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1306 IDENTIDADES MÚLTIPLAS, TRADIÇÃO E MUDANÇA NA MÚSICA AFRICANA CONTEMPORÂNEA José Roberto de Vasconcelos Galdino (História/UEPG) Resumo: Este artigo tem como proposta realizar algumas discussões sobre identidades na música africana contemporânea e mostrar uma parte da produção da diversidade dessa música engajada e crítica, desde a década de 1960 até hoje. Seu objetivo é mostrar como alguns músicos africanos mistura(ra)m tradições e mudanças e produziram/produzem novas sonoridades ricas e inovadoras. Para isso discutiremos os conceitos de identidade(s), tradição e mudança; utilizando as concepções de identidade genérica e identidades múltiplas ou híbridas em Hall (2002, 2006); as concepções de tradição e do papel da oralidade nos Djélis ou Griots, em Ki-Zerbo (1982), Barry (2000) e Hernandez (2005); e a importância da inovação e da mudança em Diawara (1998). Trataremos da crítica à ideia da existência de identidades unitárias, essencializadas, contraposta às identidades múltiplas como consequência das migrações que promovem uma ampla diversidade étnica e cultural e pluralizam as identidades culturais. Também serão tratadas as contradições e misturas entre as tradições musicais africanas e as inovações vindas, especialmente, da diáspora africana e do uso de instrumentos eletrônicos ocidentais. Trabalharemos com uma pequena amostra da riqueza musical africana contemporânea, desde a sua disseminação através de Miriam Makeba até os dias atuais, com Toumani Diabate, Anjelique Kidjo e outro(a)s. Estes músicos contribuíram para divulgar as músicas africanas tradicionais misturadas, num caldeirão musical, com as músicas da diáspora, também influenciadas pela África, e criaram uma riquíssima musicalidade. Palavras-chave: identidades; tradição; mudança; música africana contemporânea.

IDENTIDADES MÚLTIPLAS, TRADIÇÃO E MUDANÇA NA · PDF fileA arte africana, como qualquer cultura e arte, não é imutável e suas transformações revelam inovações estéticas

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IDENTIDADES MÚLTIPLAS, TRADIÇÃO E MUDANÇA NA MÚSICA AFRICANA CONTEMPORÂNEA

José Roberto de Vasconcelos Galdino (História/UEPG)

Resumo: Este artigo tem como proposta realizar algumas discussões sobre identidades na música africana contemporânea e mostrar uma parte da produção da diversidade dessa música engajada e crítica, desde a década de 1960 até hoje. Seu objetivo é mostrar como alguns músicos africanos mistura(ra)m tradições e mudanças e produziram/produzem novas sonoridades ricas e inovadoras. Para isso discutiremos os conceitos de identidade(s), tradição e mudança; utilizando as concepções de identidade genérica e identidades múltiplas ou híbridas em Hall (2002, 2006); as concepções de tradição e do papel da oralidade nos Djélis ou Griots, em Ki-Zerbo (1982), Barry (2000) e Hernandez (2005); e a importância da inovação e da mudança em Diawara (1998). Trataremos da crítica à ideia da existência de identidades unitárias, essencializadas, contraposta às identidades múltiplas como consequência das migrações que promovem uma ampla diversidade étnica e cultural e pluralizam as identidades culturais. Também serão tratadas as contradições e misturas entre as tradições musicais africanas e as inovações vindas, especialmente, da diáspora africana e do uso de instrumentos eletrônicos ocidentais. Trabalharemos com uma pequena amostra da riqueza musical africana contemporânea, desde a sua disseminação através de Miriam Makeba até os dias atuais, com Toumani Diabate, Anjelique Kidjo e outro(a)s. Estes músicos contribuíram para divulgar as músicas africanas tradicionais misturadas, num caldeirão musical, com as músicas da diáspora, também influenciadas pela África, e criaram uma riquíssima musicalidade.

Palavras-chave: identidades; tradição; mudança; música africana contemporânea.

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Introdução

A proposta deste artigo é realizar algumas discussões iniciais sobre

identidades na música africana contemporânea e mostrar um pequeno recorte de

sua enorme diversidade através de alguns músicos engajados e críticos. Ele se

inicia na década de 1960, com a disseminação da música da África para o resto do

mundo e a crítica do apartheid, com Miriam Makeba, e vai até os dias atuais, com a

música africana crítica de Anjelique Kidjo e com alguns projetos musicais coletivos.

