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II CONGRESSO DE FILOSOFIA DO DIREITO PARA O MUNDO LATINO
CRISE DA DEMOCRACIA E DESIGUALDADES
A532
Anais II Congresso de Filosofia do Direito para o Mundo Latino [Recurso eletrônico on-line]
organização Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ;
Coordenadores: Margarida Lacombe Camargo, Natasha Pereira Silva, Vinícius Sado
Rodrigues – Rio de Janeiro: UFRJ, 2019.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-764-9
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
1. Filosofia do Direito. 2. Gênero e Teoria do Direito. 3. Democracia. 4. Desigualdades. 5.
Justiça de Transição. 6. Estado de Exceção. 7. Ativismo Judicial. 8. Racionalidade Jurídica.
9.Clássicos I. II Congresso de Filosofia do Direito para o Mundo Latino (1:2018 : Rio de
Janeiro, RJ).
CDU: 34
II CONGRESSO DE FILOSOFIA DO DIREITO PARA O MUNDO LATINO
CRISE DA DEMOCRACIA E DESIGUALDADES
Apresentação
O mundo latino tem investido na construção de uma jusfilosofia que objetiva produzir
epistemologias e referências conceituais a partir de contextos próprios, de modo a contribuir
para a transformação das instituições jurídicas, políticas e sociais vigentes.
Com essa intenção, a iLatina, através do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade do Rio de Janeiro (PPGD-UFRJ), promoveu, em julho de 2018, na
cidade do Rio de Janeiro, o II Congresso de Filosofia do Direito para o Mundo Latino.
O encontro contou com a presença de estudiosos da Filosofia do Direito de quase todos os
países do chamado “mundo latino”, com o desafio de pensar, sob a perspectiva da Filosofia,
problemas que desafiam as democracias atuais. Um dos eixos principais dessa discussão
refere-se à crise da democracia e desigualdades, cujas questões são exploradas pelos
trabalhos desta coletânea.
O Congresso contou com o trabalho de sistematização dos textos apresentados para cada
grupo temático, estruturado em forma de relatoria. A relatoria do grupo Crise da Democracia
e Desigualdades ficou sob a responsabilidade de do professor Juan Antonio Parcero, da
Universidade do México, que agrupou os 20 trabalhos inscritos, provenientes do Brasil,
Equador, Peru, México, Chile, Colombia e Espanha, em três grupos que abordam as
seguintes questões: i) teorias da justiça; ii) justificação da intervenção do Estado; iii)
conceituação de direitos humanos.
Ana Isabel Abril Olivo (Equador) expõe, de forma detalhada, o problema da omissão da
Corte Constitucional equatoriana no controle da faculdade do poder executivo de contrair
dívida pública e, com isso, acaba por acarretar a impossibilidade de dar garantias a direitos
sociais como a saúde, a educação, dentre outros.
Alfonso Henriquez Ramirez (Chile) explora algumas concepções sobre a justiça distributiva
– suficientismo e prioritarismo – e seus problemas relativos ao direito à educação. Betzabé
Xenia Marciani Burgos (Peru) se propõe, de acordo com Parcero, a discutir sobre o tipo de
intervenção estatal que resulta admissível no Estado Constitucional de Direito, sob bases
liberais, mas com compromisso de bem estar social. Macario Alemany García (Espanha)
“muestra que la representación de personas con discapacidad mental y/o intelectual, cuando
esta discapacidad afecta seriamente a su autonomía, no constituye necesariamente una
violación de sus derechos a la igualdad y a la no discriminación”. Víctor Carlos Hurtado
Estrada (México), com base na filosofia de Kant sobre como podemos reagir diante de leis
injustas e maus governos, fala da desobediência civil, da rebelião e do tiranicídio, passando
pelo problema de objeção de consciência.
Um segundo grupo, com nove trabalhos, lida com a crise da democracia e os riscos de
corrupção e de governos populistas pelos quais passa a maioria das democracias latino-
americanas.
Nesse sentido, Daniela Carolina Chávez Cruz e Patricio Santiago León Yambay (Equador)
destacam o impacto que as economias de mercado provocam no sistema de (i)legalidade.
André Luis Pontarolli (Brasil) analisa a afetação da qualidade democrática pela corrupção
típica dos sistemas capitalistas. Eduardo Feron Santos Azevedo e Guilherme Petry
Matzenbacher (Brasil), junto com Robert Dahl, nos chamam a atenção para o fato de que a
tentativa de se inserir elementos substantivos em uma teoria democrática pode ser uma saída
não apenas arriscada, como também antidemocrática. Juan Jose Janampa Almora (Espanha)
sustenta que, ao contrário do constitucionalismo deliberativo, o constitucionalismo de
princípios ou argumentativo não serve para resolver a crise da democracia.
Luciano Crotti Peixoto e Franciano Sabadim Assis (Brasil) defendem o registro civil para a
efetividade da cidadania. Pamela Lili Fernández Reyes (México) traz sugestões para o
enfrentamento da corrupção. Aurymayerli Acevedo Suarez e Zaida Maritza Rojas Castillo
(Colômbia) analisam o populismo na América Latina. Rafael Rizzi e Irineu Francisco Barreto
Junior (Brasil) defendem o investimento das novas tecnologias da informação e da
comunicação (TICs) para incrementar a participação política dos cidadãos. Valentin Bartra
Abensur (Peru) explora o conceito de democracia, crise e a influências das novas tecnologias
digitais de massa.
No terceiro grupo estabelecido por Parcero, encontramos trabalhos que se concentram na
situação atual do Brasil, com foco na reprodução das desigualdades, especialmente, de raça e
classe social.
Fernando Pereira da Silva e Rafael Bitencourt Carvalhaes (Brasil) trouxeram o problema da
desigualdade da riqueza, a defesa da educação de qualidade para todos e uma tributação mais
justa, que desonere os mais pobres e onere a renda, o patrimônio, a movimentação financeira
e a herança.
Péricles Stehmann Nunes, José Francisco Dias da Costa Lyra e Charlise Paula Colet
Gimenez (Brasil), a partir de um marco teórico-conceitual vinculado à teoria dos sistemas de
Luhmann e à obra de Marcelo Neves, analisam o problema da desigualdade em países que se
encontram na modernidade periférica provocada pela globalização, como o Brasil. O trabalho
de Rosilene dos Santos (Brasil) pretende compreender a realidade constitucional brasileira e
critica a manipulação do sentido da Constituição atual pelo viés interpretativo dos juristas.
Augusto Sergio dos Santos de São Bernardo (Brasil) apresenta novos instrumentos
metodológicos para tratar da história do direito e do pensamento jurídico brasileiro, de modo
a considerar o que Wolkmer chamou de “direito histórico-crítico”, que leva em conta marcos
como a colonização e a escravidão, com o escopo de serem afirmados direitos humanos.
Pedro de Oliveira da Cunha Amorim de Souza (Brasil) faz uma reflexão sobre os estereótipos
étnicos e sociais a partir da fotografia apresentada no jornal Meia Hora que contribuem para
a construção simbólica da vida na favela e disseminação do medo, elemento importante para
a legitimação da atuação do Estado e da polícia.
Lusmarina Campos Garcia (Brasil), em seu trabalho, faz uma leitura do direito como parte de
uma ideologia que oculta as relações de dominação e luta de classes.
