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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL CNPEPI

III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA ... · Ives Gandra da Silva Martins Objetivos de uma Política Externa do Brasil em Relação à Amazônia: Proposta para

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE

POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA

INTERNACIONAL – CNPEPI

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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Ministro de Estado Embaixador Celso AmorimSecretário-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO

Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

Instituto de Pesquisade Relações Internacionais

Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim

A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculadaao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civilinformações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomáticabrasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para ostemas de relações internacionais e para a política externa brasileira.

Ministério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo, Sala 170170-900 Brasília, DFTelefones: (61) 3411-6033Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

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Brasília, 2009

III Conferência Nacional dePolítica Externa e PolíticaInternacional – CNPEPI

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Direitos de publicação reservados à

Fundação Alexandre de GusmãoMinistério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 3411 6033/6034Fax: (61) 3411 9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conformeLei n° 10.994, de 14/12/2004.

Capa:Aldemir Martins, Sertão de TimbaúbaOST, 1973in Odorico Tavares a minha casa baiana sonhos edesejos de um colecionador.

Equipe Técnica:Eliane Miranda PaivaMaria Marta Cezar LopesCíntia Rejane Sousa Araújo GonçalvesErika Silva NascimentoJuliana Corrêa de FreitasJúlia Lima Thomaz de Godoy

Programação Visual e Diagramação:Juliana Orem e Maria Loureiro

Impresso no Brasil 2009

CDU 327(81)

Conferência Nacional de Política Externa e PolíticaInternacional : (3 : Rio de Janeiro : 8 e 9 de dezembro de2008) III CNPEPI : O Brasil no mundo que vem aí. -Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

440p.

1.Política externa - Brasil. 2. Política internacional -Brasil. I. Título. III. Título: o Brasil no mundo que vem aí.

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Abertura

Apresentação, 9Embaixador Jeronimo Moscardo

Palestra do Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 11Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães

Primeira Sessão: Estados Unidos

O Brasil e a Política Externa dos EUA no Governo Obama, 19Antonio de Aguiar Patriota

A Configuração Mundial do Poder, a Nova Hegemonia Norte-Americana e Novo Governo Obama, 33Gilberto Dupas

Segunda Sessão: América Latina e Caribe

A América Latina e o Caribe; e o Brasil, 53Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

América Latina no presente Sistema Internacional, 61Helio Jaguaribe

América Latina e Caribe : Nova Fronteira da Política Externa Brasileira, 73Marcel Biato

Sumário

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Terceira Sessão: Europa

Uma Europa mais Transparente, 89Franklin Trein

Brasil - União Europeia: Uma Parceria Estratégica, 121Maria Edileuza Fontenele Reis

Quarta Sessão: África e Oriente Médio

Instabilidade Política Moderna nos Países que Correspondem aos ÚltimosImpérios Coloniais Europeus. Exemplos do Oriente Médio e Comparaçãocom a África, 141Affonso Celso de Ouro Preto

A África entre o Atraso e o Desenvolvimento no Período Pós-Crise Global, 157José Flávio Sombra Saraiva

Cooperação Sul-Sul: a Experiência de Cooperação Internacional em Saúdedo Brasil com Países da África, 171Paulo M. Buss e José Roberto Ferreira

Quinta Sessão: Rússia

A Nova Rússia sob Medvedev e Putin, 191Angelo Segrillo

Considerações sobre a Situação Atual da Rússia: Desafios, Perspectivas, 203Daniel Aarão Reis

Sexta Sessão: China, Índia e Japão

China, Índia e Japão no mundo que vem aí, 227Amaury Porto de Oliveira

BRICS, the Chinese Engine, and the Humbling of Market Fundamentalism,245Glauco Arbix

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Sétima Sessão: Amazônia

Amazônia : os Desafios de uma Região Complexa e Dinâmica, 263Adalberto Luis Val

Amazônia: Políticas e Estratégias, 277Adherbal Meira Mattos

A Ocupação da Amazônia, 293Adriano Benayon

Manaus, Cidade Mundial para Prestação de Serviços Ambientais: UmaProposta, 317Bertha K. Becker

Amazônia: Desafios e Soluções, 339Eduardo Dias da Costa Villas Bôas

Reflexões sobre Cultura, Soberania e Patrimônio Genético na Amazônia, 359Ennio Candotti

Amazônia, 375Ives Gandra da Silva Martins

Objetivos de uma Política Externa do Brasil em Relação à Amazônia: Propostapara Discussão, 385José Alberto da Costa Machado

Amazônia: Reflexões sobre sua Problemática, 407Leonidas Pires Gonçalves

Lista de Participantes, 421

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Apresentação

A Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional "OBrasil no Mundo que vem aí" tem como objetivo promover o diálogo sobrenossa agenda de política externa, com a participação da comunidadeacadêmica, diplomatas, jornalistas e representantes da sociedade em geral.

Na sua III edição, a Conferência tratou dos seguintes temas: EstadosUnidos, América Latina e Caribe, Europa, África e Oriente Médio, Rússia,China, Índia, Japão e Amazônia.

A Conferência sob menção pretende transformar-se nos estados-geraisdas relações internacionais no Brasil e inspira-se na convicção de que asociedade sabe mais e pode mais que a burocracia governamental.

Embaixador Jeronimo MoscardoPresidente da Fundação Alexandre de Gusmão

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Palestra do Senhor Secretário-Geral dasRelações Exteriores, Embaixador SamuelPinheiro Guimarães

Bom dia a todas e a todos. É um prazer muito grande estar aqui hojepara a Abertura da III Conferência sobre Política Externa e PolíticaInternacional, organizada pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo Institutode Pesquisa de Relações Internacionais, com um tema muito oportuno: “OBrasil no mundo que vem aí”. Eu fui convidado para dizer algumas palavras eprometo não me alongar muito para que possam logo ouvir os debatedores.

Vou falar um pouco sobre aquilo que possa ser chamado de “saída paraa crise”, a saída pela política. Primeiro, eu queria falar sobre a dinâmicainternacional dos últimos 20 anos porque é preciso ter algum tipo de visãohistórica para a situação que nós vivemos no momento. A situação que nósvivemos no momento não caiu do céu, não é algo inesperado que, de repente,cai do céu sobre nós e ficamos perplexos. Não é isso. As diversas crisesatuais são fruto de um processo de evolução nos últimos anos, nas últimasdécadas. Nós podemos caracterizar esse processo por alguns aspectos.

Primeiro, nesses últimos anos, houve um processo de liberalização edesregulamentação da economia no nível dos países e no nível internacional.Houve um profundo processo de desregulamentação. Essa desregulamentaçãoocorreu, por uma sucessão de rodadas internacionais que reduziram osobstáculos ao comércio de bens em todo o mundo. Ocorreu também nonível interno europeu. Com a formação da Comunidade Econômica Europeia,depois União Europeia, houve um processo de liberalização do comércio

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SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES

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entre aqueles países membros. Há outros aspectos, mas esse é um aspectoimportante. Temos os processos regionais, como o Mercosul e outros, etambém processos bilaterais. Nesse caso, houve o esforço dos Estados Unidosde celebrar acordos de livre comércio com países, não só na área dasAméricas, mas também de outros continentes, com a Austrália, com a NovaZelândia, com a Jordânia e vários outros. Houve, enfim, um processo dedesregulamentação e liberalização na área de comércio bens.

Depois, houve também um grande processo de desregulamentação eliberalização na área dos capitais. Nessa área, a partir das modificações daslegislações internas, principalmente, nos Estados Unidos e também naInglaterra, houve uma desregulamentação dos fluxos de capitais, que passarama fluir. Naturalmente, isso foi ajudado com o fim do papel do FMI, quandoos Estados Unidos abandonaram o padrão ouro e passou a existir, no mundo,um sistema de taxas de câmbio flexíveis. Houve também a desregulamentaçãodo movimento de capitais em todo mundo através das chamadas“privatizações”, que foram movimentos de desregulamentação, com a aberturade áreas que, antes, estavam fechadas ao capital estrangeiro.

Naturalmente, isso não ocorreu na área do trabalho. Nós falamosnos bens, no capital e nos serviços, embora numa escala menor, mas nãoocorreu na área do trabalho. Houve uma grande movimentação de pessoasa nível internacional, mas de forma muito restritiva. Nós temos grandescontingentes de brasileiros, por exemplo, que não tínhamos no exterior.Hoje, são cerca de três ou quatro milhões de brasileiros no exterior, mashá um número muito grande de outras nacionalidades, de outras origens eum grande número de deslocados, por conflitos. Nesse caso, naturalmente,não houve um processo de desregulamentação. Pelo contrário, tem havidoum processo de regulamentação, de restrição aos movimentos do trabalhodos seres humanos.

Esse é um processo de globalização e de criação de interdependência,cada vez maior, entre as economias e as sociedades. O resultado desse processotambém é uma enorme concentração de poder que ocorreu ao longo dessesanos. Já havia uma concentração de poder enorme, logo após a II GuerraMundial, mas ela prosseguiu, tanto uma concentração de poder político, comode poder militar, econômico e tecnológico. Se nós tomarmos a área do poderpolítico, nós temos a expansão das atribuições do Conselho de Segurança, aexpansão informal, porém, uma expansão, e de novos instrumentos de exercíciodo poder político, como é o caso da OTAN, e de outras formas de intervenção,

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PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES

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outros instrumentos de intervenção. Na área militar, é a mesma coisa, ou seja,há uma série de acordos que limita o acesso a certas armas a países considerados“imaturos”, inferiores. É óbvio que isso não é colocado assim; isso é colocadoem nome do bem da humanidade, mas o fato é esse. A premissa que está pordetrás é que há países de uma civilização superior, de um nível cultural superior,que têm o direito de ter certos tipos de armas; e outros países são inferiores,são países instáveis, que podem colocar em risco a paz e a segurança internacionale, portanto, não podem ter armas. Há uma série de tratados que foram sendocelebrados de forma a restringir, cada vez mais, o acesso às armas de destruiçãoem massa e também a qualquer outro tipo de armas, mesmo as armasconvencionais. Na área econômica, essa concentração de poder pode sermedida de várias formas, como pela diferença de renda per capita que existeentre os países altamente desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. Essadiferença tem aumentado com o tempo entre os países. Na área tecnológica, éa mesma coisa. O número de patentes registradas todos os anos épredominantemente, esmagadoramente, de patentes registradas por paísesaltamente desenvolvidos. Aproximadamente metade das patentes internacionaisé registrada pelos Estados Unidos, segundo as informações da OrganizaçãoMundial da Propriedade Intelectual.

Enfim, esse período todo também se caracterizou por uma questãoideológica importante, que foi o chamado “fim do socialismo” e da vitóriaideológica das doutrinas neoliberais e a derrota das doutrinas coletivistas, detoda a natureza, como o comunismo, socialismo e assim por diante. Foi avitória do neoliberalismo em todo o seu esplendor que correspondeu a teorias,por exemplo, como o fim das fronteiras, o fim dos Estados e assim por diante.Hoje, naturalmente, isso está um pouco superado pela própria mudança depolítica econômica nos países altamente desenvolvidos, em que há uma políticade profunda intervenção do Estado, de profunda preocupação coletiva como destino das sociedades, como a aquisição de bancos, ajuda a empresas eassim por diante. Isso mostra um pouco um renascimento dessa questão doindividualismo versus coletivismo, preocupações coletivas da sociedade. Nãoquero chamar de “socialismo”, nem de “comunismo”, mas de políticas queprevêem, principalmente, uma maior intervenção do Estado em defesa daorganização da sociedade, tanto do ponto de vista econômico, quanto doponto de vista social. Enfim, esse é um processo que nos leva, com suasdiferentes características, ao que eu chamaria de “grandes crises atuais” etodas elas são um desafio para o Brasil.

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SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES

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A primeira delas, que está mais na imprensa, é a crise financeira e, hojeem dia, cada vez mais, uma crise produtiva porque a crise está passando daárea financeira para a área produtiva, nos países altamente desenvolvidos. Asegunda delas, que é uma crise mais estrutural, é a crise ambiental. Nós temos,seguramente, uma crise ambiental de proporções extraordinárias, hoje járeconhecida por todos os países, e que terá profundo impacto na organizaçãodas sociedades porque essa crise ambiental é vinculada à crise energética,pela escassez de energia, pela mudança dos padrões de consumo de energia,por sua vez, ligadas a questões do Oriente Próximo, mas, sensivelmente, sepode identificar como uma questão dos padrões de consumo do individualismo.O fato de que certas sociedades são baseadas na ideia de que é possívelconsumir qualquer tipo de produto, de uma forma totalmente livre e comenorme grau de desperdício. Há uma crise energética, mas há também umacrise de recursos naturais de uma forma geral. Há algo muito perigoso, que éuma ideia formulada assim: “O que seria se todos os chineses tivessem umautomóvel? O que seria se todos os chineses comessem carne?”. Há umaideia por detrás de que certos países têm direito a ter certos níveis de consumoe outros, por terem chegado atrasados, não teriam esse direito porque issocriaria um problema, um desafio, um dilema internacional. Isso é algoextremamente preocupante para países em desenvolvimento. E se todos osbrasileiros tivessem um automóvel? E se todos os brasileiros tivessem níveisde consumo dos países altamente desenvolvidos? Isso geraria uma demandaenorme sobre os recursos da terra. Só que nós temos seguramente o direito,tanto ou mais do que qualquer outro país, de ter níveis de consumo adequadospara cada cidadão brasileiro. Todos os cidadãos brasileiros têm esse direito.Como eu já mencionei de passagem, temos a questão da crise energética, dareorganização da matriz energética do mundo, que envolve a questão daenergia nuclear, que envolve a questão dos biocombustíveis e assim por diante.A questão alimentar também é um pouco esta, ou seja, saber como enfrentaro desafio de fazer com que todas as populações do mundo tenham o direitoa níveis adequados de nutrição. E finalmente, temos uma crise de naturezapolítico-militar, que é a da emergência da China, ou seja, como acomodar aChina no sistema internacional. Qual é o papel que a China deve ter no sistemainternacional? Como acomodá-la nas diferentes instituições, nos diferentestemas? Como reacomodar a Rússia na sua nova fase de reafirmação nacional?

Diante desses temas todos, dessas crises, dessa evolução, certamente,para a política externa brasileira, se colocam grandes desafios. O grande desafio,

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em minha opinião, é a luta pela desconcentração do poder internacional. Nóstemos interesse em que haja um processo de desconcentração desse poder. Émuito difícil se falar de uma completa democratização das instituições. Isso éextremamente difícil. Eu acredito mais num processo de maior democracia, demaior participação nos grandes organismos. Isso passa pelo Conselho deSegurança, pelos organismos financeiros e econômicos internacionais, como areforma do Fundo Monetário Internacional, como a reforma, em curso, daOrganização Mundial de Comércio, na medida em que, o G-20, na OMC éum fato totalmente novo. Quer dizer, a participação dos países emdesenvolvimento, em que o Brasil tem desempenhado a função de coordenador,é realmente uma vitória brasileira. Ninguém se impõe como coordenador denada. É necessário que os outros convoquem o país para essa função. Nenhumpaís, em nenhum lugar, diz: “Eu vou ser o coordenador de tal grupo”. Issosimplesmente não existe na prática. O que existe é o consenso, entre um grupode Estados, para que um deles seja o seu porta-voz, o seu coordenador, o seuarticulador. Então, essa luta pela desconcentração do poder é extremamenteimportante em todos os níveis. Segundo, temos a luta para que, em seu conjunto,as normas que vêm sendo organizadas a nível internacional, nos diferentes fórunse organizações multilaterais, regionais etc., sejam as mais favoráveis aodesenvolvimento da sociedade brasileira, para resolver os problemas dasdesigualdades sociais, das vulnerabilidades externas, e da realização do potencialda sociedade brasileira, da economia do Estado Brasileiro. É necessário queessas normas internacionais não nos criem obstáculos e sim sejam favoráveisao desenvolvimento interno, i.e., que preservem o grau de autonomia do Estado.Nesse processo de desenvolvimento interno, a função do Estado é essencial.Nós não podemos imaginar que haja desenvolvimento econômico e social noBrasil sem uma função do Estado de promoção desse desenvolvimento, paragarantir que todas as potencialidades da sociedade brasileira sejamdesenvolvidas. Não é possível imaginar de outra forma. Muitas vezes, anormatização internacional tende a coibir a ação do Estado, a dificultar a açãodo Estado. No âmbito da política externa, é necessário fazer com que essasnormas venham a ser favoráveis ao desenvolvimento econômico, político esocial do Brasil.

Como fazer isso? Primeiro, do ponto de vista internacional, é necessáriaa articulação com os grandes Estados da Periferia, que são a Índia, a China,a África do Sul, a Argentina, porque esses Estados têm um nível semelhantede aspiração à do Brasil. Outros países menores tendem a ser absorvidos

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pelos grandes polos de poder que se organizam no sistema internacional.Eles acabam sendo absorvidos, muitas vezes cooptados. É com esses grandesEstados – que têm aspirações semelhantes às do Brasil, e que já atingiramum certo nível de desenvolvimento – que nós temos que nos articular noprocesso de negociação das normas internacionais e da desconcentração depoder. É por isso que nós estamos juntos com a Índia, por exemplo, no G-4;estamos junto com a Índia, com a China e com a África do Sul nas áreas deprogramas de desenvolvimento tecnológico, como na área de satélites, e hámuitas outras áreas ainda não exploradas, mas que necessariamente devemosexplorar.

Em segundo lugar, temos a questão da articulação regional. O sistemainternacional é um sistema de grande interdependência e onde surgem grandesblocos de países, como é o caso da União Europeia e da América do Norte.Na América do Norte, se forma uma grande economia, com característicasdiferentes das da União Europeia e que inclui: o Canadá, os Estados Unidos,o México, a América Central depois dos acordos de livre comércio, e algunsestados da América do Sul. Os acordos de livre comércio que foramcelebrados, na realidade, criam uma área econômica integrada, livre de tarifas,com a mesma regulamentação. É necessária uma articulação regional brasileirapara que possamos participar melhor das negociações internacionais e dasdisputas internacionais. Além das negociações, temos também algumassituações de fato, onde os países são arregimentados para se pronunciar.Nesse processo de articulação regional, a União das Nações Sul-americanas- UNASUL é de grande importância nos seus diferentes aspectos –econômicos, políticos, militares –, com o Conselho de Defesa Sul-americano.O Mercosul, naturalmente, é o centro da política exterior na América do Sul.

Finalmente, uma palavra sobre a questão da articulação interna. Énecessário que haja, dentro do Brasil, uma articulação das forças progressistas;aquelas forças que têm o Brasil como parâmetro e não apenas a livre açãodos indivíduos. É necessária uma articulação entre aquelas forças queconsideram que o Brasil é uma sociedade humana, não é um mercado; oBrasil não é um mercado, o Brasil é uma sociedade de indivíduos muito alémdos seus interesses puramente econômicos, mas os seus interesses de toda aordem. Nesse momento de crise, é necessário que as forças políticas e sociais,que têm essa preocupação, estejam unidas na defesa de políticas que permitama superação do desafio que nós enfrentamos, a começar pela manutenção dademanda interna, manutenção dos investimentos para construirmos a infra-

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PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES

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estrutura do país e para não cairmos na armadilha de que é necessário reduzira demanda. Nenhum país do mundo está nessa armadilha. Todos os paísesestão preocupados em manter o seu nível de demanda, e tentar manter o seunível de investimentos. Não podemos cair na armadilha de alguns que dizemque é necessário reduzir a demanda no Brasil para enfrentarmos essa situação.É justamente a saída errada.

Finalmente, uma questão que eu acho extremamente positiva é que,historicamente, foi em períodos de crise que o Brasil se desenvolveu narealidade. Foi no grande período da grande depressão até ao final da IIGuerra Mundial que houve uma grande expansão do desenvolvimento industrialbrasileiro e, mais tarde, com as diferentes crises econômicas que tornaramreal e vital a ideia do desenvolvimento econômico brasileiro, baseado naindústria. Na verdade, 85% da população brasileira vive nas cidades. Nascidades, não há agricultura. Duvido que os senhores consigam plantar algumacoisa dentro de uma cidade. O emprego na cidade é o emprego industrial ena área de serviços. Então, é muito importante que haja a possibilidade dodesenvolvimento industrial, que essa crise seja uma oportunidade de afirmaçãoda indústria. Não é que a agricultura e o agronegócio não tenham importância.É óbvio que têm, mas, certamente, não é possível desenvolver uma açãocom as dimensões e perspectivas do Brasil com base apenas numa visãoagrícola do mundo e da sociedade. Na minha opinião, isso não é correto. Eusei que muitos criticariam esse ponto de vista, mas de uma coisa eu tenhocerteza: não há emprego de natureza agrícola nas cidades. Isso eu possogarantir aos senhores. Se quiserem, podem plantar alguns pés de soja no seuapartamento, para ver se isso é possível. Se for, eu me considero derrotado.

Finalmente, acredito que uma situação como a atual é uma situação quepermite renovar a ideia da participação do Estado como um agente dedesenvolvimento econômico num momento de crise. Eu acho que a situaçãointernacional é muito importante porque, certamente, se todos os Estadosmais desenvolvidos do mundo estão utilizando a sua administração, o seuEstado para enfrentar a crise, nada mais conveniente que um país como onosso também possa, e deva, usar o seu Estado para enfrentar essa situaçãode grandes dificuldades e de grandes desafios, no processo em que todosestão interessados e empenhados de construir uma sociedade mais justa,mais democrática e mais próspera. Muito obrigado pela atenção.

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O Brasil e a Política Externa dos EUA noGoverno Obama

Antonio de Aguiar Patriota1

Em artigo publicado na Política Externa de junho/julho/agosto de2008 (“O Brasil e a política externa dos EUA”), examinei a evolução dapolítica externa norte-americana no segundo mandato do Presidente Bush(2005-09) e o desenvolvimento das relações bilaterais. Com a posse doPresidente Barack Obama, em 20/1/2009, que tantas esperançasdespertou nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, proponhoum exercício de natureza mais prospectiva, ao considerar como serápossível, sem perder os avanços realizados, abrir novas áreas decooperação entre as duas grandes democracias multiétnicas das Américas.

Há, hoje, virtual consenso entre os Governos Lula e Obama de quenão é necesssário “reinventar a roda” nas relações bilaterais, mas simacrescentar, àquelas áreas específicas de convergência já identificadas,novos temas, iniciativas e mecanismos, tornados possíveis pela maiorcompatibilidade entre os momentos políticos vividos pelos dois países.Tal aproximação ocorrerá no contexto de grave crise financeirainternacional, a qual, ao mesmo tempo em que traz problemas novos eacentua alguns antigos, poderá favorecer a remoção de obstáculos –notadamente certos preconceitos e modos rígidos de pensar, cujaobsolescência ficou patente nos últimos meses.

1 O autor é Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América.

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ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA

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As Relações Brasil-EUA no Final do Governo Bush

Sem pretender repetir o artigo de junho passado, recapitulo algunsmarcos importantes a partir de 2005:

- a Cúpula da Granja do Torto de novembro de 2005 entre os PresidentesLula e Bush, com ênfase nos biocombustíveis;

- o hábito de consulta e cooperação no apoio à estabilização, democraciae desenvolvimento do Haiti, que demonstrou estarem os EUA e o Brasilsintonizados em relação a uma questão de paz e segurança;

- a consulta intensa, praticamente permanente, sobre comérciointernacional, no âmbito das negociações da Rodada de Doha da OMC;

- o abandono, pelo Governo Bush, da ênfase na ALCA, “colocadaentre parênteses”, decisão que não impediu, nos anos seguintes, ocrescimento robusto do comércio e dos investimentos entre Brasil eEUA;

- o estabelecimento de “diálogo estratégico” regular entre as Chancelarias,no nível de Subsecretários para Assuntos Políticos – mecanismo que os EUAmantêm apenas com um punhado de países;

- as duas Cúpulas bilaterais de março de 2007 – São Paulo e CampDavid – que produziram, entre outros resultados, o Memorando deEntendimento sobre Biocombustíveis e o Fórum de Altos Executivos Brasil-EUA;

- a criação do Diálogo de Parceria Econômica, por iniciativa do MinistroCelso Amorim e da Secretária de Estado Condoleezza Rice, que vem dandofrutos concretos, tais como a intensificação dos vôos comerciais entre osdois países, com a inclusão de rotas novas ligando o Nordeste brasileiro acidades do sul dos Estados Unidos;

- o convite para que o Brasil – juntamente com Índia e África do Sul –participassem da Conferência de Annapolis sobre o Oriente Médio, emnovembro de 2007;

- a assinatura do Plano de Ação Conjunta para a Eliminação daDiscriminação Étnica e Racial e a Promoção da Igualdade pela Secretária deEstado Rice e o Ministro Edson Santos;

- a aprovação, pela Câmara de Representantes dos Estados Unidos(com maioria democrata desde as eleições de 2006) de resoluções unânimesde apoio ao fortalecimento das relações entre Brasil e EUA.

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O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA

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Em 2008, várias dessas iniciativas continuaram a render frutos. Uma crescenteconfiança recíproca fez que os Estados Unidos procurassem o diálogo com oBrasil em relação a questões regionais, inclusive em momentos de tensão, comona controvérsia Colômbia – Equador e durante as perturbações políticas naBolívia. Houve apoio de Washington a iniciativas brasileiras, como a União dasNações Sul-Americanas (UNASUL) e o Conselho de Defesa da América doSul. Até mesmo a Cúpula da América Latina e do Caribe, realizada na Costa doSauípe, em dezembro de 2008, terá sido vista como o evento construtivo que foi– não obstante certa incompreensão em setores mais conservadores do Congressonorte-americano.

Também em sinal de ambiente mais cooperativo, o diálogo bilateral estendeu-se a área por muito tempo excluída da agenda bilateral, a de defesa. Em 2008, oMinistro da Defesa Nelson Jobim visitou os Estados Unidos em três ocasiõesdistintas, duas vezes para reunião com o Secretário da Defesa Robert Gates euma para conhecer a sede do Comando Sul (SouthCom). Foi possível, assim,conversar com transparência e franqueza sobre novas iniciativas de cada lado: doBrasil, o Conselho Sul-Americano de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa eos planos de capacitação tecnológica na indústria de defesa; dos Estados Unidos,entre outros temas, a polêmica criação da IV Frota, cujo anúncio repentinoprovocara reações na opinião pública latino-americana e pedidos deesclarecimentos provenientes de vários Governos da região. Destacou-sepositivamente o comportamento norte-americano, que sugeriria estar ficando paratrás a época das objeções a programas em esferas como a espacial e a nuclear.No mesmo espírito, os Estados Unidos começam a sinalizar que poderão ser umparceiro em projetos de capacitação tecnólogica de interesse brasileiro.

O ano de 2008 encerrou-se com uma manifestação emblemática do crescentepapel global do Brasil, na Cúpula de Washington do G20 financeiro. A convite doPresidente George W. Bush, o Presidente Lula desempenhou papel de destaque,como um dos principais oradores do almoço de trabalho organizado pela CasaBranca em torno do tema comércio internacional. No exercício da Presidênciado G20, o Brasil pode, ademais, pôr à mostra sua capacidade de diálogo comtodas as correntes políticas e proveniências geográficas.

A Campanha Eleitoral de 2008

O ano de 2008, nos Estados Unidos, foi dominado por uma eleiçãopresidencial que provocou uma mobilização raramente vista da sociedade

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norte-americana. A candidatura de Barack Obama trouxe forte conteúdotransformador. A perspectiva de eleição do primeiro Presidente afro-americano representava a culminação histórica de longo processo deintegração social, superação da discriminação e ampliação da democracia,que data da Guerra Civil norte-americana e se mantivera incompleto pormais de um século.

Agregou-se o efeito de mudança generacional: Obama, com seus 47anos, não participou das controvérsias políticas e culturais dos anos 1960 edo começo dos anos 1970. A Guerra do Vietnã, a explosão do consumo dedrogas, os distúrbios raciais que se seguiram ao assassinato do Dr. MartinLuther King e o escândalo de Watergate provocaram divisões profundas,mas não deixaram cicatrizes no futuro Presidente, cuja infância transcorria,no Havaí e na Indonésia, em lar multirracial e aberto para o mundo.

Tudo isso fez com que a campanha de Obama, primeiro na primáriademocrata e em seguida na eleição geral, atraísse a juventude e as minoriasétnicas. Com organização moderna, em rede, tornada possível pelo usoinovativo da internet, e provando ser possível conciliar iniciativa e disciplina,Obama logrou promover um verdadeiro movimento nacional em torno daideia de mudança.

Ao mesmo tempo, a crise financeira, que se tornou aguda em meados desetembro, após a falência do banco Lehman Brothers, culminou processo deerosão gradual de todo um conjunto de falsas certezas que se havia propagadodesde os anos 1990. A noção de que exista um conjunto pronto de receitaspolíticas e econômicas com aplicação universal, concebido em Washington epronto para exportação aos quatro cantos do mundo, ruiu como castelo deareia em face da maré alta. As elites políticas, financeiras e econômicas quehaviam pontificado nas duas décadas anteriores passaram a ser apontadascomo responsáveis por catástrofe que, ao contrário de crises anteriores,começou no centro do mundo desenvolvido e daí se espalhou pelo globo. Seconsenso há sobre causas e remédios da crise, foi no sentido de que paísalgum detém o monopólio da sabedoria sobre como enfrentá-la, e de que épreciso esforço comum e cooperação mais eficaz para que o árduo trabalhode superação tenha perspectivas de êxito.

O Brasil teve condições de diálogo e acesso às principais campanhaseleitorais, que apresentaram, cada uma, aspectos inéditos. Somos cada vezmais vistos como um parceiro importante na busca de soluções para as grandesquestões políticas e econômicas da região e da comunidade internacional.

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Representantes do Governo brasileiro, nas mais diversas áreas, tiveram acessoaos assessores das campanhas eleitorais, em particular as dos três principaiscandidatos, os Senadores Barack Obama, Hillary Clinton e John McCain.Foi possível não só recolher informações, mas também prestar esclarecimentossobre o Brasil e apresentar a perspectiva brasileira sobre os grandes temasregionais e globais.

Barack Obama

A facilidade de diálogo entre os Presidentes Lula e George W. Bush, atécerto ponto surpreendente, em vista de trajetórias pessoais e posturas políticasmuito distintas, foi fator relevante na reaproximação entre Brasil e EstadosUnidos, a partir de 2005. Alguns observadores chegaram a levantar dúvidassobre a possibilidade de manutenção desse clima favorável com BarackObama na Casa Branca.

Argumentos sólidos, porém, permitem prever que Brasil e Estados Unidoscontinuarão a encontrar novas áreas de cooperação nos próximos anos, alémde prosseguir nas já existentes. Entre Lula e Obama, podem ser identificadasafinidades em pelo menos três campos: trajetória pessoal, temperamento evalores.

No campo da trajetória pessoal, o traço mais marcante de ambos ospercursos foi a superação do preconceito. Enquanto a eleição de Lula marcoua ampliação da democracia no Brasil, pela elevação de um representante dooperariado ao cargo de Presidente, Obama representou a derrubada de umabarreira racial que muitos ainda julgavam fora de alcance nos Estados Unidos.

Quando Obama nasceu, em 1961, o casamento entre seus pais aindaseria proibido por lei em vários Estados norte-americanos (não, porém, noseu Estado natal, Havaí, de cultura mais tolerante e mestiça). O próprioPresidente Obama mencionou em seu discurso de posse, no Capitólio, quesessenta anos antes talvez os restaurantes da capital norte-americana nãoaceitassem que seu pai, o economista queniano Barack Hussein Obama(mesmo nome do filho), se sentasse à mesa para almoçar. Sua autobiografia,lançada em português como “A origem dos meus sonhos”, escrita aos 33anos, contém uma reflexão comovente sobre a decepção do jovem Barackdiante do pai, cuja carreira promissora terminou em impasse, e cuja vida,depois de diversos casamentos e filhos, desembocou em alcoolismo edepressão. O jovem Barack seria visto pela sociedade norte-americana como

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afro-descendente, pela aparência física, mas conviveu na infância quase queunicamente com a mãe e os avós brancos.

Sua mãe, a antropóloga Ann Durham, personagem criativa e progressista,casou-se novamente com um cidadão indonésio. Obama passou parte dainfância, dos 6 aos 10 anos, numa rua de terra batida da periferia de Jacarta,correndo atrás de galinhas e cachorros, junto com os outros meninos davizinhança, como relata na autobiografia. Que entre aqueles meninos, quasetodos de família muçulmana, soltando pipas na Indonésia nos idos de 1970,estivesse um futuro Presidente dos Estados Unidos, é cenário que só acombinação de momento histórico, uma grande autoconfiança individual euma pitada de destino pode explicar.

O resultado dessa genealogia e, mais tarde, do casamento com MichelleLaVaugh Robinson, de família afro-americana tradicional do South Side deChicago, é uma “primeira família” única em seu universalismo. Uma das meio-irmãs quenianas de Obama é casada com inglês; outro meio-irmão por partede pai vive na China e é casado com chinesa; sua meia-irmã por parte demãe é indonésia e casada com cidadão canadense de ascendência tambémchinesa. Mesmo na família de Michelle, de perfil menos internacional, há umprimo que se converteu ao judaísmo e é rabino, sobrepondo em uma sóaliança familiar as três fés abraâmicas.

Uma segunda convergência se observa nas semelhanças entre ostemperamentos dos ocupantes do Alvorada e da Casa Branca. Obama, quepassou toda a vida construindo pontes entre negros e brancos, desenvolveucapacidade natural de conciliação e diálogo. Na Faculdade de Direito daUniversidade Harvard, embora participasse de grupo de estudantes mais àesquerda, foi eleito editor da prestigiosa revista “Harvard Law Review” como voto dos conservadores. No Partido Democrata, embora suas raízes estejamna ala progressista, foi sempre capaz de atrair apoios de centristas e mesmode membros da ala mais conservadora. Durante a campanha eleitoral, alémdo apoio praticamente unânime dos setores progressistas, apareceu ofenômeno curioso dos “Conservadores por Obama”, ou “Obamacons”,dotados de sua própria página web.

Em política externa, essa disposição se manifesta na política de “mãoestendida” em relação dos adversários dos Estados Unidos, bastando apenasque eles “descerrem o punho”, na fórmula empregada no discurso de possee frequentemente citada desde então. A capacidade de diálogo e conciliaçãose reflete também, em Obama, numa preferência pelo multilateralismo, visto

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como mecanismo inclusivo, de vocação universal, e não como meroagrupamento dos que pensam igual (like-minded). Na conferência deimprensa em que apresentou sua equipe de política externa e segurançanacional, Obama anunciou, como uma das três prioridades principais doDepartamento de Estado, o fortalecimento das instituições internacionais (asoutras duas são a não proliferação nuclear e a paz no Oriente Médio). Tambémclassificou as Nações Unidas de organização “indispensável”, qualificativoque não se escutou em Washington, em relação à ONU, nem durante oGoverno George W. Bush, nem no de seu antecessor democrata.

Um terceiro campo de convergência, o dos valores, revela coincidênciano compromisso com a eliminação da pobreza e com a justiça social. Obamademonstrou, com base em sua vivência na Indonésia e no Quênia, em seutrabalho como assistente social nos bairros mais pobres de Chicago e em seutemperamento de construtor de pontes, capacidade de compreender essesproblemas do ponto de vista dos pobres. Obama estudou na melhor escolaparticular do Havaí, sobretudo graças aos sacrifícios dos avós. Ao terminarseus cursos universitários, porém, abandonou a perspectiva de empregosbem-remunerados em Wall Street ou em escritórios de advocacia, e optoupor oportunidades como organizador comunitário em uma das regiões maisdeprimidas de Chicago.

Desde então, Obama estabeleceu como plataforma central de sua atuaçãoa solidariedade social. A situação dos jovens afro-americanos em bairrospobres nas grandes cidades, como Chicago; a geração de empregos; auniversalização da cobertura por seguro-saúde; e a melhoria da educaçãopública, como detalhado em seu livro de campanha, “A audácia da esperança”,foram a tônica de sua atuação política e de sua campanha presidencial. Durantea campanha eleitoral, Obama ironizou o lema do ultraliberalismo, oufundamentalismo de mercado, a chamada “sociedade de proprietários”(ownership society), dizendo que para os ricos isso parecia significar “cadaum por si” (you are on your own). Em seu discurso de posse, sintetizou suavisão de futuro: “uma nação não pode prosperar, se dedicar atenção apenasaos mais prósperos”.

O Momento Histórico e as Relações Bilaterais

Além das afinidades entre os Presidentes Lula e Obama, acima apontadas,fatores de ordem estrutural contribuem para uma consolidação dos progressos

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realizados em várias vertentes do relacionamento bilateral e para a aberturade novas frentes de aproximação.

Por muito tempo, a política externa dos Estados Unidos mal disfarçavaveleidades de tutela informal sobre as nações latino-americanas. Tal era osentido da “Doutrina Monroe” (a responsabilidade pela liderança da defesada América Latina contra “ameaças extracontinentais” caberia aos EstadosUnidos, que exerceriam, para tanto, supervisão sobre as relações dos paíseslatino-americanos com Estados de outros continentes) e do chamado“Corolário Roosevelt” (Theodore, não Franklin: a responsabilidade pelaestabilidade política interna dos países latino-americanos competiria, também,a Washington).

Tais políticas fizeram-se sentir com mais peso, ao longo do século XX,na América Central e no Caribe, mas não deixaram de repercutir tambémmais ao Sul. Para o Brasil, desde a consolidação das fronteiras com os vizinhos– obra concluída por volta de 1910 – a tarefa principal da política externa,formulada com diferentes matizes em cada geração, tem sido a criação decondições externas favoráveis para o desenvolvimento econômico e socialdo país. Para tanto, o pré-requisito essencial era a busca da autonomiadecisória na promoção do desenvolvimento, sem ingerências nem submissãoa interesses externos.

Nos anos 1950, atitudes dos Estados Unidos em relação à criação daPetrobras, por exemplo, convenceram muitos brasileiros de que prevenir ouimpedir o desenvolvimento industrial do Brasil constituía parte da agenda nãodeclarada de Washington. As objeções aos programas nuclear e espacial,nos anos 1970 e 1980 e as divergências sobre propriedade intelectual, apartir dos anos 1980, foram fontes de desentendimento. As dificuldades iniciaisdos Estados Unidos com a formação do Mercosul também geraram algumatensão.

Ao mesmo tempo, outro conjunto de fatores nunca deixou de aproximaros dois países, e conduziu a momentos de relação estreita e mutuamenteproveitosa – seja a “aliança não escrita” da época de Rio Branco (na expressãodo historiador norte-americano E. Bradford Burns), seja a participação doBrasil na II Guerra Mundial (quando fomos o “aliado esquecido”, segundo ohistoriador Frank McCann). O investimento e o capital norte-americanosnas mais diversas áreas tiveram participação positiva na industrialização doBrasil, em processo simbolizado pela Companhia Siderúrgica Nacional,construída com financiamento e bens de capital dos Estados Unidos.

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Controvérsias subsequentes fizeram com que alguns se esquecessem de queos primeiros passos dos programas nuclear e espacial do Brasil, entre osanos 1950 e 1970, em muito beneficiaram-se da cooperação com os EstadosUnidos. E até hoje os fluxos de comércio e investimento revelamcomplementaridades entre os dois países.

É possível afirmar, em suma, que Brasil e Estados Unidos podem manter,em certos momentos e temas, políticas divergentes, no nível dos Governos,mas sem chegar a ter conflitos fundamentais de interesse, no nível dos Estados.A ambos interessa, primordialmente, a paz, estabilidade e prosperidade nasAméricas e no mundo.

Hoje, Brasil e Estados Unidos intensificam seus contatos políticos emcontexto histórico de grandes transformações. O Brasil está em trajetóriaascendente, com estabilidade econômica, progresso social e democraciaconsolidada. Cada vez mais nosso ponto de vista é global, de país contribuintepara o aperfeiçoamento do sistema internacional. Os Estados Unidos, porsua vez, continuarão pelo futuro previsível a demonstrar vitalidade econômica,científica e tecnológica, sem falar no poderio militar. Como aponta FareedZakharia em “O Mundo Pós-Americano”, com a ascensão relativa de outrospaíses, os Estados Unidos vão sendo levados a aceitar mais naturalmente aideia de que vivem em mundo crescentemente multipolar, como admitiurecentemente o Secretário da Defesa Robert Gates. A tentação dounilateralismo conduziu, no Iraque, a resultados que falam por si; a crise iniciadaem 2008 tornou ainda mais patentes os limites do poder unilateral dos EstadosUnidos e a necessidade de cooperação internacional.

Restam, é verdade, no estamento de política externa norte-americana,personalidades que acreditam na possibilidade de um retorno aos anos 1990,quando os Estados Unidos viveram seu “momento unipolar”, na consagradaexpressão de Charles Krauthammer. Para os que duvidam, porém, daorientação da atual liderança política, recomenda-se a leitura do Capítulo 8,dedicado à política externa, do livro de campanha do então candidatopresidencial Barack Obama, “A audácia da esperança”. De forma talvezinédita, constata-se a capacidade de um Presidente dos Estados Unidos deenxergar a realidade internacional não apenas da perspectiva de seu própriopaís, mas também, a partir de uma vivência que incorpora contatos importantescom o mundo em desenvolvimento (Indonésia e Quênia em particular). Entreoutras muitas observações de Obama que soam naturais aos brasileiros,destaco as seguintes:

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“Nosso desempenho tem sido inconstante, tanto na Indonésia quantono resto do mundo. Algumas vezes, a política externa norte-americanafoi previdente, servindo simultaneamente nossos interesses nacionais,nossos ideais, e os interesses das outras nações. Outras vezes, aspolíticas norte-americanas foram mal-orientadas, baseadas empremissas falsas que ignoram as aspirações legítimas de outros povos,diminuem nossa própria credibilidade e tornam o mundo mais perigoso(...) (Na América Latina,) os Estados Unidos não chegaram aempreender a colonização sistemática praticada pelas nações europeias,mas perderam quaisquer inibições a respeito da ingerência nos assuntosinternos de países que julgavam estrategicamente importantes. TheodoreRoosevelt, por exemplo, acrescentou um corolário à Doutrina Monroe,declarando que os Estados Unidos interviriam em qualquer país latino-americano ou caribenho de cujo Governo não gostassem (...) Nocomeço do século XX, portanto, os motivos que guiavam a políticaexterna dos Estados Unidos pareciam dificilmente distinguíveis daquelesdas demais grandes potências, guiadas pela realpolitik e pelos interessescomerciais”.

Perspectivas para as Relações Brasil-EUA no Governo Obama

As preocupações sociais de Obama harmonizam-se com muitos temasde interesse da nova Secretária de Estado. Hillary Clinton estreou no cenárionacional, ainda no começo do mandato do ex-Presidente Bill Clinton, comuma campanha pela universalização do acesso à saúde que esbarrou noobstrucionismo dos republicanos, mas que – reconhece-se hoje – teriabeneficiado os Estados Unidos se tivesse ido adiante. A competitividade daindústria norte-americana, como se sabe, é prejudicada pela necessidade deque cada empresa arque com grande parte dos custos de saúde e aposentadoriade seus empregados. A privatização da saúde levou a um sistema que é omais caro entre os países desenvolvidos, mas que deixa sem cobertura médicaquase 50 milhões de norte-americanos, segundo o Bureau do Censo dosEUA.

Hillary Clinton, em sua carreira como Senadora por Nova York e em suacampanha presidencial, destacou-se, também, pela defesa dos direitos damulher, da infância, dos idosos e das populações mais vulneráveis. O primeirodiscurso do Presidente Obama no Congresso e o primeiro projeto de

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orçamento refletem essas prioridades, com ênfase em saúde, educação eenergias limpas. Emerge, assim, quadro em que vários entre os principaistomadores de decisão dos Estados Unidos – não só o Presidente e a Secretáriade Estado, mas também outros integrantes do Governo, como os Secretáriosda Educação, Arne Duncan, Trabalho, Hilda Solis, e Saúde, a ex-Governadora do Kansas Kathleen Sebelius – demonstram preocupação comtemas similares aos que captam a atenção do Governo brasileiro.

Com a posse do novo Governo, os Estados Unidos voltam a se engajarcom o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio das NaçõesUnidas, objeto de ressalvas norte-americanas ainda recentemente, durante oprocesso de preparação da 60ª Assembléia Geral, em 2005. Abre-se, assim,espaço para a troca de experiências e a cooperação em temas sociais, entredois países com semelhanças não negligenciáveis: grandes, multiétnicos,democráticos, federativos e preocupados com a superação da desigualdade.Os Estados Unidos, como aponta o Ministro Roberto Mangabeira Unger, sãoo país mais desigual entre os desenvolvidos e o Brasil, apesar dos significativosprogressos dos últimos anos, ainda está entre os mais desiguais, entre os paísesem desenvolvimento. Isso pode ser encarado como uma oportunidade, namedida em que o diálogo se dê, como tudo indica que ocorrerá nos próximosanos, em ambiente de respeito pelas diferenças entre as experiências de um ede outro país, tanto em âmbito federal, como Estadual e municipal.

Outra das prioridades reiteradas por Obama em seus planos de Governoé a energia, em particular o desenvolvimento de fontes renováveis, aconservação, a sustentabilidade e a diversificação das fontes de suprimento,com a concomitante redução de dependências externas. Também nessa área,o Brasil é visto como líder mundial. As conquistas do Brasil na esfera energéticasão admiradas nos Estados Unidos e o desejo de parceria é perceptível,tanto no Executivo como no Congresso e no setor privado. Note-se que umadas nomeações mais ousadas e bem-recebidas do Governo Obama foijustamente para o Departamento de Energia, para qual foi escolhido o físicoSteven Chu, o primeiro Prêmio Nobel a ocupar um posto ministerial nosEstados Unidos. A indicação de Chu, comprometido com as fontes renováveise limpas de energia, foi geralmente interpretada como indicadora de novapostura, mais cooperativa, no tema da mudança do clima.

As relações econômicas entre os dois países também se beneficiarão doimpulso positivo dos últimos anos. Entre 2000 e 2008, as exportaçõesbrasileiras para os Estados Unidos passaram de US$ 13,2 bilhões para US$

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27,4 bilhões (crescimento de 108%), ao passo que as importações foram deUS$ 12,9 bilhões para US$ 25,6 bilhões (crescimento de 98%), desempenhomais dinâmico que o do intercâmbio com diversos países com os quais osEstados Unidos mantém acordo de livre comércio. Em 2008, os EstadosUnidos foram o maior investidor externo no Brasil (US$ 7 bilhões) e tambémo maior receptor de investimento externo brasileiro (US$ 4,8 bilhões). Osestoques de investimento entre os EUA e o Brasil são significativamente maioresque entre os EUA e os demais BRICs (China2, Índia e Rússia). Tanto oPresidente Obama quanto a Secretária Clinton manifestaram interesse emrelações mais estreitas com o Brasil no plano econômico e comercial, comose depreende, por exemplo, do apoio demonstrado por ambos à manutençãodo Fórum de Altos Executivos.

No tema prioritário do fortalecimento das instituições internacionais –singularizado, como vimos, pelo Governo Obama como central – abre-seespaço mais amplo de coordenação. Obama elevou a posição deRepresentante Permanente junto às Nações Unidas ao nível ministerial, comofora em alguns governos anteriores (mas não no de George W. Bush). Aindicada, Susan Rice, foi uma de suas colaboradoras mais próximas ao longoda campanha eleitoral. Já em seu primeiro pronunciamento após a confirmaçãono cargo, Rice indicou quatro prioridades: combate à pobreza, mudança doclima, operações de paz e não proliferação. Em cada das áreas apontadas, oBrasil é ator significativo. A cooperação entre os dois países nas NaçõesUnidas poderá adquirir maior relevância em vista da projetada eleição doBrasil para nosso nono mandato como membro eletivo do Conselho deSegurança, em 2010-11. A participação do Brasil nos círculos decisóriosinternacionais, proposição que vem ganhando apoio em Washington, abrirádimensões inéditas para o relacionamento bilateral.

O Presidente Lula recebeu telefonema do Presidente Obama, poucosdias após sua posse, ocasião em que foi convidado para ser um dos primeirosChefes de Estado a visitar Washington. Obama foi convidado, na mesmaocasião, a visitar o Brasil. Lula e Obama também estarão juntos na Cúpulade Londres do G20 e na Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. OMinistro Celso Amorim e a Secretária de Estado Hillary Clinton conversarampor telefone logo após a confirmação de Clinton pelo Senado norte-americanoe, em 24 de fevereiro, mantiveram uma reunião de trabalho que permitiu o

2 Excluído Hong Kong.

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mapeamento de áreas para futura intensificação do diálogo e da cooperação:energia, mudança do clima, combate à pobreza, Haiti, Cuba, Oriente Médio,fortalecimento e reforma das Nações Unidas, entre outras. A cooperaçãotriangular para a promoção do desenvolvimento em terceiros países,aproveitando as capacidades complementares do Brasil e dos EstadosUnidos, já foi iniciada nas áreas de etanol e saúde e poderá estender-se aoutros campos, permitindo atuação conjunta em favor do progresso regionale global.

Nada disso implica alinhamento automático ou coincidência absoluta deposições. Não é impossível que ocorram dificuldades, por exemplo, na agendacomercial, abalada no mundo inteiro pelo agravamento da recessão econômicae pelo ressurgimento de tendências protecionistas. A finalização da Rodadado Desenvolvimento de Doha, os subsídios agrícolas, a tarifa do etanol, arelação entre propriedade intelectual e acesso à saúde, a renovação anual doSistema Geral de Preferências (SGP): todos esses são temas que continuarãoa merecer, como tem ocorrido, atenção e esforço da diplomacia brasileira.

Recentemente, tive acesso a duas análises sobre o relacionamento entreos Estados Unidos e o Brasil, encomendadas a dois especialistas em relaçõesinternacionais sediados em Washington. Ambos assinalam o momento deoportunidade que se abre com a eleição de Barack Obama, em contextointernacional no qual o Brasil emerge como uma democracia sólida e umaeconomia em expansão. Com a multiplicação de contatos governamentais nomais alto nível, a crescente interação dos setores privados e o envolvimentoda sociedade civil, as perspectivas que se abrem são efetivamentepromissoras. Ao beneficiar-se de ambiente de crescente respeito mútuo e denovas afinidades políticas, a relação entre Brasil e Estados Unidos poderá,nos próximos anos, trazer ganhos para as duas sociedades e, como propõeDavid Rothkopf, constituir “uma das parcerias estratégicas internacionais queserão chave” para o equacionamento das grandes questões de paz,desenvolvimento e sustentabilidade da agenda internacional.

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A Configuração Mundial do Poder, a NovaHegemonia Norte-Americana e Novo GovernoObama

Gilberto Dupas1

Vamos investigar aqui algumas das questões fundamentais quando sediscute as condições cada vez mais complexas de governabilidade mundialneste novo século. Apesar do duro legado do governo W. Bush, agoradramatizado pela crise econômica mundial, parece claro que o mundo globalnão pode prescindir das eventuais virtudes hegemônicas de sua maior potência,até porque tão cedo não haverá quem possa substituí-lo. A maior qualidadehegemônica é favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendodiferenças, mediando crises e confrontos e possibilitando gestos simbólicosem direção às nações e povos atingidos por excessiva exclusão e precariedade.Se o novo governo Barak Obama não conseguir que os EUA assumam opapel condizente com seu próprio poder, o que inclui antes de tudo a tolerânciacom as diferenças e a busca permanente de consensos, teremos grandesprobabilidades de um século marcado pelas dores de um duro retrocesso.Não temos razões sólidas para supor que estaríamos no limiar de um abalomais profundo que ferisse os fundamentos do sistema capitalista, os famosos

1 Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidentedo Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor de vários livros, entre osquais O Mito do Progresso; Atores e Poderes na Nova Lógica Global e Ética e Poder naSociedade da Informação. Foi professor visitante da Universidade de Paris (II) e da UniversidadeNacional de Córdoba e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior(CONAES). É também editor da revista Política Externa.

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“sinais do outono”. Mas parece ter crescido progressivamente o número detensões que vão se acumulando em meio ao caminho, e pretendemos aquianalisá-las.

A postura internacional dos EUA durante o governo W. Bush teve efeitoscomplexos com relação ao futuro de sua condição hegemônica. A açãoterrorista de 11 de setembro, destruindo símbolos de seu poder econômico,militar e político, foi um trauma imenso para os norte-americanos. Mas, paraalém da brutal e humilhante surpresa de um ataque ao coração da grandepotência mundial, haveria suficiente inovação no grande atentado para justificarque, a partir dele, o mundo teria mudado? E que seria necessária uma nova edura doutrina hegemônica de segurança? A suposição de uma privatizaçãodas armas de destruição em massa por grupos não estatais pode ser muitoassustadora. Mas o 11 de setembro não parece diferir muito de um atentadoclássico. As armas foram aviões de companhias aéreas norte-americanas,em vôo regular. Atos kamikases também não são novidades. No entanto, oimpacto dos atentados foi tão violento que justificou o brado guerreiro “osque não estão conosco, estão contra nós”. Tratou-se de uma enorme escalaretórica se a compararmos com a frase que Madeleine Albright gostava derepetir no governo Clinton: “Nós voamos mais alto, vemos de cima, e sabemoso que é melhor para o mundo”. O trauma do 11 de setembro foi tão profundoque não houve nenhuma resistência interna ao aumento massivo do orçamentoda defesa implementado pelo governo. O forte apelo patriótico e asolidariedade resolveram a questão. No entanto, se olharmos um pouco paratrás, desde os anos 1990 certa arrogância tem predominado naquele país,acentuada pela fantasia de Francis Fukuyama de que o fim da história – soba égide do triunfo americano – levaria o mundo inteiro a agir segundo seuspreceitos e valores. Mas o período de unanimidade está terminando. Damesma maneira que a economia americana é regida por ciclos mais amplos ebrutais que os dos países europeus, o espírito público americano passa tambémpor fases de grande arrebatamento seguidas por ondas de pesada autocrítica,como foi a guerra do Vietnã, agora culminando com a eleição de Obama.

A doutrina W. Bush: origens e contradições

O maniqueísmo do bem e do mal sempre foi poderoso entre os norte-americanos. Por sua longa tradição democrática, os políticos precisam justificarseus objetivos de política externa primeiro dentro do país. E a manipulação

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A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER

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da questão do inimigo, do poder imoral e quase satânico que ameaçaria osvalores e a segurança da América vem sendo uma prática tradicional, comose viu na Guerra Fria. O discurso fundamentalista da equipe de W. Bush temraízes mais profundas, até porque – após o colapso do império soviético – éinverossímil acreditar que Afeganistão, Coreia do Norte, Iraque e Irã pudessemde fato ameaçar os EUA. É preciso lembrar que as escolhas estratégicas dosEUA pós-11 de setembro já estavam a caminho na campanha eleitoral paraa sucessão de Clinton. Basta ler ensaios de Condoleezza Rice e Robert B.Zoellick, ainda em 2000, para verificar que aqueles conceitos republicanospara uma nova política externa norte-americana estavam todos presentes emartigo do secretário da defesa Donald H. Rumsfeld, que justificava a guerracontra o terrorismo. É claro que os atentados provocaram a campanha contrao Afeganistão e o Iraque, com modificações consequentes no equilíbrio daÁsia Central e do Sul. Porém, o intervencionismo e o isolacionismo já eramclaras tendências nas duas décadas finais do século passado. Vários conceitosvêm do governo Clinton. O “eixo do mal” (Iraque, Irã e Coreia do Norte)são os mesmos “Estados bandidos” (rogue States) de Clinton. Com a questãoterrorista tendo centrado seus atos, Bush pôde mostrar-se de corpo inteiro.Em artigo ao The New York Times, Bill Keller fez um balanço do que achavamde Bush seus pares conservadores. Eles o julgavam essencialmente ummoralista, cujos ataques de setembro trouxeram à tona o missionário,“convertido do álcool e da vida desregrada, para Deus e para a vidadoméstica”, o qual achava que todos são capazes de fazer o mesmo. Kellerclassifica o moralismo de Bush ambicioso e messiânico, “convencido de queo maior projeto dos EUA é combater o mal e implantar o que chama de‘valores universais’ em todo o mundo”. Norman Podhoretz, influente autorconservador, acredita que o objetivo estratégico do presidente era “mudar oregime de seis ou sete países e criar condições que levassem à reforma internae à modernização do mundo islâmico”. Tratar-se-ia, obviamente, de umobjetivo arriscado e prepotente, que nos remete a uma discussão sobreresponsabilidades hegemônicas que farei mais tarde.

O que o 11 de setembro permitiu foi a aceleração de um rumo já traçadopela administração Bush, juntando republicanos e democratas para apoiar asescolhas estratégicas mais agressivas da administração republicana eacelerando a “guerra contra o terrorismo”. Nessas novas ações ofensivas,Washington preferiu ter o suporte de uma coalizão; mas enfatizou que issonão era um pré-requisito para a operação. A “Estratégia de Segurança Nacional

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dos Estados Unidos” encaminhada ao Congresso por Bush deixava claroque seu governo pretendia agir preventivamente contra atos de terrorismo eque “não vamos hesitar em agir sozinhos”. É o que, de alguma forma, já haviaocorrido na Guerra do Golfo e no Afeganistão. Alguns falcões do Pentágono– mas, principalmente Rumsfeld e Wolfowitz – eram contra uma colaboraçãoeuropéia, com envolvimento da OTAN, que introduziria consideraçõesdiplomáticas ou políticas em detrimento da eficácia operacional. No entanto,uma parte dos militares achava que as restrições às ineficiências das operaçõesde campo vinham do próprio Pentágono e de sua imensa burocracia. Essa é,aliás, a opinião de Eliot A. Cohen. Ele analisa as dificuldades de promovermudanças quando está em jogo o conservadorismo militar. Mostra, também,que a designação de funcionários civis sem preparo e especialização deixa oPentágono excessivamente nas mãos da estrutura militar, que defende suasrespectivas Forças em detrimento de uma ação estratégica conjunta.

O ataque aos EUA deixou à mostra as condições das alianças norte-americanas na região de influência islâmica. Paquistão, Egito e Arábia Saudita,que forneceram o grosso dos militantes do Al-Qaeda, eram consideradosaliados dos EUA; o Irã, que aparentemente não forneceu nenhum, foi acusadode principal suporte do terrorismo. A China, considerada a ameaça do séculoXXI, deixou de sê-lo. Além do mais, a radicalização do terrorismo parecemais um fenômeno também interior ao Ocidente e a seus aliados próximos(Arábia Saudita e Paquistão) do que exportação do “eixo do mal”. A maiorparte dos integrantes do Al-Qaeda são re-islamizados ou vieram do Ocidente;encontram-se santuários terroristas em New Jersey e nas periferias londrinase parisienses.

As reflexões sobre as raízes profundas do terrorismo continuambloqueadas entre os americanos. São sumariamente rejeitadas associaçõescom a humilhação vivida pelos árabes, o conflito Israel-Palestina e a açãonorte-americana contra o Iraque. Havia duas ideias fixas: o suporte absolutoa Israel e a obsessão de derrubar Saddam Hussein acertando velhas contas,ainda que ao preço de levar a região ao caos e promover hostilidades entreeuropeus. A relação entre terrorismo e pobreza também sempre foi rejeitada,já que ele tem vindo de classes médias ocidentais. Não se cogita da ideia dasolidariedade ideológica com os pobres, das cicatrizes da colonização, daimigração e da marginalização, nem das realidades presentes no OrienteMédio. Como o radicalismo se alastrou entre muçulmanos que vivem noOcidente, também foi eliminada a hipótese de que o apoio a regimes autoritários

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(Argélia, Arábia Saudita e Tunísia) bloqueia o desenvolvimento de um Islãmoderno e liberal. Sobrou, então, a questão culturalista do tipo “o problemaé o Islã”. Os americanos achavam, de maneira simplista, que a solução podeser alcançada, em alguns anos, com o uso da força e de ações políticasconcretas. A tese principal seria a incompatibilidade do Islã com os valoresda América. Daniel Pipes, por exemplo, fazia ligação entre imigração eterrorismo, apoiava as medidas anti-imigração europeias e introduziu a questãodo crescimento demográfico palestino e da comunidade muçulmana nos EUA.São teses assemelhadas às da extrema direita francesa e austríaca.

A doutrina W. Bush assumiu parte dessas ideias ao radicalizar o discursocontra os “inimigos”, como consta da “Estratégia de Segurança Nacional dosEstados Unidos” enviada rotineiramente pelo governo ao Congresso. Assumiuo terrorismo como tão ilegítimo quanto a “escravidão, a pirataria e ogenocídio”, e deu-se ao direito de “agir sozinho” de maneira preventiva eantecipada em qualquer lugar no mundo, deixando claro que “nunca permitiráque outro país desafie sua superioridade militar (...) ameaçada agora pelospaíses mais fortes do que pelo mais fracos”. Por outro lado, falava em “apoiaros governos moderados, especialmente no mundo muçulmano, para assegurarque as condições e ideologias que promovem o terrorismo não encontremterreno fértil em nenhuma nação”. O que permitiu espaço não para atacarindiscriminadamente o Islã, mas para apoiar o “bom” Islã contra o “mau”. Oproblema central está contido no maniqueísmo ultra-redutor e implícito àdefinição de “bem” e de “mal”, associado a atitudes belicosas unilaterais. Arespeito da nova doutrina, em editorial de setembro de 2002, o The NewYork Times advertia que “quando essas estratégias belicosas se convertemno tema dominante da conduta americana, a nação corre o risco de afastarde si os amigos e solapar justamente os interesses que Bush procura proteger.Líderes fortes e confiantes não precisam ser arrogantes. Na verdade, aarrogância subverte a liderança eficiente. (...) Bush precisa tomar cuidadopara não converter os EUA em uma fortaleza que inspire a inimizade, em vezde inspirar a inveja ao mundo”.

Usando uma retórica alternativa, eventualmente mais sutil, Richard Haass,Ex-Diretor de Planejamento do Departamento de Estado, propôs “integrarpaíses e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com osinteresses e valores americanos”. O pressuposto é que esses “valoresamericanos” coincidiam com o de outros países, na medida em que sãosupostos universais, impondo-se sem necessidade de negociação. Essa ideia

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foi também defendida por Paul Wolfowitz, ex-secretário-adjunto da Defesa:“Para ganhar a guerra contra o terrorismo e ajudar a construir um mundopacífico, devemos falar às centenas de milhões de pessoas tolerantesmoderadas do mundo muçulmano, já que elas vivem e aspiram usufruir osbenefícios da liberdade, da democracia e da livre iniciativa. Esses valores sãodescritos como ocidentais, mas, de fato, são uma aspiração comum dahumanidade”.

A proposta de Wolfowitz era desenvolver um Islã moderado e liberal,compatível com as aspirações dos que vivem no Ocidente. São ideias que seoporiam ao crash de civilizações, no pressuposto de que haveria uma sócivilização, sendo o resto barbárie. Wolfowitz dizia que é preciso pôr de pé oIslã moderado, isolando o radical, e mover uma guerra ideológica contra osradicais – como foi feita contra o comunismo – envolvendo intelectuais, artistase sindicatos. Tratava-se de uma nova guerra de propaganda e de umaengenharia social que promoveria os valores da administração americana:democracia, direitos dos homens, livre comércio, livre iniciativa. O pressuposto,mais uma vez, é que o monopólio da verdade faz esses valores universais.Clinton colocou, então, a seguinte questão: “Podemos ser donos da verdadeinteira, ou devemos nos unir a outros na busca pela verdade?”

A constituição de um Islã moderado, made in West, tinha como premissaque vários dos quadros radicais mais importantes são formados no Ocidente,não nos mollahs; que eles vinham dos moldes ocidentais, não das madrasas.E que a radicalização não brotaria necessariamente de um ensinamentoreligioso, mas seria consequência das complexas frustrações que afetam tantointelectuais laicos como nacionalistas. Os radicais seriam também um produtodas decepções, marginalizações e diluições de identidades, fruto daglobalização e da ocidentalização do mundo. Eles buscariam uma formadesesperada de romper com o consumismo desenfreado, a sociedadeperformática e o sentimento de exclusão. Esses radicais adorariam suas tesesde corpo e alma; e captavam ampla simpatia e solidariedade, especialmentequando se mostram dispostos a pagar o preço do martírio.

Apesar de aparentemente bem articulada em torno da “nova doutrina desegurança”, a política dos EUA nos anos W. Bush – examinada de maneiramais rigorosa – parece uma colcha de retalhos de decisões anteriores ao 11de setembro, envolvendo considerações ideológicas, interesses contraditóriose voluntarismo moralizante. Ocultando-se sob um discurso de valores, ela seapresentava revestida de uma coerência que não se sustentava. Esse discurso

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tentava mascarar e conciliar componentes contraditórios. Com isso, induziaos outros países e forças públicas a ratificar certos princípios difíceis de rejeitarde imediato e tenta criar espaço para a força bélica norte-americana – logísticae financeiramente auto-suficiente – operar livremente em qualquer parte domundo em intervenções pontuais. O rescaldo da ocupação, política eoperacionalmente muito complexo, era deixado – sempre que possível – acargo dos europeus ou de organizações internacionais. É o caso do Kosovo,do Afeganistão e da Palestina. E, talvez agora, no Iraque.

A nova moral hegemônica definia os campos com muita clareza. De umlado, “o direito e a democracia”; de outro, “as forças do mal”. O que significaa volta a uma retórica maniqueísta que redivide o mundo entre “bons” (aquelesque estão com os EUA) e “maus” (aqueles que estão contra ou hesitam). Narealidade, para além do aparente monolitismo desses conceitos, essascategorias transitórias são fortemente impregnadas de Realpolitik em funçãodos “interesses superiores da nação”. Essa situação tem criado espaços emargem de manobra para os atores regionais acomodarem seus objetivos.Um triste exemplo é a situação do Oriente Médio. Em todo o períodosubsequente à criação do Estado de Israel e ao início do conflito entre palestinose israelenses, os EUA mantiveram grande influência sobre a região na condiçãode grandes operadores da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial e fieldepositário do novo equilíbrio ocidental em torno das instituições de BrettonWoods. Embora mais identificados com os interesses de Israel – e acusadosdisso muitas vezes pelos grupos palestinos –, ainda assim sucessivos governosnorte-americanos tinham se empenhado para evitar uma situação muito críticana região, inclusive na época da Guerra Fria. Bill Clinton esteve prestes aarrancar um acordo que poderia ter posto fim ao conflito. Ehud Barak haviaquebrado um tabu ao oferecer a divisão de Jerusalém, mas Yasser Arafat –pressionado no seu front interno e com pouco espaço de manobra – acabounão viabilizando um entendimento. No entanto, a situação internacional norte-americana após os atentados de setembro foi profundamente danosa para asituação no Oriente Médio. A radicalização do discurso de Bush sobre aquestão terrorista deu pretexto a um brutal endurecimento do regime de Israel,perdendo os EUA legitimidade para funcionar – senão como árbitro – pelomenos como capaz de conter os impulsos agressivos de parte a parte,especialmente de Israel. Sharon considerou-se, então, livre para tentar liquidar– a sua maneira – a autoridade palestina. Na realidade, vários atores regionaisimediatamente procuraram adaptar seus interesses a essas novas circunstâncias

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da lógica do poder mundial. Alemães e japoneses aproveitaram aoportunidade para se livrar das últimas restrições dos acordos de pós-guerraque limitavam investimento militar. A Inglaterra movimentou-se rapidamentepara o espaço de grande aliado dos EUA na Europa, deixando claro a francesese alemães que não aceita um papel secundário nas discussões centrais nanova Europa. E a Rússia, enquanto flerta com o “eixo do mal” fazendo acordoscomerciais com o Iraque e a Coreia do Norte, negociava “apoio” norte-americano para suas estratégias agressivas na Tchetchênia e na Geórgia.

Na verdade, o sentimento de brutal fragilidade despertado pelosatentados aos EUA revelou um país violentamente defensivo e sem projetosistêmico ou de governança global, papel inalienável da sua condiçãohegemônica. Mas há outra importante faceta dessa questão. A nova doutrinaW. Bush também foi uma resposta à globalização. Fazendo desaparecer oespaço de ação dos Estados nacionais, a globalização destruiu o conceitode espaço estratégico. Sobrou muito pouco a negociar em termos deterritórios, de esferas de influência ou de interesses vitais com a perda deautonomias nacionais. Como se pode negociar – ou dissuadir – os novosterroristas se eles não representam Estados e não têm nada a perder e nemsenhores a quem dar satisfação?

Os complexos caminhos da hegemonia norte-americana

Nações hegemônicas sempre defenderam teses que interessam mais a sipróprias que ao sistema de nações sobre o qual exercem seu controle. Masé condição de exercício da hegemonia que os países que são parte do sistemaachem que essas teses também lhes interessam de alguma forma. Casocontrário, a hegemonia teria que ser substituída por coerção. É esse o perigoque os EUA e o mundo correm no momento em que teses unilaterais parecemdominar as ações da grande potência mundial. Assim, recoloca-se a questãodo papel hegemônico.

Analisando os ciclos hegemônicos, Fernand Braudel constatava que,sempre que os lucros do comércio e da produção se acumulavam além doscanais possíveis de investimento, este era um “sinal do outono”. As expansõesfinanceiras daí decorrentes provocavam duas tendências complementares:hiperacumulação e competição intensa por capital. Expansões do comércioe da produção muito rápidas e lucrativas geravam forte concorrência e, porsua vez, tenderam a acumular lucros superiores à capacidade de investir. A

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consequência era o crescente acúmulo de rendimentos e a criação de umagrande liquidez. As taxas de retorno em queda na atividade comercial e deprodução geravam restrições orçamentárias que aumentavam a competiçãopelo capital e poderiam elevar as taxas de juros. Nesses processos, fortesredistribuições de renda aconteciam a favor dos detentores da liquidez,sustentando uma atividade financeira divorciada da produção.

As expansões financeiras inflavam temporariamente o poder do Estadohegemônico em declínio, já que ele mantinha o acesso privilegiado da liquidezque se acumulava nos mercados financeiros mundiais. Essas expansões deliquidez, no entanto, acabavam transferindo o capital para novos sistemasemergentes com maiores perspectivas de segurança e lucro que os dominantesaté então. Na transição, a crescente desorganização sistêmica diminuía o poderde ação da potência hegemônica em crise e aumentava a demanda porgovernabilidade mundial a quem pudesse oferecê-la. Se surgissem novasestruturas governamentais e empresariais com maior competência organizacional,estariam abertas as condições para uma nova hegemonia. Esses padrões derepetição – hegemonia levando à expansão, expansão ao caos e caos à novahegemonia – verificaram-se nas transições hegemônicas do passado.

Os holandeses haviam construído a sua liderança como mercadores enão como soldados. No entanto, três guerras sucessivas contra os inglesesentre 1652 e 1674 os obrigaram a aceitar o monopólio britânico na navegaçãoe ceder o controle do tráfico de escravos na África Ocidental. Isso fez osportos ingleses superarem Amsterdã; e suas indústrias cresceram rapidamentecom a ajuda do mercado triangular no Atlântico (escravos, matérias-primas emanufaturas). Derrotada a ameaça francesa nos mares e depois em terra –na desastrada campanha russa de 1812 – o espaço estava livre para aimposição da Pax Britannica com o Tratado de Viena (1815), que conduziua Europa a uma paz de cem anos (1815-1914). A concepção inglesa deequilíbrio do poder foi construída devolvendo parte das Índias Orientais eOcidentais à Holanda e França, colocando-se como protetora do comérciomarítimo, liberalizando unilateralmente o seu comércio, barateando o custode produtos essenciais e criando meios de pagamento para a compra deprodutos industrializados ingleses. Com isso, um número crescente de paísespôde se encaixar numa benéfica divisão internacional de trabalho quepreservava a centralidade comercial inglesa.

A derrota de Napoleão já havia alterado radicalmente as relações deforça na América do Norte, permitindo aos colonos abrirem mão da proteção

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inglesa e preparar sua independência. Nas guerras do final do século XIX,por sua vez, técnicas de produção em massa foram aceleradas, a partir daGuerra da Crimeia, com uso do sistema de fabricação americano de usinagemautomática, exibido na Grande Exposição de Londres em 1851. O navio avapor mudou a lógica militar. E o mundo ficou repleto de nações industrializadas.

Já no século XX, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o custodas vitórias que contiveram a Alemanha precipitou o declínio inglês em favordos EUA. Assim que liquidaram sua dívida com a receita das armas, a liquidezamericana se converteu em empréstimos domésticos e internacionais emgrande escala. A Segunda Guerra fez despertar o poder mundial centradonos EUA, liquidados temporariamente Alemanha e Japão e enfraquecidas aInglaterra e a França. Concebida por Roosevelt, a ordem mundial norte-americana pós-guerra estava imbuída da mesma ideologia de segurança quehavia impregnado o seu New Deal interno. A ONU e o FMI tornaram-se onúcleo de um governo mundial dominado pelos EUA. Truman conseguiuutilizar-se plenamente do pretexto da Guerra Fria para concretizar uma visão“livre-mundista” voltada contra o perigo soviético. A partir de 1970, com ahumilhante derrota no Vietnã e sintomas de crise no sistema monetário centradoem Bretton Woods, a hegemonia americana apresentou alguns sinais de perdade dinamismo. Mas a surpreendente derrocada soviética deu-lhe novo ímpeto.

Cada reorganização do sistema de poder mundial havia acarretadomudanças nas relações entre o capital e o Estado. A concessão de monopólioesteve na base da enorme acumulação tanto nas companhias de comércio enavegação holandesas do século XVII como nos fabricantes ingleses do séculoXIX. Já a grande empresa verticalizada vinda da tradição fordista do iníciodo século XX sofreu uma revolução a partir dos anos 1980, com a tecnologiada informação permitindo o fracionamento das cadeias produtivas globais ea flexibilização da produção a partir das parcerias e terceirizações utilizandoos novos conceitos de redes. A empresa transnacional norte-americana, talcomo sua ancestral mercantil, tem desempenhado papel fundamental naampliação e manutenção do poder dos EUA. As análises sobre a naturezado enorme deficit comercial norte-americano deixavam claro que ele éprovocado pela imensa dispersão da atividade produtiva das empresassediadas no país – que exportam mais a partir de suas filiais externas do quede sua sede continental – e não, obviamente, por problemas decompetitividade. A vitalidade das corporações globais é intensa. Mas a enormeconcentração e a transnacionalização dessas empresas e do sistema financeiro

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geraram um sistema global pouco sujeito à autoridade estatal e com podersobre as nações mais poderosas do mundo, diminuição dos empregos, piorado perfil de renda e deficits externos estruturais crescentes nos grandes paísesda periferia. Os graves problemas dos cidadãos, que provocam demandalocais, vão se distanciando cada vez mais da possibilidade de ação dosmecanismos estatais, ocasionando crescente perda de capacidade reguladoradesses Estados nacionais.

A anatomia do capitalismo e suas crises

Os conflitos entre capital e trabalho são estruturais e permanentes. EmBretton Woods aceitou-se que os governos usassem políticas monetáriascomo instrumento de redução do desemprego. Truman acreditava que oconflito capital-trabalho poderia ser domesticado pela aplicação vigorosados novos conhecimentos científicos e tecnológicos.

No passado, como lembram Beverly J. Silver e Eric Slater, as transiçõeshegemônicas haviam convivido com crescentes conflitos sociais. Elesmoldavam, em meio aos colapsos, os pactos sociais que sustentariam a novahegemonia. Atualmente, os EUA controlam o poder militar; o Japão e oschineses de além-mar detêm a liquidez; e a República Popular da Chinapossui a mão de obra barata, alta produtividade industrial, grandes reservase é sócia essencial do capitalismo global. Esse arranjo estrutural semprecedentes, que parecia manter em relativo equilíbrio as estruturas de podermundial, foi atropelado pela crise econômica global e torna mais complexa ainvestigação do eventual declínio hegemônico norte-americano.

Mas uma questão de fundo se sobrepõe a essa análise. Há sinais de crisesistêmica e estrutural no capitalismo global? Sabemos que estudar ocapitalismo é investigar a morfologia dos seus ciclos e crises. Sua história éuma alternância entre otimismo e desalento, crescimento e recessão, adepender da qualidade das regras e instituições presentes em cada uma dessasetapas. A proposta do pós-guerra, influenciada por ideias keynesianas, eraconstituir uma nova ordem internacional propiciando amplo raio de manobrapara políticas nacionais de desenvolvimento. Seguiu-se a era dourada dasdécadas 1950 e 1960. Em 1971, no entanto, Nixon suspendeu aconversibilidade do dólar em ouro. Uma de suas consequências foi a profundaredução do poder de compra dos países exportadores de petróleo, em funçãoda erosão do dólar. A alta de preços provocada pelo cartel do petróleo em

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1973, e agravada em 1979, provocou ondas depressivas na economiamundial, especialmente nos importadores de petróleo que tiveram que arcarcom um forte endividamento para manter equilibradas suas reservas. Aabundância dos chamados petrodólares facilitou a reciclagem financeira dessespaíses mediante crédito fácil. Mas a adoção da taxa de juros flutuantes, juntocom o crescimento das dívidas, introduzia um fator importante de instabilidadeno cenário.

O declínio do “consenso keynesiano” resultou na elevação das taxas dejuros americanas em outubro de 1979. A partir daí, cresceu o patamarinflacionário geral, criou-se o euromercado pelo excesso de dólares efinalmente substitui-se o regime de taxas fixas de câmbio pelo câmbio flutuante.A primeira grave crise internacional dos anos 1980, iniciada com o colapsoda dívida externa latino-americana, tem a ver, pois, com o novo nível deestoque dessa dívida, agravada, principalmente, pela decisão dos EUA deaumentar fortemente os juros. No período 1981-1990, por conta deprofundos ajustes recessivos, o crescimento da renda per capita da AméricaLatina foi negativo. No final da década, reconhecendo a incapacidade depagamento de vários países, os EUA lideraram no G-7 os planos Baker eBrady e operaram descontos no valor nominal e nos juros dos empréstimoscontraídos durante a década.

Os anos 80 inauguraram a era dos mercados financeiros livres. Aafirmação da supremacia dos mercados gerou uma onda de crises que varreuas duas décadas seguintes e permanece até hoje. Ela iniciou com o crash daBolsa de Valores em 1987, continuou com a quebra dos mercados imobiliáriosem 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em 1990, os ataques especulativosàs moedas fracas europeias em 1992 e 1993 e a crise dos bônus americanosem 1994. Nesse mesmo ano, a grande volatilidade dos fluxos internacionaisacabou tendo um duro teste na crise cambial mexicana no final de 1994,provocando efeitos regionais perversos na Argentina e no Brasil. Mais para ofinal da década, veio a crise asiática, provocada por uma reversão do fluxointernacional de recursos aos países da região, abundantemente irrigados porfinanciamentos e investimentos em função de seus desempenhos econômicosconsiderados até então diferenciados. Seguiram-se desvalorizações intensasna Tailândia, Malásia e Coreia, com repercussões em toda a área. Em seguidaveio a crise russa, que se superpôs à segunda fase da crise asiática, e foicoroada com a moratória de 1998. Finalmente, a década terminou com novacrise brasileira. Em 2001 estourou o colapso argentino, após anos de estrito

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cumprimento das recomendações das instituições internacionais, obrigandoo país a abandonar a paridade, provocando uma desvalorização de 200%em sua moeda e o desmoronamento do seu sistema financeiro. Ao mesmotempo a Turquia entrava em forte declínio, exigindo rápido suporte do FMIpara controlar uma situação precária da qual não saiu até agora. Depois oBrasil passou a ser a grande fonte de preocupação mundial, não só pelafragilização dos seus fundamentos mas, principalmente, por efeito da turbulênciadas eleições presidenciais que elegeram Lula e que levantavam suspeitas quemostraram-se sem sentido.

As grandes questões sem resposta

Hobsbawm acha que a doença ocupacional de uma superpotência é amegalomania; e que os EUA terão que aprender as limitações de poder,como os ingleses fizeram no século XIX. Mas a crise econômica que sucedeuao estouro da “bolha tecnológica” na Bolsa de Valores norte-americana, comrepercussões em todo o mundo, acrescenta um ingrediente novo e faz algumasquestões de fundo se colocarem. Estaríamos diante de sinais de declínio dahegemonia norte-americana, tal como ocorreu com a holandesa no séculoXVII, ou com a britânica ao final do século XIX? Por outro lado, será que omesmo modelo de nação hegemônica, organizadora e reguladora do espaço,continuará a prevalecer na era da informação? Estaria a despontar da atualturbulência global uma nova estrutura hegemônica? Ela seria da mesmanatureza da que foi rompida?

Fernand Braudel dizia que não há capitalismo vigoroso sem um Estadoforte que esteja a seu serviço. Atualmente, os imensos fluxos de capital privadoe a lógica dos blocos regionais impõem restrições cada vez mais rigorosas àspolíticas econômicas. No entanto, teria sido muito diferente de hoje a relaçãobásica entre Estados e grandes corporações nos ciclos hegemônicosanteriores? Mais do que em qualquer outro período da história econômica,as tentativas de estabilizar o crescimento econômico estão severamentelimitadas por uma total anomia e pela perda de capacidade regulatória dasinstituições internacionais. E a confiança na inovação tecnológica como motorda acumulação capitalista foi temporariamente posta em dúvida pelo colapsodo preço das ações das empresas de ponta tecnológica, que havia justificadoexpectativas absurdas de taxas de retorno de investimentos, criando um estadode exaltação inconsequente quanto ao futuro do capitalismo. Será possível

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aos EUA – com a ajuda dos órgãos internacionais fortemente dependentesde sua influência (ONU, OMC, BIRD e FMI) – reconstruir um poderregulatório da ordem mundial, incluindo nesse poder os fluxos financeirosglobais que, em sua brutal autonomia, movimentam-se aos solavancos,provocando enormes danos e tumultos nos países mundo afora?

A crise, o novo Governo Americano e a configuração mundial do poder

A crise sistêmica desencadeada a partir de setembro questionou algunsdos fundamentos do capitalismo global. A partir dos anos 1980, o fim dapolarização ideológica e a acesso aos mercados globais haviam levado auma profunda transformação na política e na economia. Os Estados nacionaistornaram-se atores mais frágeis e as grandes corporações globais impuseramo seu estilo de busca de lucro a qualquer preço, operando nas zonas cinzentasdo mercado e fragmentando sua produção mundial. Esse foi, aliás, o caminhoda incorporação da China ao processo capitalista, do qual se tornou parceiramuito relevante e a mais recente florescência do modelo americano. Asquestões relativas à regulação passaram a ser rejeitadas como indesejáveisresíduos arcaicos que tentavam limitar o vigor do capitalismo vencedor. Acrise atual provocou uma reviravolta momentânea nesses conceitos.Neoliberais viraram keynesianos e governos democráticos dos países líderesmundiais alocaram volumes equivalentes a quase 20% dos respectivos PIBspara socorrer bancos e empresas submetidas a gestão temerária, sob ajustificativa parcialmente verdadeira de que estão protegendo casas, poupançase empregos da população. Enquanto isso, Alan Greenspan, pedia desculpasao mundo por não ter percebido que o mercado tinha virado um cassino eexigia controles.

A erosão da confiança dos cidadãos em seus dirigentes e nas instituiçõespolíticas é o principal problema das democracias atuais. O individualismo seexacerbou, a esfera pública se erodiu e os interesses privados se impuseramnos altares do mercado. As segundas hipotecas e os subprime só ocorreramporque os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao consumo conspícuopela propaganda, supondo que a escalada absurda de preços dos seus imóveisseria permanente. O mundo macroeconômico havia entrado numa fase dealta complexidade onde dominam opiniões tecnocráticas muito distantes dasensibilidade do cidadão-consumidor; o capitalismo financeiro globalaproveitou-se disso e vendeu-lhe fantásticas miragens.

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A crise também tem a ver com o mundo vivendo acima dos seus meios.A era da abundância em recursos naturais já havia terminado há dez anos.Cientistas respeitáveis alertavam que mais alguns passos da humanidade nadireção errada - e a degradação ecológica poderia ser irreparável, vitimandogerações futuras. Mas o poder econômico continuava garantindo que as novastecnologias “dariam um jeito”. A questão é de quem são as escolhas; e aquem elas beneficiam. Como conseguir uma mudança radical de modelo deprodução, com a redução do consumismo desenfreado e do sucateamento,se o mercado livre é a lei e os grandes atores econômicos têm total liberdadede definir a direção dos vetores tecnológicos? Alguém acredita que o própriomercado possa se auto-regular? Quem vai ser capaz de enfrentar a batalhagigantesca de reconversão da lógica privada de produção em nome do futuroda civilização?

Howard Davis, diretor da Escola de Economia de Londres, descreve okafkiano conjunto de uma centena e meia de entidades e comitês internacionaisque até aqui faziam de conta que controlavam o sistema financeirointernacional. E defende regras duras para amarrar as partes soltas do sistema,incluindo seus buracos negros, e a exigência aos bancos de comportamentoscontra cíclicos como capitalização obrigatória quando os preços de mercadoatingem valores acima das médias.

A crise iniciada em 2008 pelo colapso do sistema financeiro pode, defato, gerar uma nova era de regramento do lado desenfreado do capitalismoglobal? Quem serão seus agentes? Políticos movimentam-se de formahiperativa, outorgando-se poderes de épocas de guerra; mas ainda estão tãoperdidos como os economistas e intelectuais. Suas posições oscilam entre aantevisão “das folhas de outono” do fim do capitalismo até a assunção deque esta é uma mera crise de ajuste e será resolvida com certa socializaçãode prejuízos e alguma regulação. Mas a sua verdadeira natureza é tãocomplexa que conduz a uma cegueira relativa. Ulrich Beck diz que ocomportamento atual das autoridades mais lhe parece a daquele bêbado queprocura sua carteira perdida em meio à noite escura com o facho de umalanterna. Ao ser perguntado “É mesmo aqui que você a perdeu?” ele responde:“Não; mas a luz dessa lanterna me permite ao menos continuar procurando”.Beck lembra que risco e dano não significam necessariamente catástrofe,mas que a percepção dos seus efeitos futuros em áreas críticas como clima,finanças ou terrorismo, instaura um estado de exceção ilimitado que transcendea escala nacional para a dimensão universal. O problema é que a legitimidade

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de uma ação cosmo-política face às crises globais depende muito do focodas mídias, que só as abordam quando elas viram catástrofes.

Em suma, essa crise tanto pode ser de fundamentos quanto de forma; oude ambos. Muitas águas ainda rolarão sobre as escoras do capitalismo global;e algumas dessas escoras ainda podem cair com a força das correntes.Estruturas e equilíbrios de poder irão se alterar tanto na política como naeconomia, e muito exigirão de seus atores principais. Especialmente de BarackObama, tido como analista frio e construtor de consensos. Porém sua equipeé apenas uma reconstituição completamente da época Clinton, com algunstoques do Bush e dos jovens seguidores de Obama. Esperava-se pormudanças mais radicais, mais a ética da convicção outra vez cede à ética daresponsabilidade. Bastará para o tamanho do desafio? Obama já respondeuàs críticas de sua ala mais à esquerda que clamava por mudanças com umafrase emblemática: “a mudança sou eu!”

E o que pode mudar no papel estratégico da América Latina? Em editorialrecente, o NYT falava de uma oportunidade única para o novo governoincrementar laços com uma região que supre os EUA com um terço das suasimportações de óleo, a maioria dos seus imigrantes e quase toda a cocaínaque consome. Os líderes latino-americanos querem saber se Washington vaiagora falar a sério sobre política de energia, integração econômica, imigraçãoe tráfico de drogas. O NYT propõe acabar com o embargo sobre Cuba eaproveitar o enfraquecimento de Chávez com políticas ativas de ajudaenvolvendo também Nicarágua, Honduras e toda a região. Finalmente, pedetarifa zero ao etanol brasileiro.

O relatório do National Intelligence Council, preparado a cada quatroanos pelo núcleo duro do establishment de segurança dos EUA está prontopara ser entregue a Obama e diz que “o país ainda joga um papelproeminente nos eventos globais”, dramática diferença com o anteriorque falava numa contínua dominância dos EUA. A tendência geral daintelectualidade do país é o chamado “new declinism” – a sensação deque a mais poderosa nação do mundo está em declínio. O oposto daagressiva confiança dos anos Bush e do momento unipolar. Três razõesprincipais são apontadas: Iraque e Afeganistão são a certeza de que asupremacia militar não se converte automaticamente em vitória política; ocrescimento da China e Índia como novos atores de peso; e a percepçãovinda da crise de que os EUA estão vivendo acima de suas possibilidadese de que há alguma coisa errada no modelo americano. O respeitado

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A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER

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General Brent Scowcroft declarou outro dia “O exercício do nosso podernos revelou que ele é efêmero”. No livro de Fareed Zakaria, que constater sido o único sobre política externa lido por Obama em 2008, eleconclui que os anos Bush foram o apogeu do poder americano. RichardHaass, Chairman do Council on Foreign Relations é enfático: “O momentounipolar dos EUA se foi”. No entanto, William Wohlforth adverte que jáhouve outros momentos de crise de confiança seguidos de recuperação,como após a derrota no Vietnam.

O fato é que, salvo crise político-social de grandes proporções na China,a estagnação dos próximos anos trará definitivamente uma mudança de patamarno poder chinês. Nada ainda para ameaçar a hegemonia norte-americana. Mascom China crescendo a 7%, Europa e Japão estagnados e EUA a passo decágado, em 5 anos, os chineses terão um PIB de US$ 5 trilhão, tendoultrapassado largamente França, Inglaterra e Alemanha e ligeiramente o Japão,transformando-se na segunda maior economia do mundo. Só que os EUAainda estarão com US$ 15 trilhão, 3 vezes mais que a China!

