberam denominações, mas cada uma

têm seu patrono que são: José de Anchieta, Osvaldo Cruz, Santos Dumont, Duque

de Caxias, Roque Gonzales e Pedro II.

Os alunos, segundo relato dela própria, deviam ter conhecimentos sobre a região ou país da aula que freqüentavam e seu patrono.

Os visitantes das regiões ou países estrangeiros eram levados às salas de aula respectivas, onde tinham a surpresa de ver o conhecimento sobre suas terras, o que lhes criava grande impacto.

Outro fato importante realizado na Escola em sua gestão foi a festa sobre Portugal que emocionou diversos visitantes, principalmente os de origem lusa.

Também por ela relatado foi a assistência aos flagelados pela grande enchente do Rio Guaíba que, em 1941, assolou Porto Alegre. Nesse período a Escola recolheu as vítimas da inundação e desenvolveu-se intenso trabalho no atendimento às mesmas nos serviços à saúde, manutenção, coordenação e educação.

No período em que esteve na direção participou de Bancas de Concursos de Escrituários da Viação Férrea e da Comissão de Classificação dos candidatos inscritos no Concurso para provimento de vagas em Escolas de 2º e 3º estágios.

Por insistência da Professora Florinda Tubino Sampaio, diretora da Escola Normal Gal. Flores da Cunha, que desejava seu retorno àquela Escola, solicitou sua demissão em 7 de maio de 1942 do cargo de Diretora do Grupo Escolar Paula Soares, tendo, na ocasião, recebido do Sr. Secretário de Educação, Dr. Coelho de Souza, uma portaria de louvor ―pela maneira brilhante como se

houve, quando do desempenho das funções de diretora‖. Retornando ao Instituto de Educação, em maio de 1942, passou a reger a

cadeira de Geografia do Ginásio daquela Escola até 1945.

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Marina Silvia Filippozzi Lafin 173

Nessa época, passou à regência da Cadeira de História da Educação no Curso de Formação de Professores Primários como substituta da Professora Olga Acauan Gayer e, finalmente, como adjunta efetiva, tendo sido sempre, na

realidade, a verdadeira titular da cadeira, uma vez que a catedrática esteve, no período, sempre em comissão especial da Secretaria de Educação. Nesse cargo, desenvolveu uma metodologia própria e criativa que foi apresentada em trabalho publicado na Revista do Ensino e que produziu como resultado uma copiosa correspondência, solicitando a publicação de um livro, o que, infelizmente, não chegou a se transformar em realidade.

Seu método no ensino de História da Educação era bastante atraente para os alunos, pois partia do fato mais significativo do cotidiano da cidade de Porto

Alegre para retornar na História até as origens da educação. Lembro-me de dois fatos que ela comentou em família e que serviram para o estudo de disciplina. Foram eles: chegada dos Jangadeiros a Porto Alegre, jangada que se encontra no Museu .Julio de Castilhos, e a Conquista do Pan-americano pela Seleção Gaúcha de Futebol, fato que empolgou os gaúchos de então. Tais fatos tinham um sabor motivacional para os alunos, talvez, sem precedentes em sua história educacional.

A Professora aposentou-se em 1959, quando, ciente de sua responsabilidade social, passou a dedicar-se a servir à comunidade externa à escola, participando de atividades junto à Catedral Metropolitana de Porto Alegre, onde presidiu o Apostolado da Oração e onde organizou o Roupeiro de São José, entidade que, além de reunir senhoras, muitas delas residentes solitárias em apartamentos do centro da cidade, prestava serviço às crianças que nasciam na Santa Casa, na confecção de roupas e fraldas. Ao fazer isso era

uma das precursoras dos Grupos Paroquiais de Convivência de Idosos. Por motivos familiares e de saúde teve que abandonar suas atividades, vindo

a falecer de Enfarte do Miocárdio, durante o sono, em 7 de fevereiro de 1976. Professora Marina Sílvia costumava dizer como Saint Exupery, ―somos

nômades para a vida eterna‖, lema este que marcou sua vida. Pioneira e criativa, sobre ela poderíamos dizer que foi a mulher forte do Evangelho, Mãe dedicada, profissional cumpridora, uma vida presente dedicada ao serviço da família e da comunidade.

O Grupo Escolar Paula Soares, quarenta anos após ter sido sua diretora, deu seu nome ao Centro Cívico em carinhosa homenagem. Isto realizou um sonho seu, descrito em uma poesia de Gabriela Mistral, encontrada entre seus documentos, que dizia: ―Que eu possa ser lembrada, tal um raio de esperança a brilhar, formoso e vivo na doçura da saudade‖.

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174 Silvio Henrique Filippozzi Lafin Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Referências

ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (Org.). História e histórias de vida. Destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

ALUNOS DA SALA URUGUAY, 1940 Bicentenário de Porto Alegre. Porto Alegre: Grupo Escolar Paula Soares, 1940.

GRUPO ESCOLAR PAULA SOARES. Coletânea de documentos. Porto Alegre, 1939- 1942.

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Olga Acauan Gayer A historicidade na construção de gênero, memória e formação

docente

LENITRA WEIL FERREIRA Doutora em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Professora de História e

Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da PUCRS.

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176 Lenitra Weil Ferreira Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Este texto resgata a concepção educacional das mulheres rio-grandenses, na

Primeira República, frente às condições históricas, sociais, políticas, culturais, articulando o contexto à mentalidade das mulheres, às contradições dos movimentos femininos, ao embate político e à visão do trabalho docente, bem como, o ingresso das mulheres no magistério.

Com a República surge a necessidade de organizar politicamente o país. Com isso, a doutrina comtiana, fundamentada na moral, na disciplina, com caráter conservador e defendendo a ordem social, propaga-se e ganha muitos

adeptos. Desta forma, essa doutrina se impõe e intervém diretamente na educação, influenciando a estrutura familiar patriarcal, em que o homem tem deveres sociais, fora do âmbito familiar, e as mulheres são atreladas e dependentes à estrutura doméstica.

A doutrina positivista, apesar de divergir da Igreja Católica,1 determinava igualmente, que a formação feminina — a instrução — fosse organizada de tal maneira que não despertasse outra função que não a do lar. Apesar de o

positivismo defender o cientificismo, e este ser contrário aos dogmas religiosos, tanto o positivismo quanto o catolicismo são conservadores quanto à visão feminina, que a entende como guardiã da moral, responsável pelo culto religioso e harmonia familiar. 2

Com o processo de urbanização, o surgimento das cidades e as constantes transformações do final do século XIX, a educação feminina é vista como meio

1 Essa discussão é referendada por Geovana Melo e Geraldo Inácio Filho, no artigo ―O

positivismo e sua influência na constituição dos modelos femininos‖. Caderno Espaço

Feminino, v.8, n.9, U. F. de Uberlândia, jan.-jun.2001. 2 Há no positivismo a Virgem mãe positivista, inspirada na figura de Clotilde de vaux,

enquanto que no catolicismo há a Virgem Maria.

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Olga Acauan Gayer 177

de progresso e ordenação do país, e a partir de então, a educação de meninas deve ser integral e enciclopédica. Devem aprender um pouco de cada coisa, obtendo, dessa forma, conhecimentos básicos sobre as leis gerais da ciência.

Legitima-se, assim, uma educação diferenciada com o surgimento de escolas masculinas e femininas. Já que os intelectos são considerados distintos, o conhecimento se dará de acordo com as aptidões de cada um.

No Brasil, as primeiras décadas do século XX, caracterizam-se pelo início do movimento operário, pelo processo de industrialização, e o país submetido à política positivista, vê o ingresso no magistério como uma ruptura no papel social reservado às mulheres, que vinha sendo marcado pela representação do modelo vitoriano.

Neste sentido, foi expectativa de que o movimento das mulheres em busca de um novo papel social, bem como sua inserção no mercado de trabalho, pudesse representar posição, determinação, incorporação aos princípios que regiam as relações do mundo do trabalho. A modernidade estabelecia o acesso às mulheres ao direito ao voto, porém ―política como profissão é coisa de homem‖, 3concebida e organizada no masculino, havendo relação direta da representação feminina, pois quando se escolhe alguma mulher politicamente, algumas características são

balizadas como energia, rigidez, coragem, autoridade, rompendo com a noção de doméstico. O político é inverso do doméstico. Rompe-se assim a lógica (pré) estabelecida e referenda-se a diferença entre público e privado, o que nos países latinos de origem católica é extremamente condenável. A Igreja Católica contribuiu muito com a noção de que as mulheres, na política, são avessas ao que é feminino, pois a feminilidade está associada ao doméstico, ao familiar, aos filhos. Isso justifica porque poucas mulheres tinham acesso à escolaridade, já que as elites

culturais de bacharéis e de doutores marcaram o estilo de nossa cultura, resistentes a idéias inovadoras. A instituição mais estável e conservadora da sociedade — a família — reforça a vida doméstica; isso implica penetrar no domicílio, na intimidade, nos costumes, na religiosidade, nos desejos e nas relações pessoais.

O projeto modernista4 de 1922, em São Paulo, patrocinado pela elite agrária paulista, desejava diferenciar-se culturalmente de outros grupos sociais, e mulheres que estudaram no exterior retornam ao país e expõem suas produções, como

3 A discussão é encontrada em Mulheres públicas, de Michelle Perrot (São Paulo: Ed.

UNESP, 1998). 4 O modernismo pode ser dividido em três linhas básicas que se conjugam e se

confundem: a desintegração da linguagem tradicional; a adoção das conquistas das

vanguardas e a busca da expressão nacional.

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178 Lenitra Weil Ferreira Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Patrícia Galvão, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti.5 Mesmo o antimodernismo, da poetisa Cecília Meireles, que prega ―a tradição lírica do passado‖ ganha dimensão no simbolismo e produz uma poesia condizente com a imagem que os homens

fazem das mulheres: delicada, intimista, subjetiva, compassiva. Não se pode esquecer que ela foi voz feminina na literatura brasileira, que falando da perspectiva da criatura dominada, fala das mulheres silenciosas.

No final dos anos 20, a produção intelectual6 traz o pensamento educacional. Obras de cunho nacionalista são produzidas por Teixeira Brandão, Jose Veríssimo, Carneiro leão e Miguel Couto; outras de orientação pedagógica de Sampaio Doria, Aprígio Gonzaga e Alípio Franco; algumas de orientação histórico-descritiva de Afrânio Peixoto e M. S. Oliveira, e as de cunho escolanovista de Anísio Teixeira,

Julio de oliveira e Heitor Pereira. Essas obras revelam amadurecimento intelectual com panoramas amplos de formação, porem distanciadas da realidade, a-historicas e conservadoras, pois são fruto da política oligárquica. Porem promovem uma serie de reformas, com percepção superficial da realidade já que estão atreladas ao modelo político-economico liberal, basicamente burguês; mesmo assim denunciam os problemas educacionais como dever do regime republicano democrático. Na realidade, evidencia-se uma limitação teórica nas reformas, pois a educação, além

de não apresentar relação com o contexto, defende o modelo das elites. Exprime-se, assim, o liberalismo, podendo-se perceber vínculo estreito entre o modelo educacional e o econômico/político burguês. A educação reproduz as estruturas de poder; 7por isso tanto faz haver reformas regionais, pessoais, com conteúdo liberal ou não. O que elas retratam, mesmo de maneira superficial, são os problemas existentes que, na estrutura de poder afetam a organização escolar. Estas reformas, apesar de parecerem ampliar e favorecer as diferenças regionais, legitimam e

reafirmam a unidade política hegemônica dominante e elitista. Desta forma, as entidades sociais, partidárias e sindicais são obrigadas a atuar na clandestinidade.

5 O que provoca uma reação muito grande no publico burguês, sendo ameaçada e sua

mostra fechada. 6 Obras constadas nesse levantamento: ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de

pesquisadores em história da Educação). Historia da educação. Pelotas: Editora da EFPel,

semestral, n.6, out. 1999. DEL PRIORE, Mary. Historia das mulheres no Brasil. São Paulo:

Contexto, 1997. DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira – décadas de

1930 aos anos 1970. Passo Fundo: UPF Editora, 1999. DUBY, Georges; PERROT,

Michelle. Historia das mulheres – o seculo XIX e XX. Porto: Editora Afrontamento, 1991. 7 Discussão encontrada nas seguintes autoras: RIBEIRO, Maria Luisa. História da

Educação brasileira. São Paulo: Moraes, 1986. ROMANELLI, Otaíza. História da

Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984. XAVIER, M. Elisabeth et AL. História

da Educação; a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1995.

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Olga Acauan Gayer 179

Em suma, a síntese do período é o bacharelismo, esse é o estilo, a resistência conservadora da oligarquia e o desejo da burguesia urbana.

Até o surgimento das Escolas Normais, os professores eram escolhidos pelo

que sabiam; quem lecionava o fazia porque dominava conteúdos específicos como Ciências, Língua Portuguesa, etc. A primeira instituição educacional para mulheres rio-grandenses é a Casa das Recolhidas, nos anos de 1850, no governo de José Marcelino, para meninas indígenas, onde lecionou a primeira professora que se tem registro no estado, Gregória Rita Coelho. Em 1869, é fundada a Escola Normal da Província, com o objetivo de integrar a mulher à fé cristã, ao modelo de educadora dos filhos e diretora do lar. Essa preocupação visava não só o aprimoramento dos filhos, mas, igualmente, suprimir vagas para docentes nas

escolas públicas, pois, devido à baixa remuneração, os homens não estavam mais interessados nelas lecionar. Em 1877 a escola recebe a denominação de Escola Normal da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e em 1906 é designada como Escola Complementar de nível secundário, órgão formador de profissionais para o magistério. Em 1929, é denominada como Escola Normal e, em 1939, de Instituto de Educação.

Nesta perspectiva, o modelo pedagógico adotado pelas mulheres que

ingressaram e atuaram no magistério, mais especificamente no Rio Grande do Sul, é localizado através de revisão bibliográfica de autores8 que analisaram o cotidiano da época, os movimentos femininos no Brasil e no Rio Grande do Sul, e que possibilitaram resgatar mulheres que, pela expressão de seu trabalho, tiveram reconhecimento político, social e cultural no estado. Cabe observar que estas mulheres, 9filhas da classe dominante ou da emergente burguesia, foram alunas da Escola Complementar de Porto Alegre no período da Primeira República,

estabelecimento público, leigo e laico, sem formação confessional, destacando-se em diferentes áreas. As escolas de magistério, públicas ou religiosas privadas, eram para moças de todas as origens sociais, porém os cursos de especialização, 10após o

8 Foram centrais as contribuições de autoras como: Mary Dei Priore (1997), Clarisse

Ismério (1995), Guacira L. Louro (1987, 1995), Aidê C. Dili (1994), Ana C. Breiser

(1996) e Hilda Flores (1989): bem como de autores como: Paulo Soares (1980) e Sady

Luiz Manfrom (1992). 9 Aracy Dantas de Gusmão, Marietta Costa e Júlia Cavalcanti na poesia: Ilse

Woebecke, Olga Fossat, Amália Iracema, Heddy Iracema, Zola Amaro e Olintha

Braga. na música; Anna Aurora do Amaral Lisboa, Branca Diva Pereira de Souza e

Olga Acauan Gayer, na educação. 10

Era ensinado: português, matemática, geografia nacional, história do Brasil e geral,

história sagrada, catecismo, pedagogia, puericultura, psicologia, economia domestica,

trabalhos manuais, higiene escolar, sociologia e, ainda, canto orfeônico, educação física

e ginástica, aulas de moral e civismo e,em alguns momentos, até teatro.