Seu objetivo principal é discutir como alguns músicos africanos mistura(ra)m tradição

e mudança e produziram/produzem novas sonoridades ricas e inovadoras e

promove(ra)m as identidades africanas, a descolonização e a defesa da paz, da

saúde, das mulheres e das crianças.

Para isto serão trabalhados os conceitos de identidade genérica e de

identidades múltiplas ou híbridas, em Stuart Hall (2002, 2006); de tradição e do

importante papel da oralidade nos djélis ou griots, em Joseph Ki-Zerbo (1982),

Boubacar Barry (2000) e Leila Hernandez (2005); e de tradição, inovação e

mudança em Manthia Diawara (1998, 2013). Então, mostraremos como músicos

africanos contemporâneos, alguns deles griots, misturam músicas e instrumentos

tradicionais com as inovações vindas, especialmente, da diáspora africana e com os

instrumentos eletrônicos ocidentais.

Identidades, tradição e mudança

Após a chamada contracultura, na década de 1960, o conceito de identidade

passou por grandes mudanças. Os movimentos pelos direitos civis dos negros e

feministas, nos EUA e Europa, trouxeram para o campo político o questionamento

dos processos de identificações genéricos, nacionais e falocêntricos. Desde então,

vários grupos sociais excluídos, constituídos de negros, mulheres, indígenas,

homossexuais, contestaram estas concepções excludentes e normativas de

identidades e passaram a valorizar as identidades étnicorraciais, de gênero e outras.

Apareceu, então, a possibilidade da existência de identidades múltiplas como uma

resposta à crescente homogeneização produzida pela mundialização econômica.

Conforme Stuart Hall, essa globalização: “vem ativamente desenredando e

subvertendo cada vez mais seus próprios modelos culturais herdados

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essencializantes e homogeneizantes [...]” (HALL, 2006, p. 43). Existe um processo

de tentativa de homogeneização cultural, a partir dos EUA, que ele denomina de

“McDonald-ização” ou “Nike-zação”, mas também há processos opostos sutis que

estão descentrando os modelos ocidentais e levando a uma disseminação da

diferença cultural para todo o planeta. O que seria “meramente” local e o global

estão atados entre si, um não existindo sem o outro. E a “modernidade” já não tem

um único centro transmissor, agora, as “modernidades”, estão em toda parte.

A descentralização das modernidades ocorre porque os fluxos migratórios

não regulados de povos e culturas são cada vez maiores e irrefreáveis e levam à

construção de um novo tipo de consciência transnacional e transcultural. Esses

processos de migrações livres e forçadas estão promovendo uma ampla diversidade

étnica e cultural e, ao mesmo tempo, pluralizando as identidades culturais. Para Hall:

“As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis estão naufragando nos

rochedos de uma diferenciação que prolifera” (HALL, 2006, p. 43).

Segundo Hall “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes

momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um „eu‟ coerente. Dentro

de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal

modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.” (HALL,

2002, p. 13). Portanto, não há uma identidade plenamente unificada, coerente,

completa e segura, pois “à medida que os sistemas de significação e representação

cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quase poderíamos nos

identificar – ao menos temporariamente.” (HALL, 2002, p. 13).

Para este autor, existem dois discursos identitários nas sociedades

contemporâneas. Uma concepção identitária genérica, nacional, estável, normativa,

que estaria se perdendo na modernidade, e outra concepção identitária híbrida, que

reconhece a diversidade e a pluralidade. Mas temos “fortes tentativas para se

reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o „fechamento‟ e

a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade.” (HALL, 2002, p. 92). Essa disputa

entre tradição e mudança aparece em alguns discursos sobre identidades na África.

Em defesa da tradição, Joseph Ki-Zerbo afirma que colocar um texto literário

oral retirado do seu contexto “é como um peixe fora da água: morre e se decompõe”

(KI-ZERBO, 1982, p. 28). Ele também fala das máscaras africanas que, tiradas do

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seu contexto tribal, são levadas para serem expostas como obras de arte à

curiosidade dos não iniciados e perdem sua carga de sentido e de vida. Portanto,

este autor enfatiza a funcionalidade e a tradição.