Assim, gostemos ou não, teremos que continuar convivendo com ahegemonia norte-americana. Mas ser hegêmona é mostrar competência emfazer um discurso e praticar ações que, embora interessando mais ao própriohegêmona, possam ser compreendidos pela comunidade internacional comointeressando razoavelmente a todos. Conforme já lembramos, do “voamosmais alto e sabemos o que é melhor para o mundo” de Madeleine Albright(na era Clinton) ao “quem não está conosco está contra nós” dofundamentalista Rumsfeld (nos tempos de Bush) houve uma escala imensa dahegemonia em direção a uma quase tirania. O que nos resta é cobrar dapotência norte-americana o exercício de uma hegemonia benévola que levecada vez mais a consensos multipolares que aliviem as tensões mundiais egerem condições de governabilidade sistêmica. Esse é o grande desafio e opapel esperado do governo de Obama.

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A América Latina e o Caribe; e o Brasil**

Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão*

* Embaixador, Diretor do Departamento da América Central e do Caribe, do Ministério dasRelações Exteriores.** Texto apresentado na Sessão sobre América Latina e Caribe da “III Conferência Nacional dePolítica Externa e Política Internacional - CNPEPI - O Brasil no mundo que vem aí”,realizada no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 8 e 9 de dezembro de 2008, sob osauspícios da Fundação Alexandre de Gusmão e do Instituto de Pesquisa de RelaçõesInternacionais.

Não se fala de Europa latina e muito menos de África latina como se falade América latina. Por quê?

O Haiti é América latina? E Guadalupe? Martinica?O que se costuma chamar de América latina, na verdade, é a América

ibérica. É a América que os portugueses e espanhóis construíram. É a Américaque fala português e espanhol. É a América que herdou um comportamentocultural ibérico, uma predominância cultural católica mas, sobretudo, umamestiçagem cultural e social que se quis aberta, através de sua história, aoutras influências, mas aberta com a condicionante da predominância dachamada cultura ocidental.

O que se convencionou chamar de América latina é esse espaço geográficoe histórico onde a cultura européia, filtrada pela visão de mundo ibérica,construiu sociedades novas a partir de uma abertura a outras sociedades queincluía a miscigenação. É o lugar aonde veio o português Martin, onde ele se

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juntou com a índia Iracema e onde nasceu Moacir. Onde as filhas dos incas edos astecas se casaram com castelhanos e galegos, onde um índio esculpiu,cheio de fé, a imagem de Nossa Senhora de Copacabana.

Ao contrário da América inglesa, do norte, a América latina nasceu ecresceu como continuação da sociedade constituída em Portugal e naEspanha. Não houve, por parte dos que de lá para cá vieram, aquele desejoprotestante ou algo cátaro de cortar vínculos e fundar uma sociedade nova ediferente, uma sociedade de eleitos, que orientou muitas das principais levasde homens que foram para a América do norte e que terminaram por fundaros Estados Unidos. A única tentativa semelhante nesta nossa América foi ados jesuítas nas Missões, que fracassou rotundamente, talvez até porque nãocontemplou a miscigenação.

Os portugueses e espanhóis que para cá vieram queriam enriquecer e, sepossível, voltar nobres para sua terra e a ela se reincorporar. Aos poucos,porém, foram ficando. Mas foram ficando e, ao mesmo tempo em quemantinham sempre presente a referência a seu país de origem, davam vida,aqui, a algo novo, algo mais variado, algo mais aberto, que a convivênciaíntima com os índios despertara e a convivência íntima, logo mais, com osnegros, iria consolidar. O produto dessa interação não foi, quase nunca,consciente e se deu mesmo, muitas vezes, por baixo de uma exclusãoconsciente; mas construiu esta sociedade de aberturas e circunscrições que éa de nossa América ibérica.

Em alguns lugares mais, em outros menos, o traço que talvez mais noscaracterize seja o desta convivência constante com o outro e o da aberturaconstante ao outro. Não apenas ao outro físico mas, também, ao outro cultural.E um outro muito outro, se podemos dizer assim, pois o ibérico e o índionada tinham em comum ; e ambos, nada em comum com os africanos. Dessaconvivência com o outro nasceram nossas sociedades, e dessa convivênciaelas ainda vivem, ora gregárias, em maior ou menor grau, ora alijadoras. Atémesmo ao ponto de, vez por outra, nos sentirmos outros e alguns quererem,por exemplo, tirar um passaporte italiano ou adotar comportamentos africanos.

O que têm, então, em comum a Bahia e o Chile? Ou Cuzco e BuenosAires? Um representante minimamente educado da classe média, mesmo daclasse média baixa, do Rio de Janeiro, digamos, tem mais em comum com aItália ou a França do que com o Equador, por exemplo, ou talvez até mesmodo que com um borracheiro do Acre. O que faz, então, com que Quito e oRio de Janeiro sejam mais uma mesma coisa, que o Rio de Janeiro e Roma?

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A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL

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Talvez o fato de que ambos incorporaram Roma mas incorporaram, também,algo mais, incorporaram outras visões de mundo que se somaram à de Romapara entender ou tentar explicar o mundo e passaram a se pautar por estecomportamento que permite ou supõe a constante possibilidade de outrasincorporações.

Portugal e Espanha vieram à América e aqui miscigenaram. Miscigenaramem todos os sentidos. Mas esta miscigenação ficou aqui, na América; e só apartir da América o pensamento e o comportamento português ou espanholse modificaram em sua maneira de ver o mundo e de estar no mundo, que éhoje a nossa maneira, não mais a deles. Os dois países trouxeram para cásua visão de mundo mas aqui operaram uma abertura daquela visão de mundoque incorporou o fato novo da criação de uma sociedade que incluía - mesmoque excluindo - o outro: o índio, primeiro e o negro, depois; e depois oquibe, o suchi e por aí a fora.

Esta América, onde também o português e o espanhol viraram outro, é oque nós chamamos de América latina. É um conceito eminentemente culturale nada político. Não existe a América latina política, a não ser como expressãoparcial - uma das expressões - da América latina cultural.

E mesmo essa América latina cultural e, conseqüentemente, a política,será que são mesmo latinas? Ou serão, simplesmente, América?

Se atentarmos bem, a Guiana, o Suriname e os pequenos países do Caribeinsular anglófono e francófono, fazem parte, também, daquele conceito culturalde miscigenação que é o da América latina ibérica. Foram eles, também,países forjados nessa construção de uma sociedade de que o outro faz parte,constante e intimamente, seja por inclusão seja por exclusão, e sempre coma condicionante da preponderância da chamada cultura ocidental, neste casofiltrada pela Grã-Bretanha, pela Holanda e pela França.

A América do norte também começou assim e uma grande parcela desua população ainda é assim mas, logo, a direção social, política e históricaque tomaram, em suas relações com o mundo e com os outros que por láencontraram, enveredou pelo caminho do egoísmo messiânico; mas dosignificado disso tratarei mais adiante.

Nossas sociedades nesta América são sociedades de estrangeiros econstantemente abertas. Os ibéricos chegaram estrangeiros, os africanose depois os japoneses, indianos, árabes, europeus, todos estrangeiros; eos índios viraram estrangeiros nas sociedades que criamos, mas tambémvieram. Os europeus se mudaram para a América como não se mudaram

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para nenhum outro Continente e na América criaram, junto com os outrosque aqui encontraram e com os outros que para aqui vieram, o que nãocriaram em nenhum outro Continente. Criaram a convivência com o outro,de que já tinham perdido há muito tempo a memória. Curiosamente, osestertores dessa convivência, na Europa, deram-se exatamente naPenínsula Ibérica e Portugal e Espanha foram construídos, também, comuma razoável dose de convivência com o outro, o norte-africano e ojudeu.

Essa convivência é nossa herança, que já não é mais ibérica nem latinaporque foi construída por todos: é americana. Pois nosso temperamento jánão é o francês ou italiano ou espanhol ou português ou africano ou índio ousírio ou japonês: é americano.

Existe um samba do grande compositor Miguel Gustavo, cantado peloextraordinário Moreira da Silva e escrito para ele, que se chama “Moreirada Silva contra 007” e que mostra muito claramente o que estou dizendoaqui. O samba conta como o 007 vem ao Brasil acompanhado da CláudiaCardinale e os dois se hospedam na concentração do time do Santos, coma intenção de raptar o Pelé para que não jogue contra a Inglaterra. ACláudia Cardinale é a arma do 007 para capturar o Pelé. Na piscina daconcentração do Santos, a Cardinale fica se oferecendo ao Pelé, fica seoferecendo e o Pelé vai chegando, vai chegando, vai chegando e, diz osamba: “a bonitinha não percebe a tabelinha que ele faz / Pelé controla aCardinale, dá-lhe um beijo e avança mais; / gol do Brasil!” E, então,comentando aquela atitude ousada do Pelé, o samba conclui: “Temperamento latino é fogo! ”

Mutatis mutandis, é uma situação semelhante a quando o extraordinárioorador que foi José do Patrocínio dizia, em seus inflamados e cativantesdiscursos: “ nós, os latinos...”.

Aquele temperamento “latino” do Pelé, no samba e a “latinidade” deJosé do Patrocínio, em seus discursos, já não são mais latinos: são, comonós somos, americanos.

Por isto, a América latina não existe, existe esta nossa América que élatina e índia e negra e tudo o mais e que tem algo novo e dela para mostrarao mundo. Que vai da Patagônia ao México e engloba todo o Caribe insulare tem, dentro dela, o Brasil.

Mas por que pára no México? E o que é este algo novo e como se situa,nele, o Brasil?

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II

É fundamental recuperarmos a palavra América. Pois nós somos a Américaque pode ser algo novo na História, nós sul-americanos, centro-americanose caribenhos. Os outros, a república da América do norte, viram passar aHistória por eles e não souberam dar-lhe nada de diferente no que diz respeitoà relação com os outros povos; apenas terão representado, para a História,ao final de seu poderio, o terem-se constituído em uma cabeça de império amais oprimindo, com a empáfia de seu discurso messiânico, de uma maneiraou de outra, outros povos, como já o fizeram diversos, desde a aurora dostempos, enquanto aguardavam por outros mais fortes que, implacavelmente,lhes tomariam o bastão invocando com a mesma empáfia o mesmosalvacionismo.

Não é assim que nos vemos, nós americanos desta nossa América. Nãoé isto o que devemos querer de nós. Não é este o papel que devemos quererpara nós no mundo, na História. Porque não foi assim que surgimos, não foiassim que nos constituímos, não é assim que nos relacionamos.

O que poderemos nós, então, representar para a História? O que seremosnós que, ultimamente, o império de turno, a República do norte, como os quelhe antecederam, não soube ser, ou não pôde ser? Porque a América donorte não fez história, ela repetiu a história. Mas e nós, que eu gostaria dechamar simplesmente América, o que será de nós?

Nós, esta América nossa, este punhado de sociedades que se constituíramfeitas de outros e que continuam hoje abertas aos outros, não apenas aosoutros físicos, que cheguem imigrantes, mas aos outros que cheguem paraincorporar visões novas, esta América é a única região do mundo que podeter algo de novo a oferecer à História. E, dentro dessa América, o Brasil temum papel fundamental a desempenhar, na construção daquele algo novo.

Trata-se do que se poderia entender como a transposição para associedades - os países, os governos, os estados, as nações, como queiram- daquela intuição genial de Ortega y Gasset de que o homem é ele e suacircunstância : “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no mesalvo yo”. As circunstâncias dos países são os outros países, as outrassociedades, os outros povos.

A consciência de que nós somos nós e também os outros faz com quevejamos de uma maneira totalmente diferente a nossa relação com os outros.A alteridade do outro passa a adquirir uma identidade conosco que transforma

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muitas diferenças em similitudes. A prática disso é a extrapolação para osoutros países daquele sistema de incorporação do outro que regeu aconstituição de cada uma de nossas sociedades. É o estabelecimento derelações com base na aceitação, na incorporação dos interesses do outromas, também, na negação, mantendo sempre, entretanto, o outro como partede si.

Somente esta nossa América, que engloba, como disse, do Rio Grandeà Patagônia e o Caribe e que se formou pela incorporação constante e abertaao outro, pode estar preparada para iniciar a prática deste novo relacionamentoentre os povos no âmbito da História. Só esta nossa América criou ou quiscriar uma sociedade nova, aberta e abrangente, mas despida de qualquerveleidade salvacionista ou de qualquer missão messiânica auto-outorgada.Uma sociedade despida de qualquer desejo de exportar modelos de excelência,que pretendesse impor como solução definitiva aos problemas dos outros.Até pelo contrário, vejam bem, esta nossa América experimentou de peitoaberto já todos os sistemas e se abriu a todas as fórmulas tidas em seusmomentos como exemplares.

O que podemos ter a oferecer ao mundo - e talvez só nós - é esta ideiae esta prática de nos relacionarmos com o outro e de incorporarmos o outroa nós e de nos incorporarmos ao outro.

Vejam esta curiosa enumeração, algo caótica, de nomes de Presidentesdas várias repúblicas desta nossa América, do Rio Grande do Norte à Terrado Fogo: Bachelet, Kirchner, Sanguinetti, Geisel, Fox, Mahuad, Lindley,Aylwin, William, Frondizi, Michalski, Goulart, Alessandri, Bosch, Banzer,Stroessner, Terry, Soublette, Dorneles, Wasmosy, Fujimori, Saca, Menen,Bucaram, Kubitschek.

Nós somos todos eles e seremos muitos outros mais.E o papel do Brasil nisso tudo é fundamental. É fundamental porque,

para sê-lo, deve ser semelhante ao de todos os outros e isto é o que lhe darágrandeza.

O Brasil é grande, cresce inexoravelmente e será cada vez maior, mesmoque aos trancos e barrancos, como lembrou um de nós que muito o pensou.Não creio que alguém tenha dúvidas quanto a isto. Seria, então, relativamentefácil para o Brasil, almejar atingir, no futuro, uma situação de superioridadesobre estes que são os nossos outros e se arvorar em potência regional, ou,em breve, até um pouco mais, pois nós temos, também, uns outros nossos naÁfrica. Seremos potência, seremos ricos, teremos submarinos e fronteiras

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seguras, poremos e disporemos.Mas . . . e daí? Seremos grandes, nos imporemos pelo mundo a fora,

eventualmente alguns queimarão umas bandeiras nossas aqui e ali, talvezexplodam umas bombas em Copacabana e, assim, aos poucos estaremoscercados ineludível e implacavelmente de estrangeiros. Depois, quandoestivermos então entrando em nossa decadência, a História registrará, emsua longa lista de impérios, o nosso, como um a mais que o egoísmo doshomens gerou.

III

O Brasil não pode ser isso. Se quisermos ter um papel e uma presençano mundo, temos que ser outra coisa. E podemos, pela nossa história, pelanossa formação, pelas lutas e pela índole de nosso povo e por nossacircunstância, podemos ser outra coisa.

Esta outra coisa é a solidariedade, a verdadeira cooperação, o altruísmoque incorpora e se incorpora ao outro; esta outra coisa é o Amor.

Escândalo! Falar de amor em relações internacionais! Em política externae política internacional falar de amor! Mas sim, se nós não formos capazesde crescer juntos e em estreita intimidade com nossa circunstância, com nossaAmérica e, como disse, já agora também com um pedaço da África, se nãoformos capazes de desenvolver este novo tipo de relação com os outros emtorno de nós, se não soubermos ser iguais a eles, muito em breve passaremosa ser, nós, o Brasil, por nossa grandeza ineludível, os Estados Unidos daAmérica do Sul; e nossa passagem pela História terá sido tão melancólicaquanto foi, apenas para referir os mais recentes, a passagem do ImpérioBritânico ou, até agora, a dos Estados Unidos do norte, que sempre maiscontribuíram para a discórdia e o desentendimento entre os homens do quecontribuíram para fazer caminhar a humanidade na direção de umdesenvolvimento comum e geral, de uma solidariedade nas alegrias e nasmisérias, na direção do Amor.

O papel do Brasil, assim, é fundamental e único. A desproporção denossa grandeza com a de todos nossos vizinhos, da Patagônia ao Rio Grande,passando pelo Caribe, é notável. Por isso nossa responsabilidade e nossopapel podem ser únicos na História. Trata-se de saber se quereremos ser umimpério a mais ou se quereremos deixar na História uma presença nova. Sequereremos consolidar nosso crescimento sobre a dominação dos próximos

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ou criar uma nova relação de crescimento solidário. Se quereremos criaruma nova relação entre os povos, uma relação de cooperação verdadeira,ou apenas ocupar o espaço de tirano de turno.

Não! O Brasil não pode vir a ser um dia o tirano de turno. O Brasilpadeceu as tiranias alheias e não quererá impor a sua a ninguém. Pelo contrário,justamente porque se encontra nessa posição singular nas Américas, o Brasiltem a oportunidade única na História de poder desempenhar um papel novoe desejado, o papel de motor da solidariedade e da verdadeira igualdadeentre as diferentes nações. Só quem tem pode dar. O Brasil tem muito e,portanto, pode dar muito.

O possível não é limitado pelo impossível, pelo contrário, o possível équem determina as fronteiras do impossível. E sempre mais o impossível sefaz possível, do que o possível impossível.

Meu convite, portanto, não é para pensarmos o Brasil no mundo quevem aí, mas para pensarmos o mundo num Brasil que pode vir aí.

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América Latina no presente SistemaInternacional

Helio Jaguaribe

1. Introdução

Uma satisfatória análise da posição da América Latina em geral e daAmérica do Sul, em particular, no presente sistema internacional, requer quese leve em conta não somente, como usualmente se procede, a medida emque os Estados Unidos, única superpotência remanescente, alcançaramincontrastável supremacia mundial mas, também, a medida em que doisprocessos originariamente independentes, o processo de globalização e oprocesso de expansão do poder e da influência dos Estados Unidos vieram atornar-se crescentemente interconectados.

O corrente processo de globalização constitui a terceira e decisiva fasede um processo que se iniciou com os descobrimentos marítimos do séculoXV e subseqüente Revolução Mercantil, que se expandiu e acelerou com aRevolução Industrial, a partir de fins do século XVIII e adquiriu suas presentecaracterísticas, com o que se poderia denominar de Revolução Tecnológica,depois da Segunda Guerra Mundial, notadamente no curso do último terçodo século XX.

A principal característica do atual processo de globalização é suadependência da eletrônica, à semelhança da dependência da máquina a vapor,por parte da Revolução Industrial. Os recursos proporcionados pelainformática, por telecomunicações quase instantâneas, pela rapidíssima

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HELIO JAGUARIBE

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interconexão aérea de todas as áreas do planeta, pela energia nuclear e porum contínuo progresso científico, que vai da cosmologia à biologia molecular,modificaram decisivamente as características sociais e individuais do mundocontemporâneo. Sem prejuízo da importância que continuam detendo osrecursos naturais (e.g. crescentemente água e ainda por algum tempo petróleo)se tornaram menos importantes que os tecnológicos.

É nesse quadro que se processa a crescente interconexão entreglobalização e americanização. O processo de continuada expansão do podere da influência dos Estados Unidos, a partir da Primeira Guerra Mundial,mais ainda depois da Segunda e, sem competidores externos, com o finalcolapso da União Soviética em 1991, levou aquele país a dispor de condiçõesparticularmente favoráveis – deliberadamente as empregando – para se valer,em atendimento de seus interesses, desse outro processo em expansão aindamais acelerada, o da globalização.

Detêm os EUA a maior capacidade internacional de tecnologia,particularmente em suas diversas dimensões cibernéticas. A informatizaçãodo mundo passou, assim, a se processar sob o prático monopólio dos EUA.O idioma inglês se substituiu definitivamente ao francês, a partir do segundoterço do século XX e tornou-se à língua universal, favorecendo, naturalmente,aqueles de que é língua materna. O sistema financeiro internacional, queconstitui o núcleo central do processo de globalização, se tornou, por umlado, majoritariamente controlado por empresas americanas e, por outro lado,o que mais importa, veio a se pautar integralmente pelos métodos financeirosdos EUA e tem o inglês como seu próprio idioma. O processo de globalizaçãose converteu, assim, no processo de americanização do mundo.

Esse mesmo processo se tornou, também, equivalente ao processo demodernização. Central, no mesmo, é o completo predomínio da razãoinstrumental, nas múltiplas formas pelas quais se desenvolve o “know how”.Colateralmente, se universalizaram os valores do modo de vida americano eseus objetivos de poder e de consumo, pelo cinema, pela televisão, pelamúsica, pela indumentária dos jovens e, de um modo geral, pelo “estilojovem”.

Como todos os precedentes históricos da universalização de uma culturahegemônica – oposição sassânida à cultura helênica, judaica e germânica, àcultura romana, britânica, à cultura francesa – a expansão da cultura americanaestá encontrando crescentes resistências. Haveria que distinguir, a esserespeito, resistências de tipo autonomizantes como, no âmbito do Ocidente,

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AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL

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o mundo latino e, no do Oriente, o chinês, de resistências de tipoantagonizantes, como no mundo islâmico. Estas últimas tendem a reforçar asdos primeiro tipo.

Algo imprevistamente, para os ocidentais, o Islam se tornou, notadamentea partir do último terço do século XX, o principal fator de oposição aosEstados Unidos e à americanização do mundo. Essa oposição, diversamentedo que se entende em certos setores, não é primordialmente uma oposiçãoreligiosa ao cristianismo, como na Idade Média, ou à democratização dassociedades como predominantemente se pensa nos EUA. Essa oposição éao modo americano de modernização e, por decorrência, às formas ocidentaisde modernização.

O fenômeno é complexo e comporta diversas dimensões e aspectos. Onúcleo dessa oposição se encontra, sem dúvida, nas características integristasdo Islam, como religião e como cultura. Importa recordar a esse respeitoque, embora em termos menos radicais, o cristianismo, tanto em sua versãoortodoxa como na católica, também foi integrista. A civilização bizantina,que prevaleceu no Ocidente do século VII a meados do século XIII, eraintegrista e unia, no mesmo sistema de valores, cristianismo e patriotismobizantino. Na vertente católica do cristianismo se desenvolveu, do séculoXII ao XIII, um conflito de vida e morte entre o Império e o Papado, cadaqual pretendendo unificar, sob sua hegemonia, o conjunto dos valores culturais,políticos e cívicos. Foi precisamente porque esse conflito, embora perdidopelos imperadores Hohenstaufen, conduziu, igualmente, à desmoralização doPapado, com sete décadas de Avignon, que o mundo ocidental se livrou dointegrismo religioso-político e foi levado, no curso do tempo, com oRenascimento e a Ilustração, à independente formação, na sociedade global,de quatro subsistemas: civil, cultural, político e econômico. É precisamentecontra a independentização dos subsistemas que se insurge o islamismo. Estese funda na indissolúvel unidade da “umma”, a sociedade dos crentes, aprimeira das quais foi fundada por Maomé em Medina em 622, na qual estãosubmetidas ao mesmo regime as dimensões religioso-cultural, política,econômica e civil da sociedade global.

Num fenômeno tão complexo como o que conduz ao fundamentalismoislâmico intervêm vários outros fatores e circunstâncias, notadamente os queproduzem ou manifestam a profunda frustração decorrente da dominação domundo islâmico pelo ocidental, particularmente o americano. O fato é queas desastradas políticas do presidente Bush, relativamente à questão palestina

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e, de um modo geral, ao mundo muçulmano, exacerbadas com a decisãounilateral de invadir e ocupar o Iraque, suscitaram uma imensa reaçãofundamentalista no mundo islâmico, gerando um gravíssimo problema mundial.

2. Império Americano

A incontrastável supremacia dos Estado Unidos, ora exacerbada pelounilateralismo do governo Bush, tem levado muitos analistas a descrevê-laem termos da formação de um novo império mundial, o “Império Americano”.É certo que são inegáveis os aspectos imperiais da supremacia americana.Isto não obstante, uma análise mais cuidadosa da forma pela qual se exerceessa supremacia revela características que a diferenciam completamente dosimpérios históricos, do romano ao britânico. Estes consistiam no exercício deuma dominação formal da metrópole sobre suas províncias ou colônias, dirigidapor um pró-cônsul ou vice-rei, apoiado por guarnições militares e equipesburocráticas da metrópole. Nada disso ocorre com o “Império Americano”.Este preserva os aspectos formais da soberania dos países sob suapredominância: bandeira, hino, exércitos de parada, inclusive, nas sociedadesdemocráticas, eleições “livres” de seus dirigentes.

O predomínio americano não se exerce sob a formal modalidade de umimpério e sim através de um conjunto de poderosos constrangimentos, decaráter financeiro, econômico-tecnológico, cultural, político e apenasexcepcionalmente por intervenções militares, como no recente caso do Iraque.O “Império Americano” é um “campo”, em sentido análogo ao queempregamos quando falamos de “campo magnético” ou “campogravitacional”. Esse sistema de poderosos condicionamentos, precedentementereferido, opera de sorte a compelir os dirigentes locais, lhes agrade ou não, aatuar de forma compatível com os interesses do sistema financeiro internacional,das grandes multinacionais que endogenamente controlam a economia dessespaíses e, exogenamente, de Washington.

Os constrangimentos precedentemente referidos se reforçamreciprocamente. De um modo geral, o constrangimento principal é de caráterfinanceiro. Frequentemente, porque o país controlado depende, para oequilíbrio de suas contas, de financiamentos proporcionados, direta ouindiretamente, pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, ademais de poragências como o Eximbank, o Banco Mundial e outras. De um modo geral,porque, para manter seu acesso ao mercado financeiro internacional – e

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também ao tecnológico – esses países têm de atuar de conformidade comsuas regras. Por outro lado, as grandes multinacionais, que estãocrescentemente assumindo o controle da economia dos paísessubdesenvolvidos, neles dispõem de condições para orientar sua política.Mencione-se, entre estas, a predominância do financiamento, nãonecessariamente ostensivo, que as multinacionais têm nas campanhas políticasdesses países, assim decisivamente influenciando a escolha de seus dirigentese a conduta destes.

Extremamente relevante, nesse processo, é a influência cultural dosEUA. Esta se exerce através das mais diversas formas que vão, nos paísessubdesenvolvidos, do absoluto predomínio americano no cinema, natelevisão e no regime de informações, até a medida em que, nos últimostrinta anos, é cada vez maior e mais decisivo o número de economistasdesses países formados por universidades americanas. Nestas, a boa ciênciaeconômica que lhes é ensinada vem indissoluvelmente embutida numaideologia neoliberal, que se apresenta como condição da boa técnicaeconômica (vide o “Consenso de Washington) e como tal é absorvida poresses discípulos. Daí a orientação neoliberal de quase todas as competentesequipes econômicas assessorando governos da periferia, o Brasil sendouma das ilustrações do caso.

Decisiva influência, nesse processo, é exercida pelo fato de o processo demodernização ter crescentemente assumido, a partir da segunda metade doséculo XX, características de uma americanização. Isto se torna particularmentevisível na juventude e se faz sentir mesmo em países como a China, que buscaséria e eficazmente modalidades próprias de desenvolvimento, mas onde ajuventude urbana, de calças jeans, dança o rock.

A supremacia americana, embora de alcance mundial, ainda não é umacompleta hegemonia internacional, dada a existência de outros centros depoder que, embora sujeitos a essa supremacia, a ela oferecem variadosgraus de resistência. Cabe, assim, constatar que o atual sistema internacionalapresenta quatro distintos níveis.

(1) Nível de supremacia: exclusivamente ocupado pelos Estados Unidos;(2) Nível de autonomia interna: União Europeia;(3) Nível de resistência: China, Índia, Rússia e, potencialmente, Brasil,

caso se consolidem Mercosul e o Sistema Sul-americano de Cooperação eLivre Comércio;

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(4) Nível de dependência: os demais países.

3. Alternativas Históricas

O quadro internacional precedentemente indicado é bastante instável etende, a largo prazo, ou seja, no curso da primeira metade deste século,senão mais cedo, a se modificar. Duas são as principais alternativas do sistemainternacional e da ordem mundial dele decorrente: (1) consolidação do“Império Americano” ou (2) formação de um novo regime multipolar.

A primeira alternativa resultaria da completa consolidação euniversalização da hegemonia americana. Essa hipótese apresenta, por suavez, duas possibilidades. A menos provável seria a de uma dura hegemoniaunilateral dos EUA, no estilo do governo Bush, lograr e se consolidar e seimpor universalmente. O que torna improvável essa hipótese é o fato de que,para prevalecer, teria de empregar meios coercitivos extremamente violentos,como por exemplo, entre outras medidas a preventiva aniquilação, por mísseis,das instalações atômicas da China. Constrangimentos domésticos, nospróprios Estados Unidos, além de outras formas de resistência, tornamimprovável esse desfecho.

A segunda possível modalidade de uma consolidada e universal hegemoniaamericana, bem mais viável, seria a de se constituir por via cooptacional. Omelhor exemplo histórico dessa modalidade de hegemonia é dado por FelipeII da Macedônia e sua “Liga Helênica”. Em 337 aC, depois de havermilitarmente se sobreposto a todos os outros Estados gregos, Felipe reuniuem Corinto um congresso panhelênico e nele, nominalmente como preparativopara a guerra contra a Pérsia, inimiga comum de todos os gregos (leia-se,hoje, guerra contra o terrorismo), se constituiu a Liga Helênica. Nela, cadaEstado grego participava de sua assembleia com um peso proporcional àrespectiva importância, cabendo, entretanto, à Macedônia, o comando militare a liderança da Liga.

Os Estados Unidos poderão, eventualmente, construir um sistema análogoà Liga Helênica, incorporando a sua liderança mundial os outros principaiscentros de poder, como União Europeia, China, Rússia, Índia e eventualmentealguns outros. Em tal caso, formar-se-ia um sistema hegemônico mundialsusceptível de muito longa duração.

A outra alternativa histórica é a formação, até meados do século, de outroscentros de poder dotados de satisfatória equipotência com os EUA. A China

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é, reconhecidamente, a principal candidata a essa posição. Tendo mantidocontinuamente, desde Deng Xiaoping, a partir de 1978, impressionantes taxasanuais de crescimento econômico, não inferiores a 7% e se modernizadovertiginosamente, a China tenderá a superar o PIB americano em 2045,alcançando, segundo estimativa de Goldman Sachs (“paper” 99 de 2003)US$34,8 trilhões, contra os US$30,9 trilhões dos Estados Unidos. Essapossibilidade, embora realista, depende, entre outras circunstâncias, de duasprincipais condições: (1) capacidade de sustentar, a partir de 2015, taxasanuais de crescimento não inferiores a 6% e (2) atitude, por parte da liderançachinesa, de proceder, pacífica e tempestivamente, aos ajustes institucionais quecorrespondam às necessidades de uma China moderna.

Outra candidata à condição de novo centro internacional de poder é aRússia, na medida em que as reformas que vêm sendo introduzidas porWladimir Putin tenham continuidade e persistência. Herdando do passadosoviético o segundo maior arsenal nuclear do mundo, a Rússia dá indicaçõesde se encaminhar para recuperar sua antiga condição de superpotência atémeados do século. Estima Goldman Sachs, no referido estudo, que a Rússia,cujo PIB per capita, em 2000 era apenas cerca de 10% do americano, alcance60% deste em 2050.

O sistema internacional tende a experimentar, no curso da primeira metadedeste século, outras importantes modificações. Consistem estas na provávelemergência de um novo tipo de protagonista internacional que, não alcançandoa condição de superpotência, atinja, estável e auto-sustentavelmente, acondição de grande interlocutor independente.

Essa possibilidade se apresenta para o provável caso de que se formem, naUnião Europeia, subsistemas políticos diferenciados entre si e do conjunto da UEcomo sistema econômico. A Europa dos 25 acentuou, provavelmente de formadefinitiva, as dificuldades que já observavam na Europa dos 15 de esse grandesistema econômico alcançar satisfatória unidade política. Isto não significa que aUE não venha a adotar uma Constituição comum, o que provavelmente virá aocorrer. Significa, entretanto, que essa Constituição incluirá normas que requeiramunanimidade, ou algo de próximo, para a adoção de posições comuns em matériade política externa e de defesa, assim as inviabilizando. A UE, em seu conjunto,continuará sendo um gigante econômico e um anão político.

Nesse quadro, entretanto, já se pode discernir uma forte tendência paraque, no âmbito da UE, se formem subsistemas políticos diferenciados. Doisjá se encontram claramente em formação: (1) um subsistema atlanticista,

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liderado pelo Reino Unido e apoiado pelos nórdicos, estreitamente vinculadoaos EUA e (2) um subsistema europeista, liderado por França e Alemanha,tendente a ser apoiado pelos países latinos, adotando uma posiçãoindependente dos EUA, embora vinculada aos valores ocidentais. Resta aver como se posicionarão, face a esses dois subsistemas, os povos eslavosrecém-admitidos na UE. De imediato, esses novos membros inclinam-se paraa posição atlanticista, como decorrência de sua histórica resistência à URSSe, portanto, à Rússia. Existem, todavia, importantes vínculos históricos eeconômicos que aproximam a Europa central da Alemanha e a Polônia daFrança. Até que ponto, no curso do tempo, esses vínculos não tenderão aaproximar os eslavos do subsistema franco-germanico?

Independentemente de como venham a se alinhar os eslavos europeus,no curso do primeiro terço deste século, tudo indica que o sub-sistema políticoeuropeista tenderá a se consolidar e a se constituir como um grande interlocutorinternacional independente. Essa condição de grande interlocutor internacionalindependente terá outro protagonista, a Índia, que já a está adotando e cujoPIB, conforme o mencionado estudo de Goldman Sachs, tenderá a ultrapassaro maior PIB europeu, o da Alemanha, em 2025.

Um terceiro candidato à condição de grande interlocutor internacionalindependente é o Brasil. Referindo, uma vez mais, o mencionado estudo deGoldman Sachs, o Brasil tenderá a ultrapassar o PIB da França em 2035 eem 2040, o da Alemanha. No caso do Brasil, todavia, é importante levar emconta a necessidade de que se ressente, para assegurar sua autonomiainternacional, de manter uma estreita aliança com a Argentina e de operar noâmbito do Mercosul e de um sistema sul-americano de cooperação e livrecomércio. Essas circunstâncias, todavia, podem e tendem a ser mantidaspelo Brasil, o que o qualifica como potencial grande interlocutor internacionalindependente no horizonte de meados do século.

Uma análise mais abrangente dessa questão requeriria se contemplasseo caso dos países islâmicos e algumas outras situações, o que, entretanto,ultrapassaria as estreitas dimensões deste estudo. Baste se mencionar, assim,que a alternativa multipolar, para meados deste século, conduz à formaçãode três grandes sistemas de poder – EUA, China e Rússia – e de, pelo menos,de três grandes interlocutores internacionais independentes, Índia, subsistemaeuropeista e sistema Brasil-Mercosul-Sulamérica.

O quadro resultante desse possível futuro regime internacional éextremamente complexo porque envolverá, por um lado, um renovado risco

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de hecatombe nuclear, como durante o período da Guerra Fria e, por outrolado, um difícil relacionamento entre EUA e China, mediatizado por Rússia epelos grandes interlocutores internacionais.

Na verdade, contemplando-se o processo histórico no seu muito longoprazo, pode-se dizer que tende a duas consequências finais: o suicídio nuclearda humanidade ou a formação, como previa Kant, de uma estável PaxUniversalis. Caso venha a se formar um novo regime multipolar, em meadosdo século, o sentido de sobrevivência tenderá mais uma vez, como no cursoda Guerra Fria, a evitar um confronto nuclear. Este, não obstante, comoquase ocorreu no período precedente, pode vir a se desencadear de formanão expressamente deliberada. Se o mundo evitar o suicídio nuclear, tenderáa formas crescentemente institucionais de regulação de seus interesses,culminando numa forma satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativade administração mundial. É interessante observar que, por caminhos distintos,a hipótese de uma durável hegemonia americana, nos termos precedentementeanalisados, também tenderá, a longo prazo, a desembocar umasatisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa administração mundial.

4. América Latina e Brasil

As considerações precedentes permitem concluir as presentes reflexõesconsiderando a situação, nesse quadro, da América Latina, em geral e doBrasil, em particular.

A evolução da América Latina, no curso da segunda metade do séculoXX, conduziu a uma significativa diferenciação econômica entre o norte e osul da região. O norte, que já vinha se caracterizando por sua crescentegravitação em torno dos Estado Unidos, veio, com a adesão do México àNAFTA, a se constituir, institucionalmente, em parte do sistema econômicoamericano. A América do Sul, não obstante a grande influência que, sobmúltiplas formas, sobre ela exercem os Estados Unidos, mantém significativamargem de autonomia e encontra em países como Brasil e Argentina e,decorrentemente, em Mercosul, um núcleo duro de resistência a sua absorçãopelo sistema econômico americano.

Cabe, assim, nas presentes condições, diferenciar na América Latinatrês distintos círculos: o econômico, o cultural e o político. Economicamente,a região está dividida, por um lado, entre México, América Central e Caribe,gravitando em torno dos EUA e por outro lado, América do Sul, sob

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predominante influência de Brasil e Argentina, diretamente e por intermédiode Mercosul. Culturalmente, a América Latina apresenta significativa unidade,não obstante as diferenças entre hispanofonos e lusófonos. As comunscaracterísticas ibero-americanas de América Latina superam, de muito, suasparticularidades lingüísticas e outras. Caberia mencionar o fato de que, numpaís como a Espanha, as diferenças entre um castelhano e um andaluz sãopossivelmente maiores que as que separam hispanofonos de lusófonos. Ocirculo político, finalmente, apresenta diferenciações conforme as opçõespolíticas tenham motivação econômicas, caso em que se manifesta o dualismonorte-sul, das opções de motivação cultural, tão ou mais freqüentes que asprecedentes, caso em que se manifesta a unidade cultural de América Latina.

Uma análise satisfatoriamente abrangentes de América Latina requereria,relativamente ao norte da região, diferenciar-se os casos de México, daAmérica Central e do Caribe. Requereria, em relação ao sul da região, umadiferenciação entre Mercosul, por um lado e, por outro, Chile e os paísesandinos. Os restritos limites deste estudo impõem uma simplificação. Nelese considerará, por um lado, o eixo Argentina-Brasil-Mercosul e sua influênciasobre o restante da América do Sul e, por outro lado, o caso do México.

Reduzindo uma questão complexa a seus aspectos mais fundamentaispode-se dizer que o que está em jogo, na América Latina é, por um lado, amedida em que países como Brasil e Argentina logrem estabelecer uma durável,confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica, a partir da qual possamconsolidar Mercosul e instituir um sistema sul-americano de cooperação elivre comércio, assegurando à América do Sul a possibilidade de se constituir,até meados do século, como um dos grandes interlocutores internacionaisindependentes do mundo. Por outro lado, a questão que se apresenta é a decomo assegurar ao México a preservação de sua identidade nacional, noâmbito de NAFTA e da supremacia americana. As duas questões estão inter-relacionadas, embora de forma não simétrica. Se não se constituir de formaestável, confiável e reciprocamente benéfica, uma aliança estratégica entreBrasil e Argentina, não somente Mercosul deixará de se manter e não selogrará instituir um sistema sul-americano de cooperação e livre comérciocomo, ademais, os dois grandes países da América do Sul perderão,isoladamente, a capacidade de manter sua autonomia internacional e seconverterão em segmentos do mercado internacional e em “províncias” doImpério Americano. Tudo, assim, depende dessa aliança. Por outro lado,ainda que esta se consolide e gere os esperados efeitos na América do Sul, a

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manutenção da identidade nacional do México é condição, para este, dapreservação de seu destino histórico e, para a América Latina, da sustentaçãode um de seus pilares fundamentais. Com efeito, não obstante a relativaimportância da contribuição cultural centro-americana e cubana, por um lado,e de países como Chile e dos andinos, por outro, a cultura latino-americanarepousa, no fundamental, sobre o tripé constituído, de norte a sul, por México,Brasil e Argentina. Sem México, essa cultura se veria terrivelmente mutilada.

O problema com que se defronta a América Latina, face ao incipienteséculo XXI, é a medida em que, seja qual for a alternativa que venha a serassumida pelo sistema internacional, no curso da primeira metade do século,a possibilidade de que os latino-americanos tenham voz e peso, nesse sistema,depende da medida em que logrem fazer de América do Sul um grandeinterlocutor internacional independente. Se lograrem alcançar essainterlocução, México, embora submetido a uma vinculação econômica comEUA, preservará sua identidade nacional e condições para optimizar seupróprio relacionamento econômico com o vizinho do norte.

Seria desnecessário reconhecer o fato de que, para a América do Sul, aalternativa multipolar, na evolução do sistema internacional, seria de longe amais favorável e a única em que lhe seria possível o exercício de um importantee independente interlocução internacional. É pouco, mas não irrelevante, oque um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio possa fazerpara contribuir no sentido da formação de um futuro regime multipolar.Observe-se, entretanto, que mesmo no caso de vir a se configurar uma longahegemonia mundial americana, a formação de uma séria aliança entre o Brasile a Argentina, com suas múltiplas decorrências na América do Sul, constituiriaalgo de decisivo para que a inserção desses países, e dos demais da região,no sistema imperial americano, se faça sob a forma de uma província deprimeira classe, como ocorrerá com os países europeus, e não como resíduosindiferenciados do Terceiro Mundo.

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América Latina e Caribe: Nova Fronteira daPolítica Externa Brasileira

Marcel Biato

Integração regional ou “descolamento”?

Neste início de século XXI, quando começa a consolidar-se como paíscom interesses e alcance globais, o Brasil está se voltando mais intensamentepara sua vizinhança imediata. Por que haveria de fazê-lo, arriscando distrair-se do esforço primordial de esquadrinhar as potencialidades e riscos que aglobalização abre para uma potência emergente? Seria recomendável ao Brasilatribuir prioridade a aglomerado disperso de países de dimensões econômicascontrastantes e tradições sociais e políticas igualmente díspares? Discrepânciase divergências que só parecem aumentar e que negariam qualquer possibilidadede consolidar-se um bloco regional apto a integrar-se de forma coesa ecompetitiva numa economia mundial cada vez mais integrada?

A América do Sul e, mais genericamente, a América Latina e Caribe foia primeira fronteira do Brasil. Os limites físicos, lentamente consolidados aolongo de décadas e séculos, reforçavam o fosso que nos separava ediferenciava de um entorno continental do qual nos sentíamos existencialmenteapartados pela língua, por rivalidades dinásticas, pelo regime político e poraspirações derivadas de nossas dimensões demográfica e territorial. Desdeos primórdios da luta pela independência continental no início do século XIX,eram mútuos e crescentes os sentimentos de desconfiança e mesmo inimizadeentre as repúblicas herdeiras do Império Espanhol e o então Império luso-

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brasileiro. O regime brasileiro representava o continuísmo monárquico,escravocrata e expansionista contra o qual os próceres Bolívar e San Martínhaviam-se batido. Não é de estranhar, em contrapartida, que o Barão do RioBranco, responsável pela consolidação definitiva das fronteiras brasileirasum século mais tarde, tenha sido um dos poucos heróis populares do país.

Por muitas décadas, “descolar” da América Latina e de sua multiplicidadede repúblicas, frequentemente instáveis politicamente e frágeiseconomicamente, era um objetivo nacional tão intensamente ansiado quantomal-disfarçado. Nada pior para quem se via como o “país do futuro” do queter sua capital confundida com Buenos Aires. No momento em que empresase interesses brasileiros vêm galgando latitudes e conquistando horizontes,muitos ainda arguirão que para tornar-se um global player o Brasil deveriaminimizar seus vínculos com vizinhos sem projeção política ou relevânciaeconômica no cenário internacional, países aparentemente condenados àeterna condição de “quintal” dos Estados Unidos. Já nos atuais tempos deglobalização, a região passou a ser vista como “canteiro” de matéria primapara o novo pólo dinâmico da indústria mundial, que estaria migrandoinexoravelmente em direção à Ásia. Nesse cenário, caberia ao Brasilposicionar-se estrategicamente como um daqueles poucos países que, porsua massa crítica demográfica e escala de produção industrial, poderia escapara esse modesto destino. O que se vê, no entanto, é algo bem diverso. OBrasil está firmemente engajado em múltiplas iniciativas voltadas para fomentara integração regional. Hoje, ambiciosos projetos viários encurtam distânciascontinentais, esquemas de interconexão energética reforçam umainterdependência natural e instituições supranacionais começam a tornarrealidade a retórica secular da solidariedade regional. Como se deu essametamorfose? Terá o Brasil abandonado sua ambição de desgarrar-se doseu entorno para realizar sua vocação de ator global?

Do imperialismo aos três “Ds”

A resposta para essa transformação começa, sim, com um sonho degrandeza – mas não do Brasil. A noção de América Latina, incorporandoaqui também o Caribe, nasceu em associação à ambição imperial de NapoleãoIII. Num momento de forte competição expansionista entre as potênciaseuropeias, essa expressão foi cunhada para valorizar a presença mundial daFrança e de sua civilização. O final trágico da aventura de Maximiliano I, no

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AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

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México, e o inexorável recuo cultural francês puseram fim a esses grandiososdevaneios. Entretanto, vingou a expressão que Napoleão III ajudou apopularizar. Uma sobrevivência improvável, para não dizer surpreendente,pois pretende qualificar região que jamais se havia imaginado comoconformando uma unidade geográfica, étnica e, muito menos, política.

Na virada do século XX, prevaleciam na região outras perspectivasgeopolíticas. Argentina, Brasil e Chile se viam como potências sul-americanase disputavam entre si a liderança do continente. Argentina e Brasil também searvoravam como próceres das grandes causas hemisféricas. O Brasil o fazia,a partir de certo momento, na expectativa de selar uma aliança preferencialcom os Estados Unidos. A Argentina, com o objetivo oposto. Já a AméricaCentral era comumente enxergada – inclusive por si própria – quase comoum protetorado norte-americano. Quanto ao Caribe, não passava de umadependência colonial, como que a lembrar a todos os demais de um passadorecente que ainda buscavam exorcizar.

O único elemento verdadeiramente unificador era o fato de a AméricaLatina e Caribe reunir países herdeiros dos impérios europeus que seconstituíram ao sul do Rio Grande. Em outras palavras, unia-lhes o fato deserem nações ainda lutando para desvencilhar-se das amarras que os atavameconômica e culturalmente às praças metropolitanas. Nesse sentido, aexpressão América Latina foi quase que uma imposição de fora, dentro damelhor prática colonialista.

Talvez tenhamos aí uma chave para a persistência da noção de AméricaLatina. Consolida-se em paralelo a consciência, sobretudo a partir do pós-guerra, de que a região vivia uma relação de dependência periférica, sejacom as ex-metrópoles, seja com outras nações avançadas. A expressão maisnítida desse sentimento de subordinação foi formulada pioneiramente porRaúl Prebisch, um dos mentores da CEPAL. Arguiu haver tendência,aparentemente inexorável, de deterioração do poder de compra no mercadointernacional dos produtos primários, principal fonte de divisas dos paíseslatino-americanos. Em contraste, os bens industrializados, de maior valoragregado, que necessitavam importar dos países desenvolvidos, tornavam-se cada vez mais valorizados e, portanto, inaccessíveis. Esse quadro tornou-se ainda mais dramático ao final da Segunda Guerra Mundial, com a retomadados fluxos comerciais entre os mercados europeu e norte-americano e suascolônias africanas e asiáticas. A competição dessas exportações primáriascom produtos latino-americanos acelerava a depreciação da produção latino-

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americana. O resultante desequilíbrio nas contas externas, após a curtabonança do período da guerra, pareceria condenar os países latino-americanosa sistemáticas crises de balanço de pagamento, com o inevitável impactosobre a atividade econômica e, mais particularmente, sobre projetosambiciosos de industrialização – já então vista como o atalho mais curto parao desenvolvimento. Nascem nesse contexto os famosos três “Ds” do chancelerbrasileiro Araújo Castro. Discursando na abertura da Assembleia-Geral dasNações Unidas em 1963, pregou reformas estruturais ao sistema internacional.Somente com o Desarmamento – liberando maciços recursos para financiara industrialização – e com a Descolonização – trazendo autodeterminaçãoaos povos da África e Ásia – poder-se-ia almejar o Desenvolvimento dospaíses do agora denominado Terceiro Mundo. Parecia à diplomacia brasileiraser essa a única fórmula capaz de romper o círculo vicioso de dependênciaperiférica, formulado teoricamente por, entre outros, Fernando HenriqueCardoso.

Comércio versus desenvolvimento

Como então estruturado, o comércio parecia aumentar os desníveis entrepaíses e condenar irremediavelmente os países subdesenvolvidos a assimpermanecer. Nasce nesse momento ideia que, décadas mais tarde, desembocariana criação do G-20, foro negociador dedicado a melhorar os termos de trocadas exportações agrícolas dos países já agora denominados em desenvolvimento.A própria demora na fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) 1– assim como os limitados recursos à disposição de entidades multilaterais definanciamento – como o Banco Mundial e o Banco Interamericano deDesenvolvimento, reflete a modéstia dos avanços em direção à criação do que seesperava seria uma Nova Ordem Econômica, capaz de atender às aspiraçõesdos países em desenvolvimento. Não por coincidência, surgem grosso modonesse período os primeiros movimentos em direção à integração regional. Ficaraclaro que dos países industrializados do Norte – indiferentemente se do camposocialista ou capitalista – não viriam nem as concessões nem a generosidadealmejadas. Caberia aos países do Sul se unirem para exigir reformas.

Há claro paralelismo entre o movimento pela descolonização na África ena Ásia e os primeiros passos na América Latina em direção à integração

1 Foi preciso esperar até 1994.

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regional. Caberia aos povos então denominados “subdesenvolvidos” tomarseu destino em suas próprias mãos e deixar de simplesmente esperar respostase propostas advindas dos países desenvolvidos. A experiência, a partir de1960, da ALALC e, posteriormente, da ALADI2 contribuiu para aumentar ocomércio inter-regional e para preparar os países da região latino-americanospara o processo de globalização que adviria décadas mais tarde. A meraredução de barreiras alfandegárias revelou-se, entretanto, de limitado impacto.Na medida em que não tocou nas condicionantes estruturais da atividadeeconômica em cada país, a política de fomentar a constituição de uma uniãoaduaneira continental terminou por reproduzir, em certa média, dentro daAmérica Latina a relação assimétrica que já caracterizava as trocas da regiãocomo um todo com os países desenvolvidos. Sintomático dessa dinâmicaperversa é o fato de que, em momentos de retração do comércio e dosinvestimentos internacionais – como na atual crise, os fluxos entre os paísesda América Latina caem em ritmo ainda maior, contribuindo para reforçar –ao invés de minorar – o impacto recessivo. Essa realidade, essa dinâmicaespelha uma preocupante constatação. A falta de competitividade ecomplementaridade produtiva das economias menores frustrava seu principalinteresse em aderir aos arranjos comerciais regionais: o acesso prioritário aomercado consumidor das maiores economias da região. Muitas vezes, vê-seexatamente o contrário – o predomínio avassalador nos mercados menoresde empresas e investimentos oriundos das economias maiores. O resultado éa consolidação de um superávit estrutural nas contas comerciais,particularmente do Brasil, com a maioria de seus vizinhos latino-americanos.A “invasão” brasileira nesses mercados acaba por favorecer rancores etemores nacionalistas que militam contra o próprio projeto integracionista.

Não estranha, portanto, que o aprofundamento dos mecanismos regionaisde integração seja retardado por suspeitas e acusações por parte dos parceirosmenores de que apenas as economias maiores do Bloco estariam auferindoos benefícios do acesso privilegiado a um mercado de escala continental. Naverdade, permanecem vigentes para a maioria dos países da região aslimitações estruturais já apontadas por Araújo Castro, a saber, falta de acessoà capacitação técnica e tecnológica e aos investimentos necessários àindustrialização desenvolvimentista.

2 A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), lançada em 1960, foi sucedidapela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) em 1980.

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Como superar esse ciclo vicioso? Na era da globalização, essa indagaçãoganha tinturas de especial urgência. A livre circulação de idéias, de bens etecnologia tornou a todos mais interligados, por força da crescentedependência mútua – para melhor ou pior – em matéria econômica, ambientale de segurança. Em princípio, isto deveria servir de poderoso incentivo parapaíses e indivíduos buscarem mais cooperação, maximizando os benefíciosda interdependência e mitigando seu lado adverso. No entanto, aquelasmesmas forças desencadeadas pela globalização ajudam a exacerbar asdisparidades pré-existentes em padrão de vida dentro de países e entre eles,ao mesmo tempo em que magnificam os contrastes sociais e econômicosdecorrentes. Afinal de contas, os movimentos de crenças, imagens e pessoasfomentam não apenas admiração e emulação, mas por vezes inveja efrustração.

Globalização ou democratização?

Da perspectiva de um país em desenvolvimento, esse dilema éespecialmente severo. Para a maioria, o preço inevitável para unir-se àeconomia global que está emergindo pode significar perda considerável decontrole e capacidade regulatória soberana sobre amplos espectros de políticapública, à medida que se impõe a lógica de um mercado de massa globalmenteintegrado. No entanto, demandas opostas para reverter a forte redução dapresença do Estado marcaram os anos 80 em diante. A subseqüente crisefinanceira global do fim da década dos 90, que atingiu os países emdesenvolvimento com especial virulência, só fez reforçar essas demandas.Calou fundo a percepção do papel insubstituível do Estado no provimentode planejamento estratégico, de políticas econômicas anticíclicas e de serviçospúblicos de primeira necessidade, sobretudo em momentos de grandeturbulência econômico e desassossego social.

Na América Latina, mais do que em qualquer outra região, essas forçascontraditórias se entrechocaram com contundência. Em nenhuma região ochamado Consenso de Washington foi aplicado com maior vigor e fracassoucom maior retumbância. Em nenhuma outra parte houve reação mais vigorosa,na forma de movimentos de democracia popular que expressavamnacionalismo econômico – e especialmente energético – e sentimento anti-globalização. Rechaçou-se a falsa confluência entre a modernização do Estadoe sua destituição como instrumento estratégico de formulação e execução de

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políticas públicas. Entendeu-se que fortalecer as instituições capazes de gerargovernabilidade transparente e legítima não é a mesma coisa que se submeterde forma acrítica às forças impessoais do mercado. Exige-se que a democraciaseja também econômica e social, isto é, que se traduza em bem-estar eprosperidade para todos. Em alguns países, busca-se mesmo a “re-fundação”das instituições nacionais, de forma a coaduná-las ao surgimento na cenapolítica nacional de segmentos sociais antes sem representação. A convocaçãode Assembleias Constituintes expressa uma confiança fundamental no sistemademocrático. Na medida em que as instituições públicas logrem atender àsdemandas mínimas, sua credibilidade sai fortalecida. A própria América Centralvive uma espécie de “sul-americanização“, na medida em que também ali têmassumido governos favoráveis a um maior engajamento do Estado em políticasde promoção de inclusão social. A dinâmica dessas mudanças segue umatrajetória complexa e muitas vezes imprevisível. Podem, num primeiromomento, acirrar tensões que as instituições estão mal-equipadas a absorver.É notável, portanto, que, dos muitos grupos de esquerda que há 20 anosdefendiam a recurso às armas, apenas as FARC, na Colômbia, não foramincorporados ao processo democrático.

Compatibilizar as forças da globalização e da soberania nacional e popularpassa, num aggiornamento da linguagem de Araújo Castro, por um sistemainternacional de tomada de decisões que promova o desenvolvimentosustentável global, protegendo direitos adquiridos, mas também respeitandoaspirações e realidades emergentes. A crise econômica atual, assim como aameaça ambiental que vivemos, são apenas manifestações mais óbvias deum realinhamento crucial de forças. A irrupção na cena mundial dos países“emergentes”, que passam a rivalizar política e economicamente com astradicionais potências industrializadas, dá conotações cada vez mais clarasao desequilíbrio fundamental da sociedade global contemporânea: de um lado,o desejo dos países ricos de preservar um padrão de consumo insustentávele, de outro, a aspiração dos países em desenvolvimento de alcançar níveisequivalentes de bem-estar.

As implicações dessa realidade foram suscitadas pelo então SecretárioGeral das Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório “In Larger Freedom”,de 2005. Pela primeira vez num documento oficial, reconheceu explicitamentenão se poder garantir a segurança e bem-estar para alguns se não houverdesenvolvimento para todos. O desafio para a comunidade internacional estáem adequar o sistema internacional a essa transição de poder que,

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paradoxalmente, termina por atingir mais duramente os setores mais vulneráveisdos próprios países em desenvolvimento. Alguns exemplos, são esses mesmospaíses os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas são os maisdiretamente atingidos pelas intempéries. Ao mesmo tempo, são os que menosrecursos financeiros e tecnológicos dispõem para enfrentá-las. De igual modo,como bem demonstra a atual crise financeira, as nações pobres são as maisduramente atingidas por turbulências financeiras para as quais pouco ou nadacontribuíram. Nem por isso estão em condições de influir adequadamentenas determinações do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial,agências cruciais para o encaminhamento da crise. Para não falar no Conselhode Segurança das Nações Unidas, cada vez mais desmoralizado e incapazde responder ao desafio dos conflitos que hoje dominam as manchetesinternacionais.

A opção latino-americana

Nunca as instituições multilaterais foram tão demandadas. No entanto,vemos que nunca estiveram tão ausentes e incapazes de responder às demandase ameaças de um mundo em profunda e acelerada transformação. Amultiplicação de iniciativas unilaterais ou por meio de grupos auto-selecionadosde países motivados por critérios que não são universalmente reconhecidosou compartilhados contribui para agravar tensões e incertezas. Em meio àcrescente interdependência e conectividade, defrontamos o desafio de construirum novo modelo de governabilidade global, centrado em mecanismosatualizados de cooperação e coordenação. Nesse esforço, os países daAmérica Latina e Caribe estão tomando a dianteira. Consolida-se aconsciência de que a região necessita projetar-se de forma coesa e unida emdefesa de uma agenda de interesses claramente definidos.

O Brasil engaja-se nesse esforço a partir de um enfoque pragmático deseus interesses – não de uma fé romântica em ideais distantes dos interessesobjetivos do país. A experiência prática tem se incumbido de fazer dissipar afalsa dicotomia entre as aspirações brasileiras de projetar-se como ator global– por força de suas dimensões demográficas e potencialidades econômicas –e o projeto de integração regional no qual está fortemente engajado. Pelaescala e competitividade de seu parque produtivo, nenhum país tem mais aganhar com a criação de um espaço econômico regional integrado do que oBrasil. Demonstração eloquente disso é a presença crescente de empresas e

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produtos brasileiros nos mercados vizinhos. A América Latina já é o primeirodestino para as exportações brasileiras de produtos manufaturados e serviçostecnológicos. Esses empreendedores formam a ponta de lança de umaagressiva estratégia de internacionalização de empresas brasileira, passoindispensável para a inserção competitiva do Brasil na economia globalizada.

A construção desse espaço integrado passa necessariamente pelaconsolidação de uma infra-estrutura de transportes, comunicações e energiaque dê real conectividade e, portanto, competitividade à economia regional.Trata-se de superar definitivamente, no plano físico, uma pesada herança desociedades de costas umas para as outras, voltadas historicamente para asex-metrópoles. Para viabilizar as obras de infra-estrutura que romperão essalógica herdada do pacto colonial, estão disponíveis volumes crescentes definanciamento público brasileiro, por meio do BNDES e do Programa Proexdo Banco do Brasil. Por outro lado, já estão em curso negociações para acriação de um Banco do Sul, capaz de multiplicar os recursos já disponíveispara esse fim no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e naCorporación Andina de Fomento (CAF).

Consolidar esse processo exige, como já referido, que as vantagens deacesso a um mercado consumidor integrado de escala continental possamestender-se a todos. Minorar as enormes assimetrias entre as economiasnacionais é o objetivo do Fundo para a Convergência Estrutural eFortalecimento da Estrutura Institucional do Mercosul – o FOCEM,constituído para colocar recursos financeiros e capacitação técnica àdisposição de empresas de países de menor desenvolvimento relativo. Aintegração de mercados também passa pela harmonização progressiva dosdistintos regimes aduaneiros na região. Já há importantes acordos decomplementação comercial entre o Mercosul, o Chile e a Comunidade Andina.

Uma nova institucionalidade e o papel do Brasil

O trabalho de aprofundamento institucional vai além das esferaseconômica e comercial. As dificuldades que a União Europeia vemenfrentando para consolidar seu projeto3 de integração apontam para aimportância de evitar-se, também na América Latina, o risco de “déficit

3 A rejeição por referendo popular na Dinamarca do Tratado de Lisboa suspendeu a vigênciadesse instrumento decisivo para o aprofundamento institucional da União Européia.

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democrático”. O processo de construção da unidade regional deve dar aocidadão comum a sensação de dispor de voz ativa nos processos decisóriosque afetam sua vida. No âmbito do Mercosul, está-se consolidando conjuntode mecanismos voltados não apenas para o alargamento do Bloco – comoo ingresso da Venezuela – mas também para seu aprofundamento, com oForo Consultivo de Cidades e Regiões, o Fórum Social e, em particular, oParlamento. Tenciona-se estender progressivamente todas essas iniciativasà esfera da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, que servirá deguarda-chuva institucional para o conjunto de ações de integração em escalacontinental sendo postas em prática para realizar o pleno potencial dasnotáveis vantagens comparativas da região: ausência de sérias tensões deíndole étnica, religiosa ou nacionalista; considerável unidade linguístico-cultural; amplos recursos naturais minerais e agrícolas, inclusive um terçoda água potável do mundo.

Esse arcabouço almeja estimular as condições políticas e institucionaisnecessárias para reverter, na esfera continental, o distanciamento entre paísesestruturalmente voltados para parceiros do além-mar, seja as antigasmetrópoles seja novos sócios privilegiados dentre os países industrializados.Essa lógica do afastamento – quando não da competição antagônica – entrepaíses vizinhos se expressa de forma especialmente visível em matéria desegurança e defesa4. Assim como é necessário superar barreiras físicas àintegração, a construção de uma identidade regional passa pela superaçãode rivalidades históricas e tensões e desconfianças que desestimulam umavisão comum dos interesses coletivos de região.

É nesse contexto que ganha especial relevância a criação recente doConselho de Defesa. Ele estimulará mecanismos de diálogo e coordenaçãopara encaminhar soluções pacíficas e mutuamente acordadas parasituações regionais de conflito. O encaminhamento pacífico da crise que,em meados de 2008, ameaçava levar a Bolívia ao borde de uma guerra

4 Reproduziram-se, no processo de definição de fronteiras dos estados herdeiros do esfacelamentodo império espanhol as forças centrífugas herdadas do nexo colonial. O temor permanente deingerência externa via-se potencializado por uma identidade nacional fragilizada em meio àinsegurança de uma elite branca desenraizada e à marginalização de um substrato de massasindígenas e mestiças politicamente não confiáveis. Explica-se assim que, apesar – ou talvezmesmo por causa – de a maioria de vizinhos limítrofes hispano-americanos partilharem estreitasafinidades étnicas, culturais e históricas, o processo de diferenciação das nacionalidades tenhasido tão conflituoso. Isto ajuda a explicar também a ligação entre a questão limítrofe e oprocesso de consolidação da identidade nacional e, por conseguinte, a importância dos princípiosde não intervenção e de intangibilidade de fronteiras consagrados no direito panamericano.

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civil, foi um passo notável nessa direção. Já as deliberações durante aCúpula do Grupo do Rio, em São Domingo, também em 2008 –posteriormente referendadas pela OEA – evitaram que o episódio deviolação fronteiriça envolvendo o Equador e a Colômbia degenerasse emum enfrentamento bélico.

A consolidação de uma visão generosa do potencial dos países da regiãoalcançar objetivos comuns, por encima das suspeitas históricas e rivalidadescontemporâneas, tem relevância especial para o Brasil. A multiplicação dapresença de empresas e investimentos brasileiros nas economias vizinhas temsido acompanhada, em anos recentes, pela multiplicação de gestos deincômodo e mesmo hostilidade, de conotação frequentemente nacionalista.Em contrapartida, também surgem oportunidades para demonstrar asvantagens da acrescida capacidade de ação e de mobilização que o país hojedetém. Exemplo nesse sentido foi o recente convite do Governo bolivianopara o Brasil substituir os Estados Unidos como mercado preferencial parasuas exportações de têxteis5.

Talvez o mais trunfo de que dispõe o Brasil esteja, no entanto, no campoinstitucional. Oferece cooperação, entre outros, no combate a doenças e nodesenvolvimento agrícola. Mas sua vantagem comparativa está, sobretudo,no campo da modernização do Estado em favor do planejamento de longoprazo para promover crescimento com distribuição de renda. Programas decombate à AIDS, de fomento à agricultura familiar e de inclusão social, comoo programa Bolsa Família.

A vez da América Central e do Caribe

A consolidação de um bloco coeso e integrado sul-americano não excluiuma aproximação com a América Central e Caribe. Pelo contrário, oferece aplataforma para consolidar um espaço integrado em escala ainda maior. Foiesse o sentido da incorporação dos países do Caribe como membros-plenosdo Grupo do Rio, mecanismo tradicional de concertação e consulta políticada região. Se é verdade que a América Central e Caribe não comparte amesma coerência geográfica e unidade linguística do continente sul-americano,trás outros trunfos e possibilidades.

5 A recente rescisão do acordo de cooperação entre a Bolívia e os EUA na repressão ao cultivoà coca levou Washington a suspender o acesso privilegiado de exportações têxteis bolivianos aomercado norte-americano.

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Numa economia cada vez mais globalizada, esse agrupamento de paísesdispõe de localização privilegiada para acessar as principais praças comerciaise motores econômicos do século XXI. Trata-se de região situadaestrategicamente próxima ao maior mercado do mundo – os Estados Unidos.Já por meio do Canal do Panamá, tem-se acesso em condições vantajosasàs economias emergentes da China e do Sudoeste Asiático. Não por acaso aAgência Brasileira de Promoção às Exportações (APEX) abriu no Canal doPanamá um centro distribuidor de produtos.

No âmbito energético, o Brasil vem desenvolvendo, em colaboraçãocom os EUA, programas triangulares que permitem a países centro-americanose caribenhos beneficiarem-se de tecnologia e insumos brasileiros para exportaretanol ao mercado norte-americano. Ao mesmo tempo, esses paísesincorporam uma fonte energética renovável e barata que os ajudará a reduzira dependência do petróleo importado. A internacionalização de empresas einvestimentos brasileiros na região se dá em vários ramos, como por exemplo,o têxtil. Por sua vez, a Embrapa abrirá um escritório regional para cooperarna melhoria da produtividade e competitividade da produção agropecuária.

Como estímulo a essas iniciativas, está em curso a negociação de acordosde associação do Mercosul com o Mercado Comum Centro-Americano ecom a Comunidade do Caribe (CARICOM). Expressão concreta docompromisso brasileiro com essa aproximação foi o recente pedido brasileiropara ingressar no Banco Centro-Americano de Integração. Ao mesmo tempo,o Brasil vem aprofundando o diálogo com o CARICOM e com o Sistema deIntegração Centro-Americana (SICA).

Com o México, o aumento do comércio e dos investimentos bilateraisdemonstra que diferenças de regimes comerciais6 não devem constituir umabarreira. Uma parceria no desenvolvimento de tecnologia de prospecção depetróleo a alta profundidade poderá ajudar ambos os países a maximizar osbenefícios de suas potencialidades energéticas.

Talvez a expressão maior da convicção da importância de a região chamara si a solução da complexa multiplicidade de interesses e desafios que seapresentam está na decisão brasileira de convocar, em dezembro de 2008,na Bahia, a primeira Cúpula da América Latina e Caribe. Foi a primeira vezque os 33 países se reuniram para discutir uma agenda verdadeiramente

6 O México forma parte do NAFTA, regime de livre comércio congregando também os EstadosUnidos e o Canadá.

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regional. O compromisso coletivo em buscar soluções próprias para asquestões da região foi sublinhado pela reafirmação do apoio à missão dasNações Unidas no Haiti, composta majoritariamente por latino-americanos.

Uma agenda comum e o diálogo com os EUA

Talvez o mais importante resultado do encontro tenha sido a declaraçãode que diante da crise global, a América Latina e Caribe se sairão melhor seunirem esforços. Sobretudo em momento em que se questionam osfundamentos e as instituições do sistema financeiro internacional, a regiãonão poderá defender seus interesses enquanto continuar mero espectadordas grandes decisões. Somente identificando interesses compartidos evantagens comparativas coletivas poderá a região moldar as condições emque se integrará a esse novo mundo em gestação.

Em qualquer cenário futuro, Washington seguirá sendo um interlocutorimprescindível. A eleição de Obama suscitou grandes expectativas. A chegadaao poder em Washington do primeiro afro-descendente serve de metáforapara a capacidade de reinvenção e renovação do modelo norte-americanosob o signo da tolerância e diversidade? É essa a pergunta que se fizeram oslíderes reunidos em Sauípe, ao avançar propostas inovadoras que desafiam aAdministração Obama a deixar para trás uma agenda hemisféricahistoricamente unilateral e impositiva, centrada no conhecido trinômio: livrecomércio, terrorismo e narcotráfico.

Nenhum tema será mais definidor das perspectivas de moldar-se umdiálogo equilibrado e construtivo do que a normalização plena das relaçõesde Cuba no hemisfério. Foi esse o sentido do recente ingresso, por decisãounânime, de Havana no Grupo do Rio. Investimentos brasileiros estãoajudando a melhorar a infra-estrutura e a competitividade de parque produtivocubano e, dessa forma, as chances do país incorporar-se, sem maiores traumaseconômicos e sociais, à comunidade hemisférica.

A suspensão do embargo norte-americano contra Cuba tem uma cargasimbólica que muito além da simples superação de uma das últimasconfrontações remanescentes da Guerra Fria. Tem a ver com a luta pelodireito à autodeterminação e pelo direito de decidir seu próprio futuro, semtemores de intervenções ou ingerências externas, questão que – como jávimos, marca de forma profunda a história e a psique da região. A consciênciada necessidade e do direito de assumir maiores responsabilidades pelo próprio

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destino está à raiz do amadurecimento institucional que a região vive. Assimdeve-se interpretar a proposta do Presidente Calderón, durante a Cúpula deSauípe, de lançar-se, já em 2010, uma Organização dos Estados Latino-Americanos.

Superar a lógica da submissão e da dependência abre caminho parafundar uma verdadeira parceria com os Estados Unidos. A proposta, adiantadapela Secretária de Estado, de um programa hemisférico em matéria de energiasrenováveis pode ser um bom começo. Abre perspectivas de aprofundar-se acooperação já existente nesse campo, com benefícios palpáveis em matériade acesso a mercados e transferência de tecnologia. Não hesitaremos emcobrar essas promessas se o elevado custo de introduzir tecnologias “verdes”for pretexto para Washington abandonar negociações para reduzir sua emissãogases de efeito estufa ou para rever as tarifas alfandegárias que atualmenteincidem sobre as exportações de etanol brasileiro.

No momento em que a economia global atravessa grave crise, a AméricaLatina e o Caribe esperam dos EUA não iniciativas grandiosas, mas umadisposição de coordenar respostas consensuais. Isto implica, de um lado,que os EUA resistam à tentação de recorrer ao protecionismo para protegermercados e empregos locais. De outro lado, significa evitar adotar programade socorro financeiro doméstico que “sugue” todo o crédito disponível nosmercados internacionais, em prejuízo das necessidades de financiamento daseconomias em desenvolvimento.

Exigiremos que a demanda norte-americana por estupefacientes, e nãoapenas sua produção na América Latina – seja combatida com vigor etenacidade. No tratamento de imigrantes em condição irregular,demandaremos respeito a princípios elementares de direitos humanos. Tambémdevemos insistir em que programas regionais de cooperação e aberturacomercial – e não a construção de um muro sobre o Rio Grande – sejamnossa resposta coletiva à aspiração de muitos latino-americanos a emprego evida dignos. Apoiamos o compromisso do Presidente Obama de recuperar opapel do Estado como agente de promoção de políticas públicas estratégicas,ainda mais neste momento em que a globalização mostra sua face mais sinistra.Estaremos prontos a colaborar em ações anticíclicas, sobretudo nos setores-chave de saúde e educação, para proteger empregos e os mais vulneráveis.

A V Cúpula das Américas, a realizar-se em abril próximo, em Trinidad eTobago, será um primeiro e decisivo teste dessa determinação de nossa regiãode não esperar, mas de avançar propostas concretas para uma aliança

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hemisférica que reconheça os avanços econômicos e sociais da região, assimcomo o imperativo do diálogo e da cooperação em um mundo cada vez maisinterdependente.

Conclusão

Na tentativa de realizar o sonho de um Novo Mundo na América tropical,os próceres da independência latino-americana buscaram regulamentar todosos aspectos das relações regionais. Desde amplos acordos comerciais até auniformização do direito público, passando por mecanismos de conciliação earbitramento obrigatórios de litígios. Permaneceu, no entanto, no papel osonho de uma “pátria grande” hispano-americana, capaz de cristalizar numaunidade política panamericana os anseios libertários e proto-democráticosdas nações que emergiam da sombra dos impérios ibero-americanos.

Hoje, o conceito de América Latina e Caribe exprime sobretudo aconvicção de que somos unidos pela busca do desenvolvimento sustentávelcom inclusão social, pela valorização de nossa diversidade e pela certeza deque podemos contribuir decisivamente para moldar neste hemisfério um espaçode convivência pacífica e prosperidade comum. Isto não invalida que cadapaís identifique formas próprias e historicamente condicionadas de alcançaresses alvos nacionais e regionais. Superamos uma visão mercantilista doprocesso de integração para compreender que a resposta está em forjar umamoldura institucional que traga transparência e previsibilidade às açõescoletivas, mas também comparta experiências, capacitações e recursos.

No momento em que a globalização cobra solidariedade e coordenaçãode todos, a América Latina e Caribe estão dando um exemplo e secredenciando para opinar na construção de uma nova ordem mais equitativa.É essa a convicção que motiva o Presidente Lula a afirmar que de nadaadianta ao Brasil avançar e progredir se estiver cercado por vizinhos atrasadose ressentidos. Assim, mais do que nunca a América Latina e Caribe continuama ser a primeira fronteira do Brasil e a linha de frente de sua política externa.

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Uma Europa mais Transparente

Franklin Trein*

1. Breve introdução histórica

Não é uma tarefa simples conhecer o processo histórico que vem sendocumprido pelo demorado e complexo movimento que constitui a União Europeia.A integração entre um pequeno grupo de países do Velho Continente, ao ter sidoiniciada em um período de recuperação da grave crise econômica, social e políticaem que se encontrava a Europa no final da Segunda Guerra, estabeleceu princípiose metas que se tornaram rapidamente insuficientes para dar respostas aos desafiosimpostos pela construção de um destino comum entre Estados e Nações. Naquelemomento, quando foram retomadas as desgastadas idéias de unir os europeussob um mesmo projeto de desenvolvimento, as relações entre as sociedadesnacionais europeias estavam marcadas profundamente pelos conflitos, que aolongo de séculos, levaram a sucessivas destruições de parte a parte.

A paz era a recompensa de todos os sacrifícios e das intermináveisnegociações que deviam conduzir ao estabelecimento de uma confiança mútua,capaz de fazer convergir os esforços de reconstrução das economias e dassociedades nacionais, destruídas e destroçadas pela Guerra. Assinado pelosseis países fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço1 –

*Coordenador do Programa de Estudos Europeus da UFRJ.1 Os seis países signatários do Tratado de Paris são: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgoe República Federal da Alemanha.

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FRANKLIN TREIN

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CECA –, em 18 de abril de 1951, o Tratado de Paris tinha objetivos bastantelimitados. Contudo, através da habilidosa escolha do carvão e do aço, insumosindispensáveis à guerra, postos sob a supervisão de uma Alta Autoridadecompletamente independente dos governos nacionais, ele serviu de ponto departida seguro para o processo de integração que se iniciava.

Os Tratados de Roma (25 de março de 1957) reuniram os mesmos seissignatários do Tratado de Paris, estabelecendo a Comunidade EconômicaEuropeia – CEE – e a Comunidade Europeia da Energia Atômica –EURATOM. Aqueles dois Tratados continham projetos muito maisabrangentes e audaciosos do que o primeiro passo dado em 1951. Elesincluíam dimensões importantes das economias nacionais de cada Estadomembro, influenciando diretamente o cotidiano das sociedades envolvidas.

Os Tratados de Roma, a exemplo do Tratado de Paris, continuavam aapostar numa integração que se apoiava principalmente nas relaçõeseconômicas. Os dois projetos de integração de caráter eminentemente político– a Comunidade Europeia de Defesa2 – CED – e a Comunidade PolíticaEuropeia – CPE – não tiveram seguimento depois que a Assembleia Nacionalfrancesa recusou-se a ratificar o Tratado que criava a CED em 30 de agostode 1954.

Apesar de todos os obstáculos enfrentados e dificuldades a seremsuperadas, desde os primeiros anos de sua implantação o êxito das trêsComunidades Europeias tornou-se sensível mesmo para aqueles que viam aintegração com grande ceticismo. Talvez, o melhor exemplo neste sentidoseja a mudança ocorrida na posição do Reino Unido a respeito de suaparticipação naqueles projetos. Depois de recusar por reiteradas vezes oconvite para ser signatário do Tratado de Paris e dos Tratados de Roma,seguindo o exemplo da Irlanda, que apresentou a Bruxelas o seu pedido deadesão à Comunidade Econômica Europeia em 31 de julho de 1961, Londresformalizou o seu primeiro pedido para fazer parte da CEE em 9 de agosto de1961. O mesmo fez a Dinamarca no dia seguinte3.

O desenvolvimento positivo da integração comprovava o acerto dasdecisões de ampliação das relações econômicas dos Estados membros, ao

2 O Tratado que criava a Comunidade Europeia de defesa foi assinado no dia 27 de maio de1952. Foram seus signatários: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e República Federalda Alemanha. Este último país devia observar restrições quanto ao armamento que estaria àdisposição de suas Forças Armadas.3 A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a Comunidade Europeia no dia 1o

de janeiro de 1973.

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UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE

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mesmo tempo em que indicava a necessidade de que a integração fosseampliada para as relações políticas. Pois, sem que isto acontecesse, a economiaencontraria rapidamente os seus limites como fator de aproximação entre associedades nacionais envolvidas no processo. Assim, Christian Fouchet4

recebeu a tarefa de coordenar o grupo de trabalho encarregado de redigirum projeto de União Política da Europa. Ainda que o Plano Fouchet5, comofoi chamado aquele projeto, não tenha produzido ao resultado esperado, eleserviu para marcar a necessidade do debate em torno da integração políticada Europa.

Pouco antes de ingressar em um momento de grandes dificuldades emconsequência da crise que se estabeleceu na economia mundial no início dadécada de 70, na reunião de cúpula de Haia – 1o e 2 de dezembro de 1969– as Comunidades Europeias decidiram a dar um passo importante no sentidode atingir metas correspondentes a uma maior integração. Definiram entãocomo objetivo a realização gradual de uma União Econômica e Monetária –UEM – até 1980. O plano para implantação da UEM, também conhecidocomo Plano Werner6, foi apresentado pela Comissão Europeia ao ConselhoEuropeu em 8 de outubro de 1970. Ele definia, entre outras coisas, umprograma de convergência das políticas macro-econômicas e, em especial,um rígido controle sobre as taxas de câmbio entre as moedas dos Estadosmembros, o que deu origem ao que ficou conhecido como a “serpentemonetária” 7.

A condução de Sicco Leendert Mansholt8, então Comissário para aAgricultura, ao cargo de Presidente da Comissão Europeia – 22 de marçode 1972 – marcou a radicalização de um importante debate político-econômico em Bruxelas. A discussão liderada por Mansholt, que envolveunão só os membros da Comissão, levou ao estabelecimento das bases daquelaque, seja pela sua complexidade, seja pelos seus custos para o conjunto dos

4 Christian Fouchet (1911 – 1974), diplomata francês, estudou direito e economia política. Foideputado na Assembleia Nacional e ministro de Estado nos Gabinetes de Pierre Mendes Francee Georges Pompidou.5 O Plano Fouchet foi apresentado na reunião de Chefes de Estado e de Governo dos Estadosmembros da Comunidade Econômica Europeia em julho de 1961, em Bonn.6 Pierre Werner (1913 – 2002), embora nascido na França, era cidadão luxemburguês. FoiMinistro de Finanças e da Cultura e por duas vezes Primeiro Ministro do Ducado de Luxemburgo.7 A “serpente monetária” foi um sistema concebido para controlar as relações cambiais entre asmoedas dos países da CEE dentro de um regime mais estrito do que o então existente.8 Sicco Leendert Mansholt (1908 – 1995), político holandês, membro do Partido Social Democratados Trabalhadores. Mansholt foi Presidente da Comissão Européia em 1972 e 1973.

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Estados membros, se tornaria a política de integração mais expressiva porum período de vários anos: a Política Agrícola Comum – PAC. A PACconverteu-se em um paradigma da integração, tanto pelos efeitos internos aomercado comunitário, como por suas consequências para as relações bilateraise multilaterais da CEE.

Rumo à união econômica e monetária, como base indispensável aomercado único, um momento importante na agenda de integração foi a adoçãoem 13 de março de 1979 da unidade monetária europeia, o “ecu”9; umamoeda contábil, de referência para o orçamento e prestação de contas detoda as instância comunitárias e ainda disponível para as contas públicas eprivadas dos Estados membros. Naquele mesmo ano, nos dias 7 a 10 dejunho, os eleitores dos Estados membros elegeram, pela primeira vez pelovoto direto, os seus eurodeputados, ou seja, os seus representantes noParlamento Europeu em Estrasburgo10. Aquele acontecimento teve umextraordinário valor, não somente no sentido simbólico da construção deuma comunidade de nações, mas na dimensão prática de consolidação deuma infra-estrutura democrática capaz de discutir e decidir coletivamentesobre o destino de milhões de europeus irmanados pelo diálogo, pela paz epela vontade de um desenvolvimento solidário.

As sucessivas elevações do preço do petróleo ao longo da década de70 e a consequente desordem das contas públicas, principalmente dos paísesem desenvolvimento, levaram a economia mundial a uma crise sem precedentesno pós- Guerra. Assim, no início dos anos 80 a integração europeia enfrentougrandes problemas e passou a ser vista com enorme ceticismo pela opiniãopública e mesmo por expressivas lideranças políticas da Europa. Para transporo horizonte negativo que se abatia sobre a Comunidade, em 6 de janeiro de1981, o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Hans-DietrichGenscher11 apresentou em uma reunião em Stuttgart o que foi chamado de“Apelo a Epifania”. Em seu discurso o ministro alemão preconizava umaretomada urgente da cooperação política entre os dez Estados membros.Pouco depois, no dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, em Florença, Emilio

9 O ecu foi substituído pelo euro em 1o de janeiro de 1999.10 O Parlamento Europeu se reuniu pela primeira vez em março de 1958, em Estrasburgo. Os142 eurodeputados que ali compareceram representavam os Parlamentos nacionais dos Estadosmembros.11 Hans-Dietrich Genscher (1927 - ) estudou economia e direito, foi deputado no ParlamentoFederal alemão, Ministro do Interior e depois Ministro de Relações Exteriores da Alemanhaentre 1974 e 1992.

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Colombo, Ministro de Relações Exteriores da Itália, retomava as palavrasde seu colega alemão para conclamar a todos os países comunitários a umesforço sem par no sentido da integração política. Aqueles discursos somadosderam nascimento a um programa de trabalho que ficou conhecido comoPlano Genscher-Colombo, apresentado ao Conselho Europeu na reunião decúpula realizada em Londres nos dias 26 e 27 de novembro de 1981.

O Plano Genscher-Colombo tornou-se assim precursor do Ato ÚnicoEuropeu. Naquele documento – assinado em 17 e 28 de fevereiro de 1986em Luxemburgo e em Haia, respectivamente, que tem o escopo de um Tratado– pela primeira vez os europeus declaram a intenção de construir juntos umaUnião Europeia. Neste sentido, o Ato Único define as modificaçõesinstitucionais a serem empreendidas, trata do alargamento das competênciascomunitárias, examina a cooperação política europeia com terceiros países,estabelece as condições de construção de um espaço social europeu12 e criaum programa de pesquisa científica amplo e acessível a todos os Estadosmembros.

A partir da assinatura do Ato Único, superado o que ficou conhecidocomo o euroceticismo, o processo de integração retomou seu curso positivo.O Relatório Delors13, apresentado em 12 de abril de 1989, cuidou dasuperação de importantes obstáculos que dificultavam o avanço da UniãoEconômica e Monetária. Em poucas palavras, Jaques Delors recuperou oque já havia sido estabelecido pelo Plano Werner em 1970. Porém, reiteroua necessidade da convertibilidade completa e irreversível das moedas entreos Estados membros, da completa liberação do movimento de capitais, dafixação de paridade entre as moedas europeias e, em conclusão, asseverou anecessidade da adoção de uma moeda única. A União Econômica e Monetáriaproposta por Delors deveria ser realizada em três etapas. A primeira se resumiaa concluir a construção do mercado único, o que implicava, entre outrascoisas, que todas as moedas aderissem ao mecanismo de trocas do SistemaMonetário Europeu – SME. O segundo momento teria como principal tarefaestabelecer um Sistema Europeu de Bancos Centrais – SEBC – que coexistiria

12 Ao tratar da livre circulação de pessoas entre os Estados membros, como um princípiofundamental da União Europeia, o Ato Único Europeu reforça as decisões e os parâmetroscontidos no Acordo de Schenguen, entre a Alemanha, Bélgica, França Holanda e Luxemburgo, de14 de junho de 1985, válidos para o controle da circulação de pessoas sobre as fronteiras dospaíses signatários.13 Jacques Delors (1925 - ) estudou economia, foi Ministro de Economia e Finanças da França,Presidente da Comissão Européia por dez anos – 1985 a 1995 –, é membro do Partido Socialista.

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com os Bancos Centrais nacionais dos Estados membros. Um InstitutoMonetário Europeu – IME – coordenaria as decisões coletivas e cuidaria dadefinição da estrutura do futuro Banco Central Europeu - BCE. Na terceirae última etapa haveria a transferência da competência das políticas monetáriasda esfera nacional dos Estados membros para a competência da União e,dentro do possível, a adoção de uma moeda única em substituição as moedasnacionais.

As autoridades comunitárias e, entre elas principalmente a ComissãoEuropeia, manifestaram em muitas ocasiões, o convencimento de que asolução dos problemas da integração estava no avanço do processo e nuncanum retorno às condições anteriores. Movidos por esta percepção, em 15de novembro de 1990, em Roma, tiveram lugar duas ConferênciasIntergovernamentais. Uma dedicada a União Econômica e Monetária, a outravoltada para a União Política dos europeus. Em última instância, os debatesvoltados para a União Econômica e Monetária concluíram que no campoeconômico a união consistiria na coordenação das políticas nacionais peloConselho de Ministros de Economia e Finanças, permanecendo, contudo,com os Estados membros a responsabilidade por suas respectivas políticaseconômicas; já no campo monetário a união se completaria com a adoção deuma moeda única sob a autoridade de um Banco Central Europeu – BCE.

Aquela era mais uma das muitas rodadas de discussão ocorrida entre osrepresentantes dos doze Estados membros, mas foi, provavelmente, a quetratou de forma mais direta e com maiores consequências das questões quepermitiram chegar a um acordo sobre o futuro da integração na forma doTratado de Maastricht. Elaborado ao longo de pouco menos de dois anos oTratado sobre a União Europeia14 recolhe um dos resultados mais positivose, por isso mesmo, dos mais expressivos da vontade e da capacidade daquelesque, mesmo diante dos maiores e mais difíceis obstáculos, nunca desistiramda integração.

Entre 1986 e 1992 a Comunidade Internacional em geral e a Europa emparticular foram sacudidas por acontecimentos que mudaram a história doséculo XX. A crise que envolveu a União Soviética e todo o seu entorno

14 Tratado sobre a União Europeia e não Tratado da União Europeia. Esta pequena diferença,não percebida por muitos é, no entanto, de grande significado. Ela indica que o documentoassinado em Maastricht não pretende ser definitivo nas definições sobre a União Europeia,senão que, muito antes, encaminhar o processo para um novo patamar no qual a ideia de umaunião dos europeus possa ser discutida e construída em bases mais sólidas e abrangentes.

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geopolítico, marcada, principalmente, pela queda do muro de Berlim, em 9de novembro de 1989, e que culminou com a dissolução formal da Uniãodas Repúblicas Socialistas Soviéticas em 8 de dezembro de 1991, significouum desafio para Bruxelas e para todas as autoridades nacionais dos Estadosmembros. Naquele momento a Europa vivia numa realidade para o qual nãohavia sido elaborada qualquer previsão, nem política e nem teórica. NosBálcãs15, a partir de 1989, a rápida desintegração da República Federal daIugoslávia acrescentava problemas de dimensões incalculáveis a jásobrecarregada agenda dos principais órgãos da Comunidade Europeia: aComissão, o Conselho e o Parlamento Europeu. As decisões impunham-sesem dar tempo para reflexões mais profundas ou demoradas. O melhorexemplo das tensões em que se viram submersos, além da Comissão Europeia,todos os governos nacionais da Europa comunitária foi, provavelmente, aqueleproduzido pelas intensas negociações que levaram à decisão de reunificaçãoda Alemanha em 9 de agosto de 1990. Dois países signatários dos Tratadosfundacionais, ou seja, aqueles que intituiram as Comunidades Europeias, Itáliae França não só não apoiaram a condução dada por Bonn às negociaçõescom Berlin Oriental e com Moscou, como, nas palavras do presidente francês,François Mitterrand16, criticaram frontalmente a perspectiva de uma Alemanharestaurada em seu território e população correspondendo ao período anteriorà Segunda Guerra Mundial, ou seja, de uma Alemanha reconduzida à condiçãode maior país da Europa.