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180 Lenitra Weil Ferreira Identidade e vida de educadores rio-grandenses

de formação de professor primário, eram para classe privilegiada. A escola adquiria caráter idealizado, apresentava-se afastada de conflitos e desarmonia do mundo externo, apresentando-se como um local limpo e cuidado, alheio às discussões

políticas, religiosas, pois isso era contra a ―natureza feminina‖. Com exceção das escolas privadas religiosas, as outras eram dirigidas por homens, reproduzindo e reforçando a hierarquia doméstica, onde as mulheres ficavam nas salas de aula, executando as funções mais imediatas de ensino, enquanto os homens dirigiam e controlavam todo o sistema. Com Lourenço Filho, em 1921, é que o magistério primário se torna função feminina chegando a 70% de normalistas, índice que cresce significativamente durante os anos seguintes.

No início do século XX, a capital do estado, Porto Alegre, era ainda

iluminada a querosene e são precárias suas condições urbanas, (as ruas eram estreitas, mal calçadas e de pouca higiene) e o então secretário do Interior, Protásio Alves, envia a Montevidéu, alunas recém-formadas pela Escola Complementar (em 1913), para tomarem conhecimento de métodos de ensino. Esta viagem de estudos é exemplo de aprimoramento profissional, colocando as alunas em contato com outras realidades.

Entre essas jovens estava Olga Acauan Gayer.

Analisando aspectos relativos à prática docente e produção acadêmica dessa educadora, bem como sua trajetória na área de educação, afloram como significativos alguns dados, tais como: enquanto aluna da Escola Complementar de Porto Alegre recebeu um prêmio por inteligência e aptidão para o estudo, oferecido pela Mestra Olga Talaia de Moura; formou-se na Escola Complementar11 de Porto Alegre em 1913; ganhou, do então governador do Estado Borges de Medeiros, bolsa de estudos para cursar a Escola Normal de Senhoritas, de 1914 a 1917, em

Montevidéu; foi nomeada, em 1917, pelo prefeito de Porto Alegre, Protásio Alves, como Auxiliar de Ensino da Escola Complementar de Porto Alegre; recebeu diploma de Magistério em 1919, que lhe deu o direito de exercer o oficio de professora em todo o território nacional e, em decorrência disso, o governador a nomeia professora efetiva do Estado do Rio Grande do Sul.

No início dos anos 20, junto com Branca Diva Pereira de Souza, Olga publicou, pela Livraria Selbach, o livro de alfabetização Queres Ler?, material didático de iniciação à alfabetização utilizado em muitas escolas, durante muitos

11

No currículo de Curso Complementar, as disciplinas eram: Matemática; Frances;

Português; Ciências Físicas e Naturais; Estatística; Solfejo; Economia domestica;

Historia Universal; geografia; Coreografia; Ginástica; Cosmografia; pedagogia (teoria);

Desenho; historia do Brasil. As disciplinas de psicologia e Pedagogia eram ministradas

pelas professoras Anadir Coelho e Gisela Lopes, ambas cedidas pelo estado. No curso

complementar não havia estágio, a pratica era feita em sala de aula com as colegas.

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Olga Acauan Gayer 181

anos, cujo sistema fonético silábico será modelo educacional. Em 1922, foi designada para exercer a regência da Cadeira de Metodologia, na Escola Complementar de Porto Alegre; em 1929, para reger a Cadeira de Pedagogia

Prática e Profissional, acumulando dois cargos, na Escola Complementar de Porto Alegre. Na administração de Otávio Rocha, a cidade é remodelada, com água, esgoto e rede elétrica. Iniciada a modernidade, há estímulo à saída das mulheres às ruas, havendo nova imagem da mulher independente, que o cinema americano propaga. É a época das melindrosas, da imagem da sexualidade feminina, de Isadora Duncan, de Nijinsky. O expressionismo, futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, todos mostram um novo estilo da criação artística. A moral conservadora posiciona-se contra a nova mentalidade, pois não consegue dar

respostas às mudanças sociais, políticas e econômicas que ocorrem, muito menos nas mudanças educacionais e no trabalho feminino, já que seus interesses hegemônicos e elitistas não respondem à sociedade.

A mulher, das classes média e baixa, começa a participar da vida econômica do país, especialmente nas áreas de industrialização, no setor têxtil, no setor terciário, nos serviços de datilografia e de secretaria e nas atividades de comércio. Em 1922, a Livraria do Globo contrata mulheres para trabalhar na

cartonagem e na encadernação. O aumento de possibilidade de trabalho representa a quebra do isolamento familiar e surgem condições de estudo e opção profissional. A Escola Normal, conseqüentemente, é a possibilidade de atuação, no ensino primário. O pensamento pedagógico da época, segundo madre Luísa Gabriela (Diretora do Colégio Sevigné) é o de que: ―todas as crianças são iguais em todas as suas fases de desenvolvimento; só o dia-a-dia com o aluno nos possibilita saber como lidar com elas; na verdade, só depois que nos tornamos

mães, conhecemos o verdadeiro significado da educação‖. Apesar das políticas públicas, e do referencial teórico educacional já referendar as idéias de Dewey e da Escola Ativa, o modelo tradicional e conservador mantém-se, havendo nas escolas muita leitura e os estudos são cobrados com rigor. É feito todo um controle social e familiar no que diz respeito a aconselhamentos a um futuro casamento em detrimento de uma profissionalização.

Mesmo assim, a dimensão do feminino começa a ser aceita com menos preconceito, apesar de restrita às mulheres das camadas menos privilegiadas, já que

as moças da classe média têm possibilidade de estudo e opção profissional na Escola Normal. O magistério público passa a significar, para algumas, a oportunidade de formação mais ampla. A formação de Magistério, até certo ponto, é confundida, já que o papel de professora era semelhante ao de mãe. Por isso, se falava tanto em vocação e era senso comum a idéia de que a mulher era talhada para o magistério primário. Era interesse dos positivistas reforçar a idéia da mulher assexuada, bem como de que ser mãe era o maior compromisso que ela poderia ter

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182 Lenitra Weil Ferreira Identidade e vida de educadores rio-grandenses

na sociedade, reforçando as tarefas domésticas, e quando fossem à escola lhes seria resgatado o papel de mãe-educadora, para não serem discriminadas. A educação era por natureza, condição feminina, por isso o magistério foi extremamente

significativo e esteve sempre ligado ao governo e às orientações dominantes. Mesmo assim, algumas alunas destacaram-se na crítica ao regime político e às normas sociais da época.

Mesmo que o movimento feminista estivesse crescendo na Europa, este não era aceito na sociedade rio-grandense. Havia uma comodidade notória na postura das mulheres, e aquelas que exerciam atividade fora do lar, que desempenhavam atividade intelectual, ou buscavam o reconhecimento social através de uma profissão, eram vistas como frustadas, por não casarem, tendo

que se realizarem com seus escritos. 12 Porém, em 1936, 13Olga, participou do Conselho Estadual de Educação e

ocupou o cargo de Inspetora Escolar; em 1937 foi Diretora Geral da Instrução Pública; em 1942 foi Diretora Geral do Departamento de Educação Primária e Normal da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul; em 1948 foi nomeada Diretora do Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha (designação dada desde 1937 à Escola Complementar de Porto Alegre); foi

reconduzida em 1951, ao cargo de Diretora dessa instituição pelo Secretário de Educação José Mariano da C. Beck; pertenceu à comissão de elaboração do anteprojeto do Plano de Organização do futuro Instituto de Educação Rural, em 1954; aposentou-se do cargo de professora do magistério público rio-grandense, em 1955; recebeu o título de Professora Emérita do Estado do Rio Grande do Sul, em 1958. Olga Acauan Gayer, atuante nos órgãos políticos educacionais, abre espaço profissional. Sua adequação ao magistério primário e sua referência teórica

como alfabetizadora é vista como marco entre profissionais que tentam romper com a transferência da função maternal, que a sociedade da época corroborava.

Os anos de 10 e 20 são décadas de entusiasmo pela educação, porém as idéias tradicionais, as normas disciplinares rígidas, o currículo fundamentado na aquisição do conhecimento e a proposta metodológica não apresentava um avanço. A prática pedagógica adotada na época estava muito longe de ser incorporada às idéias dos escolanovistas, cujo modelo de ensino era centrado no

12

Essa discussão é levantada nos textos ―Vozes Femininas‖, produzidos pela Academia

Literária do RS. 13

Nos anos 30, Gustavo Capanema, através do Plano Nacional de Educação de 1937,

previa a existência de um ensino doméstico, para meninas dos 12 aos 18 anos, ensino médio

feminino, destinado às mulheres mais humildes, com formação prática. Desta forma a

instituição escolar mantém a ordem social vigente, moldada por padrões conservadores a

mulher cumpre o papel do lar e da maternidade.

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Olga Acauan Gayer 183

aluno, já que a atuação profissional apresentada integrava o discurso do governo oficial do estado e as orientações dominantes. Assim sendo, as alterações nas práticas pedagógicas ocorrem efetivamente somente após os anos 30.

Portanto, a atuação da mulher no mercado de trabalho no Rio Grande do Sul, tal como foi destacado na professora Olga Acauan Gayer, pelo seu ingresso no magistério, não significou uma ruptura na concepção pedagógica, nem no modelo de escola, 14uma vez que esse se mantém tradicional, conteudista, conservador, reprodutor, mas sim, representou conquistas sociais, que apesar de pequenas, garantiram um espaço social feminino de atuação, admitido pela sociedade patriarcal da época. O trabalho docente dessa destacada educadora foi marcado pela inserção neste ideário. Foi possível

observar que os princípios que orientaram a sua prática pedagógica não significaram um deslocamento metodológico, uma vez que descontextualizado da realidade social, mas significou certa compatibilidade com a forma como o sistema e o modelo positivista via a mulher e a admitia como profissional. Apesar de a mulher representar a função materna fora do lar, como professora primária, contraditoriamente, esta função ajuda à emancipação. A partir daí há mudanças, outros comportamentos são apresentados, surgem aspirações

profissionais, enfim um movimento de transposição começa e marca a ruptura. Na realidade, a concepção do feminino, segundo Fernandes,15 ―ia além daquilo que as elites culturais, econômicas e políticas estavam dispostas a admitir‖.

A proposta de pesquisa sobre as questões educacionais a partir de personagens, de discursos, de produções teóricas, tenta recuperar a historicidade e a importância das produções historiográficas, fazendo emergir não apenas o seu tempo, o passado, mas justificar um fazer histórico importante

ao momento atual educacional. Foi o que pretendemos ao (re) construir a História de Vida de Olga Acauan Gayer.

14

Segundo Geovana Moura e Geraldo Filho, as mulheres tinham representações

diferenciadas, pois ―as professoras eram tidas como autoridades máximas, algumas

mais liberais, outras mais austeras‖ (em Cadernos de Educação Escolar, Univ. Fed. de

Uberlândia, ano 2, n. 1,2001).

15 Alicia Fernandes, no texto A mulher escondida na professora (Porto Alegre:

Artes Médicas, 1994, p.2O), amplia esta discussão na dimensão social, referindo

outra investidura.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos Sentidos e significados de uma trajetória docente

GILBERTO PUNTEL Mestre em Educação pela UFSM.

JORGE LUIZ DA CUNHA

Doutor em Historia Medieval e Moderna/Contemporânea pela Universidade de

Hamburgo, República Federal da Alemanha. Professor do Curso de Pós-Graduação em

Educação – UFSM. Diretor do Centro de Educação – UFSM.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 185

O texto apresenta a História de Vida da professora Paschoa Maria Puntel

dos Santos. A pesquisa que estudou a trajetória desta educadora redundou na Dissertação de Mestrado em Educação, 1intitulada ―O Processo Formativo na História de Vida da Professora Paschoa M. P. dos Santos‖, integrada à Linha de Pesquisa ―Formação de Professores‖, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria e defendida em dezembro de 2002. Esse estudo possibilitou uma compreensão dos sentidos e significados relativos às vivências e experiências da trajetória pessoal/profissional da

professora Paschoa, enfocando formação e identidade docente, tendo a memória como fonte de dados, os quais foram analisados com base na literatura de autores consagrados em metodologia de História Oral de Vida.

Este texto apresenta a trajetória da professora Paschoa, em que o contexto gerador da personagem educacional funda a personalidade social e torna significativa a sua ação na fundação da comunidade local. Compõe-se de uma breve contextualização, de considerações para indicar o que segue

nas falas, quando necessário, e, na seqüência, apresenta narrativas da professora Paschoa. Nas falas, entre parênteses, foram feitos breves complementos da idéia dessa educadora.

Origem e contextualização

A professora Paschoa nasceu a 11 de março de 1927, em Linha São João, localidade pertencente ao atual município de Ibarama. Descendente de imigrantes italianos é filha de Gramácio Puntel e de Arcísia Sebben. Seus avós paternos

1 Autor: Gilberto Puntel; orientador: Jorge Luiz da Cunha

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Lorenzzo Puntel e Paschoa Maieron, originários da localidade de Cleulis, Palluzza, Udine (Itália), chegaram ao Brasil no ano de 1905.

Na localidade de Linha São João, no meio rural, cresceu junto a cinco

irmãs, quatro irmãos e aos pais. A região era coberta por densa vegetação nativa, que oferecia dificuldades,

principalmente numa época em que, todas as atividades dependiam da força braçal. Os acessos eram abertos em meio à mata nativa em razão de encostas entrecortadas por declives e aclives acidentados, em meio a riachos e fontes d‘água, situação que exigia superar as dificuldades geográficas da natureza e superar os próprios limites para satisfazer as necessidades humanas e ascender, além dessas.

Numa exígua planície, entre dois morros, foi construída a residência,

composta de casa e galpão feitos em madeira, uma encerra (ou mangueirão) para a criação de suínos, feita em pedras entaipadas (pedras empilhadas e denominadas de taipa), e, posteriormente, um belo pomar.

O andar superior da casa servia de moradia. O porão era utilizado para beneficiar fumo em corda e depositar os produtos agrícolas, como feijão, arroz, cevada, trigo, milho, entre outros.

Os móveis da casa eram feitos em madeira, rústica, todos confeccionados

pela família com materiais da propriedade e, outros, adquiridos nas viagens que o pai fazia a Santa Cruz do Sul e a Sinimbu, em carroças de ternos de muares, para vender fumo e banha, os quais eram trocados pelo que a família mais necessitava, como tecidos para confeccionar colchões, acolchoados e vestuário.

As ferramentas para o trabalho agrícola eram confeccionadas em ferrarias e, mais tarde, adquiridas em casas comerciais da região. A atividade familiar resumia-se na produção primária totalmente manual, além da criação de aves, bovinos,

suínos, eqüinos e ovinos. Parte da comercialização dos produtos dava-se na propriedade, outra parte era negociada com compradores que passavam pela região em carroças, movidas por ternos de muares.

A água era recolhida de uma fonte localizada na mata nativa, próxima à casa, por canal confeccionado em coqueiros escavados que chegavam até um ―tanque‖, feito de madeira grossa escavada, de onde era tirada água para beber e, deste seguia até outro tanque que também era confeccionado em tronco de madeira grossa escavada, onde se lavavam as roupas.

Aos domingos, a atividade principal era a oração na comunidade de Nossa Senhora Aparecida, distante cinco quilômetros da residência.