É com o objetivo de compartilhar o diálogo e promover o acesso às discussões da temática
feitas durante o II Congresso de Filosofia do Direito para o Mundo Latino que apresentamos
estes Anais. A coletânea reúne os trabalhos que nos ajudam a lançar novos olhares, sob a
perspectiva da Filosofia e do Direito, para o debate contemporâneo.
Margarida Lacombe Camargo
Natasha Pereira Silva
Organizadoras
O DIREITO E O NÃO SER NEGRO: UMA HISTÓRIA DO DIREITO BRASILEIRO E A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NO CAMPO DO DIREITO
THE RIGHT AND NOT BEING BLACK: A HISTORY OF BRAZILIAN LAW AND THE PRODUCTION OF KNOWLEDGE IN THE FIELD OF LAW
Augusto sergio dos santos de sao bernardo
Resumo
As organizações políticas, comunitárias e tradicionais no continente africano e na diáspora
atestam uma forma costumeira e conciliadora de lidar com os conflitos – em relação à
natureza e a sociedade - nos influenciando numa dimensão contingencial da experiência
civilizatória africana no Brasil e nos dando um caminho de como articular novas bases ético-
jurídicas para pensar o direito numa ótica emancipatória. É possível afirmar um direito afro-
brasileiro? Existe um repertório comum que informa e unifica este direito? Existe uma base
sócio-cultural que legitima a emergência dessa ético-jurídica? Este direito pode ser
universalizável como pressuposto de justiça a outras comunidades não africanas? Estas
indagações podem sugerir a possibilidade de um debate nos campos da antropologia jurídica,
da filosofia afro-brasileira e da filosofia do direito. Entender as diversas formas de lidar com
os costumes e tradições originados do processo civilizatório afro-brasileiro em confronto
com o direito germano-românico, fenomenológico, positivista e culturalista do direito
brasileiro. As comunidades tradicionais e as referências mais ancestralizadas das nossas
experiências comunitárias dão conta de que os valores e noções de justo têm convergido às
noções de integração e comunhão com a natureza, uso comunitário e coletivo da propriedade,
restituição no lugar de retribuição de pena, famílias extensas etc.
Palavras-chave: História do direito, Filosofia afro-brasileira, Pluralismo jurídico
Abstract/Resumen/Résumé
Political, community and traditional organizations in the African continent and in the
Diaspora attest to a customary and conciliatory way of dealing with conflicts - in relation to
nature and society - by influencing us in a contingent dimension of African civilization
experience in Brazil and giving us a path of how to articulate new ethical-legal bases for
thinking the law in an emancipatory perspective. Is it possible to affirm an Afro-Brazilian
right? Is there a common repertoire that informs and unifies this right? Is there a socio-
cultural basis that legitimates the emergence of this legal ethic? Can this right be
universalizable as a prerequisite of justice to other non-African communities? These inquiries
may suggest the possibility of a debate in the fields of juridical anthropology, Afro-Brazilian
philosophy and the philosophy of law. To understand the different ways of dealing with the
customs and traditions originated from the Afro-Brazilian civilization process in comparison
with the German-Romanesque, phenomenological, positivist and culturalist law of Brazilian
203
law. The traditional communities and the more ancestral references of our community
experiences show that the values and notions of the just have converged to the notions of
integration and communion with nature, community and collective use of property,
restitution in place of retribution, families extensive etc.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: History of law, Afro-brazilian philosophy, Legal pluralism
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O DIREITO E O NÃO SER NEGRO: UMA HISTÓRIA DO DIREIT O BRASILEIRO E A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NO CAMPO DO DIREITO
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Sobre o estudo da história do direito e do pensamento jurídico no Brasil chamamos a
atenção para uma interpretação das fontes a partir de novos instrumentais metodológicos e
para a existência de uma tendência nova nos estudos históricos, que aponta para além das
meras “interdisciplinaridades” de algumas escolas jurídicas influenciadoras do pensamento
jurídico no Brasil. Há que se registrar, também, a expressiva simbiose entre o pensamento
brasileiro e o pensamento jurídico naquilo que se pode referir-se às discussões das grandes
questões nacionais. O aparecimento dos cursos jurídicos (Recife e São Paulo) proporcionou
uma gama poderosa de análises sobre o Brasil no contexto sociopolítico.
Conforme Wolkmer (2015), a experiência humana é mutável e, consequentemente, a
ciência também o é, o que exige uma flexibilidade no trato histórico ao analisar as correntes
mitológicas etnocêntricas, a teologia dogmática medieval e o positivismo cientificista
universalista contemporâneo, não impedindo novas formas interpretativas em busca de um
direito histórico-crítico.
A excessiva formalização e erudição do pensamento jurídico estancou a produção do
pensamento na área do direito. Hoje, novas escolas jurídicas confrontam com os modelos
liberais e patrimonialistas do direito, trazendo temas mais instigadores que devem responder
aos dilemas da contemporaneidade, tais como: bioética, agroecologia, múltiplas identidades,
realidade virtual, nanotecnologia etc. Wolkmer (2015) confere ao direito de propriedade, a
base angular do direito liberal individualista, o instituto mais precioso para a produção
legislativa legitimadora do sistema capitalista, distinguindo-se do sistema feudal que
mantinha um servilismo ao uso da terra; dando-lhe um caráter fragmentário e arrendatário.
Outro instituto poderoso é o contrato. A demonstração da vontade representada pela
autonomia individual. O jurista nos chama a atenção para o forte patrimonialismo, burocracia
e a tradição conservadora no direito brasileiro desde a época colonial (WOLKMER, 2015). O
colonialismo escravocrata fora objeto de uma intensa polêmica teórica e metodológica (modo
de produção escravista, Nelson Werneck Sodré, Ciro Flamarion e Jacob Gorender), a corrente
da análise de modelos das colônias integradas ao modo de produção capitalista (Caio Prado,
Roberto Simonsen). A solução wolkmeana parece ser acertada: a de que o Brasil, sendo
colonizado e centrado no cultivo de terras, transformou-se numa grande empresa extrativista a
serviço dos centros europeus. O latifúndio servindo ao mercantilismo emergente dos
lusitanos. (WOLKMER, 2015).
Que mão de obra é esta que servia aos interesses mercantilistas dos europeus? Ora,
índios, mestiços e negros compunham uma grande massa de trabalhadores escravizados e
espoliados nesse período. O tráfico negreiro foi o grande negócio da colonização. É
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importante lembrar que, ao tempo que o jurisconsulto do império Teixeira de Freitas fora
contratado para elaborar o anteprojeto do Código Civil, (que vigeu entre 1916 e 2001) foi
forçado a admitir que o negócio da escravidão não existia como instituição jurídica e que, era
necessário, no futuro, elaborar algo assemelhado a um Código Negro1.