Já, Manthia Diawara (1998) diz que a arte africana não deve ser limitada

apenas a sua dimensão funcional na sociedade, como o uso ritual das máscaras

pelos músicos, dançarinos, anciãos e antepassados. Elas devem ter uma identidade

autônoma como obra de arte. Então, é preciso retirar as figuras sagradas da sua

função ritual para revelar os artistas que as criaram. Ele critica as elites africanas

que veêm o papel das máscaras e da arte apenas nos rituais tradicionais. Fora dos

rituais elas perderiam seu valor estético. Elas pretendiam denunciar as pilhagens e a

violação das tradições africanas pelo Ocidente, mas também impede(ia)m a

discussão da autoria individual das obras de arte e da dívida de artistas modernistas

para com os artistas africanos. Ao enfatizar apenas a autonomia e a autenticidade

tribal, ignoram a abertura dos artistas africanos à mudança.

Como o Ocidente se apropriou e detém o monopólio da definição de arte

africana, não importando os autores, a originalidade de uma obra de arte africana

não passa pela assinatura do artista original, mas pelos intermediários ocidentais.

Então, o papel criativo dos artistas africanos é silenciado e suas intenções estéticas

são desvalorizadas em detrimento da sua função ritual. Esses artistas têm de aceitar

o estereótipo que os vê como “primitivos”. Negando a arte africana como arte, se

reproduz o estereótipo de que os africanos só tem uma percepção funcional da arte.

Diawara critica a ênfase demasiada na tradição, originalidade e autenticidade em

detrimento da mudança e da inovação. A arte africana, como qualquer cultura e arte,

não é imutável e suas transformações revelam inovações estéticas através dos

artistas individuais que reformulam a tradição.

Os griots: tradição e mudança

A diversidade de identidades e as riquezas das culturas africanas se revelam

especialmente nas artes, na oralidade e na música, A oralidade é extremamente

importante e se manifesta através da co(a)ntação que transmite os mitos e histórias

dos ancestrais. Os co(a)ntadores são poetas e músicos, homens, mulheres ou uma

família, que fazem parte de uma casta de “guardiões da memória”, encarregados da

memorização e transmissão das tradições de/na sua comunidade. Segundo

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Boubacar Barry (2000), eles são os djélis, que significa “sangue”, “força vital”, a

circulação do sangue, que é a própria vida, como a palavra que circula. Eles também

são chamados griots e são encarregados da transmissão oral do conhecimento dos

antepassados, da memória e da história de uma comunidade. A música tem estreita

relação com estas tradições, com a vida cotidiana (festas, rituais, trabalho) e é

compartilhada com todos os membros da comunidade. Conforme Leila Hernandez,

os griots são muitas vezes “respaldados pela música e valendo-se da coreografia

contam coisas antigas, cantando as grandes realizações dos „bravos e dos justos‟,

celebrando o heroísmo e a salvaguarda da honra” (HERNANDEZ, 2005, p. 30).

Algumas famílias de griots cantam suas histórias há mais de setenta

gerações, como a família de Toumani Diabate, griot da etnia mandinga – tocador do

korá. Conforme Wole Soyinka (2003), a família de Bala Fasseke Kouyaté, primeiro

griot do Reino do Mali, até hoje é a fiel depositária do instrumento sagrado – o

balafon – de Sundiata Keita, que o conquistou como troféu de guerra, de Soumaoro

(Sumanguru) Kanté, Rei Sosso. Este balafon até hoje é o símbolo do Império

Mandingo e da República da Guiné. Segundo Ki-Zerbo (1982), ainda hoje ecoam no

timbre épico e quente dos griots, as histórias de Sundiata Keita, fundador do Reino

do Mali; ou a história de Chaka, fundador do Reino Zulu.

Assim como é fundamental a importância e a riqueza dos músicos tradicionais

africanos, os músicos africanos atuais, muitos deles griots, também ocupam um

lugar primordial na música local e mundial, influenciando e sendo influenciados pelas

músicas ocidentais, principalmente a música negra caribenha, brasileira e norte-

americana. Estes músicos e griots não cantam somente a história e mitos dos reinos

e povos africanos antigos, mas também cantam sobre seu presente, misturando o

passado com a modernidade, as tradições locais com influências mundiais, a

exaltação dos heróis históricos e míticos com a crítica dos governos tirânicos e

corruptos. Usam instrumentos, ritmos e gêneros tradicionais, mas acrescentam a

eles aquilo que Diawara (1998), tratando da arte africana, chama de reformulação da

tradição, ou seja, há uma incorporação da mudança e da inovação, deixando-se de

se dar ênfase demasiada na tradição, originalidade e autenticidade.