As discussões sobre a formulação do Tratado de Maastricht enfrentaraminúmeros problemas, uma vez que a integração devia ser levada a umaperspectiva realmente inovadora. A continuidade do processo de integraçãoexigia rupturas e cobrava a ousadia de trazer para o núcleo central da uniãoentre os europeus uma convergência política, tentada tantas vezes no passadoe, sabidamente, com tão poucos êxitos. O modo de expressar a centralidadeda união política era vista por muitos negociadores na forma de definir as

15 A crise nos Bálcãs, por sua extensão e complexidade foi o maior desafio enfrentado pela UniãoEuropeia em toda a sua História. A desintegração da Iugoslávia, uma Federação de Estadosnacionais com relativa autonomia, que manteve a região em condições de cooperação razoáveisentre 1945 e o início dos anos 80, significou a quebra do período de paz mais longo conhecidopela Europa. Os conflitos políticos, étnicos, religiosos e culturais naquela região mostraram aBruxelas as suas limitações como ator na Comunidade Internacional enquanto a UE não forcapaz de falar com uma só voz política e de respaldar suas decisões com uma força militareuropéia de dissuasão à altura de suas dimensões econômicas, geográficas e demográficas.16 François Miterrand (1916 – 1996) foi Presidente da França entre 1981 e 1995.

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bases de sustentação da União Europeia. Por isto mesmo, talvez, dias e noitesde discussões ininterruptas não foram suficientes para produzir o consensoda unidade. As maiores dificuldades encontradas diziam respeito às questõesde defesa e de política social. O Reino Unido, como sempre, resistiu a todae qualquer formulação que pudesse ser interpretada como cessão de soberaniaem suas decisões políticas e exigiu que se mantivesse de forma muito explicitaa distância entre as competências comunitárias e as competências de simplescooperação bilateral e multilateral entre os Estados membros.

Esgotada toda a pauta de negociações e pressionados por uma conjunturainterna à Comissão Europeia, e externa, relativa à opinião pública dos europeus, oconsenso possível só foi alcançado em 17 de abril de 1991, na base de um projetode tratado que se sustentava em três pilares. Aquele era um resultado que deixavaevidente que os partidários da unidade haviam sido derrotados. O primeiro pilarestava representado pela Comunidade Europeia, o segundo pela política estrangeirae de segurança comum – PESC – e o terceiro pela cooperação nos assuntos dosnegócios do interior e da justiça. Havia uma clara dificuldade, os dois primeirospilares são de natureza comunitária e o terceiro intergovernamental17. De qualquerforma, o primeiro pilar, ao estar representado pela Comunidade Europeia e nãopela Comunidade Econômica Europeia, ao excluir o adjetivo “econômica”, deixoumarcado que a integração deixava de ser une affaire de marché.

O Tratado sobre a União Europeia foi assinado em Maastricht em 7 defevereiro de 1992 e, após grandes dificuldades para ser ratificado pelos paísescomunitários, entrou em vigor em 1o de novembro de 1993. A Europa julgavasuperada uma fase importante e difícil de sua história e declarava-se preparadapara seguir ampliando o número de seus participantes ao abrir espaço paranovos Estados membros. Porém, reconhecia que em prazo não muito distantedeveria voltar a ocupar-se da definição de sua estrutura institucional, sem oque não seria possível seguir avançando com a integração18.

17 Sendo correto se entender que questões comunitárias são questões interestatais, evoluindo,em muitos casos, para um nível supraestatal, então é permitido dizer que um dos problemasmais centrais do processo de integração dos europeus é o de realizar a transição das relaçõesintergovernamentais para as relações comunitárias. Este movimento terá sempre comopressuposto a perspectiva não de cessão de soberania, mas de ampliação da soberania comosoberania compartilhada.18 O Tratado de Maastricht estabeleceu em seu artigo N que: “Em 1996 será convocada umaConferência de representantes dos governos dos Estados membros para analisar, de acordo comos objetivos enunciados nos artigos A e B das Disposições Comuns, as disposições do presenteTratado em relação às quais está prevista a revisão.”

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A Conferência Intergovernamental – CIG – de 29 de março de 1996,em Turim, deu início a revisão do Tratado sobre a União Europeia no seutodo e de alguns pontos presentes nos Tratados fundacionais. A CIG cuidouespecialmente das questões que se mostravam mais sensíveis diante da opiniãopública. Assim, receberam destaque problemas relacionados a uma maiortransparência de toda a infra-estrutura comunitária, seu funcinamento e aparticipação democrática em suas decisões. Também foram consideradas ascondições necessárias a ampliação do espaço de liberdade, segurança e justiçapara os cidadão dentro da UE. A política externa e de segurança comum foireforçada em seus princípios e objetivos. Eram todos temas recorrentes dasConferências Intergovernamentais, que naquele momento só estavamrecebendo um tratamento especial. Porém, um novo tema se acrescentavaàqueles com grande urgência. Era o que tratava das condições de alargamentoda UE, com a hipótese de admissão de um número expressivos de países daEuropa Central e do Leste e ainda Malta e Chipre19. A perspectiva dasdificuldades de administrar tantos Estados nacionais dentro de uma mesmacomunidade, a ser formada por sociedades com histórias, culturas, línguas,religiões, etnias tão diversas, sugeria ainda mais um tema: a possibilidade dese instituir uma integração a velocidades diversas, ou como se chamou emmuitas oportunidades anteriores, uma Europa de geometria variável.

As questões relativas ao Acordo de Schenguen20 e a posição especialdo Reino Unido de rejeição das políticas sociais adotadas pela União Europeia,paricularmente a partir do Tratado de Maasticht, contribuiram muito para osresultados pouco expressivos obtidos em Amsterdam. De fato, o Tratado deAmsterdam ficou bastante limitado nas questões institucionais em geral e nacriação de novos instrumentos políticos e jurídicos que pudessem intervirpositivamente nas negociações que levariam à ampliação do número de

19O ingresso de Chipre na União Europeia, como é de amplo conhecimento, por sua situaçãocomplexa, exigiu grande habilidade política das autoridades de Bruxelas. Aquela pequena ilha doMediterrâneo, habitada por duas comunidades, uma greco-cipriota, ao Sul, e outra turco-cipriota,ao Norte, é só mais uma herdeira dos malefícios deixados pelo colonialismo inglês em todos oslugares por onde passou. Atualmente, com o nome de República de Chipre, os greco-cipriotas,que formaram um país autônomo e independente, reconhecido como legítimo pela ComunidadeInternacional desde 1992, participam como mais um Estado membro da UE.20 O Acordo de Schenguen é uma convenção entre os países da EU, com exceção do Reino Unidoe da Irlanda, pela qual são definidas as condições da livre circulação de pessoas no espaçogeográfico dos países signatários. O Acordo foi assinado em 14 de julho de 1985, tendo,originalmente, a participação de cinco países: Alemanha Bélgica, França, Holanda e Luxemburgo.

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estados membros da UE. Assinado em 2 de outubro de 1977, o Tratadoentrou em vigor em 1o de janeiro de 1999.

O alargamento da União Europeia, que teve inicio no começo dos anos90, pôs em evidência a necessidade de novas bases para a integração, o quetambém pode ser visto como as limitações das instituções comunitárias paraabrigar uma diversidade tão grande de países. Pressionados pelo debatepúblico sobre a ampliação das fronteiras da UE, várias lideranças europeiaromperam o silêncio e passaram a tomar parte ativa nas discussões. De maneirageral foram vozes que falaram em favor de uma Federação de Estadosnacionais, na qual deveria ser possível conciliar interesses comuns a todos einteresses individuais de cada país. Entre as principais personalidades que semanifestaram estava Helmut Schmidt21, ex-chanceler federal alemão, ValéryGiscard d’Estaing22, antigo presidente francês e Jaques Delors, aquele quepermaneceu por mais tempo na presidência da Comissão Europeia. Mascoube ao então Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, JoschkaFischer23, em uma conferência na Universidade Humboldt, em Berlim, em 12de maio de 2000, expressar oficialmente e com todas as letras qual seria oformato de uma Federação para a Europa. Guardadas as diferenças, aestrutura federativa da Europa, na proposta de Fischer, era muito parecidacom a da República Federal da Alemanha, preservando-se para os Estadosnacionais, evidentemente, muito mais autonomia do que dispõem os Länderna Federação Alemã.

A resposta francesa ao desafio de criação de um Federação de EstadosEuropeus veio nas palavras do Presidente Jaques Chirac24, que em um discurso noBundestag – Parlamento Alemão, declarou aceitar a formação de um grupo pioneirofranco-alemão, aberto à adesões, com a finalidade de impulsionar a integração,mas que não estava de acordo com qualquer forma de superestado. É dispensáveldizer que a reação dos britânicos aos termos daquele debate foi de enfática rejeição.

21 Helmut Schmidt (1918 - ) estudou economia, foi governador da cidade-estado de Hamburgo,deputado no Parlamento Federal alemão, Ministro de Defesa, Ministro de Finanças e PrimeiroMinistro de 1974 a 1982.22 Valéry Giscard d’Estaing (1926 - ) nasceu em Koblenz, Alemanha, uma cidade situada na fozde rio Mosel junto ao rio Reno. Cidadão francês, ele foi Ministro de Economia e Finança e maistarde presidente da França, de maio de 1974 a maio de 1981.23 Joseph Martin Fischer – “Joschka”(1948 - ) foi Ministro de Relações Exteriores da Alemanhade 1998 a 2005.24 Jacques Chirac (1932 - ) estudou na Escola Nacional de Administração, foi Ministro daAgricultura, Primeiro Ministro e Presidente da França.

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Se o debate sobre uma reforma profunda na estrutura da União Europeiase mostrava impossível, a realidade dos fatos não economizava evidências deque algo deveria ser feito, sob pena de se instaurar uma crise imprevisível,capaz de comprometer todo o futuro da integração. Foi em meio a uma atmosferade grande tensão, a exigir soluções urgentes e de grande envergadura, que serealizou a Conferência Intergovernamental de Nice, nos dias 7, 8 e 9 deDezembro de 2000. A mais longa e talvez mais difícil reunião do ConselhoEuropeu até aquela data. As divergências entre as autoridade presentes sobrea reforma das instituições pareciam instransponíveis.

O exame da agenda cumprida pela CIG de Nice permite algumasobservações indispensáveis ao entendimento do processo que se inauguracom a disposição da UE de ampliar o número de seus Estados membros,passando de quinze para vinte e sete em um breve transcurso de tempo. Emprimeiro lugar é possível identificar que, mesmo diante de tantas divergências,no âmbito das questões jurídicas, foi relativamente fácil chegar a um consensosobre a reforma proposta para o sistema jurisdicional comunitário, com opropósito de evitar o crescimento descontrolado do número de demandaslevadas à Côrte de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância dasComunidades Europeias em Luxemburgo. O que se propôs como soluçãofoi a criação de Câmaras Juridicionais adjuntas ao Tribunal de PrimeiraInstância, em condições de dar soluções aos processos sem a necessidadeda intervenção direta daquela Côrte e do Tribunal.

Outra questão que exigia uma solução ou pelo menos estruturas maiscondizentes com uma comunidades ampliada para quase três dezenas demembros era o próprio sistema comunitário. Para aquele momento o sistemacomunitário podia ser resumido às atribuições do Presidente da ComissãoEuropeia e aos mecanismos de cooperação entre os Estados membros. Aprática havia demonstrado que a autoridade do Presidente da Comissãodeveria ser sensivelmente reforçada, sob pena de graves prejuízos nas tomadasde decisões e suas implementações. Após muitos debates, ficou estabelecidoque o Presidente passava a dividir suas atribuições com os demais Comissáriossegundo seus critérios e poderia remanejar aquelas responsabilidades,chegando até mesmo ao caso de pedir a demissão de um integrante daComissão. Ao Presidente foi dada ainda a competência de indicar seus Vice-Presidentes.

A cooperação entre os Estados membros envolvia problemas ainda maisdifíceis para a construção de um consenso. O tratado de Amsterdam havia

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deixado aberta a hipótese de certos Estados, em comum acordo com osdemais, estabelecerem processos mais acelerados de integração bilateral oumesmo multilateral, sem que isto implicasse na participação de todos osEstados membros. Foi o que tomou o nome de cooperação reforçada25.Porém, as restrições levantadas por aqueles que discordavam dessa soluçãoacabaram por impedir, naquele momento, qualquer ação nesse sentido. Aotérmino de muito esforço o Conselho de Nice conseguiu progressossignificativos. Ficou estabelecido que a cooperação reforçada, ainda que comrestrições e procedimentos estritos, poderia ser praticada nos assuntos doprimeiro e terceiro pilares do Tratado sobre a União Europeia, ou seja, nasquestões comunitárias e referentes à justiça e à problemas internos,respectivamente, mas por força das objeções levantadas pelo Reino Unido,Irlanda e Suécia não poderia se praticada nos assuntos do segundo pilar, istoé, aquele que diz respeito à PESC.

A composição da Comissão Europeia foi outro tema que gerou grandesdebates. A lógica aplicada até então – dois comissários para os países maiorese um para os menores, assegurando pelo menos um comissário para cadaEstado membro – deveria ser mudada, sob pena de aquele órgão se tornarcompletamente inoperante em suas decisões. Não foi possível qualquer formade solução e o problema foi postergado para um momento futuro, quando aUE já tivesse assimilado todos os países candidatos a integrá-la.

Ao revisar questões pendentes de reuniões anteriores da CIG o Conselhode Nice teve o cuidado de buscar temas que permitissem algum consenso sem asintermináveis discussões ocorridas em oportunidades anteriores que acabavambloqueando o avanço do processo de integração. Assim puderam ser tratados osseguintes problemas: o acordo sobre o estatuto das sociedades anônimas europeiasoperando em mais de um Estado membro; as medidas necessárias ao reforço dasegurança marítima; a criação de uma autoridade europeia com funções consultivaspara cuidar dos problemas dos alimentos em geral; uma agenda social para aEuropa com clara definição de seu escopo; o reforço do espaço dito de liberdade,segurança e justiça pelo reconhecimento mútuo das decisões judiciais; a adoçãode um plano de ação para estimular a mobilidade de estudantes, professores epesquisadores entre os Estados membros; uma declaração sobre o esporte,buscando evitar a forte interferência do mercado nas atividades esportivas.

25 A importância da chamada “cooperação reforçada” para a integração fez com que o Tratado deLisboa tenha dedicado um Título inteiro, o IV, a definição de suas condições, finalidades eobjetivos.

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A perspectiva de ampliação do número de participantes do processo deintegração impunha um problema ao Parlamento Europeu que exigia urgentesolução. O Tratado de Amsterdam havia estabelecido um número máximode eurodeputados – 700 – que, se mantidas as regras vigentes de composiçãodo Parlamento para a União Europeia com 27 Estados membros, seriaultrpassado, chegaria a 732. A solução não satisfez a todos, mas obteve umconsenso provisório26. O que talvez tenha sido mais relevante naquele momentofoi a decisão de ampliar a competência do Parlamento, e com isso reforçaras suas atribuições legislativas.

As regras para as decisões do Conselho Europeu também foram objetode discussão. O objetivo era tornar aquele órgão mais ágil e fugir da facilidadedo veto individual ou mesmo de uma pequena minoria. Os avanços foramdifíceis. Em consequência o Tratado de Nice tornou ainda mais complexa asdiscussões no âmbito do Conselho, pois as deliberações, para serem válidas,devem contar com a maioria qualificada de votos, o que significa a maiorianumérica referente aos Estados membros e ainda representar a maioria dapopulação da União Europeia.

Resumidamente, se em decorrência das decisões que puderam sertomadas na CIG de Nice o Tratado, assinado em 26 de fevereiro de 2001,criou condições para o alargamento, ao mesmo tempo deixou claro, maisuma vez, a insuficiência dos mecanismos de negociação da própria CIG. Dequalquer forma, para evitar problemas ainda mais graves, ficou definido e foicumprida a data da entrada em vigor do Tratado de Nice: 1o de fevereiro de2003.

2. A Convenção e o futuro da União Europeia

As limitações do tratado de Nice impuseram, já nos meses seguintes asua assinatura, a tomada de medidas urgentes relacionadas à reforma doconjunto das instituições comunitárias. Deste modo, o Conselho Europeureunido em Laeken, em 15 de dezembro de 2001, decidiu convocar umaConvenção sobre o futuro da Europa que, em primeiro lugar, deveria elaborar

26 Na intenção de resolver o problema do número de eurodeputados no Parlamento Europeu ea distribuição da representação por país, a ata de adesão da Bulgária e da Romênia, assinada em25 de abril de 2005, estabeleceu em seu artigo 9o que O Parlamento não teria mais do que 736cadeiras. Naquele momento também ficou decidido que haverá uma nova repartição darepresentação por país a partir do início da legislatura de 2009 – 2014.

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um projeto de tratado constitucional para a União Europeia. A Declaraçãode Laeken, além de definir a instalação de uma Convenção, estabeleceu ostermos de sua composição, seus objetivos, seu método de trabalho, dandoprazo para o cumprimento de suas tarefas: até 1o de março de 2003. Com afinalidade de servir de roteiro para o trabalho da Convenção, os Chefes deEstado e de Governo reunidos na CIG de Laeken formularam sessentaquestões relacionadas ao futuro da União Europeia. Aquelas perguntas sedistribuiam por quatro grandes temas: divisão e definição de competências;simplificação dos Tratados; estrutura institucional e o caminho até umaConstituição para os cidadãos europeus. A data de encerramento dostrabalhos não pode ser cumprida. Um esforço concentrado, porém, tornoupossível chegar a bom termo em 10 de julho de 2003.

Indicado pela CIG de Laeken, Valéry Giscard d’Estaing presidiu aConvenção, auxiliado por dois vice-presidentes: Giuliano Amato27 e Jean-Luc Dehaene28. Os demais integrantes foram eleitos ou indicados. Em seuconjunto representavam os órgãos comunitários, dos Estados membros e asorganizações da sociedade civil europeia mais diretamente envolvidas com aconstrução da União. Os representantes dos países candidatos a participarda UE ganharam assento nos debates da Convenção com direito à voz, porémsem direito a voto. As reuniões, realizadas nas instalações do ParlamentoEuropeu em Bruxelas, foram abertas ao público e acompanhadas pelaimprensa em geral. Um total de pouco menos de cem e até um pouco mais deduzentos integrantes participaram diretamente dos debates em plenário evotaram nas decisões sobre os princípios ou sobre as formulações do texto.

No transcurso dos trabalhos a Convenção teve que superar umadificuldade conceitual básica: seu mandato não era o de uma AssembleiaConstituinte e nem sequer o de substituição de uma CIG. A Declaração deLaeken dizia expressamente que o mandato da Convenção era “para garantiruma preparação, o mais transparente possível, da próxima ConferênciaIntergovernamental.” Contornadas as pretenções constituintes dos muitosparticipantes da Convenção, os trabalhos puderam ser iniciados e os debatesganharam o seu ritmo próprio. Entre as questões examinadas, as principais

27 Giuliano Amato (1938 - ), cidadão italiano, é jurista, foi Ministro do Interior, do Orçamento,da Reforma e do Tesouro da Itália. Entre 1992/93 e entre 2000/01 exerceu a Presidência doConselho de Ministros.28 Jean-Luc Dehaene (1940 - ) nasceu em Montpellier, uma cidade situada no sul da França.Cidadão belga, foi por duas vezes, entre 1995 e 1999, Primeiro Ministro da Bélgica.

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foram: a Carta dos Direitos Fundamentais do Cidadão Europeu; asubsidiariedade; o papel do Poder Legislativo dos Estados membros; agovernança política e econômica; a política exterior; a política de segurança ede defesa comuns; a simplificação dos procedimentos administrativos emtodos os níveis; o espaço de liberdade, de segurança e justiça no interior daUE, a Europa social.

As questões institucionais, começando pela personalidade jurídica daUnião, no entanto, foram as de mais difícil consenso. França, Reino Unido eEspanha insistiram na necessidade de um Conselho com um presidente estável,um responsável europeu para os assuntos exteriores e uma Comissão comum menor número de membros. A Alemanha, por sua vez, punha sua ênfaseno reforço da autoridade do presidente da Comissão. Bélgica, Holanda eLuxemburgo preiteavam um presidente da Comissão eleito pelo ParlamentoEuropeu com funções também de presidente do Conselho de Ministros.Paralelamente, a proposta de natureza completamente federalista, elaboradapelo então Presidente da Comissão Romano Prodi29 sequer foi examinadapelos convencionais.

A dificuldade de ver aceita uma estrutura federativa fez com Giscardd’Estaing tenha optado em manter a forma tradicional da Comunidade, ouseja, os três pilares representados pelo Conselho, Comissão e Parlamento.Ainda por sua iniciativa o texto do tratado constitucional incluiu a definição docargo de presidente do Conselho como função exclusiva, eleito para um mandatoplurianual com duração de dois anos e meio. Os assuntos exteriores seriamresponsabilidade exclusiva de um ministro, que acumularia ainda as funções device-presidente da Comissão, a qual teria seu número de integrantes menor doque o de Estados membros, sendo seu presidente eleito pelo Parlamento Europeu.Por fim, as decisões do Conselho se fariam com base no princípio da maioriaqualificada, ou seja, considerando tanto a necessidade da maioria simples entreos Estados membros como um mínimo de 66% do total da população da UE.

O Conselho Europeu examinou o texto elaborado pela Convenção e,após algumas dificuldade iniciais, deu a conhecer o seu consenso sobre omesmo. O Tratado que estabelece uma Constituição para Europa, e queassim deveria inaugurar uma nova fase de sua história, foi assinado pelos 25Chefes de Estado e de Governo, em Roma, no dia 29 de outubro de 2004.

29 Romano Prodi (1939 - ) Cidadão italiano, economista, foi Primeiro-Ministro da Itália porduas vezes: de 1996 a 1998 e de 2006 a 2008. Presidiu a Comissão Européia de 1999 a 2004.

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O processo de ratificação do Tratado Constitucional teve início logo aseguir e as dificuldades em ver o texto aprovado pelos eleitores europeus oupor seus representantes nos Parlamentos nacionais também apareceramimediatamente. De qualquer modo, quando a França, em 29 de maio de2005 e a Holanda, em 1o de junho de 2005, através de consulta direta aosseus eleitores disseram não à Constituição, a mesma já havia sido aprovadapor 18 países – Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslováquia,Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Letônia,Lituânia, Luxemburgo, Malta e Romênia – os demais, que ainda não haviamse manifestado decidiram suspender o processo de ratificação.

O não dos franceses e holandeses provocou uma grande crise políticanas relações internas da União Europeia. Era como se um portal para o futurotivesse sido fechado, interrompendo uma trajetória da qual muitos esperavama realização da grande oportunidade histórica para a Europa recuperar suaposição de ator de primeira linha no cenário da Comunidade Internacional. Asaida para o impasse veio da Presidência alemã do Conselho que, com grandeinteresse e muita habilidade conseguiu um acordo entre os seus pares, naCIG de 21 e 22 de junho de 2007. A proposta feita por Berlim permitiureabrir as discussões sobre o processo constitucional na forma de um mandatode revisão do Tratado que estabelecia uma Constituição para Europa,rejeitado pela França e pela Holanda. De alguma forma a proposta daChanceler Angela Merkel30 havia sido objeto de uma sugestão do Presidentefrancês Nicolas Sarkozy quando este se referiu à hipótese de ser elaboradoum Tratado mais simples, que recolhesse as reforma estruturais estritamentenecessárias ao bom funcionamento da UE. De qualquer modo, a fórmulaconseguida pela Chanceler alemã foi muito mais ampla e contemplou todo otexto da Constituição, abrindo a oportunidade para a elaboração de umTratado completamente novo.

3. O Tratado de Lisboa

Os estudiosos que acompanham o dia a dia da integração europeia eentre eles em particular aqueles que observam a evolução de sua estruturapolítico-jurídico coincidem na avaliação de que, apesar de todas as dificuldades

30 Angela Merkel (1954 -) foi Ministra da Mulher e da Juventude e Ministra do Meio Ambienteantes de assumir o cargo de Primeira Ministra da República Federal da Alemanha.

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enfrentadas desde a crise criada pela negativa ao Tratado que estabeleceuma Constituição para a Europa em 2005, a União Europeia entrou numafase de constitucionalização de suas relações internas da qual não tem maiscomo recuar. A constatação desta realidade histórico-política da UE nãosignifica, de maneira alguma, a solução de seus problemas, que ainda poderãoser muitos com a não aprovação do Tratado de Lisboa por parte da Irlanda.Esta é uma dificuldade real a ser enfrentada para a qual parece não existiremmuitas alternativas de solução a não ser o avanço em direção a uma novaordem jurídica, política e estrutural de toda a União. Diante de suas dimensõesatuais e da perspectiva, que se torna cada dia mais uma imposição, ou seja,a de ter que admitir novos países, como é o caso da Croacia e, apesar detodas as suas dificuldades, também o da Turquia, a União Europeia não dispõede muitas hipóteses, se não quiser renunciar ao seu projeto original. Ainda,em outros termos, o que lhe resta é encontrar forças para assumir soluçõesradicais para os seus problemas, o que não é uma tarefa simples.

Vejamos, brevemente, alguns elementos do Tratado de Lisboa que dãoà Europa a oportunidade de seguir com o seu propósito de integração. Emprimeiro lugar a CIG de Lisboa buscou encontrar, com o Tratado, uma formade superar a resposta negativa à Constituição. Isso significou, de um lado,reestabelecer as bases institucionais necessárias às reformas inadiáveis daUE, e, de outro, preservar aqueles ganhos extraordinários que o textoconstitucional havia recolhido. Tudo dentro do rígido princípio de que sem aassinatura de todos os 27 Estados membros e a posterior homologaçãounânime, nada acontecerá.

O exame comparativo do Tratado de Lisboa e do Tratado queestabelece uma Constituição para a Europa revela que muitos pontosfundamentais, bem como alguns princípio e normas complementares, maisde conteúdo político do que de forma jurídica, reunidos pela Convenção,encontram-se preservados no texto aprovado em Lisboa. Assim, o textoaponta claramente para a necessidade de superação do déficit dedemocracia que acompanha a construção da unidade da Europa desde asua origem. Da mesma forma faz referência à necessidade de a UE seestruturar para desenvolver uma atuação global, porém com respaldonão só de suas lideranças políticas mas também de sua base social, ouseja, a sociedade civil europeia. Com uma estrutura tãoextraordinariamente grande e complexa, diante de uma realidadeinternacional globalizada e de grande dinamismo é dispensável dizer que

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as decisões devem ser ágeis, consistentes e consequentes. Taispressupostos implicam na necessidade de uma nova ordem e nenhumaserá melhor, até o presente momento histórico, do que aquela de naturezafederativa. Por isso mesmo, o Tratado de Lisboa preserva no seu interiora trama federativa da Constituição. O conceito de democracia assumeassim uma nova dimensão, deixando de ser só representativa para sertambém participativa. O princípio de subsidiariedade ganha maisconsistência, uma vez que, com base numa ordem federativa osParlamentos nacionais passam a atuar de forma muito mais próxima dasatividades e das decisões dos órgãos da UE.

O que, de fato, muda completamente no Tratado de Lisboa emcomparação ao Tratado Constitucional é a relação entre as partessignatárias, os Estados membros. Para encontrar uma solução para acrise jurídico-política, resultante da negativa de aprovação da França eda Holanada, a União Europeia se viu diante de uma única hipótese,que foi a de continuar recorrendo à fórmula jurídica de “tratadointernacional” para regulamentar as suas relações internas, entre osEstados membros, e ipso facto renunciar aos vínculos muito maisestreitos e estritos que seriam criados por uma Constituição, a qualestabeleceria entre todos uma estrutura jurídico-política de naturezaclaramente federativa.

A diferença entre os dois Tratados pode ser identificada no próprio texto.O Tratado Constitucional esta concebido como um “contrato” entre cidadãos,enquanto que o Tratado de Lisboa é um texto que estabelece normas derelacionamento interestatais. Por outro lado, o Tratado de Lisboa é de leituramuito mais difícil do que o texto constitucional. Em Lisboa desaparecem assimplificações. Retornaram ao texto as intrincadas referências a outrosordenamentos jurídicos da UE, a exemplo do que pode ser encontrado emtodos os demais Tratados, como os de Maastricht, de Amsterdam e deNice. O texto que recebeu aprovação da CIG em 2007, na sua condição detratado, não contribui para resolver o emaranhado jurídico resultante dasucessão dos Tratados, desde aquele que criou a CECA até o de Nice e quehoje constituem a base institucional da União Europeia. O cidadão, nãoespecializado em questões político-jurídicas, para se situar dentro do espaçocomunitário, encontra-se agora, muito mais do que anteriormente, distanteda necessidade de entender não só a estrutura como a dinâmica defuncionamento dos órgãos da UE. Neste sentido, as reclamações sobre a

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intransparência da União Europeia são mais legítimas do que em qualquermomento no passado.

O texto aprovado em Lisboa em 2007 deixa alguns prejuízos com relaçãoaquele aprovado em Roma em 2004. Não consta mais do seu arcabouço a“Carta dos Direitos Fundamentais da União”, que compunha a Parte II doTratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Na intenção dedescaracterizar qualquer vínculo mais estreito que pudesse ser interpretadocomo expressão de relações supranacionais, foram suprimidas do texto deLisboa todas as referência aos símbolos da União, tais como a bandeira, ohino, o dia da Europa, etc. O preâmbulo do texto constitucional também foimodificado, restando somente as referências a elementos que reforçam ocaráter interinstitucional do Tratado. Por fim, o texto tomou uma forma pelaqual passou a ser somente mais uma revisão dos Tratados anteriores, aexemplo do que aconteceu com a sucessão de revisões ocorridas ao longodas décadas de 80 e 90 do século passado.

Contudo, a leitura atenta do Tratado de Lisboa permite algunsesclarecimentos importantes. Lisboa reafirmou a dimensão politicada UE deforma incontestável. Acentuou os mecanismos da democracia representativae participativa, abrindo novos espaços para a participação direta dos cidadãos,como o princípio de intervenção legislativa através de petição com um milhãode assinaturas. Inovou ainda em um ponto fundamental ao criar condiçõesjurídico-políticas que permitem a um Estado membro por decisão voluntáriae soberana, solicitar seu desligamento da União. Desta forma as relações dospaíses integrantes da Comunidade com o conjunto comunitário ganha novasdimensões, reforçando tanto os mecanismos do princípio de subsidiariedadecomo as competências preestabelecida para os Parlamentos nacionais nosassuntos de interesse bilaterais e multilaterais de interesse geral. Ao mesmotempo o Parlamento Europeu tem suas funções legislativas ampliadas,tornando-se rotina a sua participação nas decisões em assuntos de relevânciapara os Estados membros e a sociedade civil como um todo.

As mudanças funcionais dos órgãos comunitários também são visíveis.Em primeiro lugar é possível identificar aquelas referentes ao ConselhoEuropeu, que passa a ter uma estrutura permanente. A presidência deixa deser rotativa, trocando de titular a cada seis meses, e ganha um mandatoexclusivo. Outra função que recebe destaque é a do Alto Representante daUnião Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política de Segurança. Seutitular tem assento tanto no Conselho, onde preside o Conselho de Relações

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Exteriores,31 como na Comissão, onde é um dos seus Vice-Presidentes32. OConselho de Ministros como um todo assume uma nova dinâmica interna, ouseja, passa a ter uma presidência rotativa, composta por três membros quese sucedem ao longo de 18 meses, trocando de titular ao fim de cadasemestre. Ficam fora desta regra o Conselho de Relações Exteriores e oEurogrupo33. O primeiro terá como presidente permanente o AltoRepresentante, enquanto que o segundo elegerá o seu respectivo presidente.Ambos exercerão mandato de dois anos e meio, ou seja, coincidindo com omandato do Presidente do Conselho Europeu.

O Tratado de Lisboa não deu à Comissão Europeia nada de especialmentenovo. Talvez a mais expressiva de todas as novidades seja o estabelecimentoda regra que determina que o seu Presidente deve pertencer ao partido políticocom o maior número de votos nas eleições para o Parlamento Europeu. Estafoi uma decisão que pode ser entendida no sentido de dar à Comissão, o órgãocom atribuições executivas mais amplas na União Europeia, um pouco mais deconteúdo democrático. O fato de que composição da Comissão se faz semprepor indicação e não através de um processo eleitoral tem sido alvo de críticaspermanentes da opinião pública. Assim, esta pode não ter sido a melhor solução,mas foi a forma encontrada neste momento para diminuir a distância entre aComissão Europeia e o cidadão eleitor.

Com o propósito de tornar mais eficaz e eficiente as suas tomadas dedecisão a Comissão teve acrescentadas mais competências as suas já extensasatribuições. Complementarmente, desde uma outra perspectiva, é possívelobservar ainda que a Comissão ganha um expressivo reforço institucionalquando o texto do Tratado define os atos jurídicos da União. O Tratado deLisboa qualifica os atos legislativos e executivos, distinguido uns e outros eestabelecendo uma clara hierarquia entre eles.

O texto do Tratado aprovado em Lisboa tem o firme objetivo de resolverum problema que ficou pendente quando da assinatura do Tratado de

31 O Conselho de Relações Exteriores é formado pelos Ministros de Relações Exteriores dosEstados-Membros.32 A função do Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Políticade Segurança como Vice-Presidente da Comissão Europeia está definida no Artigo 18o, inciso 4do Tratado de Lisboa.33 Denomina-se Eurogrupo o Conselho formado pelos Ministros titulares de Economia e Finançasdos Estados membros. Suas atribuições se estendem às questões relativas as suas pastas paraos países que fazem parte da Eurozona, ou seja, aqueles que adotaram o euro como moedanacional.

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Maastricht, isto é, o da segmentação da infra-estrutura que sustenta a Uniãoem três pilares: o comunitário, o da PESC e o da cooperação no domínio dajustiça e dos assuntos internos. Isto está consubstanciado nas definições decompetências para o desenvolvimento das políticas econômicas e sociais ena melhor definição do que se deve entender por cooperação comunitária,especialmente quando diz respeito diretamente à construção do que passoua se chamar de “espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. O Tratadode Lisboa trata de dar à União Europeia uma unidade que o Tratado deMaastricht não conseguiu construir.

Um elmento importante desta unidade definida em Lisboa pode seridentificado na nova Política Externa Comum. Em primeiro lugar há um esforçomuito consistente de definir a personalidade jurídica, com direitos e deveresda União Europeia, frente a países terceiros e aos organismos internacionais34.Os primeiros beneficiados, neste caso, são os seus vizinhos, estejam eles nassuas fronteiras junto à Europa Oriental, no Oriente Médio ou na Bacia doMediterrâneo. O Mercosul, que já mantém com a UE longos anos denegociação de um acordo bilateral de cooperação poderá ter facilitado o seuentendimento com os europeus, uma vez que as decisões dos representanteseuropeus agora poderão se concentrar em questões mais básicas e de maiordensidade, deixando de lado detalhes, que muitas vezes foram a causa dedificuldades insuperáveis no decorrer das discussões. Em outras palavras, oAlto Representante, que responde pela política externa do Conselho e daComissão, juntamente com o Serviço Europeu de Ação Exterior35, que lhedá assistência, terá mais autoridade e autonomia para decidir nas questõesbilaterais e multilaterais de interesse da União Europeia.

O CIG de Lisboa não aprovou só um tratado. Na verdade, foram dois:o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da UniãoEuropeia. São tratados distintos e complementares.

34 Se os Tratados fundacionais da União Europeia – CECA, CEE e EURATOM – proviam suasrespectivas Comunidades de personalidade jurídica internacional, isto não aconteceu quandofoi redigido o Tratado sobre a União Européia, assinado em Maastricht em 1992. Ou seja, deacordo com os termos daquele texto a União Européia não está habilitada a assinar trados,convênios, convenções ou qualquer outro instrumento jurídico com terceiros países. Para sanareste problema o Tratado de Lisboa estabelece explicitamente o estatuto jurídico da UniãoEuropeia, que assim pode representar legalmente o conjunto de países que lhe são signatários.Diz o seu Artigo 47o “A União tem personalidade jurídica.”35 O Serviço Europeu de Ação Exterior foi instituído pelo Tratado Constitucional em seu ArtigoIII-296.3.

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O primeiro, da União Europeia, em seu Artigo 1o declara:

“Pelo presente Tratado, as ALTAS PARTES CONTRATANTES instituementre si uma UNIÃO EUROPEIA, adiante designada por “União”, à qualos Estados-Membros atribuem competências para atingirem os seusobjectivos comuns.

O presente Tratado assinala uma nova etapa no processo de criação deuma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que asdecisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e aonível mais próximo possível dos cidadãos.A União funda-se no presente Tratado e no Tratado sobre o Funcionamentoda União Europeia (a seguir designados “os Tratados”). Estes dois Tratadostêm o mesmo valor jurídico. A União substitui-se e sucede à ComunidadeEuropeia.”

O segundo Tratado, sobre o Funcionamento da União, define os seusobjetivos em seu Artigo 1o nos seguintes termos:

“1. O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina osdomínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências.2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem osTratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmovalor jurídico, são designados pelos termos “os Tratados”.

O Tratado da União Europeia dedica todo o seu Título V ao que denominade “ação exterior e política exterior e de segurança comum”. Além de definir deforma extensa e detalhada a Política Exterior e de Segurança Comum - PESC- ficam estabelecidas ali as relações de trabalho entre o Alto Representante daUnião para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, como membro doConselho, e a própria Comissão. No Artigo 24o se pode ler:

“1. A competência da União em matéria de política externa e de segurançacomum abrange todos os domínios da política externa, bem como todasas questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradualde uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesacomum.”

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Em outras palavras, o que a CIG aprovou em Lisboa significa que a UEse propõe a assumir progressivamente a responsabilidade por todos osassuntos que digam respeito às relações internacionais de seus Estadosmembros, incluídos aí os relacionados à defesa e segurança coletiva da União.Isto pode ser ainda melhor entendido se for acrescentado o que ficouestabelecido no Tratado sobre o Funcionamento da União, em seu Artigo222o, ao texto do Tratado da União Europeia, onde estão nomeadas as“Tarefas de Petersberg”36 e o compromisso decorrente da Declaração deLaeken. O conjunto de compromissos expressos naqueles documentos dãoa dimensão e a perspectiva a partir da qual Bruxelas entende como sendo dasua responsabilidade cuidar dos interesses da União em tudo que diga respeitoàs relações com países terceiros e com a Comunidade Internacional, tendo oAlto Representante como elemento de ligação entre o Conselho e a Comissão.

O interesse da CIG em destinar à União a competência pelas questõesde política externa e de segurança comum pode ser identificado ainda em umoutro contexto do Tratado de Lisboa. Mesmo que na letra do Tratado tenhadesaparecido o nome do Ministro de Assuntos Exteriores da União Europeia37

suas funções e responsabilidades permaneceram completamente preservadas.Contudo, a denominação de Alto Representante da União Europeia paraAssuntos Exteriores e de Política de Segurança pode não ter sido a maisfeliz. O nome dado a esta função de um membro da Comissão, um de seusVice-presidentes, já mostrou que ela pode ser confundida facilmente com ado Alto Representante para a Política Exterior e de Segurança Comum, funçãoacumulada pelo Secretário Geral do Conselho.

A Política Exterior e de Segurança Comum – PESC – foi instituída peloTratado sobre a União Europeia – TUE – (1992) e completada pelo Tratadode Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001). O Artigo 17o doTUE, consolidado, não só define o que são as atribuições da PESC, como

36 As «Tarefas de Petersberg» fazem parte integrante da política europeia de segurança e dedefesa (PESD). Foram incluídas expressamente no Tratado da União Europeia (artigo 17.º) eabrangem: as missões humanitárias ou de evacuação dos cidadãos nacionais; as missões demanutenção da paz e as missões de forças de combate para a gestão das crises, incluindooperações de restabelecimento da paz. Estas missões foram instituídas pela Declaração dePetersberg, adotada na sequência do Conselho Ministerial da União da Europa Ocidental –UEO – realizado em Junho de 1992. Nos termos daquela declaração, os Estados membros daUEO decidiram colocar à disposição daquela organização e igualmente da NATO e da UniãoEuropeia, unidades militares provenientes dos diversos ramos das suas Forças Armadasconvencionais.37 Artigo III-195o do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.

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estabelece ainda que ela contemple uma política de defesa comum, que poderáconduzir a uma defesa comum. O texto sublinha que, para tanto, a definiçãoprogressiva da política de defesa comum estará respalda pela cooperaçãoentre si dos Estados membros no setor de armamentos38. O Artigo seguinte(18o) estabelece que o Presidente do Conselho será o responsável pelaPESC em representação da União. Ainda no âmbito da PESC um ComitêPolítico e de Segurança39 acompanhará a situação internacional e através desuas análises e relatórios contribuirá com as decisões do Conselho. Destaforma o Comitê Político e de Segurança se soma ao conjunto das autoridadesda União Europeia responsáveis pela formulação da Política Exterior deSegurança e Defesa – PESD.

Desde a entrada em vigor do Tratado sobre a União Europeia no inícioda década de 90 o dia a dia das atividades do Alto Representante da PolíticaExterior e de Segurança Comum mostrou, tanto para o interior da UE comopara a Comunidade Internacional, a relevância daquela função. Numa e noutradireção a atividade do Alto Representante serviu tanto para fazer convergiras políticas dos Estados membros como para dar uma dimensão de unidadee coerência à UE. Assim, a PESC, como talvez nenhuma outra política comum,cumpriu com o objetivo de construir uma imagem unificada da Europa,superando até mesmo a Política Agrícola Comum – PAC, instituída duasdécadas antes. Isto contribuiu para que o Tratado de Lisboa tenha mantidointegralmente as tarefas inerentes àquela política concentrando ainda nasfunções do novo Alto Representante as atribuições que cabiam ao Comissáriopara as Relações Exteriores e Política Europeia de Vizinhança.

As questões de política externa, defesa e segurança estão definidas noTratado de Lisboa nos Títulos III e V. No primeiro, em seu Artigo 18o, inciso1, está dito: “O Conselho Europeu nomeará por maioria qualificada, coma aprovação do Presidente da Comissão, o Alto Representante da Uniãopara Assuntos Exteriores e Política de Segurança.” O mesmo Artigoestabelece ainda que o Alto Representante estará à frente da Política Exteriore de Segurança Comum – PESC – da União e atuará, do mesmo modo, emrelação a política comum de segurança e defesa.

38 Para promover a integração de suas respectivas Forças Armadas os Estados membros queassim desejarem podem se valer das disposições sobre as cooperações reforçadas, previstas noTítulo IV do Tratado de Lisboa.39 As tarefas do Comitê Político e de Segurança estão bem definidas no Artigo 38 do Tratado deLisboa, que assume o conteúdo do Artigo 25 da TUE.

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No Título V, que trata das “Disposições gerais relativas à ação exteriorda União e disposições específicas relativas à política exterior e de segurançacomum”, em seu Artigo 24o40, como já foi observado, dispõe que a políticaexterior e de segurança comum será executada pelo Alto Representante daUnião para Assuntos Exteriores e Política de Segurança acrescentando osEstados membros como co-responsáveis41. Em outras palavras, compete aoAlto Representante coordenar o diálogo político com terceiros países comorepresentante da União Europeia, tarefa que divide, é necessário observar,com o Presidente do Conselho Europeu, assim como compartilha com oPresidente da Comissão Europeia as responsabilidades nos assuntospertinentes às relações exteriores.

O Artigo 27o, em seu inciso 3, determina que o trabalho do AltoRepresentante seja apoiado pelo Serviço Europeu de Ação Exterior – SEAE– em colaboração com os Serviços Diplomáticos dos Estados membros. Otexto do mesmo inciso esclarece ainda que a composição do SEAE se fará apartir de funcionários dos serviços competentes da Secretaria-Geral doConselho e da Comissão e por pessoal em comissão de serviço do ServiçoDiplomáticos nacionais.

O tratado da União Europeia contribui decisivamente para oesclarecimento das relações internas à União quando se trata de questões depolítica externa, defesa e segurança. Ao resgatar os ganhos alcançados peloTratado, que estabelecia uma Constituição para a Europa, foi possível manteros ordenamentos que preservam o lema da UE: “unidade na diversidade”.Assim, as questões de âmbito comunitário, de responsabilidade da Comissão,passam a ser tratadas em sintonia com as questões de responsabilidadeintergovernamental, ou seja, da esfera do Conselho. Isto permite à Europa,pela primeira vez de forma consistente e consequente, falar de uma PolíticaExterna Comum – PEC.

O problema de uma PEC não é novo para a UE e sua principal dificuldadeestava sempre relacionada à cessão de soberania. O que agora fica redefinidoé que, a exemplo da política interna42, ao passar da esfera intergovernamental

40 Este Artigo recupera todo o conteúdo do Artigo 11o do TUE.41 Ao estabelecer esta parceria entre a União e os Estados membros o Tratado de Lisboa elege,claramente, não só a co-responsabilidade pelos assuntos de política externa, defesa e segurança,mas ainda a dupla intervenção: interestatal e intergovernamental.42 Pelos termos do Tratado da União Européia qualquer cidadão de um Estado membro, aoassumir a cidadania europeia, passa a somá-la a sua cidadania nacional, uma vez que a aquisiçãodo status de cidadão europeu não implica na renúncia de sua cidadania de origem.

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para a comunitária o que acontece, de facto e de jura, é a ampliação dasoberania dos Estados-membros, uma vez que passa a ser compartilhada,ou seja, a soberania nacional de um Estado se amplia para os demais Estados.Dito de outra forma, isto só é possível na medida em que admite compartilharsuas decisões sobre política externa, defesa e segurança. Ou seja, nenhumEstado está renunciando as suas responsabilidades.

O Tratado da União Europeia permite que a União passe a atuar deforma coerente e convergente em questões que estiveram dispersas e mesmocontraditórias em muitos momentos. A UE ganha unidade para a sua políticade comércio internacional, para a sua política de desenvolvimento e para apolítica ambiental, resolvendo assim conflitos e inconsistências não só entreos Estados membros, mas também entre as ações dos Comissários,responsáveis por cada uma daquelas áreas43.

Concluindo, vale a pena lembrar as declarações “13 e 14”, anexas aoTratado de Lisboa, que ampliam as responsabilidade e co-decisões e assuntosde política externa, de segurança e defesa da UE. A primeira refere-se àimportância da participação e cooperação entre os Parlamentos nacionais e oParlamento Europeu e a segunda conclama à formação de uma “Conferênciados Parlamentos” como instrumento de participação mais efetivo dos órgãoslegislativos dos Estados membros e da União nas questões relativas à integração.

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Brasil-União Europeia: Uma parceria estratégica

Maria Edileuza Fontenele Reis*

No dia 4 de julho de 2007, na Cúpula de Lisboa, durante a Presidênciade Portugal do Conselho da União Europeia, com a participação do PresidenteLuiz Inácio Lula da Silva, do Primeiro-Ministro de Portugal, José SócratesCarvalho Pinto de Sousa, do Presidente da Comissão Europeia, José ManuelDurão Barroso e do Primeiro- Ministro da Eslovênia, Janez Jansa, foi lançadaa Parceria Estratégica entre o Brasil e a União Europeia. Trata-se de iniciativade grande envergadura para o aprofundamento e a dinamização dorelacionamento entre o Brasil e a União Europeia. A Parceria Estratégicarepresenta a elevação do diálogo ao mais alto patamar para o tratamento nãosó da ampla gama de iniciativas na pauta bilateral, mas também para acooperação em temas afetos às respectivas conjunturas regionais e em assuntosde interesse global, efetivo reflexo do aprofundamento das relações bilaterais.

A parceria estratégica Brasil-UE insere-se, assim, no contexto dedinamização da cooperação em diferentes áreas de interesse mútuo, entre asquais se situam novas iniciativas em energia/biocombustíveis, ciência etecnologia, meio ambiente, cooperação técnica, temas sociais,desenvolvimento regional e transportes marítimos. Reflete também adinamização do relacionamento político bilateral, consubstanciada naformalização, em 30 de abril, do Diálogo Político de Alto Nível Brasil-UE,

* Embaixadora. Diretora do Departamento da Europa.

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mecanismo que se reuniu em Brasília, no dia 03 maio de 2007, em Luibliana,em 06 de junho de 2008, e em Praga, em 24 de março de 2009. Nessasocasiões, foram abordados temas da agendas bilateral e regional, bem comoassuntos multilaterais de interesse comum.

A Parceria Estratégia não é uma panacéia – nem para um lado, nempara o outro. Recorda-se nesse particular que o termo “estratégia”, tomadode empréstimo do vocabulário militar, pode ser definido em linguagemdiplomática como a arte de aplicar meios disponíveis com vistas àconsecução de objetivos específicos – de explorar condições favoráveiscom o fim de alcançar metas. Nesse entendimento, a Parceria EstratégicaBrasil-União Europeia traduz a disposição de dois grandes parceiros, cominteresses consolidados, de buscar novas formas de cooperação lastreadasno respeito mútuo e no reconhecimento da crescente importância de ambosos atores na conformação de uma ordem internacional multipolar. A ParceriaEstratégica é, portanto, o mecanismo formal ao amparo do qual serãodesenvolvidas, de forma orgânica, sistêmica e consistente, as possibilidadesde maior interação entre o Brasil e a União Europeia nos campos político,econômico-comercial, científico e tecnológico, cultural, de migrações, e dacooperação em benefício de terceiros países. Conforme afirmou o PresidenteLula em seu pronunciamento na Cúpula de Lisboa, com a ParceriaEstratégica “estamos elevando nossa relação à altura de suaspotencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundoem transformação. Comungamos de princípios democráticos e do respeitoaos direitos humanos. Respaldamos as Nações Unidas como principalinstrumento da defesa da paz e da segurança internacionais. Confiamos nosistema multilateral para a promoção do desenvolvimento com justiça social.O grande desafio que temos é o de operacionalizar esses valores, mediantepropostas concretas, ou pelo menos coordenadas. Para isso deve servirnosso diálogo”.1

As relações entre o Brasil e a União Europeia são quase tão antigasquanto os Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a ComunidadeEconômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica(EURATOM)2. Foram formalizadas em 1960, quando estabelecemos relações

1 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula de Lisboa, 4 de julho de2007. Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social.2 Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia (CEE)e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM).

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diplomáticas, e implementadas já a partir do ano seguinte, com a instalação,em Bruxelas, de nossa representação junto à CEE.

O Brasil acompanhou com grande atenção a evolução do complexoprocesso de constituição da União Europeia desde sua gênese, com a criaçãoda Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1952, assimcomo os Tratados de Roma, de março de 1957, e a instituição do Ato ÚnicoEuropeu, de 1968, que reunia as três Comunidades, lançando as bases paraa conformação, em 1992, do mercado comum com livre circulação, na entãoEuropa dos 12, de bens, capital e serviços.

Acompanhamos também a evolução institucional da UE, engendrada naesteira de seu processo de alargamento e de aprofundamento, mediante acriação de ampla e complexa rede de instituições gestadas no processo deintegração europeu. Nesse quadro, destaca-se o Tratado de Maastricht(1992), também chamado de Tratado da União Europeia, que lançou asbases para a política monetária, moeda única (e criação do Banco CentralEuropeu), e cidadania comunitária, definindo os três pilares que passariam aorientar a integração Europeia: a dimensão comunitária; a política exterior ede segurança; e assuntos de Interior e Justiça. Da mesma forma, observamoso processo de aperfeiçoamento institucional da UE, em que desempenhapapel de relevo o Tratado de Amsterdã, o qual amplia o escopo do interessecomunitário ao introduzir o tratamento de temas sociais e direitos humanos,bem como o Tratado de Nice (2001), que introduz adaptações especialmentena composição do Parlamento Europeu, com vistas à absorção de 10 novosmembros.

Com a mesma atenção, acompanhamos os movimentos em direção àambiciosa empreitada de elaboração de uma Constituição Europeia, comopropunha o Tratado de 18 de julho de 20043, malogrado com sua negaçãopela França e pelos Países Baixos. Seguimos agora o processo de ratificaçãodo Tratado de Reforma da União Europeia (Tratado de Lisboa), 2007,especialmente à luz de disposições relativas a uma maior convergência em matériade política externa. O aperfeiçoamento jurídico e institucional da UE, com seucontínuo processo de integração política, econômica e comercial, certamentetraz conseqüências que transcendem os limites de seu próprio espaço geográfico.Nesse contexto, identifica-se também o desejo europeu de maior protagonismopolítico na conformação de uma ordem internacional multipolar.

3 Tratado Constitucional para a União Europeia, assinado em Roma, em 29 de outubro de 2004.

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Certamente, como experiência sem precedentes na história, aconformação da União Europeia nos serviu como fonte privilegiada deinspiração na concepção do nosso próprio mecanismo de integração regional.Mas no que diz respeito ao relacionamento bilateral propriamente dito, éforçoso reconhecer que muito pouco desenvolvemos em quase cinquentaanos. Essa percepção é ilustrada de forma eloquente pelo fato de que entre1960 e 2006 nunca houve uma visita ao Brasil de um Presidente da ComissãoEuropeia – e até 2007, jamais um Presidente do Brasil havia visitadooficialmente a Comissão Europeia. A relação bilateral ao longo de todo esseperíodo era rarefeita e marcada por disputas em torno de tarifas, imposiçãode padrões e de posições sobre os mais diversos temas.

Cabe, contudo, recordar aqui o diálogo birregional que tem caracterizadoo relacionamento político entre a Europa e a América Latina, iniciado aindana década de oitenta, quando a Comunidade Europeia promoveu, em 1984,em São José da Costa Rica, reunião com vistas à promoção do processo depaz na América Central, em associação com o Grupo de Contadora, integradopor México, Colômbia, Venezuela e Panamá. Com a posterior formação doGrupo do Rio, em 1986, através da fusão do Grupo de Contadora com oGrupo de Apoio a Contadora, formado por Brasil, Argentina, Peru e Uruguai,foi institucionalizado, em 1990, o diálogo político regular entre a tróica Europeiae os Ministros das Relações Exteriores do Grupo do Rio, mecanismo que,desde então, se reúne bienalmente, alternando seus encontros com aquelesdas Cúpulas América Latina e Caribe-União Europeia, instituídas em 1999,quando se realizou a sua primeira cimeira, no Rio de Janeiro. As reuniõesministeriais Grupo do Rio-UE e os encontros em nível de Chefes de Estadoe de Governo no contexto das Cúpulas América Latina e Caribe-UE têmsido os principais foros de diálogo político birregional.

Mas a análise do relacionamento da União Europeia com a América Latinae Caribe também envolve forte vertente econômica, com evolução históricapassando pelo sistema de preferências tarifárias aplicadas aos países ACP(notadamente do Caribe – acordos de Cotonou, Lomé e Iaundê), até asnegociações de acordo de parceria econômica com a CARICOM, com aComunidade Andina, os Acordos de Associação firmados com Chile e México(e seu sucesso na ampliação da pauta comercial bilateral) às negociações deAcordo de Associação Mercosul-UE, lançadas em 1999 e ainda não concluídas.

Ainda no final de 2005, quando me preparava para assumir a direção doDepartamento da Europa, unidade no Ministério das Relações Exteriores

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encarregada do relacionamento bilateral com a União Europeia, verifiqueiem minhas leituras, que, em paralelo ao aprofundamento de seu processo deintegração, Bruxelas tecia também rede de parcerias extra-regionais compaíses relevantes na cena internacional. Nesse quadro, sobressaem a relaçãoprivilegiada com os Estados Unidos da América e, na sua seqüência, com oCanadá, atores tradicionais no eixo euroatlântico; com o Japão, expressivoparceiro econômico da EU; com a Rússia, vizinho de importância estratégicano contexto geopolítico e da segurança energética da União Europeia; e coma China e a Índia, economias emergentes com mercados altamente atraentespara a economia Europeia.

Saltava aos olhos a ausência do Brasil nesse conjunto de parcerias,sobretudo quando consideramos que entre os BRICs faltava apenas o “B”.Essa percepção também já permeava pronunciamentos de autoridadescomunitárias, que identificavam no Brasil ator de crescente importância nocenário global. De fato, a partir do início do Governo do Presidente LuizInácio Lula da Silva, após consolidadas importantes conquistas da sociedadebrasileira, como o fortalecimento de suas instituições democráticas e aestabilidade política e econômica, o Brasil passou a assumir crescenteprotagonismo em temas de interesse global. O empenho do Brasil napromoção do desenvolvimento com justiça social, o pioneirismo na produçãoe no uso de fontes limpas de energia, o compromisso com a preservação domeio ambiente, o respeito aos direitos humanos e os esforços em prol naintegração regional são elementos da voz forte do Brasil em diferentes tabuleirospolíticos, econômicos e sociais.

Com efeito, em janeiro de 2006, em reunião no Itamaraty com oRepresentante da Comissão Europeia em Brasília, Embaixador João Pacheco,deu-se início às tratativas com vistas ao estabelecimento da relação de ParceiraEstratégia entre o Brasil e a União Europeia4. Nesse contexto, realizou-se aprimeira visita ao Brasil de um Presidente da Comissão Europeia, o Dr. JoséManuel Durão Barrroso, em fins de maio de 2006. No diálogo mantido naquelaocasião entre o Presidente da República e o Presidente da Comissão Europeiaevidenciou-se vasto potencial de cooperação em novas áreas de interessemútuo, bem como de aprofundamento das relações em iniciativas já em curso.Foi naquele encontro que o Presidente da Comissão Europeia, animado pelo

4 Despacho Telegráfico número 23, de 26 de janeiro de 2006, para a Missão junto à ComunidadeEuropeia em Bruxelas.

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entusiasmo do Presidente Lula com o desenvolvimento brasileiro dosbiocombustíveis e sua conseqüente contribuição para mitigar os efeitos damudança do clima, incluindo também importante dimensão social ao propiciarsustento para áreas mais pobres do planeta, convidou-o para ser palestrantede honra da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis que se propunhaorganizar em 2007, e de fato realizada em Bruxelas, em 5 de julho daqueleano.

No processo de lançamento da Parceria Estratégica, a ComissãoEuropeia publicou, no dia 30 de maio de 2007, nota à imprensa com o seguinteteor: “A Comissão Europeia propôs lançar uma Parceria Estratégica com oBrasil na primeira Cimeira UE-Brasil que se realizará em Lisboa em 4 deJulho. Numa Comunicação hoje adotada, a Comissão sublinha o papelcrescente desempenhado pelo Brasil na cena internacional, o seu peso a nívelregional e os fortes vínculos bilaterais que existem entre o país e a Europa epropõe um certo número de iniciativas para reforçar as relações entre asduas partes no quadro de uma Parceria Estratégica. A Comunicação identificaum vasto espectro de sectores e atividades em que a UE tem um interessefundamental em reforçar a cooperação e em desenvolver um diálogo maisaprofundado com o Brasil”5. A Comunicação sublinha igualmente a importânciade um diálogo reforçado para apoiar a conclusão de um Acordo de AssociaçãoUE-Mercosul.

Elaborada na perspectiva da realização da Cimeira UE-Brasil, a referidaComunicação foi discutida com os Estados-Membros e constituiu base paraa Agenda da Cúpula de Lisboa. Naquele documento, o Presidente daComissão Europeia expressou que: “O Brasil é um parceiro importante paraa UE. Não só partilhamos laços históricos e culturais estreitos, valores, e umforte empenhamento nas instituições multilaterais, mas também a capacidadepara dar uma contribuição decisiva para o tratamento de muitos desafiosglobais como as alterações climáticas, a pobreza, o multilateralismo, os direitoshumanos e outros. Ao propor um estreitamento destes laços, reconhecemoso estatuto do Brasil como protagonista fundamental para integrar o cluberestrito dos nossos parceiros estratégicos.” A Comissária de RelaçõesExteriores e Política Europeia de Vizinhança Benita Ferrero-Waldner, porsua vez, referiu: “Existe um enorme potencial por explorar nas nossas relaçõescom o Brasil a nível multilateral, regional e bilateral. Esta Parceria Estratégica

5 Comunicação interna da Comissão Europeia, datada de 30 de maio de 2007.

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permitir-nos-á desenvolver ainda mais a nossa cooperação em sectores-chavecomo a energia, os transportes marítimos e o desenvolvimento regional, eestabelecer novas relações duradouras entre os nossos povos”.

A Comunicação “Para uma Parceria Estratégica UE-Brasil”6 propunhauma vasta gama de áreas e setores para uma cooperação e uma parceriamais estreita. As áreas prioritárias de ação incluem o reforço domultilateralismo, com vistas à construção de um sistema das Nações Unidasmais eficaz e a promoção dos Direitos Humanos. A Comissão propõe cooperarestreitamente em relação a desafios globais como a pobreza e as desigualdades,as questões ambientais (em especial as alterações climáticas, as florestas, agestão dos recursos hídricos e a biodiversidade), energia, reforçar aestabilidade e a prosperidade na América Latina e a cooperação em matériade integração regional com o Mercosul, bem como a determinação conjuntade concluir um acordo UE-Mercosul.

Ao salientar que o Brasil é o mais importante mercado da UE na AméricaLatina, a Comissão propunha tratar as questões relativas ao comércio e aoinvestimento de relevância bilateral específica que complementam asdiscussões UE-Mercosul e sugeria reforçar a cooperação em setores e áreasde interesse mútuo como as questões econômicas e financeiras, a sociedadeda informação, os transportes aéreos, os transportes marítimos, a ciência etecnologia, a navegação por satélite, as questões sociais e o desenvolvimentoregional. Por último, sugeria igualmente ações para aproximar os povos atravésdo sistema de intercâmbio de estudantes universitários Erasmus Mundus,do diálogo cultural e de uma Mesa Redonda de empresas a realizar-separalelamente à Cimeira. Cabe aqui, no entanto, o registro do entendimentodo Governo brasileiro de que a Parceria Estratégica Brasil-União Europeiatem caráter estritamente bilateral e não constitui instância negociadora doAcordo de Associação Mercosul-UE, que tem seus foros próprios de diálogo.A Parceria, contudo, poderá representar um impulso político às negociaçõesMercosul-UE, em sintonia com os objetivos compartilhados pelos países doMercosul 7.

A Comunicação incluía duas recomendações principais aos Estados-Membros da UE: lançar com o Brasil uma Parceria Estratégica na Cimeira

6 Documento da Presidência do Conselho da União Europeia, de 2 de junho de 2007, que dispõesobre o estabelecimento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.7 Circular Telegráfica nº 6.4149, de 31.05.2007, a todas as Embaixadas brasileiras no exteriores,com esclarecimentos sobre o lançamento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.

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de Julho em Lisboa; e convidar o Brasil a apresentar sua posição sobre oalcance desta Parceria Estratégica. Na base dessas recomendações estava apercepção europeia de que “Brazil is an increasingly important partnerfor the EU and also a highly competitive player in regional and globalissues. It is a key actor in Latin America both because of its political andeconomic weight and as a result of its leadership role in the region (egleading the UN stabilization mission in Haiti). It plays a lead role inMercosur and in other South American regional processes. Brazil seeksto promote effective multilateralism and is one of the most importantand articulate countries within the developing world. As leader of theG-20, it will continue to play a crucial role in multilateral tradenegotiations (WTO) and because of the richness of its natural environmentand biodiversity will be a key partner on environmental issues. The EUis the first largest investor and trade partner of Brazil. The fifth largestcountry in the world, Brazil has become such an important part of theinternational architecture that many issues of the international agendarequire that we work in partnership. For all these reasons, the EU has astrong interest in strengthening its dialogue with Brazil.”8

A Chancelaria brasileira, por sua vez, emitiu, em Nota à Imprensaexpressando que o Governo brasileiro acolhera, de forma altamente positiva,a proposta da Comissão Europeia de lançar relação de Parceria Estratégicacom o Brasil, como uma decorrência natural do relacionamento bilateral doBrasil com a União Europeia. A proposta encontra também sintonia com asparcerias estratégicas que o Brasil já mantém com vários Estados-Membrosda União Europeia, entre os quais a Alemanha, França, Reino Unido, Portugal,Espanha e Itália, países que estão entre os nossos mais importantes parceiroscomerciais e entre os maiores investidores no Brasil, além de serem importantesas relações em ciência e tecnologia. Harmoniza-se, ainda, com interesse doBrasil de aprofundar com a União Europeia não só o relacionamento bilateral,mas também o diálogo sobre temas de interesse global.

Dada a elevada sintonia dos interesses de ambas as partes, o processonegociador avançou rapidamente, culminando com a formalização da ParceriaEstratégica na Cúpula de Lisboa, em 4 de julho de 2007, durante a presidênciaportuguesa do Conselho da UE. Cabe aqui também registrar o empenho de

8 Draft Preparation Document of the Lisbon Summit – Comunicação da Comissão Europeia àPresidência do Conselho e ao Parlamento Europeu. Documento interno da Comissão Europeiapara a preparação da Cúpula de Lisboa. Bruxelas, 30 de maio de 2007.

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Portugal no lançamento da Parceria durante sua Presidência do Conselho daUE, expresso em suas gestões junto a outros Estados-Membros da UE e naorganização da Cúpula de Lisboa. Conforme palavras do então embaixadorde Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, “resolvemos propor quefosse atribuído ao Brasil o estatuto de interlocutor privilegiado. É uma espéciede quadro referencial de interlocução nas mais diversas áreas, desde a políticaexterna até questões ambientais. Um quadro em que se integrarão não sótodos os modelos de cooperação que já existem entre o Brasil e a UniãoEuropeia, mas também futuros modelos, porque pensamos que o Brasil é umator no quadro internacional que justifica maior atenção do que tem tido atéagora”9. Portugal também se empenhou para fazer da Cúpula de Lisboa umevento de natureza singular, tendo convidado para o evento outros Chefes deGoverno europeus. Assim, ao ato comemorativo do lançamento da ParceriaEstratégica Brasil União-Europeia, sob a condução do Presidente AníbalCavaco Silva, juntaram-se ao Presidente Lula, além dos Primeiros-Ministrosde Portugal, Eslovênia e o Presidente da Comissão Europeia, formando atróica da UE, também o Presidente da França, Nicolas Sarkozy, o Presidentedo Governo da Espanha, Jose Luís Rodríguz Zapatero, o Presidente doConselho de Ministros da Itália, Romano Prodi, entre outros líderes europeus.No contexto do lançamento da Parceria Estratégica, foi também organizadoo I Foro Empresarial Brasil-União Europeia, com expressiva participação derepresentantes das áreas de comércio e de investimentos dos dois lados.

A importância daquele evento encontra-se refletida no parágrafo 3 daDeclaração Conjunta da Cúpula de Lisboa, que assim dispõe:

“No momento histórico da sua primeira Cúpula, o Brasil e a UE decidiramestabelecer uma Parceria Estratégica abrangente, baseada nos seusestreitos laços históricos, culturais e econômicos. Ambas as partespartilham valores e princípios essenciais, como a democracia, o primadodo Direito, a promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentaise a economia de mercado. Os dois lados concordam com a necessidadede identificar e promover estratégias comuns para enfrentar os desafiosmundiais, inclusive em matéria de paz e segurança, democracia e direitoshumanos, mudança do clima, diversidade biológica, segurança energéticae desenvolvimento sustentável, luta contra a pobreza e a exclusão. Estão

9 Francisco Seixas da Costa, entrevista à Radiobras/Agência Brasil, em 5 de junho de 2007.

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também de acordo quanto à importância de cumprir as obrigaçõesdecorrentes dos tratados internacionais vigentes em matéria dedesarmamento e não-proliferação. O Brasil e a UE concordam em que amelhor forma de abordar as questões de ordem mundial se dá pela via deum multilateralismo efetivo centrado no sistema das Nações Unidas. Ambasas partes se congratulam pelo estabelecimento de um diálogo político Brasil-UE, iniciado sob a Presidência alemã da União Europeia”10.

Naquela ocasião, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discursopor ocasião da Cúpula de Lisboa, sublinhou

“Hoje nos reunimos para dar início a uma nova era do relacionamentoentre o Brasil e a União Europeia. Estamos lançando uma parceriaestratégica, estamos elevando nossa relação à altura de suaspotencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundoem transformação. As grandes questões globais como comércio, mudançado clima, segurança energética, não podem ser discutidas em círculosrestritos que não levem em conta as posições dos grandes países emdesenvolvimento. Se quisermos verdadeiramente construir um mundomelhor, temos que estimular o diálogo e a cooperação entre o Sul e oNorte sobre os principais temas da agenda global”11.

A referida Declaração Conjunta já estabelecia as principais áreas que asduas partes se propunham a aprofundar, entre as quais listavam o fortalecimentodo diálogo político com vistas ao tratamento dos principais desafios mundiais,a cooperação no plano birregional no contexto das Cúpulas América Latina eCaribe-União Europeia; o fortalecimento das relações econômicas e comerciaisnos âmbitos bilateral e birregional; o fortalecimento dos Diálogos Setoriaisbilaterais já estabelecidos em matéria de transportes marítimos, ciência etecnologia e sociedade da informação; meio ambiente e desenvolvimentosustentável, e acolhem com satisfação o lançamento de novos diálogos sobreenergia, emprego e questões sociais, desenvolvimento regional, cultura eeducação, bem como o mecanismo de consulta para as questões sanitárias efitossanitárias; ciência e tecnologia; e a intensificação das relações envolvendo10 Declaração Conjunta da Primeira Cúpula Brasil-União Europeia, Lisboa, 4 de julho de 2007.11 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula de Lisboa, Lisboa, 4 de julho de2007.

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entre a sociedade civil. A Declaração Conjunta reflete, assim, a agenda dareunião plenária da Cúpula de Lisboa, quando foram abordados três blocos detemas: Relações Brasil-União Europeia: o lançamento da Parceria Estratégica;Temas regionais: situação na Europa e situação na América Latina e AssuntosGlobais: Rodada de Doha, Fortalecimento do multilateralismo, Mudança doclima, Combate à pobreza e à exclusão social e Energia.

Entre o lançamento da Parceria Estratégica e a II Reunião de Cúpula Brasil-UE, realizada no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 2008, as duas partesestiveram empenhadas em, ao mesmo tempo, dinamizar as áreas de cooperaçãojá estabelecidas e negociar o Plano de Ação Conjunto da Parceria Estratégica.A Cúpula do Rio de Janeiro, que ocorreu sob a Presidência Francesa doConselho da União Europeia, contou com a participação do Presidente NicolasSarkozy e do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.Sua agenda privilegiou o debate das questões de interesse global, o tratamentoda crise financeira internacional à luz a reunião ministerial do G-20 Financeiro,realizada em São Paulo, em novembro de 2008, bem como no contexto dacoordenação com vistas à Cúpula do G-20, realizada em Londres, em abril de2009. Também nesse bloco de temas foi dada continuidade à discussão daagenda de Lisboa com o aprofundamento da discussão sobre o fortalecimentodo multilateralismo nos planos político econômico, quando foram discutidas areforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, bem como aRodada de Doha da OMC; além que questões afetas à mudança do clima eenergia, tendo presente a realização no Brasil, em novembro de 2008, daConferência Internacional sobre Biocombustíveis e as Metas deDesenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. Também foram intercambiadasvisões sobre os cenários regionais europeu e latino-americano e abordadostemas bilaterais da Parceria Estratégica Brasil-UE, consubstanciados no Planode Ação Conjunto, então adotado.

O Plano de Ação constitui-se em documento amplo que passa aestabelecer a moldura central das relações do Brasil com a União Europeia.Inclui as áreas de cooperação já em andamento, bem como novas vertentesde atuação conjunta, em forma de programa de trabalho a ser avaliadoanualmente nas reuniões da Comissão Mista Brasil União Europeia.12

12 Comissão Mista Brasil-União Europeia, instituída pelo Acordo-quadro de cooperação entrea Comunidade Econômica Europeia e a República Federativa do Brasil, assinado em 29 de junhode 1992. A Comissão realizou em Brasília, em 17 de março de 2007 sua 10ª reunião, estando opróximo encontro previsto para ralizar-se em Bruxelas, entre os dias 07 e 09 de julho de 2009.

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O Plano de Ação consolida como metas centrais da Parceria Estratégicaa promoção da paz e da segurança abrangente por meio de um sistemamultilateral eficaz; a promoção da parceria econômica, social e ambientalpara o desenvolvimento sustentável; a promoção da cooperação regional; apromoção da ciência, da tecnologia e da inovação; e a promoção dointercâmbio entre os povos. O Documento está, assim, estruturado em cincograndes blocos de temas agrupando as principais ações que as partes secomprometem a implementar ao longo dos próximos três anos. Ao final desseperíodo, o Plano será objeto de avaliação, com vistas a definição de novosrumos para a parceria.

1. Promoção da paz e da segurança

Propõe atuação conjunta, inclusive no contexto do Diálogo Político deAlto Nível, com vistas ao fortalecimento do sistema multilateral, com ênfasena reforma das Nações Unidas, incluindo o Conselho Econômico e Social(ECOSOC), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e o Conselhode Segurança (CSNU), assim como consultas e ações conjuntas nas áreasde direitos humanos e democracia, justiça internacional (inclusive no âmbitodo Tribunal Penal Internacional – TPI), desarmamento e não proliferação,prevenção de conflitos e gestão de crises, construção da paz, e luta contra oterrorismo, crime organizado e corrupção, drogas ilícitas.

Como desdobramento da implementação desse capítulo do Plano deAção, os representantes do Brasil e da União Europeia em organismosinternacionais nas áreas acima citadas estão instruídos a intensificar acoordenação em foros multilaterais. À luz da ativa participação do Brasile da União Europeia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, missõesdas duas partes intensificarão o diálogo nessa área, especialmente notocante à construção da paz e à assistência pós-conflito, com vistas aprojetos conjuntos no Haiti, com reuniões já marcadas para ocorrer emBrasília, no início de junho de 2009. As partes também assumiram ocompromisso de dar prosseguimento à coordenação sobre a reforma dasNações Unidas. Destacam-se, nesse capítulo, os trabalhos do Diálogosobre Desarmamento e Não-Proliferação, instituído ainda em 2002, comreuniões anuais de consultas entre o Brasil e a Tróica da UE sobre temasde desarmamento e não-proliferação, em nível de altos funcionários, deperiodicidade anual.

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Com base no princípio da responsabilidade compartilhada e em umaabordagem equilibrada entre a redução da oferta e da demanda de drogas, etomando em consideração as realidades de ambas as Partes, a cooperaçãoentre Brasil e UE nessa matéria deve centrar-se no intercâmbio de experiênciase de boas práticas, atividades de capacitação e treinamento, intercâmbio deinformações operacionais e jurídicas, entre outras.

2. Aperfeiçoamento da parceria econômica, social e ambiental paraa promoção do desenvolvimento sustentável

Trata–se de área particularmente relevante, em que as partes secomprometem a trabalhar em diferentes níveis com vistas à conclusão daRodada de Doha. Também institui o Diálogo Brasil-União Europeia sobreTemas Agrícolas (aspectos sanitários e fitossanitários), mecanismo de grandeimportância para o encaminhamento de questões relativas ao comércio bilateral;o Diálogo sobre Temas Macroeconômicos e Financeiros – a ser em breveestruturado com vistas inclusive ao debate sobre a crise financeirainternacional; o reforço de ações em comércio e investimentos, com vistas àampliação e diversificação do intercâmbio bilateral (criação de Grupo deTrabalho sobre Comércio e Investimentos); intensificação da cooperaçãoentre o BNDES e o Banco Europeu de Investimentos (BEI) em áreas comomudança do clima, energia e infra-estrutura. Dispõe sobre o relacionamentonas áreas de propriedade intelectual, transportes marítimo e aéreo e sociedadeda informação.

Além dos novos Diálogos Setoriais propostos nesse capítulo, cabe mençãoao Diálogo sobre Sociedade da Informação, já institucionalizado, ao amparodo qual são tratados temas relacionados à tecnologia da informação, bemcomo sobre governança da Internet, tema em que a experiência brasileiradesperta o interesse da Comissão Europeia, que deseja ainda conhecer osprojetos do Governo brasileiro em matéria de inclusão digital (programasfederais “Um Computador por Aluno” e “Plano Nacional de Banda Larga”).

Dispõe ainda sobre a consecução da Metas do Milênio; sobre o diálogosobre desenvolvimento global e cooperação triangular; sobre questões sociaise de emprego; sobre redução de disparidades regionais e a instituição doDiálogo sobre Governança do Setor Público. Nesse quadro, será dinamizadoo Diálogo sobre Desenvolvimento Social, firmado em abril de 2008, orientadopara a implementação de projetos na área social, objetivando a promoção

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do emprego pleno, livremente escolhido e produtivo para mulheres e homens;o fortalecimento da agenda de trabalho decente, em particular quanto aprincípios fundamentais, salários justos e direitos no trabalho; o combate aotrabalho infantil e o trabalho forçado; o estímulo a orientação profissional eoportunidades de aprendizagem continuada; a cooperação na área de saúdee segurança no ambiente de trabalho; o fortalecimento do diálogo no campodos sistemas de seguridade social; o apoio ao intercâmbio de melhores práticasna área de responsabilidade social corporativa e códigos de conduta justaem empresas; o intercâmbio de melhores práticas em inclusão social, emparticular com relação a minorias.

Também merece destaque o Diálogo sobre Políticas de IntegraçãoRegional, concluído em novembro de 2007, ao amparo do qual já estão emandamento projetos bilaterais sobre redução das assimetrias intra-regionaisno Brasil. As partes se comprometem, no contexto desse Diálogo, aintercambiar experiências em coesão territorial, bem como em governançaem múltiplos níveis e em parcerias que envolvam atores regionais e locais, osetor privado e a sociedade civil; a trocar experiências sobre planejamentoestratégico e sobre a organização de estratégias de desenvolvimento territorialvoltadas para a redução de disparidades sociais e regionais; a buscar odesenvolvimento de capacidade administrativa, coordenação e comunicaçãointerinstitucional e capacidade de monitoramento e avaliação; a desenvolveresquemas de cooperação entre regiões, inclusive cooperação transfronteiriça;a estimular o apoio técnico para o desenvolvimento e a consolidação depolíticas regionais, inclusive a possível implementação de projetos-piloto emáreas-chave da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) doBrasil e da política regional da Comissão Europeia.

Esse capítulo do Plano de Ação trata também do desenvolvimentoda parceria no contexto do Diálogo sobre a Dimensão Ambiental doDesenvolvimento Sustentável e Mudança do Clima, instituído em maiode 2006. Brasil e UE cooperarão no processo abrangente lançado emBali a fim de permitir a implementação integral, efetiva e sustentada daConvenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima(UNFCCC) por meio de ações de cooperação de longo prazo, agora,até e após 2012. Trabalharão em conjunto para procurar alcançar umresultado acordado ambicioso e global até 2009 com vistas aofortalecimento da cooperação internacional sobre a mudança do climapor meio de um esforço global nos marcos da UNFCCC e do Protocolo

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de Quioto. Com esse objetivo, sublinham a importância de se alcançaremresultados com relação a todos os componentes do Plano de Ação deBali adotado em dezembro de 2007 (entre outros, visão compartilhada,mitigação, adaptação, tecnologias, financiamento), tomando seriamenteem consideração os cenários ambiciosos do Painel Intergovernamentalsobre Mudança do Clima (IPCC) e levando em conta o princípio daeqüidade. Assinalam a necessidade de que todos os países desenvolvidosassumam a liderança, comprometendo-se com metas de redução deemissões mandatórias, ambiciosas e comparáveis, e de que os países emdesenvolvimento tomem medidas de mitigação apropriadas em nívelnacional, no contexto do desenvolvimento sustentável, apoiadas eviabilizadas por tecnologia, financiamento e capacitação, de formamensurável, reportável e verificável. Brasil e UE ressaltam a necessidadede ação tempestiva do Grupo de Trabalho Ad Hoc do Protocolo deQuioto de modo que conclua seu programa de trabalho até o fim de 2009.Reconhecem que o progresso substantivo nessa área deve ser baseadono objetivo último da Convenção e no princípio das responsabilidadescomuns porém diferenciadas e das respectivas capacidades.

O Plano de Ação Conjunto dispõe, ademais, sobre a implementaçãodo Diálogo sobre Política Energética, criado por ocasião da visita doPresidente da República à Comissão Europeia, em 5 de julho de 2007,tendo realizado sua primeira reunião ministerial à margem da ConferênciaInternacional sobre Biocombustíveis (São Paulo, 17-21/11/2008). No marcodo diálogo sobre política energética, Brasil e União Europeia pretendemfortalecer a cooperação em políticas voltadas para aperfeiçoar a segurançaenergética, inclusive a diversificação da oferta e de rotas de abastecimento;em questões regulatórias para mercados de energia competitivos, incluindooportunidades de investimento; em eficiência energética e gestão dademanda, incluindo iniciativas conjuntas e trabalhos conjuntos para apromoção do acesso à energia e da eficiência energética em nívelinternacional; em tecnologias de menor teor de carbono, incluindo, interalia, gás e carvão limpo, bem como pesquisa na área da energia nuclear ecooperação em segurança nuclear, com atenção especial às tecnologiasseguras e sustentáveis; no desenvolvimento e na disseminação de tecnologiasde energia renovável, inclusive biocombustíveis de segunda geração; napromoção da consolidação de mercados nacionais, regionais e internacionaispara biocombustíveis; em padrões técnicos internacionais para

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biocombustíveis; sustentabilidade para biocombustíveis de forma a garantirque produção de bioenergia, não afete a produção de alimentos e abiodiversidade. Ainda com respeito a biocombustíveis, estão em curso entreo Brasil e a União Europeia entendimentos para a cooperação trilateralcom países de menor desenvolvimento para promover a produção debiocombustíveis e bioeletricidade, compatíveis com as normas e os padrõesexigidos pelo mercado internacional.

3. Promoção da Cooperação Regional

Dispõe sobre a intensificação da cooperação ALC-UE, Grupo do Rio-UE e da agenda Mercosul-UE. Para tanto, as partes se comprometem aapoiar iniciativas interregionais que aprofundem a integração regional, emparticular o processo ALC-UE; a estimular o intercâmbio regular de opiniõessobre a situação em ambas as regiões; a implementar os compromissosgerados pelas Cúpulas ALC-UE; a intensificar o intercâmbio sobre políticas-chave voltadas para a promoção da inclusão social e para a redução dapobreza e desigualdade. A Parceria Estratégica Brasil-UE apresenta grandepotencial de impacto positivo sobre o Brasil e a UE, bem como sobre asrelações entre a UE e o Mercosul em seu conjunto. Brasil e UE atribuemgrande importância ao fortalecimento das relações entre ambas as regiões etêm compromisso com a retomada e a conclusão do processo de negociaçãode um Acordo de Associação birregional equilibrado e abrangente. Para tanto,as partes se comprometem a dar prosseguimento às negociações com vistasà conclusão de um Acordo Mercosul-UE equilibrado e abrangente; a apoiaro diálogo político e outras iniciativas a fim de fortalecer o desenvolvimento ea cooperação econômica entre as duas regiões; a fortalecer o diálogoregulatório e industrial birregional, a fim de aperfeiçoar o ambiente de negóciose superar obstáculos desnecessários ao comércio; e a estimular o intercâmbioentre o Parlamento do Mercosul e o Parlamento Europeu.

4. Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação

Atribui ênfase à intensificação das atividades do Comitê Diretivo sobreCiência e Tecnologia, com prioridade para as áreas de biotecnologia,nanotecnologia, meio ambiente, energia e mudança do clima. Nesse particular,merece destaque a intensificação dos trabalhos do Diálogo sobre Ciência e

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Tecnologia, especialmente a partir da entrada em vigor, em dezembro de2006, do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, ao amparo doqual foi instituído o Comitê Diretivo de Cooperação Científica e TécnicaBrasil-União Europeia (CDC), em nível ministerial. O Plano de Açãocontempla a intensificação do desenvolvimento de projetos de pesquisa noBrasil e na União Europeia em temas de energia (biocombustíveis e energianuclear), agricultura e biotecnologia, meio ambiente e mudança do clima,espaço, saúde, nanotecnologia, transportes, mobilidade de pesquisadores,ciências sociais e humanas e tecnologias da informação e comunicações. OPlano de Ação dispõe também sobre o desenvolvimento da cooperação nocampo do espaço exterior e da navegação por satélite, em particular comvistas a intensificar o diálogo e o intercâmbio de informações relativos aosProgramas Europeus de Navegação por Satélite (Galileo e EGNOS); ofortalecimento da cooperação entre a CE e o Brasil na área de observaçãoda Terra, em especial mediante a participação na Iniciativa GEO (Grupo deObservação da Terra); a exploração de oportunidades de cooperação empesquisas para o uso pacífico da energia nuclear, em particular as negociaçõesde um acordo de cooperação no campo da pesquisa em energia de fusãoentre o Brasil e a EAEC (EURATOM), com vistas ao acesso do Brasil aoprojeto do Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER).

5. Intercâmbio Cultural e entre as sociedades

Nesse capítulo do Plano de Ação, merece relevo o tratamento do temamigrações, os contatos entre as sociedades civis e questões consulares,assuntos que adquirem crescente importância no contexto da globalização,tendo como base os laços históricos, culturais e humanos que unem os povosdo Brasil e da Europa. O Brasil e a União Europeia reconhecem o papelpositivo da migração como fator de intercâmbio humano e econômico nospaíses de origem e de destino e se comprometem a continuar a tratar toda agama de questões de migração, tais como migração regular, migração irregulare os vínculos entre migração e desenvolvimento, no marco das relaçõesbilaterais e dos foros internacionais de que participam Brasil e UE, tomandoem conta os direitos humanos e a dignidade de todos os migrantes. Paratanto, acordaram fortalecer o diálogo sobre questões de migração nos forosBrasil-UE existentes e propõem-se a trabalhar mais especificamente na áreadas remessas, a fim de facilitar suas transferências e encontrar mecanismos

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apropriados para a redução de seus custos; aumento da cooperaçãooperacional a fim de combater o tráfico de imigrantes, o tráfico de pessoas ea exploração dos migrantes; a facilitação de viagens sem necessidade devisto, com respeito integral à conclusão dos respectivos procedimentosinternos, parlamentares e outros, com base na reciprocidade, mediante anegociação e conclusão em futuro próximo de acordo(s) sobre isenção devistos de curta duração entre a CE e o Brasil; o prosseguimento da cooperaçãosobre assuntos consulares, especialmente aqueles relativos a acesso consular,assistência e proteção; atenção especial a que sejam garantidas aos consuladosinformações em casos de prisão, detenção ou transferência de seus nacionais;a assegurar a prestação de assistência consular a pessoas detidas em postospoliciais, aeroportos e postos de fronteira.

O Plano de Ação também contempla o fortalecimento da cooperaçãonos campos da educação e da cultura. Para tanto, as partes comprometem-se a criar um diálogo setorial sobre educação, juventude e esportes, queabrangerá temas de interesse comum, tais como a cooperação e o intercâmbioem educação superior e a mobilidade de estudantes, professores epesquisadores mediante a implementação de programas como o ErasmusMundus, em consonância com o espírito do Espaço Comum de EducaçãoSuperior ALC-UE; o intercâmbio de informações e de experiências comvistas ao aperfeiçoamento de sistemas de avaliação acadêmica; a troca deboas práticas e informações com vistas à identificação de métodos bem-sucedidos para o ensino e o aprendizado de ciências, a fim de aumentar aparticipação na educação científica e no treinamento vocacional e técnico-profissional; a colaboração entre instituições de alto nível (universidades,institutos de pesquisa, academias diplomáticas, think tanks e outras) nasáreas de estudos brasileiros e europeus especializados e de RelaçõesInternacionais; a estimular a promoção do multilingüismo nos sistemaseducacionais e universitários de ambas as Partes e facilitar o ensino dos idiomasda outra Parte.

Na esfera cultural, o Brasil e UE estão comprometidos com a preservaçãoe a promoção da diversidade cultural, com o aperfeiçoamento do diálogointercultural e com a promoção das indústrias culturais e criativas. As Partesprocurarão tratar conjuntamente essas questões em nível institucional, bemcomo no nível dos setores público e privado e das organizações da sociedadecivil. Nesse sentido, as partes estabelecerão o diálogo regular sobre políticasculturais, inclusive as indústrias culturais e criativas com vistas ao trabalho

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conjunto para a promoção da cooperação em instâncias internacionais, a fimde facilitar a implementação eficiente da Convenção da UNESCO de 2005;a promoção da inclusão social e do desenvolvimento sustentável por meio doacesso à cultura, inclusive mediante o uso de tecnologias de informação ecomunicação e das novas tecnologias digitais; a adoção de medidas voltadaspara a promoção do intercâmbio cultural e possíveis iniciativas conjuntas afim de divulgar a cultura brasileira na Europa e a cultura Europeia no Brasil; oestímulo à cooperação e intercâmbio no campo do patrimônio cultural, inclusiveno setor de museus, com vistas à preservação de bens e expressões culturais;a facilitação do trânsito da arte e de artistas do Brasil e da UE; odesenvolvimento de políticas públicas no setor audiovisual.

Cientes da importância da consolidação dos instrumentos democráticosde consulta à sociedade civil, em particular as instituições que representamorganizações da sociedade civil nas esferas econômica e social, o Brasil e aUnião Europeia se comprometem a estimular a cooperação entre o Conselhode Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) do Brasil e o ComitêEconômico e Social Europeu (EESC). Decidiram, assim, estimular aorganização de Mesa Redonda DCES-EESC, que constituirá a arquiteturainstitucional do relacionamento Brasil-UE na promoção da cooperação e dointercâmbio de experiências e de boas práticas entre associações empresariais,sindicatos, agricultores e outras organizações da sociedade civil de ambas asPartes.

Em complemento à interação ente as sociedades, o Plano de Açãotambém se propõe a estimular o intercâmbio entre os Parlamento Europeu eo Congresso Nacional brasileiro. As duas partes estabeleceram, em abril de2009, o Diálogo Parlamentar, que já realizou sua primeira seção de instalação.A Parceria Estratégica Brasil-UE também deverá promover a cobertura deimprensa e o intercâmbio jornalístico recíprocos; a organização de conferênciase cursos de curta duração para jornalistas, entre outras iniciativas.

A elevação do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia aopatamar de Parceria Estratégica resultou de uma convergência deinteresses, fundada nos valores e princípios que compartilhamos edefendemos nos foros internacionais, e no reconhecimento recíproco dopotencial de nossa coordenação e cooperação. Desde a Cúpula deLisboa, em julho de 2007, o diálogo bilateral ganhou maior dinamismoem todos os níveis, o que ratifica as elevadas expectativas quanto aofuturo promissor da Parceria Estratégica.