Esta forte presença das elites agrárias e a relação com o mercantilismo emergente,
através de uma legislação (Ordenações e Leis do Reino) vão consolidar e influenciar
primeiramente, no Brasil, o aparecimento de um Estado intervencionista, centralizador dado à
sobreposição dos interesses privados em detrimento dos povos ligados à civilização africana e
indígena. Os confrontos com os ideais renascentistas, dados pela forte aproximação com os
ideais da contrareforma, segundo Wolkmer (2015), conferem à elite lusitana uma postura
conservadora, secundária frente ao cenário internacional. O anti-renascentismo pode ser
verificado pelos sermões dos padres jesuítas e pela prática inquisitória. Este quadro se altera
drasticamente com a reforma pombalina que, ao limitar o poder do clero, a partir de 1759,
abre espaço para uma burguesia ascendente e para a reforma educacional de caráter
anticlerical. Nesse mesmo período, abre-se um grande debate sobre os ideais iluministas (as
francesias) que irão influenciar o aparecimento do liberalismo português (WOLKMER, 2015,
pp. 57-59).
Ressalte-se que a força das ideias iluministas trará consigo um forte sentimento
libertário e influenciará muitas revoluções, rebeliões, inconfidências e motins no Brasil e no
mundo (Revolução Francesa, 1789; Revolução Americana, 1786; Revolução Haitiana, 1804;
Revolução dos Búzios, 1798 etc.). O pensamento jurídico brasileiro é considerado um núcleo
estratégico do que seria considerada a base do pensamento nacional. Paulo Margutti (2013)
nos oferta uma classificação para o pensamento filosófico no Brasil, onde vislumbramos uma
forte identificação com o pensamento político e jurídico. Daqui já localizamos as sementes de
uma futura história da filosofia jurídica no Brasil, africana e indígena, a partir dessas
classificações2. Surpreende-nos positivamente que Margutti (2013) nos apresente o primeiro
período de um pensamento pré-colonial representado pelos indígenas, expressa na visão de
mundo de caráter religioso, onde Monan e Maíra são as grandes divindades que alicerçam esta
cosmovisão nativa brasileira. Marguti, citando Viveiros de Castro, afirma que os Tupinambás
“acreditavam na imortalidade da alma, na determinação do destino post-mortem pela
qualidade de vida terrena e no fim apocalíptico do mundo”. (MARGUTTI, 2013, p. 181).
1 Sobre o Código Negro em Teixeira de Freitas “Cumpre advertir que não há um só lugar do nosso texto onde se
trata de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma exceção, que lamentamos, condenado a extinguir-se em época mais ou menos remota; façamos também uma exceção, um capítulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade: fique o estado da liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão, pois, classificadas à parte e formarão nosso Código Negro (FREITAS, 1957, p. 37).
2 Marguti, na obra História da Filosofia no Brasil, classifica em “período da pré-colonização (1500-1530), influenciada pela visão de mundo dos Índios; período Iluminista, influenciado pelos pensadores iluministas (1750-1822)”.
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A condição da caça e captura ao inimigo eram preponderantes para afirmar-se
matrimonialmente, valorizando os corajosos. Das mulheres também se exigia que passassem
por rituais de casamento e canibalismo como afirmadores de seu prestígio. A vingança
possuía um papel antropofágico e mágico, caracterizando o que Viveiros de Castro chama de
“religião da guerra” com seu líder espiritual (Caraíba ou Pajé-Açu) que, utilizando-se dos
maracás, da cauinagem e defumação, consolidava seu poder na comunidade.
“A mera descrição desses rituais revela um clima de religiosidade que foi reconhecido de maneira praticamente unânime pelos cronistas e viajantes quinhentistas, embora a maioria deles negasse paradoxalmente que os indígenas possuíssem alguma fé. Para a cultura Tupi-Guarani, o novo tempo aconteceria num momento determinado e teria uma localização específica. Seria um tempo de redenção dos homens e um lugar de grande abundância e felicidade, a ser habitado por homens-deuses, de algum modo personificados pelos profetas indígenas.” (MARGUTTI, 2013, p. 164).
Os indígenas acreditavam na existência da “terra sem mal”. Os deuses da “terra sem
mal” chegariam pelo grande oceano!3 Darci Ribeiro (1989, 1996)4 e Viveiros de Castro
(2002)5 e o próprio Margutti (2015, p. 184) falam dessa expectativa positiva por parte dos
indígenas quanto à chegada dos portugueses, convergindo naquilo a que chamaríamos de
assimilação cultural. Margutti considera o que Viveiros de Castro caracteriza como “impulso
alomórfico”. Fenômeno pelo qual os Tupinambás tinham o hábito de incorporar o outro para
possuir sua alteridade. Observamos este fenômeno no filme “Shaka Zulu”6 em que o rei dos
Zulus, supondo que iria possuir mais poder se apodera das tecnologias (língua, alimento,
indumentárias, saberes etc.) dos britânicos questionando a sua subalternidade e a
confrontando naquilo a que chamamos hoje de epistemicídio e na colonização violenta do
saber autêntico e original dos africanos.
Importa discorrer sobre o perspectivismo indígena, estudado por Viveiros de Castro e
trazido na obra de Margutti (2013). Este caminho metodológico encontrará repercussão na
abordagem afroperspectivista trazida por Renato Nogueira (2014). O perspectivismo indígena
não faz diferença hierárquica sobre os padrões de racionalização entre animais e humanos.
Entendendo que os animais são humanos que perderam algo, portanto, tudo é humano. Isso
3 Aqui se repete a saga do grande Kalunga para os Bacongos em que os deuses habitam o grande oceano e é
necessário atravessar a linha do grande oceano se quiser encontrar seu destino e o da sua comunidade. 4Ver Ribeiro, Darci, Mayra, Editora Record: Rio de Janeiro, 1989 e O Povo Brasileiro:a formação e o sentido do Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 1995/1996. 5 Ver, O Mármore e a Murta: sobre a Inconstância da Alma Selvagem. Cap. 4, pp. 183-264. In: VIVEIROS DE CASTRO, EDUARDO. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. 552 pp. Aqui vale identificar a resistência dos indígenas em “aprender” tudo como os Jesuítas os ensinavam e de como eles não abriam mão da vingança como resposta aos conflitos. 6 O Filme Shaka Zulu, 1986, retrata a história de Shaka Zulu, que foi um chefe militar que reinou entre 1816 a
1828 na região de Natal, a leste do Cabo, tendo se tornado uma lenda pela capacidade estratégica militar ao enfrentar os britânicos, ao tempo que, sua capacidade de convivência com os adversários pode ter custado o que chamamos hoje de colonização epistêmica. Transformou-se numa série televisiva, dirigida por William C. Faure e escrita por Joshua Sinclair.
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implica em pensarmos sobre a centralidade do humano em relação aos animais e dos animais
em relação aos humanos.
A existência de uma humanidade universal plasmada em vários corpos instila a
refletir sobre as leis fundamentais que regem os corpos existentes e isso nos leva a pensar,
sobre a produção de direitos e obrigações e sobre os pressupostos da norma como simulacro
de uma base confiável para erigir uma lei que deve ser aplicada a todos. A inversão apontada
pelos autores em que o espírito é, para os ocidentais, o caminho da afirmação da diferença,
distintamente dos indígenas que vê esta diferença apenas na existência dos corpos. A
espiritualidade, então não sugere maiores distinções naquilo que podemos chamar de uma
base normativa indígena, mas o será para os ocidentais. Ela conforma uma superioridade
sugerindo o modo etnocêntrico de pensar o mundo e as leis que o regem.