Nessa época, a escola e a igreja eram criadas pela organização das próprias famílias imigrantes. Por isso, as famílias residentes na Linha São João, junto a outras da região, participavam da comunidade de Linha Nossa Senhora Aparecida, onde criaram uma capela e uma escola feitas em madeira, no mesmo lugar onde estão, hoje, escola e igreja.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 187

A iniciação escolar se dava na residência das professoras que nem sempre residiam no local. Vinham de diferentes lugares e permaneciam até que existissem alunos/as que freqüentassem as aulas. Eram, portanto, pagas pelas

famílias, para ensinar a ler, escrever e contar. A educação escolar primária, nessa época, no Brasil, ainda representava uma

importância secundária, Não, porém, para as famílias imigrantes italianas. Essas famílias tinham clareza do significado da escola para a formação de seus filhos. Haja vista a bagagem cultural que portavam desde a Europa, de onde vieram. Por isso, tão logo alguma criança pudesse acompanhar outra à escola, irmãos/irmã, vizinhos, iam juntos. Tão logo completou 6 anos de idade, Paschoa pode acompanhar a irmã Vilma às aulas na residência da professora Morena Lima, em

Linha Nossa Senhora Aparecida, atual município de Ibarama, RS. Nessa mesma localidade, depois de ter estudado com a professora Morena

Lima, estudou também com as professoras: Assíria, Matilde Simam e Lídia. As aulas eram interrompidas sempre que a professora mudasse de residência.

Por isso, do ano de 1933 até o ano de 1938, Paschoa teve aulas somente no total de aproximadamente 11 meses.

No segundo semestre do ano de 1938, quando já contava com 11 anos de

idade, o pai, Gramácio, levou-a para estudar na escola das irmãs do Sagrado Coração de Maria, na sede do distrito de Ibarama, onde ficou até o final desse ano, residindo junto aos avós maternos.

Nessa escola a professora Ir. Cezarina, pertencente à Congregação das Irmãs do Sagrado Coração de Maria, foi a fonte de uma metodologia de ensino diferente daquela que tivera até então. Predominava, nas escolas congregacionais, a educação com base na metodologia de ensino desenvolvido

pelos jesuítas e representada pela figura da professora como quem tivesse o domínio pleno do saber, aliada a uma disposição multisseriada e/ou unidocente, portanto, uma professora para alunos da primeira à quinta ou sexta série, todas as classes reunidas numa única sala. Essa foi a base da educação em que professoras leigas — como foi a professora Paschoa — tiveram para sua formação como docentes. Esse foi um período da trajetória de Paschoa extremamente positivo, pois mesmo estudando na segunda série, teve a possibilidade de acompanhar o conteúdo das demais séries (da P à 6) nas várias disciplinas. Em razão disso, o

contato com a professora Cezarína permitiu-lhe aprender não só o conteúdo, como também um modo de ensinar simultaneamente crianças em diferentes níveis de aprendizagem. Essa foi a base didático-pedagógica de Paschoa que lhe permitiu aplicar essa mesma metodologia de ensino, no início de sua atividade profissional, ano seguinte, 1939, quando sua família já estabelecida na localidade de Nossa Senhora de Caravaggio, no interior do município de Soledade, junto a outras seis famílias de imigrantes, sentiram a necessidade de iniciar seus filhos

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188 Puntel e Cunha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

nos conhecimentos religiosos e escolares, indicando Paschoa para ser a promotora dessa aprendizagem.

Em razão de não existir escola e igreja próximas — as que existiam

distavam de oito a vinte quilômetros — as famílias procuraram dentre seus próprios integrantes alguém que tivesse as características culturais do grupo, para realizar essa atividade.

Por esta razão, Paschoa foi escolhida como educadora, com apenas 13 anos de idade, dentre as pessoas que passaram a formar a comunidade de Nossa Senhora de Caravaggio. Nesse grupo social, primeiro iniciou os filhos dos imigrantes nos conhecimentos da religiosidade católica, cujo resultado foi satisfatório e, em razão disso, foi convidada para ensinar essas crianças a ler, escrever e contar.

Dessa atividade de educadora, resultou na fundação da escola municipal Olavo Bilac, no ano de 1940, e da igreja de Nossa Senhora de Caravaggio.

A figura do pai foi muito importante na construção da identidade docente de Paschoa. Durante as viagens que seu pai fazia para Santa Cruz do Sul e Sinimbu, transportando produtos oriundos da atividade agrícola para serem comercializados, comprava-lhe livros. Por ocasião de uma das viagens que fez, comprou-lhe um livro que reunia vários conteúdos. Esse livro a auxiliou a

superar algumas dificuldades e permitiu-lhe, aliado aos saberes de que dispunha, iniciar a alfabetização das crianças que lhe foram confiadas.

Entretanto, isso não foi suficiente e nos anos subseqüentes a professora Paschoa teve que procurar por pessoas que residissem na região e pudessem ajudá-la a aperfeiçoar as competências de professora/educadora, pelo motivo de não existir, na localidade, escola onde pudesse aperfeiçoar os conhecimentos como docente.

No processo formativo da professora Paschoa participaram, de modo informal, pessoas que não lhe exigiam a freqüência a uma sala de aula ou a uma escola específica e, em razão disso, não lhe exigiam um horário predeterminado, nem mesmo a rigidez de diálogo sobre um único conteúdo, podendo ser abordados, na qualidade de temas transversais, assuntos desde as vivências pessoais até as experiências de sala de aula, o método de ensino, dentre outros. Essas pessoas foram por nós denominadas de co-formadores.

A participação de co-formadores iniciou com a professora Júlia Campos

que estudou em Cruz Alta e residia na localidade de Despraiado, pertencente ao atual município de Tunas, Rio Grande do Sul. Júlia Campos foi uma co-formadora que a professora Paschoa visitou durante vários anos, nos finais de semana, com o objetivo de aperfeiçoar suas competências para desenvolver com os alunos o processo ensino-aprendizagem.

As circunstâncias que envolveram o início da atividade de professora fundaram os principais sentidos para continuar as ações de educadora, por 56 anos.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 189

A catequese e a escola tiveram início na casa de Angelo Setti, imigrante italiano que seguiu de Ibarama para a localidade de Nossa Senhora de Caravaggio. Um quarto da casa desse senhor serviu de base para a atividade de educadora

realizada por Paschoa, por quatro anos, aproximadamente. Concomitante ao ensino ministrado para os filhos das famílias italianas de imigrantes, Paschoa também ministrou aula na localidade de Coloninha, lugar colonizado por alemães, e na localidade de Figueira. Esses locais mantiveram as características de escolas particulares nas casas das próprias famílias ou em local reservado para a escola, em galpões rusticamente construídos. A professora Paschoa se deslocava a pé para esses lugares. Coloninha ficava a meio caminho de Despraiado e Figueira ficava a seis quilômetros de sua residência em direção oposta a Despraiado.

A região de Nossa Senhora de Caravaggio acompanha os traços geográficos semelhantes aos daqueles da Linha São João, com um diferencial: a existência do rio Lagoão e de seus afluentes Lagoãozinho e Xaxim, ofereceram as condições necessárias para instalar o moinho de pedra, para fazer a farinha de trigo e de milho, e a serraria para beneficiamento de madeira, ambos movidos pela força d‘água.

A professora Paschoa residiu sempre próximo da escola na localidade de

Nossa Senhora de Caravaggio. E, em razão de ser uma das fundadoras da comunidade, era a responsável pela iniciação das meninas nos cuidados do ambiente interno da igreja para os cultos dominicais, e a todos os catequizandos nas leituras bíblicas. Essa situação a mantinha próxima da comunidade, bem como de todas as famílias e dos alunos, razão pela qual todos se conheciam. Esse conhecimento e proximidade das pessoas da comunidade, das famílias origem de seus alunos, facilitou a compreensão da utilização de uma linguagem apropriada

na relação escolar entre professora e alunos/as/famílias. Conforme a época, alternou suas atividades educacionais na escola e no trabalho agrícola, situação que oferecia total entendimento das condições de aprendizagem sobre cada um de seus alunos/as.

No ano de 1982, professora Paschoa foi residir na cidade de Santa Cruz do Sul. Há algum tempo, a comunidade de Nossa Senhora de Caravaggio estava se desagregando. Com a mudança de residência da professora Paschoa para Santa Cruz do Sul, acentuou-se a desagregação da comunidade que tinha na

professora a principal representante de uma cultura construída no local; essa comunidade inicia uma crise de identidade e, a maioria das pessoas que lá residiam, descendentes dos primeiros imigrantes, partiram para outras regiões.

Embora a comunidade ainda seja freqüentada pelos moradores do lugar e por ex-alunos da professora Paschoa por ocasião da festa da padroeira, a comunidade já não mais tem as características originais. No ano de 1984, a Escola Olavo Bilac foi fechada.

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190 Puntel e Cunha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

Paschoa teve, na cidade de Santa Cruz do Sul, outra experiência como docente, desta feita no meio urbano, na Escola Luiz Schroeder. Os altos e baixos desse momento, na narrativa da professora Paschoa, são importantes e indicam a

necessária e imprescindível capacidade de mudanças e adaptações referentes à metodologia de ensino-aprendizagem, conforme o momento histórico-social, adequando, no processo docente, linguagem e relações humanas.

Entretanto, essa época é marcante para a educação como um momento histórico em que, para exercer a atividade docente, era necessária a formação em nível de Magistério. Mas, como a professora Paschoa não teve essa formação, cursou no ano de 1985, o segundo grau, habilitação Magistério, realizando estágio na primeira série do ensino fundamental na Escola Murilo

Braga, na mesma cidade. Em 1997, concluiu a docência, mas continuou a atuar como catequista na

paróquia da Ressurreição. Nesse mesmo ano, recebeu o título de ―Professor Emérito‖ do Estado do Rio Grande do Sul. Coincidência ou não, concluiu a atividade laboral exercendo a mesma atividade que, em 1939, lhe proporcionou a passagem ao status de professora, no ano de 1940.

Desse modo, a professora Paschoa teve, no total de seu processo formativo,

11 meses de aula formal, cursados nas escolas localizadas em Linha São João e Ibarama. Os conhecimentos adquiridos durante a atividade de educadora foram incorporados aos saberes profissionais e somados àqueles assimilados no contato com pessoas que já atuavam na educação, de algum modo. Além desses, o único curso que tem característica formal, realizado por nossa personagem, foi o segundo grau, habilitação Magistério, em Santa Cruz do Sul, já referido. Os demais saberes e condições de elaboração da própria vida

pessoal, permeada pela atividade profissional, estruturaram-se como foram narrados, a seguir se apresentam em citações diretas, em texto corrente, das narrativas que permitiram à Paschoa relembrar suas experiências, vivências, sentimentos, valores, sentidos, concepções, idéias, ideais e significados, sobre sua trajetória profissional, que perpassam a singularidade de sua biografia.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 191

As vivências e experiências na voz da professora Paschoa 2

A Vilma (irmã de Paschoa) ia na escola lá na Aparecida (Linha São João) longe, longe, e tinha de atravessar um matão, então eu ia junto, de companheira... a professora sabia... eu tinha... 6 anos. Então a professora me deu um lugarzinho lá no fundo. Eu não era aluna. Eu dizia assim para a Vilma: — só dá a tua lição e me passa o livro. Eu cuidava como a professora lá ensinava e eu aprendia, e eu aprendi a ler sozinha... todo dia... eu não queria nem recreio, para aprender. Quando foi um

dia eu estava sozinha... lendo na hora do recreio, a professora entrou, mas eu não vi que ela tinha entrado. Ela veio pé por pé onde eu estava, ela disse: — tu decorou isso aí (?), não (!) eu estou lendo, mas porque tu não vai brincar (?)... eu quero aprender (!). Daí ela disse: —... mas que pecado (!), então leia para mim. Eu li. Daí... eu disse, olha eu li só até aqui. Eu me marcava as lições e era aquilo. Daí ela foi para trás eu sabia, foi para frente, eu sabia também... ela disse: — tu aprendestes a ler? É eu aprendi (!) Então tu pode sentar aqui (!) Vem cá que eu vou te dar um lugar para ti. A primeira da classe da frente. Fiquei cinco meses naquela

escola... Era professora Morena Lima, daí ela foi embora e parou a escola. Depois eu fui quatro meses, ali foram cinco, depois foi mais uns meses noutra

professora, na professora Lídia, depois mais quatro meses na escola das Irmãs em Ibarama (1937), desde o segundo ano e parei. Meu pai foi embora para o Caravaggio (1938), e de lá com o segundo ano, mas eu lia muito... então comecei dar aula, primeiro a catequese (1939) e depois da catequese a aula (1940),... eu sei que ao todo foram 11 meses de aula.

O meu pai foi embora para Soledade e eu fiquei no colégio das irmãs (Ibarama)... estudei aquele ano no colégio das irmãs; fui embora, depois, lá não

2 Durante as narrativas, professora Paschoa foi relatando e relacionando a descrição da

metodologia de ensino que utilizava com fatos para fundamentar seu pensamento. Sempre

que a professora Paschoa se referir à Escola Olavo Bilac ou ao lugar de Nossa Senhora de Caravaggio, diz: ―lá‖; e quando se referir às experiências, vivências e fatos ocorridos na

Escola Luiz Schroeder, diz: ―aqui‖. As referências da sequência dos relatos registrados nas

fitas e o lado correspondente, caso seja necessário, podem ser consultados na Dissertação, já

referida, O que segue são os elementos das narrativas da professora Paschoa, como foram

registrados. Em virtude das orientações e dos esforços de outros autores, consagrados que

teorizam a História Oral de Vida, como um meio por excelência para ―dar voz‖ aos

professores e valorizar a memória para a educação e para a história, com base em biografias

de educadores, fazemos jus à importância de seus trabalhos, ao ―dar vez‖ à voz da

professora Paschoa. Tivemos o cuidado de manter a originalidade, adequando a sequência

das idéias veiculadas durante as narrativas com complementos realizados pelos autores,

entre parênteses.

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192 Puntel e Cunha Identidade e vida de educadores rio-grandenses

tinha escola, tinha só na Bela Vista, Coloninha e Tunas e era muito longe, Daí, eu estudava, assim, em casa.

Quando eu ia na escola, eu pedia para o pai e a mãe para ir bem cedo para a

aula. Mas a aula só começava às oito horas; nós saíamos de casa às seis horas e trinta minutos, para ir varrer o pátio da casa da professora, arrumar as camas e limpar, passar o pano. Até a hora de entrar para a escola, ela tinha a casa bem limpa. Nós éramos três. Fazia isso para a professora todos os dias. Para a gente, naquele tempo, uma professora era um presente do céu. Hoje, tem bastante; naquele tempo tinha pouco professor. E a gente dava graças a Deus de ter uma professora. Quando nós morávamos lá perto da linha São João, nós íamos longe, a pé. A gente tinha de sair às seis e meia e levávamos quase uma hora a pé e nós

chegávamos lá. Uma varria o pátio da casa da professora, outra ia arrumar as camas, a outra já pegava o balde e lavava a casa para ela. Nós fazíamos tudo para ela gostar da gente. Agora, para mim, ela sempre foi boazinha.

Comecei a dar catequese para 35 crianças, preparei elas e, no ano seguinte eu preparei 36 crianças e, aí, como catequista aos 13 anos, os pais pediram para o meu pai para eu ser professora. Disseram: aprendendo como ela está bem. Que não tinha outra que ensinasse as crianças a aprender a ler, aí eu comecei em 1940.

Eu aceitei dar aula porque era particular. Porque eu não achava que era capaz de acompanhar... os professores da prefeitura, então eu comecei, mas aquele livro me instruiu muito, se chamava aritmética.

Mas quando chegou o final do ano, eu sabia aquele livro tudo de cor, e daí eu tinha, aquele livro. Era até a sexta série. Era programa, não era um livro, programa, mas era como um livro, e daí eu fui convocada a fazer concurso. O primeiro ano que eu comecei (a dar aula), eu adquiri o material com a dona Julia.