Há uma influência de mão-dupla das músicas africanas no mundo e do

mundo na África, especialmente aquelas levadas e vindas da Diáspora africana.

Conforme Aziz Diengo, “as músicas de África teceram através da Diáspora

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casamentos de amor com outros idiomas. Desses encontros feitos de sofrimento

nasceram, contudo, em resposta a um irresistível apelo à vida, músicas

extraordinárias [...].” (apud VUNGE, 2010, s.p.). Os exemplos mais importantes

dessas trocas são o blues, o jazz, o reggae, a salsa, a rumba, o samba, o zouk.

Hall, tratando da música da diáspora, afirma que essas trocas entre as

tradições musicais populares do “primeiro” e “terceiro” mundo fertilizam umas às

outras e constroem “um espaço simbólico onde a chamada tecnologia eletrônica

avançada encontra com os chamados ritmos primitivos [...].” (HALL, 2006, p. 37). Ele

também alerta para a idealização que normalmente se faz com relação às músicas

consideradas mais autênticas porque são mais antigas. Para ele, “a proliferação e a

disseminação de novas formas musicais híbridas e sincréticas não pode mais ser

apreendida pelo modelo centro/periferia ou baseada simplesmente em uma noção

nostálgica e exótica de recuperação de ritmos antigos” (HALL, 2006, p.37). Estes

hibridismos musicais incorporam múltiplas tradições musicais fragmentadas.

A disseminação das músicas africanas surgiu junto com o processo de

descolonização e de independências das ex-colônias africanas, especialmente na

década de 1960, e com o pan-africanismo e o movimento negro nos EUA. Em 1963,

foi criada a Organização da Unidade Africana (OUA), na Etiópia. Em 1966, em

Dakar, o presidente do Senegal, Leopold Senghor, em conjunto com a UNESCO,

organizou o I Festival Mundial de Cultura e Artes Negras (FESMAN), congregando

grande parte dos países africanos e membros dos EUA, Brasil e do Caribe. Do

Brasil, lá estiveram os músicos Clementina de Jesus, Ataulfo Alves e Elizeth

Cardoso, bem como o capoeirista Mestre Pastinha. Também foram Duke Ellington e

Josephine Baker, dos EUA. Este foi um dos primeiros momentos de promoção da

música africana e de raiz africana de outras partes do mundo. A OUA organizou em

1969, em Argel (Argélia), o I Festival Pan-Africano de Cultura (PANAF), com a

presença de Nina Simone, Oscar Peterson e Miriam Makeba. Em 1977, realizou-se o

II Festival Mundial de Cultura e Artes Negras, em Lagos, na Nigéria, com a presença

de Stevie Wonder, Donald Bird, Miriam Makeba, Louis Maholo, National Bembeya

Jazz da Guiné e os brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Somente na década de 1980, começaram a aparecer de forma mais ampla as

tentativas de dar visibilidade às artes africanas e de africanos pelo mundo,

especialmente à música. Elas se disseminaram juntamente com a luta e os festivais

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musicais antiapartheid, com a produção de trabalhos conjuntos entre músicos

europeus e dos EUA com músicos africanos e com a criação e circulação de um tipo

de música que se convencionou chamar de World Music, ou seja, músicas étnicas,

tribais, fora do circuito daquilo que convencionalmente chamamos música ocidental.

Desde então, muitos músicos promoveram as identidades africanas; a paz; a

dignidade dos emigrantes africanos na diáspora; lutaram contra o regime do

apartheid; contra governos ditatoriais; contra a corrupção; contra a guerra e a

violência; contra a fome, a miséria e a AIDS; contra o neocolonialismo. Um pequeno

exemplo pode ser encontrado nos músicos que veremos a seguir.

A riqueza musical africana

Iniciamos o recorte da riqueza musical da África com a mais importante

cantora da África do Sul, Zenzile Miriam Makeba (1932-2008) a “Mama Africa”, que

colocou a música africana no mapa mundial, com o sucesso de sua música “Pata-

Pata”, na década de 1960. Foi uma grande ativista pelos direitos humanos e contra o

apartheid. Participou do documentário antiapartheid “Come Back, Africa”,

apresentado no Festival de Veneza, em 1960, e fez denúncias para o Comitê da

ONU antiapartheid. Em função de sua militância, perdeu a cidadania e o passaporte

sul-africano e passou a viver no exílio grande parte de sua vida. Depois que casou

com Stokely Carmichael, dos Panteras Negras e do Movimento Black Power, acabou

virando persona non grata nos EUA. Foi então para a Guiné, depois da revolução

de Sékou Touré, e tornou-se delegada do país na ONU. Depois de gravar com Paul

Simon, em 1987, ela voltou a fazer sucesso triunfal no mercado dos EUA. Somente

pode voltar para a África do Sul, em 1990, a convite de Nelson Mandela.