2. UMA ANÁLISE DE UMA PRODUÇÃO JURÍDICA: O RACISMO ESTATAL
O pensamento jurídico africano e afro-brasileiro são assuntos novos no debate sobre
as juridicidades no Brasil. Podemos encontrar fontes esparsas. Nada muito elaborado ou
aprofundado no repertório livresco nas livrarias e bibliotecas. Entre estas poucas obras quero
referir-me ao livro “Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial”, organizado por Flávia
Piovesan e Douglas Martins, através do Instituto Pro Bono (PIOVESAN, MARTINS, 2002)
que pode ser considerado um estudo inaugural, ao lado daqueles que foram pioneiros em suas
respectivas áreas, tais como: Joaquim Barbosa (2001), Adelino Brandão (2002), Hédio Silva
Júnior (2002), Dora Bertúlio (1889) e uma serie de pesquisadores/pesquisadoras que vem
pesquisando sobre o direito à igualdade étnico-racial em confronto a uma suposta norma
jurídica neutra e universal, e a necessidade de uma cultura jurídica pluri-normativa.
A existência de um dispositivo constitucional brasileiro que prevê em seu artigo 3º
parágrafo do art. 5º da Constituição Federal de 1988, uma linha interpretativa em que o direito
internacional através de seus tratados e convenções, integra o direito nacional, torna o
horizonte hermenêutico previsto no direito brasileiro mais amplo e plural, na área da garantia
dos direitos humanos.
Esta abertura possibilita a incorporação dos Tratados Internacionais ao direito
constitucional brasileiro em caráter material, tais como o que trata da Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial7 e aquele que trata dos Povos e Comunidades Tradicionais8.
Nesse caso, teríamos uma grande contribuição para a inscrição da igualdade material e do
reconhecimento da diferença ontológica e existencial de povos que foram subalternizados
pelo modelo estatal excludente europeu. Em diversas áreas da atividade humana e nas
7 Cf. ONU. Convenção Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial - Assembleia Geral das
Nações Unidas, 1966. 8 Cf. OIT. Convenção Sobre Povos Indígenas e Tribais - 169 da OIT/ONU de 1989. Promulgada pelo Decreto nº
5.051 de 19 de abril 2004. 208
respectivas áreas em que houve produção legislativa referente vamos encontrar fenômenos
colonizatórios combinado com os fenômenos raciológicos, quase sempre resultando em
exclusão e violência.
Vejamos, por exemplo, os casos do direito agrário e do direito penal: o primeiro,
iniciado no Brasil através do instituto das sesmarias. Este modelo era incompatível com o uso
privado e a presença de pagamentos para seu uso praticado pelos povos indígenas e africanos.
Já a Lei de Terras instituída de 1850 era dotada de dispositivos limitadores de acesso à terra
aos camponeses, quilombolas, indígenas etc., o que conferia um caráter pernicioso às políticas
abolicionistas. De um lado parecia conceder liberdade aos negros escravizados e seus
descendentes, ao mesmo tempo em que restringia, através de leis e procedimentos formais,
qualquer possibilidade de liberdade emancipatória através do acesso e uso da terra.
Na sequência, vamos ver que o direito agrário moderno9 encontra a mesma limitação
para garantir acesso e a permanência dos camponeses, indígenas e quilombolas e as diversas
comunidades tradicionais ao que poderíamos chamar de etnodesenvolvimento. As terras,
públicas, privadas e devolutas. Nesse caso, as terras de preto e as terras de povos e
comunidades tradicionais,10 tanto as de origem privada, quanto aquelas oriundas de terras
devolutas sempre dependeram da decisão do poder público para o seu reconhecimento. A
doutrina que orienta o uso da terra encontra na legislação maior um grau de antinomia jurídica
que possibilita, tanto o uso social, como o uso de bem de capital, o que sugere sempre a
existência de conflitos. O grau de produtividade da terra exigido para o reconhecimento e
aquisição de terras por parte daqueles que a reivindicam através da usucapião ou da ocupação
de natureza social vai de encontro com as experiências africanas na área rural em que o
aspecto comunitário e do uso coletivo é sua maior característica.
Por fim, importante considerar através dos estudos de Alfredo Wagner em que
considera que, em Estados como Bahia e Maranhão, o instituto do reconhecimento e titulação
das terras quilombolas traduzir-se-iam em verdadeira desconcentração de terras. Aqui, vale
afirmar que não apenas o direito seria confrontado através dos institutos do direito de
propriedade em detrimento da propriedade coletiva, e, por extensão, o modo de produção
econômica e o modelo de Estado Brasileiro.
2.1 Aspectos históricos das relações jurídico raciais no Brasil do período colonial
e período escravocrata
Estatuto de 1553 - Determinava que os mendigos seriam perseguidos, transferidos aos
tribunais do juiz de paz, fustigados até sangrar, e depois reenviados aos lugares de seu 9 Ver Estatuto da Terra; ver Decreto nº 3.912 de 2001. 10 A proteção legal aos Povos e Comunidades Tradicionais adveio do Decreto 6040/2007, uma lei inspirada na
Convenção 169 da OIT que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), coordenada pela SEPPIR.
209
nascimento; Ato de 1547 - Estipulava que qualquer homem que ficasse três dias sem trabalhas
seria marcado com ferro em brasa, depois entregue como servo por dois anos, seja ao
denunciante, seja à sua comuna de origem; Ordenações Filipinas (OF) (1603) - Publicadas por
determinação do Rei Felipe II de Portugal e da Espanha – quando os dois reinos eram unidos -
as ordenações em Portugal vigeram até metade do século XIX e no Brasil até a publicação do
Código Civil de 1916 (BRANDÃO, 2002); Em relação aos judeus e aos mulçumanos as
Ordenações Filipinas conservaram as mesmas discriminações das Ordenações anteriores
(Afonsinas e Manuelinas), tanto os judeus, como os mulçumanos eram mantidos fora dos
territórios portugueses por determinação das Ordenações. (BRANDÃO, 2002). O Livro II das
OF, Título V, § 1º, dizia o seguinte:
“[...] se algum Judeu, ou mouro ou outro infiel fugir para a igreja, acoutando-se nela, não será por ela defendida, nem gozará de sua imunidade, porque a Igreja não defende os que vivem debaixo de sua lei, nem obedecem seus mandamentos. ”(BRANDÃO, 2002).
O Livro V das Ordenações Filipinas, Título I (dos hereges e dos apóstatas), §4º -
trata da discriminação religiosa no direito penal e direito punitivo:
“[...] se algum cristão leigo, quer antes fosse Judeu ou Mouro, que nascesse cristão se tornar Judeu, ou Mouro, ou outra seita, e assim lhe for provado; nós tomaremos conhecimento dele e lhe daremos a pena segundo o Direito.” (Idem).
Pelas mesmas razões, punia-se de morte o cristão (homem ou mulher) que
voluntariamente, dormisse com “infiel”, ou com este tivesse relações carnais. O “infiel”
sofreria igual castigo. (Idem). As Ordenações também adotavam discriminações contra
determinadas nacionalidades e minorias étnicas, particularmente contra os ciganos, armênios,
árabes, persas, como se verifica no Título LXIX:
“Mandamos, que os Ciganos, assim homens, como mulheres, nem outras pessoas, de qualquer Nação, que com eles andarem, não entrem em nossos Reinos e Senhorios. E entrando, sejam presos e açoutados com baraço e pregão.” (Idem).