Era um programa de ensino que se chamava aritmética que todo município desenvolvia e eu comecei a ensinar por aquele livro, muito prático, porque tinha as perguntas e as respostas e, alguma coisa que não tinha, eu dava. Eu trabalhava até sábado de meio-dia e, de tarde, eu ia até o Despraiado, na casa da dona Julia estudar com ela, aos sábados de noite. No domingo de tarde, eu voltava para casa. Eu sempre fazia esse trajeto do Caravaggio até o Despraiado, a pé. Ela era professora. Dava aula no Despraiado. Era uma pessoa muito culta. Eles eram cinco irmãos. Todos professores. Todos formados em Cruz Alta. Então, ela me ajudou

muito e eu fui assim preparando as crianças, só que no final do ano (1940) não era eu que aplicava a prova, vinha da prefeitura, o pessoal da prefeitura, aplicar as provas. Depois, mais tarde, quer dizer, depois que registraram a escola, o seu Abel Ferreira, quando fizeram o primeiro ano a prova final dos alunos, então ele foi e registrou a escola. Eu prestei concurso (1941) fui aprovada e depois continuei. O concurso foi em Soledade e eu concorri com 25 e fiquei em segundo lugar. Tinha só a Madalena, uma professora que ingressou junto comigo. Ela estudou com as

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irmãs de Cruz Alta e ela, então, veio fazer o concurso lá. Ela ficou em primeiro lugar e eu em segundo lugar.

O primeiro local (onde a professora Paschoa começou a lecionar) foi a casa

do Angelo Setti. Na casa ele fez uma sala onde estudavam as 36 crianças. Depois, o falecido pai tinha engenho, fez uma casa lá, uma casa para a escola, perto da casa dele, no costadinho da casa dele. Ali fiquei uns quatro anos; depois o finado Lino construiu lá pertinho da casa dele, lá, e depois se reuniu a comunidade pertinho da igreja, onde até hoje tem a escola.

Depois, no ano de 60 o Brizola deu a madeira, lá em Carazinho, e eles tinham de pegar o Antônio para ir buscar. Os pais pagaram a viagem para trazer a madeira de Carazinho. Depois os pais construíram a escola. Ele só deu

a madeira... quando a escola caiu a madeira era original. Ela caiu em 1978, com o vendaval. As tábuas ficavam despregadas, e eu pregava com as crianças toda a parede. E uma vez veio um vendaval e descobriu, eu cheguei na escola, eu subi no telhado e os alunos me alcançavam as telhas e eu cobri, porque os pais todos trabalhavam na lavoura, era difícil para eles.

Depois, foi tão agitado, foi tão triste, era uma aflição, as crianças traziam cada notícia (!) Nós íamos para a capela e rezávamos o terço para pedir que Nossa

Senhora e Jesus acomodasse esse povo. E sempre nós fazíamos orações pela paz, pelo nosso Rio Grande, porque o Brizola até foi, saiu meio fugido. Então a gente também estava muito triste, de ver aquela revolta no nosso Estado. Foi muito agitado. Eu continuei dando aula, mas as crianças ficaram meio nervosas, aí eu dizia vamos rezar que vai acontecer que tudo vai acabar bem... Lá na escola... era um lugar (distante), viu, tanto que é que em todos os anos que eu lecionei lá tive só duas supervisões.

Esta comunidade foi praticamente formada por mim, porque, quando eu iniciei lá eram sete famílias. O tio Júlio... comprou uma gleba de terra ali e vendeu para sete famílias e uma era a nossa e aí, então, foi que eu comecei a ensinar os filhos deles que, futuramente, foram os pais dos meus alunos, os avós dos meus alunos, porque eu dei aula para a terceira geração, lá (na localidade de Nossa Senhora de Caravaggio). Então foi uma formação que eu dei para aquela gente durante 42 anos.

Lá, eu fiquei 42 anos e tive só duas supervisões. Mas, como era muito

distante da sede, elas achavam de muito difícil acesso. Elas não vinham. Mesmo um dia eu falei, elas tinham vindo perto, elas não vieram lá, elas disseram que não precisavam porque conheciam o meu trabalho pelos meus alunos, aí eu mesmo criava os meus métodos; eu via que se de um jeito não dava, eu mudava, até que fui continuando assim. No fim, eu mesma criei uma didática especial com as crianças.

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Eu até nunca tinha observado assim, sempre atarefada com muitos alunos e chegava no final do ano eu tinha que fazer as grades finais, como sempre aquela turma como tu sabes que tinha muitos alunos. Da primeira à quinta série

até o ano 70, até a reforma do ensino. Aí depois eu fiquei dando aula só até a quarta série... muitos e muitos anos eu tinha de 110 a 112 alunos dentro da sala de aula, cada ano.

(A razão de mudar para Santa Cruz do Sul) foi o Jorge. Eu tive que vir e eu tinha lecionado nos dias 1 e 2 e no dia 3 (de março de 1982)... lá em Soledade. Daí, vim para cá. Aí eu tinha receio porque eu era tão acostumada e tão bem recebida lá em Soledade. Tinha todo o carinho deles e eles tinham toda a confiança em mim e no meu trabalho, porque eu... eu sempre cumpri o meu

dever porque eu nunca cheguei um minuto atrasada dentro da sala de aula e eu nunca saí num horário certo, saí sempre depois.

Eu estranhei quando vim para Santa Cruz. Sempre que eu ouvia a campainha (o sinal que marca os períodos limites da aula) eu tinha que parar. Porque se um aluno... ou dois ou três, não tinham terminado de copiar uma coisa, lá, aí eu esperava, e também eu quando fazia aquela avaliação.., quando eu dava uma matéria nova eu perguntava quem entendeu, quem não entendeu, eles eram

sinceros me diziam, porque se eles diziam eu entendi e eu perguntasse e eles não soubessem explicar, era pior. Então, eles eram sinceros; alguns diziam: eu entendi, outros: eu não entendi. Depois da aula eu dizia, quem quer ficar comigo eu vou explicar até entender. Eu sempre fiquei até uma hora, duas, depois do horário de aula explicando para a turma que ficasse. Porque os pais já tinham sido meus alunos, eles sabiam que eu estava ensinando os filhos deles... então eu ficava lá, eu saía escuro da sala de aula... mas eles saíam sabendo.., para os

próximos dias... E eu fazia sempre isso com eles. Então eu achei que eu não encontraria o mesmo carinho, o mesmo amor, o

mesmo afeto aqui. E daí, mais para o fim, eu tive de vir porque o Jorge disse, tu não vais eu vou. Aí, pensei, porque estragar o nosso casamento, porque a gente casou para viver junto. Aí eu vim, consegui e vim para cá. Mas eu quando fui lá, falei com a dona Maria Helena, entreguei, fiz o levantamento do que tinha na escola entreguei tudo, lá. Ela disse: meu Deus, não vais me dizer! Eu teria dado aquele colégio por tua causa. É o melhor colégio do interior e eu dei porque tu mereces e

agora tu vais me deixar? Eu disse: pois é, se eu fico com a senhora, eu fico sem o marido. Aí ela disse: não, a tua felicidade, eu quero que você sempre tenha. Então eu vou concordar.

Eu cheguei (em Santa Cruz do Sul) e pensei que iriam me mandar lá para o interior. E daí... tu vais para a Escola Luiz Schroeder. Aí eu disse, que eu não sabia onde ficava: nós vamos mandar te levar. E me levaram. Eu achei extraordinário eles fazerem aquilo para mim. Era logo ali pertinho da UNISC. No dia que eu vou

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com pressa, eu posso ir até em cinco minutos.... Nos primeiros dias... comecei aqui, eu pensei, hoje eu não sou mais ninguém. Agora eu acabei de ser o que eu era. Agora ninguém mais vai aprender, porque com aquele banzé que se ouvia dentro

da sala de aula, eu pensei aqui é assim, eu tenho de deixar que seja assim. Mas quando fazia uma semana e pouco e era um Te Deum mesmo. Um conversava, o outro conversava e eu falava e eles não escutavam e tudo. O colégio era pequenininho. Eu tinha colégio melhor lá fora do que aqui.

Daí entrou a mulher do diretor e disse assim: — Olha, Paschoa, nós sabemos como tu... sempre foi uma professora que teve disciplina e continue com aquela disciplina, sempre. — Mas e vai dar (?), e não vai dar alguma coisa aí? — Não. É para ser assim. Então, (ela disse para os alunos) agora a coisa vai mudar. Agora eu

vou dizer para vocês, nós vamos fazer da nossa sala de aula um pedacinho de céu. Sabe o quê? Trazendo Jesus para nós. Ele não gosta de ficar dentro de bagunça, nem no meio dos tapão que vocês andam dando um no outro. Nós vamos ver em cada um a imagem de Deus e vamos nos respeitar. Ele está dentro de cada um. E não vamos mais nunca tocar, dar um tapa um no outro. Agora nós vamos convidar Jesus, ele vai ficar aqui e vocês vão ser as crianças que vão passar sem recuperação no final do ano, mas vocês têm de colaborar comigo. E comecei a falar, elogiar eles

e tal, tal, e tudo. Olha, três meses. Era inveja, causava inveja para as outras professoras que depois me contavam. Diziam: o que acontece com esta professora que ela faz isso? E, olha aqui, eu dizia, assim: — 7 horas eu estou no colégio. As aulas começavam às 8 horas. 7 horas estou no colégio e vou corrigir os temas de vocês, de um por um. Eu dava temas. Sempre dei bastante tema e daí eu dizia quem não estiver lá, vai ficar no recreio comigo. Mas eles formavam uma fila e de acordo com o que está na fila, de acordo que sai do seu lugar, vai entrando na fila e

vou corrigindo os temas. Só que, combinei com os pais. Eu disse: avisem os pais em casa que mandem vocês mais cedo, que eu vou mais cedo. Os pais colaboravam comigo, como lá fora. Aqui eu tive apoio dos mesmos pais, quando eu vi que eu tinha apoio, que eu tinha mais apoio do que lá. Aqui eu não tive problemas, eu tive um apoio muito grande dos pais.

Mas a gente acostumada, lá, a trabalhar bastante, lá fora (na Escola Olavo Bilac) eu sempre fui sozinha. Aqui... eu ganhei um pingo de aluno, trinta e poucos alunos, para mim era uma coisa vazia.

Aí os meus alunos aprenderam bastante e todos tiveram nota muito boa e ninguém pegou recuperação e daí as mães começaram implicar. Queriam eu para a segunda série e depois queriam para a terceira série, e não dava, porque eu estava cadastrada como alfabetizadora. Daí deu essa coisa. Dois, três anos, dava. A diretora dizia: Olha, elas me xingam tanto, que nós vamos fazer. Então, nós vamos criar a horta e o Clube da Árvore (1987) e daí tu vais trabalhar com as classes sempre lá e substituir as professoras que faltam. Assim, daí o meu trabalho foi para

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minimizar esta polêmica que dava a cada fim de ano porque as mães queriam me escolher para a turma... para aquela turma de crianças que eu já tinha dado aula.

O projeto Clube da Árvore era assim: — a Afubra e a Souza Cruz, ele era

ligado a essas duas empresas. A Afubra fornecia as sementes e os saquinhos; fornecia o que eu pedia e, daí, eu fazia o trabalho com os alunos. Também a gente ia pesquisar na Prefeitura que também dava apoio. Eles nos deixavam pegar qualquer semente de árvore dentro da cidade. Então, a gente fazia mais ou menos três mil a quatro mil saquinhos. Em dez anos que eu trabalhei com o clube da árvore eu distribuí, para vários municípios, 83 mil mudas de árvore, tanto frutíferas como ornamentais... foi para: Lagoão, Segredo, Sobradinho, Candelária, Porto Alegre, Santo Angelo e mais outros lugares. Eles vinham e a

gente dava as mudinhas. E a horta também era semeada e tinha um dia especial da abertura das hortas escolares, era feito com todos os prefeitos dos 11 municípios do Vale do Rio Pardo, inclusive Salto do Jacuí, Arroio do Tigre. Depois, então com a presença de todos os prefeitos, depois a gente continuava. Nós tínhamos uma horta maravilhosa, antes de construir o colégio novo; depois foi transferida para outro lugar. Mas tinha beterraba de um quilo e trezentas gramas, coisa mais linda! Então, uma ocasião, vieram 13 senhores representantes

de 13 países. Inclusive tinha um africano, então, ele ficou assim tão admirado de ver o tamanho das cenouras, repolhos, alface, verduras e tudo. E quando eles saíram, o da Guatemala disse para mim e eu entendi ele [...], ele disse assim: que, ele me agradecia muito, muito, muito, ele disse assim, o trabalho que eu desenvolvia com as crianças, por que o que nós estávamos fazendo aqui não era para Santa Cruz, nem para o Rio Grande, nem para o Brasil, era para o mundo. Eles também eram beneficiados com esse trabalho por causa do plantio das

árvores verdes. Nesses dez anos que eu trabalhei, a escola ficou conhecida. E daí eu fiquei aí quase 17 anos e eles foram muito bons e tudo... eu encontrei o mesmo carinho, o mesmo amor. Eu também, nunca podia esperar tudo o que eles fizeram por mim aqui em Santa Cruz. Valorizaram tanto o meu trabalho que inclusive quando nós recebíamos as visitas dos estrangeiros eles (os) levavam no colégio para ver o meu trabalho do Clube da Arvore e da horta escolar.

Tive que me aposentar, senão estaria trabalhando. Queria, ao menos, sessenta anos e, às vezes, eu penso assim: por que não posso estar junto,

educando essas crianças? Porque eu vejo que essas crianças são muito carentes de educação. É uma pena.

Eu dou catequese, ainda. Mas eu tenho uma turma que me encanta... Eu dei todo o programa do livro que era para 26 encontros e sobrou folga e comecei a trabalhar dentro da Bíblia. Tu precisas ver, eu os mandei pesquisar histórias dentro dos quatros evangelhos. Eles chegam, agora, e eu digo: não vamos trabalhar com o livro. Cada um vai me contar uma história e eu vou traduzir

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para o tempo de agora. Agora eles contam a história do que Jesus falou e traduzem para a nossa vida. Quase já estão práticos. Eu, estou encantada com eles. São muito queridos.

Os alunos, eu atendia um por um, mas os próprios alunos, que eu via que tinham competência, me ajudavam. Cada um, assim, olha tu foi um, na tua época; cada época eu tinha aqueles que eu sabia que eram alunos que eram sinceros, que exigiam, que ensinavam, que lutavam para ter felicidade, porque eu não ia passar a mão por cima porque eu queria todos iguais.

Então, os alunos trabalhavam, como a Neusa Krug, me ajudou desde o primeiro ano, até a quinta série. Ela trabalhou sempre. Ela ia para o quadro negro escrevendo, depois que ela aprendeu, ela era dedicada também. Ia lá escrevia lá, e

vinha aqui escrevia no caderno dela, voltava lá e fazia eles ler e ajudava. E a Odete Schefer e a Claudiia, a Zeli, a Geci, foram pessoas que trabalharam desde a primeira à quinta série... comigo e outros...

(Eu) explicava (como deveriam fazer) faziam assim, assim, os alunos mesmos tinham de criar e fazer. As coisas não tinham, como hoje, que tem mimeógrafo, essas coisas. Tudo era prática para as crianças... era tudo como vocês mesmos faziam, tudo criado por vocês; explicava como que era para fazer e vocês faziam.