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A face mais visível dessa relação, até mesmo por ser mais facilmentemensurável, se traduz nas cifras de investimento e intercâmbio comercial.Com efeito, a União Europeia tem tradicionalmente ocupado lugar de relevoentre os principais parceiros econômicos do Brasil. A corrente comercial em2008 superou a casa dos US$ 77 bilhões de dólares. Essa cifra representacerca de 22,2% do comércio total do Brasil, e um crescimento de cerca de26% sobre o mesmo período em 2007. Somente em 2007, o ingresso deinvestimentos diretos dos 27 países-membros da UE no Brasil somou US$18,4 bilhões, o que representa 54,6% do total de investimentos que o Brasilrecebeu naquele ano.

Mas a apresentação acima do Plano de Ação da Parceria EstratégicaBrasil-União Europeia buscou mostrar, de forma resumida, a diversidade eamplitude do relacionamento moderno entre o Brasil e a União Europeia. OPlano completo consta de documento de 23 páginas, onde se estruturam asmúltiplas ações que as duas partes acordaram desenvolver ao longo dos trêsanos de sua validade, com vistas à sua reavaliação em 2011.

Trata-se de agenda ambiciosa, de importância que transcende quaisquerinteresses econômicos imediatos. O Plano de Ação traduz a abrangência e ocaráter diversificado do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia,que envolve não apenas agentes governamentais, mas também instituiçõesacadêmicas, o empresariado, os meios científico e cultural e tantos outrossegmentos das sociedades do Brasil e da Europa. O Plano de Ação reflete,assim, a disposição compartilhada de imprimir ao relacionamento enfoqueverdadeiramente estratégico e humanista, voltado para as grandes questõesde nosso tempo. Encerra, portanto, a perspectiva de dois parceirosempenhados na construção de uma ordem internacional multipolar, lastreadano respeito mútuo, na confiança compartilhada, e na determinação de trabalharnão só pela prosperidade e bem estar dos povos do Brasil e da UniãoEuropeia. O sentido verdadeiramente estratégico da Parceria Brasil-UniãoEuropeia se traduz na capacidade de trabalhar com olhar solidário sobre osmais pobres e excluídos para a construção de um mundo mais justo e melhor.

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Instabilidade política moderna nos países quecorrespondem aos últimos impérios colôniaseuropeus. Exemplos do Oriente Médio ecomparação com a África

Affonso Celso de Ouro Preto

Berço das três grandes religiões monoteístas, ponto de contato entre oOcidente e o Oriente, área de conflito e também de síntese cultural, centroestratégico próximo às maiores riquezas petrolíferas do planeta, o OrienteMédio se mantém, ainda hoje, como a região por excelência das confrontaçõese das crises modernas.

Uma observação inicial é conveniente.Em primeiro lugar, o Oriente Médio, desde as Cruzadas e a conquista

otomana – com a exceção da tentativa de conquista francesa durante aRevolução, no final do século XVIII – viveu durante séculos, contrastandocom os distúrbios de hoje, numa relativa paz e num clima próximo à tolerância,como parte do império otomano. Outras partes do império haviam sidomarcadas pela violência mas não foi o caso do Oriente Médio propriamentedito.

A segunda observação seria que os estados, hoje existentes, na região,constituem entidades políticas relativamente modernas, na medida em querepresentam a divisão levada a cabo, em proveito próprio, após a primeiraguerra mundial, pela Grã-Bretanha e pela França, das províncias árabes doimpério otomano.

As crises que marcam o Oriente Médio moderno – conflitos do Líbano,guerra no Iraque, tensões com a Síria, confrontação palestino – israelense,não devem, por outro lado, ser examinados como fenômenos estanques sem

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nenhuma relação de casualidade entre si (ainda que esse princípio decausalidade não tenha sido aceito por todos os observadores e por todos osmatizes de opinião).

Um conflito específico, efetivamente, deve ser examinado, comparticular atenção. já que repercutiu, intensamente, não só em toda aregião mas também, globalmente, fora do Oriente Médio. Trata-se daconfrontação entre o nacionalismo árabe, mais especificamente, onacionalismo palestino, e o Estado judeu de Israel. Pode-se afirmarque uma eventual pacificação da região dependerá da solução quepuder ser alcançada (se essa solução for possível um dia...) para esseproblema.

Sem tentar desenvolver uma análise histórica da criação do Estado deIsrael e de sua evolução ou um exame pormenorizado dos nacionalismosárabes da região, em particular o palestino, cabe verificar, hoje, que acomplexa colisão (israelo-palestina) se expressa em dois ou mesmo emtrês níveis.

Trata-se, em primeiro lugar de um conflito pela posse de um território. Aexpansão da colonização israelense entrou em choque com as populaçõesárabes residentes na Palestina. Esse choque teve início com o desenvolvimentoda emigração judaica, a partir do século XX na Palestina. O Holocaustonazista conferiu uma nova legitimidade a essa colonização que levou à criaçãodo Estado de Israel em 1948.

Em segundo lugar, a confrontação é também religiosa, na medida em queo país – Israel-Palestina – é considerado terra sagrada tanto para a tradiçãoreligiosa judia quanto para o Islam – (o país, como se sabe, também já foiTerra Santa também para o cristianismo).

Enfim, em terceiro lugar, existe um conflito que opõe uma luta pelaemancipação de um povo – o palestino – a uma preocupação de segurançade outro povo, o israelense, que se julga gravemente ameaçado pelosfundamentalismos islâmico e mesmo pelos simples nacionalismo de seusvizinhos palestinos.

Após uma série de guerras que se traduziram por vitórias israelenses –asquais expressavam a superioridade técnica e militar de uma sociedade doPrimeiro Mundo (ainda que pequena) sobre os seus vizinhos do TerceiroMundo – em 1967 haviam sido ocupadas os últimos territórios palestinos,até então, sob soberania árabe, ou seja a Jerusalém Oriental, a Cisjordânia ea Faixa de Gaza.

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A última confrontação entre estados, a de 1973 constituiu uma tentativapor parte, dos vizinhos de Israel, de recuperar territórios perdidos emguerras anteriores. A partir de então o conflito torna-se mais político doque militar.

O nacionalismo palestino frente à ocupação israelense, expressou-se, inicialmente, sobretudo pelo movimento “OLP” – Organização pelaLibertação da Palestina. Vários partidos e movimentos participavam eparticipam da Organização. O principal deles foi o “El Fatah” cujolíder, Yasser Arafat, tornou-se o principal dirigente do movimentopalestino.

A situação da Palestina ocupada após a guerra de 1967 levou aodesenvolvimento da violência que se alastrou pelo território palestinocom as acusações mútuas de terrorismo e de repressão da forçaocupante.

Em 1992, teve início um diálogo OLP – Estado de Israel. Em 1993,94 em Oslo uma serie de acordos, celebrados graças à mediaçãonorueguesa, levaram, pela primeira vez, ao reconhecimento mútuo. AOLP reconheceu o Estado de Israel, cuja existência, nos seusprogramas, não havia sido considerada como legítima até então, Israel,por sua vez, reconhecia, pela primeira vez, o nacionalismo palestina(a comunidade palestina havia sido considerada, antes, como apenasparte do mundo árabe: a existência de uma nação palestina, ainda,não era aceita nos EUA e em Israel) abrindo caminho para um futuroEstado palestino – cujas fronteiras e condições de existência, noentanto, estavam longe de estar determinadas. No entendimentopalestino (e do resto do mundo árabe), essas fronteiras deveriamestender-se aos limites de 1967 e incluir Jerusalém Oriental, futuracapital do novo Estado.

Os acordos de Oslo de 1992-93 abriram caminho para a criaçãoda Autoridade Palestina, com base na cidade de Ramalah, sob apresidência de Yasser Arafat, do partido Al Fatah, com uma soberaniasobre os “Territórios Ocupados” (ou seja a Cisjordânia e a Faixa deGaza, conquistados por Israel na guerra de 1967).

Um movimento palestino, de base religiosa, se opôs ao projeto decriar dois Estados – o judeu e o palestino – e defendeu o ideal de fundarapenas um, povoado, de israelitas e árabes mas, no seu entendimento,com uma maioria muçulmana. Tratava-se do Hamas.

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Vale registrar que a OLP, tanto quanto outros movimentos nacionalistasárabes, predominantes até o fim da década dos noventa, como o Bathsírio-iraquiano ou movimento egípcio dos coronéis, representavam ideaislaicos.

Esses nacionalismos expressavam a ambição, sobretudo de classesmédias, de identificar-se com modelos ocidentais de modernidade e visavamintroduzir o progresso do Ocidente nas tradicionais sociedades do OrienteMédio. O próprio conceito de nacionalismo, aliás, é ocidental e só apareceue consolidou-se no mundo árabe a partir do início do século XX. O partidoBaath, por exemplo, foi fundado na Síria, por árabes cristãos parcialmenteocidentalizados.

No mundo árabe, todavia, após as sucessivas derrotas militares frente aIsrael, bem como com o desgaste de governos nacionalistas laicos,frequentemente acusados de incompetência e ou de corrupção, fortaleceu-se, a partir dos anos noventa, um novo nacionalismo: o religioso.

Partidos nacionalistas religiosos, às vezes antigos, como os IrmãosMuçulmanos do Egito (fundado em 1926), ganharam importância. Criou-seo Hezbollah no Líbano, no seio da comunidade xiita, com apoio iraniano(após a invasão israelense de 1982). O movimento dos Irmãos Muçulmanosganhou uma nova dimensão, no seu país de origem, o Egito, e inspirou, naPalestina, o Hamas. Essa tendência refletia também o impacto da grandeRevolução Islâmica Iraniana (fora do mundo árabe) de 1979. O movimentoradical islâmico, mas não apenas árabe, Al Queda (condenado por váriospartidos nacionalistas), constitui um desdobramento dessa tendência deretorno às raízes do Islam.

Verifica-se que as classes médias arábes, até recentementeparcialmente ocidentalizadas, tendem a retornar a uma procura deidentidades próprias que levariam a ideais islâmicos, afastadas dasinfluências da cultura ocidental. O movimento atinge tanto as áreas detradição xiita, amplas áreas do Iraque e do Líbano e alguns países doGolfo, além do Irã de cultura persa, bem como o resto do mundo árabe,em geral, sunita. O caráter religioso de certos movimentos do OrienteMédio alterou o caráter dos conflitos registrados na região, tornandomais difíceis os mecanismos de negociação.

Convém, aliás, lembrar que o papel crescente da religião na política, nãoconstitui fenômeno restrito ao mundo árabe islâmico. Em Israel cresce aimportância dos partidos religiosos (de direita ou de extrema direita).

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Esvaziam-se, no Estado judeu, os partidos tradicionais laicos, como otrabalhista, que desempenharam um papel decisivo na criação do Estadohebreu como o Partido Trabalhista.

Em 2005 havia sido eleito para a presidência da Autoridade Palestina, oPresidente Mahmoud Abbas (após o falecimento de Arafat, o primeiroPresidente) do movimento nacionalista laico o Al Fatah, consideradomoderado. Um ano depois, o Hamas islâmico, definido em Israel, e nos EUAcomo movimento essencialmente terrorista, alcançou a maioria absoluta dascadeiras da Assembleia Legislativa. Cabia-lhe formar o Governo, de acordocom a legislação vigente.

Diante da impossibilidade de formar uma coalizão, constitui-se um governoformado apenas pelo Hamas. Criara-se uma situação delicada na medidaem que, oficialmente, o Hamas não reconhecia Israel e o Governo israelense,por sua vez, mantinha a sua definição do movimento Hamas como organizaçãoterrorista cujo objetivo seria destruir Israel.

Israel exigiu de seus interlocutores palestinos, as conhecidas trêscondições: reconhecimento do Estado de Israel, aceitação oficial dos acordosjá concluídos (Oslo por exemplo), renúncia à violência enfim. O QuartetoEUA, UE, Rússia e Nações Unidas, criado para prestar assistência aoprocesso de paz, também aceitou endossar as chamadas três condições,para iniciar uma negociação, atendo a pressão sobretudo norte-americana(ainda que todos os membros do Quarteto, como o russo, não expressassemseu apoio às três condições com a mesma intensidade).

O criticado Governo do Hamas, todavia, havia sido eleito, num pleito quenão foi posto em dúvida por nenhum observador. Gerou-se uma situação pelaqual a comunidade internacional (a maior parte) não quis negociar com umGoverno ainda que este tivesse sido democraticamente eleito (segundo todosos observadores), com o argumento de que o partido vitorioso não haviaoficialmente renunciado à violência. A exigência das chamadas três condições,cobradas do Hamas, se traduzia numa recusa de negociar com o mais poderosoe, aparentemente, mais representativo (pelo menos então), movimento palestino.Toda a importante assistência internacional (sobretudo europeia) e, por outrolado, o repasse dos impostos por Israel, foram suspensos.

No início de 2008, o Hamas assumiu o controle da Faixa, eliminando,na área, a presença do El Fatah. O nacionalismo palestino consagrava a suadivisão com duas administrações – a primeira, a do Hamas, com o controlede Gaza pelo Hamas e, a segunda na Cisjordânia com o Fatah. A primeira

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repudiada por Israel e pela maior parte da comunidade internacional e asegunda, oficialmente definida como moderada, aceita como parceira paranegociações.

Apesar das rodadas de negociações, Israel e moderados palestinos daAdministração de Ramallah não se verificaram verdadeiros progressos. Nãose registram, na sociedade israelense, sinais de que seria viável uma aceitaçãode concessões mútuas, necessárias a qualquer verdadeiro entendimento.Israel continua dominado pela prioridade conferida ao problema de sua própriasegurança, principal ou quase única tema de sua vida política. De maneirasimplificada, poderia afirmar-se que a história do povo judeu, diante dasinúmeras perseguições sofridas que culminaram no Holocausto nazista, levouao fortalecimento, na sociedade israelense, da mentalidade de que não haverá,em caso de perigo, qualquer auxílio exterior e de que o país constitui umafortaleza sitiada, em perigo, rodeada de inimigos, cujo fanatismo é irremediávele com os quais qualquer forma de verdadeiro diálogo é impossível.Registraram-se, todavia.

A sua evidente superioridade militar, baseada inclusive em armas nucleares,permitirá a Israel evitar a necessidade de quaisquer concessões. Ofortalecimento da extrema direita e dos partidos religiosos, expressa já pelaseleições de 2006 afastam Israel de uma rota de concessões inevitáveis paraqualquer negociação. Nas eleições de 2009, o eleitorado israelense resvalouainda mais para a direita, com uma maioria absoluta para os partidosconservadores e ultraconservadores.

O futuro Primeiro Ministro, aparentemente, no momento em que se redigeesta tentativa de análise, seria Benjamin Netanyahu, líder do Partidoconservador Likud, ainda que o seu principal adversário, a Chanceler TzipiLivni alcançado, para o seu partido centrista Kadima, uma maior votação,sem, conseguir, com seus aliados, uma maioria na Assembleia, a Knesset.

Benjamin Netanyahu, durante a campanha eleitoral, expressou oposiçãoao projeto de criação do estado palestino. A sua liderança no próximo governoisraelense significaria, ao que tudo indica, um sensível recuo no processo depaz (que se encontrava já passavelmente paralisado....).

Teve início, ainda com o presente governo, antes das eleições, no começodo presente ano de 2009, por parte das forças israelenses, em retaliação aodisparo de mísseis, uma campanha de violentos bombardeios, seguida deuma invasão parcial de Gaza. Certos observadores atribuíram os ataques aofato de que as eleições israelenses estavam convocadas para fevereiro e que

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o Governo israelense, controlado por partidos centristas, desejava demonstraros seus compromissos com a segurança do país.

Complica-se a situação diante do desenvolvimento de um novo projetona Palestina. Trata-se da defesa do Estado binacional. Seria abandonadaa idéia de criar um Estado palestino em favor da luta pelos direitos políticosdas populações árabes sujeitas ao controle ou a ocupação israelense. Ospalestinos de Israel propriamente dito – cerca de 20% população totaldo país – com os palestinos da Cisjordânia e de Gaza, alcançariam, amédio prazo, devido a sua alta taxa de aumento de população, uma maiorianos territórios controlados por Israel. Seria criada a difícil situação parao público e para as autoridades israelenses de escolher entre oestabelecimento de um estado que se afastaria, com a consequente perdade legitimidade, de um modelo democrático ou então, de um país quedeixaria de ser judeu, o que significaria o fim da sociedade israelense talcomo ela existiu até hoje.

A opção do Estado binacional é defendida apenas (por enquanto ) poruma minoria dos palestinos, mas a hipótese passa a ser lembrada, comcrescente freqüência, como elemento de pressão contra Israel.

Diante do clima de impasse, a única possibilidade de abertura ou iníciode abertura política, poderá decorrer de uma eventual pressão internacional,mais precisamente dos EUA. Todavia, a política norte-americana, com rarasexceções, até hoje, se recusou a exercer essa verdadeira pressão. Éperceptível, na opinião pública, e nos meios governamentais, dos EUA, umaidentificação com Israel onde se vê uma sociedade engajada na luta contraos fundamentalismos islâmicos adversários também dos EUA. Israel, seria oaliado fiel, necessário numa região estrategicamente importante,particularmente rica em petróleo, onde são claros os interesses norte-americanos.

Durante o Governo Bush, após os atentados de setembro 2001, aprioridade da política exterior, no Oriente Médio (e não só no Oriente Médio)passou a ser a luta na “guerra contra o terror” – “the war on terror” – o quelevaria a um fortalecimento, ainda maior, das relações com os estamentosmilitares israelenses.

Notou-se, no entanto, no último ano do Governo Bush, uma inflexão desua política frente à crise Israel – Palestina. Por iniciativa norte-americana foiconvocada a Conferência de Anápolis, onde foi aceito o princípio de umanegociação, sem precondições (core issues) e foram marcadas, inclusive,

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datas para o processo negociador. O Governo Bush terminou, no entanto,sem um sensível progresso no processo de paz.

Os conflitos e crises do Oriente Médio continuaram a ser vistos pelosEUA durante administração Bush, separadamente, como crises especificasde cada país, como foi dito no início desta tentativa de análise. O fenômenomoderno do nacionalismo árabe e as repercussões, em toda a região, dashumilhações decorrentes do conflito israelo-palestino, o seu caráter religiosoe sua dimensão simbólica, não foram levados em conta. A luta contra o “Mal”da administração Bush ou seja a guerra contra o terror, expessa em termosideológicos, se mantinha como objetivo principal ou único nas demais áreasde crise do Oriente Médio – Líbano, Iraque ainda em conflito interno, relaçõescom a Síria, preocupações frente ao Irã persa, definido como Estado fora dalei ou “rogue state”. A política norte-americana passou a adquirir um caráterfrequentemente maniqueísta, definido às vezes como “islamófobo”.

No contexto do clima de indignação e de exaltação patriótica que sedifundiu, nos EUA, com os atentados do setembro 2001, foi decidida a invasãodo Iraque. O país, dirigido, com mão de ferro, por Sadam Hussein, nãomantinha qualquer relação com as redes de terrorismo se julgava ameaçar osEUA nem desenvolvia um programa de armas de destruição de massa. O seuregime era laico.

Tentou-se, ali, no Iraque após a ocupação do país, em 2003, promovera instalação de um regime que expressaria os ideais de uma democracia demodelo norte-americano. Uma experiência mais ou menos semelhante foitentada no Afeganistão.

Desenvolvia-se efetivamente uma estratégia de criar e encorajar, noOriente Médio, democracias de tipo ocidental as quais constituiriam um fatorde paz e estabilidade na região.

No Líbano continua a manter-se uma sociedade única na sua composiçãoe sua organização. Num território menor do que o da Bélgica, existem várias,comunidades, pertencentes ao mundo árabe, mas de culturas diferentes,seguindo, cada uma, a sua legislação específica. O poder, oficialmentecompartilhado entre os diversos grupos, havia sido exercido, na prática, atéos anos setenta, pela fortemente ocidentalizada comunidade cristã maronitaque formava a maior parte da classe média. O poder político e econômicodos maronitas foi contestado, cada vez mais, com êxito crescente, mais pelascomunidades islâmicas, sobretudo os xiitas, representados pelo partidoHezbollah, aliado do Irã.

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Na fronteira com Israel, parcialmente controlada do lado libanês peloHezbollah, desenvolveram-se incidentes, quase rotineiramente, até que umconflito em 2006, levou a ou justificou uma invasão levado a cabo peloEstado judeu.

O conflito que opôs Israel ao Hezbollah prolongou-se por 33 dias esurpreendeu todos os observadores pela resistência demonstrada pela milíciaxiita frente ao que sempre se considerara a maior força militar da região ouseja, o Exército israelense. Indubitavelmente, a milícia xiita do Hezbollahsem conseguir uma vitória militar, alcançou, pela sua resistência, um claroêxito político que repercutiu em todo o mundo árabe.

A suspensão das hostilidades levou a uma precária paz. Na complexasociedade libanesa, o Hezbollah havia consolidado uma presença poderosa.

A Síria, dirigida pelo Presidente Assad, líder de uma das duas vertentesdo partido Bath, foi definida também, pelos EUA, como “rogue state” poracolher, no entendimento movimentos considerados terroristas pelo Governonorte-americano permitir, na sua fronteira com o Iraque, a passagem de forçasligadas aos movimentos de resistência iraquianos bem como por manterrelações estreitas com o Irã.

A Síria reclama de Israel, a devolução das colinas do Golã conquistadasdurante a guerra de 1967. Teve início, em 2008, um processo de negociação,por meio de uma intermediação o turca, entre a Síria e Israel para discutir aeventual devolução do território reclamado....

No Iraque, após a invasão norte-americana e britânica, com alguns outrosaliados, de 2003 (invasão não autorizada pelo CSNU), a vitória militar e aderrubada do regime Saddam Hussein foram rápidas e fáceis. A consolidaçãodessa vitória e a pacificação do país constituíram, no entanto, objetivos maisdifíceis.

Apesar da eleição legislativa, celebrada em fins de 2005 as complexasnegociações que levaram à instalação do Governo xiita do primeiro-ministro(em princípio moderado) Al Maliki, com o Presidente curdo Talabani, verificou-se que o fortalecimento do recém instalado regime parecia complexo. Tornou-se necesário combater simultaneamente várias oposições: dissidênciasreligiosas, partido Bath, puro banditismo. Surgiu o Al Queda que nunca existiraanteriormente no país. Parecia ameaçada a unidade do país, dividido entre ascomunidades curda no norte, sunita no centro e xiita no sul. O fortalecimentoda presença militar norte-americana, verificada no final do Governo Bushlevou, apesar de perdas militares elevadas, a uma estabilização crescente

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vários aliados dos EUA como a Espanha ou mesmo a Grã-Bretanha passarama diminuir ou retirar os seus respectivos contingentes militares.

As tentativas de instalar um governo no Iraque ou melhor, de criar umnovo Estado, em princípio democrático, inspirado em ideais doconservadorismo norte-americano, depararam-se com dificuldadesinesperadas. Descobria-se ou redescobria-se o que os estudiosos da área jáhaviam assinalado. O Iraque é um Estado frágil, artificial dirão muitos,constituído apenas após a Primeira Guerra Mundial, quando se uniram sobcontrole britânico, populações e culturas heterogêneas que nunca haviamformado um Estado soberano, anteriormente. A unidade havia sido mantida,após a independência com dificuldades, por regimes autoritários ou tirânicos,enriquecidos pelo petróleo o último dos quais havia sido o de Sadam Husseinda comunidade sunita.

Criara-se, um vácuo de poder gerado pela eliminação do regime Baathpelos EUA e pela incapacidade de instalar ou consolidar um Estado sucessor.

Paradoxalmente, a guerra do Iraque parecia haver sido vencida, emtermos políticos, pelo Estado vizinho e adversário, o Irã xiita. O Irã tornou-se a verdadeira potência regional cuja sombra se projeta em todo o OrienteMédio (a apesar de não pertencer geograficamente à região) novo peso doEstado xiita constitui fator político ainda não assimilado. Os EUA, os principaispaíses ocidentais, continuam a ver com preocupação esse novo poder regional,alheio à influência política do Oeste e cujas ambições nucleares preocupam,sobretudo Israel, e, cuja retórica parece assustadora. Por outro lado, cresceo número de observadores que acredita ser necessário estabelecer um diálogocom essa nova potência regional. Seria, com cautela, o caso da novaadministração dos EUA.

A paz no Oriente Médio parece distante, mais distante do que em outrasoportunidades. As experiências de uso da força no Líbano em 2006 contrao Hezbollah, os ataques contra o Hamas na Faixa de Gaza no início de2009, as incertezas ainda existentes no Iraque, onde a própria existênciado Estado é posta em dúvida, apesar de uma apregoada crescentepacificação, o quadro sempre confuso do Líbano onde as váriascomunidades ainda demonstram uma incapacidade de alcançar umaverdadeira reconciliação, os problemas decorrentes do crescimento políticodo Irã com um possível projeto de armamento nuclear contra o qual, numclima de nervosismo, o establishment israelense e amplos setoresconservadores da opinião norte-americana, pedem um ataque armado

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preventivo, bem como a Palestina, constituem fatores que reforçam opessimismo quanto à eventual paz no Oriente Médio.

Os últimos acontecimentos políticos de fevereiro 2009 reforçam essepessimismo. As eleições israelenses de fevereiro 2009, constituiram,indubitavelmente, um êxito para os setores conservadores e ultra-conservadores do país – laicos e religiosos – os quais, em princípio, seriamcontrários ao conceito da criação de um Estado palestino.

Nota-se, sobretudo, a falta de verdadeiros líderes na região para levar acabo um verdadeiro processo de paz o qual, necessariamente, implicarianuma capacidade de admitir concessões e de conter setores radicais.

A eleição norte-americana, todavia, desperta no Oriente Médioesperanças (não só no Oriente Médio evidentemente....). Não está clara ainda,qual será a política da nova administração. Parecem delinear-se, no entanto,no Governo Obama, sinais de que serão menos intensas as avaliações decunho ideológico e as prioridades concedidas à guerra “contra o terror”expressas pela administração anterior.

Tentativa de comparação dos conflitos e da instabilidade atual do OrienteMédio com os da África sobretudo os da África subsaárica.

Examinar a África implica na necessidade de uma definição.Existem, efetivamente, para efeitos de uma tentativa de análise política,

duas Áfricas. A África do Norte, o Ocidente árabe conhecido como o Magreb,em oposição ao Oriente Médio bem como a outra África a subsaárica. Atentativa de comparação que se tentará aqui se concentrará com a partesubsaárica do continente.

A África do Norte, cultural e politicamente, pertence ao universo árabeainda que uma parcela de sua população seja de língua berbere falada antesda conquista islâmica. O Oriente Médio, todavia, está relativamente longe eseus conflitos, ainda que repercutam intensamente, no Magreb, não constituemuma razão básica de instabilidade da região .

Os Estados já delineados antes da conquista europeia, confirmaram-secom o processo de independência e sua existência não foi posta em dúvida.As fronteiras coloniais foram aceitas com algumas exceções como o problemado Saara espanhol que opõe a Argélia ao Marrocos. A colonização, aindaque breve, deixou profundas marcas na região ao formar ou desenvolveruma classe média de cultura francesa.

O principal problema que a África do Norte enfrenta é o da confrontaçãodos regimes existentes com movimentos fundamentalistas islâmicos,

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particularmente na Argélia, onde o conflito adquiriu contornos de muitoacentuada violência. Essa confrontação reflete, a rigor, o choque de umaparcela considerável das populações contra classes médias, parcialmenteocidentalizadas, as quais controlam os respectivos estados, inclusive as suasforças armadas. Trata-se de fenômeno difundido no só no mundo árabe masno mundo islâmico de modo geral (como no Irã). Na África do Norte, atéagora, os Estados mantiveram o seu controle fazendo todavia concessõesaos ideais islâmicos e à cultura árabe.

A África subsaárica, tema básico da parte africana desta tentativa deanálise, constitui um universo profundamente diferente.

Essa África encontra-se num estágio de desenvolvimento muito maisincipiente do que o Oriente Médio (ou a Ásia). Havia sido usada, duranteséculos, pela Europa, sem uma tentativa de colonização, com o único objetivodo desenvolvimento do trafego de escravos para continente americano.

No final do século XIX, após a abolição do tráfico, o continente africanohavia sido partilhado entre países europeus. As colônias europeias, entãocriadas, não se definiam por critérios étnicos, culturais ou religiosos.Correspondiam simplesmente a um equilíbrio de forças registrado na Europano momento da partilha ou respeitavam (parcialmente), uma antiguidade naocupação de feitorias, no litoral, como teria sido o caso de Portugal. Aocupação das colônias africanas foi justificada, na época, como a expressãoda “missão civilizadora” da Europa ou seja o “white man´s burden”. NaÁfrica subsaárica, as fronteiras, após as respectivas independências registradasa partir do fim dos anos cinqüenta, foram respeitadas, apesar de seu caráterartificial, no que diz respeito às etnias ou as religiões (a alternativa teria sido ocaos). Registraram-se raras a exceções a esse entendimento, como o conflitoque opôs a Etiópia à Eritreia. Desenvolveram-se, no entanto, no continente,no seio dos novos Estados (mas não em todos nem na maioria), após aeuforia dos anos que se seguiu à independência, guerras e confrontações deextraordinária violência.

Conflitos sacudiram Angola em 1992, Ruanda e Burundi em 1993/94com contornos de genocídio, mais recentemente Serra Leoa e Costa doMarfim. Hoje, novamente, o Congo enfrenta a violência. No Sudão, onde oconflito que opõe o Governo central à região ocidental de Darfur, não estáainda solucionado apesar das promessas e compromissos em contrário e apresença de contingentes reduzidos de forças internacionais. No mesmo país,o norte e o sul, após muitos anos de violenta confrontação, mantém uma paz

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precária. A Somália se encontra ainda em situação caótica e a Nigéria enfretacertas desordens na região do Delta. As desordens e guerras foram seguidas,em várias áreas, pelo drama da fome que assolou vastas regiões.

Esses conflitos possuiam duas características. Representavam, emprimeiro lugar, guerras tribais nos estados artificiais criados pela colonizaçãoeuropeia. Podem ser considerados como tentativas de estabelecer novas elitesdirigentes ou novas formas de distribuição de poder em países com identidadesincertas. Correspondem a extrema dificuldade da criação de Estadosmodernos em sociedades que mantiveram o seu caráter tribal aesar daexperiência.

Em segundo lugar, essas guerras apesar de um custo humano de, àsvezes, milhões de vítimas, repercutiram apenas em áreas limitadas e nos paísesvizinhos, sem alcançar uma dimensão de confrontações globais ou sequercontinentais, com desdobramentos em todo o continente ou fora dele. Asociedade internacional, apesar de sinais (modestos) de solidariedade ou depreocupação, diante da violência verificada, não se sentiu atingida. As crisesafricanas, em suma, apesar de sua intensidade dramática, mantiveram umcaráter, acentuadamente, local.

A última observação seria a de que, após anos de confrontação, 2000,a África subsaárica, depois de 2000, passou a beneficiar-se de taxas dedesenvolvimento, relativamente elevadas. O continente aproveitou os altospreços de commodities. Beneficiou-se de uma massa crítica crescente deinvestimentos chineses e até certo ponto indianos. A influência chinesa, emparticular ganhou importância. A África subsaárica afastou-se econômica epoliticamente das antigas metrópoles .

Esse desenvolvimento, ainda frágil, evidentemente, não foi uniforme emtodos os estados do continente. Concentrou-se em alguns países (entre outros)como Angola, Moçambique, Botsuana, até certo ponto Quênia e Tanzânia emesmo Serra Leoa. Esses países partiram de patamares modestos e estãoameaçados, hoje, pela queda dos preços das commodities. O seu progresso,todavia, poderia indicar que a terrível fase da violência interna, foi ultrapassada.

Ao mencionar a parte do subsaárica do continente é necessário registraruma grande exceção: a África do Sul. Examinar o país exigiria uma análiseespecial. Cabe aqui lembrar que se trata de nação com problemas específicos,referentes à integração de suas várias comunidades, diferentes dos que seregistram no resto do continente. Será necessário acrescentar ainda que aÁfrica do Sul, definida como estado “emergente”, alcançou um elevado nível

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AFFONSO CELSO DE OURO PRETO

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tecnológico e desenvolveu um importante parque industrial únicos nocontinente.

Comparar a África subsaárica com o Oriente Médio, – além daexceção sul africana, constitui um exercício interessante.

As duas regiões enfrentam, como foi visto, crises e confrontaçõesgraves.

Os seus conflitos se distinguem por dois motivos. Em primeiro lugar,os choques verificados na África tiveram lugar em sociedades essencialou puramente tribaisque se encontravam, como foi dito, num estágioincipiente de desenvolvimento. Os choques conflitos expressaram oesforço, após as euforias das respectivas independências, de criação ouconsolidação, de Estados modernos. Igualmente as extraordináriasdificuldades, encontradas nessa rota. Demonstram ainda o fato de que ascolonizações, na África, haviam sido breves, sem marcar, profundamenteas sociedades, exceto no que diz respeito às suas pouco numerosas elites.

Em segundo lugar, como se disse, na África subsáarica, apesar daviolência que ali se verificou, o seu alcance, e pouco repercutiu além dasfronteiras nacionais.

Já o Oriente Médio apresenta um quadro profundamente diferente.Os Estados possuíam bases sólidas, ainda que constituíssem tambémentidades artificiais, formadas que foram com base nos entendimentosque se seguiram à primeira guerra, e com fronteiras às vezes contestadascomo as do Líbano com a Síria ou as de Israel com o futuro Estadoisraelense. As sociedades locais, todavia, com algumas exceções – porexemplo, o Iraque – não são tribais mas representam partes de umconjunto maior, ainda que dividido, hoje, em nações, que seria o mundoárabe, unido pela mesma cultura e pela consciência de uma afinidadehistórica.

As guerras internas, ainda que violentas como as do Líbano, osetembro negro jordaniano, ou os conflitos frente a Israel, não chegaram,nem de longe, ao grau de violência que se verificou na África subsaáricae não podem ser consideradas como conflitos tribais.

Por outro lado, apesar de constituir dramas menos intensos, osconflitos do Oriente Médio, muito mais do que os africanos, repercutiram,globalmente, fora da região, em todo o mundo e não só nos meiosislâmicos. O Oriente Médio tornou-se uma das principais áreas deconfrontação onde se concentram as atenções internacionais e onde é,

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INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS

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claramente visível, uma presença dos EUA e uma contestação, hojesobretudo política, a essa presença.

A violência foi menor no Oriente Médio do que na África subsaárica,mas ela preocupa mais o mundo....

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A África entre o atraso e o desenvolvimento noperíodo Pós-Crise Global

José Flávio Sombra Saraiva*

O objetivo central do presente capítulo é apresentar algumas das ideiaspor mim defendidas oralmente nos debates que da Terceira ConferênciaNacional de Política Externa e Política Internacional, organizada pelo Institutode Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI) e Fundação Alexandre deGusmão (FUNAG), do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, realizadoem dezembro de 2008, no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro.

Redigido posteriormente ao contexto da conferência, ainda que recupereparte da minha exposição, o presente texto incorpora naturalmente fatos eprocessos que se espraiaram a posteriori, em especial os aspectos atinentesao impacto da crise econômica global iniciada na segunda metade do ano de2008, além da chegado à presidência dos Estados Unidos da América doPresidente Barack Obama, fenômenos que se debruçaram sobre o mundoem 2009, com consequências para os Estados, as economias e as sociedadesafricanas.

Nesse sentido, o documento está divido em quatro problemas centrais.O primeiro aborda a adaptação do continente africano ao período posteriorà década de bonança econômica de fins da década de 1990 em grande partedo continente, até o ano de 2008. O segundo se refere aos temas

* PhD, Universidade de Birmingham, Inglaterra; professor titular em Relações Internacionaisda UnB e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA

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estruturalmente recorrentes na África, com ou sem crise global. Avalia algunsdesafios, de caráter mais novo, para o melhor engajamento da África nasmudanças sistêmicas que vislumbra o sistema internacional da passagem daprimeira para a segunda década do século 21. O terceiro aborda a disputa e/ou a cooperação sino-americana na África depois da chegada do presidenteObama ao poder. Finalmente, na conclusão, uma palavra de confiança éconferida aos esforços brasileiros ao buscar manter base logística de operaçãono continente africano.

Depois da bonança, o ônus?

As condições internacionais da passagem do século 20 para o séculoatual foram favoráveis à inserção internacional da África. Os anos que separam1999 ao ano atual configuraram quase uma década de superação, comparadacom as quatro décadas anteriores de baixa continuidade econômica, fraturasna formação dos Estados nacionais, péssimos índices sociais. O crescimentoeconômico em ciclo recente trouxe alguma consistência estrutural àmodernização daquele continente de 30 milhões de quilômetros quadrados,gerador de fato inédito à história recente dos jovens Estados africanos,nascidos do primeiro ciclo de independências no fim dos anos 1950 e inícioda década de 1960.

Os registros quantitativos e qualitativos produzidos pelas agênciasinternacionais e pelos próprios gestores dos 54 Estados africanos produziramevidências empíricas do argumento inicial. Economistas, governos e empresaschinesas e norte-americanas, e mesmo balanços brasileiros de empresas eórgãos de governo, confirmaram a quadra histórica alvissareira que assistimosrecentemente.

Os atuais 680 milhões de africanos que habitam as paragens continentais,depois de décadas de agruras, assistiram, mesmo com crises estruturais edificuldades históricas no campo da assimetria social e dependência econômicadas metrópoles de antes, um sopro de esperança de normalização de suasvidas. Apresentada como a última fronteira do capitalismo global, a Áfricaatraiu a atenção da sociedade internacional. Abria-se a oportunidade para,por meio do crescimento econômico, buscar-se a normalização política e apacificação dos conflitos domésticos.

Observei, na edição anterior da Conferência Nacional de Política Exteriore Política Internacional (II CNPEPI), dimensões que animaram o ambiente

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A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL

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positivo na África e em torno dela. Interna e externamente induzidas, associedades africanas caminharam para um novo estágio civilizatório. Asexpectativas que elevaram o lugar da África no sistema internacional sãorelevantes para um continente povoado por Estados que têm apenas meioséculo de autonomia formal, depois do ciclo colonial:

“O sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os primeiros donovo século, a África vem superando o drama histórico das guerras intestinase internacionais. O número de países africanos com conflitos armadosinternos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da dramaticidadedo caso do Darfur. Os conflitos foram a mais importante causa imediata dapobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar queos recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitosentre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução dapobreza e da miséria.”1

As novas condições da temperatura e pressão das relações internacionaisdo segundo semestre de 2008 e primeira metade de 2009, especialmente asde ordem econômica, fizeram tremer lideranças africanas. A preocupaçãoinicial era a de que a crise econômica global se espraiaria nas periferias docapitalismo, portanto na África, de forma sequencial, em efeito dominó, aseguir o compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo norte-americano e seus pares europeus.

A crise originada na toxidade dos capitais, fato global mais relevante dasegunda metade de 2008, ao migrar para as atividades produtivas já no finaldo mesmo ano, aprofundou-se e alastrou-se geograficamente. Quase nãohouve surpresa, para o observador comum dos fatos globais, seuaprofundamento nos primeiros meses de 2009.

A crise atingiu a todos? A lógica da divulgação diária de cada novo índiceeconômico apresentado pelas autoridades governamentais em diferentespartes do planeta deprimiu a esperança. O fatalismo é tão intenso que alcançouem proporção a outra lógica perversa que presidiu quadra históricarelativamente recente: a da euforia triunfalista dos que decretaram o fim daHistória no início dos anos 1990 e o início do paraíso liberal.

1 SARAIVA, José Flávio Sombra Saraiva, “A África na ordem internacional do século XXI:mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?”, Revista Brasileira de RelaçõesInternacionais, 51(1), 2008, pp. 87-104.

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Exemplos não andam escassos. Recessão no Japão de hoje nos níveisdos anos 1970. Inoperância e lentidão do governo Obama, nos seusprimeiros meses, no encaminhar o espinhoso detalhamento dos planospráticos para mover os Estados Unidos para o desejado ciclo industrial.Uma Europa cambaleante e com emprego declinante, a empurrar o projetocomunitário para a xenofobia de direita. A China, vulnerável diante dadependência das exportações como vetor central do seu PIB, parecia queiria crescer lentamente. Seus satélites asiáticos ajudariam a pagar a conta.A Rússia morreu na praia com a depreciação de sua commodity energéticae crise cambial.

A América Latina não foi exceção. Diante das enxurradas de balançosnegativos na área do emprego em grande parte dos países da região, e dabarragem dos financiamentos do ciclo virtuoso do capitalismo perdulário edas fontes de investimento internacionais, os cidadãos comuns já entenderamque a fase áurea já passou. O Brasil, e alguns outros países da região, noentanto, já mostram capacidade de retomada do crescimento, ainda que deforma discreta.

Na África houve pânico. Mas logo se percebeu que o contexto poderianão ser tão ruim. A África não foi atingida, plenamente, pelo pessimismocongênito daquele primeiro momento. Lá a tendência parece ter sido umpouco diferente daquelas vislumbradas nas áreas tradicionais do capitalismoe na parte mais proeminente dos países emergentes do Sul.

A África ainda não barrou seu ciclo de crescimento na década em curso.Os índices de normalização macroeconômicos são positivos, a gestão públicamelhorou e as economias africanas não se abateram como nos grandes docentro do capitalismo. O continente assiste e continua a assistir a ciclo decrescimento. É o mais sustentável desde as independências do início dosanos 1960. Parece estar em melhor posição ante o ciclo de crescimentoanual em torno de 5% que vem mantendo desde 2002, embora tenha caídotal percentual em uma grande parte de países nos últimos meses de 2008 einício de 2009, especialmente aqueles mais ligados às empresas e comérciocom países europeus.

A África naturalmente não está imune. A retração chinesa teve algumimpacto no continente. No entanto, o avanço dos capitais do Golfo Pérsico,compensou o crédito e o financiamento infra-estrutural dos novos projetosdo NEPAD, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentável e deincorporação social dos mais vulneráveis.

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Apesar do efeito do contágio da febre pessimista, a África é a parte doplaneta que menos fala em crise no momento. Em parte porque a crise já épaisagem duradoura da geografia africana. O continente foi um laboratóriode modelos os mais inadequados ao desenvolvimento, à cidadania e àautonomia decisória internacional do continente por muito tempo. Agoradesejam eles uma África para os africanos, uma espécie de Doutrina Monroedo outro lado do Atlântico Sul.

Para os pessimistas, só é possível falar da África nos termos dastragédias humanitárias. Ou de governos corruptos. Sim, esses temasmerecem toda a atenção e cuidado da opinião pública internacional. Mashá outras Áfricas. Há aquelas que, reconhecidas pelos relatórios norte-americanos da Freedom House, reduziram os conflitos interestatais de 14para 5 na presente década.

Para além do drama de Darfur, do Congo, dos piratas da Somália ou doregime antigo do Zimbábue, ou mesmo dos problemas de corrupção na Áfricado Sul, mais da metade dos governos africanos do presente são democráticosou estão em processos de normalização democrática. Obama sabe disso e játem plano para a África. O Brasil de Lula começou antes sua inflexão corretana direção africana.

O outro lado da crise é, portanto, uma África que fez, de fato, da criseuma oportunidade. Há um sopro de esperança no ar. Alto ao fatalismo queembrutece a capacidade de reagir às crises.

Há lições advindas da África. O crescimento econômico angolano, comoaquele que se notou permanecer na faixa de 7%, é fato auspicioso. Talcrescimento é seguindo, na África oriental, pela Etiópia, e no golfo atlânticoda Guiné por Gana. O mesmo pode-se dizer, no norte da África, para o casoargelino, ancorado no petróleo e no projeto de liderança econômica e políticada chamada África do Norte.

Os velhos desafios na nova ordem africana

Apesar da crise não ter se abatido sobre o continente como os arautosda desesperança pregaram, persiste na África o problema dos velhos desafiosque não se alteram com a mesma velocidade da sua integração na sociedadeglobal. Quatro desafios, entre outros, podem ser enumerados e desdobradosem temas para a reflexão com mais vagar ao longo dos próximos anos naÁfrica.

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O primeiro deles é a baixa alternância de poder no continente. Aperpetuação de governantes não é tema novo, mas ganha nova proporção napassagem da primeira para a segunda década do século 21, mesmo parapaíses relativamente estáveis como Angola, em processo de desenvolvimentonotável. Há também os casos de países relativamente tranquilos há anos,estáveis e economicamente viáveis, como o Gabão, mas governado por umBongo envelhecido e sem criatividade. Há governantes no poder para alémde 20 a 30 anos, sem abertura real a reformas democratizantes. Há eleiçõesde fachada em vários países.

Tais regimes dúbios e governos em lenta democratização, mesmo queapresentados como em processo de institucionalização, substituem muitolentamente os velhos donos do poder por outras elites, mais renovadas emodernas. O caso do Zimbábue é simbólico, um país que bem regrou aconvivência da presença do crescimento econômico com a permanência doex-colonizadores e organizou a infra-estrutura social e econômica. Vê-lo damaneira que Robert Mugabe o vê é certamente um retrocesso. Há novaselites no país, ligadas ao mundo contemporâneo, mas não encontram meiospara permanecer no próprio país, que fenece por razões que se originam nanatureza e na perpetuação do poder.

O segundo desafio é a penetração na África, na formação de parte dasnovas elites e de setores médios das populações urbanas das grandesmetrópoles do continente, do tema narcotráfico internacional. Esse é umaspecto relativamente novo, com raízes nas velhas resource wars na África,ou das guerras do blood diamond, como aquelas na África ocidental e emAngola, agora em suas novas versões.

Expandiram-se essas preocupações ante a ponte que vem se realizando,entre a América Latina e a Europa, em torno do tráfico de drogas e pessoas.Há notícias de corredores de tráfico internacional de ilícitos que vinculamprodutores de pasta de coca na América do Sul, ao transporte e preparaçãode novos produtos na África ocidental, e seu processamento entre a África ea Europa.

Existem ainda poucos dados disponíveis acerca dessa matéria, mas jásuficientes para supor que tais interesses espúrios, da realidade da economiapolítica internacional, estão presentes na economia e na política africanas domomento. Emergem Estados parasitas, vinculados a essa ameaça internacional.Os golpes e contra-golpes que foram assistidos recentemente na Guiné-Bissau,desde março de 2009, expressam exatamente o aprisionamento do Estado

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por interesses econômicos poderosos, multinacionais e desestabilizadoresde jovem Estado na África ocidental, país de língua portuguesa, membro daCPLP e que recebeu a primeira visita de chefe de Estado do Brasil, em fimdos anos 1970, do então presidente Figueiredo. O presidente Lula tambémjá esteve lá, em um dos seus périplos africanos.

O terceiro desafio está no campo exclusivo das políticas públicas paramanter e ampliar o ganho econômico dos últimos anos, advindos da cola domaior crescimento do capitalismo em sua história. Já se sabe que essa ondaquebrou e que o crescimento econômico global está voltando, mas aindamodesto, e tenderá a seguir modesto por muitos anos. Isso tem uma grandeimplicação nas políticas públicas africanas voltadas para o desenvolvimentosustentável e a inclusão social.

A ordem que se eleva diante do fim da década de ouro, com crescimentoeconômico mais modesto, exigirá escolhas importantes dos líderes e dassociedades africanas. Se em 2007, antes do impacto da crise econômicaglobal, 37 países africanos, quase dois terços dos países continentais, cresciamacima de 4% ao ano, e 34 foram classificados pela Freedon House como“livres” ou “parcialmente livres”, como seguiu esse compasso na quadrahistórica de menos capital disponível para investimento na África?

Subsistem em 2009, portanto, além dos velhos desafios que subsistemna história recente da inserção internacional dos países africanos no sistemamundial, as dificuldades vinculadas às próprias transformações em curso naordem econômica e política mundial. A África necessitará de uma elite africanamais comprometida com a autonomia decisória e a boa integração docontinente aos processos econômicos globais.

Constatam os economistas africanos ou africanistas que o crescimentoeconômico que assistiu a África na primeira década de ouro do século 21não tende a seguir no molde anterior. Apesar da África, segundo a OCDE,ter passado a receber mais recursos advindos de investimentos que de ajudainternacional, essa equação poderá se inverter se não houver responsabilidadedos seus governantes nesse importante capítulo de normalização econômicajá iniciada na África a muitos custos internos.

Controle inflacionário e responsabilidade fiscal foram movimentosimportantes de normalização macroeconômica encabeçados por governosresponsáveis no continente africano em fins dos anos 1990 e início dos atuais.Uma regressão nessas áreas e a retomada de ciclo de endividamento externoseriam nefastas para os avanços parciais conquistados nos últimos anos.

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O quarto e último desafio que enfrentarão os africanos nos próximosanos é a tentação para, diante de novas dificuldades que chegam do frontinternacional, recorrer ao velho discurso de vítimas. Esse discurso, de grandeeficácia política para as elites perversas africanas, não serve aos africanosque constróem no dia a dia seu futuro.

A África vinha provando que mesmo intervenções humanitárias, comaquelas que os anos 1990 foram pródigos, trouxeram poucos resultadospráticos para as populações e reforçaram, ao final, os esquemas de poderdas elites perversas. Ajuda externa carimbada de laços com as elites queperpetuam as diferenças sociais, econômicas e políticas é conspiração contraa África, que tende a permanecer infantilizada em alguns setores graças aesse tipo de falsa piedade.

O desafio psicológico e social é, portanto, o do princípio clássico doensinamento do pescar, e não comer o peixe pescado por outros. Se pelaprimeira vez na história o continente recebe mais investimento que ajuda, eavançou tão bem, o modelo que deve dirigir a relação da África com o mundoé o modelo do investimento, não da esmola.

Os novos olhares sobre a África: o governo Obama e a novaofensiva chinesa

Embora filho de queniano, o presidente Obama manteve discretaapreciação acerca dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais nosprimeiros meses de seu governo. Para especialistas norte-americanosinteressados em uma estratégia mais delimitada de contenção dos avançoschineses no continente africano, o novo governo ianque pareceu reticente apor em marcha aspectos do documento preparado, anos antes, pela ProfessoraSamantha Power e o ex-subsecretário para assuntos africanos no governo,Chester Chocker, conhecedores dos problemas e possibilidades africanas.

A manutenção de uma pauta velha na África, marcada pela preocupaçãono campo quase exclusivo da segurança internacional, com ênfase ao temado terrorismo, obstruiu, ao lado das preocupações mais domésticas norte-americanas no campo econômico, a formulação de uma política mais assertivaem relação ao continente ancestral do presidente dos Estados Unidos daAmérica.

A evolução, nos últimos meses, vem sendo, no entanto, positiva, com aretomada dos contatos mais diretos do presidente Obama e da secretária de

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Estado Hillary Clinton com matérias atinentes a África. Obama e Clintonviajaram a África em 2009. Emergem quatro áreas de interesse dos Estadosno continente. São quase quatro áreas de engajamento, a saber:

i. O fortalecimento das instituições democráticas;ii. A prevenção de conflitos;iii. O incentivo ao crescimento econômico;iv. A parceria para o combate de ameaças globais como o terrorismo.2

Esse último problema foi tratado na visita da Secretária de Estado aocontinente africano no mês de agosto de 2009, em torno de sete paísesvisitados. A preocupação especialmente com os temas do chifre da África,com a pirataria nas águas territoriais da Somália, o desgoverno na região e afissuras abertas que permitem a penetração dos grupos terroristas, seguesendo área de preocupação, seguindo a tendência da política externa norte-americana para o continente desde os dois governos Bush.

O tema democratização dos regimes, associados aos temas deinvestimento direto dos Estados Unidos na África foi direta e claramentetratado pela Secretária de Estado:

“O verdadeiro progresso econômico na África depende de governosresponsáveis que rejeitam a corrupção, reforcem a lei e entreguemresultados a seu povo. Isso não é apenas sobre boa governança, isso ésobre bons negócios.”3

Antes mesmo, na visita do presidente Obama a Gana, em julho de 2009,chamou a atenção para o fato de que os africanos têm razão para se orgulharmais do que para se humilhar diante de sua história. Lançou seu discursocontra o velho pano de fundo, já roto, em torno da pobreza endêmica, epreferiu avançar um discurso de sucesso e de elevação do patamar africanopelo binômio bom governo – investimentos econômicos.

2 Esses pontos foram apresentados recentemente pelo subsecretário para assuntos africanos dopresidente Obama, Johnnie Carson, e relembrados no discurso da Secretária de Estado HillaryClinton no discurso pronunciado em Cabo Verde, dia 14 de agosto de 2009, no palácio presidencialde Praia, na última fase da sua visita a sete países africanos (Quênia, África do Sul, Libéria,Nigéria, Congo, Angola e Cabo Verde)3 Discurso da Secretária de Estado Hillary Clinton na África, conforme nota anterior.

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De Fareed Zakaria, amigo e influente colunista nas ideias internacionalistasdo presidente Obama, aos grandes institutos norte-americanos que vêm sededicando a ensaiar a nova aproximação dos Estados para a África, apareceum contendor do outro lado, ora visto como competidor, ora comocolaborador da retomada do interesse dos Estados Unidos da América nocontinente. É a China, que veio para ficar na África.

O peso da China na África já foi por mim tratado no texto que publiqueina Segunda Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional,mas creio que vale anotar alguns elementos de interesse da China na Áfricapara o contexto pós-crise global. Defendo que a África é cada vez maisimportante para o desenvolvimento chinês.

A base da operação chinesa na África não sofreu a descontinuidade dosnorte-americanos nem foi contaminada pelo tema do terrorismo como umaameaça. Ao contrário, os chineses aproveitaram a brecha aberta pela retiradanorte-americana relativa da África no contexto pós-Guerra Fria. Depois de1989, ante o isolamento chinês diante das desconfianças do mundo em relaçãomassacre do governo chinês na Praça da Paz Celestial, os chineses buscaramapoio dos governos ditatoriais da África em troca de cooperação, que triplicouem dois anos, e investimento, necessário ao projeto chinês de crescimentodo seu capitalismo de exceção.

Desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum deCooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foramlevados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem ocolosso do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, emnovembro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural. Édifícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que nãoseja povoada por produtos chineses. Estão os investimentos chineses nosmais importantes projetos de infra-estrutura do continente africano, deaeroportos a estradas expressas, passando por palácios e grandes camposde acesso às extrações minerais.

A estratégia chinesa é um pouco, ou muito mais, afoita que a proposta dopresidente Obama para a África. Pode ser esquematicamente apresentada emtorno dos seguintes pontos, como o fiz para o caso norte-americano antes:

i. Exportação para a África do modelo chinês de tratamento dos temasda agenda internacional, apresentando-se como uma representante naturaldos países em desenvolvimento;

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ii. Exportação de bens industriais e armas e importação de produtosprimários;

iii. Exploração de todas as fontes possíveis e necessárias de recursosminerais, estratégicos e de energia que garanta a sustentabilidade docrescimento econômico chinês.4

Se a China voltou bem da crise global, como demonstram os dados decrescimento econômico do gigante asiático, em torno de 8% do PIBanualizado de julho de 2008 a julho de 2009, é o capitalismo chinês o maioragente de modernização econômica do continente africano.

Os investimentos do banco de desenvolvimento na África já superam,nos últimos quatro anos, o total dos investimentos europeus no seuconjunto, e é muito superior ao que países em desenvolvimento como oBrasil podem fazer, apesar dos financiamentos e investimentos do nossoBNDEs. Os norte-americanos não possuem meios objetivos para superara capacidade logística e infra-estrutural, financeira e comercial, montadapelos chineses.

A continuidade do crescimento econômico chinês, associado aos capitaisdo Golfo Pérsico, poderá trazer a oportunidade de continuação do ciclovirtuoso que os africanos ainda possuem, em termos de investimento externodireto. Os dados ainda são favoráveis a essa equação sino-africana. Os norte-americanos podem optar por se juntar aos chineses no campo do investimento,mas terão dificuldades de compartilhar os métodos chineses, mais pragmáticosno que se refere ao tema da boa governança interna das débeis democraciasafricanas.

Em todo caso, segue a China seu projeto de criar mais duas Chinas até2050, a incluir mais 400 milhões de seus habitantes nos meios da sociedadede consumo de massa nos moldes ocidentais, por meio da extração energética,mineral e das riquezas naturais da África. A respeito desse projeto já não hámais muita dúvida.

O que poderão fazer os norte-americanos em torno desse projeto? Poucoparece. O que poderão fazer os europeus, em fase de cadência econômicaendêmica? Certamente nada. Será esse um capítulo importante para o estudoda economia política internacional dos próximos cinquenta anos. A Áfricaserá o centro dessa disputa e/ou cooperação nas novas disputas do capitalismoglobal.

4 SARAIVA, José Flávio S., op. cit., p. 97

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À guisa de conclusão: o Brasil ainda tem seu lugar na África

O Brasil, na década de ouro do crescimento econômico na África, nãosubstituiu nenhum outro ator estatal internacional em seu peso relativo noinvestimento, na presença comercial nem no peso geoestratégico ou políticono continente transatlântico. No entanto, avançou posição em sua fronteiraoriental. Substituiu o período de silêncio nas relações do Brasil com a Áfricapor um ciclo virtuoso de cooperação e desenho de projetos para o continenteafricano.5

A recuperação, no governo Lula, da política africana, permitiu ao Brasilcerta participação nessa área do planeta, fronteira atlântica do Brasil, e proveufuncionalidade aos interesses brasileiros, além de certos valores, à projeçãointernacional do país. A África recebeu algum investimento brasileiro, empresasestão presentes, jovens de todo o país, mesmo de pequenas cidades, trabalhamhoje em empresas brasileiras e internacionais em países em canteiros de obracomo Angola.

A diplomacia brasileira esteve próximo aos africanos em temas deinteresse comum como o protecionismo comercial das economias centrais,em foros internacionais e compartilhou a ideia de um Atlântico sul decooperação econômica e social e não de conflitos ou de militarização nuclear.A agenda de apoio ao desenvolvimento da África é certamente umacontribuição do Brasil ao programas de combate a pobreza e inclusão socialna África.

A criação dos novos postos na África foi rapidamente devolvido pelaboa reciprocidade africana. Brasília já abriga 34 embaixadas ou missõespermanentes de países africanos. É caso único na América Latina, superadonas Américas apenas pelos Estados Unidos.

Esses avanços são, portanto, importantes, associados à pauta comercialque se expandiu percentualmente para ordem de 6% do intercâmbio do Brasil,aproximando-a de valores em torno de US$ 20 bilhões no ano presente, oque não é desprezível.

O Brasil vem, assim, contribuir aos projetos de desenvolvimento africanos.Esses projetos, que são e devem ser africanos, merecem a contribuição da

5 Escrevi cinco livros acerca das oscilações, o ir e vir, nas relações do Brasil com o continenteafricano. O que melhor analisa o vai e vem e, em especial, o período afônico de África na políticaexterna do Brasil nos anos 1990 está no seguinte livro: SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugarda África: a dimensão atlântica da política externa do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1996.

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A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL

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experiência brasileira. Reconciliamo-nos, por meio de uma política africanado Brasil, com os brasileiros todos, os descendentes ou não de africanos,pois o Brasil é um país de alcance global. Não pode escolher parceiros epaíses para cooperar apenas pelo grau de desenvolvimento alcançado. Esseé o valor da política externa do Brasil para a formação do próprio país.

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Cooperação Sul-Sul: a Experiência deCooperação Internacional em Saúde do Brasilcom Países da África1

Paulo M. Buss2

José Roberto Ferreira3

“The responsibility for the development ofthe South lies in the South,

and in the hands of the people of the South”Julius Nyerere (1990)

Introdução

O presente artigo traz uma reflexão sobre as iniciativas de cooperaçãointernacional em saúde que a FIOCRUZ tem desenvolvido em conjunto comos Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores com países da África,área amplamente priorizada no contexto da política externa brasileira.

A ‘saúde’ tem sido priorizada na política externa brasileira, em funçãodas constantes demandas por cooperação e apoio nesta área, que recebe oPresidente da República nas suas viagens internacionais, particularmente apaíses do Continente africano, demandas estas que decorrem doreconhecimento internacional que goza o Brasil pela qualidade e pelo perfilinovador do Sistema Único de Saúde brasileiro e pela reconhecida capacidade

1 Documento revisado e ampliado, originalmente apresentado à III Conferência Nacional dePolítica Externa e Política Internacional (CNPEPI): ‘Brasil no mundo que vem aí’, realizadapela Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, no Riode Janeiro, dias 8 e 9 de dezembro de 2008.2 Professor e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública; Diretor do Centro de RelaçõesInternacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz e ex-presidente da Instituição; MembroTitular da Academia Nacional de Medicina.3 Professor Honoris Causa da Escola Nacional de Saúde Pública; Chefe da Assessoria deCooperação Internacional da Fundação Oswaldo Cruz; ex-Diretor de Recursos Humanos daOrganização Panamericana da Saúde, Washington D.C., de 1970 a 1995.

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das instituições cientificas nacionais na área da saúde. De outro lado, os muitosestudantes africanos de diversos países que passaram por graduaçõesuniversitárias e cursos de pós-graduação do país vêm difundindo a qualidadedo ensino e da ciência brasileiras no Continente Africano, contribuindo paraesta demanda crescente.

Outro fator para explicar a forte presença da saúde na política externabrasileira é o prestígio que goza o Brasil, suas instituições e profissionais dosetor saúde entre as organizações internacionais que, muitas vezes, são asresponsáveis por selecionar instituições ou consultores para a cooperaçãointernacional em saúde.

Como a FIOCRUZ tem sido constantemente acionada pelo Governo,através dos mencionados Ministérios – Saúde e Relações Exteriores – paracolaborar na resposta às reiteradas demandas de cooperação em saúde,fomos acumulando uma série de reflexões, análises e também práticas notrabalho com a África.

Assim, vamos apresentar inicialmente nossa visão sobre alguns ‘contextosafricanos’ fundamentais para o planejamento e a implementação das atividadesinstitucionais de cooperação internacional em saúde. Tais reflexões advêmde análises sistemáticas de documentação disponível na literatura especializadae na imprensa mundial sobre a África, bem como das visitas a diversos paísese entrevistas com líderes políticos e acadêmicos africanos que temos feitonos últimos anos.

Em seguida, apresentaremos a experiência concreta que vem sendodesenvolvida na cooperação internacional em saúde no Continente, com ênfasenos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), integrantes,junto com Brasil, Portugal e Timor-Leste, da Comunidade de Países de LínguaPortuguesa (CPLP).

Contextos Africanos

A África é o terceiro maior continente da Terra e o segundo mais populoso,possuindo cerca de 945 milhões de habitantes (2007), distribuídos em 54países, o que representa cerca de 1/7 da população do mundo, mas queresponde por apenas 2,1% do PIB mundial. Dos 54 países independentesda África, 48 são continentais e 6 são insulares. Quando falamos de África épreciso considerar, no mínimo, suas duas grandes macro-regiões, muitodistintas quanto aos quadros humano e econômico. Ao norte, na África

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mediterrânea, encontra-se uma organização sócio-econômica muitosemelhante à do Oriente Médio, compondo o mundo islâmico, no qualpredominam os povos caucasóides, principalmente berberes e árabes,totalizando cerca de ¼ da população africana. Na área subsaariana, temos achamada África negra, assim denominada pela predominância de povos depele escura, que concentra a grande massa de pobreza do continente,representando cerca de 70% dos habitantes do continente.

A população urbana alcança cerca de 368 milhões (39%) e a rural ao redorde 577 milhões (61%). A taxa de crescimento demográfico (2005-2010) estáestimada em 2,3% e a densidade demográfica é de 31,4 habitantes/km2 (2007).

A população tem crescido exponencialmente ao longo do último século(duplicou nos últimos 28 anos e quadruplicou nos últimos 55 anos). É umapopulação muito jovem, apresentando uma média de idade em torno de 19anos (2003). A expectativa média de vida (EV) encontrava-se, em 2006,abaixo dos 50 anos em 28 países, e abaixo de 60 anos em 43 países. EmLesoto, Botsuana e Suazilândia, a EV estava abaixo de 35 anos.

Estima-se que a população alcançará 1 bilhão de pessoas em torno de2010. Os países mais populosos, em 2007, eram: Nigéria (137,2 milhões),Etiópia (81,2 milhões) e Egito (76,9 milhões); existem 45 aglomeraçõesurbanas com mais de 1 milhão de habitantes no Continente. O analfabetismoalcança 40,3% da população adulta (2005).

Economia

Dos 53 países africanos, 34 estão entre os menos desenvolvidos domundo. No Mapa 1, apresenta-se um panorama do Índice de DesenvolvimentoHumano (IDH) nos diversos países do continente: a maioria dos países daÁfrica subsaariana tem baixo IDH (abaixo de 0,499), região na qual quasemetade da população vive abaixo da linha da pobreza. O PIB total doContinente é de USD 1,635 trilhões (2007), o que corresponde a um PIBper capita médio de US$ 1.730 (2007), mas com variações de USD 4.770na África do Sul a USD 100 no Burundi e USD 170 na Etiópia.

A maioria dos países africanos tem sua economia centrada na agriculturae na exploração de minérios. Com isto, desenvolveu-se um sistema deeconomia de intercâmbio comercial, que continua coexistindo com a economiade subsistência. O continente participa de apenas 2% das transaçõescomerciais que acontecem no mundo.

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Embora 1/4 do território africano seja coberto por florestas, grande parteda madeira só tem valor como combustível. Costa do Marfim, Libéria, Ganae Nigéria são os maiores exportadores de madeira de lei. A pesca marítima,muito difundida mas voltada para o consumo local, adquire importânciacomercial apenas no Marrocos, Namíbia e África do Sul. As indústrias deextração mineral são o setor mais desenvolvido em boa parte da economiaafricana, respondendo por cerca de 90% da receita total de exportação,com destaques para a África do Sul, Líbia, Nigéria e Argélia. Além disso,Serra Leoa tem a maior reserva conhecida de titânio.

A nação mais industrializada do continente é a África do Sul, que alcançourelativa estabilidade política e desenvolvimento, possuindo sozinha 1/5 doPIB de toda a África. Porém, também já foram implantados centros industriaisde envergadura no Zimbábue, Egito e Argélia. O principal bloco econômicoé o SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, na suadenominação em português), formado por 14 países do sul da África, que sefirma como o pólo econômico mais promissor do continente.

Questões políticas relevantes

Além de informações físico-naturais e populacionais, para compreendermelhor o tema da saúde e da cooperação, é importante que se analise, aindaque sumariamente, a situação política da África. Em primeiro lugar, há que sereconhecer a extrema juventude de uma África politicamente autônoma. Osprocessos de independência têm entre 35 e 60 anos, contra mais de 175anos do Brasil, por exemplo. Segundo, há que se registrar a irresponsabilidadedas potências ocidentais ao abandonarem seus espólios do século XX e aincapacidade das Nações Unidas de lidarem com a avalanche de demandaspolíticas e sociais decorrentes do processo de descolonização. O mundoestava mais preocupado com a Guerra Fria entre as superpotências e ospróprios processos de descolonização foram manipulados muitas vezes deforma imoral e aética pelas potências em confronto.

As guerras civis e tribais que ocorreram na pós-independência de diversospaíses, a maioria delas decorrentes da divisão territorial artificial imposta pelaspotências européias e/ou estimuladas no contexto da Guerra Fria, contribuíramna maioria dos países para corroer as bases de um processo social pacífico eacabaram por destruir grande parte da infra-estrutura dos mesmos, inclusivea de saúde.

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A pós-colonização também se caracterizou pelo êxodo maciço derecursos humanos qualificados, além do que inexistiam ou foram fechadasuniversidades e escolas de nível superior nas ex-colônias; ademais, por umlongo período os ex-colonizadores impediam o envio de quadros maisqualificados às ex-colônias. Os esforços de criação de universidades e escolasde nível superior, por outro lado, foram até agora insuficientes para suprir asnecessidades de técnicos em quase todos os países africanos. Tal falta derecursos continua até os dias de hoje, com tamanha gravidade na África quea OMS tomou o problema dos recursos humanos em saúde como tema doseu informe mundial de 2006 (OMS, 2006), apontando problemas queacabaram por gerar um grande pacto mundial para o desenvolvimento dosrecursos humanos (OMS, 2007) e a regulação de migrações de profissionais(OMS, 2008), com ênfase nos esforços de bloqueio ao brain drain.

Inspirados na União Europeia, os países do continente criaram, em 2002,a União Africana (www.africa-union.org), sucedendo a Organização daUnidade Africana (OUA) (1963) (ver quadro correspondente). Sua sedelocaliza-se em Adis Abeba (Etiópia) e tem como principais objetivos a unidadee solidariedade africanas; a eliminação do colonialismo; a defesa da soberaniados Estados; a integração econômica; e a cooperação política e cultural noContinente.

Saúde

Se a coordenação política cabe, na África, à União Africana, a parte desaúde é conduzida pelo Escritório da OMS para a África, localizado emBrazzaville, Congo, mas reúne apenas os países do subsaara, pois os paísesdo Norte e do Corno da África reúnem-se na região da OMS denominada“Leste do Mediterrâneo”, junto com os países árabes do Oriente Médio4.

As péssimas condições sócio-sanitárias e ambientais da África acabaramgerando um terreno muito favorável a uma severa deterioração das condiçõesde vida e saúde da maioria da população africana, nos diversos países. Umasituação marcante é a iniquidade em saúde entre países e no interior dosmesmos, com severos impactos negativos sobre os países mais pobres eentre os mais pobres no interior dos diferentes países. Ademais, vive-se o

4 As seis regiões de saúde da OMS são África, Américas, Sudeste da Ásia, Europa, Leste doMediterrâneo, e Pacífico do Oeste (ou, em inglês, como são mais conhecidos: Africa, Americas,South-East Asia, Europe, Eastern Mediterranean e Western Pacific).

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paradoxo de que sobre aqueles em piores condições e, portanto, maioresnecessidades, é que recaem também as maiores dificuldades de acesso aosprogramas sociais, em geral e de saúde, em particular.

O primeiro (mas também mais recente) amplo Relatório sobre Saúdena África, publicado em 2006, mostra inequivocamente as péssimascondições de vida e saúde vigentes no continente (OMS/AFRO, 2006).Baixa expectativa de vida; altas taxas de mortalidade materna e de criançasmenores de 5 anos; alta prevalência de doenças infecto-parasitárias, entreas quais se destacam a malária, a AIDS, a tuberculose e outras doençasnegligenciadas; desnutrição infantil e fome severas em muitos países e emquase todo subsaara imediato; elevadas perdas de vida por conflitosviolentos sem resolução à vista ou em fase de eclosão e re-eclosão;ambiente físico hostil e degradado ou em degradação, secas e/ouinundações derivadas das importantes mudanças climáticas globais estãoentre alguns dos muitos problemas de saúde ou de situações identificadasque impactam sobre a saúde.

Os governos nacionais não dispõem de recursos necessários e/ousuficientes para enfrentar a avalanche de problemas sociais e de saúde, porqueas economias são frágeis e dependentes e porque os governos de muitospaíses também não dispõem, nem de institucionalidade apropriada, nem derecursos humanos qualificados.

O mencionado relatório afirma que sua mensagem central é:

“African countries will not develop economically and sociallywithout substantial improvements in the health of their people.The health care interventions – treatments, diagnostic andpreventive methods – that are needed in this Region are known.The challenge for African countries and their partners is todeliver these to the people who need them, and the best way todo this is establish well-functioning health systems” (WHO/AFRO, 2006).

O fortalecimento dos sistemas de saúde em todas suas diversas ecomplexas dimensões, mais do que apenas o enfrentamento de problemasou doenças específicas (entre as quais sempre se destacam HIV/AIDS,malária e tuberculose), como tem sido a regra até aqui, deve ser ocomponente dominante da ajuda internacional em saúde na África.

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África e a Cooperação Internacional

Há um consenso absoluto entre os países africanos e na comunidadeglobal sobre a necessidade de ajuda internacional para o desenvolvimentodo Continente, em diversos campos da vida econômica e social, entre osquais certamente a saúde, como defende a União Africana com sua estratégiade New Partnership for Africa’s Development/Nova Parceria para oDesenvolvimento da África (NEPAD, 2001). Mas ajuda que lhes assegurecompartilhamento, afirmação de soberania, protagonismo. E, portanto, umaimensa esperança na ‘cooperação Sul-Sul’ ou ‘cooperação entre países emdesenvolvimento (CTPD)’ (ver quadro correspondente). Os africanos comfrequência tem sido ‘ignorados’ pelas cooperações de países ou blocos depaíses desenvolvidos e por diversas ONGs, que chegam com ‘pacotesprontos’ e, muitas vezes, até com territórios em que vão atuar já definidos,sem considerar os eventuais planos de desenvolvimento ou saúde vigentesnos países. Estes aceitam tais programas de ajuda muitas vezes por falta demelhores opções, razão pela qual a ‘cooperação Sul-Sul’ corretamentedesenvolvida – como, no geral, tem sido orientada a abordagem brasileira –poderia substituir a cooperação dominante, com evidentes vantagens para asnações africanas.

A ‘cooperação para a saúde’ não tem como ser desarticulada da“cooperação para o desenvolvimento”. Quer dizer, sem saúde seguramentenão haverá desenvolvimento e sem desenvolvimento, as condições de vida esaúde – que são entes interdependentes – também não melhorarão. Portanto,qualquer apoio internacional que pretenda ser eficaz precisa ser intersetorial,quer dizer, combinar harmonicamente ajuda para o desenvolvimentoeconômico com apoio para setores sociais como saúde, educação e agriculturae a promoção da democracia e estabilidade política, incluindo a construçãoda institucionalidade do Estado em geral e do setor saúde em particular. Emsíntese, a articulação intersetorial é a chave para uma cooperação resolutivana África.

Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs) (UN, 2000),por exemplo, que são eminentemente intersetoriais, dariam conta de algumasquestões africanas. Eles são resultantes do pacto universal, intergovernamental,firmado na Cúpula do Milênio, no ano 2000, e apresentam metas claras, quecobrem campos intersetoriais vitais, como são o enfrentamento da pobreza,alimentação e nutrição, educação, equidade de gênero, ambiente sustentável

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e diversos objetivos de saúde, como saúde materna e infantil e as principaisdoenças infecto-parasitárias. Além do mais, para atingí-los, propõe a criaçãode uma “aliança para o desenvolvimento”, que é o Objetivo 8.

As críticas severas às formas vigentes de ajuda para o desenvolvimentopropiciada pelos países desenvolvidos e organizações multilaterais, levou-osa realizarem um Fórum de Alto Nível, em 2005, em Paris, para “reformar” aajuda para o desenvolvimento, procurando torná-la mais eficaz, na perspectivada revisão qüinqüenal da Declaração do Milênio e dos ODMs, que ocorreriamais tarde, no mesmo ano. Deste evento, surgiu a “Declaração de Paris sobrea Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento” (OECD, 2005) que, firmada porcentenas de paises e dezenas de instituições globais, inclusive da sociedadecivil (OECD, 2009), reitera a necessidade de ampliar a ajuda para odesenvolvimento, mas também melhorar sua eficácia, através das estratégiasde:

• Apropriação, através da qual os países parceiros exercem liderançaefetiva sobre as suas políticas e estratégias de desenvolvimento e assegurama coordenação das ações de desenvolvimento;

• Alinhamento, pela qual os doadores baseiam todo o seu apoio nasestratégias nacionais de desenvolvimento, instituições e procedimentos dospaíses parceiros;

• Harmonização, isto é, as ações dos doadores são mais coordenadas,transparentes e coletivamente eficazes;

• Gestão centrada em resultados.

A excelente Declaração e as adesões de inúmeros países e organizaçõesàs suas propostas, fariam supor um aumento na ajuda externa para odesenvolvimento e práticas mais adequadas, com repercussões positivas sobreos ODMs. Contudo, as conclusões dos dois últimos Relatórios sobre osODMs em geral, incluindo o objetivo 8, são muito preocupantes. O Informede 2007 (UN, 2007) afirma que a ajuda para o desenvolvimento vemdecrescendo, apesar da renovação (retórica) dos compromissos dos paísesdoadores; que os doadores se comprometeram a dobrar suas ajudas para aÁfrica, embora pouco tenha sido feito até o momento; e que o acessopreferencial aos mercados de países desenvolvidos reduziu-se para a maioriados países em desenvolvimento. Já o Relatório de 2008 (UN, 2008a)acrescenta que a ajuda para o desenvolvimento caiu pelo segundo ano

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consecutivo, afetando os compromissos para 2010; que os subsídios agrícolasdomésticos dos países ricos superam em muito o dinheiro usado na ajudapara o desenvolvimento; e que a baixa disponibilidade e os preços elevadossão barreiras para o acesso a medicamentos essenciais em países emdesenvolvimento.

Em setembro de 2008, realizou-se em Acra, Gana, o 3º. Fórum de AltoNível sobre a Eficácia da Ajuda, que veio a gerar a ‘Agenda de Ação deAcra’ (UN, 2008b), bem como em Doha, em dezembro de 2008, realizou-se a Reunião de Análise do Financiamento para o Desenvolvimento, queproduziu a ‘Declaração de Doha sobre o Financiamento para oDesenvolvimento’ (UN, 2008c), todas com referências específicas e ênfaseespecial na cooperação com a África.

Todos estes elementos devem necessariamente ser tomados em contapela cooperação brasileira em saúde com países da África, principalmentepara evitar os erros crassos já cometidos por países que antes do nosso seaventuraram no apoio econômico e social ao continente.

Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com a África

A cooperação técnica internacional em saúde do Brasil tem como focosprincipais a América do Sul e a CPLP, incluindo PALOP. Além dos PALOP,a cooperação tem focado alguns outros países na África, como África do Sul(no contexto de IBAS), Nigéria e, na África francofônica, Mali e BurkinaFaso, exatamente dois países nos quais muito recentemente o Brasil abriuembaixadas.

A cooperação Sul-Sul segundo o Brasil

Antes de enfocar propriamente a cooperação internacional do Brasil coma África, cabe contextualizar a “Cooperação Sul-Sul” ou “Cooperação entrePaíses em Desenvolvimento” na política externa brasileira, segundo o Ministériodas Relações Exteriores (MRE, 2008). No ano de 1987, com a criação daAgência Brasileira de Cooperação (ABC), no MRE, estabeleceu-seefetivamente uma coordenação (CGPD) para tratar da Cooperação entrePaíses em Desenvolvimento (CTPD), também conhecida como CooperaçãoSul-Sul ou Horizontal, com o objetivo de coordenar, negociar, aprovar,acompanhar e avaliar a cooperação para o desenvolvimento, em todas as

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áreas do conhecimento, recebida de outros países e organismos internacionaise aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento.

A partir de 2004, a cooperação brasileira entre países emdesenvolvimento foi significativamente ampliada, pautando-se desde entãopelas seguintes diretrizes:

• Priorizar programas de cooperação técnica que favoreçam aintensificação das relações do Brasil com seus parceiros de maior interessepara a política exterior brasileira;

• Apoiar projetos vinculados sobretudo a programas e prioridadesnacionais de desenvolvimento dos países recipiendários;

• Canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior repercussãoe âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso;

• Privilegiar projetos com maior alcance de resultados;• Apoiar, sempre que possível, projetos com contrapartida nacional e/

ou com participação efetiva de instituições parceiras;• Estabelecer parcerias preferencialmente com instituições genuinamente

nacionais.

À luz destas orientações governamentais, a CGPD concentrou suasações com base nas seguintes prioridades: 1) Compromissos assumidosem viagens do Presidente da República e do Chanceler; 2) Países daAmérica do Sul; 3) Países da África, em especial os PALOP, e Timor Leste;4) Demais países da América Latina e Caribe; 5) Apoio à CPLP; e 6)Incremento das iniciativas de cooperação triangular com paísesdesenvolvidos (através de suas respectivas agências) e organismosinternacionais.

A cooperação internacional em saúde do Brasil na África e noâmbito da CPLP

Como sabemos, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)está composta de oito países, distribuídos em quatro Continentes. Cinco paísesestão na África e constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa(PALOP): Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé ePríncipe. O Brasil, nas Américas, Portugal, na Europa e Timor-Leste, naÁsia, completam a CPLP.

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Os países integrantes da CPLP apresentam grandes assimetrias entre si,como se pode verificar no quadro 1.

Tais assimetrias existem não só em relação às suas populações, que variamde cerca de 189 milhões no Brasil a 155 mil em São Tomé e Príncipe, mastambém nas suas economias: a renda per capita, por exemplo, varia de USD21,5 mil em Portugal a apenas USD 729 no Timor-Leste, USD 830 emGuiné-Bissau e USD 1.200 em Moçambique. Verificam-se também grandesvariações nos indicadores de saúde, como na mortalidade de crianças abaixode 5 anos (260 por mil em Angola a 5 por mil em Portugal) e na expectativade vida ao nascer (ao redor de cerca de 70 anos no Brasil e Portugal eabaixo de 50 anos em Angola e Moçambique).

O modelo de cooperação em saúde adotado, mais recentemente, pelosMinistros da Saúde da CPLP – com a decisiva inspiração da FIOCRUZ,como instituição articuladora da cooperação internacional em saúde do Brasil– foi a elaboração compartilhada de um Programa Estratégico deCooperação em Saúde da CPLP (PECS/CPLP), cuja estrutura é mostradano quadro 2.

A estrutura da cooperação em saúde da CPLP compreende oConselho de Ministros da Saúde dos países membros, que indicaram‘pontos focais’ para a elaboração do PECS/CPLP, cuja coordenação éfeita pela Secretaria Executiva da CPLP, com o apoio técnico formal daFundação Oswaldo Cruz (Brasil) e do Instituto de Higiene e MedicinaTropical (Portugal). O Conselho de Ministros da Saúde reuniu-se emPraia, Cabo Verde (abril, 2008) e determinou a elaboração do Plano. Os“pontos focais” são as instâncias responsáveis por levantar a demanda ea possível oferta de cooperação em saúde dos países membros. Tal etapajá se realizou entre abril e setembro de 2008. Reunidos no Rio de Janeiro(setembro, 2008), os Ministros examinaram a versão preliminar do Plano(Anexo), baseado nas necessidades, demandas e ofertas e na pactuaçãoentre os países através dos pontos focais, e o examinarão para aprovaçãofinal em maio de 2009, em Lisboa, Portugal, após o que o PECS/CPLPpassará a ser implementado.

O Plano tem o propósito central de fortalecer, através da cooperaçãotécnica, a institucionalidade do setor saúde, vale dizer, os sistemas de saúdedos países membros, nomeadamente os Ministérios da Saúde (com a estratégiada “atenção primária em saúde” [WHO, 2008] como principal orientaçãopolítica), assim como as chamadas ‘instituições estruturantes dos sistemas de

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saúde5’, entre as quais encontram-se os Institutos Nacionais de Saúde (INSP),as Escolas Nacionais de Saúde Pública (ENSP), as Escolas Politécnicas deSaúde (EPS) (para a formação de pessoal de nível médio, importantíssimosno contexto de saúde da África), outros Institutos Nacionais (como o desaúde da mulher e da criança, por exemplo) e as escolas de graduação emsaúde (medicina, enfermagem, etc.).

Os conjuntos de atividades de cooperação pactuados estão agrupadosnos seguintes eixos temáticos:

• Desenvolvimento da força de trabalho em saúde;• Fortalecimento das ‘instituições estruturantes’ dos sistemas nacionais de

saúde: Ministérios da Saúde, INSP, ESP, ETS, graduações em saúde e outras;• Informação e comunicação em saúde;• P&D para saúde e desenvolvimento;• Complexo produtivo da saúde;• Vigilância epidemiológica e controle de doenças;• Emergências e desastres;• Promoção e proteção à saúde: Determinantes sociais da saúde e

ações intersetoriais;• Diplomacia da saúde.

O modelo PECS vem sendo considerado bem sucedido, levando a CPLPa anunciar que vai adotar modelo semelhante para as demais áreas decooperação social: educação, ambiente, etc.

Cooperação em saúde da Fiocruz com países da África em anos recentes

Apenas para exemplificar a cooperação em saúde do Brasil com paísesafricanos apresentamos à seguir a experiência e algumas das iniciativas recentesda Fundação Oswaldo Cruz naquele Continente.

5 Instituições estruturantes dos sistemas de saúde são aquelas capazes de fazer operar de formaeficaz, eficiente e sustentável os sistemas e serviços de saúde, principalmente pela capacidadede autoridade sanitária, reitoria e prestação de serviços (Ministérios da Saúde, p.ex.) e deformação de recursos humanos, geração de evidências para a tomada de decisões, através deatividades de P&D e formação de recursos humanos essenciais para a saúde (Institutos Nacionaisde Saúde, Escolas de Saúde Pública, Escolas Técnicas de Saúde, outros Institutos públicos eescolas de graduação das profissões da saúde, p.ex.) (Buss, 2008 – texto não publicado).

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• Inauguração do Escritório permanente da Fiocruz para a África,fisicamente localizado em Maputo, Moçambique, mas acreditadodiplomaticamente junto à União Africana, para coordenar as atividades decooperação em ensino, pesquisa, serviços de referência laboratoriais eassistências da Instituição junto à países e instituições de países africanos.

• Desenvolvimento institucional – Apoio ao estabelecimento dosInstitutos Nacionais de Saúde de Moçambique e Guiné-Bissau, em parceriacom a Associação Internacional de Institutos Nacionais de Saúde Pública(IANPHI, em sua sigla em inglês); da Escola Nacional de Saúde Pública deAngola; das Escolas Técnicas de Saúde de Cabo Verde, Moçambique eGuiné-Bissau; do Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança deMoçambique; da Universidade de Cabo Verde, com orientação dirigida àsprofissões da saúde; e de uma companhia pública e estatal de medicamentosem Moçambique para produzir drogas anti-retrovirais e outras.

• Desenvolvimento de recursos humanos – Implantação de doisCursos de Mestrado, respectivamente em Angola (Saúde Pública) eMoçambique (Ciências de Laboratórios); treinamento de pediatras, obstetrase pessoal de enfermagem, em Moçambique; treinamento de técnicos de saúde,em Cabo Verde.

Esta intensa atividade de cooperação internacional levou a Presidênciada FIOCRUZ a estabelecer o Centro de Relações Internacionais emSaúde, vigente e operacional à partir de Janeiro de 2009, com staffpróprio, constituído de profissionais de saúde e de relações internacionais.O Centro opera assessoria à Presidência da Instituição nesta área e comocoordenação da Câmara Técnica de Cooperação Internacional daFiocruz, que reúne representantes das dezessete Unidades Técnico-Científicas da Instituição.

Reflexões finais sobre a Cooperação Internacional em Saúde doBrasil

As reflexões finais que seguem abaixo devem ser tomadas pelos leitoresnão como críticas, mas como contribuições construtivas decorrentes doprofundo comprometimento dos autores com a política externa brasileira e acooperação internacional do Brasil, ambas vitais para a afirmação de nossosmelhores e mais nobres interesses na política internacional.

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Não vemos ainda o Brasil fazer a articulação inter-setorial da suacooperação internacional – tampouco setorial, no interior do próprio setorsaúde. Assim, no mais das vezes as cooperações estabelecidas resultamdesarticuladas, fragmentadas e, desta forma, perdemos muita potência. Oatendimento tem sido predominantemente da demanda “de balcão” ou“espontânea”, quando, sem ignorar tais demandas, a cooperaçãointernacional do Brasil deveria ser predominantemente “programática”, valedizer articulada internamente e consentânea aos planos de saúde edesenvolvimento dos países participantes. Os gastos excessivos de tempoe dinheiro em transações gerenciais e administrativas, assim como processosainda muito burocráticos, diminuem a agilidade e a qualidade da cooperaçãobrasileira. Não temos desenvolvida, ainda, uma legislação para acooperação internacional, o que impede a ação mais efetiva dos agentesda nossa política externa. Tampouco nossas Embaixadas ou a ABC têmestrutura para fazer a necessária articulação. É preciso dotar estes doispreciosos “elos diplomáticos” da cadeia de cooperação para extrair dela omáximo que se poderia esperar.

Sem abandonar a “cooperação bilateral”, que o Brasil tem praticado aolongo das últimas décadas, é preciso reconhecer a realidade políticacontemporânea, que repousa na construção de “blocos de países”, comoconcretamente ocorreu com a constituição da CPLP e do MERCOSUL,nos anos 90, e da União Sul-Americana de Nações (UNASUL), para alémdo MERCOSUL e da Comunidade Andina, muito recentemente, no ano de2008. Sobre esta estratégia política mais ampla, toca-nos na cooperaçãosetorial em saúde, por exemplo, a construção de networks, tomadas no seusentido literal em inglês, de “redes que [efetivamente] trabalham” e não apenasamontoados formais de instituições mais ou menos afins quanto a objetos e/ou processos de trabalho.

No concerto das nações estamos ainda engatinhando no campo dointercâmbio internacional. O Brasil tem uma história de importantes conquistasna diplomacia internacional, mas é bastante recente sua incursão nos esforçosde cooperação com países de menor desenvolvimento. Parafraseando PinheiroGuimarães (2005), consideramos que,

“a estratégia da política brasileira deva ser fundada na defesa da paz, nomultilateralismo, no direito internacional e na não hegemonia; em normasinternacionais que propiciem o desenvolvimento e não que consagrem e

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aprofundem os hiatos econômicos e tecnológicos entre o centro e a periferiado sistema internacional; na construção de uma sociedade próspera,dinâmica, democrática e não hegemônica (....) e deve ser a base do sucessodo projeto de superação do subdesenvolvimento e da construção de ummundo multipolar, em que se realize o ideal de justiça, democracia eprosperidade”.

O Brasil está no caminho absolutamente certo. Mas precisamos fazerreformulações conceituais, bem como na forma de articular e operar acooperação internacional em saúde, de forma a colocar o Brasil na posiçãoque aspira no concerto das Nações.