Muitos autores modernos afirmam haver em Portugal à época das Ordenações um
“preconceito de sangue” que teria se manifestado sobre a forma de um “racismo
camuflado”, iniciando no século XVI e perdurando até a segunda metade do século XVIII,
por isso na maioria das Ordens e irmandades exigia investigação nos antecedentes raciais dos
candidatos, até à 4ª geração (Idem); Em 1538, com o desenvolvimento da agricultura
canavieira, o rei de Portugal concedeu a cada senhor de engenho o privilégio de importar
210
escravos africanos da Guiné e da Ilha de São Tomé, até o limite de 120 indivíduos para cada
engenho (Idem);
Vale ressaltar a criação de uma estrutura burocratizada a serviço do império luso na
colônia deu azo a uma artificializada maneira de praticar uma “legalidade costumeira”11 e
uma “discriminação institucionalizada”12 a serviço da elite com o beneplácito do poder
judicial, nesse caso, o Tribunal de Relação criado em 1609. A Cidade de Salvador era o
principal porto das Américas, e precisava de um órgão que oficializasse as medidas políticas
de interesse do império português. O intuito era combater o comercio ilegal e oficializar
medidas contra os invasores e contra os segmentos da população que não fossem cristãos ou
ligados às etnias dos colonizadores. O fato do Direito Romano possuir uma predominância
sobre as bases da legislação portuguesa no Brasil facilitava uma hermenêutica costumeira
dada às conveniências e oportunismos de uma elite corrupta e eugênica.13
3. A CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS CIVIS NO IMPÉRIO E O CÓD IGO NEGRO
O Brasil nunca possuiu um Código Negro que regulasse os direitos e
comportamentos dos senhores em relação aos seus escravos. Esse comportamento era regido
pelas Ordenações de Portugal (MOURA, 2004).
Em 1857, o Governo Imperial mandou publicar, com aditamentos, a Consolidação
das Leis Civis, o qual Teixeira de Freitas foi o encarregado de produzir. Na introdução dessa
edição oficial, lê-se:
“Cumpre advertir que não há um só lugar no texto onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas esse mal é má exceção que lamentamos, e que já está condenada a extinguir-se em uma época mais ou menos remota. Façamos uma exceção, um capítulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade; fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão serão, pois,
11“Nossa premissa básica nesta pesquisa é de que o governo e a sociedade no Brasil colonial estruturam-se a partir de dois sistemas interligados de organização. Em um nível havia a administração controlada e dirigida pela metrópole, caracterizada por normas burocráticas e relações impessoais, que amarrava os indivíduos e os grupos às instituições do governo formal. Paralelamente, existia uma teia de relações interpessoais primárias baseadas em interesse, parentesco ou objetivos comuns que, embora não menos formal, não contava com o reconhecimento oficial”. In Stuart B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, Editora Perspectiva: São Paulo, 1979, Prefácio p. xi. 12“A política portuguesa era discriminatória. Só aceitava como membro das ordens militares, só concedia o título de fidalgo e a maior parte dos cargos governamentais aos antigos cristãos que não tivessem mancha da ‘raza de Judeu, Mouro ou Mulato’”. In Stuart B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, Editora Perspectiva: São Paulo, 1979, Pág. 87. 13“...os magistrados da Relação eram todos cristãos antigos, de passado imaculado, sobre quem nunca fora aventada a hipótese de serem judeus. Portanto, esses magistrados representantes de uma política real discriminatória encarnavam controles mais rígidos e condições mais difíceis para os cristãos-novos da Bahia. A bem da verdade, contudo, convém lembrar que uma das mais judiciosas, embora crítica, discrições da Relação foi escrita por um cristão-novo, Ambrósio Fernandes Brandão”. Ibidem págs. 89/90)
211
classificadas à parte e formarão o nosso Código Negro.” (MOURA, 2004).
Não há registro histórico da elaboração deste Código Negro. (MOURA, 2004).
3.1. A escravidão e o sistema jurídico
O escravo não chegou a ser apenas uma coisa (res). A sua condição servil lhe traçava
um círculo de ferro que não podia ultrapassar, sob pena de nenhum efeito, no campo civil e
punições pessoais, severas, no domínio penal. Este com dupla face: um oficial, estatal,
consubstanciada no chamado Código Negro, em que estavam previstos ilícitos penais que
tivessem por agente responsável o indivíduo escravo, e as punições respectivas.
O princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei inexistia para os
escravos. (BRANDÃO, 2002). Não havendo disposições especiais sobre o enquadramento
dos escravos nos textos jurídicos, prevaleciam, nos casos mais comuns, os Códigos de
Posturas Municipais, conjunto de normas baixadas pelas Câmaras para obediência dos
munícipes. (MOURA, 2004).
Quadro 1 - Códigos de Postura Municipal
CÓDIGOS PRINCIPAIS ARTIGOS
Código de Postura Municipal da Província do Pará, de 29 de novembro
de 1848:
Artigo 33 – Toda pessoa que se intitular pajé, ou que a pretexto de tirar feitiço, se introduzir em qualquer casa, ou receber na sua casa alguém para simular cura, ou para fazer adivinhações e outros embustes incorrerá na multa de vinte mil réis, ou oito dias de prisão em qualquer dos casos. [...]. Artigo 82 – Os donos, ou administradores de qualquer casa de venda não consentirão aí ajuntamento de mais de dois escravos, nem batuques, ou vozeira deles dentro de casa, ou em frente dela. O infrator incorrerá na multa de dez mil réis ou quatro dias de prisão. [...]. Artigo 105 – Ninguém poderá alugar casas para nelas morarem escravos, sem que obtenha licença por escrito dos seus senhores, sob pena de incorrer o infrator na multa de dez mil réis, ou quatro dias de prisão. [...]. Artigo 107 – Toda pessoa que for convencida a ter notícia ou mesmo conhecimento da existência de algum mocambo de pretos fugidos e o não tiver comunicado à autoridade competente mais próxima e aos senhores incorrerá na multa de dois mil réis, ou oito dias de prisão. [...].
Código de Postura Municipal de Bananal no
Estado de São Paulo, de 31 de março de 1863
Artigo 1º - Nenhum negociante dentro e fora da cidade poderá vender a escravos, pólvora, chumbo, ou qualquer espécie de projétil ou arma de fogo de qualquer qualidade, salvo tendo os mesmos escravos bilhetes de seus senhores, pedindo tais objetos.
Código de Postura Municipal de Serra Negra
de 15 de abril de 1863.