Daí as pessoas têm coragem, assim como tu, tu falou lá diante dos alunos e falou mesmo. Falou diante dos alunos durante três anos, hoje tem coragem. (se) tu tivesse.., assim, sempre tímido lá, tu nunca ia enfrentar um público; 3começou com as crianças... (eu) não usava nem uma palavra estranha para as crianças, para eles entenderem, porque eu sabia que todos falavam assim. Então quando em casa era assim, então (na escola) tinha de ser como eles falavam em casa.

A participação dos alunos nas atividades escolares, as apresentações: a

gente fazia até numa cadeira, a gente não tinha um lugar, arrumava lá, a criança subia e dava uma saudação e falava sobre a Semana da Pátria, sobre D. Pedro, sabe. A gente fazia. Sabe, eu tive um aluno muito bom de cabeça; ele fazia poesia que dava gosto. Era o Cláudio Fritsch, era qualquer festa, eu dizia, Cláudio, pode começar a fazer sobre a Semana da Pátria, então ele fazia. Coisas mais lindas que ele fazia! Quando a gente tinha o Dia da Bandeira, o valor da bandeira, o valor da nossa pátria que simboliza o verde, o branco, ele fazia tudo muito bem rimado, tudo de acordo, muito

bonito; quando era o Dia das Mães, precisava ver, a última vez ele marcou muito, ele fez 36 versos bonitos, e ele falou sempre, sempre na vida dele, na vida do pai dele, na vida dela mas não dizia quem. Só dizia ela: ela me fazia isso, ela me fazia aquilo, ela me ensinava a rezar, ela ensinava a respeitar as

3 O autor da dissertação foi aluno da Paschoa. Ela esta se referindo ao fato de o autor

ter de enfrentar uma banca de avaliação de Dissertação, na academia.

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pessoas, mas tudo rimado, e todo mundo ficava encantado, curioso para saber que no fim ele disse assim: e vocês sabem de quem tanto falei e nunca citei o nome, agora eu vou citar, a minha mãe querida que há sete anos está

no céu com Deus. Ele foi um aluno excelente que me ajudava em tudo mesmo, também como tu, assim, ele tinha uma idéia para fazer que era só para ver, a gente fazia festa, mas o discurso na frente, era com ele. Naquele tempo o pessoal gostava dos discursos, a comunidade participava. Eu me lembro que eu apresentava teatro, quantos teatros lindos que nós fizemos lá no armazém do finado Lino! Uma vez nós apresentamos 36 teatros, eu sei que começamos às 8 horas e terminamos às 5, da madrugada. Teve gente que desmaiou de emoção. Eu fiz uma peça que era, como era o título.. . ah!

A conversão de uma menina e... era anjo e capeta, foi bem bonito! Toda a semana eu dava uma hora, duas horas de trabalhos manuais com as

crianças. Trabalho feito em pedra branca, nós tínhamos lá, as máquinas da prefeitura que passaram para cima (da casa) do Olímpio, naquele serro, e eu ia para lá com os alunos de terceira, quarta e quinta série. Eles faziam cinzeiro, faziam cuias com bomba e tudo, faziam trabalhos maravilhosos. E uma vez, o Alberi que tinha vocação para soldado, ele fez um soldado fazendo continência;

era como se tivesse comprado! A Semana da Pátria era sagrada, para mim e para os alunos. Mas eu não dava

aula. Eu recuperava tudo antes... durante a Semana da Pátria era só sobre a Semana da Pátria. Nós marchávamos. Eu marcava assim, combinava com os pais: tal dia vou na sua casa, tal dia vou na outra, era sempre dois ou três quilômetros longe da escola, Nós íamos marchando serro acima e serro abaixo, até chegar lá. Esperavam-nos com frutas, com bolacha, coisa boa para agradar aos alunos e, lá, se

divertiam à vontade jogando bola. Depois nós vínhamos marchando de volta até à escola. Cantávamos o Hino Nacional na ida e na chegada. Todos cantavam o hino. Todos eles, e juravam à bandeira ainda. Tu te lembras quando eu dizia assim, no primeiro dia, nós queremos ser - de braços estendidos para a bandeira - nós queremos ser gloriosos e futuros do nosso querido Brasil?

Eu sempre procurei transmitir para eles uma responsabilidade na vida deles, no estudo, nas tarefas. Eles tinham que realizar suas tarefas, cumprir aquilo que eu colocava para eles, justamente onde eu via o futuro deles de

ano... após ano. Tinha aquele Hübner que morava aqui em Santa Cruz. Começou ir na escola,

aqui, e viu que era aquela bagunça. Foi lá, ajeitou lá no Antonio, voltou... e foi estudar comigo. Então, ele me ajudou muito, era um aluno, assim, que era fora de sério com ele. Era um professor autêntico. Um guri, uma vez, levou uma laranja bonita para ele. Antes dele tomar a tabuada, ele disse, não, muito obrigado, quer me dar, me dê depois da tabuada. Ele achou que se tu souber a tabuada, tudo bem,

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se tu não souber, mesmo que tu me dê as laranjas, eu vou ter de te cobrar igual. Me dá, depois. Mas o guri sabia. Mas ele era assim firme, firme. Ele sabia (?), sabia. Não sabia (?), vai estudar (!). Eu tive muita ajuda dos alunos. Eu também pensava

assim: só assim eles apreendiam a enfrentar as coisas. Inclusive, muitos pais disseram para mim assim: porque será que todos os teus alunos deram coisa que presta (?)... é que eles aprenderam a perder aquela vergonha, inibição, porque eles tinham de ir para o quadro ajudar, falavam diante das crianças, mas aprendiam a enfrentar o público... E aqui também fizeram a mesma coisa (refere-se às atividades docentes em Santa Cruz do Sul).

Eu e as crianças tínhamos um horta bonita. Nós, cuidávamos da horta, cuidávamos do pátio da igreja, cuidávamos do cemitério. Era sempre a gente que

cuidava tudo isso. E cuidava da igreja. Eu também ensinava as meninas a arrumar a igreja, o altar e tudo para ir aprendendo. Então, a gente, praticamente não envolvia nenhuma família que tivesse assim compromisso. Eu assumia esse compromisso, sempre, durante todos aqueles anos. Com o apoio dos pais. Os pais sabiam que quando as crianças chegavam muito tarde em casa, é porque as havia ocupado para um trabalho. E eles chegavam e diziam, nós estávamos fazendo tal coisa. Porque a gente sempre conservava tudo em dia... E os pais sempre apoiavam

e sempre nos ajudaram. Inclusive quando chegava mês de maio, mês de outubro eu terminava as aulas às 11 e meia da manhã, nós íamos para a capela rezar o terço, porque era o mês de Nossa Senhora e... depois elas iam embora. Eles (os pais) sabiam que... o mês de maio e mês de outubro era rezado o terço na capela com as crianças. Então a gente fazia tudo isso, mas sempre em combinação. Tudo eles sabiam e também nunca reclamaram.

Papéis e giz era tudo (pago) com o meu salário. E eu ganhava bem pouquinho,

é que eu não tinha coragem de pedir para os pais. Se eu precisava de um dinheiro... nunca pedi, tudo eu comprava com o meu dinheiro.... Eu sempre fiz isso. Também nunca morri de fome. Sempre tive para viver. Olha, eu vou dizer para você, eu não tenho nada de luxo e vou conservar como tá aqui. Não sou dessas que compram tudo que é coisa fina, não. Então eu prefiro ajudar os pobres. Por que quando eu morrer isso aqui vai ficar tudo um monte de lixo. Para essa vida, o nosso bem material, Deus quer que todos tenham em abundância, que ninguém passe falta. Se a gente trabalha, ganha, mas (isso) para a eternidade não tem valor. Então isso está

bom para mim, tá bom para nós, nunca estive melhor mesmo e, eu sou feliz assim. Então teve gente que me disse assim: a senhora é bem rica... porque, como é que a senhora ajuda tanto lá aquela gente de lá (Caravaggio)? Eu disse, olha, eu não quero que tu diga outra vez essa palavra, tá dizendo uma bobagem. Não sou rica, mas também não devo nada para ninguém, cuido sempre de nunca dever. Nunca gostei de dever um centavo para ninguém. Pago direitinho. Porque o dia de amanhã

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eu não sei; sei do dia de hoje. Eu me sinto feliz assim. Eu gosto de colaborar porque nunca me faltou.

Eu lembro quando eu fiz 5 anos. Meu pai botou um cabinho numa enxada e

me deu: É o teu presente, e eu, feliz, fui lá com os outros capinar. E trabalhei, assim, na escola o dia todo e vinha em casa e fazia todos os meus

trabalhos e não me sinto uma pessoa acabada, porque a gente sempre trabalhava. Para mim, o trabalho é uma dádiva muito grande, porque o trabalho é digno.

Qualquer trabalho é digno. A pessoa se realiza na sua vida porque é pelo trabalho que a gente é feliz. Pelo trabalho a gente faz os outros felizes. Porque recebi este ensinamento do trabalho, de meu pai. Ele exigia muito da gente, mas hoje eu me sinto feliz de ter o pai que eu tive, porque desde criança pequena, de acordo com a

minha força, ele me dava um trabalho. E assim continuei sempre trabalhando, lutando pela vida, me doando. E doando que a gente recebe também. Então, eu acho que o trabalho é a coisa mais linda que pode acontecer na vida da pessoa. Que o trabalho não é um castigo. O trabalho é uma coisa até que faz a gente se realizar na vida. É com dignidade que eu digo que o trabalho é muito especial na vida de cada um.

Olha, a minha infância em parte, para mim, hoje, após eu viver até essa idade,

eu acho... uma infância boa. (inclui os irmãos) A gente aprendeu a trabalhar desde pequenos. Dizem que a criança não deve trabalhar, mas eu estou aqui com 73 anos (ano 2000), com saúde e sempre trabalhando fazendo de tudo.

A gente estudou pouco de criança, mas aquele pouco a gente aproveitou... Então eu acho até que a gente brincava pouco, trabalhava mais, mas a gente não ficou aleijada por isso, não tenho dúvida. Eu achei uma infância boa porque a gente fica bem em qualquer lugar nesta vida; depois, na sociedade a

gente sabia fazer alguma coisa. Por que quando a criança ganha mimo demais é difícil ela se engajar na sociedade, num emprego... Então, eu acho que meu trabalho como professora com bastante alunos, sempre, era tão fácil por que em casa eu tinha de trabalhar muito mais.

Eu trabalhava com as crianças, com os alunos, porque eu tinha de preparar minhas aulas. Preparava as minhas aulas sempre de noite, por que de dia eu sempre trabalhava o dia todo. E nunca, eu estava pensando esses dias, que durante cinqüenta anos, eu nunca dormi mais do que cinco horas. Nunca,

nunca, sempre fazendo o diário, preparando minhas aulas. A gente tinha um pai muito justo, muito correto e ele era muito temente a

Deus... Ele era, assim, pessoa que queria que a gente aprendesse a amar e respeitar. Ele sempre explicava como era para fazer. Eu quero assim e bem feito; se não, vai voltar a fazer de novo. Então, a gente procurava fazer o possível para ele ficar satisfeito. E quando a gente ia na lavoura, ele marcava o pedaço que deveríamos terminar até o meio-dia. A gente tomava a sério e fazia. Ele tratava todos iguais.

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Ele educava no momento certo e, se não obedecia, ele fazia obedecer. Ele usava falar só uma vez.., a gente tinha de prestar bem atenção. E se, às vezes, a gente começava a falar alto, ele só dava um assobio e todos paravam.

Ao falar sobre o modo como desenvolveu a atividade de professora disse: olha eu acho que esse dom eu recebi de Deus. Tenho certeza que recebi de Deus por que eu tinha sempre, desde criança, aquela vontade de ser uma professora. Me lembro que um dia eu, era um domingo, eu saí, estava esperando que o pai dissesse que estava na hora de ir à igreja. Atrás da horta... tinham... umas flores, daquela maria-mole, e eu quebrei um galho e comecei a olhar. Eu sempre gostei muito de pensar em Deus e disse assim: que bom se um dia pudesse fazer uma flor assim, e de repente a flor desapareceu da minha frente; aquela flor, eu não vi mais ela na

minha mão; e eu levantei os olhos e olhei e vi uma sala de aula; assim azulada a sala, e as cadeiras iguais e os alunos todos de tapa-pó branco; os cabelinhos bonitinhos, penteados, aquelas crianças escrevendo, e eu fiquei tão feliz de ver aquilo que parecia que era eu mesma a professora deles. Ali mesmo eu me ajoelhei e agradeci a Deus. Então, eu recebi uma força tão grande naquele momento, que eu tinha certeza que um dia, talvez, ia acontecer de eu ser uma professora. Isso foi antes de eu começar a preparar as crianças para a catequese. E daí há poucos dias o

pai me disse, você vai ter que preparar essas crianças para a catequese e depois, daí no outro ano, os pais pediram para eu ser a professora. Estava se realizando. Mas eu não contei isso para ninguém. Fiquei para mim, aquilo.

Eu sempre invoquei o Espírito Santo por que eu tenho fonte segura. Se cada professor que ensina, ele precisa a força do Espírito Santo para transmitir a sabedoria do Espírito Santo para a criança crescer na vida. Eu sempre tive a felicidade de, ou mais ou menos, as crianças aprenderem comigo. E levar para a

vida. E daí, continuei sempre motivando minhas aulas, ensinando eles a se amarem, se querer bem, se olhar com amor, se tratarem com amor, porque o clima do amor, uns com os outros é a melhor coisa que pode existir em qualquer ambiente, tanto na família, como na escola, na sociedade, em tudo. Então, se isso acontecesse em todas as escolas, até a criança levaria para casa, para os pais, algum exemplo e, assim, os pais aprendem, também.

Sobre a experiência no ensino de segundo grau, habilitação Magistério disse: eram 2.800 horas e 24 matérias, mas eu me lembro de dois professores, o

professor Jorge e o professor Ivo, foram maravilhosos. A frase — ―É belo modelar uma estátua e dar-lhe vida — mas e mais sublime

modelar uma inteligência e dar-lhe virtudes‖ — estava no meu diário quando eu iniciei no colégio em 1985. No dia 25 de março de 1985. Às 7 horas e 45 minutos, assumi minha função de professora estagiária na Escola Municipal Luiz Schrõeder, localizada na Vila São Luiz. Uma vez nós tínhamos que fazer um plano de curso e cada uma tinha que colocar um pensamento e então eu coloquei esse pensamento.

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Depois, quando a professora tinha corrigido todos os planos de curso, ela disse assim: gente, eu quero que vocês escutem uma coisa: os planos de curso, estavam bons, algum plano de curso que não estava bom a gente marcou, mas eu vi um

plano de curso que ficou muito bonito. Vocês escutem aqui, e leu o que eu tinha escrito. É bonito modelar uma estátua, mas é muito mais bonito modelar uma inteligência e dar muitas virtudes. Eu sempre procurei trabalhar, muito, virtudes com as crianças: aprender a repartir a merenda, aprender a se querer bem e não brigar, se amar, se ajudar, e senão não tinha união na escola, Eu lá encontrei um povo muito bom, foi maravilhoso, eu encontrei assim, eu só tinha o primeiro grau e aqui todo mundo com faculdade, mas eu comecei lecionar e foi tão importante que eu consegui disciplina e ordem, o que não tinha em sala alguma, nem a diretora

conseguia, e ela queria saber o que eu fazia para as crianças ficarem comportadas. Eu trabalhava ao lado da secretaria, e elas diziam: — não se ouve a tua voz, nem a voz das crianças (!) Eu disse: — não tem segredo nenhum apenas eu motivava bem, eu preparava eles assim, o espírito deles, para depois começar.