Referências Bibliográficas

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Anexo I

Cooperação Sul-Sul

O conceito e as práticas da ‘Cooperação Sul-Sul’ surgiram fundamentalmente nas esferaspolítica e econômica durante os anos de Guerra Fria. No campo político, os países do entãochamado ‘Terceiro Mundo’ se uniam para fazer frente à bipolaridade, constituindo o‘Movimento Não-Alinhado’ e procurando negociar o estabelecimento de uma nova ordemeconômica. Em assuntos econômicos propriamente ditos, a cooperação Sul-Sul voltava-se aoestímulo aos intercâmbios comerciais inter-hemisféricos, assim como ao compartilhamentode tecnologias de produção. Com o fim da bipolaridade e as mudanças ocorridas no regimeinternacional de desenvolvimento, o foco colocado sobre o desenvolvimento humano e sobrea erradicação da pobreza permitiu o fortalecimento da cooperação Sul-Sul no âmbito social.

Há 30 anos, em 1978, no contexto da descolonização das nações (predominantementeda África e algumas da Ásia e Caribe), foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobreCooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD); suas recomendações foramaprovadas na forma do ‘Plano de Ação de Buenos Aires’, marco na história da cooperaçãointernacional por se ter constituindo na base da autonomia da cooperação externa dos paísesem desenvolvimento.

Uma Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul (SU/SSC), localizada no PNUD, foiestabelecida pela Assembléia da ONU no mesmo ano, com o objetivo de promover, coordenare apoiar as Cooperações Sul-Sul e triangular em âmbito global e com base no sistema dasNações Unidas como um todo. A SU/SSC recebe direcionamento político e orientações efunciona como Secretariado do Comitê de Alto Nível sobre Cooperação Sul-Sul da Assembléiadas Nações Unidas.

Em 1983, a Assembléia estabeleceu o Fundo Fiduciário Pérez Guerrero, gerenciado pelaSU/SSC, com o propósito de apoiar atividades de CTPD do Grupo dos 77, destinado afinanciar estudos de pré-investimento e viabilidade e facilitar a implementação de projetosdesta natureza.

Em 1987 cria-se a Comissão do Sul, formada por 30.Em 1993, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em resolução ratificada

pela Assembléia Geral, enfatizou que todos os agentes do processo de desenvolvimentodeveriam redobrar seus esforços para utilizar amplamente a CTPD como modalidade preferidana preparação e execução de projetos e atividades de desenvolvimento, superando sua aplicaçãode forma marginal.

Na X Sessão do Comitê de Alto Nível das Nações Unidas sobre a CTPD (1997),identificou-se que era necessário contribuir ao desenvolvimento de políticas e procedimentosinstitucionais para a completa otimização de CTPD, sendo recomendado que os países emdesenvolvimento incorporem CTPD como elemento central da estratégia nacional dedesenvolvimento e que as instâncias nacionais e pontos focais da CTPD contem com recursoshumanos e financeiros para seu efetivo funcionamento. Foi ainda recomendado que ofinanciamento da CTPD fosse aumentado substancialmente pelos próprios países emdesenvolvimento, assim como pelos países cooperantes e agências multilaterais.

O dia 19 de dezembro foi consagrado pelas Nações Unidas como ‘Dia Mundial daCooperação Sul-Sul’.

Fonte principal do conteúdo deste quadro: OPS, 1998

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Quadro 1. CPLP

União Africana/African Union/ íUnion africaine/Umoja wa Afrika

ÓRGÃOS CONSTITUTIVOS

Assembléia da UA – Chefes de Estado e de Governo dos Estados Membros (EM); órgãosupremo da União.

Conselho Executivo da UA – Ministros ou outras autoridades designadas pelos governosdos EM.

Comissão da UA – Órgão responsável pela execução das decisões da Assembléia; Presidente,Vice-Presidente e oito Comissários, cada um responsável por uma área de atividade.

Comitê de Representantes Permanentes da UA – Preparação das sessões do ConselhoExecutivo; composto por Representantes Permanentes dos EM.

Comitê de Paz e Segurança da UA – Cúpula de Lusaka (Julho de 2001), em processo deratificação pelos EM.

Parlamento Pan-africano – 265 parlamentares, eleitos pelas legislaturas dos EM.

Conselho Econômico, Social e Cultural da UA – Órgão consultivo; Estatutos submetidosà Cúpula de Maputo.

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Quadro 2. Programa Estratégico de Cooperação em Saúde da CPLP

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A nova Rússia sob Medvedev e Putin

Angelo Segrillo1

1 Angelo Segrillo é professor de história contemporânea na Universidade de São Paulo. Comdoutorado pela Universidade Federal Fluminense e mestrado pelo Instituto Pushkin de Moscou,é autor de “O Declínio da URSS: um estudo das causas” (ed. Record), “O Fim da URSS e aNova Rússia” (ed. Vozes) e “Rússia e Brasil em Transformação” (ed. 7Letras).

O ano de 2008 foi um importante marco divisório na história recente daRússia, marcando uma nova fase. No campo político, Putin saiu da presidênciae passou-a a Dmitry Medvedev, ficando com o posto de primeiro-ministro.Sendo o país considerado uma república de presidencialismo forte, muitos seperguntavam se e como Putin manteria seu grande poder pessoal. No campoeconômico, o final do ano trouxe para a Rússia a reverberação da crise financeiramundial detonada pelo crash imobiliário dos EUA. Como grande parte doapoio popular de Putin tem sua base na boa fase econômica do país sob suapresidência, como ficará esse apoio caso a situação da economia se deteriore?Questão relacionada a essa é o grau em que a Rússia será afetada pela crise.

São essas e outras perguntas que examinaremos neste ensaio, cujo fio condutorserá examinar as origens e contornos iniciais desta nova fase na história do país.

Background

Antes de examinarmos a fase atual, precisamos analisar como chegamosa ela. Nosso ponto de partida deve ser a desintegração da URSS no final de

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1991. Ela lançou os russos da época numa situação totalmente nova paraeles. A Federação Russa era agora um país independente e separado dasoutras 14 repúblicas da ex-União Soviética. O país recém-criado nascia dentrode um turbulento e acelerado processo de passagem de uma economiasocialista para um regime capitalista. A novidade da situação e a escolha daestratégia de transição (“terapia de choque”) levaram a que a década detransição sistêmica fosse, em sua maior parte, um período de grande contraçãoda economia. Pela tabela 1 podemos ver que, de 1991 a 1998, com exceçãoapenas de 1997, todos os anos foram de queda do Produto Interno Bruto.Para se ter uma idéia do que isso significa, basta dizer que a queda do PIB daRússia nos anos 1990 foi maior que a dos EUA na Grande Depressão dadécada de 1930. Esse é um fator fundamental para se entender a popularidadede Putin. Ele assumiu o poder como primeiro-ministro de Yeltsin em 1999 e,com a renúncia deste, tornou-se presidente em 2000. Se olharmos a tabela 1constataremos que a partir de 1999, quando Putin chega ao governo, o PIBda Rússia deixou de cair e passou a crescer em altas taxas. Ou seja, apopulação associou a figura de Putin à melhoria econômica do país. E estamelhoria se revelou não apenas nos índices macroeconômicos, mas tambémno bolso do cidadão comum. Os salários e aposentadorias estatais, que sobYeltsin eram pagos com atraso até de meses, foram regularizados em menosde um ano após Putin assumir, os salários reais da população tiveram constantee forte alta de 1999 até hoje (mais que quadruplicaram em termos de dólardo início da década de 2000 até 2007) e o índice de pobreza despencou deum pico de 41,5% em 1999 para 19,6% em 2002 e para abaixo de 15% em2007. (Iradian, 2005, p. 35; World Bank, 2005, p. 70; World Bank RussiaCountry Office, 2008, p. 33 e 45; ver também a tabela 3).

Com uma mudança tão radical para melhor após o período de depressãoeconômica sob Yeltsin, não é de se admirar que Putin tenha sido elevado àcondição de ídolo por grande parte da população russa.

Politicamente Putin escolheu uma estratégia de centralização comelementos de autoritarismo após as tendências algo caóticas e centrípetas daera Yeltsin (que envolveram até uma guerra de independência da Chechênia).Este aspecto centralizador e mesmo autoritário tem lhe valido críticas dentroe fora da Rússia, mas não parece ter afetado seu prestígio junto à população(ao contrário, algumas camadas dela, acostumadas a governos autoritáriospassados do país, sentiram-se mais confortáveis com Putin aparentemente“colocando ordem na casa”).

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Assim, após o fim da URSS, a Rússia passou por duas fases bem distintas.A presidência Yeltsin (1991-1999), politicamente liberal, mas com profundacrise econômica; e os dois mandatos presidenciais de Putin (2000-2008),marcados por forte recuperação econômica, mas com um estilo político algoautoritário. A grande pergunta é: como fica a situação agora que Medvedev épresidente e Putin primeiro-ministro?

Medvedev iniciou seu mandato em março de 2008 e, portanto, já temosalguma visão retrospectiva para arriscarmos nossos diagnósticos iniciais.

Antes de começarmos a fazê-lo, entretanto, é preciso chamar a atençãopara um ponto importante pouco notado neste tipo de discussão. Que Putinmanteria seu prestígio e poder para além de 2008 era indubitável. A questãoera como ele faria isso sendo primeiro-ministro, já que a Federação Russa éconsiderada como uma república de presidencialismo forte. Aqui é importantechamarmos a atenção para uma falácia generalizada. Formalmente a Rússianão é uma república presidencialista, e sim semipresidencialista. Osemipresidencialismo (cujo grande modelo é a França) é um regime em queexiste um presidente e um primeiro-ministro e os dois tem poderesconstitucionais distintos, mas relativamente equilibrados em termos depoder. De maneira geral, na Rússia (como na França) o presidente cuida dasegurança nacional (forças armadas) e das relações exteriores enquanto oprimeiro-ministro é responsável pela política interna. Assim, a questão decomo Putin poderia manter seu poder sendo “apenas” primeiro-ministro eraum falso dilema, já que o primeiro-ministro, em termos constitucionais, temfortes poderes também. Assim como na França (lembram o famoso problemada “co-habitação” entre presidente e primeiro-ministro de diferentespartidos?), a questão de qual dos dois, na prática, se sobressairá dependedo contexto político (principalmente quem tem maioria no parlamento) e nãoda divisão constitucional de poderes a priori.

Assim, como Putin e Medvedev pertencem ao mesmo campo, eraperfeitamente possível o funcionamento de uma diarquia, com Medvedevcuidando da área externa e da segurança nacional e Putin dominando a políticainterna do país.

Passado já cerca de um ano da inauguração de Medvedev, como vemosretrospectivamente o funcionamento desta diarquia? Na prática, já podemosverificar que Putin continua como a figura dominante na política russa. Nãohouve necessidade de nenhuma mudança constitucional para que istoacontecesse. Apesar de Medvedev estar exercendo seu papel formal nas

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relações exteriores e nas forças armadas ficou claro que Putin ainda é odirigente principal. No episódio da guerra da Rússia contra a Geórgia porcausa da Ossétia do Sul (questão dentro das atribuições do presidente), Putinteve um papel de destaque, sendo o primeiro a ir visitar as tropas epermanecendo ativo ao longo da crise. Assim, a diarquia parece estarfuncionando na base da camaradagem. Medvedev é um antigo colaboradorleal de Putin. Trabalhou com ele em São Petersburgo nos anos 1990 e foichamado nos anos 2000 para exercer diversos cargos no governo Putin,incluindo chefe da casa civil e vice primeiro-ministro. Medvedev, um tecnocratanunca eleito para cargos políticos anteriormente, parece ter aceitado bem acondição de parceiro menor na diarquia.

Uma outra indagação corrente antes da inauguração do novo presidenteera a questão da liberalidade de Medvedev. Medvedev era considerado maisliberal que Putin. Isso se refletiria em uma maior abertura do sistema sob suapresidência? Até agora não há sinais disso. Apesar de uma forte retóricalegalista durante a campanha eleitoral, Medvedev não tem assumido posturasque visam a arejar o sistema e dar maior espaço à oposição livre. Ao contrário,premido pelo agravamento da crise econômica internacional no final de 2008,Medvedev assinou uma lei e uma mudança constitucional que, segundo osopositores, representam um perigo de fechamento maior do sistema. Foramalterados os prazos de mandato do presidente e dos membros do parlamentode 4 para, respectivamente, 6 e 5 anos. Como os presidentes russos nãopodem exercer mais de dois mandatos consecutivos, isso significaria quePutin poderia voltar à cadeira presidencial em 2012 e permanecer nela até2024. Medvedev também assinou uma lei, passada pelo parlamento, queextingue o tribunal por júri para os casos de terrorismo, insurreição e outrosdistúrbios públicos. Isso poderá afetar a transparência em casos deinsubordinação política.

Este processo de tensionamento parece estar associado ao agravamentoda crise econômica internacional e suas conseqüências na política interna.Nas duas últimas eleições, o partido que apóia Putin (o Rússia Unida) obtevevitórias esmagadoras e, juntamente com aliados, conseguiu maioriaconstitucional na Duma. O Partido Comunista da Federação Russa (PCFR),outrora o maior do país, foi relegado ao plano de segunda força. Os liberaisforam simplesmente aniquilados nas últimas eleições parlamentares. Devidoao aumento da barreira eleitoral (de 5 para 7% dos votos) em uma Dumaagora eleita totalmente por voto proporcional (e não por sistema distrital

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misto, como antes), os dois partidos liberais (Yabloko e SPS) não conseguirameleger nem um deputado. Com tal quadro, o diagnóstico era que Putin seriaimbatível enquanto a situação econômica continuasse de vento em popa.

Mas e se a presente situação econômica desembocar numa crise quecoloque a população descontente? Como ficará a popularidade de Putin nessenovo contexto? Os críticos vêem as medidas acima como uma resposta euma preparação preventiva para a necessidade de um fechamento autoritáriodo sistema frente a protestos generalizados trazidos por um possívelagravamento da crise.

A questão da crise econômica

Pelo que vimos anteriormente, a Rússia vinha surfando em uma onda decrescimento econômico desde 1999. Esta onda foi enormemente ajudadapelo fato de que exatamente em 1999/2000 os preços do petróleo começarama disparar. Passaram de 16 dólares o barril em janeiro de 1999 a um pico de147 dólares em julho de 2008. Como a Rússia é um dos maiores produtoresmundiais deste mineral, o país recebeu uma grande contribuição extra parasua riqueza. É importante dar crédito ao governo Putin por ter sabido utilizarcorretamente esta fonte extra. Além de ter mantido a mudança de curso deum primeiro-ministro anterior (Yevgeny Primakov, que após a crise financeirarussa de 1998, reorientara a economia da especulação financeira para o setorreal, produtivo, da economia), o governo Putin também criou um Fundo deEstabilização para o caso de futuras oscilações no preço do petróleo. Poreste fundo, caso o preço do petróleo subisse acima de um certo nível (gatilho)as rendas advindas não seriam gastas imediatamente pelo governo e simpoupadas para uso em caso de que no futuro o preço do petróleo caia. Estefundo de estabilização (agora sob outros nomes) está sendo fundamental nasituação atual, pois de um ápice de 147 dólares o barril em julho de 2008, ospreços despencaram para cerca de 37 dólares em dezembro de 2008.

Assim, quando analisamos a possibilidade do impacto da crise econômicainternacional na Rússia temos que observar dois aspectos diferenciados. Asituação em si do país no momento em que este artigo está sendo redigido(início de 2009) é relativamente confortável. No tempo das vacas gordassob a presidência Putin, a Rússia colocou sua casa financeiramente em ordem.De um país com déficits no orçamento e parcas reservas em dólares nosanos 1990, o país passou a ter orçamentos superavitários e atingiu a posição

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de ter a terceira maior reserva em dólares do mundo (596,6 bilhões de dólaresno seu ápice em julho de 2008). (World Bank Russia Country Office, 2008,p. 45). Como colocou um relatório do Banco Mundial no final de 2008:

Os fundamentos macroeconômicos fortes, a política fiscal prudente,e a não-exposição à crise do mercado subprime americano da Rússiatêm protegido parcialmente sua economia e ajudado a limitar oimpacto da crise financeira global. Graças à dívida externa soberanabaixa, a dois grandes superávits gêmeos (fiscal e da conta correnteexterna), a uma das maiores reservas internacionais do mundo e aavaliações favoráveis das agências de classificação, até meadosde 2008 os investidores viam a Rússia como um “porto seguro”,bastante “descolada” do deteriorante ambiente financeiro global.Ao criar amortecedores fiscais e de reservas significativos emrelação a outros mercados emergentes, a Rússia tem conseguidoadiar e limitar o impacto da crise global. Na verdade, está claroagora que se a Rússia não tivesse entrado na crise financeira globalcorrente com superávits fiscais fortes e grandes recursos acumuladosnos fundos de estabilização e nas reservas estrangeiras, o impactoda crise teria sido muito mais rápido e severo do que o écorrentemente. Igualmente importante é o fato de que o governoteria tido menos tempo, recursos, opções políticas e espaço paramanobrar e limitar o impacto da crise na economia real. (WorldBank Russia Country Office, 2008, p. 2)

Este é o lado positivo da posição russa na presente crise. O principalponto fraco, entretanto, é a grande importância da exportação de petróleo(e minerais em geral) na sua economia. A questão não é apenas do pesorelativo da mercadoria, e sim da volatilidade de seu preço no mercado.Um mercado petrolífero com volatilidade tão severa a ponto de duplicarou triplicar os preços para cima e para baixo em questão de meses é umaameaça severa ao mais prudente dos planejamentos. A queda do preçodo petróleo será um forte teste para saber se a economia da Rússia podeou não ter um crescimento sustentado a longo prazo sem preços depetróleo altos. Afinal, petróleo e gás natural representam um pouco acimade 60% de todas as exportações russas e cerca de 20% de seu PIB total.(Russia, 2008)

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Assim, no momento atual a situação da Rússia é mista. Por um lado assólidas bases macroeconômicas fiscais e de reservas lhe dão uma posição derelativa segurança em termos próprios. Por outro, alguns sinais de alarme quantoà potencial severidade da crise nos obrigam a uma posição de cautela. Por exemplo,as reservas ainda estavam altas no final de 2008, mas tinham sofrido uma fortequeda em poucos meses de seu auge em julho de 2008 (US$ 596,6 bilhões)para cerca de 484 bilhões em novembro. Para se ter uma idéia do que essaqueda de mais de 100 bilhões de dólares significa, basta notar que ela representacerca de metade das reservas totais do Brasil em 2008. Essa sangria de reservastem parcialmente a ver com a tentativa do governo de impedir a queda do valordo rublo, que, mesmo assim, se desvalorizou em 15% no mesmo período (econtinua caindo). A produção industrial também começa a mostrar desaceleração.

A crise se aprofundará gravemente ou não na Rússia? No momento atualem que este artigo está sendo redigido a resposta não é clara, assim comonão é claro, em termos mundiais, qual será a profundidade da crise em 2009.Mas, de maneira geral, a Rússia está relativamente mais bem posicionada,em termos fiscais e financeiros, que a maioria dos países industrializados emesmo emergentes do mundo.

A grande pergunta que se coloca é: quais serão as conseqüências políticasda crise no país? Essa é a questão que afeta tanto os governistas como aoposição. Para ela a resposta ainda não está clara. No momento da redaçãodeste artigo (início de 2009), a popularidade de Putin ainda é muito alta deacordo com as pesquisas de opinião, mas fatos sintomáticos já aconteceramque demonstram o potencial perturbar da crise econômica. Na cidade deVladivostok, um protesto de automobilistas contra o aumento das taxas deimportações de veículos estrangeiros (uma importante fonte de renda naqueleporto) acabou gerando pedidos pela queda do governo. Isto foi sintomático,pois foi a primeira vez que em um protesto de massa não organizadoespecificamente pelos partidos políticos de oposição foram ouvidos pedidosdiretos pela destituição de Putin.

A questão é: este será um incidente isolado ou esta atitude se espalharáem caso de agravamento da crise?

A relação da Rússia com o Ocidente

Um problema muito abordado na imprensa mundial é o tensionamentodas relações entre o Ocidente (leia-se EUA e Europa) e a Rússia. Este

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problema geralmente é colocado na seguinte forma. Após um período deboas relações sob Yeltsin, a chegada de Putin, um ex-agente do KGB, aopoder levou a uma deterioração neste relacionamento.

Esta narrativa é simples demais para dar conta das complexidades(históricas, inclusive) da relação entre a Rússia e o Ocidente. Algumasqualificações devem ser feitas a ela.

Primeiro de tudo, não é verdade que assim que Putin tenha assumido ogoverno as relações com o Ocidente tenham piorado. Na verdade, no primeiromandato do presidente americano Bush as relações foram relativamente boas,principalmente depois dos atentados de 11 de setembro, quando a luta contrao terror aproximou os dois países. Quem não se lembra da famosa frase deBush: “Olhei nos olhos de Putin e vi alguém com quem posso fazer negócios?”A deterioração nas relações entre Rússia e EUA ocorreu principalmente nosegundo mandato Bush.

Um outro fator, este de caráter mais teórico, aponta na direção dedescartar a hipótese de que Putin fosse, a priori, antiocidental. A questão doocidentalismo e antiocidentalismo na Rússia é antiga e proporciona um dosdebates ideológicos mais importantes dentro dela. A partir do século XIXdois campos se formaram no país a respeito da herança das reformasmodernizantes e ocidentalizadoras que Pedro, o Grande realizou na viradapara o século XVIII: os ocidentalistas são aqueles que aprovam as reformasde Pedro e acham que a Rússia deve seguir o caminho da modernizaçãoocidental enquanto os eslavófilos defendem que a sociedade do país é única,nem europeia nem asiática, e, portanto, deve seguir um caminho próprio.Freqüentemente os eslavófilos se revelam antiocidentais na sua luta porpreservar um caminho próprio e único para a nação. Putin foi classificadopor muitos observadores estrangeiros como eslavófilo por suas posições bemmenos pró-ocidentais que Yeltsin, mas isto não é verdade. Putin vem de SãoPetersburgo, fundada por Pedro, o Grande, uma das cidades mais“ocidentalizadas” da Rússia. Pedro, o Grande, é um dos ídolos de Putin eeste, em suas “memórias” ditadas em longa entrevista a um grupo de jornalistas,afirmou que a Rússia é um país europeu (uma posição típica dos ocidentalistas).(Gevorkyan et al., 2000, p. 155-56). Putin difere de Yeltsin em dois aspectos,nesse sentido. O grau de ocidentalismo de Putin é menor que o de Yeltsin, daía impressão que Yeltsin era pró-ocidental e Putin não. Por outro lado, se opassado de Putin como agente no KGB e dirigente da FSB (serviço desegurança que sucedeu o KGB na Rússia pós-soviética) não significa

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necessariamente que ele é antiocidental, por outro lado fez com que Putindesenvolvesse um alto senso de defesa da segurança e dos interessesnacionais. Putin é um pragmático. Sabe que não pode (nem deve) alienar oOcidente, mas por outro lado, no novo contexto mais bem fortalecidoeconomicamente da Rússia dos anos 2000, assumiu uma política de defenderestes interesses nacionais de maneira bem mais assertiva que Yeltsin,governante que, devido à crise dos anos 1990, não tinha grande poder debarganha frente aos países ocidentais.

O que estou querendo chamar a atenção é que os problemas atuais norelacionamento entre Rússia e Ocidente não são unicamente por Putin serantiocidental ou são culpa unicamente da Rússia. Na verdade, o Ocidente(especialmente os EUA do segundo mandato Bush) tem tido atitudescondescendentes, paternalistas, e, muitas vezes, confrontadoras frente a Rússia.A principal delas é a expansão da OTAN em direção à Rússia. Para osrussos isso é um contra-senso ameaçador. Se a Guerra Fria terminou, e osEUA insistem que não são mais inimigos dos russos, que sentido faz avançaruma aliança militar em direção ao país? O lógico num tempo pós-GuerraFria seria diminuir, e não expandir, uma organização militar criada exatamentecontra o país.

Assim, para melhorar as relações entre a Rússia e o Ocidente, é precisoque os dois lados aproximem suas posições e não apenas que a Rússia setorne mais maleável. Nesse sentido, a saída de Bush e a eleição do presidenteObama nos EUA abrem uma janela de oportunidade para que este país adoteuma política menos confrontadora e mais cooptadora frente aos russos. Seesta janela será realmente aproveitada, só o futuro dirá.

Conclusão

A Rússia passou por duas fases completamente distintas em sua épocapós-soviética. O governo Yeltsin foi marcado pela profunda depressãoeconômica da transição sistêmica do socialismo para o capitalismo, ao mesmotempo que mantinha um regime relativamente liberal na política interna. Nosdois mandatos presidenciais de Putin a dinâmica se inverteu, com uma granderecuperação econômica e um certo fechamento político. Os observadores sedividiam em como ficaria a situação na nova fase, em que Putin não seriamais presidente e sim “apenas” primeiro-ministro. Chamamos a atenção nesteartigo para o fato de que esse era um falso dilema, pois a Rússia, ao contrário

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do que normalmente se pensa, não é, pela constituição de 1993, uma repúblicapresidencialista e sim semipresidencialista. Assim, Putin pode manter suanotável influência mesmo na posição primeiro-ministro. O fato de novopresidente, Dmitry Medvedev, ser um antigo colaborador seu facilita o trabalhoconjunto que os dois têm realizado até agora e onde Putin continua a ser apeça principal.

Toda essa dinâmica favorável a Putin tem, porém, um senão. A criseeconômica mundial se aproxima da Rússia. Dependendo de suas repercussõesno país, o prestígio de Putin poderá ser abalado. Se realmente o prestígio dePutin for abalado ao ponto de ter seu poder ameaçado, a democracia russapassará por um grande teste. Putin largará o poder e permitirá que a oposição(seja o Partido Comunista, o segundo maior do país, ou os liberais, agoraalijados do parlamento) assuma o poder? Este poderá ser um momentodefinidor para a democracia russa semelhante ao que o Brasil passou com aeleição de Lula à presidência, pois uma alternância eleitoral normal para ocampo completamente oposto na divisão direita/esquerda é um dos sintomasde uma democracia consolidada.

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Anexo de Dados e Tabelas

Tabela 1: Percentagem de crescimento anual do Produto InternoBruto real da Rússia

Nota: ano de 2008 = projeçãoFonte: World Economic Outlook, maio 2000, abril 2007 e outubro 2008

Tabela 2: Percentagem anual de inflação de preços na Rússia

Nota: ano de 2008 = projeçãoFonte: World Economic Outlook, outubro 2001, abril 2007 e outubro 2008.

Tabela 3: Indicadores trabalhistas e de reservas externas

Fonte: World Bank Russia Country Office, 2008, p. 45

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Considerações sobre a situação atual da Rússia:Desafios e Perspectivas

Daniel Aarão Reis

1. Introdução

O artigo terá início com um esboço panorâmico da trajetória da Federaçãorussa nos últimos vinte anos, tentando oferecer um quadro das relações sociaisem que se movem neste momento as lideranças e forças que marcam apaisagem política do país. Num segundo momento, será objeto deconsideração a questão do regime político em construção, por alguns jáapelidado de tandemocracia, fundamentada numa estrutura formalmentebicéfala. Em seguida, o texto se ocupará de examinar, em três ítens, os desafiospolíticos, internacionais e econômicos (agravados, estes, pela crise que assolao mundo e a Rússia, desde meados do semestre passado), que o país enfrentana conjuntura presente. O texto se encerra com uma avaliação das perspectivasque podem ser entrevistas no quadro geral desenhado.

2. Dois decênios contrastantes: a trajetória da Federação Russanos últimos vinte anos

Desde o processo da surpreendente desagregação da União Soviética,em fins dos anos 1980 e começos dos anos 1990, a Rússia, refundada comoestado nacional independente, conheceu dois períodos bem contrastados1.

1 Cf. para uma análise mais extensa, D. Aarão Reis, 2007, especialmente o posfácio; A. Segrillo,2000 e 2008 e M. Lorraine, 2008.

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Uma primeira década, marcada pela liderança política de B. Ieltsin, foicaracterizada pela desordem econômica, aproximando-se o país, em certosmomentos, de uma situação considerada, não sem razão, caótica.

Queda livre dos indices econômicos (produção, investimento, arrecadaçãofiscal, comércio interno e externo, emprego), inflação alta, desvalorizaçõesrepetidas do rublo, salários e pensões defesados e pagos com atraso, gerandoinquietação, desespero e diluição das estruturas do funcionalismo civil e mesmodas forças armadas.

Neste contexto, um enfraquecimento decisivo do Estado central,avantajando-se as margens de arbítrio dos governos locais e regionais,gerando, mesmo nos grandes centros urbanos, a formação de verdadeirasmilícias privadas no quadro de ascensão das chamadas máfias e fazendotambém emergir o fantasma de um novo processo de desagregação política(conflitos armados e guerras no Cáucaso, na esteira da proclamadaindependência da Tchetchênia, ameaças de secessão de regiões orientais2).

No plano cultural, dimensão decisiva para a avaliação dos níveis deexpectativa e da confiança depositadas no regime político e no país,indispensáveis, no limite, para a sua própria existência, a Rússia conheceria,ao longo da última década do século XX, dois momentos bem diferenciados:num primeiro, uma esperança desmedida em que o país encontraria, pelosimples acionar dos mecanismos de um mercado livre, entrelaçado agoracom as grandes potências do mundo capitalista, indices de prosperidadecomparáveis aos das sociedades mais ricas do planeta. Foi um tempo deplanos ultraliberais, oferecidos como poções mágicas, gerando euforia e umaatitude geral de subserviência aos modelos e receitas liberais que chamei deembasbacamento3. A Rússia e os russos, retomando os antigos debatesentre ocidentalistas e eslavófilos, e inclinando-se então claramente pelasuperioridade ocidental, assumiam-se como bárbaros diante da civilizaçãoocidental4.

Este ângulo de visão cedo decantou-se. Não haveria milagres, emboranão escasseassem na Rússia de então os conhecidos mercadores de ilusõesque costumam aparecer em situações críticas. Quando se aperceberam dacrítica situação em que se encontravam, frações importantes da sociedade

2 Cf. D. Aarão Reis, 1996.3 Cf. op. cit. na nota 1.4 Análises clássicas desta polêmica que, a rigor, remontam aos séculos XVII e XVIII, podem serencontradas em A. Herzen, 1974; F. Venturi,1972; e A. Walicki ,1979.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA RÚSSIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

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mergulharam em profunda depressão, suscitando uma imensa crise dereferências culturais. Uma débâcle. Um deslizar para a desordem e para ocaos que, em certo momento, pareceram realmente inexoráveis5.

Entretanto, na primeira década do novo século, a sociedade russa e seusatores políticos conseguiram construir um cenário radicalmente diferente,evidenciando, mais uma vez, as margens de liberdade das opções e açõeshumanas nas circunstâncias que são as suas.

É verdade que determinadas condições foram particularmente favoráveis,como, por exemplo, e em lugar de destaque, a alta permanente e espetaculardos preços internacionais do petróleo e do gás, principais produtos russosde exportação, beneficiados pela crescente demanda internacional,combinada com uma desenfreada especulação nas principais bolsas de valoresmundiais. Mas tais circunstâncias, por favoráveis que o fossem, e o foram,não bastariam, em si mesmas, para desenhar um quadro de recuperação e desuperação das características do decênio anterior.

Desempenharam papel relevante aí, sem dúvida, certas políticas que foramimplementadas, com firmeza por um novo governo, entronizado ainda noapagar das luzes do século XX, liderado por V. Putin, mais tarde confirmadono cargo de presidente em duas eleições diretas sucessivas.

Entre estas políticas, merecem ênfase uma nova abordagem das relaçõesentre poder central e poderes regionais e locais, com um notável recentramentodo poder político no âmbito do governo da Federação, sediado em Moscou.Enfraqueceram-se, em consequência, e no mesmo movimento, os podereslocais e regionais. Também foram atingidos os proprietários de grandesempresas privadas e estatais, verdadeiros potentados, como se barõesfossem, que haviam emergido no processo de desagregação da UniãoSoviética, assenhorando-se, através de processos obscuros, de fabulosasriquezas construídas em décadas pelo trabalho do conjunto da sociedade.Toda esta gente perdeu poder, quando não as próprias propriedades e mesmoa liberdade, acusados de desmandos e irregularidades de todo o tipo (evasãofiscal, fraudes diversas, etc.).

Com o Estado nacional fortalecido, numa conjuntura deprosperidade, estimulada pela referida alta das matérias-primas

5 Um dos mais expressivos índices, e dos mais aterradores, desta débâcle é a drástica redução daesperança de vida, que chegou a atingir 59 anos para os homens (73 para as mulheres), quase dezanos a menos em relação aos patamares alcançados no quadro da extinta União Soviética. Umdeclínio só imaginável em situações de catástrofes naturais ou guerras...que, como se sabe, nãoexistiram na Rússia de então.

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energéticas, foi possível ao governo central fazer vibrar novamente ascordas nacionalistas e patrióticas, profundamente enraizadas nastradições russas6. A reconstrução de São Petersburgo, os festejos dotricentenário da bela cidade, em 2003; as comemorações dos 60 anosdo fim da II Guerra Mundial, em 2005, reacionando-se a memória sobrea importância decisiva da Rússia e dos russos no esmagamento dosregimes nazi-fascistas; a destruição brutal dos movimentos de secessãona região do Cáucaso7; um papel afirmativo, ascendente da Rússia nasrelações internacionais, todas estas são referências para compreendera recuperação da auto-estima e do orgulho nacionais russos e, nasequência, o crescente prestígio e a popularidade de V. Putin, atestadosem múltiplas pesquisas de opinião pública e em sucessivas vitóriaseleitorais.

Um contraste: em duas décadas sucessivas, de um período dedesagregação, de ilusões perdidas, de desmoralização e desespero aum momento de afirmação, recoesionamento e prosperidade.

É este o quadro da evolução recente da Rússia. Nele inserem-se osdesafios políticos, internacionais, econômicos e culturais que passaremosagora a avaliar.

3. A formação de um novo regime político: a tandemocracia

Desde fins dos anos 1990, quando, depois de muitos zig-zagues ehesitações, V. Putin foi, afinal, designado como sucessor de B. Ielstin, aRússia, como já referido, passou por um processo crescente de afirmaçãodo poder central.

De certo modo, o reaparecimento no cenário político de um traço forte dahistória russa: o poder centralizado, encarnado na figura carismática de umlíder, ou de um chefe. Muitos não deixaram de ver no episódio a reconfirmaçãode um destino: à alma russa , para retomar um termo recorrente na historiografiado século XIX, mas não ausente, embora com outras roupagens, de textos

6 A história russa é marcada, periodicamente, pelo reformismo estatal, empreendido pelo alto,uma tradição desde Pedro, o Grande, em fins do século XVII, inícios do século XVIII. Cf. D.Miliutin, 1950 e 1919; e N. Miliutin, 1863, cujas trajetórias foram extensamente avaliadas emW.Bruce Lincoln, 1977,1982 e 1990; M. Raeff, 1969; e em D. Aarão Reis, 2006. A tradiçãovoltaria a ser acionada por ocasião da perestroika, mas aí, sem êxito. Cf. A. Aganbeguian, 1989;M. Gorbatchev, 1987 e T. Zaslavskaya, 1989.7 Para uma visão critica, cf. Y. Yuzik, 2006.

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atuais, aparentemente mais sofisticados, corresponderia uma determinada formade regime político, centralizado, enfeixado o poder nas mãos de chefe todo-poderoso, fosse ele um tsar, ou um secretário-geral do partido comunista8.

Desta construção genérica e atemporal, muitos não hesitam em chegar àelaboração da ideia de que V. Putin não passaria de um novo Tsar, e de quepredominam agora, e como sempre, na Rússia, e sem apelação, tendênciasditatoriais inexoráveis. Retomada de forma recorrente, a formulação adquireforos de senso comum, o que é quase inevitável quando se está diante dareiteração excessiva de uma mesma ideia.

No entanto, a avaliação objetiva das evidências históricas e dascaracterísticas da situação presente aconselham propósitos mais nuançados.

Primo, a Rússia e os russos, assim como qualquer outra nação e povo,não têm uma única alma, nem um destino pré-determinado. Um truísmo,mas é necessário começar por ele, tendo-se em vista a força de determinadasideias consagradas pelo senso comum. Trata-se de uma sociedade plural,atravessada por tendências diferenciadas, e com um passado também marcadopor alternativas diversas.

As tradições centralistas e autoritárias são inegáveis, da autocracia tsaristaà ditadura revolucionária, embora entre estas formas de poder existamsubstanciais distinções. Não é o caso de analisá-las neste momento, masbastaria assinalar quatro aspectos relevantes: o tsarismo era de caráter divino,autocrático, apoiado na nobreza, e radicalmente excludente9. As ditadurassoviéticas eram laicas, republicanas, apoiadas em amplas frações do povo,portanto, plebeias, e participacionistas10.

Por outro lado, é preciso não esquecer que, ao longo de sua trajetóriahistórica, em muitos momentos, a sociedade russa foi capaz de construirexperiências e organizações democráticas, além de projetos reformistas

8 Para a historiografia do século XIX, cf. a obra clássica de A. Leroy-Beaulieu, 1990 (reediçãoda obra original, de 1898). A historiografia liberal anglo-saxônica retoma frequentemente seusângulos de avaliação, embora não necessariamente com os mesmos termos: cf. R. Aron, 1965,L.Schapiro, 1967 e M. Malia, 1961. Para a história da tradição centralista russa, cf. nota 6,acima. Para uma avaliação mais nuançada das tradições centralistas russas, cf. N. Riazanovsky,1993; M. Lewin, 1988, 1995 e 2005.9 A própria nobreza, como estrato ou classe social, era frequentemente excluída de cruciaisdecisões políticas. Depois da abolição da servidão, em 1861, sua importância, social e política,declinaria sem cessar ao longo da segunda metade do século XIX. Cf. D. Aarão Reis, 2006 e M.Raeff, 1982.10 Para o caráter plebeu e o participacionismo popular na construção das ditaduras soviéticas,também pluralizadas, porque diversas, cf. D. Aarão Reis, 2007 e 2008; M. Ferro, 1980; K.Maidanik, 1998; e M. Lewin, 1985 e 2005.

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igualmente animados por propósitos e referências democráticas11. Se nãoforam cabalmente vitoriosos, nem por isso perdem expressividade, inclusiveporque deixaram marcas sensíveis, incorporando-se às memórias e às culturaspoliticas existentes na sociedade.

Secundo, desde a refundação da Rússia, em começos dos anos 1990,até o momento atual, o processo político tem sido marcado por eleiçõesregulares, das quais participam diversos partidos, dispondo de meios paraapresentar candidatos e divulgar ideias e programas. Além disso,registram-se importantes avanços na afirmação de um Judiciárioindependente. A existência de restrições de ordem diversa à livreexpressão do pensamento e de manifestações públicas, a forçapreponderante do Estado no controle dos meios de comunicação, oemprego de métodos violentos, são questões relevantes que evidenciamque ainda há muito a fazer para que se tenha na Rússia um regimedemocrático aperfeiçoado. Mas não que inexista ali um regimedemocrático em construção12.

É de se assinalar, mais uma vez, que Putin e Medvedev, atuais primeiro-ministros e presidente do país, foram eleitos por amplas maiorias e quepesquisas de opinião pública livremente realizadas atestam o prestígio e apopularidade dos atuais governantes e dos partidos que os apoiam e ossustentam.

É com estas referências em mente que se pode analisar com objetividadea construção da chamada tandemocracia na Rússia atual.

O regime, instituído com amplo apoio político, referendado em eleições,tem um caráter formalmente bicéfalo, distribuindo-se o poder entre as figurasdo presidente (D. Medvedev) e do primeiro-ministro (V. Putin), avantajando-se as atribuições e prerrogativas do segundo, embora sem anular a importânciado primeiro, cujas funções não são meramente decorativas, fazendo lembrar,de modo invertido, o experimento da V República gaullista, um regime

11 Cf. K. Maidanik, op. cit.; M. Lewin, 1988 e 2005; O. Anweiller, 1972 e P.Avrich, 1972.12 Nos anos 1950 do século passado, não era muito comum o questionamento do caráterdemocrático do regime político estadonidense, embora os negros, maciçamente, continuassempoliticamente excluídos e civilmente discriminados em grande parte dos Estados do Sul do pais.Também a existência de regimes fortes e centralistas, como a França da V República, a permanênciaprolongada de determinados governantes no poder político (várias experiências européias),usando e abusando do controle de meios de comunicação, sem falar no uso do poder econômico,ou da tortura como política de Estado (Inglaterra e Alemanha/RFA no combate ao chamadoterrorismo revolucionário nos anos 60 e 70), raramente conduziram ao questionamento ou ànegação do caráter democrático destas experiências.

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introduzido através de um golpe de estado, em 1958, mas depois ratificadodemocraticamente pela sociedade francesa13.

Como ocorreu no caso francês, a fórmula encerra potenciais contradições,mesmo quando reúne associados ou correligionários de longa data, comocostuma ser o caso, e o é, na Rússia de hoje, ou mesmo quando reúnelideranças de estaturas, experiências e prestígio diferenciados (ninguém discuteainda a primazia de V. Putin, garantida por lei, mas fundamentadapoliticamente).

Como se sabe, as condições políticas de quaisquer alianças sãoessencialmente mutantes, e metamorfoses, às vezes imprevistas, porqueimprováveis, podem ocorrer, principalmente em conjunturas marcadas porextraordinárias turbulências, como as que se avizinham em virtude das múltiplascrises que ponteiam no horizonte desde o ano passado.

São estes múltiplos desafios que passaremos agora a avaliar.

4. Os desafios políticos da tandemocracia

As eleições gerais de março de 2008 confirmaram o prestígio de V.Putin, do partido que o sustenta, Rússia Unida, e das políticas associadas aolíder político russo14. Uma vitória consagradora.

Com efeito, parece muito claro que amplos segmentos da sociedadeatribuem a Putin a responsabilidade pelo conjunto de políticas que,beneficiando-se de circunstâncias favoráveis, foram implementadas nos últimosdez anos, permitindo à Rússia uma notável recuperação econômica, aconsolidação de uma situação de paz interna, uma nova reinserção no cenáriodas relações internacionais e, muito mais do que isto, um processo dereconquista da auto-estima, profundamente abalada, ou mesmo perdida, emmeados da última década do século passado. Tais referências, sem dúvida,tendem a configurar um quadro de estabilidade.

13 No caso francês, embora a gestão dos negócios correntes estivesse concentrada nas mãos doprimeiro-ministro, a figura do presidente mantinha marcada preponderância, dispondo daprerrogativa de definir as grandes linhas das políticas a serem implementadas. Para a apreciaçãodo regime bicéfalo russo, cf. Russian Analytical Digest, nº 49: How Russia works: an assessmentof the Medvedev-Putin System.14 V. Putin, apesar de receber o claro apoio do referido Partido (que alguns preferem caracterizarcomo uma frente política), e de articular politicamente suas relações com o mesmo, inclusiveparticipando como liderança, como o fez por ocasião da última campanha eleitoral, mantém-seformalmente distante do dia-a-dia do partido, numa perspectiva de se preservar dos eventuaisdesgastes inerentes às funções e atividades político-partidárias.

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Entretanto, para além dos riscos embutidos na crise econômica que orase desdobra em todo o mundo, e na Rússia em particular, que serão analisadosem momento próprio, há sinais de tensões, ainda pouco explicitadas, mas jávisíveis, no interior do regime e do duo responsável pela condução dosassuntos políticos.

V. Putin ainda é um homem consensualmente vinculado ao antigo regime,tendo tido o essencial de sua formação profissional e política num dos esteiosprincipais do defunto sistema soviético, os serviços de informação , o atualFSB, portanto, um homem do aparelho de segurança, embebido em culturapolítica específica, conformando maneiras próprias de conceber o mundo,seus problemas e soluções. Desta cultura não está ausente o emprego damaneira forte, o recurso à truculência e até mesmo, se for o caso, aoassassinato político, embora, até o momento, nada se tenha podido comprovarquanto ao envolvimento, direto ou indireto, do atual primeiro-ministro noscrimes políticos ocorridos nos últimos anos, e que tanto traumatizaram aopinião progressista na Rússia e no mundo15.

Já o presidente recentemente eleito, D. Medvedev, tem formação jurídica,nada valorizada na antiga União Soviética. Ele aparece como filho legítimodos novos tempos, pós-desagregação da URSS. Ao analisar problemas esoluções é provável que formule propostas diferentes, ou, no mínimo, comênfases diferenciadas daquelas imaginadas por um homem como Putin.Distintas formações, diferentes estruturas originais de sociabilidade, gerando,sem dúvida, diferentes sensibilidades.

Não deixa de ser sintomático o fato que, desde fins do ano passado, ecom ênfase crescente, o presidente tenha vindo a público para exigir dasinstituições judiciárias maior empenho, e maior rigor, na apuração, julgamentoe condenação de crimes praticados contra a ordem legal. Na sua linha demira, não apenas o chamado nihilismo legal, o costume bem russo de driblaras determinações legais, consideradas absurdas e irracionais16, mas também

15 Entre outros, os assassinatos de Alexander Litvinenko e da jornalista Anna Politkovskaia,crítica acerba do regime, tendo sido este, até hoje, incapaz de identificar e condenar os mandantesou os responsáveis diretos pelos crimes. Para as criticas sem retoques, e também sem nuanças,dirigidas a Putin e ao governo russo pela jornalista assassinada, cf. A. Politkovskaia, 2003 e2004.16 Entre muitos e muitos outros, é o caso, por exemplo, da registratsia, uma herança soviéticanão abolida, um registro obrigatório dos cidadãos nos postos policiais próximos do lugar ondevivem e que se converte numa fonte permanente de aborrecimentos na tradição típica dasburocracias corruptas de criar dificuldades para vender facilidades.

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a tendência em politizar os procedimentos e as instituições jurídicas, sejapara condenar, seja para fechar os olhos, ou absolver17.

Apesar destas diferenças, digamos, de enfoque, ou de concepção, opresidente e o primeiro-ministro podem se complementar, sem dúvida. Têmse complementado, é fato. O presidente fez toda a sua carreira política sobos auspícios de Putin, membro que foi de seu entourage em São Petersburgo.Ou seja, o presidente, em larga medida, é criatura do primeiro-ministro. Masa história de qualquer sociedade, e a história russa em particular, conheceinúmeros episódios de rebeldia de criaturas em relação a criadores. Paraficarmos em dois grandes exemplos russos, historicamente emblemáticos:Stalin-criatura vencendo Lenin-criador que, num último combate, tentaria,em vão, deslocar o secretário-geral do poder18; N. Khruchtchev versusStalin, o primeiro, um homem de Stalin, destruindo impiedosamente, em seufamoso informe, de fevereiro de 1956, o mito do guia genial dos povos19.

Por outro lado, convém não esquecer que Medvedev foi eleito presidenteda Federação Russa com mais de 70% dos votos, diretamente atribuídos asua pessoa, o que lhe confere uma legitimidade bastante substancial, atestadapor interessantes pesquisas recentes de opinião pública. Diante da questãode quem, no tandem, exercia efetivamente o poder político, 48% dosentrevistados responderam que o viam equânimemente compartilhado entreMedvedev e Putin; 28% apostaram no controle de Putin e uma proporçãonão negligenciável, de 16%, atribuíram a preponderância ao presidente. Os8% restantes consideraram que era difícil ter uma opinião a respeito o que,de certo modo, os aproximaria do primeiro grupo. Ou seja, somando asrespostas do primeiro ao último grupo, bem mais da metade dos entrevistados,cerca de 56% , não distingue quem efetivamente tem preponderância no

17 Em registros diferentes, assinalem-se, de um lado, a absolvição dos acusados do assassinatode Anna Politkovskaia, por falta de provas e/ou inconsistência das acusações, em fevereiroúltimo. De outro lado, o rumoroso caso envolvendo o bilionário M. Khodorkovsky: preso em2003, e condenado por crimes fiscais, o rigor da lei parece tê-lo alcançado menos pelas ilegalidadesque cometeu e mais pela imprudência de ter se lançado em ambiciosas manobras políticasvisando questionar ou enfraquecer a liderança política de V. Putin. Nos dois casos, dois pesose duas medidas, gerando a impressão de que a Lei só se aplica contra os adversários ou osinimigos do regime.18 O conflito seria retratado em obra conhecida de M. Lewin. Beneficiando-se do acesso aarquivos recentemente abertos, Lewin confirmou e enriqueceu avaliações anteriores. Cf. M.Lewin, 2005, especialmente o capítulo 2: “Autonomization versus federation” (1922-1923),pp 19-31.19 Cf. N. Khruchtchev, 1991.

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exercício do poder. Por outro lado, apenas menos de um terço atribui a Putina condução efetiva dos negócios públicos, o que não deixa de ser bastantesurpreendente, tendo em vista o senso comum de um domínio incontrastávelde Putin. Finalmente, cabe reiterar que parcela menor, mas importante (16%)atribui a Medvedev a condição de cabeça do tandem20.

Em suma, resultados nem um pouco desfavoráveis ao jovem presidente,visto correntemente, por muitos analistas, como uma mera criatura de Putin.E que apontam, ao contrário deste senso comum, para a hipótese, nãoainda provável, mas não também descartável, de eventuais disputas(conflitos?) entre os dois homens que lideram atualmente a Federação Russa.

5. A Federação Russa e o cenário das relações internacionais

A crise e a guerra entre a Rússia e a Geórgia, em agosto de 2008,recolocaram em outros termos a inserção da Rússia no cenário internacional.Outros dois conflitos tinham já ocorrido entre os dois estados, em 1991/1992 e em agosto de 2004.

Desta vez, entretanto, mudou a qualidade da intervenção russa, nãoapenas fazendo retroceder a intervenção da Geórgia na Ossétia no Sul, comotambém, e principalmente, avançando tropas no interior do país vizinho e, nasequência, implementando, de fato, pela força militar, e de direito, através detratados já assinados (embora não reconhecidos pela comunidadesinternacional), o desmembramento da Geórgia, com o reconhecimento daautonomia da Abkhazia e da Ossétia do Sul, garantidas agora, e desde o anopassado, por exércitos russos que não dão a menor impressão de estarplanejando próximas retiradas21.

A aventura político-militar do presidente georgiano, estimulada por açãoou omissão do governo estadonidense de G. Bush, resultou deste modo numimenso desastre para o Estado georgiano, oferecendo, no mesmo movimento,excelentes pretextos para que se tornassem visíveis determinadas evoluçõesjá enunciadas mas ainda não de todo explicitadas.

Elas poderiam ser resumidas numa tripla asserção: primo, o governorusso não mais permanecerá inativo, ou passivo, frente a evoluções

20 Cf., para os resultados completos da pesquisa e comentários a respeito, Russian AnalyticalDigestNo. 50: Social Movements and the State in Russia.21 O que se anuncia é que Moscou se apresta a estabelecer bases militares na Abkhazia e naOssétia do Sul, uma forma de consolidar situações que ainda são, formalmente, instáveis.

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significativas em sua periferia próxima (near abroad), ao contrário,reivindicará doravante um papel ativo na determinação destas evoluções. Emoutras palavras, não aceitará mais alterações do statu quo em sua periferiapróxima sem seu expresso consentimento. Secundo, se for o caso, a Rússiaestá disposta a empregar a força militar para deter evoluções consideradasindesejáveis. Tertio, e finalmente, sempre em relação ao near abroad, aRússia, segundo as circunstâncias, não hesitará ela mesma em efetuar, manumilitari, se for o caso, mudanças no statu quo se estas forem consideradasindispensáveis a sua segurança.

Para os tantos que se recusavam a avaliar adequadamente as mudançasem curso na inserção da Rússia no cenário internacional, e, em particular, nasua periferia próxima, foi uma surpresa. Na tentativa de controlar a situação,e revertê-la, chegaram a agitar o fantasma de uma guerra fria rediviva. Amanobra, porém, não convenceu.

Por várias razões.De um lado, ficou muito patente a irresponsabilidade política do presidente

georgiano, massacrando as populações da Ossétia do Sul, perdendo, comsua ofensiva aventureira, qualquer credibilidade. De outro lado, e esta é umareferência bastante importante, pelo fato de que os demais estados do nearabroad não se mexeram ao longo do conflito, permanecendo mudos ousinalizando apoio, discretamente. Esta foi a atitute dos governos doCazaquistão, da Belarus e da Armênia. E também dos da Ucrânia, Azerbaijãoe Moldávia, acompanhados por quase todos os Estados com algum peso nacena internacional. Em terceiro lugar, é preciso ainda enfatizar que a guerracontra a Geórgia tornou-se imediatamente popular, recebendo amplo apoioda opinião pública russa22. Na medida em que a guerra foi curta e vitoriosa,consolidou-se, como acontece nestes casos, a adesão das maiorias.

Mesmo entre as potências ocidentais, e a União Europeia, em particular,para além de declarações retóricas de praxe, nenhum gesto. Finalmente, opróprio governo Bush, apanhado na última quadra do seu mandato, e emqueda livre nos indices de popularidade e prestígio, não teve outra alternativasenão reconhecer o fait accompli.

22 Pesquisas de opinião pública evidenciaram que 75% dos entrevistados atribuíam o início doconflito ao governo georgiano e aos EUA. Também amplas maiorias condenaram as políticasdiscriminatórias da Geórgia em relação aos abkhazes e aos ossetas e manifestaram temor de queuma eventual conciliação da Russia frente à Geórgia poderia conduzir a um aumento indesejávelda influência estadonidense nos estados fronteiriços.

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Após a posse do novo presidente dos EUA, Barak Obama, confirmandoestas evoluções, retomaram-se as relações e conversações com a Rússia,sem que exigências sobre a Geórgia estejam aparecendo como preliminaresà construção de uma amplo entendimento.

O que o governo russo deseja, e o tem explicitado com muita clareza, é,em primeiro lugar, ter reconhecido seu papel especial nas relações com aperiferia próxima. Em segundo lugar, a revogação, ou, no mínimo, a atenuaçãoda política expansionista da OTAN que, no apagar das luzes do governoBush, além de continuar reiterando a decisão de instalar escudos anti-mísseisna República Tcheca e na Polônia (e no próprio Azerbaijão), tendia aconsiderar com certa prioridade a inclusão da Ucrânia e da própria Geórgiaem sua área de proteção, apesar de ambos os movimentos seremdenunciados como inaceitáveis provocações pela Rússia.

Os sucessos russos na guerra com a Geórgia estão sendo reforçadostambém por um quadro geral de condições favoráveis às intenções e propósitosdo governo de V. Putin.

As reservas russas, que, em meados de 2008, chegavam a mais de 500bilhões de dólares23 e mais a situação privilegiada de grande produtor depetróleo e gás, conferem ao país condições de provedor dos vizinhos carentesde divisas e de energia. O processo de integração com a Belarus, medidadopor vultosos empréstimos (cerca de 2 bilhões de dólares) e mais fornecimentode energia a preços baixos, segue o seu curso. A registrar igualmente aaproximação com a Khirguizia, explicitada em dois episódios recentes, ambosocorridos em fevereiro passado: a visita a Moscou do primeiro ministro,Kurmanbek Bakiev, resultando em perdão de dívidas anteriores e concessãode novos empréstimos e investimentos no valor total de mais 2 bilhões dedólares e a anulação do acordo, firmado em 2001, que concedia a base deManas ao trânsito de tropas estadonidenses em direção ao Afganistão24.Mesmo a Ucrânia, com quem a Rússia teve e tem problemas em várias áreas(energia, Crimeia, frota russa do Mar Negro, etc.), empreende negociaçõescom vistas à obtenção de um crédito de 5 bilhões de dólares. A crise econômicana Ucrânia assume proporções de catástrofe: de setembro de 2008 para cá,

23 Dados oficiais registraram um pico de 591 bilhões de dólares em 31 de julho de 2008.24 A visita do presidente da Khirguizia ocorreu no início de fevereiro de 2009. O Parlamentoaprovou a anulação do acordo em 19 do mesmo mês, pela expressiva maioria de 78 dos 81deputados presentes. As tropas estadonidenses presentes em Manas já receberam um avisoprévio de 6 meses para partir.

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houve uma queda da produção industrial de 34% e uma desvalorização damoeda local, a hrivna, de 40%. Além disso, a companhia nacional de gásanuncia dificuldades para pagar as contas da energia importada da Rússia.No horizonte, a sombra de um novo conflito…ou a admissão de concessõessubstanciais…

Da capacidade que o governo russo demonstrar para gerenciarconstrutivamente estes problemas, depende, em larga medida, a eficácia desua política intervencionista no near abroad e mesmo seu lugar da cenadas relações internacionais.

Quanto ao novo governo estadonidense, ao emitir recentes sinais deque suas prioridades são a redução dos estoques nucleares e a guerra contraos talibãs e o Al-Quaeda, parece abrir portas para uma ampla negociaçãoem que a Rússia surja como parceiro confiável, o que é, acima de tudo, e emresumo, o que reivindica o governo de V. Putin e de D. Medvedev.

6. Os desafios da crise econômica global

A crise global, já anunciada por críticos mais argutos, mas sempresubestimada pelo senso comum e pelos dirigentes políticos, explodiu afinal apartir de meados de 2008. Suas dimensões e consequências ainda sãolargamente ignoradas, embora ninguém mais negue seu caráter estrutural esuas profundas implicações em todos os níveis da vida social.

O processo, em curso, e ele ainda se desdobrará por muitos anos,evidencia fatos alarmantes, e cada vez mais inquietantes. Basta comparardiagnósticos e previsões formulados ao longo dos meses. Se o presente artigofosse encerrado em dezembro último, é certo que estaria já completamenteultrapassado. Terminado agora, em março de 2009, é mais do que provávelque os dados com que lida, embora recentes, estejam também defasadosnos próximos meses25.

É dizer da dimensão internacional, global, e da velocidade e daprofundidade da atual crise.

No caso da Rússia, aos primeiros anúncios da atual crise, como seria dese esperar, retornou o espectro dos graves problemas ocorridos em 1998.

25 Pertencem ao vice-governador do Banco da Inglaterra, John Gieve, as seguintes palavras,pronunciadas nos começos de março de 2009: “a crise ainda não acabou, não sabemos quãoprofunda e prolongada será esta recessão, e quanto tempo precisarão os mercados financeirospara se recuperarem”. É realmente notável a profunda ignorância da situação e de suas tendênciasque demonstram os principais dirigentes do mundo.

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As falências em cadeia, a moratória da dívida, a queda vertiginosa do rublo(cerca de 75%), o colapso dos bancos privados, a perda colossal daspoupanças, a derrubada dos preços do petróleo, marcados por persistentedeclínio entre 1986 e 1998.

As condições da Rússia para enfrentar o impacto da crise são, entretanto,sensivelmente diferentes: entre outras, o montante expressivo de reservasacumuladas, a relação entre os compromissos a curto prazo e o total destasúltimas26, a criação dos fundos soberanos, a capacidade de intervenção eregulamentação adquirida pelo Estado central no curso do último decênio.

O governo tratou logo de sublinhar estas referências, com o cuidado decontrolar ou atenuar eventuais ondas de pânico.

E tomou uma série de medidas anti-recessivas, num padrão que se vaitornando típico em outras regiões do mundo: injeções maciças de recursospara manter ou desenvolver programas sociais, ajuda financeira ao sistemabancário, empréstimos a grandes empresas consideradas estratégicas,desvalorização do rublo, auxílios emergenciais a trabalhadores que perderamempregos, admissão de déficits orçamentários relativamente elevados 27.

Serão estas medidas, porém, suficientes para enfrentar os efeitos da crise?A Rússia, sem dúvida, está muito melhor preparada para enfrentá-los do

que em 1998. A questão é que a crise atual é, como se disse, muito maisprofunda e estrutural do que em fins do século passado.

Convém recordar, embora sejam conhecidos, alguns dados básicos.O barril de petróleo, com peso decisivo na estrutura do comércio exterior

da Rússia28, chegou a ser cotado a 150 dólares em julho do ano passado,despencou para 65 dólares em outubro, menos de 50 dólares, em novembro,quase 40 dólares em fevereiro de 2009, já se cogitando em certas áreascotações ainda mais baixas…

26 Os compromissos a curto prazo chegam a 28% das reservas acumuladas, uma proporçãoconsiderada razoável e sob controle.27 O governo pretende irrigar a economia com 2 trilhões de rublos (no câmbio atual, um dólar/25rublos), ou seja, cerca de 55 bilhões de dólares. O rublo foi desvalorizado, de setembro de 2008a março de 2009 em cerca de 30%, alavancando ganhos de 800 bilhões de rublos (cerca de 22bilhões de dólares), segundo estimativas do ministro da Fazenda, A. Kudrin. Para a indústria dearmamentos foram anunciados empréstimos no valor de 56 bilhões de rublos para ajudar 68empresas em dificuldades. Segundo estimativas oficiais, cerca de 30% das empresas do setorapresentavam sinais de falência. O déficit orçamentário evidentemente vai crescer, tendo sidorevisto para um patamar de 8% em 2009.28 O petróleo é responsável por 65% das exportações e por 37% das rendas orçamentárias(dados oficiais referentes, respectivamente, a 2006 e a 2005).

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Como grande parte destas exportações direciona-se aos estados da UniãoEuropeia e à Europa central, que estão entrando em processos de recessão,é de se prever uma queda brusca também dos volumes brutos exportados29.

Com a diminuição brusca das rendas estatais, começaram os cortes: oorçamento da defesa vai ser podado em 15%, segundo anunciou em começosde março o presidente do Comitê de Defesa da Duma, M. Babich Said,ressaltando que é bastante possível que novos cortes sejam anunciados aolongo do ano. Já a estatal gigante do petróleo, a Gazprom, reduziu osinvestimentos programados em 200 bilhões de rublos (cerca de 5,6 bilhõesde dólares)30.

A previsão do governo, também comunicada em começos do mesmomês, é de um crescimento em 2009 de 0%, abrindo-se a hipótese de umcrescimento negativo de menos 0,2%, com queda estimada de 30% nasreceitas orçamentárias. Outras fontes, não oficiais, já estimam um crescimentonegativo da ordem de 3%31. O Ministro das Finanças, A. Kudrin afirmouque, mesmo o barril se mantendo numa faixa em torno de 55 dólares, oproduto global cairá nos próximos três anos32. Em janeiro de 2009, umaadvertência: em comparação com o mesmo mês do ano anterior, registrou-se um recuo de 8,8%. As autoridades alegaram que se tratava de um resultadoatípico, mas o dado gerou alarme e inquietação, como não poderia deixar deser. No mesmo mês deixaram a Rússia, repatriados, cerca de 40 bilhões de

29 A Comissão Européia anunciou em fins de fevereiro um crescimento negativo do produtoglobal de 1,4% em média para os 27 países da União Europeia, e de menos 0,6% para a zonaeuro. Na semana seguinte, no entanto, o presidente do FMI, Dominique Strauss-Khan admitiaque a instituição que preside já trabalhava com a hipótese do crescimento zero para a zona euroem 2009.30 Para uma análise recente do gigante estatal russo do petróleo, cf. V. Paniouchkine e M. Zygar,2008.31 Estimativas da economista chefe do Banco Alfa, Natalya Orlova, publicadas também emmarço de 2009, informando que lida com a hipótese do preço do barril de petróleo chegar a 25dólares...Outras previsões, mais otimistas,e aparentemente mais realistas, do Instituto Francêsdo Petróleo, sustentam que a cotação do barril tenderá a estacionar a um preço médio entre 30e 40 dólares, não ultrapassando em nenhuma hipótese a marca dos 60 dólares, tudo dependendo,evidentemente, da amplitude da crise, dos conflitos no Oriente Médio, e das decisões da OPEP.Já o Center for Global Energie Studies (CGES) aposta numa cotação média no ano em torno de45 dólares, mas ressalvando igualmente que a situação geral não permite formular garantia deespécie alguma...Interessante observar que o orçamento da Federação Russa para 2009, formuladoem novembro de 2008, previa uma cotação média para este ano de...95 dólares o barril.32 Há controvérsias neste particular. Economistas do próprio governo sustentam que seriapossível manter índices positivos de crescimento econômico com uma cotação média de 41dólares...

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rublos, enquanto as principais ações cotadas na Bolsa de Moscoudespencaram, desde o início da crise, em 80% do seu valor.

O governo procura acalmar as gentes garantindo que os investimentossociais não sofrerão cortes. As brechas seriam preenchidas pelo acionar dosFundos Soberanos, o Fundo de Reserva e o Fundo para o Bem-Estar Social,que disporiam de reservas de 2,7 trilhões de rublos (75 bilhões de dólares) ede 225 bilhões de rublos (cerca de 7 bilhões de dólares). Mas tais fundos,embora relativamente poderosos, não seriam ilimitados. Segundo argumentosdo Ministério das Finanças, um uso imoderado dos Fundos poderia levar àsua exaustão num prazo de três anos, obrigando a Rússia a voltar a recorrerao mercado e às agências internacionais.

O Departamento Federal do Trabalho e do Emprego registrou aumentosubstancial da taxa de desemprego, embora ela ainda se situe, pelos dadosoficiais, num patamar insignificante (0,57% da população economicamenteativa). Mas ninguém ignora os sinais preocupantes que vêm sendo emitidospelo setor de construção civil, grande empregador e notoriamente abaladopela crise. Numa política emergencial de auxílio, as autoridades federaisestabeleceram um auxílio-desemprego de 4.900 rublos mensais, incentivandoas autoridades locais a complementarem e a reforçarem a soma. A prefeiturade Moscou, por exemplo, criou um adicional mensal de 1.700 rublos. Taissomas, porém, não chegam a ser alentadoras, considerando-se que o saláriomédio é de cerca de 40 mil rublos...

As pequenas empresas também começam a estrilar. Embora contribuamcom quase 50% das vendas e do emprego, observam, com razão, que asoperações de salvamento do Estado privilegiam apenas os grandes bancos eempresas, estatais e privadas33. O governo respondeu com medidas paraincentivar desempregados a se transformarem em pequenos empresários,abrindo-se uma linha de crédito de até 60 mil rublos para a criação de micro-empresas, uma gota d’água no oceano....

Mas o quadro se torna decididamente sombrio quando se observam asevoluções na Europa central. Desde o início da crise, a cada mês, pioram osíndices.

As economias dos países bálticos, que haviam passado por umcrescimento considerado altamente satisfatório nos últimos anos, estão em

33 Um estudo oficial revelou que 80% das solicitações de financiamento das pequenas empresasjunto aos bancos são simplesmente recusadas.

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queda livre: as previsões para 2009 apontam crescimento negativo para aEstônia (-10%), a Letônia (-12%) e a Lituânia (-5,5%). A Ucrânia não terásorte melhor, com previsão de menos 10%. Também não escapam deprevisões pessimistas os três países considerados mais estáveis e promissoresda área: Polônia, República Tcheca e Hungria com estimativas de crescimentopara 2009 de de 0%, - 2% e – 6%, respectivamente34.

É visível o crescimento da insatisfação social e a incapacidade de oferecerperspectivas confiáveis já levou à queda de três governos na área: os daLetônia, da Hungria e da República Tcheca.

Observando-se a situação da Europa central, e embora as circunstânciassejam diferentes, é impossível não pensar nos últimos anos de 1980, quandoum outro tipo de crise na área, com seus efeitos de ricochete, conduziu àdecomposição da outrora todo-poderosa União Soviética...35

7. A Rússia e os seus desafios: perspectivas

A crise, como já se disse, é global. Em meio às previsões maisdesencontradas, até mesmo uma aposta moderada, como a apresentada peloFMI na última reunião ministerial do G-20, realizada na Inglaterra, não deixade ser inquietante: queda do PIB mundial de 0,5% em 2009, caindo osprodutos brutos dos EUA, área euro e Japão em 2,6%, 3,2% e 5,8%,respectivamente36.

A Organização Internacional do Trabalho, a OIT, prevê cerca de 50milhões de desempregados no fim do ano em curso. Nos EUA já se encontramdesempregados mais de 3,5 milhões de pessoas.

Em face da crise, impõe-se a perspectiva de “redesenhar os sistemasfinanceiro e bancário e a governança das empresas”, como admitiu na últimaedição do Fórum de Davos o insuspeito Klaus Schwab, fundador do evento.

34 Todas as moedas nacionais na área registraram importantes desvalorizações, o que não bastoupara tirar as economias do marasmo e da recessão. O zloty polonês perdeu mais de metade dovalor, caindo igualmente o valor do florim (Hungria), do leu (Romênia) e da coroa (RepúblicaTcheca).35 Na época, os efeitos desagregadores da crise na Europa Central limitaram-se à extinta URSS,em virtude das evidentes conexões então existentes entre as regiões. Agora, implicada tambémse encontra a União Europeia: basta lembrar que 84% dos investimentos estrangeiros na áreavinculam-se a bancos seis países europeus: Áustria, Itália, França, Bélgica, Alemanha e Suécia.Por outro lado, 1/3 das exportações da UE têm como destino os países da Europa central.36 Cf. Paulo Nogueira Batista Jr.: O lado positivo da crise. Globo, 21 de março de 2009, p. 7. Osreferidos dados são moderados considerando-se a cacofonia das previsões sombrias em curso.

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Do que se trata, a rigor, é muito mais do que “redesenhar sistemas”, masde reformular em profundidade os dispositivos que regem os fluxos de capitaisno mundo, de pensar numa regulamentação de novo tipo dos chamados“paraísos fiscais” e de outras instituições que floresceram no ambiente deletério,e totalmente descontrolado, do mercado global (centros offshore, hedgefunds, etc.). Torna-se urgente conceber dispositivos de controleinternacionalmente garantidos e, talvez, uma nova moeda internacional dereserva que retire o mundo da posição de refém em que se encontra face àsdecisões, frequentemente arbitrárias e unilaterias, dos governos dos EUA(proposta da China e do comitê criado pela ONU)37.

Em alternativa à desmedida confiança atribuída pelos teóricos liberais aomercado, até há pouco, e idealmente, considerado como soberano e auto-regulamentado, cresce em toda a parte a expectativa de políticasintervencionistas, renascidas agora das cinzas a que tinham sido destinadaspelos adoradores do mercado.

A Rússia e seus governantes, empenhados no último decênio emreconstruir um Estado nacional forte, capaz de intervir na, e controlar e planejara, economia, encontram-se reforçados em suas opções.

A opinião pública russa parece aprovar o caminho percorrido. Em pesquisarealizada sobre o melhor regime, o que seria mais capaz de enfrentar osdesafios das circunstâncias atuais, apenas 20% manifestaram-se pelademocracia ocidental, cerca de 65% inclinando-se pelas tradições soviéticasou pelo regime atual, sendo o sistema de economia estatal e planejadapreferido por 55% dos entrevistados38.

Talvez como conseqüência disso, e apesar dos efeitos catastróficos dacrise, ou por causa deles, no referido Fórum de Davos, apareceram comoduas grandes estrelas, os governantes russo e chinês, V. Putin e Wen Jiabao,líderes políticos identificados com propostas nacional-estatistas de intervençãoe regulamentação.

Há diversas maneiras, entretanto, de afirmar políticas de controle eregulamentação. Enfatizar unilateralmente o Estado, como na tradição corrente,ou associar a sociedade ao Estado, num quadro de revigoramente e

37 Cf. Joseph Stiglitz: Falhas na ressurreição. Globo, 20 de março de 2009, p. 7.38 Tais pesquisas, realizadas desde os anos 1990, assinalam um declínio do prestígio da democraciaocidental (de 30% para 20%) e também do regime soviético (queda de 40/50% para 35%),registrando-se uma ascensão do que os russos chama de regime atual: de 10% para cerca de 30%.Cf. Russian Analytical Digest, nº.

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desenvolvimento de organizações autônomas, capazes de supervisionar econtrolar o próprio Estado.

A Rússia e os seus desafios.Que escolhas farão seus governantes face aos diferentes modos de

enfrentar a crise? Deixando predominar os demônios do protecionismo, deum patriotismo exacerbado, do exclusivismo nacionalista? Ou articulando-seno plano internacional de modo a construir soluções coletivas, que beneficiema todos os envolvidos e atingidos pelas ondas destrutivas que desabarãosobre o mundo no futuro próximo?

A Rússia, assim como os demais grandes Estados do mundo, não têmcaminhos pré-determinados, nem estão condenados pela História a escolherseus caminhos. Haverão de escolher, exercitando suas margens de liberdadee de opção. E de suas escolhas dependerá o futuro da humanidade.

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China, Índia e Japão no mundo que vem aí

Amaury Porto de Oliveira

Para o interesse nacional dos EUA – acentuou James P. Pinkerton emartigo na revista “The American Conservative” – “a melhor Ásia seria aquelaem que China, Índia e Japão briguem entre si pelo poder, enquanto gozamosdo luxo afortunado dos terceiros que só assistem”. O artigo de Pinkertoninsere-se no debate ainda não esgotado na mídia americana, em torno dorejuvenescimento econômico da China e de como os EUA devem encararesse fenômeno histórico (ameaça ou oportunidade?) e comportar-se diantedele. Para alguns participantes do debate, a opção mais recomendável éprecisamente jogar um país asiático contra o outro e gozar da posição detertius gaudens, o terceiro que apenas ri. Mas essa é situação da qual aChina vai sabendo escapar com mestria.

No presente trabalho, procurarei determinar como China, Índia e Japãovêm, por sua vez, se comportando diante de ordem internacional, que talvezmais do que vir por aí já terá começado a chegar. Para definir de formasintética o mundo que está nascendo, direi que ele representa o desmonte detrês séculos de hegemonia dos anglo-americanos.

Foram os holandeses que, no século XVII, assentaram sobre o domíniodos mares o sistema mundial de comércio, de investimentos e de poder militar.Mas no século seguinte os ingleses criaram versão mais eficiente desse sistema,levada pelos americanos, no século XX, a um grau sem precedentes deexpansão e poderio. Com apoio no seu controle incontestável dos mares, os

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AMAURY PORTO DE OLIVEIRA

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EUA instalaram no pós-Segunda Guerra Mundial a Pax Americana,construção hegemônica desafiada durante algum tempo (a Guerra Fria) pelobloco URSS-RPC. O colapso da União Soviética e as alterações no jogo deforças doméstico da própria China levaram Pequim a redefinir seusrelacionamentos internacionais, em particular diante dos EUA, e oentrosamento financeiro e tecnológico entre esses dois países tornou-se tãointenso, que um economista brasileiro (Luiz Belluzzo) pôde referir-se aorejuvenescimento da economia chinesa como a última floração do capitalismoamericano.

Na Ásia do século XIX, China e Japão tinham recebido atenção especialdos anglo-americanos. A Inglaterra, após reduzir a colônia todo o SubcontinenteIndiano, estivera conduzindo quase sozinha a espoliação do erário da China,através da difusão do vício do ópio, droga importada da Índia pelos ingleses.Tudo assegurado por crescentes e impiedosas violações da autonomia doEstado chinês, num modelo em que a incorporação econômica precedia aincorporação política. Resistências do governo ou da população eramquebradas pela diplomacia da canhoneira ou pela guerra ostensiva (as duasGuerras do Ópio), com seu suplemento de tratados que ampliavam econsolidavam o saqueio econômico.

O Japão não tinha riquezas que despertassem a cobiça europeia. Foramos EUA, num movimento ancilar à expansão asiática dos ingleses, quedecidiram forçar as portas desse país (o ultimato do Comodoro Perry, em1853), mas no intuito de apenas obter portos de escala para o comércio coma China, conforme pode ser lido em documentos americanos. Disso resultouque o modelo de incorporação do Japão tenha seguido a ordem inversa daadotada para com a China, ou seja, as violações da autonomia política vindoantes dos atentados à autonomia econômica. O Estado japonês dispôs, assim,do que os historiadores chamam “uma pausa para respirar”. Quando aspotências ocidentais se voltaram para o Japão como terreno para comércio einvestimentos, já encontraram a modernização do país sendo conduzida porforças nacionais (a Restauração Meiji). Tiveram de tratar os japoneses empé de igualdade, e o Primeiro-Ministro inglês, Joseph Chamberlain, propôs aTóquio um tratado de cooperação, assinado em 1902 e que vigoraria porvinte anos. A Inglaterra usou a aliança com o Japão nos seus confrontos coma Rússia czarista, e os japoneses dela se serviram para obter liberdade deação no tocante à Península coreana, logo reduzida a colônia nipônica. Damesma época é a troca de notas entre Tóquio e Washington, conhecida como

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CHINA, ÍNDIA E JAPÃO NO MUNDO QUE VEM AÍ

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memorando Taft-Katsura, pela qual os EUA fecharam os olhos diante dainvestida japonesa em direção à Coréia e o Japão fez o mesmo em relaçãoao interesse dos EUA pelas Filipinas.

O Estado desenvolvimentista criado pelos nacionalistas da RestauraçãoMeiji impulsionou a primeira industrialização do Japão, assegurando que elepermanecesse como o único país de substância, na Ásia, a não sucumbir sobo colonialismo europeu. Mas a tentativa do regime Meiji de equiparar-se àspotências ocidentais não prosperou, decaindo melancolicamente numa cópiada barbárie nazista, da qual foi alvo principal a China. Num segundo surto deindustrialização, já sob a Pax Americana, pôde parecer que o Japão, liberadode preocupações e gastos militares, iria difundir no mundo um modelo dedesenvolvimento superior ao fordismo americano. Essa expectativa veio aser frustrada, contudo, em boa parte por ações dos próprios EUA, quereagiram vigorosamente ao desafio japonês. Particularmente irritantes paraos americanos eram os avanços da indústria civil japonesa dos semicondutores.Em 1987, um relatório da Junta Científica de Defesa erigiu em causa nacionala salvaguarda da indústria americana dos semicondutores, com o Pentágonopassando a investir pesadamente no setor, inclusive com a adoção de medidasde política industrial em princípio anátema para o liberalismo americano. Essaentrada em cena do Pentágono afetou a correlação de forças políticas noJapão, abrindo as comportas para as correntes ultranacionalistas.

Opunham-se tais correntes, sobremaneira, às políticas pacifistas emercantilistas, conhecidas em conjunto como a Doutrina Yoshida, e que tinhamsido a grande facilitadora do progresso japonês nas décadas de 1970 e 1980.A investida do Pentágono encontrou eco entre os adversários japoneses daDoutrina Yoshida, dando impulso ao que se chamou a economia nichibei,um estreito entrosamento das forças mais conservadoras dos EUA e do Japão,ajudado pelo grande entendimento entre o Presidente Ronald Reagan e oPrimeiro Ministro Nakasone. Uma outra área da pressão americana foi apolítica do iene forte, imposta ao Japão pelos seus colegas do “Grupo dos 7”(Reunião do Hotel Plaza, NY, em 1985). As pressões políticas sobre o velhomodelo mercantilista e o “estouro da bolha financeira” nascida do ataque aoiene levaram ao impasse, de que ainda não soube liberar-se o Japão, entre osistema cultural e político do país e a eclosão da globalização. Enquanto aChina veio caminhando destemerosamente para integrar-se na economiaglobalizada, a elite empresarial e burocrática japonesa não consegue rompercom hábitos e concepções tornados obsoletos. O país segue perdendo peso

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político e estratégico, embora continue a figurar entre as grandes economiasdo mundo, apto ainda a proporcionar excelente nível de vida para a suapopulação, graças aí sobretudo à permanente capacidade de inovaçãotecnológica das firmas japonesas.

Essa capacidade inovadora tem, inclusive, ajudado o Japão a marcarpontos no seu entorno asiático. A indústria japonesa vai podendo manter-secompetitiva em artigos digitais de consumo, ou em setores como ananotecnologia, e serve-se disso para abrir mercado em países vizinhos, oumesmo distantes como a Índia. Com a China, embora as relações políticas eestratégicas sejam problemáticas, o intercâmbio econômico vai muito bem,puxado pela transferência de tecnologias para o uso limpo do carvão. Issopermite à China, por exemplo, atacar seu problema de chuva ácida, do qual,aliás, é grande vítima o próprio Japão.

O notável progresso do Japão nos idos dos 1970-1980 devera muitoà “inversão de curso” da diplomacia dos EUA, que diante da vitóriacomunista na China (1949) decidira esquivar-se aos compromissosassumidos na Conferência de Potsdam pelos aliados da coalizão anti-nazista. Em vez de assegurar a destruição do poderio industrial e militardo Japão, Washington erigiu aquele país na coluna dorsal da PaxAmericana no Pacífico Norte. O modelo desenvolvimentista japonês foideixado projetar-se pela orla asiática do Pacífico (o fenômeno dos “TigresAsiáticos”), mas de maneira a excluir a China. Foi Deng Xiaoping, comsua política de modernização da economia chinesa e de abertura aomercado internacional, que transtornou nos anos 1980 os planosamericanos, contribuindo para o declínio do Japão e a retomada pelaChina da posição histórica de dínamo da Ásia Oriental. O novo séculoabriu-se em Tóquio com a instalação do carismático Junichiro Koizumina direção do governo, e durante algum tempo pareceu que ele seriacapaz de superar as mazelas da ”década perdida”, assegurando ao Japãoa condição de “país normal”, isto é, liberado das restrições ao exercícioda guerra impostas pela Constituição aprovada durante a ocupaçãoamericana. Quando Koizumi encerrou, em 2006, sua controvertidapassagem pelo poder (marcada, por exemplo, por uma forte deterioraçãodas relações diplomáticas com a China), o Japão aparentava estar acaminho da tão esperada modernização. Dois anos mais tarde, no entanto,reinstalou-se a ciranda de primeiros ministros ineficientes e voltaram asdúvidas e contradições conhecidas.

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Enquanto isso, a China prossegue na consolidação do seu papel de centroestruturador das vastidões asiáticas, na era da globalização. Tenha-se emconta que o conceito de Ásia como unidade continental é, na verdade, umacriação dos geógrafos ocidentais. Ao longo dos séculos, entidades distintaspela cultura e a política, inclusive com pouca interação entre si, ocuparamespaços que é mais correto e producente especificar como Ásia Oriental,Central, Meridional, etc. Desde 1999, está a China empenhada em montar,na Ásia Oriental, uma economia nacional de dimensões continentais,coesamente assentada sobre moderníssimas malhas de telecomunicações etransportes. Repetir, em suma, em versão moderna, o feito dos EUA no finaldo século XIX. Se a China levar a bom termo esse plano, dentro de maisduas ou três décadas terá o mundo, a seu dispor, um outro pólo de influênciaglobal, alternativo aos EUA. Para chegar lá, precisa a China seguir construindo,com paciência e pertinácia, um colar de bons relacionamentos com as diversasÁsias.

Na própria Ásia Oriental, é preciso acertar os ponteiros com doisconjuntos de importantes e agitados vizinhos, que por sinal ocupam as duasextremidades da “Esfera Oriental de Comércio”, o arco geopolítico que osEUA tentaram montar na margem asiática do Pacífico, sob comando do Japãoe a fim de manter contidos os comunistas chineses. Trata-se das sub-regiõesconhecidas como Sudeste e Nordeste Asiáticos. Na primeira, aglomeram-seos dez membros da ANSEA (Associação das Nações do Sudeste Asiático),egressos na quase totalidade de impérios coloniais europeus. A ANSEA foifundada em 1965, com um claro viés anti-China e anti-Vietnam, mas cedeuao paciente e positivo trabalho de Pequim, tendo vindo a transformar-se nogrande ponto de apoio da linha chinesa que promove a idéia da Ásia para osasiáticos. Vale dizer, sem subordinação a projetos estratégicos dos EUA.Um resquício das opções pró-EUA ainda pode ser detectado nos esforçosdo Japão por obter a simpatia de forças do Sudeste Asiático para com arcosde cooperação estratégica, ligando por exemplo Tóquio-Hanói-Nova Délhi,ou Tóquio-Cingapura-Canberra. No Nordeste Asiático vem tendo a Chinade ajustar-se, milenarmente, com duas formações nacionais, de peso culturalpróprio, o Japão e a Coréia. O Japão é o grande rival, com um histórico dealternância com a China no predomínio naquele canto do mundo. O pós-Segunda Guerra Mundial é, na verdade, a primeira vez em que China e Japãomostram-se igualmente fortes. A Península Coreana exerceu tradicionalmenteo papel de ponte por sobre a qual chineses e japoneses trocaram influências

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culturais e viram transitar tropas de combate. Nos dias de hoje, China, Japãoe a metade sul da Coréia estão podendo fazer da Bacia do Mar Amarelo,área por eles enquadrada, o epicentro talvez da economia asiática na era daglobalização. Três dos maiores centros políticos e financeiros do continente(Pequim, Xangai e Seul) ficam no interior dessa bacia, e Tóquio está logo ali.

A Rússia, que incorpora quase sozinha a Ásia do Norte (Ásia siberiana),participa também do jogo diplomático e estratégico do Nordeste Asiático,no qual têm presença importante os EUA. Mas a grande interação russo-chinesa processa-se através da Organização de Cooperação de Xangai,aliança construída em torno das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Centrale que vem tendo peso crescente na utilização, pelos asiáticos, dos recursosde hidrocarbonetos da área e na neutralização de investidas econômicas eestratégicas dos EUA. A OCS começa a irradiar poder por todo o coraçãoda Ásia, e países como o Irã, Índia e Paquistão vêm participando comoobservadores dos trabalhos da organização. Vem a propósito, aqui, umavolta ao projeto chinês de Marcha para o Oeste, com o seu empenho deestender o progresso da faixa costeira do país até os lindes com a Ásia Central.Uma das peças magnas dessa estratégia de desenvolvimento é a consolidaçãode moderna rede de transportes na região do Tibete. A Região Autônoma doTibete (RAT) era uma das áreas mais isoladas da RPC, a única não servidapor trens até a recente construção da Estrada de Ferro Qinghai-Tibet. Esforçoconsiderável está sendo aplicado na instalação de um sistema de rodovias,descrito como “três linhas verticais e duas horizontais”, destinado a funcionarcomo o núcleo de malha viária estendendo-se da Ásia Central até a ÁsiaMeridional por sobre as alturas himalaias.

A Ásia Meridional, evidentemente, é o Subcontinente Indiano, onde aÍndia se destaca como o terceiro país de peso da presente recensão. WilliamH. Overholt, especialista em Ásia da RAND Corporation, acentua em livrorecente1 como é útil comparar de forma sistemática China e Índia, se sedeseja obter uma boa compreensão do presente e do futuro próximo dasrelações internacionais. No rol dos países, Índia e China ocupam lugar àparte pelo tamanho das respectivas populações, pela extensão territorial epela projeção cultural milenar que ambos carregam. Tal como a chinesa, acivilização indiana exerceu importante e permanente influência na história

1 OVERHOLT, William H. Asia, America and the Transformation of Geopolitics. The RandCorporation (2008).

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humana. Nos dias de hoje, Índia e China estão convergindo política ediplomaticamente, graças à emergência dos dois como baluartes da economiaglobalizada. Num quadro Westphaliano clássico, com o comportamento dosEstados reduzido a motivações de segurança econômica e militar, a Índiadeveria figurar entre os países com que mais teria de preocupar-se a China.E não faltam, na verdade, análises de especialistas mostrando a Índiaempenhada em não deixar que a China se torne a potência dominante naÁsia ou no Oceano Índico, análises que encontram eco na mídia indiana e emcírculos dos EUA. Mas é interessante verificar que as análises chinesas domundo multipolar não costumam incluir a Índia como pólo de importância.Para os chineses, a Índia simplesmente não reúne capacidade nos terrenoseconômico, militar, tecnológico, político e diplomático, nos níveis julgadosnecessários, em Pequim, para dispor um país de “força nacional abrangente”.2

O fim da Segunda Guerra Mundial, momento histórico da transferênciapelos ingleses aos americanos do manto de líder hegemônico mundial,encontrara os EUA não apenas como o país mais poderoso do mundo, mastambém como o grande repositório do que havia de mais avançado no quadroda ciência e da tecnologia. A própria vitória militar fora alcançada graças àconcentração, no território americano, da energia científica e tecnológica dasforças mobilizadas contra a coalizão nazista. Com a liberdade de expansãotransnacional assegurada às grandes firmas americanas, uma ampla e complexarede de atividades e serviços foi sendo estendida pelo globo, para a qualacabaram sendo atraídos países em desenvolvimento, em função aí de duaspráticas econômicas peculiares, que no Brasil, por exemplo, eram consideradassubalternas, mas foram adotadas sem relutância por China e Índia. O colossalsurto manufatureiro que está levando a economia chinesa ao segundo lugarno mundo apoiou-se, maiormente, na deslocalização (offshoring), práticasegundo a qual empresas de um determinado país deslocam, para outro,unidades de produção, a fim de lá fabricar de maneira mais competitiva seuproduto habitual ou componentes dele. Calcula-se que dois terços dasexportações chinesas chegaram a provir, em certos momentos, dasimplantações de firmas estrangeiras. A outra prática, dita terceirização(outsourcing), consiste na contratação por uma empresa dos serviços deoutra, que pode estar nos antípodas, para a realização de tarefa cujo resultado

2 MALIK, J. Mohan. China-India Relations in the Post Soviet Era: The Continuing Rivalry.em The China Quarterly (June, 1995).

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é recuperado pela firma contratante. A existência na Índia de um importantesegmento da população com fluência na língua inglesa, além dos estreitoslaços da classe empresarial do país com a colônia indiana dos EUA, deumargem ao florescimento de próspera economia apoiada na terceirizaçãoeletrônica. Hoje, manifesta-se uma grande complementaridade entre firmaschinesas e indianas no plano da globalização. Bom exemplo é a Lenovo,estrela dos semicondutores chineses, que instalou seu departamento globalde comercialização na cidade indiana de Bangalore.