Artigo 26 – É proibido dentro da vila a dança do batuque, e em geral todo ajuntamento ou algazarra e vozerias. Se, porém, este for escravo, serão recolhidos à cadeia. [...]. Artigo 70 – Todo o senhor que abandonar escravos doentes de moléstia morfética, e que consenti-los mendigar, pagará 30$000 de multa, além disto será obrigado a recolhê-los em casa separada, a sustentá-los e vesti-los. (Clóvis Moura, 2004)
Código de Postura Municipal de Indaiatuba
de 15 de abril de 1863
Artigo 40 – Ninguém poderá comprar de escravos sem bilhetes do seu senhor, os seguintes gêneros: café, açúcar, chá, aguardente
Fonte: Elaboração do autor, a partir de MOURA (2004)
3.2. Leis, Instituições e Documentos Racistas do Império
A Constituição Imperial de 1824 - Repetiu o repertório da Constituição Portuguesa “a
lei será igual para todos”, na prática esse “todos” não incluíam os escravos, essa omissão
permitia que os governos provinciais como o de Sergipe adotarem medidas discriminatórias, 212
como se vê o do decreto de 20 de março de 1838: “fica proibido de frequentar as escolas
públicas todas as pessoas que padeçam de moléstias contagiosas; os africanos, quer livres
quer libertos” (BRANDÃO, 2002);
Lei nº 9 de 13 de maio de 1835, dispunha contra os africanos libertos - Inseriu uma
série de medidas discriminatórias tomadas contra os africanos, após a Grande Insurreição de
1835 em Salvador/Ba. Essas medidas perduraram por cerca de quarenta anos, sendo
revogadas apenas em 28 de junho de 1872, pela resolução nº 1.250 (MOURA, 2004). Esta lei
dizia em seu artigo 176 que era proibido aos africanos adquirir bens de raiz e anulava os
contratos já celebrados. Os africanos libertos colocavam então seus bens fundiários em nome
de terceiros (Idem). No artigo 8º dizia que os africanos deveriam pagar anualmente uma taxa
de mil réis, sob pena de serem presos por até dois meses (Idem);
Instituto dos advogados brasileiros do Brasil Império - Também chamado casa de
Montezuma, foi fundado em 1843 (PENNA, 2001);
Montezuma, Leis Antitráfico - O tratado de Aliança e Amizade entre o Príncipe
Regente D. João VI e Jorge III da Inglaterra prometia abolição gradual do tráfico de escravos,
daí surgem o Tratado de Viena (1815), abolindo a o tráfico na costa da África ao norte do
Equador, e a Lei Eusébio de Queiroz (1850) que proíbe o tráfico na costa brasileira.
(MOURA, 2004);
Lei nº 4 de 10 de junho de 1835 - Dispunha contra as revoltas de escravos e codificava
as penas por tudo que julgasse ser crime ou insubordinação (MOURA, 2004);
3.3. A escravidão, as guerras e as negociações
A revolução Farroupilha foi um movimento armado, com início no Rio Grande do
Sul (1835-1845) liderados por estancieiros gaúchos contra o governo imperial de D. Pedro II.
O escravo negro colaborou militarmente com os primeiros insurretos, esteve a par dos
segredos e das senhas revolucionárias e tomou parte no movimento republicano contra o
império. Essa eficiência militar do negro escravo e do negro em geral levou o governo
imperial a baixar uma determinação, datada de 19 de novembro de 1838, mandando açoitar
os escravos engajados nas hostes farroupilhas quando caíssem prisioneiros:
Artigo 1º - todo escravo que for preso e tiver feito parte das forças rebeldes será logo ao, ou no lugar mais próximo em que possa ter lugar, correlacionalmente punido com duzentos a mil açoites, por ordem da autoridade militar ou civil independentes do processo (MOURA, 2004).
Esta postura totalizante do Estado Português no Brasil através de um governo
centralizado, hierárquico e eugenista produziu um bem orquestrado repertório legislativo e
institucional a serviço das políticas racialistas consolidando no Brasil moderno uma violência
material e institucionalizada preconizando aquilo que iremos chamar na atualidade de racismo
institucional. Nesse contexto, observa-se que foram realizadas diversas negociações e 213
tratativas para a garantia de direitos de caráter emancipatório desses segmentos
subalternalizados.
3.4. Instrumentos Jurídicos Abolicionistas e Movimentos Sociais
Tratado de Ponho Verde de 1º de março de 1845 - É o nome dado a um acordo que pôs
fim à Revolução Farroupilha e à República Rio-Grandense, voltando o território litigante a
fazer parte do Império do Brasil, de D. Pedro II e no Art. 7° diz que está garantida pelo
Governo Imperial a liberdade dos escravos que tenham servido nas fileiras republicanas;
Revolta dos Malês ou Insurreição (1835) - Havia uma diversidade étnica muito grande
entre os seus participantes, embora seja incontestável a hegemonia nagô. Há um componente
sociológico que deve ser levado em consideração, a população negra rebelde era bastante
diversificada. Sabe-se da participação de iabus, benins, minas, jejes, mundubis, tapas, bornus,
baribas, grumas, calabares, camarões, congos e cabindas. Não foram só os líderes religiosos
tradicionais que se reuniram no Cruzeiro de São Francisco, ou no Gravatá, fazendo suas
prédicas corânicas que lideraram o movimento. Os candomblés também foram locais de
organização pré-insurreicional (MOURA, 2004);
Revolta dos Alfaiates ou Conjuração Baiana (1798) - Foi um movimento de caráter
emancipacionista, ocorrido no ocaso do século XVIII, na então Capitania da Bahia. Os
revoltosos pregavam a libertação dos escravos, a instauração de um governo igualitário (onde
as pessoas fossem vistas de acordo com a capacidade e merecimento individuais), além da
instalação de uma república na Bahia e da liberdade de comércio e o aumento dos salários dos
soldados. Tais ideias eram divulgadas, sobretudo pelos escritos do soldado Luiz Gonzaga das
Virgens e pelos panfletos de Cipriano Barata, médico e filósofo;
Decreto nº 1303 de 28 de setembro de 1853 – Emancipa os africanos “livres” mediante
trabalho forçado durante 14 anos;
Lei Nabuco de Araújo de 5 de junho de 1854 - Intensificou a repressão ao tráfico
negreiro;
Decreto nº 1.331de 17 de fevereiro de 1854 - Estabelecia que nas escolas públicas do
país não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros dependia da
disponibilidade de professores;
Decreto 3.310 de 24 de setembro de 1864 - Libertou os africanos que trabalhavam em
estabelecimentos públicos findo o prazo de trabalho, num sistema de liberdade vigiada da
época;
Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, Lei do Ventre Livre, ou Lei do Nascituro, ou
Lei Rio Branco - No Brasil valia a norma partus ventre sequitur, ou seja, o filho do ventre
escravo continua sendo escravo, porém o mesmo não acontecia quando um escravo fazia um
filho numa mulher livre. (MOURA, 2004);
214
Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885, Lei do Sexagenário ou Lei Saraiva Cotegipe:
“Artigo 3º - §10 - São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta lei, ficando, porém, obrigados a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos; §11- Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado; §12 - É permitida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente à metade do valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 anos de idade; §13 - Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço de que trata o §10º, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de o fazer; §14 - É domicílio obrigado por tempo de cinco anos, contados da data da libertação do liberto pelo fundo de emancipação, o município onde tiver sido alforriado, exceto o das capitais; §15 - O que se ausentar de seu domicílio será considerado vagabundo e apreendido pela polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas.”;
Código Criminal do Império (1831) - Condenava à pena mínima de galés por 15
(quinze) anos, o escravo que liderasse uma rebelião, para obter a liberdade, por meio da força
(artigo 113); a pena era a morte. (Adelino Brandão, 2002);
A lei n.º 3.310, de 15 de outubro de 1886 - Revogou o artigo n.º 60 do Código
Criminal do Império, de 16 de dezembro de 1830, e revogou também a lei n.º 4, de 10 de
junho de 1835, na parte em que impõem a pena de açoites, e determinou que: “ao réu escravo
serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Código Criminal e mais legislação em
vigor para outros quaisquer delinquentes”. Era permitido, pelo artigo 14 do Código Criminal
do Império, apenas castigos moderados aos escravos, castigos estes que passaram a serem
proibidos pela citada lei n.º 3.310 de 1886: “Art. 14 - Será o crime justificável, e não terá
lugar a punição dele: (...) 6.º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem
a seus filhos, os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discípulos; ou desse castigo
resultar, uma vez que a qualidade dele, não seja contraria às Leis em vigor”;
Decreto nº 7.031-A de 06 de setembro de 1878 - Estabelecia que os negros só podiam
estudar no período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o
acesso pleno dessa população aos bancos escolares; Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888, Lei
Áurea – Declara extinta a escravidão no Brasil;
No período imperial localizamos as chamadas negociações sobre direitos frente à
escravidão e a opressão, estudadas por João José Reis e Eduardo Silva no livro Negociação e
Conflito (REIS, SINVA, 1989). Já Silvia Lara e Joseli Maria Nunes, em Direito e Justiça no
Brasil nos apresenta um fabuloso estudo sobre os arranjos e pressões para a conquista de
direitos, ora, valendo-se da lei, ora através de alianças, ora, produzindo direitos incomuns
215
(LARA, NUNES, 2006). Os autores dessa coletânea desenvolvem hipóteses sobre direito e
justiça e demonstram a ambiguidade, o conflito e as contradições dessas negociações.