A nossa supervisora era a Ieda Camargo,... daí o dia que ela esteve lá fazendo a supervisão comigo, eu só entreguei o material e o diário e ela disse: pode continuar, eu continuei dando aula e depois ela foi e disse para mim assim,

quando chegou as 11 horas,... ela me disse: Paschoa, tu tem o plano de curso aí? Não, disse, tá lá na secretaria. Quando eu fui na secretaria buscar o plano, uma menina das minhas alunas, levantou o dedo, e disse: — Tia, o que é plano de curso? Daí ela explicou o que era. Quando eu voltei, ela começou a rir e disse: — aquela aluna, gostei muito dela, participativa, ela participou, ela queria saber o que era um plano de curso, então eu disse que era tudo o que tu ia ensinar. Quando eram 11 e meia, a camioneta da prefeitura veio buscar a professora Ieda.

Ela disse assim: — Olha, Paschoa, eu tinha mais uma visita para te fazer mas não vou fazer, chega esta aqui. Aí ela disse assim: — quero te agradecer muito que hoje eu aprendi tanta coisa, que tu nem imagina. Imagina, a senhora aprendendo comigo, eu uma professora simples que conviveu no meio de um povo simples e agora a senhora me dizer que a senhora aprendeu comigo. Ela disse: — Olha, eu queria que as outras séries descessem aqui e me trouxessem cinco pessoas como a senhora, porque a senhora fala como as crianças e faz a criança entender; o que adianta ensinar aquilo que a criança não entende? Aí, ela não me fez todas as

visitas, disse que chegava aquela e pronto. Aqui mesmo um professor da Murilo Braga, eu fui professora do filho dele,

ele disse para mim: — eu vim agradecer uma coisa muito importante, que eu, como professor, nunca me passou pela cabeça de fazer, o que meu filho tá ensinando todos nós lá em casa. Ele fala muito o que a senhora fala na escola, o que a senhora diz, ele nos deu uma grande lição de vida e, inclusive, até agradecer o alimento que a gente come e agradecer a vida que a gente tem. Isso,

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 203

eu fui assim, sempre, sempre, com os alunos, para que eles um dia fossem pessoas iluminadas como um raio de sol. Que não vivessem nas trevas e na escuridão. Porque a luz de Deus faz muito bem para a vida da gente. E assim, eu

continuei aprendendo e ensinando, aprendendo e ensinando, aprendendo também com o próprio aluno.

A primeira vez que um aluno fez uma arte, eu dava aula lá no seu Hêtka Hagmann (em Coloninha, hoje pertence ao município de Arroio do Tigre). Eu... pensei de fazer ele sentir e coloquei ele, assim, na porta de pé lendo um livro, achei um castigo para dar para ele. E ele disse para os outros: assim eu agora todo dia vou fazer alguma coisa para ela me colocar na porta, porque eu vejo todos que passam. Aí eu pensei: que bom! Aprendi uma coisa: é melhor eu dar um trabalho

na classe para ele fazer do que dar esse tipo de castigo. E também aprendi a dizer para eles que não era castigo, quando eu tirava, às vezes, até o recreio, era amor que sentia por eles, para eles crescerem juntos, todos aprendendo igual, porque eu queria o bem, a felicidade e o futuro deles.

Eu até tive muito pouco acompanhamento da Secretaria de Educação. Uma, porque era muito longe e outra, que uma vez eu disse para a Secretária: eu estou muito triste porque a senhora foi na Escola Dom João VI e não veio na

minha. Ela me respondeu: eu não preciso ir na tua. Eu conheço o teu trabalho pelos teus alunos. Os alunos que vêm do Caravaggio eu quero todos para mim. Ela era professora também. Ela disse: porque eu tenho êxito com esses alunos.

Eu comecei a descobrir sempre as coisas por mim. Um ano eu tentava fazer um trabalho com uma turma de alfabetização de uma maneira que eu via que não tinha muito sucesso, no ano seguinte eu trocava o jeito. Descobria um outro jeito. Então, até aconteceu que quando eu criei um método lá uma história prá começar

introduzir as vogais para as crianças, para depois fazer as junções das vogais, e nós tivemos uma reunião com a Dona Maria Helena, ali na escola da Dona Zoraide, ali no Luizin Menezes, aí cada professora tinha que apresentar sua maneira de dar aula. E quando eu fui apresentar a minha. Eu apresentei o meu jeito, como eu estava já a uns oito ou dez anos alfabetizando daquela maneira e elas começaram a rir, rir e eu comecei a ficar encabulada porque eu achei que elas estavam rindo de mim, e daí então, eu estava lá, falando mas muito encabulada. Daí elas disseram assim, sabe porque nós estamos rindo, porque tu já foi na Itália buscar o método da

abelhinha e tu está aplicando, ele veio este ano de lá e tu já está aplicando. Que tempo faz que tu está ensinando isso aí. Ah (!) eu acho que faz uns sete ou oito anos. Eu aplicava não falando na abelhinha, mas falando num pássaro, no nome de um pássaro. E assim eu ia criando. Da maneira que eu via que a criança me entendia eu procurava, então, continuar. Onde não tinha sucesso eu trocava.

A leitura, nunca falhou um dia que não tinha de me contar uma história de uma leitura. Porque eu achei assim que a leitura era uma coisa muito importante. A

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leitura e a redação... eu sempre exigia uma redação de cada aluno, todo o dia. Sempre achei.., que eles podiam... ter mais prática para criar as coisas depois, mais tarde, porque a redação desenvolve muito e a leitura, também. Tanto é que eu

começava a minha aula lá pelo caminho da estrada, saía de lá de casa já tomava a tabuada, com eles me contando histórias da leitura para eu poder aplicar toda minha aula no diário lá na escola. E eles vinham me encontrar para começar a me dar o que eles podiam fora da sala de aula.

Histórias eram tiradas dos livros, eles procuravam nos livros e uma coisa que também como lá ninguém tinha TV, cada um tinha de me trazer uma notícia do rádio. Todos tinham de trazer uma notícia do rádio. Eles escutavam e traziam a notícia. Eu me lembro que em 1970, a quinta série só trazia notícia de futebol. Aí

eu disse para o Cláudio... bah (!) essa quinta série está acompanhando sério, aqui vai virar só futebol. Eles acompanhavam onde o Brasil jogava, era o campeonato mundial... Até que terminou no México... o Brasil ficou em tricampeonato. Quando vieram as provas da Secretaria, o português era só sobre o futebol, mas olha não teve quem não tirasse ―cem‖, em português porque eles tinham acompanhado. E daí diz o Cláudio assim, professora como valeu a pena, nós até adivinhamos acompanhar esse futebol e foi mesmo... porque, então valeu a pena e foram muito

bem em português. A redação, eu sempre levava para casa, lia e corrigia; depois eu comentava

e, inclusive, eu dava uma notinha para eles, para eles ficarem felizes, porque criança gosta. Eu sempre dei, eles ficavam felizes com uma nota. Às vezes, eu dava para eles escolherem um ou dois títulos, daí eu levava as redações e, às vezes, até quando dava tempo, eles liam na sala de aula. Eles mesmos.

Só que eu fiquei com uma pena de um aluno que era muito inteligente. Hoje

ele tem faculdade e ele é gerente de uma firma em Santa Cruz do Sul. Ele era acostumado comigo, me ajudava (monitoria) e um dia ele quis se prontificar para ajudar um outro professor; o professor não aceitou. Ele ficou decepcionado (!), na segunda série, que chorou, chorou, chorou, que não queria mais ir à escola. Como que com professora Paschoa ele podia ir ao quadro negro e com o outro professor, não! Pois, isso é uma pena, cortou o aluno. Não aprendi com ninguém a trabalhar desta forma. Isso eu não aprendi com ninguém, eu criava comigo o que era bom pra mim, que eu sentia que se alguém fez comigo, eu fazia com meus alunos.

Eu sempre gostei de dar oportunidade para o aluno. Disseram assim para mim, dona Paschoa, qual é o teu segredo, o que a senhora

tem porque todos os que foram teus alunos, deram alguma coisa de bom na vida. Eu não sabia que nem um aluno seu fosse assim... marginal, ladrão, ou qualquer outro. Eu disse: olha eu nunca tive segredo na vida, o segredo é o segredo para todos, a primeira coisa que eu sempre falei com as crianças era sobre Deus, que sem o amor de Deus nós não éramos nada, nós tínhamos de ver no colega amor e,

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aceitar o colega como ele é, um mais inteligente outro menos, e um sempre ajudar o outro, Lembra que eu colocava um mais inteligente perto daquele outro que tinha mais dificuldade?... sempre se aceitavam, eles ficavam felizes quando eu colocava

alguém do lado para ajudar um e outro... mesmo naquela época em 1940. Olha eu iniciei naquela comunidade em 1940 com 36 alunos.

A criança tem que conhecer o que é disciplina, até onde ela pode ir. E quando a gente diz um não, tem que mostrar que a gente tem autoridade; não precisa bater e não precisa ser polícia. Para fazer, a criança tem de ter palavras, argumento para as crianças, para que elas entendam a gente.

Como aconteceu ali, no Luiz Schroeder, tinha crianças que mandaram para minha sala de aula porque ninguém podia com elas. E eu conseguia tomá-la

crianças boas, só falando. Falando, ajeitando, às vezes soltava as outras crianças e segurava uma e ficava conversando com está criança até que ela entendia o que era bom para ela ser feliz, e mudava em casa também. Ela muda em casa também, porque os pais me diziam: a senhora mudou meu filho, mudou minha filha, ela está completamente diferente. E isso não foi assim batendo nem nada, foi só falando que eles mudaram.

Agressão provoca agressão. A criança... marca dentro dela aquilo que passou

na vida de bom e de ruim. Ela esquece, talvez, o que ela fez, mas o que fizeram nela, não. Então, é por isso que é bom que o professor não bata nas crianças, é bom. Mas é bom que o professor tenha argumento para conquistar esta criança com palavras, com carinho, com amor, mas com firmeza também, com firmeza.

Porque eu tive um aluno que era transferido de cinco escolas para cá e colocaram ele para mim. Inclusive, os outros professores não queriam mais ele, também. Daí eu disse: deixa ele que eu vou ajeitando. Foi, foi, foi que eu consegui

e ele se tornou um aluno bom... hoje, ele me encontra em qualquer lugar me abraça e me diz oh (!) minha rica professora, porque ele mesmo via que estava sempre em perigo de não quererem ele mais em escola alguma. Mas eu consegui ficar com ele e sempre falava, no caminho eu passava na frente da casa dele se estava chovendo, eu o chamava. Dizia, vem comigo, ele era pobre, não tinha nem um guarda-chuva. Eu levava ele debaixo do meu guarda-chuva, ia falando: Jorge, tu vais hoje ser assim, assim, assim, e vamos ver se vai acontecer isso que eu te peço, tu vais fazer assim, assim. Foi só isso, eu consegui um aluno muito bom, hoje é um menino que

trabalha, estuda, que já serviu ao Exército e hoje é uma pessoa maravilhosa. Em qualquer parte a gente consegue fazer a criança boa. Não tem essa de dizer a criança do interior e a criança da cidade. Por que lá eu tinha alunos que eu podia entregar a sala de aula para os próprios alunos, ir às minhas reuniões, tu sabe, ficava só os alunos, alguém dando aula e a coisa funcionava. Aqui na cidade funcionou comigo do mesmo jeito. Aqui eu preparei os mesmos alunos. Aqui na catequese agora que não estou mais dando aula, há outra catequista. Eu numa sala e

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ela na outra. Ela disse assim: como a senhora consegue sair da sala de aula, ir para a secretaria e eles ficam rezando ou lendo alguma coisa e não se vê uma conversa?. E eu não tenho problema. Apenas eu os estou preparando de uma forma que eles

começam a sentir o amor de Deus. E eles, realmente, se tornam umas crianças boas. Que, às vezes, a criança ela é assim tão fechada de tantas coisas, de tantas coisas erradas neste mundo que ela acredita que o mundo realmente é aquele, que ela tem de viver aquilo, mas depois a gente consegue a fazer ela ver que a verdade mesma está ali. É a maneira, isso eu posso, isso a diretora disse para mim: tu tem que me contar que segredo tu tens, o que tu faz para tuas crianças terem uma disciplina tão linda, tão grande desde a fila. Eu não tenho segredo, eu tenho motivação. Eu motivava muito bem a minha aula. E quando eu via que alguém não

tinha, assim, captado o que eu tinha dito, eu falava, mostrava algum cartaz de realidade que eu fazia para mostrar para eles e depois, daí, quando eu via que eles tinham aceitado aquilo, então, vamos começar, estão dispostos a aceitar a minha proposta (?), estamos (!), então vamos lá, agora vocês vão ter sucesso, todo mundo vai aprender (!).

Inclusive, até fiz um cartaz, assim, uma montanha. Fiz um tipo de uma escadinha lá, não fiz os 360 dias, não, os 180 dias, assim, escadinhas, mas disse

para eles que lá tinha as 180 escadinhas que eles tinham de subir comigo. E aquele que passasse conversando, despercebido, aquele não ia subir os degraus junto comigo; e aquele que subia junto comigo sempre, não tinha dúvida, ele chegava lá em cima, sem recuperação, não ia [...] rodar. Então, eles prestavam bem atenção nas aulas e sempre no final da aula eu fazia uma avaliação, perguntando entendeu isso, entendeu tal, tal, e daí então, chegava bem lá para o fim do ano todo mundo passava e, às vezes, eles perguntavam onde que eu estou, onde é que nós estamos,

eu dizia, aqui, aqui, e tem alguém atrasado aqui, é um pouquinho o fulano que se descuidou um pouco, conversou, conversou durante a aula, baixinho, mas não prestou atenção, mas agora ele vai prestar atenção. A gente vai ajudar ele. A criança, o ser humano, a gente consegue mudar ele, pode acreditar, mas só com palavras boas. A não ser assim... com agressão não adianta. Porque a criança arteira de hoje seria a de ontem, também. Não é porque os pais, antigamente, os pais eram severos, com isso, seguravam os filhos. Hoje, se os pais parassem um pouco, falassem mais com os filhos e o professor também motivasse mais a

criança, é a mesma coisa. Isso eu tenho por experiência. Eu fui muito feliz aqui também. Feliz, mesmo, eu não esperava... porque mesmo quando eu recebi aquele título eles fizeram tantas homenagens para mim que eu não tinha palavras para agradecer. Gostei muito. Parei de lecionar porque entrou um prefeito novo, contrário do outro e aí então eu tive que me aposentar, senão estaria trabalhando. Às vezes, eu penso assim: por que não posso estar educando essas crianças, porque eu vejo que essas crianças são muito carentes de educação. É uma pena.

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Paschoa Maria Puntel dos Santos 207

E hoje, olhando para tudo o que aconteceu na vida eu, como professora, sou muito feliz, por que eu vejo alunos, advogados, alunos que estão assim com cargos muito mais elevados que o meu. E eles dizem para mim que devem esta formação

a mim. Eles encontram estes ensinamentos em qualquer parte do mundo. Inclusive falando com... eles me disseram: a senhora acha que eu vou conseguir um dia lhe esquecer, nunca... encontramos seus ensinamentos em qualquer parte deste mundo. E eu me sinto muito feliz, porque eu os ensinei sempre a lutarem para vencer.

Sobre o modo de relacionar-se com o aluno afirma que isso foi: da família e de mim mesmo... assim o que eu sentia,... dentro de mim, tanto amor pelas crianças. Eu pensei sempre assim: eu queria que eles sempre aprendessem mais do que eu, que eles um dia fossem mais do que eu, que eu pudesse assim, olha eu

para te dizer a verdade eu sempre tive um pensamento dentro de mim... que eu tinha dois compromissos na minha vida: um perante Deus e o outro perante a Pátria. Esses dois para mim eram como se eu tivesse... um compromisso mas muito grande. Aquilo eu pensei toda a minha vida. Se eu não formar bem uma criança, se ela um dia estiver passando trabalho por que não aprendeu comigo é porque eu sou a culpada... E se ela não sabia também conviver com as pessoas, eu me sentia a pessoa responsável. E se ela não sabia tratar as pessoas também...