O músico sul-africano Hugh Ramopolo Masekela (nascido em 1934),

trompetista, cantor e compositor tornou-se uma das vozes mais fortes contra o

apartheid e um dos maiores músicos do seu país. Tem influência das tradições

musicais africanas e afroamericanas (jazz, afrobeat e mbaqanga - música zulu). Em

razão de sua grande atuação política foi exilado. Foi casado com Miriam Makeba. Já

separado dela, em 1967, participou do Festival de Monterey (EUA). Com Stewart

Levine, ele organizou o Festival Zaire 74, em Kinshasa, concomitante com a disputa

do título mundial de boxe, entre Muhammad Ali e George Foreman. Foi um festival

de soul com músicos como James Brown, B. B. King, Célia Cruz, Miriam Makeba e

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Manu Dibango. Criou uma canção, em 1986, denominada “Bring him back home”,

que é um apelo para à libertação de Mandela. Em 1987, participou, com outros

músicos africanos, do álbum Graceland, de Paul Simon. Junto com Mbongeni

Ngema, compôs músicas para o musical da Broadway “Sarafina”. Tocou com Miriam

Makeba, Fela Kuti, Harry Belafonte, Stevie Wonder, Dizzy Gillespie, Bono Vox e

outros. É diretor de uma organização não lucrativa The Lunchbox Fund, que fornece

comida diária para os estudantes de bairros pobres de Soweto, na África do Sul.

Outro músico emblemático é Fela Anikulapo (“aquele que carrega a morte no

bolso”) Ransome Kuti (1938-1997), nigeriano e ativista político e pelos direitos

humanos. Criou o Afrobeat e com suas letras e posições políticas inspir(a)ou a

liberdade de expressão. Sua mãe foi militante feminista e seu pai era líder sindical

dos professores. Teve contato com os Panteras Negras, assim como com a Black

Music, que o influenciaram. Apoiou o movimento pan-africanista de Nkrumah.

Questionou fortemente os poderes dos governos ditatoriais nigerianos. Criou uma

comuna independente, em Lagos, chamada República Kalakuta. Tentou se

candidatar à presidência da Nigéria, mas teve sua pretensão recusada pelas

autoridades. Em 1986, participou do show “Conspiração da Esperança” em apoio a

Anistia Internacional, nos EUA; e, em 1989, gravou o álbum antiapartheid “Beasts of

no Nation” (“Bestas de Nenhuma Nação”), cuja capa apresenta Reagan, Thatcher e

Botha, com os caninos pingando sangue. Seu filho, Femi Kuti, continua a luta.

Nos anos de 1980, outros músicos africanos estouraram na mídia ocidental.

Um deles é Youssou N’Dour (nascido em 1959), senegalês, filho de mãe griot e um

dos mais famosos músicos africanos. Juntou gêneros tradicionais, como o njuup e o

mbalax, com a música ocidental, com grande sucesso. Com grande militância, em

1985, organizou um concerto para a libertação de Mandela, em Dakar e, no ano

seguinte, gravou o álbum Nelson Mandela. Em 1988, participou de vários concertos

“Direitos Humanos Já” para a Anistia Internacional. Gravou com Paul Simon e Peter

Gabriel, Sting, Branford Marsalis, Ryuichi Sakamoto, entre outros e gravou a trilha

sonora do desenho animado “Kirikou e a feiticeira”. Tornou-se embaixador para a

ONU, FAO, OIT e UNICEF, participando de inúmeras campanhas contra a AIDS e

contra a corrupção e os genocídios. Em Dakar, criou um estúdio de gravação para

jovens músicos e uma empresa de micro crédito, denominada Birima. Também

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tentou candidatar-se à presidência do Senegal, em 2012, mas a sua solicitação foi

recusada. Atualmente é Ministro da Cultura e do Turismo do Senegal.