A Lenovo foi por sinal destacada, juntamente com o Tata Group indiano,para ilustrar o tema do suplemento de 20.09.08 do semanário The Economist,dedicado à “globalidade”, designação que começa a ser dada à nova fase daglobalização: grandes firmas de toda parte competindo com todo mundo emtodos os setores de negócios. Digno de nota é o aumento no número defirmas de países emergentes que vão aparecendo na lista das “500 Maiores”,da revista Fortune. Eram 31, em 2001, chegaram a 62 em 2007 e poderãoocupar um terço da lista, no final da próxima década. Multiplicam-se, poroutro lado, os livros voltados para o novo peso de China e Índia na era daglobalidade. Cito três deles para o leitor interessado: CHINDIA, How Chinaand India Are Revolutionizing Global Business. Edited by Pete Engardio. (NewYork: McGraw-Hill, 2007); Robyn Meredith, The Elephant and the Dragon.(New York: W.W. Norton, 2007); Tarun Khanna, Billions of Entrepreneurs.(Boston: Harvard Business School Press, 2007). Ou numa visão institucional:International Monetary Fund, China and India. Learning from Each Other.(Washington,DC, 2006); The World Bank, Dancing with Giants. (Washington,DC, 2007).

O despertar desses dois gigantes asiáticos, em estreita interação com asgrandes firmas transnacionais (da eletrônica em particular), está no centro daglobalidade e pode ser analisado por uma infinidade de ângulos, comocomprovam os muitos livros que vão surgindo em torno do fenômeno. Voufocalizar uma pequena faixa, onde as duas grandes massas demográficas deChina e Índia estão revolucionando o quadro, forçando inclusive astransnacionais a evoluírem para o que Sam Palmisano, executivo-chefe daIBM, descreveu numa conhecida palestra de 2006 como “empresaglobalmente integrada”.3 As transnacionais começam a funcionar como

3 PALMISANO, Samuel F. “The Globally Integrated Enterprise” Foreign Affairs (May/June2006).

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entidades de amplitude global, com o trabalho fluindo no interior da firmapara a unidade onde será mais bem feito. Na IBM, as operações na AméricaLatina são agora comandadas do escritório da firma em Xangai. O ingressode algumas centenas de milhões de chineses e indianos no mercado global dotrabalho, concomitantemente com os avanços nos dois países, vêm alterandotambém a problemática dos empregos. De pouco serve, hoje, dispor um paísde grande oferta de trabalhadores baratos. É preciso que eles sejam baratose crescentemente bem preparados. Na faixa superior da oferta estão os“trabalhadores do conhecimento”, designação cunhada por Peter Druckerpara abarcar os técnicos e gerentes habilitados a fazer girar os setores de altatecnologia. Para atingir tal nível já não basta o diploma de alguma universidade,como os distribuídos aos milhões na China e Índia. É importante o treinamentoprático, de preferência nos laboratórios e unidades produtivas que firmascomo a Microsoft, a Dell e congêneres instalam em países emergentes.Evidentemente, do ponto de vista da firma, o objetivo é usar o talento localpara ampliar as respectivas carteiras de patentes, mas hospedeiros alertassabem usar o fato para ampliar seus contingentes de “trabalhadores doconhecimento”, ou a massa de jovens empreendedores que aproveitam aexperiência adquirida para abrir seus próprios negócios. Em Bangalore, porexemplo, a rotatividade dos técnicos locais chega a 25% por ano, nas grandestransnacionais. Na China, onde todos esses problemas alcançam grandedinamismo, já há mais de um milhão de “trabalhadores do conhecimento”.

Para além dessas convergências no nível tecnológico, China e Índiaatravessam uma fase de bom entendimento diplomático. Nos anos 1950, noimpulso da independência indiana (1947) e da revolução comandada porMao Zedong (1949), os dois países foram grandes promotores do “espíritode Bandung”, a utopia de um mundo de congraçamento geral. Não tardouque se impusesse a realpolitik, e em 1962 sobreveio um conflito armadoentre eles, a propósito de definição de fronteiras. As relações sino-indianasatravessaram período glacial sob a Guerra Fria, em função do conflitoideológico RPC-URSS. Paradoxalmente, foi Mikhail Gorbatchov quemajudou a quebrar o gelo entre Pequim e Nova Délhi, incitando Rajiv Ghandia visitar a capital chinesa. Depois da pioneira viagem de Rajiv, não cessou atroca de visitas de alto nível, até uma particularmente importante, em junhode 2003, quando o Primeiro-Ministro Atal Behari Vajpayee, líder do BJP (opartido nacionalista que rivaliza com o velho Partido do Congresso), deupartida em Pequim a uma “cooperação abrangente” entre os vizinhos. As

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boas intenções aí reveladas iriam ganhar contornos práticos dois anos maistarde, quando o Primeiro-Ministro Wen Jiabao efetuou visita de Estado aNova Délhi (abril de 2005), evento saudado pela imprensa indiana como“um dos mais importantes da década, na agenda diplomática da Índia”. Ehouve quem visse essa visita como um primeiro passo para China e Índiacomeçarem a encarar seu relacionamento mútuo, como mais importante doque as relações de cada uma com os EUA.

O seminário The Economist registrou, certa vez, a opinião de ex-Embaixador da China na Índia, para quem era perfeitamente normal e atédesejável a rivalidade entre os dois países. O importante – dizia o diplomata –é que seja uma rivalidade virtuosa, não viciosa. As conquistas econômicas daÍndia são reais e ela está podendo firmar-se como a força predominante nosubcontinente não pelo poder das armas, e sim através da sua estabilidadepolítica e das vantagens econômicas que vai acumulando, sobre o Paquistão eo Bangladesh. Mas a Índia ainda não superou a ânsia por preeminência militar,num comportamento que lhe dá ares de mandão. Invadiu e absorveu Goa.Firmou presença no Sikkim. Conduziu duas guerras contra o Paquistão e esteveà beira de um conflito militar com esse vizinho. Interveio para assegurar aseparação do Bangladesh do Paquistão. Enviou uma força expedicionária paracontrolar a guerra civil no Sri Lanka. Consta que Nova Délhi teria requeridodos EUA o reconhecimento dos interesses da Índia, numa “faixa estratégica”que se estende do Canal de Suez ao Estreito de Malaca. Essa pretensão indianacoincidiu, aliás, com visões do Governo Bush-II, cujo relatório sobre a “NationalSecurity Strategy”, para 2002, explicitava: “partimos hoje da verificação deque a Índia está em vias de transformar-se numa potência global, com a qualpossuímos interesses estratégicos comuns”. É a visão da Índia como baluartede um arco geoestratégico, estendendo-se de Suez ao Japão, que sem dúvidaexplica a decisão de George W. Bush de passar por cima de todas as objeçõesdomésticas e internacionais, a fim de ajudar o programa nuclear indiano. Emabril de 2005, a Secretária de Estado Condoleezza Rice visitaria Nova Délhipara botar em marcha os entendimentos que levaram ao acordo de transferêncianuclear, assinado em visita do próprio Bush (março de 2006). Mas é importanteregistrar que a ida à Índia do Primeiro-Ministro chinês sobreveio semanas depoisda passagem de Miss Rice, com a clara intenção de pelo menos neutralizar otrabalho da Secretária de Estado americana. À medida que os EUA vãoimpulsionando a Índia para posições mais contundentes no plano internacional,a China aparece puxando os indianos para o jogo econômico.

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Embora as aspirações globais de China e Índia exibam boa dose decompetitividade, as pressões nascidas da fase de acelerado crescimento dos doispaíses fazem com que se afirme uma competição virtuosa. Aos indianos agrada, porcerto, o empurrão recebido dos americanos no tocante à indústria nuclear, masalarma-os a tendência de Washington de subordinar suas atividades na Ásia aoreforçamento da aliança militar EUA-Japão. Nova Délhi prefere, também, explorarcom Pequim a complementaridade que a globalização está trazendo para asrespectivas economias. Quando o Primeiro-Ministro Manmohan Singh visitou oJapão, em fins de 2006, foi-lhe sugerido que a Índia aderisse a um “concertodemocrático quadrilateral”, envolvendo ainda EUA e Austrália. Em agosto seguinte,Abe Shinzo retornou a visita do colega indiano e voltou a insistir na idéia dacooperação quadrilateral. A Índia tem-se esquivado, porém, ao mesmo tempo emque toma iniciativas que a aproximam de posições chinesas e aborrecem os EUA.Como a compra de gás natural no Mianmar e no Irã, com a consequente negociaçãode gasodutos com países da lista negra de Washington. China e Índia começam aestabelecer parcerias em projetos energéticos internacionais, em particular na África.Elevam, também, o grau de cooperação entre seus estabelecimentos militares, comvistas à segurança do transporte de material energético no Oceano Índico e partesdo Pacífico. Em maio de 2006 assinaram um Memorando de Entendimento para oAprofundamento da Cooperação de Defesa, que serviu de moldura para o primeiroexercício militar sino-indiano, em dezembro de 2007.

* * *

Tendo em vista a perspectiva em que foi inicialmente colocado estetrabalho, cabe ainda examinar como vai sendo a Ásia afetada peladesmontagem da era anglo-americana. O assunto é vasto e complexo e euterei de limitar-me a dois aspectos do grande quadro. O problema doterrorismo, com ênfase na Ásia Meridional. E o problema da salvaçãoecológica do planeta, que toca diretamente a China.

Os recentes e trágicos atentados na cidade indiana de Mumbai (antigaBombaim) são um bom ponto de partida para considerar o problema doterrorismo. Eu não tenho formação, nem disponho de dados para analisar emprofundidade esse tema, mas por mais que procure fugir à conclusão simplistade atribuir toda a culpa ao velho colonizador, a mim me parece irrecusável nãocomeçar pela verificação de que o terrorismo moderno está ligado, de perto, àdesmontagem do Império Britânico. O colonizador inglês deixou um rastro de

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conflitos insolúveis e de incitação à violência pelas terras de onde foi se sentindocompelido a sair. Irlanda, Palestina, Subcontinente Indiano são amostrasgritantes. A partilha do Subcontinente ou a ajuda na criação de Israel foramsoluções ad hoc, encontradas por Londres para lavar as mãos de imbrógliosde proporções históricas, que seus prepostos mundo afora tinham deixadosurgir ou mesmo contribuído para que surgissem. Sob a Pax Americana, oherdeiro do manto hegemônico inglês deu continuidade às embrulhadas doirmão mais velho. Ao referendar, por exemplo, o Programa de Biltmore,promovido por Ben Gurion em 1942, Washington assumiu a tutela doMovimento Sionista e nunca mais logrou desligar-se do conflito na Palestina.Na Ásia Meridional, o momento de passagem da responsabilidade pode serdatado, talvez, da decisão dos EUA, em fevereiro de 1954, de iniciar umprograma de ajuda militar maciça ao Paquistão. Foi a primeira intervençãoaberta de uma superpotências no subcontinente, onde os dois Estados surgidossete anos antes, em virtude da partilha endossada pelos ingleses, ainda nemtinham tido tempo de posicionar-se no quadro da Guerra Fria. Não tardou atomada do poder, em Islamabad, pelos militares (1958). Atentado à democraciaque não prejudicou a ajuda americana; ela foi, ao contrário, aumentada em1959. Alarmada com o fluxo de armas para o vizinho e rival, a Índia foi-sedeixando cair na dependência estratégica da União Soviética.

Tal como iria fazer no ano seguinte na Palestina, a Inglaterra em 1947abandonou o Subcontinente Indiano à própria sorte. Embora vitoriosa, emprincípio, na Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra saíra do conflitoempobrecida, incapaz de manter planeta afora seus amplos compromissosimperiais. O pavilhão britânico começou a ser arriado, sob a retórica dadescolonização, mas na realidade como o abandono de terreno diante doavanço tumultuado de forças e interesses locais. Tal como na Palestina, noSubcontinente multiplicaram-se comissões mandadas de Londres para tentarsoluções equilibradas, mas o tumulto local foi-se impondo. Não se podedizer que o imperialismo britânico tenha criado o Paquistão, mas como observaRobert Stern4, a Inglaterra ajudou a montar o contexto para essa criação.Outro autor que tem muito a dizer sobre esse tema, é Edward Luce5.Apoiando-me nele e em Stern, lembrarei em traços rápidos que o nascimento

4 STERN, Robert W. Changing India. Cambridge, UK. Cambridge University Press (2003). V.especialmente o cap 5: “British imperialism, Indian naturalism and Muslim separatism”.5 LUCE, Edward. In Spite of The Gods: The Rise of Modern India. New York (2007).

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da ideia do Paquistão remonta a 1909, quando o Vice-Rei, Lorde Munro,estabeleceu na Índia “eleitorados comunais”, reservando alguns distritos paragrupos religiosos. Entre 1909 e 1947, os ingleses empenharam-se em desligardo Partido do Congresso os filiados mulçumanos, garantindo assim que surgisseum partido de definição mulçumana. E a política de dividir para reinarformalizou-se em 1939, quando um outro Vice-Rei, Lorde Linlithgow, emfunção da atitude em relação à entrada da Inglaterra na Segunda GuerraMundial, reconheceu a Liga Mulçumana de Mohammad Ali Jinnah como aporta-voz única dos mulçumanos na Índia, enquanto Ghandi e Nehru erampostos na prisão. Em 1946 foram realizadas as últimas eleições gerais noSubcontinente sob a égide inglesa. A partilha não foi tema eleitoral, mas aLiga Mulçumana teve expressiva votação. Uma derradeira missão ministerialbritânica acorreu a Nova Délhi, sem obter entendimento com os líderes daLiga e os do Partido do Congresso. Jinnah convocou um Dia de Ação Diretados Mulçumanos, sendo atendido por sangrentos motins em Calcutá.

Começara o horror da partilha, que iria ser implementada pela ação diretados interessados – os hindus e os mulçumanos. Cada comunidade tomariapara si a província em que fosse majoritária, respeitando o mais possível acontigüidade das províncias. Este cuidado não pôde ser totalmente mantido,e o Paquistão surgiu repartido em duas seções (ocidental e oriental), origemdo Bangladesh. Também na Caxemira mostrou-se impraticável, até hoje, definira repartição eqüitativa da província. Em dezembro de 1946, em todo caso, aviolência intercomunitária tomara conta do Penjab e da Província da FronteiraNorocidental. O Primeiro Ministro inglês, Atlee, anunciou no Parlamento(20.02.47) que a Inglaterra ia retirar-se da Índia. Ninguém sabe, realmente,quantas pessoas morreram nos confrontos da partilha, ou em consequênciade enfermidades e fome associadas a esses confrontos. As cifras vão decentenas de milhares a um milhão, com predominância de algo em torno demeio milhão. O certo é que o massacre provocou um dos maioresdeslocamentos populacionais da História, calculando-se que cinco milhõesde mulçumanos migraram para os territórios destinados ao Paquistão,enquanto outros cinco milhões de hindus e sikhs moviam-se no sentidocontrário. Entrematando-se quando as colunas de migrantes se cruzavam.

Meu propósito ao rememorar esses fatos é contestar a ideia de que oterrorismo nasce, automaticamente, de algum “choque de civilizações”. Eleé, na verdade, produto de situações e escolhas políticas e sociais bemconcretas. A destituição econômica e educacional em que são mantidos amplos

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setores da população de certos países. Condições de gueto, prepotentementeimpostas a corpos populacionais, aos quais se negam os direitos elementaresde ir e vir e de ganhar o próprio sustento. É interessante verificar como otumulto da partilha do Subcontinente Indiano pode ter legado ao mundofibrilhas de migrantes, que não se acomodaram no destino original, econtinuaram a se movimentar. Para o Golfo Pérsico, a Grã-Bretanha ou aAmérica do Norte. John Keay6 lembra que o primeiro voo transatlântico aser explodido (1985) foi um jumbo da Air India, abatido por separatistassikhs sediados no noroeste do Canadá. Mais recentemente, militantesislâmicos paquistaneses, radicados na Inglaterra, montaram ataques em Israel.Sessenta anos após a partilha, é desolador verificar que a Índia voltou a terminoria mulçumana equivalente a toda a população do Paquistão, e que adeterminante básica do processo, a ideia de que as duas comunidadesprecisavam separar-se para prosperar, resultou perversamente numa rivalidadecom ameaças de choque nuclear. Índia e Paquistão falharam lamentavelmentediante do próprio atraso. Olhando um indicador, apenas, cite-se relatório doBanco Mundial, dizendo que metade das crianças indianas não atingem otamanho normal, por desnutrição. O dobro da taxa de desnutrição da Áfricasubsaariana.

Os indianos tendem a apresentar-se como vítimas indefesas de terroristaspredominantemente paquistaneses. Mas o fato é que a própria Índia é umgrande viveiro de violência e terrorismo, em geral provocados por divergênciaspolíticas contra um fundo de cena de discordâncias religiosas. Gandhi foimorto por um terrorista hindu; Indira Gandhi, por militar sikh da sua escolta;seu filho Rajiv foi assassinado por militante tamil. Na verdade, a fração maistranquila da população indiana talvez sejam os mulçumanos, que vêm sendono entanto atiçados por dois tipos de pressões. De um lado, os nacionalistashindus congregados no BJP, um de cujos líderes comandou em 1992 ademolição da famosa mesquita de Ayodhya, provocando um massacre dehindus e, em tréplica, um pogrom de mulçumanos. De outro lado, há uma jálonga campanha de militantes islâmicos do Paquistão e do Bangladesh,estimulando a criação do movimento terrorista dos Mujahedins Indianos. Aestes foi atribuída uma série de atentados que matou 140 pessoas nas cidadesde Jaipur, Ahmedabad, Bangalore e Délhi, no verão de 2008, antes do violentoepisódio de Mumbai, com suas características de terror internacional. A

6 KEAY, John. The Great Arc: The Dramatic Tale of How India was Mapped. (2000).

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empresa Political & Economic Risk Consultancy, de Hong Kong, apontou aÍndia como o país mais arriscado da Ásia Meridional, nas suas projeções deterrorismo para 2009. Segundo essa empresa, passou de quatro mil o númerode mortes em atentados na Índia, entre 2004 e meados de 2008. Foramquase mil mortos só em 2007.

Para encerrar esta rápida incursão pelo terreno da violência e doterrorismo, no quadro das Ásias Meridional e Sudocidental durante adesmontagem da era anglo-americana, cumpre assinalar a estreita ligação deingleses e americanos com um dos mais preocupantes processos em cursonaquelas regiões – o movimento taliban. É preciso voltar ao século XIX, ao“Grande Jogo”, no qual a Rússia tzarista e a Inglaterra, esta através dos seusprepostos na Índia, buscavam ampliar as respectivas presenças no continenteasiático. O Afeganistão foi um dos terrenos desse embate, e a Inglaterralogrou transformá-lo num Estado-tampão, sob a forma de reino independentee neutro, separado da Índia inglesa por fronteira traçada (1893) por umservidor público britânico, Sir Mortimer Durand. A “Linha Durand” dividiucalculadamente as populações pashtuns, deixando uma boa parte delas aoscuidados do novo monarca e colocando sob a responsabilidade britânicaumas quantas tribos. Foram estas distribuídas num colar de sete agênciastribais, a FATA (Federally Administered Tribal Áreas), e duas regiões maiores:a Província da Fronteira Norocidental e o Baluquistão. Os pashtuns destasduas regiões viviam sedentariamente, em cidades e aldeias, enquanto as tribosda FATA precisavam ser mantidas com mão-de-ferro. Após a criação doPaquistão, o novo regime pensou que ia continuar dando as cartas entre ospashtuns, mas tem tido ao contrário de defrontar-se com movimentação nosentido da criação de um Pashtunistão independente. Em todo caso, o grandeempenho do Paquistão, nos seus sessenta anos de existência, tem sido anexar-se a Caxemira. Um dos mais de 500 principados a que os ingleses reconheciamautonomia, e que, na partilha do Império, foram atribuídos ao Paquistão ou àÍndia, em conformidade com sua definição religiosa.

A Caxemira, principado de população majoritariamente mulçumana,governado por um príncipe hindu, transformou-se em problema, que jámotivou duas guerras indo-paquistanesas e segue irresoluto. Ocomportamento da Índia na querela não merece encômios, e o Paquistão atem usado como justificativa para tentar transformar o Afeganistão numEstado-cliente, alegando precisar dotar-se de “profundidade estratégica”no confronto militar com a Índia, territorialmente bem maior. A luta pela

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Caxemira forneceu também a base para a consolidação do Exército comoa instituição-chave do Paquistão e para o fortalecimento, dentro dele, daISI (Inter-Services Intelligence Agency), como a cabeça estratégica doregime. O Afeganistão, um dos países mais pobres do mundo, registrava276 dólares de renda per capita na altura de 1978, quando um golpemilitar o transformou em república. Seguiu-se uma fase digna do velho“Grande Jogo”. A União Soviética de Brezhnev invadiu o Afeganistão e ossaxões, representados já aí pelos americanos, com a sua CIA, mobilizaramo que puderam para restabelecer o equilíbrio anterior, vale dizer, pôr fim aoavanço dos russos. O Paquistão foi cooptado para ser o grande aliado dosEUA nessa empreitada e a CIA iniciou intensa cooperação com o ISI pararecrutar, financiar e armar as milícias que iriam combater no terreno. Coma ajuda em vários níveis da Arábia Saudita, financiadora e ideóloga da redepaquistanesa de escolas corânicas (madrassas) em que se moldam desde ainfância os “combatentes de Alá”, CIA e ISI vêm cozinhando, desde oinício dos anos 1980, o caldo de cultura do qual foram saindo Osama Bin-Laden, a Al-Quaeda e os talibans. Não poderei descrever essa marcha,que a partir de 2001 se desdobrou na “guerra ao terrorismo”, do GovernoBush, concretizada nas Guerras do Afeganistão e do Iraque.

Entra-se agora num período de correção dos desmandos acima. Numadas iniciativas prometidas na sua campanha eleitoral, Barack Obama parecedeterminado a puxar, pelo Afeganistão, o fio que desmanchará a meada deerros deixada pelos neo-conservadores de Bush. Um diplomata de grandeexperiência, Richard Holbrooke, foi designado Representante do Presidentepara Afeganistão e Iraque, com o encargo imediato de levar adiante asrecomendações de relatório da Asia Society, da qual o próprio Holbrooke échairman, propondo abordagem abrangente e com o apoio a ser buscadoda Índia, China, Rússia e Irã, para os problemas do Sudoeste Asiático. Nasua primeira entrevista coletiva à imprensa (09.02.09), Obama referiu-seespecificamente à missão do Embaixador Holbrooke, e à necessidade dedeslindar criativamente os nós políticos que estiveram a acumular-se, ao longoda Linha Durand, nas áreas tribais da FATA. Um primeiro reforço, de 17 milhomens, está a ponto de ser enviado para tomar posição ao longo dessalinha, que hoje divide uma população pashtun calculada em 40 milhões deindivíduos. Com apoio nessa comunidade, os talebans têm ampliado suapresença no Afeganistão, onde o governo de Cabul mal controla 30 porcento do território nacional.

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De Barack Obama se está esperando, com muito otimismo, que possareequilibrar as contas do EUA e da economia capitalista mundial. Será umatarefa hercúlea, que poderá estender-se por alguns anos. E que não farásentido, se não enfrentar de forma positiva o processo convergente dorejuvenescimento da China. É este o segundo aspecto da desmontagem daera anglo-americana que eu prometi pôr em foco. A necessidade de abrirespaço para a China, de maneira a evitar uma catástrofe ambiental. O governoBush procrastinou perigosamente a aceitação, pelas governanças mundiais,da dura realidade de que a Terra está ameaçada no seu saudávelfuncionamento. E que a causa maior desse fato reside nas opções energéticasfeitas pelos anglo-americanos, desde a Revolução Industrial no século XVIII,com a queima do carvão fóssil para as manufaturas e o transporte e, maistarde, a produção de eletricidade. E no século XX, a Sociedade do Motor,criada pelos americanos em cima do emprego avassalante doshidrocarbonetos. À medida que moderniza e amplia sua economia, a Chinatem-se tornado um grande foco de poluição planetária, passando os EUAem termos absolutos, haja vista a enormidade da sua população. Em termosper capita, os EUA seguem imbatíveis. Mas a China vem simplesmenterepetindo os modelos industriais criados pelos anglo-americanos, queegoisticamente pensaram um sistema na medida das ambições de bem-estardeles próprios, mesmo se à custa do uso desperdiçado dos recursos naturaisdo planeta.

O Professor Francisco Teixeira, que lidera na UFRJ um laboratório depesquisas de teor prospectivo, costuma afirmar que o prazo médio, 2030digamos, já chegou, como resultado das decisões que estaremos todostomando nos próximos três ou quatro anos (2009-2012). Isso dá particularimportância ao primeiro mandato do Presidente Barack Obama, que assumiua Casa Branca a tempo de dialogar com a dupla Hu Jintao-Wen Jiabao,governantes formados em intenso contato com as profundas necessidadesdo povo chinês e, como Obama, dotados de grande sentido de justiça humanae social. O mandato deles também vai até 2012.

Na verdade, o diálogo sino-americano já começou. Hillary Clinton, aSecretária de Estado do governo Obama, acaba de passar dois dias emPequim, em conversas com os dirigentes e contatos com a sociedade local.Ela insistiu o tempo todo em que as duas economias estão tão interconectadas,que China e EUA não têm alternativa a cooperarem para tirar o mundo daatual crise econômica. Hillary deixou claro que a base dessa cooperação

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residirá na busca conjunta de soluções para a salvaguarda do meio ambientee a edificação de uma nova matriz energética para a economia mundial. Aeste último respeito, é válido enfatizar a preocupação que Obama temdemonstrado para com o aumento da produção, nos EUA, das energiasrenováveis já bem desenvolvidas, como a eólica e a solar, além do uso maiseficiente das grandes quantidades de energia que a economia americana temde continuar a consumir. O Presidente reafirmou sua determinação nessesentido ao dar posse, como Secretário de Energia, ao Professor Steven Chu,Prêmio Nobel de Física em 1997 e conhecido batalhador pela causa dasenergias renováveis.

A necessidade de cooperar com a China em matéria de salvaguarda domeio ambiente já não é mais uma decisão a ser tomada, ou não, de acordocom a visão de mundo do governante americano em posto. O fato é que,apesar de a Quarta Geração de dirigentes chineses poder ser vista como ogoverno mais conscientemente atuante no presente na defesa do meio-ambiente, a imperiosidade de usar energia – na maneira desperdiçada e pelosmétodos desenvolvidos durante a Era anglo-americana – nas proporçõesexigidas pelo tamanho populacional da China cria uma situação, na qual setorna visível o risco potencial de catástrofes humanas de grande dimensão.No interior do território chinês, mas também para lá das fronteiras do país.Essa verificação do potencial transfronteiriço da deterioração do meio-ambiente chinês vem tomando corpo desde o início dos anos 1990, e já sereflete nas relações comerciais com o Japão, que se tornou importantefornecedor, à China, de tecnologias para o uso limpo do carvão. Maisrecentemente, tem-se tornado patente o efeito danoso da crise ambientalchinesa para as condições climáticas na Califórnia7. Diante daimpraticabilidade, nos novos tempos, de resolver problemas desse tipo pelaguerra ou, simplesmente, brecando o desenvolvimento chinês, vai-se mostrarinevitável a busca de acomodações entre EUA e China, nas quais parececerto que os EUA terão de fazer mais da metade do caminho. Essa buscaserá a substância dos três ou quatro anos de toma lá dá cá, entre Washingtone Pequim, a que acaba de dar partida Hillary Clinton.

7 Uma análise muito atual da problemática chinesa em relação ao meio-ambiente nos seusaspectos positivos e negativos pode ser encontrada em: Morton Katherine “China andEnvironmental Security in the Age of Consequences” em Asia Pacific Review, n 15 (2008).

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BRICs, the Chinese Engine, and the Humblingof Market Fundamentalism

Glauco Arbix1

“If two people make out a shape in the distance and one says it isa man and the other that it is a horse, before jumping to the

conclusion that neither of them are capable of telling thedifference between a man and a horse, it is legitimate to postulate

that what they have seen is a centaur (then again, it could beargued that since centaurs do not exist, both of them were

mistaken).”(Bobbio, The Future of Democracy)

The present economic crisis is not a regional or local crisis, but a systemicone, which originated and expanded at the core of developed countries. Inthe 1980s, a debt crisis shook Latin America and Africa. Another one then hitAsia, Russia and again Latin America at the end of the 90s. Many countrieshad their trajectories momentarily interrupted, even though they were able torecover rapidly in tune with the global economy.

In the current recession, it is the developed countries that are under theeye of the hurricane. Nevertheless, the impact on the emerging countries willbe strong. Both for those that grew rapidly and benefited from a globalenvironment marked by liquidity and low interest rates, a weak dollar and therise of commodity prices; as well as for the more fragile countries, who willbe, once again, the big losers.

1 Professor at the Dept. of Sociology, University of São Paulo (USP - Brazil). General Coordinator,Observatory for Innovation at the Institute of Advanced Studies (USP). O presente texto foielaborado a partir das ideias apresentadas na III Conferência Nacional de Política Externa ePolítica Internacional – “O Brasil no mundo que vem aí” – promovida pela Fundação Alexandrede Gusmão e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) nos dias 8 e 9 dedezembro de 2008, no Palácio Itamaraty Rio de Janeiro. Agradecemos o Institute for LatinAmerica Studies da Columbia University (EUA), assim como a FAPESP e o CNPq pela acolhidae apoio.

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GLAUCO ARBIX

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The crisis will not leave developing world unscathed. However, I arguethat the current financial crisis will not sound the death knell for developingcountries’ recent economic success, as the debt crisis of the 1980s soundedfor import substitution industrialization (ISI). They will suffer a strong downturn,but some of them could emerge stronger from the crisis.

Exuberant trajectories

In 2001, Jim O’Neill, Goldman Sachs´ economist, coined the term BRICto encapsulate the energy exerted by Brazil, Russia, India and China, theworld’s most promising emerging markets.

Over the past 50 years, for instance, China, India, Russia and Brazil havefollowed a wide range of recipes, created tools, and experienced differentmodels of development. Sometimes they have failed strikingly, as during theCultural Revolution, the glasnost tentative to keep socialist experience going,the Indira Gandhi’s 1965-75 statist planning, or even in the inward andprotectionist bias the Brazilian national-developmental model has introduced.But sometimes, they have thrived, and often learned a great amount fromstumbling.

The BRIC economies have been studied from different angles anddimensions, and economists in general have stressed they would togetherbe larger than the G72 by 2035 or 2027 according to a more optimisticview3. However, I claim the main lesson they have learned that deserves amore accurate scrutiny is about the interactions and synergies betweenmarkets and states. Not from a general point of view, but in concreteterms, translated by a set of domestic new institutions, technological efforts,pro-business policies, and social policies, aimed at mitigating povertyand inequality, and, simultaneously, at boosting economic growth. Someof these countries are again pushing through these experiments indemocratic environments, in contrast with their recent pasts, what is ofmajor significance.

Something out of the ordinary is afoot in developing countries. This groupof developing countries is undergoing deep social and economic changes.

2 The first G7 meeting was in 1976, with the finance ministers from the United States, Germany,Japan, United Kingdom, France, Canada, and Italy.3 In dollar terms.

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BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM

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According to the World Bank, more than 400 million people have been pulledabove the poverty line over the past 25 years. This has occurred mainlybecause of China’s outstanding growth. But there was poverty reduction allover the world, basically due to the global growth, and the striking developingcountries’ economic performance.

Developing countries´ economies have been growing at a rate of roughly7% for years, clearly unsustainable during the current crisis. Skeptics argued,before the crisis, that their striking performance represented only an upswingin the business cycle. There are signs, however, that it represented an upwardtrend in the growth rate, interrupted only momentarily by the crisis. If thatinterpretation is correct, and growth in China, India, Russia and Brazil is canbe sustained, BRIC countries will recover from the crisis more solid thanbefore.

Some indications have been clear.

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GLAUCO ARBIX

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In 2006 and 2007, the combined output of emerging economiesaccounted for more than half of total world GDP (PPP).

As China, India, Russia and Brazil opened up their economies during the1990’s, the global labor force doubled. Over the past decade, almost a billionnew consumers entered the global marketplace. In 2008, China aloneaccounted for more than 10% of world trade (4% in 2000, purchasing power

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BRICS, THE CHINESE ENGINE, AND THE HUMBLING OF MARKET FUNDAMENTALISM

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parity terms). There was an increasing vitality in emerging economies, whichpositively affected global growth, not substituting for output elsewhere.

And, even more relevant, stronger growth in emerging economies has changedthe relative returns to labor and capital all over the developed world, shifting relativeprices and incomes, altering labor and capital costs, prices and manufacturingconditions.

In the present days it seems much easier to regard the acronym BRIC, anddiscard the “decoupling” hypothesis with disdain, given the strong impact provokedby the financial crisis all over the world. But the exuberant BRIC economic figuresand numbers previous to 2009 – both in terms of growth, exports, net reserves,and even in science and technology – keep calling for reflection.

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BRIC countries have built their savings based on years of exportsbonanza. But most of them have diversified their export-destiny andexport-mix. More important, they rely increasingly on internal marketswhat allows them to grow even while the United States economy slows.How sustainable could be that movement remains controversial. Butthere are clear signs of a major rebalancing in their domestic marketsaltering the global consumption features. Differently from Europe, Japanand the U.S., BRIC consumer’s contribution increases slowly, butcontinuously.

If the BRICs succeed in improving their redistributive set of policies,even under lower economic growth but with major impact in familyincome – as already happened in Brazil in recent years –, the trend linewill continue toward a greater economic autonomy. Chinese consumersare at the heart of this shift, and what will happen inside China is crucialfor the world and, specifically for developing countries future. The newprograms aimed at supporting medical insurance to rural communitieslinked to a huge public infrastructure spending, announced to beimplemented until 2011 by the Chinese government, reinforce the relativeBRICs consumption weight, and their key position in the world economy.Every step forward taken by the BRICs to rebalance their economyand to overcome poverty and inequality exerts positive impact on theworld economy, allowing the decoupling hypothesis emerge from theashes.

Uneven economic and social performance

In spite of some similarities, the biggest developing countries differin many ways. Brazil, Russia, India and China compete with each other,yet sometimes appear acting together. Within the acronym BRIC thereis much more heterogeneity than the label may suggest, both in terms oftheir history and civilization, and in terms of their institutional, military,geopolitical, cultural and social affairs.

Measured by GDP, the label BRIC would be CBRI, in dollar terms, orCIRB, in PPP (Purchasing Power Parity).

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Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008

CIRB would be more accurate to designate the block when comparedto other countries, and groups.

Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008

Source: IMF, World Economic Outlook Database, April 2008

These countries differ deeply in performance and weight in the worldeconomy. China grew more than twice the world average and one third morethan the other emerging markets.

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IRC (India, Russia amd Brazil)

Source: IMF/WEO (PPP), 2008

A 2003 Goldman Sachs study suggested that total BRICs GDP wouldsurpass the current G7 in 2035, but China alone was projected to overtakeevery developed country, the U.S. included, by 2040. Actually, China hasdistinguishing traits while compared to the other BRIC countries. Size, netreserves, domestic market, population, technology, entrepreneurship, nuclearweapons, and a command economy make China the only developing countrycandidate to be a global power.

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As emphasized by Ferguson and Schularick (2007), over the past tenyears, to understand the world economy the most important phenomenon hasbeen the relationship between China and America, dubbed Chimerica.Differently from many scholars that identified only signs of “crony capitalism”in China, Ferguson (2008) gave prominence to the Chinese concrete deedscompared to the prescriptions emanated – but not necessarily followed by –from Washington to be embraced by the rest of the world. In fact, accordingto his view, Chimerica was the real engine of the world economy.

But Chimerica was deeply unbalanced as the Chin did the saving, andMerica the spending. The divergence in savings set off a remarkable explosionof debt in the United States. To be expected, not only China but other Asianand developing countries around the world accumulated net reserves, runsurpluses, and kept their exports affordable. Essentially, developing countries´savings stimulated a huge expansion in spending in the United States, madepossible by negligent lending and sometimes deceiving financial environment,loosely controlled by national and international institutions.

In geopolitical terms, the implications are:

1. As a certainty, the combination of a financial collapse with a hugerecession will change the world;

2. The balance of global power will change; yet it is early to conclude thatthe U.S. power will decline irreversibly: the outcomes of the crisis have juststarted to come up, and what will happen depends on the unknownconsequences and decisions still unmade;

3. The legitimacy of the market will weaken, and the credibility of the USwill be damaged;

4. The authority of many developing countries, mainly China, will rise;5. China will make efforts to decouple from the U.S., relying less on

exports, and looking for other spheres of global influence;6. The global arena will be rocked by the crisis, and the BRICs could be

politically reinvigorated.

Maybe China is coming back to the place it lost since the IndustrialRevolution, as some analysts predicted. Yet there are huge problems to face,both in terms of democracy, and social inequality.

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Side 1

The other side of the coin

Brazilian democracy and inequality reduction

What about the quality of economic growth?Figures regarding income inequality around the world inspire no

enthusiasm, yet we have astonishing advances coming from the Brazilian society.Although Brazil still exhibits very high rates of poverty and inequality, bothrates have dropped dramatically over the past eight years, and they keep

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dropping. Behind that fall, there is a new combination of economic growthand a reasonably efficient and focused social safety network.

Developing countries states are facing challenges that require a new styleof public action. For instance, the Brazilian state under President Lula is morepro-active, for sure. Some market assumptions asserted during the 1990shave been reoriented or even interrupted; industrial policies are back in thepublic and private agenda, and the idea of having a national developmentproject gained momentum.

But at the same time, to mitigate social costs of markets and to takenecessary economic measures related to misguided regulation, and marketfailures, the Brazilian state interferes only modestly, in a quasi-reactive style.

Actually, some market reforms could undermine the developmental andcrisis-solving potential of the state. For instance, the de facto autonomy ofthe Brazilian Central Bank reveals loss of state power, previously concentratedin the Ministry of Finance. By the same token, lowering export-import barriersmade the economy more open than in the 1990s.

Simultaneously, such political decisions reinforced the state social-structuring power, since the importance of domestic institutions has beenenhanced, resulting in positive externalities to the economy and more legitimacyto the government.

The changes happen at different levels and spheres, and there is a newmix of synergies between public and private, translated by a set of newinstitutional arrangements and policies, aimed at supporting a dialogue betweencivil society, business sector, and the state.

In Brazil, differently from China, and even Russia, this stream flows fromdemocracy; that is why the Brazilian experience under Lula functions as abarrier, a real political obstacle, to the temptations to return to the old daysthat have marked negatively Latin America4.

Two tales could put the whole issue in a nutshell: (i) New multinationalcompanies, and (ii) Inequality reduction.

(i) New multinational companies. For years, statism has beenassociated with ultimately unsuccessful, inward-oriented developmentstrategies, placing the notion of public intervention into question. The publicinterventions at the foreign relations level diversified the Brazilian trade mix,

4 As insinuated by Chavez, for example.

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its export-destinies and enlarged its markets. At the sectoral level, the stateintervened through taxes, and influenced credit, input, risk, information,and distribution markets; the state also promoted economic reorientation– along the lines of international comparative advantage – more rapidlyand at lower costs than market forces would achieve on their own. Recentdata released by the Institute for Applied Economic Research (IPEA,2007) show that companies in Brazil remain strong competitors in globalmarkets in standardized agricultural and industrial goods.

However the data show also that a small, but important group ofBrazilian companies – responsible for more than 25% of industrial sales –is participating in international markets via exports of medium and high-technology goods. This group of highly competitive Brazilian firmsgenerates positive growth spillovers in terms of wage and productivity.

Contrary to expectations in Brazil about a regressive specialization interms of export products following liberalization (and Dutch disease), thenew competitive environment is unleashing new business perspectivesassociated with innovation.

The Brazilian industrial elite’s ability to successfully compete in theglobal economy is rooted in improved innovative capacity. In response tointernational and domestic conditions, these innovative firms have changedtheir business strategies and also their attitudes towards technology,innovation and employment. That is, public action to promote specificnew exports sectors has been combined with a gradually declining andsectorally differential tariff regime as part of an industrial policy aimed atexport orientation. In doing so, traditional and nontraditional exportssectors can be supported while adjustment (not deindustrialization) inmanufacturing is promoted. The Brazilian companies, exposed to fiercecompletion during the 1990s, and stimulated by public policies dealingwith credit, infrastructure etc., started imitating, mimicking, copying and,at the same time, improving their knowledge-creation systems. It was nota matter of public policy or of a more competitive climate per se, but anew combination that nurtured a concrete transformation inside companies.They have adjusted themselves to the new global competition, benefitedfrom government incentives, and developed innovative capacities,processes, organizational forms, strategies, new-type networks, andbusiness models. In the process, they might be giving birth to a newentrepreneurship in South America’s largest economy.

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(ii) Inequality reduction. Brazilian recent growth is being felt in nearlyall parts of the economy. Most importantly, Brazil has fueled growth througha combination of respect for markets, state intervention in the economy, andtargeted social programs, which are lifting millions out of the poverty line.

Historically famous for its unequal distribution of wealth, Brazil has shrunkits income gap by six percentage points since 2001, more than any othercountry in South America this decade, as recognized by the World Bank, andin contrast to China, India, Russia and most OECD countries, where inequalityis raising.

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While the top 10 percent in Brazil saw their cumulative income rise by7% from 2001 to 2006, the bottom 10% shot up by 58% percent (Neri,2009). The government has deepened and unified many existing socialprograms, created new ones, and developed a microloans system across thecountry.

Other programs, like Bolsa Família, transfer cash directly to millions ofpoor Brazilians. Bolsa Família, which reaches more than 11 million familiesnationwide (around 45 million people), with an annual budget of about US$ 2billion, has been far more effective at raising per capita incomes than recentincreases in the minimum wage, which has risen 36 percent since 2003. Eachfamily is entitled to receiving the benefits only if their children go to school andmeet doctors regularly.

The bottom-up nature of such social programs has helped expand formaland informal employment. Actually, the combination of different social policiesunder low inflation growth – substantially helped by cash transfers and minimumwage level improvement –sustains the current poverty and inequality reductionvirtuous cycle in Brazil. The number of people under the poverty line — aboutUS$ 2 per day — fell by 32% from 2004 to 2006.

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Six preliminary conclusions

1. Under the acronym BRIC there are different economies, markets,military and technological powers. Besides their traditional cultural and historicaldifferences, the four BRICs occasionally appear acting together in the worldscenario, but usually they compete for markets and international positions.Beyond their contrasts, BRIC could survive only as a political artifact.

2. Emerging economies have been growing faster than developed countriesfor several decades, and promoting a deep impact on developed countries´inflation, interest rates, wages and profits. At the heart of this shift are theBRIC countries, which have been propelled by a Chinese engine. Due to itsdimension and global weigh, what happens to China is crucial for the BRICs,for all developing countries, and the world. Actually, China is the only emergingcountry which is able to become a global power.

3. Maybe the global recession put a stop in their growth. However, thereare signs telling that it should happen only momentarily, as the downturn isshrinking the richest economies, but only slowing the emergent giants.Apparently, in both cases the “symbiotic relationship” between the U.S. andChina, christened Chimerica by Fergunson and Schularick, is about to end.If the BRICs restore their growth rapidly, they could play an active politicalrole to push the global economy out of the crisis, and providing the biggestrepositioning of nations in the world arena since the industrial revolution.

4. Recent developing countries trajectory has raised many questionsabout the conditions and state of the state. The old debate about the decliningstate has shifted, as has the view that free-markets are simply expanding. Nodoubt developing countries states have altered dramatically their real policycapacities, institutions, and political powers. Since the 90´s, most emergenteconomies, mainly in Latin America, are no longer seen to wear the straitjacketsuggested by neo-classic orthodoxy. Actually, almost everywhere, states havenever been really in retreat, though they have definitely changed.

5. There is a new political animal, asking for theory-building; it is differentboth from the free-market friendly state proposed by the World Bank andIMF in the last quarter of the 20th century, and the developmental state AsianTiger style. National states have responded to globalization pressures throughdomestic institutions, and according to their interests, passions and valueshistorically structured. As some other developing countries, Brazil is renewinginstitutions, promoting interactions between the public and private sector, and

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expanding social safety networks. These processes go through – and areenabled by – democracy.

6. The old-style developmental state is dead, but this does not meanthat the role of the state is declining. States have lost the ability to solelydefine the necessary development policies, but they are capable of buildingnew institutions, molding the economic environment, and promoting newinteractions between the public and private sector. For instance, it is truethat the role of the states has increased in Latin America since 2000. But,in an apparent paradox, their economies are much more open than before.Larger states such as the BRIC countries play a new and important role infacilitating market reforms, as pointed out by Weiss (2005: 352):“globalization reinforces and augments the state’s centrality to social life”.

Social scientists need to elaborate more on these change processes. There isa long road ahead for developing countries. Most of them, like Brazil, are stronglycommitted to democracy, and are heavily investing in strengthening their social-security networks, in order to alleviate poverty and reduce inequality. If the currentcrisis permits, they might meet new and superior development syntheses.

References

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Economist Intelligence Unit, BRICs Report (2008).

Ferguson, Niall, “Geopolitical Consequences of the Credit Crunch”. Postedon September 21th at: http://www.niallferguson.com (2008).

Ferguson, Niall & Schularick, Moritz, “´Chimerica´ and global asset markets”.International Finance, 10-3 (2007).

Neri, Marcelo, Center for Social Policies, Getúlio Vargas Foundation: Rio deJaneiro (2009).

O’Neill, Jim, “Building Better Global Economic Brics”, Global EconomicsPaper # 66. Goldman Sachs: November (2001).

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UNDP, World Income Inequality Database, WIID (2005).

Weiss, Linda. “The State-augmenting Effects of Globalisation”. New PoliticalEconomy, Vol. 10, No. 3 (2005).

World Economic Outlook Database, IMF. April (2008).

Projections on BRICs performance in the global economy have been basedon Depec-Bradesco contribution.

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Amazônia: os desafios de uma região complexae dinâmica1

Adalberto Luis Val2

“A bacia amazônica é uma dessas grandezas tãograndiosas que ultrapassam as percepções do homem.”

Mário de Andrade, O turista aprendiz, 1927

A Amazônia continua sendo um desafio. Desafio de todas as ordenspara todos os países que têm uma parte desse bioma. Poderia ser diferentenesse momento se tivéssemos acumulado informações adequadas quepermitissem intervenções seguras. Em função da dimensão gigantesca dosrecursos necessários, mesmo para uma primeira visita e, simultaneamente,da escassez desses recursos, as ações para conhecer a região sempre foramtímidas e incompatíveis com as suas necessidades. Isso foi um erroestratégico pretérito para com a Ciência, Tecnologia e Inovação,particularmente em decorrência da atual demanda por informações quepermitam o domínio e a soberania sobre os recursos naturais e sociaisexistentes na região. Além disso, ressalte-se que muitas vezes a informaçãoexiste, mas não é reconhecida globalmente. Não faltam exemplos gerais emesmo específicos que vão desde a eterna disputa sobre a invenção doavião3 até o patenteamento recente de produtos da flora e da fauna daAmazônia, respectivamente. Na Amazônia há que se associar a isso, ainda,

1 Texto preparado para a III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional –CNPEPI, O Brasil no mundo que vem aí, realizada na cidade do Rio de Janeiro nos dias 8 e 9 dedezembro, sob os auspícios da Fundação Alexandre Gusmão e Instituto de RelaçõesInternacionais, Ministério de Relações Exteriores do Brasil.2 Pesquisador e atual Diretor-Geral do INPA, e-mail: [email protected] CGEE (2008). Brasil: a economia do conhecimento. Brasília, DF.

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a eterna presença tênue do Estado, que fragiliza ainda mais o atendimentoàs demandas da sociedade.

A presente abordagem sobre a Amazônia inclui três recortes queentendemos ser de vital importância para a definição de alguns dos desafiosa serem prontamente enfrentados. O primeiro refere-se ao ambiente e seusrecursos naturais; o segundo envolve o dilema desenvolvimento edesflorestamento e, o terceiro, o papel da Ciência e da Tecnologia comocaminho possível para processos de inclusão social com a manutenção dafloresta em pé. De pronto, antecipamos que o texto não se propõe a esgotaro assunto tendo em vista a dimensão e a complexidade dos problemas.

O ambiente amazônico e seus recursos naturais

A questão de escala é importante no caso da Amazônia. O biomaamazônico se estende por todos os países da parte norte da América do Sul,ocupando uma área total de 7,7 milhões de quilômetros quadrados. Observeque a Guiana Francesa faz parte desses números, o que do ponto de vistaeconômico contrasta com os demais países, já que a França faz parte dogrupo dos países ricos. Essa área é maior do que a Europa continental (Figura1). O Brasil detém a maior parte do bioma amazônico, cerca de 5,08 milhõesde quilômetros quadrados, aproximadamente 60% do território, avançandosobre nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso,Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima. Nestes estados vivem cerca de 23milhões de brasileiros que geram algo em torno de 8% do PIB (ProdutoInterno Bruto) do Brasil. Evidentemente, o desenvolvimento desses estadosé desigual tanto no que se refere à riqueza que geram quanto aos recursosnaturais que usam para gerá-la. Disso resulta uma pressão ambientaldiferenciada, com taxas de desmatamento significativas em alguns dessesestados. Essa dimensão tem sido raramente considerada nos planejamentosdiversos e tem profundos reflexos negativos na infra-estrutura relacionada àcomunicação, distribuição de energia, malha viária, saúde, ciência e tecnologia,sistemas de proteção contra o desflorestamento, entre outros. Ainda quecom frações menores da Amazônia, os demais países amazônicos têm emrelação à floresta os mesmos desafios ambientais, sociais e econômicos e jáé devida, de longa data, uma agenda comum, que inclua compromissosmultilaterais em relação a Amazônia. Ainda que várias tentativas nesse sentidotenham sido desencadeadas, a exemplo da OTCA (Organização do Tratado

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de Cooperação Amazônica), nenhuma alcançou o sucesso inicialmenteprevisto4.

Ao lado da escala espacial, há que se considerarem outros recortesigualmente importantes para a Amazônia. Assim, os recortes temporal,jurisdicional, institucional, de gestão, das redes sociais e de conhecimento,como destacado por Cash e colaboradores em 2006 são igualmenteimportantes5. Alguns desses recortes estão sendo comentados ao longo dessetexto.

O ambiente amazônico, ao mesmo tempo complexo e de relações bióticase abióticas muito delicadas, vem sendo construído ao longo dos temposgeológicos e produzindo as bases para a evolução de uma flora e uma fauna,ainda não dimensionadas e sem paralelo na parte do planeta Terra queconhecemos. Estas flora e fauna, ao interagirem e co-existirem em ambientesdinâmicos, dinamizam ainda mais os processos evolutivos, testando novasformas adaptativas. As condições reinantes na Amazônia poderiam estarrivalizadas, apenas, num dos outros três Eldorados, ainda igualmentedesconhecidos: a Antártica, o Fundo do Mar e o Espaço Sideral6.

A complexidade do ambiente amazônico vai desde os microelementospresentes nos solos e nas águas até as diferentes espécies de plantas e animaisque se organizam de forma diferenciada nos diversos ambientes da Amazônia.A área de captação hidrográfica da bacia estende-se desde 79oW (RioChamaya, Peru) a 46oW (Rio Palma, Brasil), de 5oN (Rio Cotingo, Brasil) a17oS (alto Araguaia, Brasil)7. Isto faz da Amazônia o maior e mais tropicaldos ecossistemas, comparável em tamanho apenas aos ecossistemas africanos.Neste espaço as águas brancas, pretas e claras misturam-se e interagem como solo e a floresta local dando origem a uma infinidade de tipos de água8. Arealidade inclui, ainda, um caos de ilhas, um mosaico fluido de pequenos

4 Machado, J.A.C. (2009) Objetivos de uma política externa do Brasil em relação à Amazônia:proposta para discussão. Presente volume.5 Cash, D.W.; Adger, W.N.; Berkes, F.; Garden, P.; Lebel, L.; Olsson, P.; Pritchard, L. & Young,O (2006) Scale and cross-scale dynamic: Governance and information in a Multilevel worold.Ecology and Society, 11(2): 8.6 A comparação com o Fundo do Mar e com a Antártica foi inicialmente feita por Bertha Beckerna Conferência Preparatória para a IIICBCTI, em Março de 2005. Durante a conferência, emnovembro de 2005, a comparação com o Espaço Sideral foi feita por Armando Dias Mendes.7 Revisto por Val, A.L. & Almeida-Val, V.M.F. (1995) Fishes of the Amazon and theirenvironments. Physiological and biochemical features. Springer Verlag, Heidelberg.8 Sioli, H. (1991). Amazônia. Fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais.Vozes, Petrópolis.

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igarapés, rios desmedidos, pequenos e grandes lagos que resistem à oscilaçãonatural do nível de água da região (figura 2), árvores de todos os tamanhos epeixes de todas as formas. A Amazônia, como bem assinalou Avé-Lallemantem seu livro Rio Amazonas de 1859, é “um mar de florestas num oceano deágua doce”.

É equivocado antever a Amazônia como uma região homogênea noespaço e estável no tempo. A região é dinâmica – não apresenta nenhum diaigual ao outro. O sobe e desce das águas, o silêncio ensurdecedor queevidencia em algumas áreas sons esquecidos, o cair das árvores, o pôr-do-sol, o vento, a friagem, a chuva, a ilha que se move continuamente, as migraçõesdo homem e dos bichos, o abraço-da-morte, o peixe que “anda” de um lagopara outro, o peixe que morre afogado, o tubarão que confunde o tipo deágua, mas não sua imensidão, criam a cada dia, um desenho novo para oEldorado Amazônico9 que demanda conhecimento para sua conservação edesenvolvimento.

Sem dúvida, a água representa a maior riqueza natural desta região, nãosó por ser ela própria diversa, mas também pela quantidade existente. Abacia Amazônica lança no Oceano Atlântico cerca de 20% de toda a águadoce lançada nos Oceanos no planeta. Isso representa cerca de 18 bilhõesde metros cúbicos de água por dia ou o equivalente a 80% da água docesuperficial do Brasil. Contudo, o Rio Amazonas recebe 78% de seu volumeem território brasileiro, a partir de nascentes localizadas, em boa parte, nospaíses vizinhos, o que impõe a necessidade de uma agenda comum para oaproveitamento desse bem natural. Essa agenda é particularmente relevanteno caso da ampliação do número de reservatórios para a geração de energiaelétrica na Amazônia.

Ao lado da água, a biodiversidade existente na Amazônia se constitui numpatrimônio natural especialmente relevante. O conceito moderno debiodiversidade inclui todos os níveis de variação natural, desde o nível molecularaté o nível das espécies, nos seus ambientes10. Entender como essa variabilidadese dá requer entender como processos ecológicos, geológicos, biogeoquímicose evolutivos interagiram e determinaram as qualidades específicas de cada lugar,em cada momento. A complexidade dessas interações é tamanha que

9 Val, A.L. (2000) Amazônia – da Pangeia à Biologia Molecular. Comciência. 10/Nov/2000.http://www.comciencia.br10 Val, A.L. & Almeida-Val, V.M.F. (2003) Biopirataria na Amazônia – a recorrência de umaprática antiga. Comciência. 10/Abr/2003. http://www.comciencia.br

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possivelmente não tenha se repetido e, portanto, a diversidade biológica nassuas vertentes diversas é endêmica e específica. É exatamente essa variaçãonatural que desperta interesse e se constitui num potencial inexplorado naAmazônia. Essa variação, escondendo as estratégias usadas por cada um dosorganismos para responder aos desafios do meio com o qual interagem, refletea habilidade adaptativa desses organismos e permite desenhar ações paraintervenção ambiental bem como explorar novos produtos e processos deimportância social. Em números gerais, na Amazônia vivem quase metade dasaves conhecidas no planeta, mais de 1600 espécies, entre 10 e 15 milhões deinsetos, cerca de 1000 espécies de anfíbios e répteis, além de caranguejos,camarões e um sem número de microrganismos. Contudo, este patrimônio estáduplamente não dimensionado: as plantas, os animais e os microrganismosexistentes na Amazônia não são integralmente conhecidos da ciência e astentativas todas para dar um valor à biodiversidade têm esbarrado na falta deinformações acerca de suas aplicações.

Por exemplo, no que se refere aos peixes, valendo o paralelo para outrosgrupos de organismos, são mais de três mil espécies descritas, comrepresentantes desde os grupos taxonômicos mais primitivos até os maisrecentes. Em relação à ictiofauna de água doce da América do Sul, a Amazôniaapresenta pelos menos 75% do total de espécies conhecidas. Em apenas umdos inúmeros rios da região, como o Negro, o Madeira ou o Trombetas, nãomenos que 400 espécies de peixes são descritas, número esse superior aodescrito para todos os rios da Europa. Apesar dessa imensa diversidade, apesca amazônica está centrada num número restrito de espécies – não maisque 20 espécies são responsáveis por mais de 80% de toda a produçãopesqueira. Isso provoca problemas graves de manejo, podendo desestruturaras populações naturais ao levar os estoques naturais mais visados à depleção11,particularmente nesta região em que o peixe se constitui na principal fonte deproteína. Do ponto de vista econômico-social, merece destaque também aprodução de peixes ornamentais em vários subsistemas amazônicos, comdestaque, na Amazônia brasileira para a bacia do Rio Negro. Nesta baciasobressai a exploração de duas espécies: o cardinal, Paracheirodon axelrodi,e o acará-disco, Symphysodon spp (figura 3). O cardinal se notabiliza pelagrande quantidade explorada: são mais de 20 milhões de exemplares por ano.

11 Santos, G.M.; Ferreira, E.J. & Val, A.L. (2008) Amazônia, o universo dos peixes. ScientificAmerican, Amazônia, 64-71.

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Contudo, a biologia dos peixes da Amazônia inclui dois aspectos queinteressa à pauta de discussões com outros parceiros interessados naregião ou que compartilham o bioma: a relação que mantêm com a florestae as migrações de longa distância. Os peixes amazônicos mantêm estreitarelação com a floresta, especialmente na época da cheia, quando as águasdeixam o leito principal do rio e alcançam as terras mais baixas ou mesmomais distantes, onde a floresta inundada provê parte do alimento. Asvárzeas dos rios de água branca e os igapós dos rios de água preta sãoambientes vitais para a vida dos peixes amazônicos. O desmatamentoque é particularmente danoso quando ocorre na cabeceira dos rios, resultana destruição desses ambientes, causando desequilíbrios importantes naspopulações de peixes da Amazônia. Além disso, o desmatamento resultaainda numa maior exposição dos animais aquáticos à radiação ultravioleta,impondo-lhes os efeitos já amplamente conhecidos tanto no nível genéticoquanto morfológico. As migrações de longa distância dos peixesamazônicos são consideradas as mais extensas entre os peixes de águadoce do mundo. Elas são realizadas pelos grandes bagres da região, comoa dourada, Brachyplatystoma rousseauxii (figura 3), e a piramutaba,Brachyplatystoma vaillantii que desovam nas cabeceiras dos grandesrios nos sopés andinos, de onde os ovos e larvas são carreados rio abaixoaté a foz do Amazonas. No estuário as formas jovens se desenvolvem erepetem o ciclo de migração rio acima com deslocamentos superiores atrês mil quilômetros. Assim, qualquer distúrbio na foz do Amazonas podeter reflexos ampliados até o sopé andino e vice-versa12. Da mesma forma,qualquer restrição física à movimentação desses animais se refletirá nadinâmica populacional dessas espécies de peixes.

É importante, ainda neste quesito, lembrar que na Amazônia vive umapopulação humana igualmente diversificada e grande. São cerca de 23 milhõesde pessoas que vivem apenas na Amazônia brasileira, boa parte nos principaiscentros urbanos. Portanto, a Amazônia não é uma região só de bichos eplantas; é também urbana, com os mesmos desafios das grandes metrópoles,já que inclui pelo menos três cidades com mais de um milhão de habitantes.Todas as discussões sobre conservação ambiental devem incluir a presençahumana, suas necessidades e anseios.

12 Santos, G.M.; Ferreira, E.J. & Val, A.L. (2008) Amazônia, o universo dos peixes. ScientificAmerican, Amazônia, 64-71.

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Desenvolvimento & Desmatamento

A Amazônia ocupa posição estratégica para o desenvolvimento dospaíses do norte da América do Sul, particularmente em função de seu imensopatrimônio natural, compartilhado por vários países. Essa condição colocaos países dessa região em condições similares para discutir os rumos para odesenvolvimento e conservação desse patrimônio, condição que contrastacom aquelas existentes entre países que compõem outros blocos econômicos.Sem dúvida, a Amazônia ocupa posição central para o desenvolvimento daregião, ainda que a dicotomia “desenvolvimento versus conservação” apareçanesse caso de forma maiúscula. Isso se explicita pela clara necessidade deampliação da oferta de energia elétrica, de integração viária entre os centrosurbanos dos países que compõem a região, de profunda reforma do sistemade comunicação, de sistemas de transporte de gás e petróleo, entre outros.De novo, a escala é fundamental e, no caso em tela, não só a dimensãogeográfica é importante, mas também a escala temporal, já que asustentabilidade se correlaciona com o tempo.

O bioma amazônico abriga uma extensa população que, com rarasexceções guarda estreita relação com o meio ambiente e dele depende paraa geração de recursos para sua sobrevivência. Entre as exceções destaca-sea Zona Franca de Manaus, que baseada em vários ramos industriais, empregaum considerável número de pessoas e tem reduzida dependência de recursosnaturais da Amazônia. De qualquer forma, há um grande desequilíbrio entre aqualidade de vida da população amazônica, senso amplo, e aquela que vivenos centros desenvolvidos dos diversos países amazônicos. No caso brasileiro,isso se expressa pela reduzida renda per capita dos brasileiros que vivem naregião, que é cerca de 40% menor. Esse desequilíbrio resulta numa pressãosobre a floresta e é, em boa parte, razão dos muitos conflitos existentes. Istoé, nossa capacidade de monitoramento do desmatamento, valendo-se detecnologia moderna e associada a uma rigorosa e moderna legislação ambientalque impõe severas restrições às ações que resultam em degradação ambiental,contrasta com a inexistência simultânea de ações em dimensões adequadasvoltadas para a inclusão social e geração de renda.

Essa escala sócio-econômica é essencial. Enquanto não houveralternativas, as explicações para a degradação ambiental virão de númerossólidos: a Amazônia legal já é responsável pela produção de 20% da sojanacional, tem 11% do rebanho bovino, 13,5% da produção mineral e é

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responsável por aproximadamente 8% do PIB (Produto Interno Bruto)brasileiro. O custo ambiental desses números está refletido nos cerca de 15%de alterações ambientais em ecossistemas da Amazônia e na ausência debenefícios para o povo da região, que concorre com o Nordeste brasileiropara os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)13.

A produção de soja, de carne e de minérios, para se ater as trêscommodities relevantes para a Amazônia, ocorre, em boa parte, no arco dodesmatamento, ou seja, no sul da Amazônia, envolvendo principalmente osestados do Pará e do Mato Grosso. Isso corrobora o que aprendemos paraos demais ecossistemas do mundo. A Mata Atlântica deu lugar, por exemplo,às condições para geração da maior parte do PIB nacional e à instalação dascidades; as florestas alemãs, ao posicionamento da Alemanha entre os paísesdesenvolvidos, e assim por diante. A rigor, não há nenhum país desenvolvidoque tenha mantido seus recursos naturais intactos. Também, não há nenhumpaís tropical desenvolvido. Portanto, os modelos até aqui existentes permiteminferir uma ampla incompatibilidade entre desenvolvimento e conservação defloresta. Então, quais os caminhos possíveis que compatibilizamdesenvolvimento e a manutenção da floresta em pé? Estamos muito longe deuma resposta razoável para esta questão, mas podemos nos permitir algumasinflexões.

Em primeiro lugar, precisamos rever o posicionamento global em relaçãoao valor da floresta em pé. Se a floresta em pé representa sustentabilidade, éevidente que precisamos definir valores. O atual modelo político internacionalpode até propor e impor pressões para que a Amazônia seja preservada,mas se isso representa um serviço internacional, deve ter seu custodimensionado, particularmente pelo fato de a Amazônia ser um ambiente queabriga, como mencionado, uma extensa população humana que depende dafloresta. Também, e em segundo lugar, não há evidências de que os povos daAmazônia queiram viver de tais serviços ambientais. Na realidade, seránecessário desenvolver e implantar sistemas produtivos limpos que permitama inclusão social com geração de renda e manutenção da floresta em pé. Semdúvida, este é o desafio que está posto para a Ciência, Tecnologia e Inovação.

Não será necessário acabar com a pecuária ou a plantação de soja naAmazônia. O que será necessário é desenvolver mecanismos para ampliar a

13 Clement, C.R.; Val, A.L. & Oliveira, J.A. (2003) O desafio do desenvolvimento sustentávelna Amazônia. T&C Amazônia, 1(3): 21-32.

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produção nas áreas degradadas e impor severas limitações para o avançodessas atividades econômicas sobre áreas novas de floresta nativa. Ainda, ouso da terra deve ser disciplinado e socialmente justo, de tal forma a reduziro conflito velado que decorre da existência de grandes propriedades privadasem conjunto com uma imensa população sem espaço para sobreviver. Eaqui, mais uma vez a falta de informações facilitou o adiamento das ações; sómuito recentemente as questões de uso da terra, a diversidade cultural, asquestões antropológicas, entre outras, passaram a fazer parte da agenda daregião, mesmo assim de forma tímida.

Algumas tecnologias novas podem ter um papel decisivo neste conflito“desenvolvimento versus desmatamento”. A biotecnologia emerge como umaferramenta de destaque. Não há dúvidas que a interação de plantas e animaiscom o ambiente igualmente diverso existente na Amazônia ao longo de milhõesde anos resultou num conjunto de informações de grande relevância para ohomem. Estas informações estão escondidas nos milhares e milhares degenomas desses organismos da Amazônia. A análise da expressão de genesinduzida por condições ambientais específicas revela que estamos tocandona ponta de um iceberg de oportunidades. São genes envolvidos com aprodução de altos níveis de vitamina C em algumas espécies de frutos, com orápido crescimento de algumas espécies de peixes, com a resistência de peixesa fungos e vírus; com a reprodução de espécies nativas de peixes deimportância comercial, com o ciclo de vida de algumas doenças amazônicas,com processos de resistência a condições de baixa disponibilidade de oxigênioem algumas espécies de plantas, entre outros. Essas informações precisam irda bancada do laboratório para as fábricas, as chamadas bioindústrias.Algumas iniciativas poderão acelerar esse processo e ajudar a gerar as basespara a redução dicotômica “desenvolvimento versus desmatamento”. Entreelas destacamos o Centro de Biotecnologia da Amazônia, a Rede Bionorte eos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, estes recém-criados peloGoverno brasileiro.

Sem dúvida, outras ações são igualmente importantes e ajudariam a reduzira pressão sobre a floresta e, por conseguinte, os conflitos na região. Estãoem voga: a produção manejada de madeira, o ecoturismo, os produtos nãomadeireiros, o sequestro de carbono e outros serviços ecológicos. Comexceção da madeira e dos serviços ecológicos, nenhum outro tem escalapara atender um mercado mundial. E mesmo assim, no que se refere à madeira,é preciso urgentemente organizar o processo produtivo, já que não há dúvida

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que o manejo tradicional não é economicamente sustentável na Amazônia. Énecessária, também, uma conscientização no sentido de abrir mercados apenaspara a madeira manejada, já que uma parte considerável da madeira hojecomercializada vem de atividades espúrias e desorganizadas14. No que serefere aos serviços ambientais, um novo direcionamento merece atenção: oREDD (Reduced Emissions from Deforestation and Degradation). A reduçãodos níveis de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e dadegradação florestal é, definitivamente, um assunto de grande relevância15.Contudo, é necessário que os recursos do REDD sejam investidos nodesenvolvimento e reestruturação do setor madeireiro de tal forma a evitarações predatórias e valorizar ações sustentáveis, com inclusão social.

O Ecoturismo é uma opção muito razoável porque a “contemplaçãoda natureza” é de longa data uma das mais sustentáveis atividadeseconômicas e pode ser importante para gerar condições satisfatórias parainclusão social. Entretanto, é necessário um rápido processo deorganização dessa área, com treinamento de pessoal para atividades deconservação e interação com os visitantes, em sua maior parte, vindos depaíses desenvolvidos, com a capacitação de pessoal para a gestão dereservas ambientais, com a melhoria da infra-estrutura, entre outros. Talvezparte dos recursos do REDD pudesse ser aplicada nessas ações. Alémdisso, é necessário ter-se em conta que tanto o Ecoturismo quanto asdemais opções seriam viáveis, em tese, nos centros mais desenvolvidos ecom uma população ativa em número significante, já que boa parte dosturistas, os consumidores e os agentes de negócios buscariam estescentros. Alguns centros de mineração, os centros produtores de peixesornamentais, algumas cidades fronteiriças, Alter-do-Chão, entre outrossão exceções.

Enfim, estamos muito longe da posse de um conjunto de ações que permitacontornar a dicotomia “Desmatamento versus Desenvolvimento”. Por todosos ângulos que analisemos essa questão deparamos com dois aspectosrelevantes: i) faltam informações científicas e tecnológicas robustas quepermitam intervenções seguras; e ii) as estratégias dos jogadores não sãointeiramente conhecidas já que muitas delas têm significação econômica.

14 Val, A.L. & Clement, C. (2009) A future Amazonia. Live Better Magazine, in press.15 Higuchi, N. & Soares, V. (2009) Carbon Dynamics of Amazon Forests. Proposal to theJapan-Brazil International Scientific Collaboration.

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O papel da Ciência e da Tecnologia

Transformar o capital natural da Amazônia em ganhos sociais, nestesincluídos, evidentemente, os ganhos econômicos e, ao mesmo tempo, protegeros sistemas de suporte à vida na Terra, é um desafio que requer açõesintegradas de governos locais, regionais, nacionais e internacionais, desociedades conscientizadas, de empresários e dos cientistas e tecnologistas.O papel da Ciência e Tecnologia se tornou muito mais evidente nessa últimadécada que assistiu movimentos sociais efetivos para que se encontremcaminhos seguros em direção a sustentabilidade das ações que envolvem omeio ambiente. O ponto de partida para esse movimento se deu a partir daconstatação de que há limites definidos para o desenvolvimento, que sãoimpostos pelos limites ambientais do planeta16. Isso envolve mudanças decostumes e, mais desafiador, envolve mudanças de costumes das parcelasque mais se valem dos recursos naturais. Por isso, acredita-se que “ciência etecnologia (C&T) devem desempenhar um papel mais central para odesenvolvimento sustentável. Porém, pouco conhecimento sistemático existesobre como criar instituições para efetivamente utilizar C&T para asustentabilidade”17.

No caso amazônico, ainda que um volume considerável de informaçõessobre a região esteja disponível, é necessário ampliar os esforços para alémda descrição da biodiversidade. É necessário aprender com ela, é necessárioentender a dinâmica da região em relação ao ambiente e seus diversoscomponentes, incluindo o homem e suas demandas. Contudo, o uso do quejá conhecemos sobre a região está limitado pela tênue interação e cooperaçãoentre atores sociais, isto é, da socialização da informação em níveis adequadose compatíveis com as dimensões da região.

Os dados existentes mostram claramente que há uma relação direta entreo PIB e o número de doutores fixados em uma dada região. Isto é de certaforma previsível, já que a geração de renda depende primariamente deinformações seguras. Nos nove estados amazônicos juntos há pouco mais

16 Clark, A.C. & Dickson, N.M. (2003) Sustainability science: the emerging research program.Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 100 (14);8059-8061.17 Cash, D.W.; Clark, W.C.; Alcock, F.; Dickson, N.M.; Eckley, N.; Guston, D.; Jäger, J. &Mitchell, R. (2003) Knowledge systems for sustainable development. Proceedings of theNational Academy of Sciences of the United States of America, 100 (14); 8086-8091.

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que três mil pesquisadores com doutorado nas instituições de ensino pesquisa.Boa parte desses profissionais está envolvida com atividades administrativas,com reduzida dedicação às atividades de pesquisas e treinamento de novosmestres e doutores. A consequência disso é a baixa capacidade da região emalavancar investimentos mais significativos e duradouros para a região. Emtermos gerais, os investimentos das agências federais na Amazônia estãolimitados a aproximadamente 2,5% do total de investimentos nessa esferasetorial no país.

Diversas iniciativas para o fomento da Ciência e Tecnologia (C&T) naAmazônia foram pensadas e, em parte colocadas em prática, nos últimos 30anos18. Programas, planos e projetos foram concebidos e inseridos numaagenda amazônica sempre fragmentada. Entre eles, e para citar apenas alguns,temos: o Programa do Trópico Úmido – PTU, o documento da ComissãoCoordenadora Regional de Pesquisas na Amazônia – CORPAM, o ProgramaNorte de Pesquisa e Pós-Graduação – PNOPG, o Programa Norte deInteriorização – PNI, o Protocolo de Integração das Universidades daAmazônia Legal – PIUAL, e o fórum das Universidades da Amazônia –UNAMAZ. É consenso que todos esses instrumentos focaram, de algumaforma, nos esforços de criação de uma base institucional mais forte compreocupações voltadas para a identificação de prioridades em C&T, acessoaos financiamentos e qualificação de pessoal. Esses esforços são caracterizadospor uma fase de expansão, seguida de estagnação e declínio. Não houve atéaqui ações de longo prazo que tenham criado as bases para a auto-suficiênciada região para produzir em suas instituições a capacitação de pessoal pós-graduado necessário para atender a demanda atual por informações sobreseus recursos naturais. Contudo, é necessário reconhecer que está em cursoum alinhamento político importante envolvendo diversos ministérios, agências(CNPq, CAPES e FINEP) e governos estaduais, estes por meio de suasFundações de Amparo à Pesquisa, que tem um forte conteúdo de capacitação,um claro reconhecimento de que a intervenção na Amazônia requerinformações. A seguir, é preciso desenhar mecanismos para fixar o pessoaltreinado nas instituições amazônicas, dando-lhe as condições para queimediatamente possam ampliar a capacidade da região para conhecer-se.

Não há dúvida quanto ao papel da Ciência & Tecnologia para gerar asinformações e trabalhar a sua socialização, já que a informação é a única

18 Mecanismos Estratégicos de C&T na Amazônia - MECTA, 2005

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forma segura que compatibiliza a almejada conservação ambiental com ainclusão social e a geração de renda. Assim, a Ciência e a Tecnologia têm,também, um papel importante para a ampliação da soberania de cada umdos países que detêm parte do bioma amazônico.

Em síntese, ao mesmo tempo em que a Amazônia está sob variadaspressões antrópicas locais, é vulnerável aos processos de mudanças climáticasde dimensões globais que está em curso. A mitigação desses efeitos dependede ações baseadas em informações robustas, planejadas e executadas deacordo com as dimensões da Amazônia, reconhecendo sempre que na florestahá cidades, grandes e pequenas, e um grande número de cidadãos que têmdemandas e buscam condições de vida mais adequadas. A floresta não é umvazio social.

Figura 1. Comparação da área da Amazônia brasileira com a Europaocidental. Extraído de http://www.amazonia.org.br

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Figura 2. Pulso regular dos níveis de água do Rio Negro durante osanos 90. Fonte: Schöngart, J. & Junk, W. J (2007), Journal ofHydrology 335, 124– 132.

Figure 3. Peixes de importância comercial da Amazônia. (a) acará-disco, Symphysodon spp, peixe ornamental da região de Barcelos, AM,foto A. L. Val; (b) piramutaba, Brachyplatystoma rousseauxii, comtamanho máximo de 1500 mm, fonte: natureplanet.blogspot.com/2007/10/manifesto.html

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Amazônia: políticas e estratégias

Adherbal Meira Mattos*

Introdução

Os elementos determinantes do futuro da Amazônia compreendem, interalia, o sistema ecológico e a potencialidade de recursos naturais, já que aAmazônia detém a maior reserva de recursos naturais do mundo; acontinentalidade, em face da enorme dimensão territorial da Região e tambéma desarticulação e reorganização do espaço amazônico, com base naconstituição de subespaços diferenciados e determinados eixos dinâmicos.Entre estes, podem ser citados o Núcleo Eletro-Eletrônico de Manaus, oTriângulo de Carajás, compreendendo projetos no setor mínero-metalúrgico;o Polo Agro-Industrial de Rondônia, que aglutina pequenos agricultores ecolonos; e o Eixo Agropecuário do Centro-Oeste e Sudeste Amazônico, notocante à agricultura e à pecuária.

Outros determinantes do futuro da Área são a limitação da infra-estruturaeconômica e da capacidade científico-tecnológica, principalmente, quanto atransportes, comunicações e energia. A geopolítica e a estratégia nacional(segurança), o que exige a revisão do Tratado de Cooperação Amazônica adespeito da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) ea real implantação do Projeto Calha Norte e do SIVAM/SIPAM. A

* Titular de Direito Internacional da UFPa.

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heterogeneidade e complexidade sócio-cultural da Região em termos deprodução, valores e hábitos. Conflitos sociais decorrentes de problemasmigratórios e da posse da terra, etc.

Os atores (patrocinadores) de um Cenário Desejado (Possível), para aÁrea, são exógenos e endógenos. Entre os exógenos, temos os gruposmultinacionais e os grupos empresariais nacionais urbanos e rurais. Os agentesfinanceiros internacionais. O empresariado do setor financeiro privado(serviços bancários, etc.). Instituições e movimentos religiosos, ligados àestrutura fundiária. Movimentos ecológicos nacionais e internacionais,governamentais e não governamentais (ONGs), Instituições Internacionaisde preservação e de conservação ambiental, inclusive, Institutos de Pesquisaem alta tecnologia, Instituições Científicas Nacionais, OrganismosInternacionais (ONU, através da UNESCO, PNUD e PNUMA), além dosque atuam em pontos centrais, de apoio, de bloqueio e de vigilância, tanto noplano logístico, como no plano de combate. Entre os endógenos, podem serincluídos o grande e o médio empresariado urbano e rural. O pequeno produtorrural. A tecnoburocracia regional. O pequeno empresário urbano.Trabalhadores rurais e urbanos. Profissionais liberais, etc.

Cenário Desejado

O Cenário Desejado baseia-se em quatro grandes hipóteses: avançoacelerado de ciência e tecnologia em escala internacional, com destaque paraa biotecnologia; Retomada do crescimento da economia brasileira; Reequilíbriodo Estado, com base na recuperação da capacidade de investimento, ecrescente consciência ecológica mundial.

Nota-se, paralelamente, que o sucesso do plano depende da preservaçãoe da conservação do potencial de recursos naturais renováveis dabiodiversidade da Amazônia e da capacidade política dos atores regionaisarticularem alianças com vistas a grandes decisões sobre o futuro da Área.

No contexto desse cenário, podemos incluir os seguintes itens:

• Modelo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente auto-sustentado.

• Zoneamento econômico-ecológico, compreendendo áreas demarcadas(atividade extrativista, empresas, garimpeiros, indígenas e reservas ecológicas);

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exploração mineral controlada pelo Estado; exploração mineral, através,preferencialmente, do capital nacional; e tecnologias que não degradem anatureza.

• Amplo sistema de comercialização, para o escoamento da produçãoregional dentro e fora do país. O Pacto Amazônico jamais atingiu taldesideratum, pois não ensejou a criação de um MERCONORTE, detendo-se, apenas, num pequeno comércio a varejo de produtos locais.

• Articulação da Amazônia com o resto do País, gerando maior equilíbrioeconômico-social, mudando o quadro da Região de mera exportadora dematérias-primas e de importadora de produtos industrializados.

• Ocupação demográfica, através de brasileiros, de forma planejada,gerando uma intensa rede de serviços sociais (educação, saúde, saneamento,etc.).

• Exploração dos recursos naturais em harmonia com o ecossistema,com vistas à preservação e à conservação ambiental. Isto implica na não-depredação das florestas; na recuperação das áreas devastadas ou emprocesso de devastação; na obrigatoriedade de estudos de impactosambientais; em pesquisas tecnológicas para articular desenvolvimento commeio ambiente; num sistema de divulgação de conhecimento científico; nadiversificação da agricultura; no desenvolvimento da agroindústria; namodernização da pecuária; e em novas técnicas de extrativismo e de pescaartesanal, além da exploração mineral racional.

• Parque industrial dinâmico, com o aproveitamento de matérias-primasregionais, adotando modernas tecnologias, sem agressão ao meio ambiente,gerando emprego e renda, desenvolvendo o comércio e um sistema detransporte multimodal, através de hidrelétricas sem impacto ambiental.

O Cenário Normativo (ou Desejado) é um cenário estratégico, um projetoarticulado de Amazônia futura e o desejo viável para a Amazônia. Um desejotecnicamente plausível e politicamente sustentável pelos atores da Região, aqual, no ano 2010 – segundo os Macrocenários elaborados pela então atuanteex-SUDAM – será definida como uma sociedade coerente com a sua basesócio-cultural e ecológica, moderna e aberta mundialmente, com um espaçogarantido de assimilação dos avanços da ciência e tecnologia mundiais parao seu próprio desenvolvimento. Sua trajetória denota positivas modificaçõesnas variáveis População, PIB, Processo Tecnológico, Exploração de Recursos

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Naturais e Controle Ambiental, Situação Indígena, Situação Social e Qualidadedo Meio Ambiente. Por exemplo, quanto à situação indígena, passando-sede conflitos para a autonomia das nações indígenas, e quanto ao processotecnológico, passando-se de uma modesta transferência para uma elevadatransferência de tecnologia (de produção e de projetos), com alta capacitaçãoe inovação endógena seletiva.

O Cenário Normativo (Desejável) exige ainda, justa distribuição de renda,um sistema de saúde descentralizado, um sistema de educação ampliado,novos pólos agropecuários, desenvolvimento integrado e, logicamente,segurança. Isto envolve aumento de emprego, melhores salários, maior rendaper capita, erradicação do analfabetismo, ampliação do ensinoprofissionalizante, universalização do ensino básico, unidades sanitárias móveisno interior, saneamento na cidade e no campo, superação de deficitshabitacionais, planejamento, coordenação, controle, cooperação e integração.

Enfatizando a atividade de mineração, o mapeamento do subsolo daAmazônia revela importantes Projetos de diversas substâncias minerais: Cia.Brasileira de Bauxita (bauxita refratária); Caulim da Amazônia (caulim);Mineração Rio do Norte (bauxita); Salobo Metais (cobre); Ferro Carajás(ferro); Itamaguari (gipsita); Rio Capim (caulim); Calcário de Aveiro (calcáriopara cimento e calcário dolomítico); Manganês/Carajás (manganês);Mineração Sta. Elina (ouro); etc. no plano da exploração mineral, a rápidaexpansão do garimpo trouxe, todavia, conseqüências negativas, tais como,degradação ambiental; conflitos com as populações indígenas e, no caso damineração organizada, condições precárias de trabalho; descaminho do ouro;depredação dos depósitos; emissão de mercúrio para o meio ambiente;assoreamento dos rios, lagos e igarapés, etc.

A maior degradação, porém, é a que ocorre no meio social, pois ogarimpo não tem relação de emprego, não tem moradia, não tem saneamentobásico, está sujeito a toda a espécie de doenças, com destaque para acontaminação mercurial. Na indústria extrativa mineral (mineração organizada)as agressões sociais são menores, em face do controle das leis trabalhistas.O problema se agrava pelos impactos ambientais causados pela exploraçãomadeireira, tais como na qualidade do solo, na alteração na flora, na fauna ena socioeconomia, com destaque para os conflitos com as populaçõesindígenas.

Daí emana a necessidade de novas tecnologias para permitir a exploraçãode recursos naturais, sem agressão ao meio ambiente, que compreendem

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fatores endógenos potencializadores da penetração do capital na Região(minérios, terra, água, gás natural, petróleo e toda a biodiversidade tornam aAmazônia disponível para a capital); o sistema produtivo regional gerador deeconomias (exploração de recursos já conhecidos e descobertas de novasreservas gerando um novo potencial de recursos); e necessidade de novastecnologias e de um novo modelo de desenvolvimento.

A Amazônia carece de incorporação tecnológica ao seu processoprodutivo, contando o sistema regional de C&T com poucas instituiçõesvoltadas a pesquisas. Urge um novo modelo de desenvolvimento commudanças na estrutura produtiva, no padrão tecnológico e na distribuiçãoespacial e social dos custos e benefícios do crescimento econômico, parapromover o desenvolvimento regional, com equidade social e conservaçãodos recursos naturais. A estratégia adotada combina a vocação natural daRegião com as mais avançadas fronteiras do conhecimento, regulando o acessointernacional ao banco genético da Área, através de um sistema de controledas pesquisas sobre a biodiversidade amazônica, dominando osconhecimentos gerados na própria Região, utilizando-os, produtivamente,para transformar, na própria Região, o material biótico em produtos de altovalor agregado e elevada demanda internacional.

Daí, a necessidade de um programa coerente de pesquisa em C & T ede extensão de serviço à comunicação, para o que é indispensável aparticipação das Universidades da Região. Os reflexos sociais dessa parceriasão positivos, não apenas para prestar contas à sociedade dos investimentosrealizados, mas, também, para servir de orientação na correção de distorçõese na definição de novas estratégias de atuação. Além disso, novas profissõestécnicas surgirão, com larga oferta de emprego, inaugurando um sistema realistade ensino para o desenvolvimento.

Pressões e Programas

A Amazônia tem sido objeto de inúmeras pressões internacionais, aexemplo do Instituto da Hileia Amazônica/48 ou do Projeto dos GrandesLagos/60, do Hudson Institute. O Tratado de Cooperação Amazônica/78normatizou os aspectos materiais, formais e organizacionais da Panamazônica– zelando pelo meio ambiente, soberania e desenvolvimento – mas nãoconseguiu desenvolver uma estratégia efetiva para a Região, como um todoou para a Amazônia Brasileira, o que ora integra os objetivos da OTCA. O

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Projeto Calha Norte/85 procurou complementar, como norma nacional, aquelepacto intra-regional, analisando os fatores adversos (vazio demográfico,contrabando), as necessidades fundamentais (marcos limítrofes, políticaindigenista), os espaços diferenciados (Faixa de Fronteira, Núcleo Regionale Zonas Ribeirinhas) e projetos especiais (consulados) da Amazônia Brasileira.Também não atingiu seus objetivos fundamentais. Falta, também, a totalimplantação do SIVAM/SIPAM. E as pressões internacionais continuam,vindas do BIRD, do BID, de ONGs, de Instituições, de países integrantesdo G-7 e de conferências e convenções internacionais, procurando atingir asoberania nacional através de noções como a de patrimônio comum dahumanidade para a Amazônia ou das noções de soberania relativa ou soberaniarepartida.

Diversos Programas foram elaborados, sem chegar, contudo, a uma realefetivação, sendo que, muitos, não saíram, sequer, do papel: ProgramaRegional de Reforma Agrária; Programa Regional de Levantamentos Básicos;Programa de Apoio ao Desenvolvimento Urbano da Amazônia; Programade Apoio às Migrações Internas e Programa Regional de Crédito Rural eIndustrial. Entre os Programas Sub-Regionais: Programa de Proteção àsComunidade Indígenas e Preservação do Meio Ambiente na Área deinfluência da BR-364 (Porto Velho-Rio Branco); Programa de Apoio aoEstado do Acre (PLANACRE); Programa de Desenvolvimento da ZonaFranca de Manaus; Programa de Desenvolvimento do Vale do Rio Araguari;e Programa Minero-Metalúrgico de Roraima.

Entre os Programas inter-regionais, temos: Programa de DesenvolvimentoIntegrado da Bacia do Araguaia-Tocantins, Programa Grande Carajás,Programa de Pólos Agropecuários e Agro-minerais da Amazônia. ProgramaNossa Natureza, destinado a rever a legislação ambiental do País, a criarnovas reservas florestais, a rever incentivos fiscais e a estabelecer um planode educação ambiental. Programa FLORAM – de caráter mais amplo –tratando do reflorestamento para reversão do efeito estufa e do uso energéticoda madeira, Programa de Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE), para aproteção ao meio ambiente e redução das diferenças regionais do País.Operação Amazônia, para controle de queimadas e do desmatamento,Operação Yanomami-Selva Livre, sobre as populações indígenas, suas terras,culturas e condições sanitárias e atualmente, o PAS/2004.

A antiga SUDAM traçou uma estratégia de desenvolvimento regionalnos “Macrocenários da Amazônia – 2010”, através de uma Política Regional,

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fortalecimento dos órgãos de planejamento e desenvolvimento regional,articulação dos instrumentos financeiros existentes e atração de novosinvestimentos, de uma Política Ambiental (ZEE, novas reservas biológicase extrativistas e controle do desmatamento) e de uma Política de Ciência eTecnologia (centros de pesquisa e recursos humanos). Tal estratégia continuaatual e capaz de criar um Plano de Desenvolvimento, através de DiretrizesGlobais (preservação e conservação do meio ambiente, integração nacionale crescimento econômico, de políticas Centrais (ambiental, espacial e sócio-antropológica) e de Programas Prioritários (emprego, investimentos e elevaçãoda renda). Trata-se de Projetos Estratégicos que envolvem regulamentaçãoambiental, desenvolvimento científico e tecnológico, infra-estrutura econômicae setores produtivos, exigindo gestão ambiental nacional, hidrovias, portosfluviais, estradas (Br-163, Br-364, Br-317 e Br-369), matrizes energéticas,hidrelétricas e termoelétricas e turismo ecológico.

Tais Programas incluem desenvolvimento global – principalmente hoje,no atual mundo globalizado – em Áreas-Programas, tanto nos Estadosmembros da Federação, como nas Fronteiras nacionais, nos seguintes termos:

1 – Estados

• Acre (Sub-Região Sudeste Acreana – Sub-Região do Cruzeiro doSul);

• Amapá (Sub-Região Centro Leste do Vale do Araguari – Sub-RegiãoSul do Amapá – Sub-Região Norte-Oeste do Amapá);

• Amazonas (Sub-Região Polo Gasopetrolífero Juruá – Sub-RegiãoPolígono Presidente Figueiredo Axinin-Silvas – Sub-Região PolígonoParintins-Barreirinha-Nhamundá);

• Maranhão (Polígono Barra do Corda-Estreito-Amarante – Corredorda Estrada de Ferro Carajás - Polo Agrícola Sul Maranhense);

• Mato Grosso (Polígono Tangará da Serra – Cárceres-Vila Bela-Sub-Região Sudeste Matogrossense – Eixo Alta Floresta Sorriso);

• Pará (Polígono Almerim-Faro-Aveiro – Sub-Região Baião – Sub-Região Nordeste do Pará – Sub-Região Campos do Marajó – Sub-RegiãoMarabá-Carajás – Sub-Região Eixo Pa-150 – Sub-Região Itaituba – Sub-Região Altamira);

• Rondônia (Sub-Região Ariquemes Vilhena – Sub-Região Noroestede Rondônia);

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• Roraima (Sub-Região norte de Roraima – Sub-Região Centro Sul deRoraima);

• Tocantins (Sub-Região norte do Tocantins – Sub-Região SudesteTocantinense).