é porque eu também não dei o necessário para ela conviver com as pessoas. Então sempre achei assim que era viver bem, se doar.

Uma das formas pela qual a professora Paschoa se utilizava na relação dialógica para com os alunos, foram narrativas de histórias, como a que segue.

Santa Terezinha do menino Jesus, era filha... pais muito ricos e a internaram ainda

pequena no colégio das irmãs. Mas ela era uma menina muito boa de coração. Os pais

levavam... uva, maçã, banana para ela. Na hora do recreio as irmãs davam para ela e

diziam... olha come e não é pra repartir, é pra comer. Mas, ela saia no meio das

crianças... ia perto de uma criança pobre e ela... cuidava a irmã e colocava as mãos para trás e alcançava para aquela criança pobre e ela não comia, podia ser maçã, uva o que

fosse ela sempre dava para as crianças pobres a merenda que ela ganhava. Quando foi

um dia ela estava jogando bola no pátio e a bola rolou para o fundo do pátio de baixo

de um arvoredo e ela correu atrás e foi buscar a bola e quando chegou lá ela viu um

menino tão lindo parado, era lindo, lindo esse menino (!) Ela perguntou, mas quem és

tu menino, que nunca eu te vi. Eu sou o menino Jesus. Ah (!) tu é o menino Jesus! Sou.

Tu és lindo, ela disse. E naquilo bateu a campainha e ela virou assim correndo e foi

para a fila. E entrou na fila e ficou bem quieta e deixou a bola lá. E quando bateram

para sair ela foi lá buscar a bola, daí, chegou, e o menino estava lá. Mas, ela disse: tu

estás aqui ainda. Eu estou, e sabe por que Terezinha? Não, ela respondeu, por que tu

me ouvistes quando eu te chamei, tu és obediente, tu és querida e a hora que eu te

chamei tu me ouvistes. A hora que bateu a campainha fui eu quem te chamou, fui eu

que chamei todos vocês e tu foi a primeira que me ouviu, por isso que eu te esperei

aqui. E, aí, então, ela ficou sorrindo para ele, e ele disse, Terezinha tu vais ficar poucos

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anos aqui neste mundo. Eu vou te levar para o céu; quando tu tiveres 24 anos eu vou te

levar para o céu, daí, por que tu és obediente, tu és boazinha daí tu vais morar comigo

no céu. Então, Jesus desapareceu.

Sempre contei essa historinha para eles que, quando a gente dava o sinal, a campainha ou o apito ou o sinal que fosse, era para eles entrarem na fila, ficarem quietinhos, não falar com ninguém. Só podiam observar as coisas. E assim eu falei no Luiz Schroeder para as crianças: se vocês ouvirem o chamado, bateu a campainha e vocês entrarem na fila vocês estão ouvindo a voz de Deus. E eles obedeceram isto. Então eu sempre podia entrar na sala de aula 10, 15 minutos antes porque até que os outros parassem de correr para cá e para lá, no pátio, eu já estava

dentro da sala com os alunos. Um dia eu olhei no relógio, eu já estava 20 minutos dando aula e outras professoras ainda não tinham conseguido organizar. E eu com aquela historinha consegui. Eles entravam em fila e a gente ia para a sala de aula logo. Então, isto é uma coisa... que, às vezes, as crianças,... eles gravam aquilo e também vivem aquilo, era o meu segredo,... em colocar essas coisas.

Sobre o relacionamento entre pais e filhos e com colegas explicou: eu sempre dizia, olha (!), eu que saiba que vocês um dia não respeitam seus pais. Inclusive

aqui... eu dizia, digo até para os meus catequizandos, se as mães de vocês não vierem me dizer que vocês não mudaram em casa, vocês não vão fazer a primeira eucaristia. Para receber... vocês tem de saber que vocês têm de ter amor pelos pais. Porque se vocês não se ligarem com esses pais que estão em lugar de Deus Pai, Nossa Senhora, vocês não são dignos de receber Jesus. Então, eu sempre digo, vocês têm de mudar em casa, porque eles são tão queridos, eles são tão sinceros. Vocês brigam com sua mãe? Levantem o dedo quem briga com a mãe. Todo mundo... no começo... Então, eu começo explicar para eles que isto eles não podem

fazer. Que se eles vão numa firma trabalhar eles não podem brigar com o chefe da firma, por que eles vão para a rua, e o pai e a mãe é como o chefe de uma firma. Eles precisam ser respeitados. Daí ia comentando. Explicar coisas bem assim, que eles possam entender... e daí vai. É importante que a criança mude. Precisa fazer uma mudança de dentro... que ela tenha virtudes...

Que a criança saiba criar virtudes dentro dela. Por que tudo a gente pode dar, menos as virtudes... têm de ser criadas por ela. Tudo a gente pode dar. Dinheiro,

pode ir ao instituto ficar bonita, pode tudo... dinheiro, saúde vai ao médico, mas as virtudes ninguém dá para ninguém. Cada pessoa tem de criar por si... Então isso que eu prego muito para as crianças para que elas criem essas virtudes, fazendo o bem ajudando os outros. Eu explico para eles assim que se eles andam na rua e vêem uma senhora de idade carregando uma sacola dizem assim, oh (!) vovó, a senhora não precisa me dar todas as sacolas para eu carregar. Pegue uma alça a senhora e eu pego outra, porque ela pode pensar que vocês vão roubar a sacola dela, daí elas vão carregar sozinhas. Porque há tanta coisa... há tanta coisa

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que fazem que ninguém confia mais, ninguém mais confia. Então, vocês podem segurar firme esta alça e não precisa levantar muito, só segure firme, vovó. Eu quero é lhe ajudar. Ensino essas coisas assim, da vida, para eles... então, eles

aprendem outras coisas comigo. Alguma coisa que eles fazem... Sobre a comunidade de Nossa Senhora de Caravaggio e a participação dos

pais na escola e na comunidade disse: a gente sempre fez baile, festa, todos se davam bem, às vezes, assim... inclusive eu fui transferida lá para o Dom João Sexto, para não perder tempo. Aí o que os pais fizeram? Mandaram todas as crianças para o D. João Sexto, e eu com duas comunidades dando aula lá que eu não tinha onde botar os alunos. Mandaram duas professoras de Soledade (para a escola antiga) e não tinha nem um aluno, ninguém mandou os filhos, e daí ficou

um ano e pouco a escola fechada criando vassoura e capoeira em roda. Daí ele mesmo (o novo prefeito) foi e pediu a minha volta. Aí ele mesmo pediu a minha volta, ele mesmo havia perdido a vizinhança toda, ninguém mais procurava ele. Aí ele disse para o João, eu fiz um erro muito grande, eu pensei que podia ficar com a comunidade para colocar a minha filha, mas agora vi que ninguém quer a minha filha, todo mundo quer ela, a Paschoa, então eu vou pedir a volta dela. Pediu a volta aí eu voltei. Aí os outros ficaram tristes, estavam acostumados

comigo lá, também. Mas eu tinha tanto aluno que muitos tinham que sentar no chão... porque não tinha lugar, não cabia. Quase 61 alunos me acompanharam do Caravaggio e ainda tinha todos os de lá, e aqueles que não puderam que moravam lá, porque, foram longe até a Aparecida e Coloninha, pararam de ir na escola e depois eu voltei para lá, eles voltaram todos...

A família de antigamente, como eu convivi com as famílias desde 1940, propriamente a família é o inicio de uma comunidade, quando a família é bem

constituída é o inicio de uma grande comunidade. Então, a família de antigamente ela era... um pouquinho mais séria com os filhos e a criança vinha mais bem formada de casa... Os pais eram mais rígidos e o professor tinha mais apoio dos pais. Hoje, os pais também cruzaram os braços, muitos pais cruzaram os braços. Eles pensam que só o professor que tem de educar. Mas muitas famílias continuam educando seus filhos porque eles são os primeiros mestres dos filhos e depois passam para a escola. Então o que a gente nota, hoje, é que há uma diferença bastante grande, porque as famílias daquele tempo eu tive muito

apoio deles eu também tive, assim condições de poder formar bons alunos e como até hoje eu formei. Porque, pela prática e pelos anos eu fui descobrindo que a criança, ela precisa ser bem tratada. Não é com violência que a gente vai se impor à criança, porque ela aprende violência, mas com jeito com boas maneiras, ela também sabe transmitir adiante aquela boa maneira para os outros. Então, eu consegui com as mesmas crianças de antigamente até o final do tempo que eu trabalhei durante esses anos todos. Mas é preciso que haja muita boa motivação,

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mostrar para as crianças o que é bom. Porque ela vê muita coisa nessa TV que ela aprende coisas erradas. A TV é que hoje ela ajuda muito a seguir um caminho errado, mas a professora, ela dando, assim uma boa motivação para a criança ela

vai conquistando a criança, porque a criança é sempre a mesma criança. Tudo depende da família e formar bem a criança, e a escola a professora também, A professora não precisa só pensar que educar é só ensinar; é muito mais, é formar o espírito da criança para que a criança... consiga ter boas qualidades e virtudes. Porque a criança, tendo virtudes, consegue ser uma pessoa boa na sociedade e em qualquer lugar.

Mas como fazer isso (?): contando para ela alguma história de vida de alguém. Que a criança... possa... ter alguma coisa que ela mesma... a gente

dando o exemplo de alguma coisa na vida. Alguém que foi bom recebeu aquele bem e alguém que não fez o bem não recebe o bem. Como eu sempre conto uma história para eles e com aquela história eu me baseio para ele criarem as virtudes, é uma história que eu não vou citar aqui, que é uma longa história, mas apenas quero dizer que eu digo para eles que a gente pode adquirir dinheiro na vida, receber dinheiro, fazer negócios, trabalhar. Os outros dão tanta coisa para a gente. Os pais dão carinho, brinquedo, dão

bicicleta, dão tudo para a criança... e esquecem de fazer a criança lutar para ter... aquilo com carinho, com amor. Não assim, por exemplo, de dizer, eu quero isso, eu quero, não; é fazer ela entender, quando o pai pode dar e quando os pais não podem dar. Para ela ter as qualidades de saber esperar quando os pais podem. Porque, às vezes os pais dão tudo e não dão... o mais necessário que é a educação para ela poder criar essas virtudes. Porque as virtudes devem ser criadas pela gente, fazer o bem para os outros, obedecer o

professor na escola, respeitar as pessoas mais velhas, respeitar as mais pequenas, as crianças mesmo. Amar as pessoas, amar a natureza, tratar bem, vê que tudo o que nos cerca no mundo, porque foi criado pelo Ser Criador. Então se faz as crianças verem as coisas com os bons olhos, as coisas lindas, as coisas boas, ela está criando virtudes, ela tem virtudes.

Agora, aquela criança insatisfeita porque não dão tudo a ela, fica furiosa ou ela depois se atira nas drogas, depois de crescida; então ela não tem virtudes; porque ela foi acostumada a ganhar tudo, mas não é assim. Às vezes, não ganhou

nada, porque não ganhou o mais necessário: a educação. A família tem que educar a criança a cumprir dever de amor, de respeito e saber valorizar a pessoa. Se ela vê que é aceita dentro da família e fora da família, dentro da escola e fora da escola... Então a criança que vive bem em qualquer lugar é porque ela tem virtude. Qualidade boa, porque ela deve adquirir qualidades boas. Acho que virtude são as boas qualidades que as pessoas têm... e que as pode fazer muito feliz, porque a felicidade é construída por nós e o sofrimento é construído por

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nós. E nós temos de ser felizes construindo a nossa felicidade fazendo a felicidade do outro. Se nós não fizermos a felicidade dos outros nós também não faremos a nossa felicidade. Porque quando a gente tem boas virtudes, onde a

gente está é amado por todos; e quando a gente não tem boas qualidades as pessoas também se sentem mal, porque as pessoas não sabem tratar, não sabem viver, não sabem ajudar, não sabem... fazer... o bem para o outro... Então é uma pessoa na solidão, assim, que ninguém gosta dela,... E se a pessoa ela vê, ela compartilha com os outros, ela partilha no trabalho, no amor e tudo, ela tem qualidades boas. Então, ela vai buscando aquilo que ela vai ser feliz. E ela faz os outros felizes. Têm pessoas assim... E isto está faltando muito em nossas crianças de hoje. Mas isto tem de começar dentro da família. A mãe tem de ensinar que as

crianças como irmãozinhos, não devem brigar, que eles têm de se amar e falar, bastante de amor. O amor que está faltando nesse mundo. O amor e a justiça. Porque há tanta injustiça nesse mundo é porque não existe virtudes nas pessoas.

A escola é o lugar onde ela vai buscar o que ela precisa para a vida. Porque o pai e a mãe dá a vida para a criança e educa... um pouco em casa..., mas a escola é o lugar onde ela vai buscar aquilo que ela precisa para lutar na vida e vencer as dificuldades da vida. Na escola ela vai aprender o necessário para ela se tornar uma

pessoa... conhecida na sociedade, conhecida no trabalho e tudo, pelo que ela vai aprender... A escola é um lugar que o professor que lá atua tem compromisso com aquelas crianças, tem compromisso com a pátria e compromisso quase com o mundo. Porque se a criança está na escola e sai bem formada de lá ela é assim como um raio de sol que brilha no dia-a-dia. E se ela vai lá, o professor não se interessa por ela e não luta junto com a criança para mostrar a ela o caminho da luta, da vida, ela fica assim como pessoa nas trevas, que vive nas trevas, sempre...

nas dificuldades da vida. Então por isso que a escola é um lugar, é um lugar muito bom para a criança buscar aquilo que precisa na vida.

Eu como professora que fui durante 56 anos e como eu me sinto muito feliz e realizada de ter passado esses anos educando e sempre tive sucesso com meus alunos e, hoje, vejo meus alunos crescidos... na vida, o conselho que eu diria é que todos os professores nunca iniciassem uma aula sem se lembrar de Deus. Motivar que Deus é luz, Deus é amor e Deus é que nos dá inteligência... Um professor que motiva uma aula colocando Deus na sua motivação, eu tenho certeza que daquela

aula sairá alunos que brilham como o sol quando brilha de manhã... Isso eu fiz e tenho experiência própria. Isso foi um conselho quando eu comecei, a professora Assíria que me pediu que eu fizesse isso, e isso foi de fato um sucesso na minha vida. E com esta motivação ele pode fazer com que todos os alunos se amem e se ajudem, e vivam bem, para a vida toda, é fazer uma boa motivação no início falando de Deus. Colocando que Deus pode nos ajudar na vida, se eles fizerem isso terão sucesso na vida. Isso eu fiz e tenho experiência própria. Os meus alunos

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sempre foram obedientes, tive sempre disciplina e ordem na classe, eu sempre fui muito amiga dos meus alunos. Tanto quando eram crianças, como até hoje. Eu pediria para as professoras não esquecerem de fazer isso. Porque é a profissão,

ainda quero dizer assim, a única profissão desse mundo que é a profissão de Jesus Cristo é a profissão de professor. Jesus foi mestre e nós somos mestres.