Quadro 2 - Repertório legal das constituições republicanas brasileiras de 1891, 1934 e 1937
CONSTITUIÇÃO/PERÍODOS
1891 1934 1937
PO
LÍT
ICA
S N
EG
AT
IVA
S
Artigo 70 § 2º Não podem alistar-se
eleitores para as eleições federais ou para os Estados:
1º Os mendigos; 2º Os analfabetos. (HÉDIO Jr.,
2002)
PRECEDENTE:
Decreto nº 19.482/1930– Lei dos 2/3 políticas de
nacionalização.
POLÍTICA DE EUGENIA:
Artigo 121 § 6º A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as
restrições necessárias à garantia da integração ethinica e capacidade
physica e civil do imigrante...” (HÉDIO JR.,
2002).
Artigo 138 “Incumbe à União, aos
Estados e aos Municípios, nos termos das leis
respectivas: b) estimular a educação eugênica” (HÉDIO
JR., 2002).
DESDOBRAMENTOS:
Código Penal da República, revogado em 1941 –
criminalizava a capoeira (HÉDIO JR., 2002)
Decreto-lei nº 3.992 de 30 de
dezembro de 1941 Dispõe sobre estatísticas
criminais, prescreve ainda que de modo semidissimulado, a
classificação racial de vítimas e acusados, por meio do critério da
cor. (HÉDIO JR., 2002)
Decreto nº 3.688/1941, art. 60 Lei da mendicância (existiu até o dia 17.07.2009, quando surge a lei
nº 11.893/2009 que a revogou).
Decreto-lei nº 7.967/45, artigo 2º: “Atender-se-à, na dimensão de imigrantes à necessidade de preservar e desenvolver, na
composição étnica da população, as características mis convenientes da sua ascendência européia” (HÉDIO
JR., 2002)
PO
LÍT
ICA
S N
EG
AT
IVA
S
Artigo 72 § 2º “Todos são iguais perante a lei. A República não admite
privilégio de nascimento, desconhece foros de
nobreza, extingue as ordens honoríficas existentes e
todas a s suas prerrogativas e regalias bem como os
títulos nobriliarchicos e os de conselho.” (HÉDIO JR.,
2002)
Artigo 113, 1. “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideais
políticas.” (HÉDIO JR., 2002)
Artigo 122, 2. “Todos são iguais perante a lei.”
(HÉDIO JR., 2002)
Fonte: Elaboração do autor com base em Hédio Jr. (2002).
O tópico a seguir, releva aspectos históricos das relações jurídico raciais no Brasil do
Período pós-abolicionismo (segunda metade do Séc. XIX e início do Séc. XX), permitindo
uma comparação das políticas afirmativas para brancos com as racistas contra os negros
(ascensão dos brancos vs. limitação dos negros).
3.5. Relações Jurídico-Raciais Pós-Abolicionismo
Lei nº 5.465 de 1968, “Lei do Boi”- Ações afirmativas para descendentes de
fazendeiros. Dispõe sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola; 216
Lei nº 528, de 28 de junho de 1890 – Abria o Brasil para todas as pessoas válidas e
capazes para o trabalho, desde que não estivessem sob processo criminal em seus países de
origem, “com exceção dos africanos e asiáticos” (SCHWARCZ, 1993);
Lei nº 97 de 5 de outubro de 1892 - Sancionada pelo senador Floriano Peixoto, esta lei
permitia a livre entrada de imigrantes. Os imigrantes asiáticos eram entendidos como
inassimiláveis, portadores de línguas e costumes estranhos aos nossos, praticantes do suicídio
e do ópio14 (SCHWARCZ, 1993);
Assembleia Constituinte (1933-1934) - Recebeu os resultados dos trabalhos da
Comissão de Imigração, liderada por Oliveira Vianna e formada dois anos antes. Mais política
do que racial, a Lei de Restrição a Imigração afetou a entrada de asiáticos e judeus,
denominados pelos eugenistas como não-assimiláveis. (DIWAN, 2007);
Lei nº 3.097/1972 do Estado da Bahia (vigeu até 1976) – Exigia que os templos de
religião de matriz africana fossem cadastrados na Delegacia de Polícia da circunscrição na
qual estivessem instalados;
Lei nº 1.390 de 3 de julho de 1951 - Afonso Arinos - Torna a prática do racismo
contravenção penal. A lei surge no contexto da Constituição Republicana de 1946;
Lei anti-genocídio: Lei nº 2.889/1965 - Define o crime de genocídio e pune a
destruição no todo ou em parte de grupo nacional étnico, racial ou religioso.
4. CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE DO RACIALISMO NO ORDENAME NTO JURÍDICO BRASILEIRO
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT/ONU sobre
Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989, promulgada pelo
Estado Brasileiro através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 200215 se apresenta
nesse contexto, onde critérios hermenêuticos mais complexos tiveram que ser adotados pelas
cortes internacionais e pelos países colonizados para localizar modos de aplicabilidade de
resolução de conflitos preservando-se a autonomia e os costumes dos povos indígenas e
tribais e, por conseguinte, no Brasil, as comunidades e povos tradicionais16.
14 O jornal Correio Paulista, em 19 de julho de 1892, assim se referia aos chineses: “O que são os chineses... os
escravos com todos os horrores e vícios não foram tão perniciosos como a contratação dos chineses... O negro só sabia ser sensual idiota, sem a menor idéia de religião... Já os chineses são gente lasciva ao último grau, escoria acumulado de países de relachadíssimos costumes... São todos ladrões, jogadores a um grau incompreensível... Admitindo a possibilidade de introduzir esses leprosos de alma e corpo quanto gastará o Estado de São Paulo em cárceres com o aumento de criminalidade.” (SCHWARCZ, 1993).