2 - Fronteira

• Brasil/Bolívia (Brasileia – Plácido de Castro – Guajará-Mirim – CostaMarques – Cárceres);

• Brasil/Colômbia (Tabatinga);• Brasil/Peru (Assis Brasil);• Brasil/Venezuela (Boa Vista);• Brasil/Guiana Francesa (Oiapoque).

Eixos Dinâmicos

Passa-se, a seguir, com base na conservação, respeitada a preservação,a analisar hipóteses de cenários positivos para a Amazônia Brasileira. Temos,vg, o problema de ciência e tecnologia ligado ao setor de serviços, que envolveinvestimentos diretos, nossa infra-estrutura, a questão do emprego (inclusiveo emprego informal), trabalho escravo (hoje condenado pelo Estatuto deRoma, que criou o Tribunal Penal Internacional – TPI), fato negativo que oraestamos vivenciando, em geral, na Amazônia Brasileira.

Há também, a criação e manutenção de um amplo sistema decomercialização para o escoamento da produção regional, o que leva em contaa revisão do Pacto Amazônico, principalmente agora, com o estabelecimentoda Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Lembrotambém, o desenvolvimento da Região Amazônica junto ao MERCOSUL efuturamente dentro de uma ALCA democraticamente planejada e não aqueledraft norte-americano, sem falar no CARICOM e Grupo Andino.

Outro ponto trata da maior articulação da Amazônia Brasileira com orestante do Brasil, o que importa em sua maior participação do comérciomundial. Daí adviria, no Pará, meu Estado, a integração geográfica de sub-regiões riquíssimas, como Marajó, Carajás, Itaituba, Altamira e Marabá, entreoutras, no sentido de maior ligação do Estado com o País e com o Mundo,como hoje impõe, a Nova Ordem Mundial, alimentada pela Globalização,envolvendo países e empresas.

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Cogito, ainda, de alavancar os eixos dinâmicos da Região, como amineração, desenvolvimento de nossos projetos de bauxita, caulim, cobre,ferro, calcário, ouro, manganês, estanho e nióbio, garantindo, inclusive, nossaSoberania e a Segurança. Acredito que todos esses projetos precisam denovos investimentos diretos para a produção e de pesquisas geológicas, alémde um diálogo mais enérgico com certos países do G-7.

Outro eixo dinâmico é o da pesca. O Pará, vg, é o maior produtor depescado do Brasil, com 17% do total do País e 60% da Região Norte. Urgemaior investimento no setor, para desenvolver a criação do pirarucu emcativeiro, para combater a exportação ilegal de pescado e para amparar esocorrer nossos pescadores, de frágil perfil e em geral, analfabetos, por issomesmo alvo de atravessadores. Espera-se que o CEPNOR, ligado ao IBAMAe o Projeto Beira-Ribeirinha ligado á EMBRAPA e à ENASA tragam positivacontribuição para solucionar o impasse.

Outro setor visceral é o madeireiro, sendo paradoxal que, com toda amadeira da Amazônia, o Brasil só ocupe 2% do mercado mundial de madeira.Nesse contexto, dedico algumas palavras ao problema do desmatamento,lembrando que existe um desmatamento ilegal (objeto de desrespeito e decorrupção) e um desmatamento legal (para auto-sustento, criação e expansãode cidades), valendo salientar que, ás vezes, a própria legislação internapropicia o aumento do desmatamento, como ocorreu com a alteração doCódigo Florestal Brasileiro, que aumentou de 65% para 80% o percentualde áreas que podem ser devastadas.

Grave, também, é que esse desmatamento acaba propiciando umapecuária extensiva predatória, afirmando o IBAMA não possuir meios defiscalização, exemplificando com a Operação Feliz Ano Velho, em queautorizações de transportes para produtos florestais foram falsificadas. Osetor madeireiro envolve, também, a questão da infra-estrutura dos portos,das rodovias e das hidrovias. O porto Cargil, de Santarém, por exemplo,necessita, urgentemente, de ampliação e o mesmo acontece com Belterra,Alenquer e Monte Alegre. Por outro lado, merecem revisão as hidroviasAraguaia-Tocantins e Teles Pires-Tapajós, as rodovias Cuiabá-Santarém (BR163) e a Transamazônica (BR 320).

Os recursos hídricos precisam ser objeto de maior controle por parte daUnião, a quem está afeto seu gerenciamento, nos termos da ConstituiçãoFederal, principalmente agora, que a OMC declarou que a água é umacommodity e, portanto, tem preço. A Amazônia detém um terço dos recursos

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mundiais de água doce e possui rios de água clara que são tremendamentepiscosos, além de rios navegáveis que vão até à Guiana e o Suriname, motivopor que o problema da água adquire inúmeras facetas, tanto no planoeconômico, como no plano estratégico.

A última observação é sobre o Programa de Zoneamento EconômicoEcológico (ZEE). Considero válida a realização de zoneamentos regionais,mas creio que todos eles deverão constar de um zoneamento nacional, anível federal, para permitir novos investimentos, novas tecnologias e novasmedidas técnicas, políticas e estratégicas. A razão está em que esse zoneamentotrata da racionalização da ocupação de espaços, estando subordinado a váriasnormas internas, inclusive, ao próprio Código Florestal, levando emconsideração, variáveis que envolvem território, população, governo, PIB eaté mesmo as Forças Armadas.

Claro que tal visão global não deve elidir visões regionais, mas equilibrá-las, até para evitar determinadas falácias, como a de Novembro/03, em queo G-7 criou um mecanismo internacional para prevenção de desmatamentocom 90% de pesquisadores dos EUA e apenas 10% de pesquisadores doBrasil. O absurdo está não apenas nessa desigualdade percentual, como nofato de que o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), vinculado aoProtocolo de Kioto – de que o Brasil é parte, ao contrário dos EUA – tratade poluição, enchentes, aquecimento e desertificação. O ZEE é fundamentalao desenvolvimento do privilegiado bioma amazônico, levando-se em conta,inter alia, recursos energéticos, o potencial hidrelétrico, a piscicultura, acobertura vegetal, agricultura, pecuária e direitos humanos, através de coletade dados ambientais e da definição de critérios, sintetizados em um mapageral.

Dessa forma, creio que o cenário desejado e desejável para a AmazôniaBrasileira está no somatório dessas observações, resguardando nossaSoberania e cuidando de nosso Desenvolvimento, através de um processodialógico e estrutural. Daí decorrem preciosos itens, tais como saneamentobásico, emprego e incentivos fiscais, sobre o problema do emprego informal,com a perda de mais de sete mil postos de trabalho, o que está influindo,inclusive, da produção de castanha, que, de 22 mil toneladas, passou para,apenas, mil toneladas. Portaria do IBAMA contribuiu muito para isso, quandoautorizou a retirada de castanheiras mortas e, com isso, propiciou a venda decastanheiras não-mortas e nada constou do recente Seminário Macro e Microda Economia, realizado no Rio de Janeiro, cuidando-se, apenas, de medidas

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para o Nordeste, para os cerrados, para a soja e para a transposição daságuas do São Francisco.

Um Plano Nacional para a Amazônia Brasileira

Recentemente, o Plano Amazônia Sustentável (PAS) constituiu umaesperança de defesa dos interesses da Amazônia Brasileira, tanto em seuDiagnóstico, como em sua Estratégia. Quanto ao Diagnóstico, por defenderos patrimônios biológico, hidrológico e geológico da Região, sua produçãoflorestal, e sua infra-estrutura, além da própria dinâmica regional, comfundamento na soberania territorial da Área e do País. Quanto à Estratégia,ao apresentar soluções nacionais para problemas infraestruturais, ao tratarda coordenação institucional da Região e do financiamento do desenvolvimentoregional, inclusive, através da Organização do Tratado de CooperaçãoAmazônica, (OTCA) o que envolve Amazônia Brasileira e Panamazônia.

O PAS, efetivamente, trouxe uma nova visão sobre a Amazônia Brasileirae sobre a Panamazônia, tanto ao insistir no respeito à Soberania, quanto emsua aversão a qualquer tipo de privatização, recebendo, contudo, investimentosinternos e externos, todos, devidamente coordenados, comandados econtrolados pelo País. Além disso, sua atuação junto à OTCA é de grandevalidade em termos materiais, organizacionais e formais.

Realmente, a OTCA cuida dos aspectos materiais da Área, a exemploda defesa territorial, recursos naturais, equilíbrio ecológico, recursos humanos,pesquisa, comércio (a varejo, o que requer competente ampliação) e turismo.Além disso, em termos organizacionais, temos o diálogo nacional com aReunião dos Ministros das Relações Exteriores da Entidade, com o Conselhode Cooperação Amazônica e com suas Comissões, tanto Nacionais, comoEspeciais. Finalmente, quanto aos aspectos formais, temos o problema doveto, das reservas, da ratificação e da denúncia.

Há mais um detalhe, nesse particular, que merece ser colocado. Trata-sedo seguinte: o Pacto Amazônico é de 1978 e, na Declaração de Belém, de1980, os países da Região, conscientes da necessidade de seu desenvolvimentointegral, de sua conservação e de sua preservação, trataram, através doConselho de Cooperação Amazônica, do relacionamento do Pacto comentidades Internacionais e Regionais. Trata-se do diálogo com o BancoMundial (BIRD), com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e

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com o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), ante à dimensão doimenso desafio pan-amazônico.

Logo a seguir, o Projeto de Lei nº 4776, de 2005 (o PAS é de 2004),hoje, Lei nº 11284, de 2006, regulamentada pelo Decreto nº 6063, de 2007,sobre Gestão de Florestas Públicas, numa tentativa de estruturação do manejoflorestal, dispôs sobre ocupação onerosa, até quarenta anos, de cerca de40% do território nacional – envolvendo Amazônia, Mata Atlântica e outrasáreas – elogiada por alguns e criticada por outros, temerosos de algum tipode cessão de soberania nacional.

Os defensores da Lei afirmam que ela propiciou importantes medidas, aexemplo da criminalização do desmatamento, da presença de empresasnacionais nas concessões e da obrigação do governo de definir áreas paraunidades de conservação. Ocorre, porém, quanto ao primeiro item, que odesmatamento já era considerado crime pela Lei sobre Crimes Ambientais;quanto ao segundo item, certo é que a partir da reforma constitucional de1995, houve um enlarguecimento do conceito de empresa nacional, incluindoelementos estrangeiros; e, finalmente, quanto ao terceiro item, as áreas paraunidades de conservação já eram definidas, anteriormente à Lei, pelo SNUC,afirmam os seus opositores.

No Senado houve tentativa de melhoria do texto da Lei, conforme, ainda,seus opositores, pelo sem-número de Emendas apresentadas por Senadores,principalmente do Nordeste, quase todas elas, vetadas, porém, peloPresidente da República. É o caso da prévia aprovação pelo CongressoNacional da concessão de florestas públicas com área superior a dois mil equinhentos hectares. É também o caso da composição do Conselho Gestor(que comanda o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo Nacional deDesenvolvimento Florestal), que, ao invés de ser representado apenas porum representante do Ministério do Meio Ambiente, deveria, também, contarcom representantes de outros Ministérios, vg, do Desenvolvimento, Indústriae Comércio Exterior; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; da Defesa;da Saúde; do Desenvolvimento Agrário; da Integração Nacional; e da Ciênciae Tecnologia. Temos a final, a hipótese de nomeação dos membros doConselho Diretor pelo Presidente da República sem a prévia aprovação doSenado Federal.

Conforme análise do Instituto dos Advogados Brasileiros, a Lei fere oconceito de Soberania (institucional e territorial), como o Princípio dePrecaução (impacto ambiental proveniente das TNC´s), a Sustentabilidade

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(que não é apenas ambiental, mas também política, econômica, social ecultural), e o conceito de Desenvolvimento, ao confundir preservação comconservação, na Amazônia Brasileira. Além disso, deixa de aproveitar ocomércio de crédito de carbono emanado da Convenção sobre MudançasClimáticas, também da ECO/92, para desenvolvimento nacional e favorece– direta ou indiretamente – as empresas transnacionais, ao dispor sobre melhortecnologia, empresas essas (TNCs) expressamente mencionadas na NovaLei de Falências do País (Lei nº 11.101, de 09-02-05), isentas, em geral, dopagamento de impostos pela Lei Kandir, no setor de exportação.

Acredito que a fusão dos elementos normativos constantes do Tratadode Cooperação Amazônica (Pacto Amazônico) – hoje convertido emOrganização Regional: OTCA – do Projeto Calha Norte, do Projeto SIVAM/SIPAM, do ZEE, do contido nas Convenções da ECO/92 (Biodiversidade eMudanças Climáticas) e de projetos pontuais a exemplo dos Macro-Cenáriosda Amazônia (SUDAM/1994) possa gerar uma política regional(investimentos), uma política ambiental (controle da biodiversidade) e umapolítica de ciência e tecnologia (recursos humanos e pesquisa). Todas,enriquecidas das soluções racionais do PAS (Plano da Amazônia Sustentável),do fortalecimento do IBAMA, da regularização fundiária e da tentativa deestruturação do manejo florestal da Lei nº 11.284 com reflexos sociais(educação, saúde, emprego), articulando a Amazônia Brasileira com o restantedo País, com a Panamazônia e com o Mundo, no intuito de fazer da Área nãomais uma Região-Problema, mas uma Região-Solução para o desenvolvimentonacional.

Trata-se de meios válidos para impedir eventual internacionalização daAmazônia (tanto Brasileira, como Global), com ênfase no Social, detendo-senão apenas em problemas de desmatamento e de mudanças climáticas, masabandando idéias espúrias tipo “patrimônio comum da humanidade” e visandoremédios efetivos contra trabalho escravo, trabalho infantil, indigência, pobrezae pauperismo, ao lado de endemias, violência rural e urbana, assassinatos,desentendimentos entre proprietários, posseiros e grileiros, etc. Nada justifica,contudo, a perda (ou diminuição) da soberania territorial ou a ingerência(inclusive humanitária), que contraria a lei (interna e internacional), e o bomsenso. Daí emana a necessidade de proposição e de efetivação de DiretrizesGlobais, de Políticas Centrais e de Programas Prioritários para a RegiãoAmazônica Brasileira, aproximando-a do mundo integrado e globalizado dosdias atuais. Algo semelhante ocorre, aliás, na Lei de Gestão Florestal da

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Alemanha, com vistas ao uso racional de florestas, pesquisa, investimentos,desenvolvimento tecnológico e respeito às comunidades locais. Tudo, semagressão à Constituição e à Lei, em termos de desenvolvimento e de segurança,no contexto de uma política essencialmente regional e de uma estratégiaexclusivamente nacional.

O aproveitamento dos Planos e Programas retro mencionados, por outrolado, poderá efetivar a divisão interregional do trabalho, combaterdesigualdades sociais, fortalecer a cidadania, respeitar reservas indígenas,gerar áreas de livre comércio, elevar a renda per capita, investimentos epoupanças, reduzir a mortalidade infantil, vencer o analfabetismo e protegero meio ambiente, tanto em termos de preservação, como em termos deconservação, na exata linha de um desejado desenvolvimento sustentável.

Conclusão

Daí emana um Plano Nacional para a Amazônia Brasileira, respeitadorda Soberania e dos Direitos Humanos, através, conforme retro, deinstrumentos básicos de caráter geral (zoneamento econômico ecológico,políticas públicas nacionais, pesquisa) e de caráter fiscal (fundos nacionais demeio ambiente, royalties, financiamentos internos e externos). Além, decooperação técnica nacional e internacional para cuidar de desenvolvimento,tecnologia, pesquisa, recursos humanos, transporte, abastecimento de água,tratamento de resíduos sólidos, controle de doenças transmissíveis, elevaçãodo nível educacional, redução do índice de analfabetismo, melhoria daqualidade de ensino e formação profissional, evitando, inclusive, uma irracionalmigração rural-urbana.

Tal Plano – dentro de uma estrutura dialógica – incentivará o Social semferir a Soberania, numa linha de pleno desenvolvimento, atuando, na prática,dentro de uma articulação política regional, federal, internacional, transnacionale supranacional, aperfeiçoando a legislação das áreas desmatadas – impedindosua propagação – por meio de programas de educação ambiental, manejoflorestal, assentamentos, uso racional de recursos biológicos hídricos, definanciamento, evitando a bio-pirataria, a degradação do solo e adesertificação.

Trata-se, enfim de uma Aliança Nacional, com vistas a positivas decisõessobre o futuro da Amazônia Brasileira (inclusive, em suas relações com aPanamazônia), sem clientelismo, numa estratégia de participação que garanta

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a efetivação compulsória dos Direitos Humanos na Área, respeitando suaSoberania, alavancando sua Economia e sustentando seu Desenvolvimento,fortalecendo “o Brasil no Mundo que vem aí”...

É dentro desse Mundo, profundamente complexo, que se hão de efetivar,compulsoriamente, a Soberania, os Direitos Humanos e o Desenvolvimento.

Dentro de um Mundo repartido entre “relativistas”, que, em nome doabsurdo, recusam todo sentido da História e não sabem o que fazer de sualiberdade muitas vezes conquistada a tão duras penas, e “totalitários”, quedificultam o desabrochar dessa mesma liberdade, em nome de um sentidodeificado da História.

Dentro de um Mundo que ainda comporta, todavia, um sentido deHistória: o da personalidade do Homem e da Sociedade; de desenvolvimentoda verdadeira liberdade, que é conhecimento e prática da lei e da norma; dodesabrochar das possibilidades presentes na natureza humana; da possibilidadede ser sempre mais e melhor Homem, isto é, livre e amante.

Dentro de um Mundo, onde, em épocas normais, o Estado, como protetordo bem comum, garante o exercício das liberdades individuais fundamentais.

Dentro de um Mundo, onde, em épocas excepcionais, dilata-se aprerrogativa estatal, em detrimento das liberdades individuais, pois, emcontrapartida, maior será também seu dever de proteção, provendo oumodificando a ordem jurídica, sempre, com base no princípio da legalidadee da legitimidade.

Dentro de um Mundo, enfim, que a despeito disso tudo – ou por causadisso tudo – como pontificou Teilhard de Chardin, não é nem absurdo e nemacorrentado....

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A ocupação da Amazônia

Adriano Benayon*

1. Objetivos do Brasil

A Amazônia brasileira vem sendo objeto de crescente ocupação porentidades estrangeiras. De há muito, políticos, militares e quadros vinculadosao sistema mundial de poder contestam a plena soberania do Brasil sobre aregião. Ora, a soberania, ou é plena, ou não existe.

Para citar alguns: Al Gore, vice-presidente dos Estados Unidos, 1989;François Mitterrand, presidente da França, 1989; John Major, primeiro-ministro da Inglaterra, 1992; Mikhail Gorbatchev, presidente da URSS, 1992;General Patrick Hugles, chefe do órgão central de informações das ForçasArmadas dos Estados Unidos, 1998; Pascal Lamy, da Comissão da UniãoEuropeia, 2005, atual diretor-geral da OMC.

Há poucas ONGs em atividade para atenuar as ingentes dificuldades emque vivem dois terços da população do Nordeste e do Centro-Sul, mais de100 milhões de pessoas. Entretanto, centenas de milhares de organizaçõesestrangeiras agem na Amazônia, onde a densidade demográfica é mínima,não há fome, nem problema em obter água, comida e abrigo.

Não move este trabalho antipatia pelas nacionalidades cujas oligarquias,movidas por ilimitada cobiça, fazem do Brasil um país conquistado, não de

* Adriano Benayon é Doutor em Economia. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”,editora Escrituras. [email protected]

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ADRIANO BENAYON

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hoje e não só na Amazônia. Interessa-nos o destino dele e, em consequência,ter presentes os objetivos que se deve buscar em relação à Amazônia: primeiro,conservá-la integralmente como território nacional e com pleno exercício dasoberania sobre ela; segundo, utilizá-la em benefício da sociedade brasileirae da humanidade.

Esses objetivos são compatíveis e, mais que isso, complementares. Mas,para ter o Brasil futuro na Amazônia, terá de encontrá-lo em todo o territórionacional. A perspectiva de perder, aos poucos, a Amazônia só se tornoupossível, porque, desde há mais de 50 anos, o País foi perdendo o comandode sua própria economia.

A premissa básica é a autodeterminação do País. Dela deriva o conceitode sociedade aberta aos que a ela se desejem incorporar e, ao mesmo tempo,consciente de que não lhe convém guiar-se por conselhos, nem porimposições, do exterior.

2. Vulnerabilidades

Não há como realizar a autodeterminação sem se liberar de trêsvulnerabilidades, advindas de ideologias, e não, de realidades objetivas: adívida pública; o ambientalismo; as reservas indígenas. Esses temas são objetode intensa manipulação, com o fito de condicionar a opinião e o governobrasileiros a ceder aos desígnios de grupos financeiros e grandes potênciasde dominar a biodiversidade e os recursos minerais e energéticos daAmazônia.

Antes de examinar cada vulnerabilidade per se, consideremos asinterações entre as três. 1) a penúria financeira imposta ao setor públicoassegura que a Amazônia não seja ocupada senão esparsamente porbrasileiros; 2) o ambientalismo predominante – financiado por grandespoluidores mundiais – inculca a ideia de deixar intocada a região,coibindo aproveitamentos infra-estruturais ou econômicos porbrasileiros; 3) imensas reservas indígenas segregam do territórioefetivamente nacional zonas estratégicas por sua riqueza mineral,agrupando-se nelas tribos arregimentadas por fundações e entidadesreligiosas internacionais estipendiadas por membros da oligarquiafinanceira mundial.

Em suma, as três vulnerabilidades decorrem de um móvel comum: afastaros brasileiros da região. Além disso, a 2ª e a 3ª envolvem pôr sob o controle

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A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA

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de fundações, ONGs e entidades a serviço da geopolítica imperial imensasterras designadas para alegadamente preservar o meio ambiente e a identidadede etnias indígenas.

3. Dívida pública. Penúria de recursos

Por que a dívida pública e seu serviço, i.e., juros e amortizações?Porque esse serviço tem sido o principal fator impeditivo de se realizaremno País investimentos suscetíveis de valorizar os excepcionais recursosnaturais do País em proveito da economia nacional, em lugar de seremexportados sob forma primária ou com baixo grau de transformaçãoindustrial e incorporação de tecnologia local, com isenções e benefíciosfiscais.

De fato, a penúria derivada da política econômica condicionada pelaprimazia do serviço da dívida tem implicado a indisponibilidade de finançapara alimentar iniciativas de interesse nacional em qualquer parte do País.Tem também servido de desculpa para descartar ou inviabilizar projetosde ocupação racional da Amazônia, como o Projeto Calha Norte, apesarde estes não requererem senão recursos extremamente modestos.

A dívida pública, a dívida externa e, a partir dos anos 80, também ainterna, tem sido usada como instrumento para determinar as políticaseconômicas. Assim, as condicionalidades impostas por meio de acordoscom o Fundo Monetário Internacional, das normas aplicadas nos contratoscom o Banco Mundial e com o BID, bem como dos acordos com governosestrangeiros, inclusive no âmbito do Clube de Paris, sem falar nos acordosde renegociação de créditos junto a bancos do exterior.

A promulgação, por instância do FMI, da lei dita de ResponsabilidadeFiscal, Lei Complementar nº 101, de 04.05.2000, consolidou a prioridadeabsoluta às despesas financeiras no Orçamento da União e dos demaisentes federativos, além de enquadrar Estados e Municípios recalcitrantesna política da miséria administrada.

3.1 Sangria através dos juros

Essa linha de abdicação ao desenvolvimento, cumprindo critériosestabelecidos por banqueiros estrangeiros, havia sido contrabandeada paradentro da Constituição de 1988, através da inserção, por meio de fraude, do

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dispositivo que excetuou o “serviço da dívida” de restrições a que estãosujeitas outras despesas orçamentárias. 1

Combinada com a desarrazoada política de juros elevados a pretexto deconter a inflação, essa norma constitucional espúria acarreta efeitos depressivossobre a economia brasileira, de cujo impacto se pode formar ideiaconsiderando os dispêndios desde então realizados pela União a título doserviço das dívidas interna e externa.

Dados oficiais mostram ter a União Federal despendido, de 1988 a 2007,R$ 4,5 trilhões (valor atualizado a preços de 2007) por juros, encargos eamortizações, não contadas as referentes a rolagem de dívidas. 2

Comparando-se as cifras de 1986 com a média anual de 1989/1990constata-se o enorme salto das despesas com o serviço da dívida após aConstituição. Elas se elevaram, a preços de 2005, de R$ 50,5 bilhões paraR$ 564,1 bilhões, ou seja, mais que decuplicaram.

Dados elaborados pelo IPEA referentes à dívida externa registrada,inclusive do setor privado, mostram ter ela ascendido de US$ 43,5 bilhõesem 1978 a US$ 195,6 bilhões em 2002, aumentando, pois, US$ 152,1bilhões. Nesses 24 anos o Brasil pagou US$ 156,4 bilhões a mais por jurose amortizações que a cifra dos desembolsos de créditos. O desgaste soma,assim, só nesse período, US$ 308,5 bilhões, quantia que atualizada em dólaresde 2007, corresponde a US$ 2,2 trilhões.

A quase totalidade do endividamento corresponde a juros capitalizados,taxas e comissões nas rolagens e reestruturações de dívidas, sem praticamentenovos financiamentos à infra-estrutura ou à produção. Cabe considerar ademaisdaquela cifra astronômica os ganhos cessantes, i.e., os que deixaram de ocorrerem razão de não ter havido o investimento dos recursos perdidos com oserviço injustificado da dívida.

3.2 Origem da dívida

A dívida externa proveio do financiamento dos déficits de transaçõescorrentes com o exterior, os quais, por sua vez, decorre da estrutura industriale econômica dependente. Esta já condenara o Brasil a pesadíssimo serviço

1 O modo como foi esse dispositivo inserido na Carta Magna é exposto em: Adriano Benayone Pedro Rezende - Anatomia de uma Fraude à Constituição, agosto de 2006, na página http://paginas/terra.com.br/educacao/adrianobenayon.2 SIAFI,STN (Secretaria do Tesouro Nacional). Despesas da União por grupo.

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da dívida ao longo do Império e da República Velha (até 1930). A partir desetembro de 1954 criaram-se novamente condições para a deterioraçãoestrutural, ao se subsidiar, de modo cada vez mais intenso os investimentosdiretos estrangeiros.

O modelo assim construído sob dependência financeira e tecnológicaacarretou sucessivas crises de balanço de pagamentos, em função dastransferências de recursos para o exterior. Em 2008, a remessa oficial delucros, somente a ponta do iceberg, deverá ascender, segundo o BancoCentral, a US$ 33 bilhões. Essas remessas somaram US$ 27,5 bilhões dejaneiro a setembro, mais que as do ano de 2007 todo (US$ 22,4 bilhões).

O grosso das transferências procede da fixação dos preços deexportações e importações (transfer-pricing) e de despesas por serviçospagos às matrizes das transnacionais. As subsidiárias transferem juros,pagamentos por serviços superfaturados e até fictícios, a diversos títulos,como assistência técnica, uso de marcas, tecnologia, comissões decomercialização e de agentes, fretes, seguros etc.

Os déficits externos foram agravados, nos anos 70, por dois choquesnos preços do petróleo, em 1973/74 e 1979, comandados pelo cartel anglo-americano das finanças e do petróleo. 3

Quando dos pretensos milagres econômicos (1955-1960 e 1968-1977),a dívida pública cresceu, em parte, em função do financiamento de infra-estrutura e insumos básicos em pacotes fechados, sob desnecessáriadependência financeira e tecnológica, gerando importações inadequadas eexcessivamente caras de bens de capital e insumos. 4

Desde 1977/1978 o endividamento externo destinou-se a rolar dívidasanteriores. Do esgotamento da capacidade de endividar-se no exterior surgiua dívida interna, em elevação exponencial a partir de 1980. Do montanteatual desta, R$ 1,3 trilhão, cerca de 90% procedem da capitalização dejuros, não obstante terem as despesas de juros e amortizações ultrapassadoum trilhão de reais de 2000 ao presente.

A decisão do Federal Reserve dos EUA, de elevar os juros nos EUApara acima de 20% aa., em agosto de 1979, agudizou a crise externa brasileira.3 O público está desinformado de que a City de Londres tem influência muito maior do que aOPEP no preço do petróleo. Ademais, países de peso na OPEP agem em consonância com afinança anglo-americana, junto a qual aplicam seus haveres.4 O Banco Mundia (BM), o BID e as agências e bancos oficiais de países exportadores favorecemos fornecimentos de cartéis formados por transnacionais, que determinavam as especificaçõesdas licitações internacionais.

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Apesar de os investimentos públicos minguarem, a dívida externa registradamais que dobrou de 1977 a 1982, de US$ 32 bilhões para US$ 70 bilhões.De 1982 a 1987, na “década perdida”, essa dívida cresceu mais 53%,atingindo US$ 107,5 bilhões.

De 1987 a 1991, caiu para US$ 93 bilhões, devido ao quantum brutaldas amortizações após a promulgação da Constituição de 1988, ademais deter a União assumido dívidas privadas por imposição dos bancos estrangeiros.O resultado de tudo isso foi o brutal declínio, depois dos anos 1980, da taxade investimentos fixos em relação ao PIB no Brasil:

Os investimentos públicos, e notadamente os do governo federal,tornaram-se insignificantes. Em 2007 estes totalizaram R$ 10 bilhões, o queequivale a 4,2% do gasto no serviço da dívida (R$ 240 bilhões).

3.3 Alavanca para pressões

As lições da História são claras ao mostrar que somente paísesenfraquecidos econômica e militarmente sofrem intervenções políticas ouarmadas. No Brasil o modelo econômico e os consequentes vieses políticosinviabilizaram investimentos destinados a ocupar espaços amazônicos.

Os propugnadores da intervenção nos negócios de países sem poder dedissuasão invocam, em apoio a suas metas geopolíticas, causas simpáticas àopinião pública, tais como proteção ao meio ambiente, direitos dos indígenas,democracia, direitos humanos, autoderminação, igualdade racial, defesa deminorias etc. Omitem, como é claro, os desígnios de controlar imensas terrasdotadas de água, insolação, biodiversidade, madeiras, minerais preciosos eestratégicos.

O favorecimento, a partir do golpe de 1954, ao capital externo culminouem ter este controlado a economia do País, cuja política econômica se

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subordinou ainda mais a interesses estrangeiros após a inadimplência na dívidaexterna em 1982 e as subseqüentes reestruturações ditadas pelos bancoscredores. A consequência foi a deterioração socioeconômica, tendo“remédios” do gênero das privatizações agravado ainda mais os males.

Data justamente de 1983 a declaração da então primeira-ministra britânica:“Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas, quevendam suas riquezas, seus territórios.”

Esteve subjacente nas “renegociações da dívida” o pressuposto aceitopor governantes brasileiros de não admitir ruptura com a “comunidadefinanceira internacional”, como se essa expressão fosse mais que umeufemismo denotativo da oligarquia do poder mundial. Recusar algumaimposição dessa oligarquia é considerado sacrilégio contra a globalização,ideologia totalitária intensamente fomentada pela mídia e por outros meiosformadores de opinião, inclusive acadêmicos.

Os subsídios em favor de transnacionais da indústria, acoplados à restriçãoao crédito, elevados juros e encolhimento de mercado pesando sobre o capitalnacional – acentuaram o controle dos oligopólios comandados do exteriorsobre o mercado interno e o comércio exterior.

Precisamente isso havia resultado nas crises de balanço de pagamentosque culminaram com o desenlace da dívida externa, e este, por sua vez,facilitou manipular a dívida para retirar dos brasileiros o pouco que lhes restavade poder decisório sobre a economia nacional. A radicalização desse processofoi feita por meio das privatizações. 5

4 – Vendas de terras

As condições econômicas e sociais deterioraram-se em função docolossal serviço das dívidas, da concentração econômica e da prática detaxas de juros abusivamente elevadas. A indústria sofreu grau extremo dedesnacionalização. A indústria da defesa, em expansão nos anos 70, foi forçadaa regredir. A EMBRAER e outras estatais foram desnacionalizadas.

Elas foram alienadas, sem que os adquirentes ou seus prepostos (laranjas)despendessem senão somas irrisórias, ademais compensadas por subsídiose benesses fiscais exuberantemente prodigalizados. Perdeu assim o País o

5 Baseadas na Lei de Desestatização (8.031, de 12 de abril de 1990), promulgada sob Collor emantida sob governos subseqüentes.

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controle sobre empresas estratégicas, dotadas de imensos patrimônios e deapreciável tecnologia, como as dos sistemas elétrico, siderúrgico (aços planose especiais) e de telecomunicações. A Vale do Rio Doce deveria ser decisivapara o desenvolvimento da Amazônia, mas, sob direção voltada para o lucroacionário, segue como instrumento de extração e exportação desenfreada derecursos minerais.

A desnacionalização foi exponenciada ao terem sido alijadas do mercadocentenas de pequenas e médias empresas fornecedoras de produtos, insumose serviços às estatais. Isso porque os cartéis passaram a fazer as encomendas,sem concorrência, a firmas coligadas do exterior.

Alienaram-se, ademais, o BANESPA e o BANERJ, dois dos maioresbancos estaduais do mundo, sem falar na desnacionalização de grandes bancosprivados, para o que União gastou mais de R$ 100 bilhões. Em partedesnacionalizou-se também o petróleo, pela Lei nº 9.478/1997, a qual facilitaàs transnacionais se apropriarem de jazidas descobertas pela Petrobrás, deresto, em parte, também desnacionalizada.6 São, para esse fim, astransnacionais coadjuvadas pela ANP, como as demais agências ditasreguladoras, uma instituição criada para esvaziar a autoridade do Estado.

A economia marcha em direção à especialização em bens intensivos derecursos naturais (primarização), voltada para as exportações, o que acentuaa síndrome colonial, por exemplo, com o agronegócio, controlado portradings estrangeiras. O grosso dos investimentos fixos vem da Petrobrás ede ex-estatais, como as siderúrgicas e da colossal Vale Rio do Doce, em boaparte, dependentes da demanda mundial.

Tendo-se intensificado a desnacionalização dos espaços pluridimensionaisda indústria e dos serviços e do espaço imaterial do poder, centrado na finança,não foi difícil aos concentradores estrangeiros penetrar no espaçobidimensional das terras, inclusive na Amazônia.

A razia que já devastava pequenas e médias empresas, autônomose assalariados, ganhou impulso com as “reformas” empurradas goelaabaixo do Congresso a instâncias de instituições como o DiálogoInteramericano, o FMI e o Banco Mundial. Notadamente, em 1995,com a “reforma” do Capítulo Econômico da Constituição. Suprimiu-sea distinção dos arts. 170, IX, e 171, entre empresa de capital nacional

6 São para esse fim, as transnacionais coadjuvadas pela ANP, como as demais agências ditasreguladoras, uma instituição criada para esvaziar a autoridade do Estado.

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e de capital estrangeiro, passando a definir-se como nacional qualquerempresa registrada no País.

Considera-se, assim, inaplicável a pessoas jurídicas estrangeiras a Lei nº5.709 de 1971. Segundo parecer do advogado-geral da União, não subsistea necessidade, prevista na citada Lei, de autorização para empresas estrangeirascom sede no Brasil comprarem imóveis rurais.

Em 19.03.2006, The Sunday Times, de Londres, publicou reportagemdo jornalista Maurice Chittenden, intitulada “É minha floresta, agora. Semmais exploração de madeira”, reproduzida em O Estado de S. Paulo de21.03.2006: “Ricos criam o colonialismo verde”. A matéria informa da comprapor milionários britânicos de extensas terras em países do Terceiro Mundo,para “impedir que as árvores sejam cortadas”.

Avaliava o repórter ser essa uma abordagem nova do movimentoconservacionista internacional, que tradicionalmente usa agências públicas eprivadas e ONGs para levar governos de países em desenvolvimento a reservarterras públicas a parques nacionais e reservas naturais. Na verdade, aquelaabordagem complementa a mais antiga.

Em 1º de outubro de 2006, o então ministro do Meio Ambiente britânico,David Miliband, discursando na 2ª Reunião Ministerial do Diálogo de Gleneaglessobre Mudanças Climáticas, em Monterrey, referiu-se, conforme o DailyTelegraph, de 01.10.2006, a um plano, considerado pelo gabinete do primeiro-ministro Tony Blair, para promover a “privatização completa da Amazônia”.

Pretexto: formar vasta área “protegida”, a ser confiada à administraçãode uma comissão internacional, a fim de evitar emissões de gases de efeitoestufa provocadas pelo desmatamento da floresta equatorial. A fala deMiliband repercutiu na imprensa brasileira, tendo depois o governo britâniconegado ter tais planos.7 Como mostro adiante, o pretexto, de tão falto desentido, lembra os usados pelo lobo, na fábula, ao anunciar a intenção dedevorar o cordeiro.

Pouco depois da manifestação do ministro britânico, a mídia noticioudeclaração de Johan Eliasch, segundo a qual US$ 50 bilhões seriam suficientespara comprar toda a Amazônia. Trata-se de milionário sueco, executivo-chefeda empresa de equipamentos esportivos Head e co-presidente da ONG CoolEarth, uma das mais atuantes na Amazônia. Ele teria, em 2005, adquirido 160mil hectares de florestas na Região Norte do Brasil, por R$ 30 milhões, esugerido a milionários e a companhias de seguros fazer investimentos semelhantes.7 Informativo do Movimento de Solidariedade Ibero-americana, de 11.10.2006.

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Ligado a altos círculos do Establishment político do Reino Unido, Eliasché vice-tesoureiro do Partido Conservador e assessor de William Hague, o“chanceler-sombra”, além de dirigente do Centre for Social Justice, um dosprincipais think-tanks conservadores britânicos.

Se considerarmos o preço pago por Eliasch, cerca de US$ 93,75 porhectare, seria viável comprar 400 milhões de hectares, i.e., quase metade doterritório nacional, por US$ 37,5 bilhões. Essa quantia não chega sequer a0,4% dos ativos financeiros em vias de ser apagados dos discos rígidos dosistema (US$ 100 trilhões), e 0,06% do estoque de derivativos alicontabilizados (mais de US$ 600 trilhões).

Os insiders, de há muito, sabem da hiperinflação que se está formando,e vêm, em consequência, empregando frações desprezíveis das astronômicascifras que manejam para comprar muitas das melhores terras do mundo, noPampa argentino e no centro-sul do Brasil.

A riqueza da Amazônia é incomensurável e deveria enquadrar-se no conceitojurídico de bem fora do comércio. Entretanto, em conformidade com as “leisdo mercado” e com a Constituição, mutilada pela supressão de seu Capítuloda Ordem Econômica, grandes extensões amazônicas podem ser adquiridaspor estrangeiros, por quantias ridículas em moedas em vias de derretimento.

Matéria do jornalista Vasconcelo Quadros, no JB de 28.09.2007, informa nãoter o governo controle sobre quem são os estrangeiros proprietários, nem quantosmilhões de hectares de terras lhes pertencem. Há notícias de que eles estão investindopesado na compra de terras no Oeste da Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso,Tocantins, Maranhão, Pará e São Paulo. Eis excertos da notícia:

Faltam dados precisos ao cadastro do INCRA, porque os estrangeirosnão são obrigados a identificar sua nacionalidade. Entre os capitalistasinternacionais atuantes na compra de terras estão empresas ligadas àFundação Soros, Microsoft, Google, as suecas Precius Woods e StoraEnso e até seitas religiosas, como a Igreja Unificada, do reverendo MonnSun Myung, já dona de extensas áreas em Mato Grosso do Sul. Moonestaria adquirindo mais terras no Centro-Oeste e Amazônia. Tambémchamam atenção os grandes investimentos em terras e gado de DanielDantas, do Opportunity,8 cujo estoque teria alcançado mais de 100 milhectares na região de Marabá, no Sul do Pará.

8 Laranja de bancos norte-americanos.

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O presidente do INCRA, Rolf Hackbart, teria proposto estabelecerlimites por questão de soberania nacional, não de xenofobia. Terialembrado a intensificação da compra de terras por grupos estrangeirosem função do plantio, em grande escala, da cana de açúcar, mastambém do apelo ecológico propagado por ONGs internacionais, apretexto de proteger a região. Uma delas, hospedada no site CoolEarth, vem, há tempos, disponibilizando áreas pela internet. Outrasdivulgam ofertas pela internet ou publicam anúncios em jornaisbrasileiros.O registro do INCRA é modesto diante da realidade e da explosão domercado. Até julho de 2007, 31.194 imóveis estavam em nome depessoas físicas estrangeiras e outros 2.039 em nome de empresas.Segundo Hackbart, o número de proprietários deve ser bem maior, emdecorrência da falta de definição de empresa estrangeira e do limite queela deve ter na aquisição de terras nacionais. “Basta abrir um escritórioou estar associado a um brasileiro, que pode comprar o que quiser deterras. É isso que precisamos consertar...”

5. Meio Ambiente

5.1 Desmatamento

A compra de terras não é o único meio de os concentradores financeirosmundiais se apropriarem da Amazônia e, assim, explorar a flora, a fauna e osrecursos minerais da região. A isso se agregam as concessões de florestaspossibilitadas pela Lei nº 11.284, de 02.03.2006. Há mais tempo vem-seestendendo e aprofundando a presença estrangeira unidades de preservação,as quais já ocupam cerca de meio milhão de quilômetros quadrados doterritório nacional. Antes de tratar desses temas, convém desfazer equívocossobre a questão ecológica.

1º) especialistas põem em dúvida a realidade do aquecimento global.Esclarecem que as alterações no clima são determinadas por fatoresindependentes de ações humanas. Durante a Conferência sobre MudançasClimáticas em Bali, 2007, cem destacados cientistas de 19 países divulgaramcarta ao secretário-geral da ONU e aos Chefes de Estado, na qual afirmamque deveriam ser abandonadas as “fúteis tentativas de combater as

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mudanças climáticas.” Essa mensagem, desagradável para os lobbiesambientalistas, não despertou o interesse da mídia.

2º) conforme o Dr. William Gray, professor emérito da Universidade doColorado, autoridade mundial em ciclones tropicais e autor de precisasprevisões sobre furacões, o ciclo natural de variação da temperatura do mar,associada à quantidade de sal nas águas, é o responsável pelo aquecimento.Ele qualificou de ridícula a teoria que ajudou Al Gore a ganhar o PrêmioNobel da Paz: “ela é produto de gente que não sabe como a atmosferafunciona.” Aduziu: “estão fazendo lavagem cerebral na juventude.” E:“Incomoda-me que meus colegas cientistas não levantem suas vozescontra algo que sabem estar errado, mas também sabem que nãoconseguiriam financiamentos para pesquisas se dissessem o quepensam...”. Faltou dizer que Gore é um político ligado, de longa data, àindústria do petróleo anglo-americana.

3º) o eminente professor Luiz Carlos Molion, de São Paulo, sustentaque a temperatura do Planeta não está subindo e que a ação do homem, coma emissão crescente de gás carbônico (CO2) e outros poluentes, não temrelação com as variações térmicas.9

4º) isso não quer dizer não serem nocivas à saúde as emissões de CO2e de outros gases altamente tóxicos. O grosso delas decorre das indústriasdo carvão e do petróleo e seus derivados, das indústrias químicas emetalúrgicas. Os plásticos, derivados do petróleo, causam gravíssima poluiçãonos oceanos, e os fertilizantes químicos e petroquímicos levam à esterilizaçãodos solos. As sementes transgênicas constituem a maior ameaça direta à vidano Planeta.

5º) fica claro, portanto, que o pretenso desmatamento da Amazônia nadatem que ver com qualquer dessas terríveis fontes de deterioração do Planeta.Ademais, é falsa a idéia de que a floresta amazônica intacta contribua para oequilíbrio ecológico. Este depende dos oceanos, que, de resto, estão sendocontaminados por aquelas indústrias poluidoras, as mesmas que financiamfundações e ONGs ambientalistas.

6º) além de o desmatamento não ter relação com os flagelos apontados,são as plantas em crescimento que seqüestram o óxido de carbono da

9Molion é Pós-doutor em meteorologia com formação na Inglaterra e nos Estados Unidos,membro do Instituto de Estudos Avançados de Berlim e representante da América Latina naOrganização Meteorológica Mundial.

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atmosfera, por meio da fotossíntese. Ora, para que as plantas cresçam, háque abater árvores, muitas naturalmente substituídas por seus filhotes. Oimportante para realizar a captação do carbono é o plantio de novas árvorese o conseqüente crescimento de suas folhas.

5.2 Energia renovável e ambiente

O cultivo de plantas para produzir energia renovável, principalmente odendê, na Amazônia, combinaria as vantagens ecológicas do seqüestro decarbono com a substituição dos derivados de petróleo e carvão, causadoresde emissões de gases venenosos. As duas coisas resultam em melhora, deenormes proporções, para o meio ambiente.

No quadro de pequenas e médias unidades produtivas, em cooperativas,com lavouras alimentares entremeadas com as árvores ou em áreas próprias,e utilizando subprodutos das plantas energéticas como alimento para animaise adubo, garantir-se-ia o assentamento, de milhões de brasileiros na regiãoem condições de prosperidade.

O dendê dá 6.000 litros de óleo por hectare/ano, i.e., quinze vezes maisque a soja. Seu cultivo faria economizar grande parte das terras do Paísocupadas na pecuária extensiva (mais de três vezes o total das lavouras) efaria reduzir a área plantada com soja, que usa 43% das terras empregadasna agricultura.

Em síntese, a proposta ensejaria: a) substanciais benefícios econômicos,sociais e ambientais; b) transformar a Amazônia na principal região do Mundoem energia renovável; c) elevar a produção agropecuária do País; d) reflorestaráreas usadas na pecuária extensiva e na produção de soja.

Para produzir óleo em quantidade suficiente para substituir todo o atualconsumo do País de óleo diesel, bastariam 7,5 milhões de hectares, num totalde 10 milhões de ha., levando em conta as produções agropecuáriasassociadas. Tornar-se-ia disponível para reflorestamento área bem maior,resultando, portanto, redução líquida na ocupação de terras graças à liberaçãode áreas de soja e de pecuária extensiva.

6. Lei de Florestas. Concessões

A Lei nº 11.284, de 02.03.2006, considerada por observadores a “leide privatização” da Amazônia, permite licitar concessões por 40 anos,

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prorrogáveis por outro tanto, para a exploração de florestas públicas numespaço de 40% do território brasileiro.

A Lei não estabelece limite de extensão das áreas a ser concedidas,nem restringe a habilitação de estrangeiros. Essa restrição seria, de resto,inconstitucional até que se restabeleça na CF a distinção entre empresasde capital estrangeiro e de capital nacional.

Quem pagar mais terá direito a explorar a floresta de acordo com oplano de manejo anualmente aprovado, não havendo dúvida de que oBanco Mundial velará para que grandes grupos internacionais sejam bematendidos nos editais referentes às áreas oferecidas.

Na realidade, está-se discriminando contra a sociedade nacional, umavez que são totalmente díspares as condições de acesso aos mercados eàs concorrências públicas das transnacionais e de produtores brasileirosmédios e pequenos. Essa é a experiência verificada na indústria, nocomércio e nos serviços, inclusive financeiros, e em curso no agronegócio.

As empresas mundiais praticamente não precisam investir senãoquantias ínfimas de seus recursos para apropriar-se, de modo cada vezmais exclusivo, dos meios de produção existentes no Brasil. Além de seupoder financeiro e de lhes serem propiciadas as regalias de dominar omercado interno e o comércio exterior do País, elas são beneficiadascom desmedidos subsídios pelos poderes públicos nos três níveis daFederação.

Nesse quadro, os mercados de alguma importância ficam dominadospor transnacionais, seja sós, seja junto com pequeno e declinante númerode empresas nacionais de grande porte. Em todo o Mundo, as pequenase médias empresas são o suporte essencial das economias que mostramdinamismo e sustentam o equilíbrio social. Ora, no Brasil esse segmentovem encolhendo e sendo relegado a atividades de menor produtividade.

Claro que na atividade florestal, além de poder fornecer garantiaspara obter as concessões, as firmas mundiais gozarão das vantagens dadasà exportação e importação de bens e serviços e às movimentaçõesfinanceiras relacionadas com a mineração, o agronegócio etc.

Sob o modelo pró-concentração econômica, que agora se estendeàs florestas, não há, portanto, como dinamizar a economia brasileira erealizar seu desenvolvimento com as necessárias interações entreprodutores e consumidores e entre os níveis da produção: primário,industrial, tecnológico, de serviços e financeiro.

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Se grandes grupos mundiais já determinam o curso das políticaspúblicas do Brasil antes de se terem implantado em grande escala ematividades de exploração florestal, que situação se pode imaginar paraapós 80 anos de posse sobre as áreas a lhes ser outorgadas?

O artigo 11 da Lei 11.284 determina que o Plano Anual de OutorgaFlorestal (PAOF) considerará: III - a exclusão das unidades deconservação de proteção integral, das reservas de desenvolvimentosustentável, das reservas extrativistas, das reservas de fauna e das áreasde relevante interesse ecológico; IV - a exclusão das terras indígenas,das áreas ocupadas por comunidades locais e das áreas de interesse paraa criação de unidades de conservação de proteção integral.

Em suma, praticamente todas as terras vão sendo postas fora doalcance da sociedade brasileira, condenada assim a viver sem terras,embora seja a do país com o maior território no Mundo de terrasaproveitáveis.

A Lei das Florestas prevê, no art. 67, a autonomia de um órgão gestor,a saber, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), financiado por taxas pagaspelos concessionários da floresta.

Aponta Adherbal Meira Mattos, professor titular de direito internacionalda Universidade Federal do Pará, que a Lei 11.284, de 2006, a de Florestas,fere os artigos 49 (competência do Congresso Nacional) e 91 (competênciado Conselho de Defesa Nacional) da Constituição Federal, além da Lei nº6938/81 (SISNAMA) e da Lei nº 9985/00 (SNUC). Aduz que a gestãoali contemplada pode caber a representantes de organismos não nomeados,através de convênios com terceiros ignorados.

Acrescenta Meira Mattos que os critérios para as licitações tendem aafastar empresas nacionais e regionais, o que concentrará a comercializaçãode produtos florestais nas mãos de grandes corporações financeirasinternacionais, virtualmente privatizando as florestas e as próprias funçõesdo Estado.

O Instituto dos Advogados Brasileiros repudiou, por unanimidade, oprojeto daquela Lei, nos seguintes termos:

Projeto de Lei que pretende a criação de Órgão para Gestão dos RecursosFlorestais Públicos mediante cessão de uso e direitos. Direito de exploraçãocomercial por terceiros através de licitação. Flagrante inconstitucionalidade.Transferência de função exclusiva do Congresso Nacional e do Conselho

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de Defesa Nacional a Órgão do Poder Executivo atípico, dotado de autonomiaadministrativa e financeira que não se sujeitaria a qualquer controle dasociedade. Riscos evidentes à Soberania Nacional em zonas isoladas doterritório nacional onde o ingresso de órgãos fiscalizadores dependeria deautorização prévia do órgão cuja criação se propõe. Afronta aos princípiosparticipativos do SISNAMA, limitações inconstitucionais à fiscalização decondições de trabalho, afronta aos incisos XVI e XVII do Artigo 49, incisoIII do Artigo 91 além de tantos outros princípios constitucionais einfraconstitucionais. Projeto que merece pronta rejeição.

7. Unidades de conservação

Em visita à Inglaterra, o então presidente F. Cardoso teria, conformenoticiado, prometido ao príncipe Philip destinar 10% do território brasileiroa unidades de conservação ambiental. A oligarquia inglesa é líder naconcentração de riquezas naturais nos cinco continentes, e a família realbritânica tem estado à frente de iniciativas e pressões para fazer governantesbrasileiros cederem áreas da Amazônia.

Em 1999, em seminário de ONGs ambientalistas em Macapá (AP),foram previstos 50 milhões de hectares de florestas da Amazônia a ser“conservados”. Em março de 2000, o GEF (Global Environment Facility),fundo gerido pelo Banco Mundial, aprovou a primeira fase de projetoconservacionista, com duração programada para quatro anos e a alocaçãode 18 milhões de hectares a novas unidades de conservação na AmazôniaLegal, bem como a instituição de fundo para financiar o custeio das “novasáreas protegidas”.

Em agosto de 2002, foi assinado o decreto que criou o maior parquede florestas tropicais do mundo, o Parque Nacional das Montanhas deTumucumaque, com 3,9 milhões de hectares, no Amapá, abrangendo afaixa de fronteira com a Guiana Francesa.

O Brasil foi assim oficialmente engajado ao projeto do Banco Mundiale do World Wildlife Fund (WWF), gestado desde 1998, patrocinado pelaAlliance for Forest Conservation and Sustainable Use, uma parceriaentre o Banco Mundial e o WWF, instituição ligada à família real britânica.

Surgiu então o projeto “Amazonian Regional Protected Areas”(ARPA), com o objetivo de manter conservados mais de 40% da Amazônia,ao custo estimado de 395 milhões de dólares em dez anos.10 O ARPA visa

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implantar e consolidar, nesse prazo, as 14 reservas ambientais já criadas,10 em fase de implantação e outras a ser criadas.

Os dólares captados para o projeto ARPA pelo Banco Mundial, peloWWF e pelo KfW (Kreditanstalt für Wiederaufbau), o Banco deReconstrução, da Alemanha, têm contrapartida do governo federal doBrasil, também em dólares, a ser congelados no ARPA. O governo deixao País à míngua de investimentos da União, sacrifica o próprio custeio, einexplicavelmente obriga-se a co-financiar projetos segregacionistas quetornam indisponíveis aos brasileiros imensas porções do territórionacional.11

O ARPA, junto com a Mata Atlântica, é objeto do “Acordo entre oGoverno da República Federativa do Brasil e o Governo da República Federalda Alemanha sobre cooperação financeira para a execução de projetos naárea de preservação das florestas tropicais”, promulgado pelo Decreto nº5.160 de 28.07.2004.

Esse acordo estabelece que a Deutsche Gesellschaft für TechnischeZusammenarbeit (GTZ) desempenhará as funções de consultoraindependente em relação à aplicação dos recursos providos pelo KfW.12

O ARPA recebe dinheiros de numerosas Fundações. Entre elas, a Gordonand Betty Moore Foundation, sediada em São Francisco, Califórnia, que lhefez, em 2002, duas doações totalizando US$ 18 milhões, e mais uma, de U$7,168.00 em 2007. As doações da Fundação Moore a projetos na Amazôniabrasileira somam US$ 96,6 milhões, de 2002 a agosto de 2008. As unidadesde conservação patrocinadas por essa Fundação no Estado do Amazonaschegam a 4 milhões de hectares.

O WWF é, de longe, o maior donatário da Fundação Moore. Outros,com somas vultosas, são a Fundação Djalma Batista, do Amazonas, o Institutodo Homem e do Meio Ambiente da Amazônia e o Instituto Internacional deEducação do Brasil. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônicarecebeu doação de US$ 2,136 milhões, para elaboração de estratégias. Há,ainda, doação de US$ 251,5 mil à Universidade Federal do Acre – projeto

10 Atualizava assim o Banco Mundial a temática da “troca de dívida por natureza”.11 Alegam-se compromissos que o País teria assumido em função da Convenção Quadro dasNações Unidas sobre Mudanças de Clima, ratificada em 1994.12 A GZT é empresa vinculada ao governo da Alemanha, que gere e realiza a cooperação técnicadesse país.

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Bioma, que, embora pequena, é sugestiva quanto à influência da pecúniaforânea numa universidade de diminuto Estado brasileiro.13

A conexão entre as potências hegemônicas e “autoridades” brasileiras faz-se por meio de n fundações, ONGs etc. Essa dependência de recursos externoscontamina órgãos oficiais. Segundo informe do Instituto de EstudosSocioeconômicos (INESC), já em 2000, 51% do orçamento Ministério doMeio Ambiente e da Amazônia Legal eram provenientes de “doações”internacionais, cerca de R$ 520 milhões.

8. Reservas indígenas

Tal como as áreas de preservação, as reservas indígenas seguem em grandeexpansão. Somente a reserva dita ianomâmi, demarcada em faixa contínua, pordecreto de 1991, mede 94 mil km2, para só 4.000 a 5.000 índios, de quatrogrupos étnicos para ali importados, por vezes, hostis entre si. A demarcação foi aculminação de vergonhosas capitulações a pressões das potências.

A área da reserva Serra Raposa do Sol mede 17 mil km2. Somada àianomâmi são 111 mil km2 (11,1 milhões de hectares), e há mais reservascolossais por toda a Amazônia, como a do rio Javari, com mais de 8 milhõesde hectares para 3.600 índios.

No total, as reservas indígenas já ocupam quase 1,1 milhão de quilômetrosquadrados, i.e., 110 milhões de hectares, cerca de 13% do território nacional,para abrigar pouco mais de 400 mil indígenas. Toda a Região Sudeste, amais populosa do País, com mais de 75 milhões de habitantes, não chega a928 mil quilômetros quadrados.

Em abril de 2005, a portaria 534/05 do Ministério da Justiça, contrapareceres da Justiça Federal e da Estadual, do Senado, da Câmara deDeputados e da ABIN, mandou demarcar, em faixa contínua, a reserva RaposaSerra do Sol, pendente de decisão no STF. Ali há menos de 20.000 índios,contando mestiços e aculturados. O CIR [Conselho Indigenista de Roraima,vinculado ao CIMI, 14] representa 20% dos índios, entre os quais há aldeias

13Essa se destina a pesquisa sobre áreas de proteção ambiental, para elevar programas ao nívelde doutorado, passo para que a UFAC siga obtendo fundos governamentais para a pesquisaaplicada sobre esse tema.14O CIMI (Conselho Indigenista Missionário), teve, entre outras fontes de financiamento,US$85 milhões da “Fundação Nacional para a Democracia”, dos EUA, mantida pelo governo esubordinada ao Congresso desse país.

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inteiras trazidas da Guiana pelo falso padre Giorgio Dal Bene em conluiocom funcionário da FUNAI. 15

A característica comum com a área ianomâmi é a dotação inusitadamenterica em ouro e diamantes e em minerais estratégicos para a indústria e opoder bélico, como nióbio, tântalo, berílio, terras raras, titânio e zircônio.16

A integridade da Nação exige que sejam anuladas as demarcações emfaixa contínua. Além disso, a prevalência dessas demarcações pisotearia osdireitos dos “não índios”, que estão sendo alvos de operação de limpezaétnica, do tipo que as potências hegemônicas têm promovido nos Bálcãs. Hána Raposa Serra do Sol mais de 450 famílias “não índígenas”, de há muito aliassentadas. Expulsá-las é atuar conforme antigo conceito racista, um vírusem proliferação nas mentes locais globalizadas, ao introjetar valores imperiaiscomo sujeito passivo destes.

As potências hegemônicas, ávidas de tornar absoluto seu controle sobrepopulações ditas indígenas, por meio de fundações, ONGs, conselhos deigrejas e outras entidades, insistem em erradicar todos os que se possamintegrar à sociedade brasileira, qualificando-os de não índios.

Que quer dizer “não índio”? Se for uma questão de etnia, admitir a distinçãoatenta contra a Constituição, cujo art. 3º proscreve esse tipo de discriminação:“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:.... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Lembre-se também o art. 5º, que garante o direito à igualdade detratamento e define, em seu inciso XLII, a prática do racismo como crimeinafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.

Um indivíduo pode ser geneticamente 100% “indígena” e não desejarviver segregado pela fronteira da demarcação. Na Raposa, a maioria dosnão enquadrados pelas entidades estrangeiras prefere fazer parte dacomunidade local e nacional. Eles têm o direito de escolher seu modo devida, e seus direitos não estão sendo respeitados.

Desde as revoluções norte-americana e francesa, da 2ª metade do SéculoXVIII, pertencer a uma nação não é estar vinculado à soberania de “direitodivino” dos monarcas. Passou a decorrer de um ato de vontade por parte de

15 Fregapani, Gélio: comunicação pela internet em 28.02.2008.16 Exemplificando, foi comprovada, em 1987, a maior jazida mundial de nióbio e titânio em SãoGabriel da Cachoeira, AM, no Morro dos Seis Lagos, a 60 km da fronteira com a Venezuela.

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quem se constitui cidadão de uma sociedade. Como assinalou Ernest Renan,não é a raça, nem a língua, nem a origem cultural, que determina anacionalidade, mas, sim, o desejo de viver em comunidade sob valorescoletivamente respeitados.

Os direitos dos silvícolas que assim querem permanecer podem serassegurados sem a atribuição a eles de megalatifúndios. Não há issonos EUA. Além de as reservas serem lá de dimensões modestas, osterritórios não são ricos em minérios. Ademais, os “pregadores” dosdireitos dos indígenas, têm histórico nacional tachado pela dizimaçãode tribos locais.

É inaceitável o critério étnico para amputar do território pátrio enormesáreas, riquíssimas em minérios estratégicos e preciosos. As demarcações emfaixa contínua convergem com a Declaração dos Direitos Indígenas, aprovadapela Assembleia-Geral da ONU, sobre a autodeterminação de comunidadesindígenas, para propiciar que tribos troquem a tutela disfarçada pela tuteladeclarada das potências hegemônicas.

A declaração é incompatível com o direito de países soberanos aconservar a integridade de seu território. Editorial da Folha de São Paulo, de30.08.2008 assinala: “O acervo constitucional brasileiro não abriga oconceito de “povos” nem de “nações” indígenas. A lei fundamentaladmite apenas uma nação, um território e uma população, a brasileira.”

Aponta o editor: “Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia ...perceberam a esparrela e não assinaram a declaração da ONU.” Mostra,ainda, outro ponto insustentável do documento da ONU: restringir ações militaresem terras indígenas. “As áreas ocupadas por índios no Brasil são propriedadeda União e, para fins de defesa nacional, estão sujeitas à presença permanentedas Forças Armadas.” E: “Na [zona de] fronteira, definida como a faixa de150 km até a divisa com outros países, a presença militar é obrigatória.”

Isso é disposto no art. 20, § 2º da CF. Na prática, o controle das ForçasArmadas está sendo usurpado pelos que comandam líderes indígenas, pormeio de cooptação e corrupção.

Incoerentemente, o editor da Folha entende ser constitucional o decretopresidencial que homologou a terra indígena Raposa/Serra do Sol. Se condenaa adesão do Brasil à Declaração, deveria repudiar também o decreto,provavelmente ainda mais danoso.

Com efeito, caso mantido pelo STF, o decreto assegura, no terreno, aexclusão dos brasileiros de todas as raças e oriundos de todas as

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miscigenações, acarretando a expulsão dos “não índios” e a dos índios quenão querem ser excluídos da comunidade brasileira. Recorde-se que a PolíciaFederal fora mobilizada para essa expulsão, agora sub judice.

A situação no terreno é determinante, pois o direito não costumaprevalecer sem a capacidade, inclusive militar, de o fazer respeitar. O essencial,no momento, para as potências hegemônicas é garantir que saiam das áreasdemarcadas os brasileiros não engajados a seu serviço direto ou por ONGse entidades religiosas interpostas.

Com ou sem o voto do Brasil a favor da Declaração, as potênciashegemônicas já obtiveram tantas capitulações de governos do País e já ofizeram enfraquecer tanto, que, para desencadearem o processo de“independência” de pretensas nações indígenas, só falta a demarcação emfaixa contínua.

Essas potências levaram o governo a criar o PPTAL, na FUNAI/Ministérioda Justiça – Projeto Integrado de Proteção das Populações e Terras Indígenasda Amazônia Legal. Conforme assinalou Rui Nogueira, a própria FUNAIdivulgou, em cartaz, os gestores, controladores e financiadores do projetopara toda a Amazônia Legal, i.e., metade do território nacional: KfW (Bancode Reconstrução, da Alemanha), Banco Mundial, Ministério Federal deEducação e Pesquisa da Alemanha, PNUD e GTZ.17

A GTZ, a empresa de cooperação técnica da Alemanha, vinculada aoMinistério da Cooperação desse país é quem determina a demarcação dereservas indígenas. 18

9. Conclusão

Data de longe e intensifica-se a reserva, na Amazônia, de espaçossubtraídos ao território accessível aos brasileiros. Os métodos usados paraisso são convergentes: 1) a livre aquisição de terras por estrangeiros; 2) asconcessões da Lei de Florestas; 3) as unidades de conservação, soborientação e cooperação técnica e financeira de entidades estrangeiras; 4) oestabelecimento de reservas indígenas, sob os mesmos princípios.

Tornou-se comum, na direção de agências e outros órgãos reguladores,a nomeação de pessoas ligadas aos grupos privados interessados. O Ministério

17Nogueira, Rui: “Quem manda na Amazônia”, publicado na Tribuna da Imprensa, em 02.09.2008.18A GTZ tem escritório em Brasília e salas na sede da FUNAI, dentro da qual estão presentestambém o Banco Mundial e outras entidades públicas estrangeiras.

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do Meio Ambiente, o IBAMA, FUNAI e outros órgãos têm introjetadoideologias que absolutizam o meio ambiente e os direitos indígenas,menosprezando os demais interesses da sociedade brasileira.

Ademais da intensa propaganda, da cooptação de formadores deopinião e do viés da mídia, o establishment oligárquico mundial aplicaverbas em fundações, ONGs e entidades ambientalistas e indigenistas.Logrou, desse modo, inculcar na mente de muitos brasileiros a ideia de quenão temos competência para gerir e preservar a Amazônia, formando, emâmbito mundial, a concepção da Amazônia como “patrimônio dahumanidade”, além da imagem dos países “desenvolvidos” como padrõesde civilização.

Ilustrativo disso foi o comentário colaboracionista, à Folha de São Paulo(04.10.2006) por Tasso Azevedo, diretor do Serviço Florestal Brasileiro,sobre a insolente sugestão do ministro britânico Miliband, referida no item 4:

Os interessados em ajudar a proteger as florestas da região poderiamcontribuir para o fundo do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia(ARPA). Até agora, apenas empresários brasileiros colaboraram com essainiciativa. Recursos estrangeiros também seriam muito bem vindos.

A realidade é destorcida, ainda, pela mentalidade de desprezo para comnossa sociedade, um componente do complexo coletivo de inferioridade,exacerbado pela ideia de que o País é pobre, quando só o é na medida emque dirigentes seguem iludidos pelo canto de sereia do capital estrangeiro emanietando o desenvolvimento por meio da política econômica.

O exposto ao longo deste trabalho denota ser impulsionada por interessesoligárquicos situados nas potências hegemônicas a tendência à ocupação daAmazônia sem brasileiros, a não ser como contratados ou massa de manobradelas ou de instituições prepostas.

Isso não é de admirar, uma vez que os brasileiros, em todo o País, vêmsendo excluídos, pelo modelo e pela política econômica, de direitosconstitucionais, como o direito ao trabalho, decentemente remunerado, à saúdee à educação e o de propriedade.

Só há um meio de livrar o Povo brasileiro de ficar banido de espaçoscapazes de assegurar-lhe sobrevivência digna. É reorganizar a sociedade e oEstado, de forma a viabilizar políticas como as realizadas por Lincoln nosEUA há 143 anos; no âmbito de esquemas como o delineado sobre energia

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renovável em 4.2, prover milhões de brasileiros da posse de glebas, na médiade 40 hectares, sendo 2,5 hectares por produtor.

Os assentados habilitar-se-iam à propriedade após 15 anos de produçãoem alta e solo melhorado. Apoiados por investimentos públicos em hidrovias,ferrovias, transporte local, extensão rural e financiamento, 40 milhões debrasileiros estariam empregados em 100 milhões de hectares, 27% dos 370milhões julgados aptos à agricultura pelo IBGE, sem tocar nos outros 480milhões. Resultariam, 120 milhões de empregos, contando os indiretos, odobro do atual número de desempregados e subocupados.

A defesa da Amazônia não é viável sem mudança institucional profunda.Só um sistema político não governado pelo dinheiro concentrado pode realizara indispensável autodeterminação nacional, que exige criar estruturaseconômicas, políticas e culturais distintas das presentes.

Sem retomar o controle da economia e das finanças onde elas seencontram (São Paulo, Rio de Janeiro etc.), não haverá como manter aAmazônia brasileira. Ademais, o poder militar, indispensável para isso, sótem possibilidade de ser construído com a reconquista desse controle.

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Manaus, Cidade Mundial para prestação deserviços ambientais: uma proposta

Bertha K. Becker

A expressão Cidade Mundial refere-se a processos dos mais avançadosna sociedade contemporânea, e Serviços ambientais constituem uma fronteirade ciência e uma fronteira econômico-política de apropriação e uso danatureza. Como propor que Manaus, metrópole regional de uma periferianacional, alcance tal nível avançado de urbanização?

A hipótese que sustenta tal proposta, é que os serviços ambientais devemter valor econômico e estratégico equivalente a serviços para a produção, eque Manaus tem condições potenciais para utilizar os serviços ambientais –serviços especializados de tipo único, não disponível às grandes cidadesmundiais – projetando-se como cidade mundial tropical, centro de comandoquanto à prestação de serviços ambientais.

O patrimônio natural amazônico adquire novo valor econômico eestratégico na dinâmica mundial contemporânea como fronteira do capitalnatural. Acelera-se o processo de mercantilização da natureza com avalorização de novos elementos em que os serviços ambientais vem sendoprivilegiados. Os mercados para serviços ambientais, sobretudo o do carbono,se expandem rapidamente sem que o país tenha ainda conhecimento pleno eum quadro institucional adequado para efetuar a valoração dos serviços.

Os serviços ambientais podem abrir grande oportunidade para odesenvolvimento da Amazônia. Mas os serviços ambientais (SAs) só poderãocontribuir par ao desenvolvimento regional se for superado o padrão histórico

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primitivo de apropriação destrutiva de recursos naturais, utilizando-os num outropatamar, o do século XXI, com novas formas de produção capazes de utilizaro capital natural sem destruí-lo, e de gerar riqueza para a região e o país.

Trata-se de investir num grande esforço – científico, econômico e político– para atribuir valor econômico e estratégico à floresta em pé, para quepossa competir com as commodities e ser utilizada em bases inovadoras.Significa tirar partido das extensões florestais da Amazônia brasileira e Sul-Americana e da presença de Manaus com posição estratégica frente àsflorestas e dotada de um embrião de instituições de pesquisa.

O objetivo deste texto é discutir essa proposta. Numa primeira sessãobusca-se a compreensão do significado histórico dos SAs a partir dascontribuições de pensamento econômico; a segunda sessão recorre às ciênciassociais para ampliar o conceito de serviços e explicitar o de cidade mundial.Na terceira sessão analisa-se potencialidades e desafios a enfrentar paracapacitar Manaus a comandar a prestação de serviços em nível global;finalmente, propostas estratégicas são apresentadas numa quarta sessão.

1. Serviços Ambientais: Novidade Histórica na apropriação e usoda natureza

Durante séculos a sociedade vem utilizando o estoque de matérias-primasdos ecossistemas para sua sobrevivência e para produzir riqueza. A grandenovidade histórica é que hoje se tenta mercantilizar não apenas as matérias-primas, mas as funções dos ecossistemas. A explicação dessa inovaçãorepousa nas mudanças do contexto mundial para o que se recorre aopensamento da economia e das ciências sociais.

1.1. O Pensamento Econômico

A economia domina nessa área de conhecimento e enfrenta o desafio –não superado – de atribuir valor e preço às funções da natureza, até agoranão inseridas na esfera econômica. Os estudos de Herman Daly são básicospara economistas ambientais e ecológicos dedicados à questão.

Considerando a natureza como capital natural, entendem a estrutura dosecossistemas (constituída de elementos bióticos e abióticos) como estoquede onde se obtém fluxos de matérias-primas e as funções ecossistêmicas,resultantes da interação dos elementos estruturais, como fundo-serviços.

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MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA

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A dificuldade em tratar dessa novidade transparece nas variaçõesconceituais de SAs: são “funções com valor para o homem” (Mattos, L.2008); são “todos os benefícios prestados pela natureza” (Milênio, 2003) ouainda o “conjunto de serviços dos ecossistemas caracterizados pelasexternalidades” (FAO, 2007).

Parece haver, portanto, uma concepção que considera SA intrínsecosaos ecossistemas, e outra que os define somente em interação com os homens.Vale a pena um olhar sobre como as organizações internacionais se posicionamquanto à questão.

Marcos na tentativa de esclarecer a questão são os estudos da Avaliaçãode Ecossistemas do Milênio1, e da FAO. O milênio estabelece quatrocategorias de serviços dos ecossistemas:

i) serviços prestados (produtos obtidos dos ecossistemas);ii) serviços de regulação (benefícios obtidos da regulação de processos

de ecossistemas);iii) serviços culturais (benefícios intangíveis obtidos dos ecossistemas);iv) serviços auxiliares necessários à produção de todos os demais serviços

de ecossistemas. Coroando esses serviços, situa-se a vida na terra, expressana biodiversidade.

Nessa proposição os serviços ambientais são definidos como “osbenefícios que a população obtém dos ecossistemas”. Compreendem, assim,todos os produtos das atividades humanas, incluindo produtos tão diversoscomo a produção de alimentos e a regulação do clima.

Muito mais restrita é a definição da FAO, concebida em função dointeresse direto para os agricultores (FAO, 2007). Os serviços deecossistemas se criam através das interações dos organismos vivos, incluindoos seres humanos. Se produtos como alimentos se produzem intencionalmentee seus agentes podem influir na sua elaboração através dos preços, muitosoutros serviços de ecossistemas são prestados unicamente comoexternalidades, na medida em que geram consequências negativas ou positivase as pessoas por elas afetadas não podem influir na produção. Por essarazão, consideram como SA, especificamente, o conjunto de serviços de

1 Ecosystems and Human Well-being: a Framework for Assessment, Island Press, WashingtonD C, 2003.

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ecossistemas caracterizados pelas externalidades. Benefícios devem, assim,ser pagos aos prestadores de SA para reduzir as externalidades negativas eaumentar as positivas.

O problema da valoração, contudo, persiste. Segundo a FAO, a maneiramais comum de estimar valores ambientais é o conceito de “valor econômicototal”, que inclui todo o conjunto de valores ecossistêmicos atribuídos pelaspessoas a cada uma das formas de uso da terra.

Distinguem-se, assim:i) os valores de uso direto, originados por bens e serviços comercializados,

que normalmente geram benefícios privados. Correspondem à categoria deserviços prestados na Avaliação do Milênio;

ii) os valores de uso indireto, benefícios que se obtém indiretamente dasfunções ecológicas realizadas, correspondendo à última categoria de benefíciosde grupo de serviços normativos e auxiliares do milênio;

iii) os valores de opção, se baseiam no benefício de preservar apossibilidade de um uso direto ou indireto no futuro;

iv) os valores de não uso, ou de existência, são benefícios totalmentedesvinculados de qualquer uso pessoal de um ecossistema. Os benefícioscompreendem o valor de assegurar a permanência dos ecossistemas para asobrevivência das espécies e habitats (FAO, 2004c).

O Quadro 1 retrata essa classificação, indicando a abrangência geográficados benefícios.

Fonte: FAO, 2007 (Adaptado de FAO, 2004).

No Brasil, aos esforços para conceituar e valorar os serviços ambientaisno Brasil soma-se a iniciativa, em discussão, de uma legislação mais amplanum Projeto de Lei nº 792, de 2007 – que dispõe sobre a definição deserviços ambientais e dá outras providências. Apenso a esse PL encontra-se

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MANAUS, CIDADE MUNDIAL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS: UMA PROPOSTA

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o PL 1.190/07 que cria o Programa Nacional de Compensação por ServiçosAmbientais – Programa Bolsa Verde, destinado à transferência de renda aosagricultores familiares beneficiários do Programa Nacional de AgriculturaFamiliar (PRONAF).

Até o momento (abril de 2008) a proposta para o PL 792 distingue osobjetivos dos SA intrínsecos aos ecossistemas e os objetivos do pagamentopor SA. Os SA são definidos como “funções inestimáveis e imprescindíveisoferecidas pelos ecossistemas para a manutenção de condições ambientaisadequadas para a vida na Terra, incluindo a espécie humana”. Já o pagamentoou a compensação por SA tem como principal objetivo transferir recursos,monetários ou não, a aqueles que voluntariamente ajudam a conservar ou aproduzir tais serviços. (Deputado Jorge Khoury, relator do PL à Comissãode Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, 2007).

1.2. A Instituição do Preço não é Natural

Atribuir valor e preço econômico à vida e identificar o direito àpropriedade dos seres vivos dificultam – mas não impedem – suatransformação em mercadorias fictícias e a institucionalização de um mercadoreal para controle da natureza.

Enquanto os pesquisadores brasileiros se esforçam para conceituar,valorar e chegar a valores monetários concretos dos serviços ambientaisvisando beneficiar o país com essa nova riqueza, a prática mercantil avançarapidamente.

O sequestro de carbono é o instrumento econômico mais utilizado paraos serviços ambientais brasileiros, mas atuando em nível global e não restritoao território do Brasil. Os certificados de Redução de Emissões (CER) egases de efeito estufa, ou créditos de carbono como mais conhecidos,constituem o instrumento de organização de um mercado financeiro em rápidaexpansão, ainda mais impulsionado com o problema do aquecimento global.

O mercado do carbono tem origem no Protocolo de Quioto (1997) e noMecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), este proposto pelo Brasil.A lógica do MDL é a de beneficiar projetos onde ocorram reduções deemissões de gases de efeito estufa, envolvendo aterros sanitários, energiasrenováveis e eficiência energética, e reflorestamento. Podem ser vistos comocréditos que autorizam o direito de poluir aos países que são grandesemissores. As agências de proteção ambiental reguladoras emitem certificados

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autorizando emissões de toneladas de dióxido de enxofre, monóxido decarbono e outros gases poluentes. Indústrias mais poluidoras de um país sãoselecionadas e a partir daí são estabelecidas metas para redução de suasemissões; elas recebem bônus negociáveis, cada um cotado em dólares oueuros, equivalente a uma tonelada de poluentes.

Tem sido grande a expansão do mercado de carbono. Os volumes dessemercado têm estimativas das mais variadas e, na maioria, não concordam,variando desde US$ 500 milhões até US$ 80 bilhões.

Duas grandes bolsas regem esse mercado: a Bolsa do Clima de Chicago(CCX) e a Bolsa de Negócios de Carbono da EU (ECX). Vale ainda registrara Divisão de Contratos Futuros da Bolsa de Chicago (CCFE), muito ativa.E multiplicam-se empresas e agências especializadas em projetos paranegociação dos CERS.

A bolsa europeia negociou mais de 908.000 contratos futuros entrejaneiro-novembro de 2007, representando um crescimento anual de 133%,e a de clima de Chicago aumentou em 97 % no mesmo ano (Carbono Brasil,2008). E no início de 2008, créditos de redução de efeito estufa alcançaramalta de 80%.

Desde fevereiro de 2008, revelou-se uma tendência de queda associadaao risco de desaceleração da economia dos E.U.A. e seus impactos globaise, hoje, à crise financeira global. Trata-se, pois, de um mercado incerto.Segundo a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, ofuturo das negociações de emissões depende muito de como o novo tratadoclimático for desenvolvido.

Grupos se organizam para pesquisa e sua aplicação nos serviçosambientais, neles sobressaindo as ONGs, e muitas de âmbito global. NoBrasil, a Vitae Civilis foi uma das ONGs pioneiras no setor da compensaçãopor serviços ambientais; tem parceria com PRISMA, organização de SãoSalvador, e colaboração de várias ONGs brasileiras.

Iniciativas de maior abrangência em relação aos dispositivos legaisexistentes, estão emergindo no país. Destaca-se o Estado do Amazonascriando a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) em dezembro de 2007com base no potencial econômico da venda de créditos de carbono das 34Unidades de Conservação do estado que somam 17 milhões de floresta.Com base em estudo feito pela INPA, cada hectare de floresta estoca 0,6tonelada de carbono por ano que, a um pagamento de US$ 3,8 por toneladade carbono evitada, podem render US$ 100 milhões por ano. A FAS,

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entidade privada criada por lei estadual com recursos do estado e parceriacom o Bradesco para reunir recursos visando a proteção ambiental tem osdireitos dos serviços e produtos ambientais gerados pelas 34 UCs. Planejarealizar até o fim do ano a primeira venda de crédito de carbono de uma das34 Unidades de Conservação, a reserva de desenvolvimento Juma.

No início de abril de 2008, a Comissão de Meio Ambiente aprovou aorganização e a regulação do mercado de carbono em bolsas de valores pormeio da emissão de CERs em projetos de MDL que podem ser negociadosnos mercados à vista e de liquidação futura. As confusões conceituais a faltade informação e orientações no Brasil tem ocasionado distorções eespeculações desnecessárias nesse mercado, dificultando o acesso depequenos produtores à legislação estabelecida.

Trata-se, portanto, claramente da consolidação do mercado de carbono.Na ausência de valoração estabelecida pela ciência e de regulação nacionalconsolidada, é o mercado que dá o preço à essa commodity e, como qualquermercado, é regulado pela demanda dos países industrializados que nele tema expectativa de um grande negócio financeiro, e cujas crises tem sobre eleum forte impacto. E, como é de costume, o mercado internacional estabeleceum baixo preço para a tonelada de carbono, à semelhança dos baixíssimospreços pagos pelas commodities exportadas como matéria prima do estoqueda natureza sem agregação de valor. O mercado formal (Europeu) pagaEUR 27,55/tCO2, o MDL em torno EUR 20,00/t CO2, mas o paralelo, deChicago, apenas US$ 6,50tCO2 .

A dificuldade em regulamentar a comercialização dos CERs está na grandediferença entre a economia e a legislação dos países poluidores em relação àeconomia extrativa latino-americana. Concordamos com outros autores – éimportante que o congresso elabore normas para regular o mercado decarbono que estejam em consonância com a legislação internacional para osetor.

Há, portanto, o risco dos CERS se transformarem apenas em umaoperação financeira para dar lucros aos seus investidores sem gerar vantagempara o meio ambiente, e muito menos para as comunidades envolvidas. Eainda sujeita às crises nos mercados de ações e às fraudes bilionárias quecaracterizam o sistema financeiro (El Khalili, 2008). Enquanto isso, ospequenos produtores permanecem à margem desse grande negócio, bem aocontrário do que o apenso ao PL que dispõe sobre os serviços ambientaisque se propõe.

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Tem razão, portanto, (Polanyi, 1944). A mercadoria fictícia carbonoestá organizando um mercado real. Mas sem que se estabeleçam instituiçõesnacionais capazes de regulá-lo e cerceá-lo. E o reconhecimento do processode institucionalização do preço indica a necessidade de recorrer às ciênciassociais para a compreensão dos SAs.

2. Serviços para a Produção, Redes e Cidades Mundiais: Inovaçõesna Estrutura Produtiva

A globalização da atividade econômica gera um novo tipo de estruturaorganizacional, cuja análise teórica e empírica requer um novo tipo dearquitetura conceitual em que os serviços constituem importante elemento.Motriz impulsionando a conectividade através de redes e embasando aformação de cidades mundiais.

2.1. A Categoria Serviços nas Ciências Sociais Contemporâneas

Rica literatura científica produzida nos últimos vinte e cinco anosdemonstra que os serviços, e não mais a industria, são hoje o motor daexpansão econômica globalizada. E uma grande transformação ocorreu nosetor alterando o seu conceito convencional; emergiu uma nova categoria deserviços para produtores (SP) que, com destaque para os serviços financeiros,tem papel central na economia dos países industrializados mais importantes ena internacionalização dessas economias. Em outras palavras, esses serviçostornam-se um fator chave na ampliação da escala da mercantilização.

A grande transformação nos serviços tem, assim, dois significadosassociados. Um deles, refere-se às mudanças que vem ocorrendo rumo aocapitalismo pós-industrial, em que os serviços substituem a indústria comomotor da globalização. O segundo significado refere-se às mudanças nosetor de serviços em si, no novo contexto econômico.

Até a década de 1980, o setor de serviços era concebido como umacategoria residual, não enquadrado no setor primário nem no secundário. Eos serviços eram vistos como não transportáveis, impossíveis de seremestocados, e não sujeitos à acumulação e exportação. A grande transformaçãoocorrida nos serviços reside, justamente, na reavaliação dessas características.Há evidência significativa que “serviços para produtores” não correspondema esses critérios (Daniels, 1985; 1995; Marshall et al. 1986); hoje, por meio

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digital são transportáveis, estão sujeitos à acumulação e exportação, ereferem-se, inclusive, a processo desmaterializados.

Dentre as várias mudanças ocorridas no setor, a grande inovação é aemergência dessa nova categoria, “os serviços para produtores” (SP),sobretudo os financeiros, pilares das transformações contemporâneas.

Os SP constituem, assim, uma categoria distinta de outros serviços,particularmente dos serviços para consumidores. Trata-se de serviçosaltamente especializados essenciais às funções crescentemente complexasdas firmas, dentre os quais destacado-se os financeiros, de seguro, jurídicose legais, de contabilidade, imobiliários, associações profissionais e osassociados à gestão complexa, inovação, design, comunicação.

Seu traço distintivo crucial, portanto, reside nos mercados que serve:organizações – sejam firmas do setor privado ou entendidas governamentais– e não consumidores finais. Em outras palavras, são produtos intermediáriosespecializados integrantes de uma economia intermediária mais ampla(Greenfield, 1966; Sassen, 2003).

Duas transformações básicas impulsionam a expansão dos serviços. Oprimeiro é o setor financeiro internacionalizado que tem papel nevrálgico nosSP. Foi a inovação institucional constituída pela desregulação que permitiu aglobalização financeira.

O impulso das finanças em se globalizar, digitalizar, liquefazer ativos atéentão não líquidos, foi crucial para induzir a produção de inovações no setor,particularmente nos serviços financeiros e serviços especializados que servemàs finanças, como os serviços legais, de contabilidade, design, software eseguros.

A Inovação Tecnológica com Novo Patamar de Informação foi o segundomotor da expansão. As novas tecnologias de informação (TICs) foramcondição chave facilitadoras da dispersão geográfica das atividadeseconômicas mantendo a integralidade do sistema, e engendram novos tiposde serviços. Uma distinção se estabelece entre informação facilmentedisponível e barata, e informação que é difícil de obter e cara constituída pelainfraestrutura social capaz de produzir uma informação de ordem mais elevada.

A conectividade horizontal de funções especializadas dispersas atravésde redes transfronteiriças assegura a integração da nova estrutura produtivaglobalizada. A simultaneidade de dispersão geográfica/integração dasatividades é um fator chave no crescimento, importância e complexidade dasfunções centrais corporadas, constituindo o sustentáculo das grandes firmas.

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O modo pelo qual essas firmas ganham o domínio nos serviços corporadosavançados, não é a integração vertical, mas, sim, horizontal através de redescomplexas de supridores e contratantes.

Em tal contexto, o poder não se resume ao controle exercido pelas grandescorporações sobre os serviços e as inovações financeiras, nem sobre a economiae o governo; tampouco se resume ao controle supracorporado concentradoatravés de organizações globais. O foco da análise da mudanças globais deveser a produção e não os agentes. É a produção de insumos necessários paraproduzir e reproduzir o poder formal dos agentes que constitui a capacidadepara controle global. Hoje, são as externalidades e as instituições quereproduzem o poder formal.

A análise das contribuições da economia e da sociologia quanto aos serviçosambientais, permite clarificar o significado dos SA com as seguintes proposições:

1. Serviços ambientais constituem uma nova categoria de análise geradapela complexidade e aceleração do capitalismo pós-industrial, em que os serviçossuperam a manufatura como motor da expansão econômica. É a complexidadede uma produção diferenciada em nível global, inclusive da indústria, quedemanda insumos crescentemente especializados, passando a incluir os SA.

Define-se, assim, os SA como uma função imaterial que o trabalho humanotransforma em insumo especializado da produção.

2. Os serviços ambientais são socialmente produzidos de dois modos.Um deles é o reconhecimento de funções ecossistêmicas com “valor” para ohomem; constituem SA produzidos pela natureza per se, agora valorizados evalorados. O outro são SA produzidos através do manejo e intervenção nosusos da terra, isto é, através da transformação da natureza, ainda nãodevidamente valorados. Tenta-se, assim, atribuir valor de uso direto a funçõesdos ecossistemas até agora consideradas como tendo valor de uso indireto. Etenta-se gerar externalidades positivas.

Os SA produzidos pela natureza per se ou por sua transformação temvalor porque, assim como os serviços para produtores, “influem no ajuste deuma economia em resposta a circunstâncias econômicas em mudança,constituindo um mecanismo que organiza e estabelece trocas econômicas porum pagamento”. São insumos intermediários de uma economia intermediáriamais ampla.

3. A proposição de SA como insumos intermediários especializados temrespaldo nas análises de Herman Daly já referidas sobre capital natural. Partindode Aristóteles e Geogescu-Roegen, o autor distingue estoque-fluxos (estrutura),

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que é materialmente transformado no processo produtivo, e fundo-serviço(funções) que é usado na produção, mas não se torna parte do que é produzido.

Transformar inferências e interpretações em “informação” exige um mixde talentos e recursos.

2.2. Cidades Mundiais

É Saskia Sassen quem mais avançou no estudo das cidades globais, ou mundiais(1998, 2003). O enorme desenvolvimento das telecomunicações e das industriasde informação, permitiu a realocação dos escritórios e fábricas em áreas menoscongestionadas e de custo mais baixo, e levou pesquisadores e políticos a pensarque o lugar não tenha mais importância e a proclamar o fim das cidades.