Eu gostei de uma fase... que aconteceu que a professora não devia bater no aluno. Mas agora eu não gostei daquela parte que o governo não deu mais autorização para os pais educarem seus filhos como educavam. Porque a criança ela precisa ter muito mais... respeito pelos pais, porque a educação parte, primeiro mestre das crianças é o pai e a mãe, e o governo então criou uma lei que o pai não podia ser muito autoritário com o filho. Porque se a criança vem bem-educada de

casa fica mais fácil para o professor... na escola. Porque, olhe, modelar uma criança que não tem nada de... que não recebe nada dos pais vai ser muito difícil.

Então, aquelas crianças que eram, assim mais difíceis eu peguei à parte muitas vezes, sozinha a criança e falava com ela. Olha tem que ser assim, assim; mas lá em casa não é assim(!). Então, mas, agora tu vai aprender assim, porque um dia tu podes precisar de viver na sociedade e sociedade não aceita esse tipo de gente. Então você veio para a escola para ser uma pessoa formada

para viver. Agora você veio para a escola para ser uma pessoa formada para viver na família, na sociedade e em qualquer lugar.

Eu nunca tive um problema com os pais... quando fazia reuniões eles compareciam..., e quando não compareciam eles mandavam dizer por alguém: — o que me toca diz para ela... dizer o que eu tenho... de fazer, eles faziam. Agora, eu sempre cuidei de poupar esses pais porque eram todos pobres, tanto é que eu,... os papéis da escola eu pagava tudo com o meu dinheiro eu nunca (cobrei dos pais) . A

escola era uma escola pobre, não tinha caixa. Eu pagava do meu dinheiro e também, por exemplo, o que eu precisava gastar eu gastava do meu dinheiro para não pedir para eles... a gente tinha um gasto muito grande... Então a gente, eu fazia isto por amor, porque... eu sei como é no interior, é só no final do ano que eles tinham algum dinheiro, mas da safra... Assim eu poupava os pais, mas eles também foram muito bons para mim. Tanto é que depois que eu saí de lá não tinha mais ninguém, todo mundo saiu. E alguém disse para mim: — eu vim embora, o que nós íamos fazer lá sem a senhora?

(Assim, como aconteceu) comigo, disseram, (as mães, em Santa Cruz do Sul, na Escola Luiz Schroeder), eu quero matricular meu filho, mas tem de ser a dona Paschoa, a professora. E eu era cadastrada como alfabetizadora para a primeira série. E eles queriam que eu passasse adiante da primeira para a segunda e para a terceira, e assim por diante. Mas não dava.., então xingavam e daí para ter paz, (foi decidido criar o Projeto Clube da Arvore) porque eu precisava, no colégio, de paz e união com elas. Não eu disse para a dona Lorita, hoje ela coitada, morreu. Eu disse

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assim, Lorita, tudo o que tu fizeres eu aceito, o que eu quero é amizade com todo mundo aqui, porque aqui é o lugar onde eu trabalho, eu quero estar em paz com todo mundo. Então dona Paschoa, nós vamos fundar o Clube da Árvore e uma

horta, fazer uma horta e daí a senhora vai trabalhar com todas as classes. De 50 em 50 minutos a senhora ganha os alunos. Ela, ia lá fazer o programa dela, com o horário de horta e valia nota para todas as turmas. Daí eu trabalhava com eles. Começamos uma horta em cima de britas. Era tudo colocado brita, porque era um lugar muito molhado. E, daí nós vínhamos aqui na Suprinti (empresa do segmento de plásticos, de Santa Cruz do Sul), com todas as crianças e eu dizia: — tragam um saquinho, uma sacolinha, de casa, para nós buscarmos terra, e daí levávamos para fazermos um canteiro de trinta centímetros de altura. Nós levávamos lá no colégio,

não sei quantas quadras dava. E daí nós fizemos uma horta. Olha, deu verdura tão linda (!). Depois, aquela diretora morreu e entrou a dona Maura, ela disse: — não, eu vou lhe dar um oficio, a senhora vai na Prefeitura, e eles que tragam terra, aí eles trouxeram. Eu fui na Prefeitura pedir, trouxeram um caminhão de terra. Daí nós carregamos a terra para dentro, mas nós tínhamos só um balde velho, porque, o colégio era pobre que dava pena. Ai eu disse: — Mas quem sabe se a senhora me desse um ofício eu ia ver se arrumava um carrinho na Afubra ou na Souza Cruz. Aí

ela deu o ofício para a Souza Cruz e outro para Afubra. Eu cheguei lá na Afubra e pedi para o seu Guido, e ele disse: — A senhora sabe o que a senhora me pediu (?). Eu sei, pedi uma coisa que sai caro. E ele disse: É 250 cruzeiros. Aí eu disse assim: — Seu Guido, se o senhor me der o carrinho de presente, o senhor é meu amigo. E se o senhor não me der o Sr. é o mesmo amigo. Então eu vou fazer uma reunião porque é uma companhia (Afubra: Associação dos Fumicultores do Brasil), eram sócios (não podia decidir sozinho). Aí ele disse: — Na quarta- feira a senhora vem

aqui. Aí, na quarta-feira fui lá e perguntei pelo seu Guido, daí chamaram ele. Ele chegou e disse: — Boa-tarde (!), e eu disse: — Boa-tarde (!). Nem me ligou, foi num balcão... escrever, lá ele tinha um bloco na mão. E daí eu pensei: — Não vou ganhar o carrinho, e, de repente ele destacou uma nota e disse assim: a senhora pode retirar o carrinho. Eu disse: — Olha nós não temos carro eu vou falar para a prefeitura vir pegar pode demorar um dia, dois. Pode demorar até um mês porque o carrinho já é seu.

Aí eu fui no colégio e mostrei para a diretora, ela ficou tão contente!. Ela

disse: dona Paschoa, hoje à tarde a senhora vai levar uma caixa de verdura para o seu Guido e um cartão de agradecimento. Aí eu fui lá de tarde, entreguei para ele e tudo. E ele disse: — não precisava..., mas o senhor merece. Daí eu fui para a Souza Cruz pedi outro carrinho. Aí quando eu cheguei no colégio, os carrinhos já estavam lá, o da Souza Cruz e o da Afubra. Daí nós tínhamos dois carrinhos, estão lá no colégio, ainda. Nós formamos uma horta com 28 canteiros de l,20m e vinte cm, porque era a medida, como o agrônomo disse, de largura, e quatro

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metros de comprimento. Deu tanta verdura bonita que eu vendia bem baratinho, assim, para toda a comunidade e para uso da escola, só para comprar as sementes depois. E as beterrabas, um dia eu arranquei duas e disse para a dona Ivone, essa

é,.. e esta é para mim e, eu cheguei lá no seu Leouvi e pesei e deu 1,350kg, tão linda e não tinha nada que a gente botasse, alguma coisa, algum componente para ela crescer ou coisa assim, só, só terra mesmo, a gente mexia a terra todo dia com a enxadinha e as crianças e trabalhavam. Era bonito, bonito, em dez anos... afinal, que eu estava trabalhando também com o Clube da Árvore, nós distribuímos 83 mil mudas, e um ano nós tínhamos 125 variedades de muda, até semente da Alemanha, do Globo Rural, não me recordo o nome do lugar de onde veio uma espécie que dava igual a uma cuia. Eu tenho lá no porão, lá da Bahia era. Uma

professora trouxe uma fruta diferente, e daí eu plantei... nós tínhamos só uma muda e quando fizeram o colégio novo, foi transplantada e ela morreu.

Hoje a escola é um colégio grande... com 27 salas de aula. Isso o seu Amo disse para mim, esta comunidade vai ficar devendo para a senhora este presente que a senhora vai deixar para eles, é o colégio novo, porque só se desenvolveu aqui, esse colégio, com o seu trabalho.

Na última entrevista solicitei para a professora Paschoa falar sobre o jeito

que ela dava aula. Com o diário de estágio de segundo grau de magistério em mãos, ao folhear as páginas envelhecidas pelo tempo, assim foi dizendo sobre a história das vogais: a história começa com o Felipe e sua irmã Simone que foram fazer uma viagem de avião, daí o avião desceu e eles desceram do avião e começaram a caminhar e daí eles estavam cansados e viram um elefante, e daí embarcaram no elefante, montaram no elefante, aí o elefante andou, andou, e mas estava cansado e ele fazia... é, é, é, e daí eles faziam

aquele som... depois ele avistaram uma igreja no alto da couna e tinha uma festa muito linda, mas o que é aquilo lá uma casa tão alta, e daí tem uma cruz em cima, no final da casa bem no alto, aquela era uma menina pequena. Aí o Felipe disse é uma igreja. Então passaram por aquela igreja. Se eu estava dando o i eu chegava até lá com a história. Depois na vogal o, e eles passaram em uma fazenda e daí tinha um rebanho de ovelhas. Aí ela disse... mas que animal interessante, eu nunca vi uma coisa... tão lanuda... Aí o Felipe disse: Simone esse animal é a ovelha, então introduzia o ―O‖, depois quando

chegaram na casa do vovô então eles viram um parreiral e ela sorrindo porque estavam os cachos todos maduros. E ela não conhecia uva e perguntou para o irmão dela, ele disse que era uva. Daí eu introduzia a vogal u, com essa história eu introduzia todas as vogais e assim eles gravavam mais fácil. Tudo, tudo nós tínhamos de dar definição para eles. Depois a carta da higiene (está no caderno). Usar escova de dente, se arrumar bem para ir para a escola. (Aqui ela falou sobre a higiene, e a mensagem que ela fez no último dia do

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estágio, está no caderno), Queridas crianças. É com muita satisfação que nós escrevemos para vocês dizendo-lhe que estamos muito contentes com vocês. Vocês estão lindas. Todas limpinhas, unhas cortadas, cabelo penteado, pele

bonita. Outra coisa que deixa vocês maravilhosos é o bom comportamento na escola e na família, continuem no dia-a-dia, na vida de vocês, tenham sempre disciplina de ordem que estarão guardando um grande tesouro... Só somos felizes fazendo os outros felizes, só temos saúde se cuidamos bem de nosso corpo... Continuem queridas.., sempre nos usando (as escovas de dente) para ter uma boa aparência pessoal e, tendo bom comportamento terão boa aparência espiritual. Um grande abraço da amiguinha da higiene. Em breve escreveremos de novo. Usar escova de dente e arrumar—se, (carta lida, que

foi distribuída para os alunos durante o estágio) tudo o que tenho aqui eles têm no caderno deles.

Para a formação das palavras explicou: eu perguntei para eles aonde que morava tua mãe, era Pelotas, e o teu pai, aqui em Santa Cruz do Sul. E quando eles casaram a mãe foi morar em Pelotas? Não, a mãe e o pai foram morar juntos. Então nós vamos fazer o casamento do a e do i, fiz a casinha embaixo assim e eles puxaram a flechinha, a mãe veio de Pelotas e o pai de Santa Cruz, foram morar os

dois em Santa Cruz, então ficou aí, e daí eu mandei eles repetirem aí, mais ligeiro, ai, ai, ai, e aí eles viram que saiu o som de duas letras unidas e assim eu segui fazendo, eles entenderam logo. E daí eles sabiam fazer a junção de todas elas. E depois foi o o e o i logo, quando eu cheguei no fim eles sabiam dizer ai, oi, ui, ia, e assim direitinho. E assim eu continuei dando assim depois correspondendo as unidades em matemática e as letras fazendo a junção até que ia formando, por exemplo, depois para introduzir aqui mais adiante, introduzir a primeira consoante

que foi o V. Então eu disse agora nós vamos fazer o casamento com o V do vovô com o a e aí foi, v a va, e v o vó, daí eu disse, na casa do vovô tinha cinco pessoas tinha o a, e, i, o, u, e tinha o início do nome delas nessas cinco vogais, então nós vamos colocar sempre o vovô. Eles tinham de fazer isso então, então va, ve, vi, vo,

vu, depois eu dizia agora nós vamos fazer a junção do va duas vezes, vava, veve,

vivi, vovo, vuvu, então eles logo pegavam. Tanto é que quando foi no dia 13 de maio eu recebi uma visita da supervisão, ela se admirou que as outras salas de aula estavam ainda nas vogais e os meus já estavam lendo, porque eles entenderam logo

isto aqui. E assim depois trabalhei com o b, depois do b, então veio outra consoante junto com as vogais, sempre trabalhando, e eu sempre disse assim que nem uma consoante faria nada sem as vogais. Elas eram tão importante que as vogais ajudavam a formar todas as palavras e assim eles entendiam fácil. Aqui já entrei no d, dedo, aí depois eles logo entendiam da, de, di, do, du, eles logo daí, a gente começava a formar as palavras. Às vezes eu fazia um exercício assim que eles tinham de formar, eles, as palavras. Então eles pegavam o som de uma com o

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som da outra, ha! eu já descobri uma e eles formavam. Aqui eu já mostrei aos alunos a redentora da escravidão. Foi o 13 de maio. Foi nesse dia que eu recebi essa visita da Secretaria e eles já liam no quadro qualquer coisa. Daí a gente

trabalhava, assim, contava a história da Princesa Izabel o que ela fez, ela libertou os escravos. Aqui foi falado sobre Deus que ele criou toda a natureza. Aqui eles faziam matemática e aqui os desenhosinhos, eles contavam e colocavam dois mais dois. Aqui eu falei sobre a higiene, até eu fiz uma carta, foi colocado pra eles, cada um recebia uma carta sobre higiene. Aqui eles formavam o va, lo, valo, ve, la,

vela, véu, vovó, vovô, vilma, voa, e eles pesquisavam assim, e tudo eles que fizeram é tudo trabalho deles. Agora entrei na consoante m, macaco, daí apresentei aqui, eles foram fazendo. Aqui já formaram palavras e assim foram fazendo

trabalho deles. Eles que procuravam e tudo com m, que fizesse iniciar com maiúsculo e minúsculo, eu também dava em aula assim, recortavam dos jornais, revistas, eu espichava um barbante e ia colocando um cartaz de mais ou menos 15 cm por 20 cm com a gravura lá e a letra maiúscula e minúscula, e daí eu dizia, foje vamos trabalhar sobre, com esta letra e daí eles procuravam e, formavam palavras o: va, ve, vi, vo, vu; la, le, li, lo, lu, as letras estudadas, da, de, di, do, du; ma, me,

mi, mo, um; depois eles formavam as palavras. Eles pegavam fácil por isso. Aqui

também um trabalho deles. Aqui eu dava a folha já mimiografada e eles davam as respostas, cortavam e colocavam o nome. E aqui eles faziam ligação das palavras; aqui um deles já escreveu isso, ―eu gostei muito da Porfessora Ieda de Camargo‖. Marilene Rodrigues Bica. Ela deu uma para ela e deixou uma aqui... Uma aluna escreveu, fez um envelopinho e entregou para ela. E o outro ela deixou aqui. Aqui já a gente entrou na consoante c e já eu apresentei a gravura cavalo. E daí eles começaram a formar as palavras. Nesta aula eu contei sobre Jesus e eles

desenharam.,. Aqui também eles faziam, um dois, três. Completar os números que faltavam e daí eles completavam (caderno dos alunos) (sobre o diário de classe).

Quando eu recebi o meu título (título de ―Professor Emérito‖ do Estado do Rio Grande do Sul) das mãos do governador Britto, ele disse assim: o que mais ansiava era lhe conceder este título. Eles fizeram uma pesquisa durante dois anos em todo o Rio Grande do Sul, fazendo vistoria nas pastas de cada professor e o professor que tivesse cumprido a lei, de acordo como era a lei e quando mudava uma lei o professor mudava junto, e o professor que tinha mais se dedicado ou mais anos de

trabalho, aí ele disse, nós só tivemos a felicidade de encontrar a senhora. Desse modo, a professora Paschoa narrou as vivências e experiências mais

significativas de sua trajetória docente.

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