15“Artigo 9º: 1. Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionais reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos para lidar com os delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados. 2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas autoridades e tribunais no processo que julgarem esses casos. Artigo 10º 1. No processo de impor sanções penais previstas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração. 2. Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento”. Decreto Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002. Cf. Convenção 169 - Sobre Povos Indígenas e Tribais – OIT promulgada pelo Decreto n. 5.051 de 19 de abril 2004. 169 da OIT/ONU de 1989. 16 Ver art. 216 da CF/1988 e Decreto 4887/2003 e Decreto 6040/2007.
217
Nesse aspecto, a área penal foi a que mais teve que se acomodar com os métodos de
resolução de conflitos e condutas antissocial. Qual lei aplicar em casos de condutas antissocial
nos países colonizados, o Common Law, o sistema latino, as medidas de legislação de cada
localidade ou os costumes? Esta combinação ao sabor da política e dos interesses poderia
traduzir-se numa fragilidade das instituições e dos segmentos envolvidos.
Um dos desafios do pluralismo jurídico em um país como o Brasil consiste em
entender as diversas formas de lidar com costumes originados do processo civilizatório
africano em conformidade com o direito germano-românico, fenomenológico e culturalista do
direito brasileiro. As comunidades tradicionais e as referências mais ancestralizadas dão conta
de que os valores e noções de justo tem sempre acompanhado das noções de integração e
comunhão com a natureza, uso comunitário da propriedade, famílias extensas etc. Estes
valores em diversas ocasiões põem em xeque o discurso da efetividade e da segurança jurídica
como alicerces de um sistema jurídico.
Vê-se que há muito por pesquisar e reescrever na memória do tempo que se vive
enquanto ação para o tempo presente. Já chamamos a atenção para a adoção de outras chaves
de leitura do processo civilizatório africano no Brasil, o que impediria constatação ainda
recheada de etnocentrismos e daria espaço para superarmos certas assertivas sobre o
animismo, o atavismo e o primitivismo que muitos pensadores no Brasil atribuem a estas
civilizações.17
Seguindo a linha interpretativa e dialogando com as obras de Margutti (2014),
Nogueira (2014), Oliveira (2007, 2002), Santos (2004), Gonzalez e Wolkmer (2015),
Ludwing (2006) nos aproximamos da necessidade de pensar os pressupostos para um
pensamento jurídico no Brasil a partir da experiência africana e indígena. Wolkmer nos dá
uma senha importante para este caminho ao nos dizer que
“ [...] reconhece-se, ademais em toda esta situação, uma espécie de tradição jurídica de cunho pluralista, ou seja, a par do modelo jurídico vigente e colonizador, a tolerância deste e sua convivência com certas práticas locais flexíveis, paralelas e casuísticas”. (WOLKMER, 2015, p. 63)18.
17“Uma outra ordem de valores decorrentes de um “mundo” ainda que sincrético, ressignificado e
reconceitualizado guarda menções que podem ser facilmente identificadas como oriundas da contribuição civilizatória de certos povos africanos no Brasil. Valores como os de restituição, integração, complementariedade, ancestralidade; comunhão nas relações com a natureza; ênfase no corpo sacralizado; noção de felicidade dramatizada em festejos; sublimação do sentimento de culpa e de pecado são aspectos que conformam uma narrativa mítico/ética distinta, em muitos aspectos, da tradição judaico-cristã. Esses valores chocam-se com o ideário da identidade nacional e com o ordenamento jurídico vigente” (SÃO BERNARDO, 2016, p. 109).
18Wolkmer observa sobre a prática jurídica no período colonial: “Ora, esta prevalência de direitos particulares independentes do direito oficial português propiciava o desenvolvimento de um ‘direito próprio colonial”, esporadicamente distinto ou mesmo antagônico ao direito e à justiça estatista da Metrópole. Tal realidade pluralista mereceu interpretação de António Manuel Hespanha, ao defender a existência de um “direito colonial brasileiro”, ou seja, a autonomia de um direito (que) não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de preencher os espaços jurídicos de abertura ou indeterminação existentes na própria estrutura do direito comum. (WOLKMER, 2015, p. 63).
218
Os direitos costumeiros, face ao caráter híbrido e frágil da estrutura jurídica do
Estado brasileiro, fortaleciam certos arranjos em nome de um poder local hegemonizado por
colonos livres em detrimento dos saberes e práticas ético-jurídica-normativas dos africanos e
indígenas.19 Wolkmer vai nos lembrar desta marginalização, ao tempo que, constata a
existência de uma ordem jurídica distinta, demonstrada pela ambivalência do Estado
português e brasileiro. A lei dos coronéis, por exemplo, era tolerada, como um direito
costumeiro em contradição com o direito oficial, ao tempo que o direito comunitário dos
povos africanos e indígenas não o eram reconhecidos:
“Sob tal prisma é essencial o resgate histórico de um pluralismo jurídico comunitário, localizado e propagado através das ações legais associativas no interior dos antigos “quilombos” de negros e nas reduções indígenas sob a orientação jesuítica. Ora, os “quilombos” se constituíram em pequenas comunidades rurais povoadas por escravos negros fugidos das fazendas que buscavam defender-se da dominação e repressão colonial. Eram organizados livremente e de forma autossuficiente, baseados na ocupação da terra, na propriedade coletiva, na agricultura de subsistência e na luta armada” (WOLKMER, 2015, p. 65).
Este caráter híbrido, ambíguo e culturalista encontra repercussão na tradição jurídica
brasileira. O modus operandi das decisões jurídicas, sempre a serviço das elites econômicas,
impôs a interpretação jurídica como recurso da negociação ideológica e política. Como já
afirmamos anteriormente o rigor da “norma pura” estaria encontrando nos trópicos uma
leitura “moralizante, culturalista e espiritualista em nome da aplicação tradicional dos
direitos humanos” (SÃO BERNARDO, 2016, p. 131).
Este é o caminho que estamos seguindo para a afirmação futura de uma emergente
cultura ético-jurídica em favor dos povos indígenas e africanos. O valor da civilização
africana para a criação de uma teoria sobre o sistema normativo africano e diaspórico deve
orientar uma cultura política mais ampla em nome da afirmação de direitos humanos.
Não existe dúvida de que, a mercê das nossas heranças romano-germânicas e seus
corolários ético-normativos, referendados nos saberes desses povos, o que devemos fazer,
logo de início, é entender porque os procedimentos associados ao modo de vida, propriedade,
família, parentesco, sucessão, matrimônio, delito, sexualidade, organização política e
econômica, dos romanos e germânicos, muitas vezes cristalizados em seus provérbios e
axiomas, não podem ser também referenciados pelos mesmos procedimentos associados aos
axiomas e provérbios africanos e diaspóricos para a leitura de um direito plural e legítimo no
Brasil.
19 Ver Schwarcsz “Diferentemente dos lavradores, parecia não haver muita oportunidade para os trabalhadores assalariados de atingir um cargo público. Portanto, dentro da estrutura sócio-economica básica de senhores e escravos, havia outros elementos importantes da sociedade que procuravam melhorar sua posição através dos canais judiciais e políticos do governo. Uma das maneiras de avaliar o impacto da Relação no Brasil é pela determinação do quanto ela correspondeu aos anseios de vários grupos”. (Pág. 95)
219