Anjelique Kidjo, que nasceu em 1960, é uma grande cantora e compositora

do Benin, filha de mãe ioruba, diretora de teatro, e pai da etnia fon. Seu avô morou

na Bahia. Ela foi influenciada por Miriam Makeba, Manu Dibango, Carlos Santana,

James Brown, Aretha Franklin (o soul, jazz, funk) e pelas músicas tradicionais

africanas do Benin. Militante antiapartheid, desde os quinze anos, cantou em Paris

abrindo shows de Miriam Makeba, em 1989, e de Nina Simone, em 1990. Fez

parcerias com Manu Dibango, Ray Lema, Branford Marsalis, Carlos Santana e

outros. Suas músicas falam da paz (“Fifa”), da vida (“Ayé”), do meio ambiente, das

crianças (“Mutoto Kwanza” – “Crianças Primeiro”) e das culturas africanas. Ela

participou do evento Back2Black, no Brasil, que promove encontros artísticos,

políticos e culturais entre o Brasil e a África. É embaixadora da UNICEF, desde

2002, sempre promovendo eventos para ajudar as crianças de países africanos e

também do Haiti. Em 2006, criou a Fundação Batonga, em Washington, que atua em

países africanos (Benin, Mali, Serra Leoa, Camarões e Etiópia) e dá formação

educacional para meninas e mulheres para que se tornem lideranças. A fundação

oferece bolsas de estudo, material escolar, apoio aos professores e constrói escolas.

Desde 2009, apoia a Campanha “Direitos da Mulher na África” (Africa Womens

Right) da Federação Internacional de Direitos Humanos, e também a Campanha

para a Erradicação do Tétano, da UNICEF. Em 2010, tornou-se embaixadora do

“Live Earth”, participando de um show de 24 horas de música em várias cidades de

todos os continentes. O objetivo era sensibilizar a opinião pública mundial para o

aquecimento global, organizado pelo Save our Selves (“Salvemos a Nós Mesmos”).

O projeto Playing for Change: Songs Around the World (“Tocando para

Mudar: Músicas ao redor do Mundo”), criado em 2007, reúne músicos de inúmeros

países para promover a paz e realizar a construção de escolas de música, como em

Kirina (Mali); Tamale (Gana); Kigali (Ruanda); e Gugulethu (África do Sul). Este

projeto é apoiado por músicos africanos como Baaba Maal e Barou Sall (Senegal);

Toumani Diabate, Mahamadou Diabate e Tinariwen (Mali); Ilo Ferreira (Cabo Verde);

Mermans Kenkosenki e Jason Tamba (Congo); Ijeoma Njaka (Nigéria); Ruth “Titi”

Tsira e Vusi Mahlasela (África do Sul); Louis Mhlanga (Zimbabwe); Kadiatou Sibi

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(Gâmbia); Mohammed Alidu e Rocky Dawunting, (Gana); Collin Sekajugo (Ruanda);

e músicos de várias partes do mundo: Bono, Keb‟ Mo‟ e Sandra de Sá.

Fatoumata Diawara, nascida em 1982, é atriz, compositora e cantora do

Mali. Nasceu na Costa do Marfim, mas seus pais são do Mali e é lá que ela vive.

Tem influência das músicas tradicionais wassoulou, parecidas com o blues. Em

2012, participou da Campanha “30 Canções, 30 Dias” para apoiar as mulheres numa

plataforma multiprojeto de mídia denominada “Metade do Céu: como as mulheres ao

redor do mundo lutam por um futuro melhor.”. Em 2013, ela juntou mais de 40

músicos de seu país para gravar um vídeo para a paz no Mali – que passou por uma

guerra civil, com a interferência de tropas da França. A Campanha é “Vozes Unidas

por Mali” e o título da música é Mali-Ko (“A Paz”) e conta com o apoio de Toumani

Diabate, Amadou e Mariam, Oumou Songaré, Bassekou Kouyate, Vieux Farka

Toure, entre outros. Bassekou Kouyate, tocador de n‟goni (origem do banjo), já havia

gravado um vídeo em favor da tolerância e da paz, chamado Jama-Ko.

Toumani Diabaté (nascido em 1965), músico do Mali, é tocador de korá (um

dos instrumentos dos griot) e pertencente a uma família de griots, da etnia

mandinga, há 71 gerações, e é outro destes exemplos de elevação da música e da

cultura africana tradicional e moderna a níveis mundiais. Seu pai Sidiki Diabaté foi

denominado o Rei do korá na África. Toumani gravou com Ry Cooder e Ali Farka

Touré. Dois de seus álbuns são de solos de korá: “Kaira” (1987) e “The Mandé

Variations” (2008). Mesmo sendo um músico famoso e de enorme sucesso no

mundo continua dando aulas de korá e música tradicional moderna no Conservatório

em Bamako, iniciado em 2004. Ele e outros músicos se mobilizam para ajudar a

preservação da música tradicional (de korá) e para educar as novas gerações para

conservar seu rico patrimônio musical. Atualmente é embaixador da ONU.

Estes músicos também bebe(ra)m de fontes antigas como as das mulheres

griots dos Mande. Segundo Diawara, entre elas existe uma canção popular chamada

“Baninde” (“dizer não a opressão, desafiar o opressor”). Ao cantar esta canção as

mulheres estão exortando os jovens para que resistam à injustiça e busquem

transformar o mundo para melhor, seguindo o exemplo de seus antepassados. A

canção “vai repetindo o refrão „Ban ye dunya la dyala‟ („A resistência traz alegria ao

mundo‟), seguido dos nomes dos heróis cuja resistência fez com que a vida dos

africanos mudasse para melhor” (Apud SANTOS, 2013, s. p.).

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Considerações finais

Frente a estes músicos, podemos dizer que, da mesma forma que a África foi

apropriada, transformada e ressignificada na diáspora, os africanos se apropriaram,

reelaboraram e ressignificaram inovações ocidentais e africanas da diáspora. Um

exemplo disso pode ser encontrado na fala de Anjelique Kidjo, que diz: “(...) eu

aprendi que a fim de se dar através da música, você tem que se posicionar entre

outros indivíduos que pertencem a diferentes culturas e estilos e então buscar

caminhos para descobrir que nós não somos totalmente diferentes.” (Jornal O

Estado do Maranhão, 02/set/2009, s.p.).

Os músicos africanos beberam das fontes das musicalidades da diáspora

caribenha, norte-americana e brasileira – que já tinham influências profundas vindas

da África - misturaram estas influências com as músicas tradicionais e devolveram

para o mundo uma variedade imensa de gêneros e ritmos musicais. Eles misturaram

tradições e inovações e produziram novas sonoridades riquíssimas e inovadoras.

Dentre essa herança podem ser citados os seguintes e mais conhecidos

gêneros musicais: o afrobeat, disseminado por Fela Kuti; o juju, popularizado por

King Sunny Ade; o highlife; o makossa, difundida por Manu Dibango; o soukos ou

Rumba Africana; a morna, popularizada por Cesária Évora; o Pop do Senegal,

difundido por Youssou N'Dour, Baaba Maal e Ismael Lo; as músicas mandingas, de

Toumani Diabate, Ali Farka Toure e Salif Keita; as músicas isicathamiya e

mbaqanga, popularizada pelo grupo Ladyshmidt Black Mambazo.

Esta pequena amostra da música africana deixa bastante evidente que temos

muito a aprender com a impressionante riqueza das músicas que vem desse

continente com enorme diversidade cultural. Conforme Eduardo Socha,

“percebemos que direcionar nossa atenção à música africana significa não apenas

ouvir o passado e o presente. Como nos mostra a arte contemporânea, significa

também ouvir o futuro da música ocidental.” (SOCHA, s. d., p. 27).

Infelizmente, no Brasil não conhecemos quase nada desta vasta e rica

produção das culturas e das músicas da África. As musicalidades e riquezas

culturais do continente africano continuam a não ter nenhum espaço por aqui.

Segundo o escritor angolano José Eduardo Agualusa, os brasileiros tem vergonha

de suas raízes africanas e preferem consumir as produções norte-americanas. Ou,

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como disse Anjelique Kidjo, em sua passagem pelo Brasil: “Há tantos problemas que

vem dessa vontade de ocultar a África quando ela está aqui presente; sem a África

não haveria o Brasil (...).” (Jornal O Estado do Maranhão, 02/set/2009, s. p.).

Podemos acrescentar que sem a África e os seus descendentes nós teríamos muito

menos riqueza cultural, étnica e, especialmente, musical.

Referências Bibliográficas

ARTE DA ÁFRICA. Catálogo da Exposição Arte da África: Obras primas do Museu Etnológico de Berlim. Peter Junge (org.). Rio de Janeiro: Brasília: São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.

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