Na verdade, a dispersão das atividades econômicas corresponde apenasà metade do que ocorre no processo de globalização. Novas formas decentralização territorial surgiram relativas à gestão no nível dos altos escalões eao controle das operações. Os mercados nacionais e globais, bem como asoperações globalmente integradas requerem lugares centrais onde se exerça otrabalho de globalização.

O conceito de economia global entranhou-se nos círculos econômicos epolíticos do mundo inteiro baseado em imagens de fluxos instantâneos de dinheiroe de informação para todo o globo. Essas imagens constituem representaçõesparciais e abstratas da globalização, excluindo processos, atividades e infra-estrutura material que são fundamentais para sua implementação. Em suma, oprocesso de globalização deve ter foco na produção dos fatores que oimplementam.

Dentre os processos e atividades que implementam a globalização destacam-se: a) mobilidade do capital, que acarreta grandes mudanças na produção demanufaturas e na rede dos mercados financeiros, gerando também demandapor tipos de produção necessários a garantir a gestão, o controle e a prestaçãode serviços especializados da nova organização das finanças e da industria; b)os serviços especializados colocados à disposição das empresas e das transaçõesfinanceiras, e os mercados complexos que ambos implicam. Os tipos deprodução em questão possuem padrões próprios de localização e tendem aníveis elevados de aglomeração.

Em outras palavras, as transformações ocorridas na composição da economiamundial nas três últimas décadas do século XX, acompanhando a mudançaconstituída pela expansão da prestação de serviços e das instituições financeiras,

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renova a importância das cidades como locais destinados a certos tipos de atividadese funções. Na fase atual da economia mundial, é precisamente a combinação dadispersão global das atividades econômicas com a integração global, mediante umaconcentração continua do controle econômico e da propriedade, que tem contribuídopara o papel estratégico desempenhado por algumas grandes cidades – as cidadesglobais (Sassen, 1998) ou mundiais.

Cidades mundiais são portanto (Sassen, 1998):

1. Pontos de comando da organização da economia mundial;2. Lugares e mercados fundamentais para as atividades de destaque do atual

período, isto é, as finanças e os serviços especializados destinados às empresas;3. Lugares de produções fundamentais para essas atividades, incluindo a

produção de inovações.

É possível, portanto, definir as cidades mundiais como unidades territoriaisque comandam a economia global contemporânea que lhes atribuem vantagenscompetitivas para exercer tal função.

3. Potencialidades e Desafios para Conversão de Manaus emCidade Mundial

O potencial de Manaus para constituir-se como cidade mundialprestadora de serviços ambientais corresponde a fatores naturais e sociais;desafios a enfrentar são todos de ordem social.

3.1. Potencialidades

3.1.1. O valor estratégico do capital natural Amazônico

São as estruturas-funções ecossistêmicas interdependentes, com todos osserviços de suporte, de regulação e existencial, que têm valor como complexoarticulado para afirmação da vida, finalidade maior da natureza.

Trata-se de um complexo dotado de atributos e “práticas” que lhe conferemnão só valor econômico como poder, que não deve ser esquecido em sua valoração.

Significa que o valor dos serviços ecossistêmicos só deveriam serestabelecido a partir do valor agregado do conjunto de elementos que osproduzem e sustentam a existência da vida. Mercados segmentados para

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valorar elementos individuais dos ecossistemas tem pelo menos dois efeitosperversos; a) a exploração predatória de um dos elementos do estoque decapital natural tal como a destruição da floresta historicamente realizada noBrasil; a) a redução do valor dos ecossistemas, suas funções e serviços, talcomo vem ocorrendo hoje com o mercado de carbono.

3.1.2. Posição geográfica estratégica de Manaus frente ao capitalnatural

A posição geográfica de Manaus, de mediação entre os ecossistemasflorestais interioranos e o mundo atlântico é, sem dúvida, o potencial chave aser explorado. No passado, o valor estratégico da cidade adivinha, sobretudode sua posição na confluência das redes de drenagem amazônicas. Hoje, soma-se a esse potencial, a posição frente às florestas amazônicas sul-americanas.

Em que pese o desflorestamento na borda da Hileia, ampliada no Pará,ela persiste em sua fantástica magnitude na maior parte da Amazônia brasileirae, sobretudo, na Amazônia sul-americana (Fig. 1).

Figura 1

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Nesse imenso domínio dos ecossistemas sistemas amazônicos não háuma cidade que possa competir com Manaus, em termos populacionais e dedinâmica econômica. A densidade demográfica é extremamente baixa, opovoamento concentrando-se nas suas bordas, com incursões apenas, parao interior da floresta, correspondendo a povoamentos localizados ou afronteiras em expansão (Fig. 2). Dentre essa áreas destaca-se a cidade deIquitos no Peru, importante centro de comando da exploração madeireira noPeru e na fronteira com o Brasil, mas que não se compara a Manaus emtermos de população e de dinâmica econômica.

Figura 2

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3.1.3. Embrião de C/T&I da cidade de Manaus

É sabido que a Região Norte detém os mais baixos índices de recursoshumanos e de investimentos em C&T&I, que correspondiam até 2007 a 3%do total nacional, e vem subindo a partir de então.

Belém e Manaus metrópoles regionais concentram os recursos humanose os investimentos em C&T&I, seguidos de Cuiabá. Centros de comandodos surtos econômicos que caracterizaram o povoamento da Amazônia, Beléme Manaus acumularam com o tempo uma ampla base de conhecimento sobreo trópico úmido calcada em pesquisas de inventario e classificação. A criaçãodo Museu Paraense Emilio Goeldi ainda no século é simbólica para essatradição de pesquisa.

Desde meados do século XXI diferencia-se a dinâmica econômica dasduas metrópoles. Enquanto Belém é articulada à Brasília por estradas e porelas dinamizada, Manaus, sem ligações rodoviárias, passa ser sede de umainiciativa industrial estratégica: a Zona Franca que implanta a industria nasfronteiras da região norte, domínio da economia comercial.

O sucesso da Zona Franca, subsidiada pelo Governo Federal, estimuloua criação do Polo Industrial de Manaus (PIM) e da C&T a ele associada.Uma infraestrutura de pesquisa e de serviços desenvolveu-se associada aessa função da cidade.

Em fins do século XX, a valorização da natureza no processo deglobalização impulsionou a pesquisa na região em novos moldes: grandesprojetos em parceria internacional sobre temas da fronteira da ciência, comgrande impacto sobre a pesquisa de inventário tradicional. É o caso dosprojetos LBA, Geoma e PPBio, desenvolvidos sob a coordenação da SEPED,MCT.

Simultaneamente, para vencer o déficit em P&D foi idealizado e construídoem Manaus o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) que,lamentavelmente, até hoje não conseguiu superar os entraves políticos parasua dinamização. Pequenas e médias empresas e incubadoras nascidas naUniversidade, emergem como promissoras no fortalecimento de P&D apoiadapelos fundos setoriais.

Por sua vez, novos atores representam novas oportunidades. É o casodas Secretarias de C&T, a do estado do Amazonas sendo a mais dinâmicada Região Norte, bem como das Universidades privadas que se multiplicame, mesmo, de algumas ONGs que realizam pesquisas no estado.

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Enfim, um conjunto de atores e atividades já significativo responde pelapresença de um embrião de C&T, liderado até agora pela dinâmica industrial.O CT-PIM oferece a oportunidade de viabilizar o potencial de Manaus comopolo na interface com os procedimentos industriais mais sofisticados eprodutivos do planeta com baixo impacto ambiental. Face à dinâmica mundial,incluiu em seu planejamento a associação com o CBA e a microbiologia,criando bases para o desenvolvimento da nanotecnologia.

Porque não fortalecer a pesquisa dos serviços ambientais e suadescentralização em uma rede de cidades necessária também para estimulara produção industrial de produtos florestais?

3.2. Desafios a enfrentar

Os SAs constituem, certamente uma oportunidade para a implementaçãode um modelo de desenvolvimento inovador na Amazônia. Mas só o serão sepuderem romper com a trajetória histórica colonialista de uso dos recursosnaturais da região. Para tanto, há que enfrentar desafios econômicos e políticos.

3.2.1. As imposições do contexto internacional

• A observação dos valores atribuídos aos diferentes tipos de serviçosem sua abrangência geográfica no documento de FAO, sugere que para aAmazônia deveria ser excluído o valor de uso direto, a ela se atribuindo osvalores de uso indireto, de opção ou não uso. Entende-se a Amazônia comouma grande unidade de conservação mundial. Os benefícios locais dessesusos são apenas de proteção e conservação para o futuro, mas eles geramgrandes benefícios em nível global.

• Quem decide o uso dos SA e a quem beneficiam é o mercadofinanceiro internacional, com privilegio ao sequestro de carbono transformadoem commodity. Os projetos do MDL (Kioto) pretendidos não ocorreramsignificativamente na região, onde se destaca o da Fundação AmazôniaSustentável (FAS) do estado do Amazonas.

O mercado estabelece um preço baixo para a tonelada de CO2 comosempre fez com as demais commodities sem agregação de valor. O mercadoformal europeu paga EUR 27, 55 t CO2, o MDL EUR 20,00, mas o paralelode Chicago – o mais utilizado – apenas US$ 6,50 t CO2 (Cotações emmeados de 2008).

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A riqueza gerada beneficia, sobretudo o setor financeiro privado, umpouco o público, no caso o governo estadual, pouco ou nada restando paraa população regional. Trata-se de um processo em grande contradição como Apenso ao Projeto de Lei sobre os SAs segundo o qual os beneficiáriosdeveriam ser, sobretudo, os produtores familiares.

3.2.2. Políticas equivocadas

Praticados também na escala internacional, elas são adotadas nosdiferentes países. Trata-se, dominantemente, de políticas com foco nos agentese na redução das emissões.

Pesquisas no estado Pará (Costa, 2007; Mattos et AL 2008) demonstramque: a) esquemas de compensação centrados exclusivamente nos agentes efocados na redução da produção acarretarão perdas sistemáticas para aeconomia local; b) as regras do MDL privilegiando um único produto dentronuma propriedade ignoram que a lógica do manejo integrado considerandomúltiplos serviços eleva a linha de base do carbono. Em suma, pesquisasteórica e in loco demonstram que é necessário pensar políticas de contençãodo desmatamento e de seqüestro de carbono indissociavelmente ligadas àpolíticas de produção.

3.2.3. Carências de serviços especializados necessários a organizara prestação de serviços ambientais em Manaus

Como visto, existe em Manaus um potencial científico-tecnológicosignificativo e de serviços ligados ao PIM. A organização da prestação deserviços ambientais capaz de tornar Manaus numa cidade mundial exige,contudo, pesquisas e serviços altamente especializados que a cidade nãotem. Dentre os serviços, os serviços financeiros (não apenas bancos), deinformação, jurídicos, de seguros, marketing.

Vale a pena frisar a importância da informação. Dois tipos de informaçãose diferenciam nesse processo: a) os dados, que são uma informaçãocomplexa, mas estandartizada, facilmente disponível para as firmas; b) ainformação não estandartizada, que é muito mais difícil de obter, porque requerinterpretação/avaliação/julgamento, visando produzir um tipo de informaçãode ordem mais elevada. O acesso ao primeiro tipo de informação é hojeglobal e imediato graças à revolução digital. Mas é o segundo tipo que requer

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uma mistura complexa de elementos – não só técnicos, mas também sociais– que pode ser pensada como infraestrutura social para a conectividade global.É esse tipo de infra-estrutura social que atribui aos maiores centros financeirosseu papel estratégico. Em princípio, a infra-estrutura técnica para aconectividade pode ser reproduzida em qualquer lugar, mas a conectividadesocial não pode, necessita de pessoas com talento.

4. Propostas Estratégicas

A partir das conclusões da análise efetuada, é possível, a seguir sugerirações necessárias para organizar a prestação de serviços em que Manaustem papel central.

1. Reconhecer que os SA não têm apenas valor econômico, mas tambémestratégico. O valor estratégico da natureza não é previsto nem no pensamentoeconômico nem no sociológico. Esse valor existe, é crucial, mas de difícilmensuração porque é um dado de relações complexas referentes ao valor deexistência. O valor estratégico qualifica o capital natural da Amazônia comoum componente de poder; poder pela concentração de estoque e de serviçossem equivalente no planeta sob soberanias nacionais. Coloca-se para o Brasile demais países amazônicos a questão política de como fazer reconheceresse valor estratégico de “pura existência” da natureza no cenário global.

2. Produzir para conservar e permitir à Amazônia inteira se beneficiarcom os SA. Os SA são socialmente produzidos por duas modalidades: a)valor atribuído pelo homem a funções ecossistêmicas; b) transformação danatureza pelo homem. O que se propõe é uma estratégia que tire partidodessa duplicidade que já é inerente à vida regional. Na Amazônia com mata,dominam os SA produzidos pela natureza per se, mas o manejo florestalpode gerar SAs da natureza transformada; na Amazônia sem mata dominamos SA da natureza transformada.

Tal estratégia é essencial para multiplicar os SA rompendo o monopóliodo carbono e valorizando a natureza em conjunto e, sobretudo, para criaracesso dos produtores à uma dupla riqueza: a da produção e à dos SA.

3. A inovação institucional é chave para viabilizar os SA como fator dedesenvolvimento. Até agora só o mercado institucionaliza o carbono comocommodity, e só ele estabelece seu preço. E se trata de uma valoração nãosó baixa como extremamente limitada do capital natural amazônico. Pelo

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menos três inovações institucionais são necessárias para valorar os SA maisjustamente.

A primeira e mais urgente é estabelecer e difundir o quadro regulatório,claro, consistente com os interesses nacionais e regionais, e considerando asregras do jogo internacional.

Uma segunda diz respeito à atribuição de valor ao conjunto de serviçosque a natureza oferece. Considerando a impossibilidade de realizá-lo até omomento, cabe utilizar múltiplos SAs e estender ao maior número possívelda população regional o acesso à riqueza gerada. O que requer adisseminação de plataformas para sua habilitação e instituições que aspromovam.

Outra refere-se à criação de instituições ativas para negociar a forma deconstituição do mercado e a fixação do preço dos SA. Na sociedade modernaa C&T com seus porta vozes constituem uma instituição chave para essanegociação, fortalecendo a autonomia do Estado no contexto da globalização.

Ao Estado cabe criar condições para o surgimento e/ou fortalecimentode instituições capazes de negociar decisões tomadas em âmbito global combase na consideração dos contextos territoriais nacionais, regionais e locais.E assim incorporar definitivamente o capital natural amazônico como capitalfixo.

4. Manaus como cidade mundial tropicalPara tanto, há que contar com as cidades. Serviços tornam-se fator

crucial para o desenvolvimento da Amazônia no século XXI; serviçosambientais; serviços convencionais para atender às necessidades básicas dapopulação bem como para capacitá-las; serviços especializados para valorarSAs. E as cidades são o lócus dos serviços.

Manaus deve vir a ser uma cidade mundial tropical com base naorganização da prestação de serviços ambientais. Como visto, a cidade temposição estratégica em relação aos SAs da Amazônia Sul-Americana, umSA de tipo único.

• Tamanha conversão exige vontade política para investir:• Na criação de uma bolsa de valores para serviços ambientais na

cidade, visando fortalecer o poder de decisão e a autonomia nacionais quantoà prestação de SAs;

• Em equipar a cidade com conhecimentos e serviços especializadosadequados;

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• Em criar uma rede de cidades apoio, equipando algumas das jáexistentes, com pesquisa e serviços que gerem riqueza através da produção– convencional e de SAs.

A conclusão dos autores é enfática: “os instrumentos e mecanismoseconômicos do Estado brasileiro precisam ser repensados para contemplarnovos princípios de produção”. E as regras do MDL precisam ser rediscutidas,deixando de se basear em valores especulativos da tonelada do carbonodefinidos no mercado financeiro distante dos custos locais para consideraros reais custos de oportunidade de mudanças qualitativas de uso da terra edos recursos naturais, isto é, determinando o valor do crédito de carbonocom base nas particularidades do contexto territorial local.

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Amazônia: Desafios e Soluções

Eduardo Dias da Costa Villas Bôas*

“... se não te apercebes para integrar a Amazônia na tua civilização,ela, mais cedo ou mais tarde, se distanciará, naturalmente, como sedesprega um mundo de uma nebulosa – pela expansão centrífuga

de seu próprio movimento.” (Euclides da Cunha)

Euclides da Cunha, dez anos depois de voluntariamente dar baixa doExército, foi nomeado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a ComissãoBrasileira de Limites com o Peru, que de abril a novembro de 1905 percorreuo Rio Purus. Essa atividade era ainda parte dos trabalhos por meio dos quaiso Brasil buscava consolidar as fronteiras onde mais tarde seria criado o Estadodo Acre.

Em meio às vicissitudes inerentes a um trabalho dessa natureza, mormentese considerarmos os recursos disponíveis à época, Euclides fez largo uso deseus apurados conhecimentos de ciências naturais, próprios da formação decunho positivista que a Escola Militar da Praia Vermelha lhe havia proporcionado.Registrou com impressionante riqueza de detalhes o que encontrou, produzindouma radiografia detalhada da região, no que se refere às característicaszoobotânicas, mineralógicas, topográficas, hidrográficas e humanas.

Todo esse material foi reunido e apresentado no livro Amazônia ParaísoPerdido1, onde Euclides antecipou uma preocupação hoje ainda pertinente,a respeito de um possível desmembramento da Amazônia, caso ela não fosse

* O autor é especialista em combate em selva, comandou o 1º Batalhão de Infantaria de Selva efoi chefe do Estado Maior do Comando Militar da Amazônia. Atualmente, é Subchefe deEstratégia do Estado Maior do Exército.1 Amazônia – Um paraíso perdido – Euclides da Cunha. Manaus: Editora Valer – 2003.

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articulada ao restante do país. Sugeria ele, dentre outras medidas, a construçãode uma ferrovia que ligasse as cidades de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, pararomper o isolamento e conectar as Bacias do Purus e do Juruá, antecipandoem quase um século o que somente agora está em vias de ser assegurado pormeio do asfaltamento da BR 364.

As impressões de Euclides colhidas em sua jornada amazônica foramexpressas também no prefácio do livro “Amazônia Inferno Verde”, escritopor seu companheiro de Escola Militar, Alberto Rangel. Da compreensão deque aquele era um mundo ainda em formação, disse ele: “Realmente, aAmazônia é a última página ainda a escrever-se, do Gênesis.”

Parafraseando Euclides da Cunha, diríamos que para o Brasil, aocupação, a integração e a incorporação da Amazônia à dinâmica dedesenvolvimento nacional constituem-se também numa página de nossa históriaainda por ser escrita. Trata-se territorialmente da grande tarefa que a naçãobrasileira tem ainda por empreender, cabendo ao seu povo definir osparâmetros sob os quais essa empreitada será levada a cabo.

O momento em que vivemos é crucial, pois algumas das escolhas quenecessitamos fazer acarretarão consequências possivelmente irreversíveis,legando às gerações futuras os benefícios ou os prejuízos delasdecorrentes. A ocupação seguirá sendo extensiva e empreendidalivremente como consequência natural de fluxos migratórios ou seráconduzida pelo Estado? Privilegiaremos a preservação do meio ambienteou colocaremos o ser humano como centro e razão de ser dos processos?Seria possível obter o equilíbrio entre ambas as condutas? Os brasileirosde origem indígena serão protagonistas ou permanecerão à margem dosprocessos? Que prioridade terá a exploração dos recursos naturais?Prevalecerão os interesses nacionais ou permitiremos que posturasinternacionalistas a eles se sobreponham? Chamaremos a participar osdemais países condôminos da enorme bacia, inclusive no que diz respeitoàs ações relativas à segurança e ao combate aos ilícitos? Em suma, quemodelo a sociedade brasileira pretende adotar para balizar o enfrentamentodessa jornada histórica?

É essencial que a nação brasileira se conscientize da grandeza desse desafio,tornando-se necessário que se busque visualizar o que, concretamente, a Amazôniarepresenta para o Brasil e que papel no futuro lhe está destinado cumprir.

Geograficamente, a Amazônia corresponde a mais da metade do territóriobrasileiro e basta contemplarmos um mapa para entendermos que, sem ela,

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perderíamos as dimensões continentais, podendo até mesmo modificar traçosimportantes da identidade nacional e da auto-estima dos brasileiros.

A consciência cívica nacional já atribui à Amazônia o caráter de um dosmais indiscutíveis símbolos da nossa soberania. Contudo, em pleno séculoXXI, nosso país não completou sua expansão interna, tendo ainda metadede seu território aguardando por ser ocupado e integrado à dinâmica nacionalbrasileira. Não logramos consolidar a base física de nossa nacionalidade,tarefa essencial para a qual o Brasil permanentemente canaliza parcelaconsiderável de suas energias. Provavelmente isso explique parte de nossasdificuldades para darmos um sentido de projeto unificador às aspiraçõesnacionais e para a formulação e integração de nossas concepções relativas àdefesa, ciência e tecnologia, desenvolvimento econômico e relações exteriores,por exemplo.

Daí decorre também a indefinição de parâmetros para orientar a sociedadebrasileira em como escrever o capítulo referente à Amazônia na história doBrasil.

A Amazônia e seus três papéis a desempenhar

Para que se processe uma adequada abordagem sobre as questões daAmazônia, é necessário que se olhe para o mapa do Brasil segundo umaperspectiva de quem lá se encontra. A partir dessa posição, avultam realidadesque tornam explícitos papéis fundamentais que a região tem a cumprir para oBrasil, para a América do Sul e para o mundo, impulsionados por dinâmicasque se originam em sua geografia e que projetarão o Brasil a um patamarmuito mais destacado no sistema de poder mundial.

O primeiro será o de provocar a elevação, em escala exponencial, dopoder nacional a partir do momento em que o país tiver consolidado suaexpansão interna, trazendo a Amazônia ao contexto da vida nacional eefetuando a exploração racional de seus recursos naturais, que ainda aguardamuma completa identificação, delimitação e quantificação. Os dados maisrecentes, relatados pela revista Exame, edição de trinta de junho de 2008,em matéria da jornalista Ângela Pimenta, indicam que os recursos naturais daregião podem chegar à impressionante cifra de vinte e três trilhões de dólares;quinze deles decorrentes dos recursos minerais e oito proporcionados pelabiodiversidade. Vê-se que o Brasil dispõe de riquezas capazes de elevá-lo àcondição de potência mundial e, principalmente, de solucionar os problemas

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que afligem nossa população, não só nos livrando da pobreza como, também,eliminando as desigualdades sociais e os desequilíbrios regionais.

O segundo, de larga contribuição para a vocação natural de liderançacontinental, da qual não nos podemos furtar, repousa na condição deplataforma física em cujo entorno se consolidará a integração sul-americana.A Amazônia Brasileira faz fronteira com sete países, tem acesso a três oceanos– Atlântico, Mar do Caribe e, dentro em pouco, ao Pacífico – e conecta-secom o Altiplano Boliviano e, no Brasil, com as Regiões Nordeste e Centro-Oeste.

Esse processo, à medida que avance, por meio da construção de umaindispensável infra-estrutura de transporte e de comunicações, provocará ocrescimento exponencial da importância relativa da Amazônia no contextocontinental. É previsível ainda que cidades como Belém e Manaus, em funçãoda localização, a primeira como porta de entrada da densa malha fluvial e asegunda pela posição geográfica central, venham a consolidarem-se comopólos industriais, tecnológicos, logísticos e de serviços em geral.

O terceiro, por fim, decorre das condições e da vocação que a Amazôniaostenta de proporcionar solução para os principais problemas que afligem ahumanidade e que já adquirem dimensões de verdadeiras crises mundiais:mudança climática, meio ambiente, energia e água.

Esses três papéis, por si só, ensejam razões de sobra para que o Brasilpasse a enfocar de forma mais concreta e objetiva as questões relativas à região.

Um projeto para a Amazônia

Ao sugerirmos um “Projeto para a Amazônia”, torna-se necessária aconsideração de algumas premissas relativas a uma possível metodologia aser observada em sua formulação.

Em primeiro lugar, que esse projeto seja expresso por meio de umapolítica, a ser elaborada a partir de amplo debate que envolva todos os atoresenvolvidos, a fim de que se obtenha a convergência de esforços e o máximode capacidade de mobilização do potencial nacional. Deve servir de referênciageral, balizando estratégias e as ações operacionais decorrentes. O objetivoa ser buscado é o de proporcionar foco e potencializar os efeitos no sentidode oferecer alternativas sócio-econômicas à população que não sejam as deexplorar extensivamente a natureza, logrando assim diminuir a pressão sobreo meio ambiente.

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Em segundo lugar, em razão de a área amazônica possuir dimensõescontinentais, onde a aparente uniformidade abriga uma enorme diversidadede contextos geográficos, humanos, econômicos e ambientais, é importanteque sejam levadas em consideração as condicionantes geopolíticas. Váriosestudiosos já se debruçaram sobre o tema e há, em nosso país, uma abundanteliteratura a respeito da problemática geopolítica da Amazônia.

Dentre as muitas variáveis geopolíticas a serem consideradas, nos pareceque duas merecem especial atenção.

A primeira diz respeito à necessidade de se levar em conta a abrangênciada Panamazônia, que transcende até mesmo aos limites naturais da baciafluvial, já que a rigor as Guianas dela não fariam parte. Contudo, em razão deoutros fatores geográficos, como posição, forma, fisiografia e vegetação, sãoconsideradas como a ela pertencentes.

Para concretizar o potencial de integração sul-americano e consolidarsua liderança regional, o Brasil não pode desconsiderar a realidade e asnecessidades dos países vizinhos, já que existe uma uniformidade entre osproblemas independentemente do lado da fronteira em que ocorrem. Ascarências sociais e econômicas acentuadas, os ilícitos, os problemasambientais, a precária rede de transporte, de comunicações e de serviçosbásicos e o espraiamento de grupos étnicos indígenas por dois ou mais países,farão com que soluções pontuais, levadas a efeito sem considerar a realidadevizinha, acabarão por provocar o surgimento de um fluxo migratório em buscade melhores condições. Consequentemente, estaremos sobrecarregando anossa infra-estrutura, a exemplo do que já ocorre em alguns pontos dafronteira.

Até mesmo as legislações ambientais necessitam ser uniformizadas, paraque a biopirataria e outros ilícitos não encontrem em alguns países o santuárioque lhes permita obter legalização de produtos florestais e de exemplares dafauna regional.

A outra variável geopolítica a ser considerada, esta com abrangênciainterna, diz respeito às características peculiares e às vocações naturais dasdiferentes mesorregiões que compõem a nossa Amazônia. Grau dehumanização, nível de preservação ambiental, potencial econômico,comunidades indígenas e seu grau de integração com a sociedade nacional,infra-estrutura e outros estabelecem necessariamente critérios bastantediferenciados para a elaboração das estratégias e dos projetos a seremimplementados.

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O exame aleatório de algumas delas ilustra essa conceituação.O Estado do Acre, por exemplo, está em vias de sofrer um forte impacto

em consequência da iminente conclusão da rodovia interoceânica, associadaà ligação por asfalto entres as cidades de Rio Branco e de Cruzeiro do Sul eà construção das represas de Jirau e Santo Antônio, ambas no Rio Madeira.Uma vez consolidados esses projetos, o Acre ter-se-á constituído tanto emcorredor de exportação para toda a bacia do Pacífico, como, ele próprio,dispondo de energia e transporte, transformar-se-á em plataforma deexportação para importantes mercados, como a região da Ásia-Pacífico,inclusive China e Japão e a costa oeste dos Estados Unidos, sem contar aspressões decorrentes de eventuais fluxos migratórios de populações asiáticas,principalmente chinesas, que poderão trazer para localidades como AssisBrasil, no Acre, características semelhantes às de Foz do Iguaçu no Paraná.

Já a região do Alto Rio Negro, também conhecida como a Cabeça doCachorro, apresenta realidade totalmente distinta. Afastada das frentes dedesmatamento, tem como principal centro urbano e sede do único e extensomunicípio a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Do ponto de vista ambiental,praticamente mantém-se intacta e abriga a maior diversidade étnica do país.São 22 grupos distribuídos em mais de 600 comunidades espalhadas emseus 109 mil Km2. Dispõe de enorme riqueza mineral e, em contrapartida,carece de caça e pesca em quantidades suficientes para suprir as necessidadesalimentares da população indígena.

Assim como o Acre e o Alto Rio Negro, cada uma das demaismesorregiões amazônicas devem ser consideradas em função de suasespecificidades, requerendo, em consequência, medidas totalmente distintasentre si, em relação aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e de defesa.

Estratégia

Em terceiro lugar, a metodologia requer uma concepção estratégica, paraassegurar tanto o atingimento coordenado dos objetivos políticos, como paragarantir uma visão de longo prazo e a indispensável abordagem multidisciplinar.

Encontramos no Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus umexemplo acabado de projeto com essas características. Seu alcance vai muito

2 Amazônia: geopolítica na virada do III milênio – Bertha K Becker. Rio de Janeiro: Garamond– 2004.

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além dos benefícios econômicos diretos que um aglomerado de indústriaspossa proporcionar. Contudo, além da SUFRAMA, restam poucos projetoscom enfoques estratégicos, a exemplo do Programa Calha Norte, que tantosbenefícios têm trazido aos municípios da faixa de fronteira, desde suaimplantação em 1986, e o projeto SIVAM, que baseado em uma infra-estrutura de alta tecnologia vem proporcionando benefícios que vão bemalém da simples vigilância militar. Preservação ambiental, previsõesmeteorológicas, combate a ilícitos, segurança e controle do tráfico aéreo,comunicações e projeção internacional do Brasil ilustram a variedade de efeitospositivos alcançados.

A excelente iniciativa representada pelo Plano Amazônia Sustentávelpoderá perder efetividade exatamente por não respaldar-se em um projeto,expresso por uma política, e também por carecer de uma concepçãoestratégica para orientar suas ações.

Papel central do Governo Federal

Uma condição de êxito essencial repousa no papel central que o GovernoFederal tem a desempenhar na elaboração e na execução desse processo.Nenhum outro órgão governamental dispõe da força política necessária paraassumir a condução dos planejamentos, exercer a função de indutor,regulador, coordenador e fomentador e, se necessário, até mesmo de executor,bem como para enfrentar as pressões de toda ordem internas e externas. Oimportante, contudo, está no fato de que o governo federal é a única instânciacapaz de abrigar sob sua esfera de atribuições todas as instituições comresponsabilidade e interesse de atuar na área.

Este requisito decorre também da extensão territorial, do valor dasriquezas naturais, da complexidade de seus problemas e também do fatode que toda e qualquer ação, independentemente de sua natureza, traráreflexos para a segurança da área e, por extensão, para a segurançanacional.

Ademais, há que se considerar ainda a repercussão internacional que asquestões amazônicas suscitam, sem contar as necessárias ligações com ospaíses vizinhos, o que constitui atribuição exclusiva do Executivo, querbilateralmente, quer no contexto da Organização do Tratado de CooperaçãoAmazônica. Essas questões materializam-se, por exemplo, nas obras relativasà infra-estrutura de integração.

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O Executivo Federal é também o único órgão com capacidade de suprircarências próprias da população de determinadas regiões da Amazônia. Seusvinte e três milhões de habitantes representam apenas 12% da populaçãobrasileira, o que faz com que mais da metade do território nacional contecom apenas esses mesmos 12% de representação no congresso nacional.Sua rarefação e dispersão provocam a incapacidade de expressar suasdemandas, quer sejam econômicas, sociais ou até mesmo políticas. Emconsequência, é pouco provável que sem a atuação de órgãos públicos, asmilhares de comunidades espalhadas pela vastidão amazônica possam teracesso aos benefícios proporcionados pela infra-estrutura e pelos serviçosessenciais.

Pragmatismo

Culminando, é necessário que todo esse processo se respalde em umpatamar mínimo de pragmatismo, para livrá-lo de condicionantes ideológicos,alheios à realidade e aos interesses da população amazônica.

Presentemente, há um generalizado desconhecimento da realidadeamazônica por parte da população brasileira em geral. Como resultado, asociedade torna-se suscetível à desinformação que se processa por meio daampla difusão de um discurso “politicamente correto”, calcado em idéiasestereotipadas e geradas em outros contextos históricos, econômicos e sociais,o que nos conduz a uma compreensão incorreta das opções a adotar comvistas ao equacionamento de seus inúmeros problemas.

Como consequência, em qualquer tipo de abordagem sobre a Amazôniaprevalece a vertente ambientalista, ensejada por verdadeiro fundamentalismoambiental calcado na intocabilidade, sem levar em consideração os mais devinte milhões que lá vivem e lutam pela sobrevivência com enormes dificuldadespara assegurar o atendimento de suas necessidades básicas. A indigênciasocial e econômica retira da população local a capacidade de discernir sobrea legalidade ou ilegalidade das poucas opções disponíveis para a garantia dosustento próprio e das famílias. É-lhes negada a perspectiva de uma naturalevolução e o direito de sonhar com o rompimento da severa realidade que oscerca. Estão condenados a sobreviver apenas da extrema generosidade domeio ambiente, mas que ao mesmo tempo lhes inviabiliza a obtenção dequalquer excedente para, pelo menos aos filhos, proporcionar um futuro quenão seja o de escravos da natureza.

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Cabe investigar de onde vem e decifrar o como e o porquê de essascorrentes de pensamento terem dogmaticamente adquirido condição deverdades irrefutáveis em nosso país, com capacidade de impedir que soluçõesconcretas aflorem da superfície do pensamento nacional, sobre a qual flutuamcomo uma nata estagnada, resultante da condensação desses preceitospoliticamente corretos.

Será para o Governo um verdadeiro desafio superar o potencial inibidorda previsível discussão que inexoravelmente se estabelecerá em torno dosprojetos, enfocando mais seu conteúdo ideológico do que os benefíciosconcretos que poderão proporcionar.

Quatro dimensões para um Projeto Amazônico

Vistos os requisitos a serem observados na elaboração de umplanejamento para a Amazônia do ponto de vista metodológico, cabe definiragora as dimensões principais que deverão balizar o processo de implantação.São elas: a dimensão humana ou social, a ambiental, a da ciência e tecnologiae a do desenvolvimento econômico. Essas quatro ideias-força, aplicadas coma ênfase requerida por cada contexto, permitirão que se compatibilize todasas diferentes visões e se atenda às necessidades dos múltiplos atoresenvolvidos.

Dimensão humana

A primeira delas deve ser a dimensão humana ou social, decorrente danecessidade fundamental e urgente de recolocar a pessoa humana como focoe razão principal de ser de todas as ações e de todo e qualquer projetovoltado para a Amazônia.

Há cem anos, quando a Amazônia e suas populações encontravam-seainda totalmente livres de ameaças ambientais, Euclides da Cunha já observavaque “... entre as magias daqueles cenários, há um ator agonizante, o homem.”

Desde o advento do conceito de desenvolvimento sustentável, surgidona ONU, na década de 1980, o ser humano foi perdendo a importânciarelativa frente aos demais fatores que o compõem. Os valores politicamentecorretos adquiriram enorme poder de inibir outras visões, a ponto de imporum verdadeiro pensamento único, suprimindo da sociedade um mínimo depragmatismo capaz de promover a alteração das realidades. O resultado é

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que vivemos um verdadeiro fundamentalismo ambiental, aplicado com caráterde intocabilidade.

Necessitamos resgatar os fundamentos da cultura e da mentalidadenacionais, compatíveis com nossa história, tradições e fundamentos religiosos,mormente diante de uma população que não consegue a satisfação de suasnecessidades mais elementares. Nenhuma ação, independente de sua natureza,terá garantida a sustentabilidade se não for acompanhada da implantaçãodas ações de caráter social e econômico que gerem uma expectativa deprogresso para essas pessoas. A capacidade de que desfrutam os meios decomunicações para chegarem aos mais remotos rincões provoca o surgimentode expectativas e de novas demandas principalmente entre as gerações maisnovas. Com isso, os projetos que não contemplarem ensino, saúde, lazer,transporte e comunicações, acabarão por despertar, principalmente entre osmais jovens, o desejo de deslocar-se para onde lhes seja possível o acesso aesses benefícios.

Iniciativas altamente meritórias, em todos os sentidos, visando aproporcionar algum tipo de sustento a comunidades de natureza diversa, tempecado por não conter em seu bojo, na perspectiva das pessoas teoricamentebeneficiadas, a possibilidade de uma evolução integrada.

No tratamento que se tem dado às questões indígenas, fica muito nítidaessa inversão que se processa em relação ao ser humano, pois ele perde opapel de principal protagonista que, em contrapartida, passa a ser ocupadopela cultura a que ele coletivamente pertence. Como consequência, osindivíduos são sacrificados em prol da preservação da intocabilidade cultural,como se essa condição pudesse ser assegurada pela colocação de umaredoma sobre as comunidades a que pertencem. Os exemplos pontuais quese colhem por meio do convívio com aquelas realidades são inúmeros e acabampor demonstrar a existência de uma situação generalizada.

A comunidade Yanomami de Surucucu, no Estado de Roraima, junto àfronteira com a Venezuela, bem demonstra essa realidade. Moram em malocacircular, fechada lateralmente por madeira e coberta com palha, em cujointerior as famílias delimitam seu espaço com redes em torno de um fogo.Nesse ambiente, respiram um ar carregado de fumaça, que associado àinexistência de hábitos de higiene, ainda que elementares, e submetidos aoclima relativamente frio e úmido peculiar da altitude da Serra de Surucucu,resulta num alto índice de doenças respiratórias, mormente entre as crianças.A expectativa de vida entre aquela população pouco ultrapassa os trinta anos.

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Uma prática comum em meio a aquela comunidade é a do infanticídio.Como é próprio da cultura original, as índias se dirigem para o interior damata quando vão dar a luz. Por força de hábito cultural, é comum o sacrifíciodo recém nascido se ele apresentar alguma deformidade, ou se nasceremgêmeos ou ainda se o primeiro filho for do sexo feminino.

Esse “relativismo cultural” foi denunciado pela revista Veja, em sua ediçãode 16 de agosto de 2007 acompanhada da informação de que nos anosentre 2004 e 2006 cerca de duzentas crianças Yanomamis teriam sidosacrificadas e que esta prática ocorre em pelo menos treze etnias nacionais.

Foi, também, bastante divulgada a estória da indiazinha HAKANI, daetnia Suruaha, do sul do Estado do Amazonas, que, em 1995, por ter nascidocom uma deformidade foi condenada à morte. Salva por uma ONG, que aretirou da aldeia, hoje vive em Brasília, onde realiza tratamento psicológicopara aliviar os traumas das sevícias que lhe foram dispensadas. Esses fatos,denunciados pela revista Veja, podem ser confirmados no site hakani.org,disponível pela internet. (acesso em sete de fevereiro de 2009).

Reconhecendo a extrema importância que a preservação da identidadecultural indígena requer, em razão de sua fragilidade quando em contato comoutras culturas, a pergunta que se faz é: “não teriam as ciências sociaisdesenvolvido alguma metodologia capaz de proporcionar àquelas populaçõesum nível mínimo de hábitos, que lhes permitam evoluir em sua qualidade devida sem que necessariamente ocorra a perda da identidade cultural?”

O que a realidade tem demonstrado é que a tentativa de manter intocadosos universos culturais indígenas resulta em uma prática falaciosa, inviável econtraproducente, pois o contato acaba inexoravelmente acontecendo e, casonão seja assistido e orientado, sempre ocorre por meio do descaminho ou deatividades ilícitas, ensejando, via de regra, o vício da embriaguez entre oshomens, a prostituição entre as mulheres jovens, o garimpo irregular, a extraçãoilegal de madeiras e o envolvimento em ilícitos de outras naturezas.

Por outro lado, o tratamento dado à questão indígena, em nosso paístem sido marcado por um forte viés geopolítico. Além da demarcação dasreservas, não é proporcionado aos índios o desenvolvimento de atividadeseconômicas que lhes dêem sustentação. Permanecem abandonados no interiordas reservas e é comum vermo-los ameaçados em sua sobrevivência física e,por consequência, também em sua sobrevivência cultural.

Essa conjuntura fica muito clara quando se visita a comunidade Yanomamide Maturacá, aos pés do pico da Neblina, poucos quilômetros ao sul da

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fronteira com a Venezuela. Os cerca de mil e seiscentos habitantes, emborajá não vivam em malocas e sim em residência familiares, restringem seuconsumo de proteínas ao que obtém por meio da caça e da pesca, por nãoterem ainda alterado o traço cultural de não criar animais. Trata-se de umaregião em que os rios apresentam muito baixo índice de piscosidade e a caçajá começa a rarear, exigindo dos homens vários dias de caminhada paraobter um bom rendimento nesta prática, sendo necessário que o pouco queconseguem seja moqueado (tipo de defumação realizada pelos índios) paraque chegue em condições de consumo às famílias. Essa carência tende a seagravar, tanto pelo crescimento da população como pelo escasseamentonatural da caça disponível.

Um dado importante a ressaltar é o de que aquela região tem seu biomaabsolutamente preservado, não tendo até então sofrido qualquer tipo de danopela ação de não índios. A tendência que se verifica é a de que, caso não seintroduzam alterações nos hábitos regionais por meio de alguma atividadeque lhes supra as necessidades, em médio prazo sérios problemas necessitarãoser administrados.

Ironicamente, a consequência do agravamento dessa situação produziráargumentos que irão engrossar o coro dos que advogam em favor damanutenção das comunidades indígenas em situação de total isolamento,criando-se assim um círculo vicioso.

Por outro lado, não há limites físicos e nem distâncias que impeçam ocontato eventual entre índios e não índios, principalmente coletores de grandemobilidade como os seringueiros e os garimpeiros. Nesses contatos fortuitos,é comum algum tipo de escambo, no qual, em troca de alimentos, o não índiooferece seus utensílios. Se for, por exemplo, uma panela, a índia vai comcerteza incorporá-la aos seus hábitos, sem conhecer a necessidade de lavá-la. A consequência, em pouco tempo, será a ocorrência de uma inexorávelepidemia de diarréia na comunidade.

Esses e outros numerosos exemplos, frequentemente testemunhados porquem tem algum tipo de contato com as comunidades indígenas, exemplificamas dificílimas condições de vida a que estão sendo relegadas aquelaspopulações e que dificilmente serão revertidas caso não se restabeleça,também em relação a esses brasileiros, sua condição de seres humanos, acimade ideologias ou de doutrinas de qualquer natureza.

É chocante, após conviver com essas realidades, constatar o quanto elassão distorcidas quando trazidas à opinião pública nacional e que rarissimamente

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são divulgadas manifestações, por parte dos índios, se elas não estiveremalinhadas com os argumentos ideologicamente filtrados.

Resumindo, no afã de preservar a cultura, sacrificam-se as pessoas.

Dimensão ambiental

Também a política ambiental entre nós adquiriu um caráter essencialmentegeopolítico, pois as principais medidas nessa área sempre passam pelatentativa de neutralização de grandes extensões de terra, sem nem mesmocontarem, muitas vezes com o correspondente plano de manejo. Aspectosambientais muito mais impactantes e com consequências mais sérias sobre ascondições sanitárias, de higiene e de saúde das populações locais têm recebidopouca, se não nenhuma, atenção por parte do pensamento ambientalista.

Como consequência, não se realiza a implementação das medidasnecessárias para fazer frente a problemas graves como a inexistência de redede coleta de esgotos e a precariedade dos sistemas de coleta de lixo. Écomum assistir-se nas comunidades ribeirinhas o banho ser tomado no mesmolocal onde são lançados os dejetos e se colhe a água para o consumodoméstico, bem como é assustador constatar-se a enorme quantidade dedetritos de toda ordem que permanentemente são lançados à natureza,especialmente sobre os rios.

A posse da Amazônia proporciona ao Brasil uma estatura que escapanormalmente à percepção de nós brasileiros. Externamente, nos coloca naposição de quinta maior extensão territorial do mundo, o que nos proporciona,segundo a Professora Bertha Becker, a condição de detentores da soberaniade maior parte um dos três únicos grandes ecossistemas do planeta ainda porexplorar (os outros dois são a Antártica e o fundo dos oceanos).

Vivendo uma época em que as preocupações relativas ao meio ambientee às mudanças climáticas ocupam lugar proeminente entre os temas quesensibilizam a opinião pública mundial, temos que estar conscientes de queseremos sempre cobrados, justificadamente ou não, pelas condições comque estivermos tratando dos problemas amazônicos.

Internamente, é fácil imaginar sobre o rigor com que seremos julgadospelas gerações futuras caso escrevamos o capítulo sobre a história daAmazônia de maneira imprópria ou irresponsável.

Ademais, conforme citado anteriormente, não podemos perder de vistao valor econômico que o bioma amazônico representa, além de constituir-se

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em uma espécie de caixa preta a ser aberta e desvendada em seu conteúdopelas ferramentas atuais e as futuras que a ciência vier a proporcionar, contendoprovavelmente um universo enorme de informações científicas a seremdifundidas em proveito da sociedade brasileira e da humanidade.

O Brasil não pode admitir ser colocado no banco dos réus pela opiniãopública internacional sob a acusação de incapacidade de gerenciar seusecossistemas, pois absolutamente nenhum país do mundo teria autoridadepara fazê-lo. Somos ao mesmo tempo uma potência agrícola e uma potênciaecológica. Somos capazes de produzir alimentos para uma parcela significativada população mundial e de preservar 70 % de nossas florestas originais.

Esses e outros dados constam de estudos realizados pelo Dr. EvaristoEduardo de Miranda, da Embrapa Monitoramento por Satélites, com sedeem Campinas, expressos nos quadros abaixo.

http://desmatamento.cnpm.embrapa.br/conteudo/resultadoquat.htm 16/01708

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A data inicial (8000 anos antes de Cristo) faz referência ao período emque o homem passou a exercer a agricultura e, em consequência, pôdesedentarizar-se, dando início ao processo de derrubada das florestas originais,quer seja para abrir espaços aos cultivos ou para obter matéria prima para aprodução de energia, ou ainda para a construção de edificações, ou fabricaçãode ferramentas, armas, utensílios domésticos, meios de transporte, armamentosetc. Ao longo de toda essa trajetória, algumas civilizações desenvolveramsuas estruturas de poder às custas de seus ecossistemas, algumas vezes atémesmo esgotando-os. Muitas delas modernamente abrigam sociedades cujaspopulações e elites tentam impor restrições a que o Brasil desenvolva seusprojetos próprios, exigindo de nós padrões de comportamento quehistoricamente não observaram.

Contudo, do outro lado dessa moeda está a pergunta: até quandopoderemos ostentar essa autoridade moral? Destruímos 90% da MataAtlântica usando como ferramenta o machado e como meio de transporte ocarro de boi; o que não será feito da Amazônia onde se empregam a moto-serra e o trator de esteira?

A respeito da derrubada das matas, três aspectos merecem preocupação.O primeiro vem da falta de critérios com que ela se processa, não

respeitando parâmetros técnicos, econômicos, sociais, e até mesmo aspectos

http://desmatamento.cnpm.embrapa.br/conteudo/resultadoquat.htm 16/01708

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concretos tais como a natureza do solo, a proximidade de áreas sensíveis, aexistência de mananciais, matas ciliares, ecossistemas importantes e a presençade comunidades originais.

O segundo decorre da velocidade com que ele vem ocorrendo. Se hojeforam perdidos quase 20 % da floresta amazônica, em 1970 apenas 1 %havia sido derrubado. O quadro abaixo apresenta a série histórica das taxasde desmatamento, demonstrando que as medidas até então adotadas paracontê-lo têm sido capazes apenas de promover flutuações, mas estão longede demonstrar real capacidade de inverter a tendência reinante.

O terceiro vem do fato de que, geralmente, as medidas implementadaspelos órgãos responsáveis têm apenas caráter repressivo, sem capacidadede promover alterações estruturais, o que, se não for alterado, resultará emque todos os esforços se mantenham inócuos, contraproducentes edesgastantes.

A história demonstra que as frentes de desenvolvimento agrícola costumamser desorganizadas e até mesmo violentas, quando os governos não seantecipam por meio de medidas de planejamento integrado, estabelecendoparâmetros, estímulos e limites capazes de canalizar toda a energia segundocritérios que ofereçam alternativas de desenvolvimento e bem estar para apopulação, proporcionando, subsidiariamente maiores possibilidades de êxitoàs ações de repressão.

É preocupante o fato de que o processo de desflorestamento já tenhaavançado em relação ao traçado geral do que se convencionou chamar dearco do fogo, que basicamente corresponde, em sua parte mais ocidental,aos limites nortes dos Estados de Mato Grosso e Rondônia, passando agoraa afetar o Estado do Amazonas em torno da Rodovia Transamazônica.

Ressalte-se que também as ações empreendidas pelos órgãosresponsáveis pela preservação ambiental têm se revestido de caráterpredominantemente geopolítico, restringindo-se em geral à delimitação e àneutralização de extensas áreas, a exemplo do que acontece em relação àsterras indígenas, sem o acompanhamento de medidas sócio-econômicas como intuito de oferecer alternativas às populações afetadas.

Constata-se, portanto, que é inadiável o estancamento do processo dedesflorestamento, mas para tal será necessária a adoção de uma posturapró-ativa, marcada por atitudes responsáveis, pragmáticas e construtivas,não só pelo pelos governos, mas também pela sociedade brasileira como umtodo.

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Ciência e tecnologia

A pesquisa e o desenvolvimento científico e tecnológica sãoferramentas essenciais para a garantia de duas capacidades fundamentaispara o Brasil na Amazônia: garantia da soberania e obtenção doconhecimento para compatibilizar a ocupação com o desenvolvimento ea preservação ambiental.

No ano 2000 causou forte impacto sobre a opinião pública a notícia deque no Japão havia sido patenteada a marca CUPUAÇU, ficando as empresasbrasileiras impedidas de utilizar comercialmente um produto tipicamentebrasileiro. Como consequência, sentimo-nos espoliados, e foi inevitável acomparação com o contrabando de sementes de seringueira para a Malásia,efetuado no século XIX pelos ingleses, e que acabou provocando o declíniodo Ciclo da Borracha e o início de um período de estagnação econômica quedurou até a criação da Zona Franca de Manaus no Governo Castelo Branco,durante a década de 60.

Esse episódio deixou claro que estávamos permitindo a ocorrência deum vazio tecnológico em área de enorme potencial, acarretando um déficitde soberania brasileira sobre a região. Temos que ter em mente que não háoutra maneira de revertermos esse quadro que não seja por meio dodesenvolvimento científico- tecnológico, abrangendo desde a pesquisa debase até o registro de patentes.

Vê-se, portanto, que a valorização dessa área constituir-se-á emverdadeira afirmação de soberania brasileira sobre a região, mas que, apesardo incremento que a atividade vem experimentando, estamos longe de metasque possibilitem reverter o quadro acima descrito. Durante a III ConferênciaNacional de Política Externa e Política Internacional promovida pela FundaçãoAlexandre de Gusmão em 8 e 9 de dezembro de 2008, foram citados dadosda COPPE segundo os quais, em 70 % dos trabalhos de pesquisa realizadosno Brasil sobre a Amazônia, há a participação de estrangeiros.

A Professora Bertha Becker afirma que “há que se atribuir valoreconômico à biodiversidade, para que ela possa competir com as demaiscommoditys”. A C&T será a ferramenta para que, partindo-se da pesquisabásica e considerando-se o conhecimento popular, chegue-se ao registro depatentes e à concretização de produtos, tecnologias e técnicas, capazes deapontar os caminhos para que se compatibilizem na Amazônia a ocupação, odesenvolvimento e a preservação ambiental.

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Desenvolvimento econômico

Uma longa, sistemática e maciça campanha mundial incutiu na opiniãopública internacional, e encontrou eco no Brasil, tanto entre a população emgeral como, especialmente, em alguns setores da elite nacional, a visão deque o desenvolvimento econômico representa séria ameaça à preservaçãoambiental. Essa teoria, curiosamente, não encontra respaldo na realidade,pois a prática demonstra que pobreza e degradação ambiental estãointimamente associados.

Pesquisadores do BNDES elaboraram o IDH Ambiental, associando osíndices do IDH tradicional, criado pelo Prêmio Nobel de Economia, AmartyaSen, com o Índice de Sustentabilidade Ambiental, concebido nasUniversidades de Yale e de Colúmbia. Embora tenham chegado à conclusãode que “a relação entre renda e preservação ambiental não ocorre de formadireta” (Jornal O Globo, edição de 25 de março de 2007), constata-se umaclara associação entre pobreza e péssimas condições ambientais. Este dadofica claro ao compararmos a lista dos países melhores posicionados nesseranking com os que ocupam as últimas posições. De um lado estão Noruega,Finlândia, Suécia, Islândia, Canadá, Austrália, Suíça, Áustria, Irlanda e NovaZelândia, enquanto do outro encontramos Moçambique, Haiti, Etiópia,Burundi, Burkina Faso, Níger e Serra Leoa.

O Distrito Industrial da SUFRAMA produz um efeito demonstraçãosobre como um projeto de desenvolvimento intensivo pode contribuir para apreservação ambiental. Abriga cem mil empregos diretos o que, segundodados estatísticos, resulta em outros trezentos mil indiretos. Se considerarmosa existência de uma família de quatro pessoas em média para cada um dessespostos de trabalho, teremos uma população de um milhão e seiscentas milpessoas, o que corresponde à população atual da Cidade de Manaus. Comoresultado, o Estado do Amazonas é ao mesmo tempo o mais desenvolvido eo mais preservado entre todos os da Região Norte.

Compare-se com o modelo de desenvolvimento até hoje praticado nosEstados do Pará e de Rondônia, onde predominam as atividades primárias, eencontraremos as áreas proporcionalmente mais desflorestados e que abrigamos maiores e mais sérios problemas e conflitos sociais.

No ano de 2005, quando do assassinato da freira norte-americana,Dorothy Stang, o Exército e outros órgãos de governo foram empregadosna região da Terra do Meio, no Pará, por cerca de dez meses, numa operação

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cujo objetivo era realizar o desarmamento e a pacificação da área. Essa açãoresultou na paralisação das atividades econômicas principais, causando umaforte perda de empregos – cerca de sessenta mil – com ocorrência de protestosnas principais cidades. Três anos depois, no primeiro trimestre de 2008, apósa divulgação de dados que indicavam um crescimento das taxas dedesmatamento, os municípios mais afetados receberam uma fiscalizaçãoespecial, que contou inclusive com o emprego da Força Nacional de SegurançaPública. No Município paraense de Tailândia, novamente produziu-se a perdade empregos em razão da paralisação da única atividade econômica disponível,qual seja a extração de madeira. A realidade não se havia alterado, pois, noespaço de três anos decorridos entre os dois episódios, nenhuma novaatividade econômica havia sido introduzida, para servir de alternativa e evitaro envolvimento em atividades ilícitas por parte daquela população.

Associando-se produtos regionais como base para o desenvolvimentode cadeias produtivas, com forte aplicação de conhecimento tecnológico,dispondo de infra-estrutura que lhe dê suporte, focadas em áreas jádegradadas, – sul do Pará, Mato Grosso e Rondônia – será possível oestabelecimento de polos de desenvolvimento intensivo, capazes evitar que apopulação dependa essencialmente da natureza para seu sustento. Estar-se-iam criando condições para a fixação de um contingente populacional, o qual,caso contrário, iria engrossar e aumentar a pressão sobre as frentes dedesmatamento.

A preservação da Amazônia só será assegurada a partir da consolidaçãode um processo de desenvolvimento econômico, integrado e intensivo, queofereça alternativas à população que não seja a de depender da exploraçãoda natureza para garantir seu sustento.

Ideias finais

Nesse rápido passeio pela Amazônia, em torno de seus problemas e daspossíveis soluções, verifica-se uma realidade complexa, que, contudo, exigesoluções simples, mas não simplistas, com visão multidisciplinar, concebidascom pragmatismo e aplicadas com forte dose de vontade política e tendo oGoverno Federal como agente central.

Estaremos, assim, aumentando as possibilidades de que as páginas dahistória do Brasil, no capítulo referente à Amazônia, ao serem lidas pelasgerações futuras, despertem nelas os sentimentos de respeito e orgulho. Que

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as façam sentirem-se descendentes de quem soube ocupar, desenvolver egarantir-lhe a segurança, mantendo-a preservada e íntegra, fonte de riquezas,combustível permanente e inesgotável do desenvolvimento nacional, ao mesmotempo capaz de assegurar-nos a condição de potência ecológica, exemplopara todo o mundo e que, sobretudo, seja capaz de proporcionar a seushabitantes condições para a realização de seus sonhos e aspirações.

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Reflexões sobre cultura, soberania e patrimôniogenético na Amazônia

Ennio Candotti

Ocorrem-me três perguntas desafiadoras que, a meu ver, deveriamencontrar resposta nesse seminário que, entre outros temas da política derelações exteriores internacionais, trata da questão da Amazônia, da soberanianacional e da defesa do patrimônio genético que se encontra nesta região.

A primeira refere-se ao papel que ocupa nos foros internacionais a funçãoda floresta como reguladora do clima e as questões relacionadas com osequestro e a emissão do CO2. Tema que hoje ganha dimensões econômicasalém de ambientais e que polariza a discussão sobre a Amazônia nos forosinternacionais. Pergunto: serão estas as características mais importantes nocenário da política de C&T no que se refere à floresta amazônica?

A segunda é uma indagação sobre o grau de conhecimento edesconhecimento “sólido” que alcançamos no que se refere aos biomasamazônicos e as línguas e as culturas das comunidades que os habitam.Conhecemos o suficiente para definir políticas públicas, que atendam aosdireitos das populações e nos permitam avaliar o valor científico e cultural dasócio e biodiversidade que lá encontramos e, também, estabelecer programasde exploração sustentável dos recursos naturais da região?

A terceira refere-se à atual legislação que regulamenta o acesso aoslaboratórios naturais e controla a pesquisa científica nos ambientes naturais:ela atende aos imperativos da soberania nacional e, ao mesmo tempo, contribuipara o necessário progresso do conhecimento dos biomas amazônicos?

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ENNIO CANDOTTI

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Vamos examinar por partes estas três perguntas:

1. O papel da floresta tem sido insistentemente associado à sua funçãoreguladora do clima do planeta. Tendo sido verificado que o aumento daconcentração de CO2 na atmosfera está relacionado com a perturbaçãodos equilíbrios climáticos, o papel da floresta amazônica tem sidoconsiderado importante por duas razões:

i. pelo saldo de absorção de CO2 da floresta “em pé” medido atravésde modelos que estimam o volume de crescimento da massa arbórea naregião, que sabemos ser formada principalmente por carbono.

ii. pelas emissões de CO2 que ocorrem sempre que a cobertura vegetalé queimada e são medidos através de detectores in situ e indiretamente,através de modelagens dos efeitos destas emissões na atmosfera.

Se há outros fatores que contribuem para a absorção ou a emissãode CO2, na formação do efeito estufa, pouco se sabe. Não há, porexemplo, até agora, dados confiáveis sobre o volume de gás metano,absorvido ou que é liberado para a atmosfera, durante a decomposiçãodo material orgânico. Sabemos que ele é continuamente depositado, emgrande quantidade, no solo da floresta e que contribui para o efeito estufaem uma proporção 20 vezes mais intensa do que o próprio CO2.

Cabem aqui portanto, duas novas perguntas:

a) Caso a taxa de absorção de CO2 , ou de gases de efeitoequivalente, não fosse positiva a floresta deveria ser sacrificada paraatender aos reclamos dos países centrais, recorrentes nos foros climáticosinternacionais?

b) Se pesquisas revelarem a viabilidade do desenvolvimento em largaescala de processos capazes de absorver CO2, e assim mitigar o efeitoestufa, a custos energéticos aceitáveis, a floresta perderia boa parte deseu interesse “bioclimático” no cenário mundial?

A resposta é obviamente não, mas devemos reconhecer que aavaliação do valor da floresta, científico, sócio-ambiental e cultural, tantopara o Brasil como para o planeta, não tem sido objeto de políticas

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públicas, nacionais e internacionais, de dimensões semelhantes às pensadaspara estimar, e mitigar, os impactos climáticos ou mesmo das ações voltadasa coibir o incêndio das florestas.

I – A floresta amazônica como laboratório de ciência e cultura

Examinemos com um pouco mais de atenção este laboratório de ciênciae tecnologia, de culturas e conhecimentos tradicionais.

Sabemos que a bacia amazônica, em boa parte coberta por floresta,constitui um ecossistema de intensa biodiversidade que ocupa parte de novepaíses. No Brasil o bioma amazônico se estende por cerca de metade doterritório nacional.

Trata-se de um laboratório único no planeta pela extensão, variedade deespécies e processos de interação, únicos no planeta, entre a biota e osambientes naturais.

Para conservar o equilíbrio destes ecossistemas e a sua rica biodiversidadeé necessário preservar a floresta amazônica, seus rios e várzeas. Para tanto éimperativo conhecer a física e a ecologia dos solos, águas e biomas em suasdimensões estruturais, dinâmicas e funcionais.

Pesquisas científicas na Amazônia têm sido realizadas nos últimos cemanos por instituições nacionais instaladas na região e fora dela, mas de formapouco sistemática, tanto que, ainda hoje, é dominante o número de trabalhos(cerca de 70%) sobre o tema, conduzidos – e propostos – por pesquisadoresde instituições científicas de fora do país1. Mais grave contudo é o fato queo conhecimento acumulado em biologia, meteorologia e geologia da região éconsiderado inferior a 20% do desejável 2.

Entendemos por “desejável” o nível de conhecimento que permitareconhecer os processos fundamentais físicos e biológicos que lá ocorrem,para que sejam estabelecidas com razoável clareza as políticas de estudo,conservação e exploração sustentável dos ecossistemas conforme determinaa Constituição Federal (Artigos 218 e 225) e a Convenção daBiodiversidade de 1994.

1 Adalberto Val, III Congresso Nacional de Ciência e Tecnologia CNCTI, CGEE MCT , Brasília,2006.2 Outcomes and recommendations of the meeting Biodiversity and the megascience in focus,COP8 associated meeting, Curitiba março de 2008.

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É importante notar que há espécies e interações, entre elas e delas, comos ambientes que somente encontramos na Amazônia. Interações eadaptações cuja compreensão é fundamental para entender os modos queos seres vivos (humanos e não humanos) encontraram para sobreviver (econtinuar sobrevivendo) na Terra.

Se foi graças ao estudo do Sol, dos átomos e das estrelas que hojeconhecemos os segredos da fusão nuclear e sabemos quais reações sãoresponsáveis pelo funcionamento do Sol, a ponto de sermos capazes dereconstruir uma fusão nuclear em laboratório, a partir de elementosconhecidos, não sabemos como reconstruir, em laboratório, uma folha sequerde uma árvore, a partir de luz, oxigênio, carbono etc.! Uma folha capaz defazer fotossíntese! Ou mesmo compreender como a seiva alcança o topodas árvores de grande porte.

Há muitas questões abertas portanto no campo da biologia, na botânicae na zoologia, e são recentes as pesquisas nas florestas tropicais, que utilizamdetectores e equipamentos amplificadores de grande porte. Ainda são tímidasas iniciativas de “big science” na biologia dinâmica (em física utiliza-se aexpressão de “big science” para caracterizar a pesquisa realizada com grandesmáquinas e equipamentos como aceleradores, telescópios etc.).

Um exemplo de timidez: nos últimos dez anos realizou-se, através deuma cooperação internacional, um grande experimento na Amazônia, queutilizou tecnologia avançada em equipamentos detectores em que foramestudadas as interações entre a cobertura florestal e a atmosfera, o LBA(Programa de grande escala da biosfera-atmosfera na Amazônia). Hesita-seporém em preparar um experimento semelhante para o estudo dabiodiversidade, as interações entre sistemas biológicos para além dasinterações da cobertura vegetal com a atmosfera. Incluindo o papel dosinsetos e microrganismos, e as emissões de gases decorrentes dos processosbiológicos correntes etc.

O reduzido conhecimento de técnicas de manejo dos ecossistemasamazônicos e as tímidas alternativas à exploração da madeira, agriculturaextensiva ou criação de gado, oferecidas às comunidades que os habitam, édevido em boa parte ao desconhecimento da própria diversidade biológicaque encontramos na região amazônica, suas características estruturais e adinâmica das interações biológicas e ambientais. De fato, nem mesmo umextenso levantamento das espécies comestíveis existentes neste bioma foiconcluído!

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Os povos indígenas, ao seu modo, sabem como tratar a floresta, nela semovem com agilidade, e sabem extrair dela o sustento necessário para ascomunidades de suas aldeias. Trata-se porém, de conhecimentos próprios,de transmissão oral, e raramente ensinados a estranhos. Estima-se mesmoque eles, em que pese sua milenar familiaridade com os produtos naturais,não fazem uso de boa parte das ervas comestíveis da região.

Estes conhecimentos são vivos e objeto de permanente renovação pelosseus detentores. O diálogo entre as culturas exige mediações e atentascontextualizações sempre que se deseja retratar estes conhecimentos nalinguagem da nossa cultura científica.

É curioso observar que o estudo das línguas indígenas, da etnologia e daarqueologia na região amazônica seja incipiente. São raros na região os cursosde graduação e pós graduação em antropologia, linguística e arqueologia.Nestas áreas apenas nos últimos anos surgiram políticas indutivas por partedos órgãos de fomento da C&T e educação superior, sejam estaduais oufederais.

Encontramos hoje na Amazônia um curso de linguística, dois dearqueologia e dois de antropologia! Pouco, muito pouco, para estudar eentender mais de 150 línguas e o significado de extensas áreas de intensa esurpreendente ocupação pré-histórica conforme pesquisas recentes.

Se queremos proteger a floresta precisamos ‘aprender a caminhar’ nela,e nisso os índios e ribeirinhos são mestres, tanto mais se buscamos alternativasàs tendências de devastação dos seus ecossistemas, em que “os bárbaros”usualmente jogam fora o ouro ( essências e secreções) e comercializam ocascalho (madeira e terra).

Por outro lado, conservar a floresta para evitar o aumento da presençade CO2 na atmosfera ou simplesmente para preservar as espécies que nelavivem é missão benemérita, mas de difícil sustentação em uma culturadominada por valores de mercado presente e, ainda, pouco sensível aoscenários futuros.

Ou encontramos na floresta produtos e funções de elevado valoreconômico e reconhecido significado tecno-científico ou a batalha pela suapreservação será irremediavelmente perdida (elevado aqui significa: maiordo que o valor de uma cabeça de gado ou algumas sacas de soja por hectare).As ações políticas ou policiais inibidoras podem retardar, mas não sustar adevastação. Não é o desejável mas é o que vemos ocorrer apesar da crescenteindignação cívica.

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Há obvias razões para que outros países concentrem sua atenção sobreo equilíbrio emissão-absorção de CO2 da floresta amazônica, uma vez quenão possuem (ou ainda não foram desenvolvidos sistemas de absorção deCO2 em grande escala) meios de reduzir as suas próprias emissões. Não há,no entanto, iguais razões para que esta questão ocupe posições centrais emnossa política ambiental.

Isto não significa que a queimada deva ser considerada mal menor!Pelo contrário, a destruição dos ecossistemas (sejam eles emissores ou

sequestradores de CO2) deve ser evitada, principalmente porque nãoconhecemos o que está sendo destruído e temos boas razões para afirmar queneste laboratório natural se depositam informações de grande valor científico,tecnológico, cultural e mesmo econômico (bastaria entender como os cupinsdigerem a celulose para provocar uma revolução na produção de etanol).

O cerne da discussão sobre a Amazônia desloca-se portanto, para aimperativa necessidade de conhecer com maior profundidade os ecossistemascomplexos da floresta e sua biodiversidade. Conhecimentos estes, necessáriosnão apenas para selecionar o que se deseja conservar, mas também paraencontrar eventuais aplicações de utilidade e para atribuir valores científicossólidos à própria floresta e às culturas e populações que lá encontramos eaos ecossistemas que a sustentam 3.

Não se trata apenas de promover estudos antropológicos, linguísticos eda sistemática, da catalogação zoobotânica, mas também de incluir oconhecimento das interações que ocorrem entre os organismos emicrorganismos e destes com os ambientes tanto em terra firme como nosperiodicamente alagados.

No elenco de questões que devem ser acrescentadas às climáticas ebio- ambientais poderíamos acrescentar as sanitárias decorrentes da presençade seres humanos na floresta. A malária, a leishmaniose entre tantas outras,são graves doenças endêmicas, estudadas há muitas décadas, mas que aindanão encontraram vacinas ou terapias adequadas ao seu controle ouerradicação.

Ao entender as formas de adaptação e subsistência na floresta dehumanos e não humanos poderíamos, sem dúvida alguma, lançar nova luzsobre os modos de conviver com ela, extrair valores sem comprometê-la,manejar pragas, epidemias e doenças recorrentes nas regiões tropicais.

3 Amazônia desafio brasileiro do século XXI, Academia Brasileira de Ciências, 2008.

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Atrelar o valor da floresta às suas funções climáticas ou de bomba deabsorção do CO2 é apequenar os amplos horizontes da pesquisa científicaque, se adequadamente explorados, podem contribuir para a evolução dosconhecimentos físicos e biológicos, das culturas nacionais e universais e dareforma das combalidas relações do homem com a natureza.

Surge neste ponto a terceira pergunta: como explorar estes horizontese ampliar o conhecimento sem contar com a cooperação científicainternacional? Ela é conveniente? Como conciliar esta cooperação com osimperativos da soberania nacional sobre o território amazônico e o seupatrimônio genético?

II – A soberania nacional, a cultura e a cooperação científica e odomínio público do conhecimento

Nesse ponto se insere a terceira grande questão relacionada com ciênciae cultura na discussão sobre a Amazônia:

A questão da soberania nacional entendida não apenas nas suasdimensões territoriais e de controle dos recursos minerais mas também sobreo material biológico e o patrimônio genético.

Há dois aspectos que a meu ver devem ser levados em conta tanto porsua relevância jurídica como política:

Do ponto de vista político, a Convenção da Biodiversidade (subscritapelo Brasil) afirma que todo país é soberano sobre os recursos genéticos 4que podem ser encontrados, crescem e se multiplicam, em seu território erecomenda que todos os esforços devem ser feitos para melhor conhecê-los,e para melhor protegê-los.

Por outro lado, do ponto de vista jurídico, a Constituição de 88, noseu Artigo 225 já determinava que: “todos tem direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial àsadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividadeo dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”. Paraassegurar a efetividade desse direito (ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado) incumbe ao Poder Público:

4 Constituem o patrimônio genético as “ informações de origem genética contida em amostrasdo todo ou de parte de spécimem vegetal, fúngico, microbiano ou animal na forma de moléculasou substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destesorganismos vivos ou mortos” (Art 7 inciso I da MP 2186)

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II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético dopaís e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de materialgenético.

VII – proteger a fauna e a flora vedadas na forma da lei as práticas quecoloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espéciesou submetam os animais a crueldade.

Classificam-se assim os recursos genéticos, de modo semelhante aos recursosminerais como patrimônio da nação que deve ser protegido e eventualmenteexplorado desde que leis e normas estabelecidas pelo Estado sejam observadas.

A proteção deste patrimônio da nação constitui um complexo desafiopara o Estado que deve zelar pelo equilíbrio ecológico e ao mesmo tempo,promover a pesquisa e o conhecimento que permitam reconhecer e atribuirvalor aos recursos genéticos, que afinal deveria proteger.

Para um material inerte como os recursos minerais, espacialmentelocalizados, a proteção e a pesquisa, em princípio, são simultaneamenterealizáveis. Já para material vivo, de diferentes dimensões – micro emacroscópicas – que se reproduz e cresce, movendo-se e migrando semobservar os rígidos limites das fronteiras geopolíticas a tarefa não apenas écomplexa mas, na maioria das vezes, é inexequível, se interpretada comouma proteção material, física e espacialmente localizada.

Se, como no caso de mamíferos, plantas e animais de dimensões quepodem variar entre o decímetro e o metro, a proteção entendida comorastreamento registro e detecção pode, em princípio, ser fisicamente realizada,no caso dos microrganismos e insetos de dimensões entre milímetros e omilésimos de milímetro – e que se contam aos bilhões – este rastreamento edetecção é praticamente impossível.

É necessário imaginar nestes casos outras formas de controle e proteçãodas espécies, do material biológico e das informações que elas veiculam. Formasque, mesmo sem ser físicas, preservem a soberania nacional e, ao mesmo tempo,permitam e incentivem a pesquisa científica, protejam os interesses do paíssempre que os objetos da pesquisa, ‘ex post’ revelarem valor comercial.5

5 Por outro lado, a localização e detecção física de microrganismos é impossível pelas suaspróprias dimensões: em um milímetro cúbico cabem centenas de milhares de exemplares de ummicrorganismo. Basta calcular o volume ocupado por um objeto de dimensões de um milésimode milímetro (10-6m)3 = 10-18m3; o que signfica que em um volume de um milímetro cúbico = (10-

9)m3 cabem 109 microrganismos (um bilhão de indivíduos)!

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Convém lembrar também que, em muitos casos, o material genéticoexistente no território de um país existe também em outro, obedecendo auma distribuição que obedece à distribuição espacial dos ecossistemas emque estas espécies vivem e se reproduzem.

Para fixar as ideias com um exemplo bastaria lembrar que 60% da baciaamazônica está localizada no Brasil, sendo os restantes 40% distribuídosentre outros oito países. Como tratar as espécies que aqui vivem comotipicamente brasileiras, quando espécies semelhantes são encontradas tambémnos países vizinhos?

Como proteger estas espécies e os ecossistemas próprios à suareprodução se as políticas e efetivas ações de controle, conservação e pesquisaforem muito diferentes entre os países limítrofes?

Como garantir a soberania nacional na proteção do patrimônio genéticoquando se deve compartilhar os ecossistemas com outros países soberanos?Isso se torna particularmente dramático se pensarmos que as nascentes dorio Amazonas se encontram em território peruano (em uma área que vemsendo sistematicamente desmatada por empresas madeireirastransnacionais!).

Outro exemplo poderia ser encontrado ao examinar as dificuldadesencontradas pelas autoridades sanitárias para proteger o espaço territorialnacional com o objetivo de evitar a entrada de um vírus patogênico. O querevelou a complexa operação de controle de rotas e fluxos coletivos e nãoindividuais.

Se de fato é nosso interesse – como deve ser – proteger o patrimônio,efetivo ou potencial, presente no material biológico existente em nossoterritório devemos imaginar novas formas de controle e exercício da soberania,uma vez que os usuais métodos de detecção, proteção física, rastreamentoindividual não funcionam para coibir eventuais ilícitos e “piratarias”.

Um grande número de funcionários estão hoje envolvidos em agênciasde governo encarregadas do “controle” da pesquisa científica nos laboratóriosnaturais. Tentam eles aplicar a legislação vigente “rastreando e vigiando” ospesquisadores, individualmente.

Contrariam o artigo da Constituição que determina ser este controleinstitucional. Causam assim graves conflitos com os pesquisadores, aplicandoe interpretando as leis de proteção ambiental de modo arbitrário e restritivo.É recorrente a negação aos supostos réus, de elementares princípios do direitode defesa e presunção de boa fé, particularmente se levarmos em consideração

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que se trata de cidadãos que muitas vezes executam projetos fomentados epermanentemente avaliados pelos órgãos de apoio à ciência e tecnologia.

Um exemplo simples pode ilustrar os paradoxos que decorrem de umarestritiva aplicação das leis (da fauna Lei 5197 e do acesso ao patrimôniogenético: MP 2186): é permitido a todo cidadão pescar peixes para consumo(desde que não se trate de espécies em épocas de desova etc.), mas se umpesquisador deseja coletar um peixe para pesquisa deve solicitar permissãoao órgão de controle ambiental, ao Ministério da Marinha etc. Deve explicarporque e para que deseja realizar a pesquisa (e, ao publicar sua pesquisaem revista especializada deverá mencionar o número da licençacorrespondente).

Após sete anos de vigência da Medida Provisória que regulamenta acoleta e o acesso ao patrimônio genético, (a MP 2186 é de 2001) osresultados das intervenções e “controle” dos órgãos de “proteção ambiental”da pesquisa científica, se revelaram pouco eficazes e mesmo contrários aosartigos da Constituição que determinam o fomento da C&T nos ambientesnaturais, uma vez que verificamos:

a) o pesquisador é considerado pelos órgãos de proteção ambiental, umpotencial criminoso, permanentemente suspeito de biopirataria, devendodemonstrar caso a caso, sua inocência e a boa fé de suas ações e intenções.E, mais grave, em caso de suposta ou real infração o direito de defesa éprecário. Não existem formas jurídicas de amparo do direito ao conhecimentocomo por exemplo um “habeas data naturae” 6 semelhante ao “habeascorpus”.

Por outro lado, em caso de efetiva infração, não existe a possibilidadede demonstrar que, de fato, não foi cometido dano ao patrimônio, à segurançanacional ou ao interesse público, casos em que a jurisprudência registra quea penalidade pode ser relevada.

b) observou-se também que o número de licenças e autorizaçõessolicitadas por pesquisadores aos órgãos de controle, constituem de fato emnúmero muito inferior ao das pesquisas que vem sendo realizadas em campo.

6 Candotti, Ennio. Habeas data Naturae. Hilea, Revista de Direito Ambiental da Amazônia n.7,UEA, Manaus 2009

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c) o número de pesquisas realizadas “in situ”, medido pelas publicaçõesespecializadas em zoologia e botânica tem decrescido na última década, emnúmeros relativos, ao contrário do que deveria acontecer, uma vez que osrecursos e incentivos disponíveis se não cresceram significativamente nãodecresceram em igual proporção.

Estes fatos revelam o descrédito do sistema de controle e, mais grave odesestímulo à pesquisa e ao conhecimento decorrentes da desastradalegislação, que, pelo contrário, deveria ser instrumento de fomento, além deproteção.

Há pelo menos cinco aspectos desta questão que deveriam serobservados por um foro que discute as relações internacionais na política daAmazônia:

a) a soberania sobre o bioma amazônico depende de pesquisas científicascapazes de realizar o levantamento da biodiversidade e de suas interaçõescom os ambientes sejam eles aquáticos, terrestres ou atmosféricos.

b) o material biológico exige tratamento cauteloso quando se discutequestões de propriedade e exploração econômica das aplicações dosconhecimentos produzidos pela pesquisa científica. Devem ser separadoscom cuidado os conhecimentos de domínio público, as descobertas einformações factuais, das suas eventuais aplicações farmacológicas ou agro-industriais que podem ser objeto de patentes etc.7

c) a distinção destes dois domínios e a regulamentação das atividadesque lhes são próprias, torna-se fundamental para disciplinar as de caráteraplicado e promover a pesquisa científica “de domínio público” necessáriaspara informar as políticas de C&T e de defesa da soberania nacional naregião.

7 São de domínio público os dados e informações publicadas nas revistas especializadas queformam o acervo de conhecimentos abertos à leitura de qualquer cidadão do mundo (ex.classificação de uma nova espécie de sapo ou o estudo da emissão de sinais sonoros porformigas ou peixes ). São informações de circulação restrita aquelas que obedecem a legislaçãointernacional de propriedade intelectual como por exemplo as aplicações farmacológicas desecreções encontradas na pele de uma sapo ou as propriedade abortivas de extratos de diferenteservas manipulados conforme procedimentos tradicionalmente utilizados por pajés de uma etniaindígena.

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d) a determinação dos limites público e privado na pesquisa do materialbiológico, dos ecossistemas e do “patrimônio genético”, apesar decomplexo, torna-se assim peça fundamental não apenas para definir aspolíticas nacionais de C&T na região amazônica mas também as políticasde cooperação científica internacional e particularmente da colaboraçãocientífica e tecnológica com os países vizinhos que compartilham os mesmosecossistemas naturais.

e) nas fronteiras, entre o domínio público e o privado, encontramos osconhecimentos das culturas tradicionais indígenas. Esta questão adquire grandecomplexidade uma vez que, do ponto de vista das comunidades indígenas adistinção entre descoberta e aplicação, domínio público e privado, individuale coletivo, não têm o mesmo significado que têm na cultura científicaacadêmica.

Sabemos que estas comunidades são detentoras de conhecimentossignificativos e de grande valor para entender a vida e as interaçõesbiológicas na floresta. Trata-se de conhecimentos factuais ou aplicados,que devem ser protegidos por adequada legislação, e de direitos depropriedade coletiva que devem ser entendidos e respeitados.Conhecimentos estes que nem sempre podem ser localizados no territóriode uma só nação.

Concluímos afirmando que os imperativos levantados pela soberanianacional na questão amazônica exigem:

i) uma melhor compreensão de quais são as características essenciais noconceito de patrimônio genético, do significado estratégico do domínio públicodo conhecimento e da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais.

ii) uma redefinição das políticas de C&T para a Amazônia, qual o papelque nesta política exercem as instituições científicas nacionais e estabelecercom determinação e clareza por quais caminhos deve passar a cooperaçãocientífica internacional.

iii) a definição de um programa acelerado de formação de um grandenúmero de profissionais habilitados para realizar pesquisas e desenvolvimentostecnológicos na região.

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iv) e, finalmente, buscar a colaboração e o entendimento com os povosindígenas que há milênios vivem e se sustentam na floresta. Os mesmospovos que hoje reclamam, justamente, ter voz ativa na definição das políticaspúblicas que estão sendo traçadas para a região.

III – Algumas reflexões sobre a responsabilidade das Instituiçõesdo Estado na proteção do patrimônio genético

O Artigo 225 da Constituição determina que cabe ao Estado fiscalizar asentidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético. Da mesmaforma que fiscaliza as entidades que, por exemplo, manipulam materialradioativo. Cabe aqui observar que uma mesma entidade, mesmo no casoem que é de caráter público (p.ex. a Comissão Nacional de Energia Nuclear,CNEN) não deveria ao mesmo tempo realizar pesquisas e ser responsávelpela sua própria fiscalização.

No entanto esta separação não tem sido levada às últimasconsequências devido à complexidade destas funções e o grau deespecialização que elas exigem. Dificilmente uma instituição que nãorealiza pesquisas e atualiza permanentemente seu acervo deconhecimentos pode realizar com rigor a função fiscalizadora na áreabiológica e ambiental. Um exemplo eloquente é dado pela recentereestruturação do Inmetro, que criou laboratórios especializados econtratou um quadro permanente de pesquisadores de elevado grau deespecialização para realizar pesquisas em seus laboratórios. Opta-seassim pelo exercício de um responsável, bom senso no exercício dafunção pública, da pesquisa e de atualização permanente dos parâmetrosde fiscalização.

No caso do “patrimônio genético” a situação não é diferente do casodo material radioativo. A fiscalização, particularmente da pesquisacientífica, deve ser realizada por instituições do Estado que mantém corposde funcionários especializados atuantes em pesquisas de fronteira, e queestão equipadas para avaliar, caso a caso, se as pesquisas causam defato desequilíbrios indesejáveis aos ecossistemas e danos ao patrimônionacional.

Não é isso que ocorre nas agências de controle ambiental como porexemplo o IBAMA e Instituto Chico Mendes etc. Elas não preenchem estesrequisitos básicos, o que alimenta conflitos e tropeços que comprometem a

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eficiência do sistema e paralisam as ações de fiscalização da pesquisa quelhes são atribuídas 8.

Uma possível solução capaz de preencher estes requisitos seria a deincluir no sistema nacional de fiscalização da pesquisa com material biológicoinstituições de pesquisa, particularmente as que se dedicam às pesquisasbiológicas, geológicas e climáticas e universidades públicas.

Associaríamos assim ao controle das pesquisas e intervenções na naturezainstituições públicas atentas aos imperativos da soberania nacional e equipadaspara distinguir o que é essencial do que é secundário. Com responsabilidadesdefinidas e um papel ativo no sistema de proteção aos ambientes e do‘patrimônio genético’ estas instituições poderiam contribuir para tornar osistema muito mais eficiente e confiável 9.

Para realizar esta missão estas instituições deveriam constituir comitêsespecializados com atribuições específicas para acompanhar e avaliar riscose impactos das pesquisas e a qualidade dos resultados obtidos e eventuaisbenefícios ao interesse nacional.

Já mencionamos que pelas dimensões territoriais e pelo escasso acúmulode conhecimentos a tarefa do controle das pesquisas com impacto ambiental,dificilmente pode ser cumprida com sucesso pelas instituições que hoje a elase dedicam. Para tanto, o número de funcionários especializados e ainfraestrutura de laboratórios que elas dispõem deveria ser de dimensõesmuito superior ao que hoje nelas encontramos.

Isso se tornaria ainda mais evidente se o sistema de fiscalização fosseorientado, como acredito que deveria ser, para uma atenta avaliação dosresultados das pesquisas autorizadas e não apenas dos meios e propósitosregistrados nos formulários em que as licenças de acesso e coleta são solicitadas.

Somente incluindo, no sistema de fiscalização da pesquisa científica commaterial biológico, os institutos e as universidades e compartilhando com

8 Caso semelhante é encontrado nos órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio histórico,arqueológico e cultural. Também neste caso, e particularmente para as pesquisas arqueológicas,o envolvimento dos institutos e universidade públicas poderia contribuir para que as políticasde proteção e conservação ganhem as dimensões necessárias para sua efetiva implementação.Ver: Lima, Tânia Andrade (org), Patrimônio arqueológico: o desafio da preservação, IPHAM2007.9Alguns passos tem sido dados nesta direção através de recente instrução normativa do Ministériodo Meio Ambiente em que se torna possível a realização de convênios com institutos euniversidades publicas para que seus pesquisadores, em unidades de conservação federais,possam realizar pesquisas sem solicitar autorizações individuais.

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eles as responsabilidades de controle e avaliação alcançaríamos as dimensões,em quadros, competências e laboratórios, necessários para realizar com rigore eficiência esta missão.

É bom lembrar que não se trata apenas de uma missão de controle mastambém de registro e catalogação da biodiversidade. Necessária para que oconceito de patrimônio genético ganhe a concretude dos fatos conhecidos.Este catálogo para ser confiável e acumulativo deve ser permanentementerevisto e atualizado, tarefa que não pode ser realizada com sucesso por umarepartição da administração central que não esteja envolvida com a permanenteatualização e utilização das informações incluídas no catálogo como suportepara suas pesquisas.

Deve-se sublinhar por outro lado que órgãos como Ibama, Instituto ChicoMendes e os equivalentes estaduais, são essenciais no sistema de fiscalizaçãoambiental e deve ser atribuído a eles o papel central no licenciamento eavaliação dos impactos ambientais dos grandes projetos de engenharia, comopor exemplo instalações industriais, hidroelétricas, estradas além do controlede queimadas, desmatamentos ilícitos etc. A delegação de parte de suasfunções de licenciamento e avaliação das pesquisas, para institutos euniversidades, não interfere nem reduz a autoridade na fiscalização ambientalnas áreas onde a maioria das grandes ameaças aos equilíbrios ambientais temsido registradas.

Ao incluir no sistema de fiscalização dos impactos ambientais estas novasinstituições evitar-se-ia também outro sensível conflito de competências,recorrente nos procedimentos de controle e autorização das pesquisas, quefrequentemente ocorre devido ao fato que as universidades e institutos depesquisa públicos gozam de autonomia científica, didática e administrativa,conforme determinado pelos Artigo 207 da Constituição.

As interdições, previstas na lei de acesso e coleta do material biológicoin situ, bem como as informações nele contido têm sido por vezes interpretadona comunidade acadêmica como uma forma de interferência na autonomiacientífica dos institutos e das universidades públicas.

São vistas de mesmo modo que eventuais restrições ao uso de imagensdo território registradas por um satélite ou ao uso do GPS para o estudo dacartografia, ou mesmo ao uso da internet para acesso e circulação deinformações de caráter técnico-científico.

Entendemos que esta questão é de caráter mais amplo do que a doestudo científico e cultural da biodiversidade da Amazônia. No entanto, se

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ela não for adequadamente resolvida o desenvolvimento das pesquisascientíficas e tecnológicas na região dificilmente poderão progredir e o exercícioda soberania nacional estará comprometido.

O modesto acervo de conhecimentos sócio-ambientais na Amazôniaacumulado nas últimas décadas é sintoma dos efeitos inibidores da confusaconceituação e contraditória legislação que orienta as relações do Estadocom a pesquisa na natureza. Nela se refletem diferenças conceituais profundas,presentes em nossa sociedade, tanto sobre o significado do patrimônio genéticoe cultural como dos procedimentos capazes de garantir os interesses nacionaisnos projetos dedicados à sua preservação e criteriosa utilização.

Cabe a seminários como este a tarefa de equacionar as diferenças eorientar a discussão de modo que ela nos possa conduzir a soluções quepermitam, ao mesmo tempo, promover o bom uso da ciência e da tecnologiapara dar valor à rica sócio e biodiversidade, que encontramos em nossoterritório, e atribuir à questão amazônica as dimensões nacionaisinsistentemente reclamadas.

Nota acrescentada após o debate

Ouvindo a exposição do ilustre jurisconsulto Ives Gandra Martins, emdefesa da tese da demarcação descontínua das terras indígenas Raposa Serrado Sol, em Roraima, devo expressar minha profunda discordância com osargumentos apresentados. Se bem entendi, ele interpreta o significado dapalavra “ocupam tradicionalmente”, que encontramos no caput do Artigo231 da Constituição, como: “que ocupam no momento em que a Constituiçãofoi promulgada”. Esta interpretação da palavra “tradicionalmente” é, a meuver, equivocada uma vez que o significado desta palavra tem uma claradimensão temporal e histórica que, pelo contrário, sugere “ocupação desdetempos imemoriais” o que é confirmado pelo Dicionário Houaiss da línguaPortuguesa onde lemos no verbete “tradição”: “conjunto de valores morais,espirituais, etc. transmitidos de geração em geração”.

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Amazônia

Ives Gandra da Silva Martins

Em 1991, participei com o Senador Roberto Campos e o então Ministrodas Relações Exteriores do Brasil, Francisco Rezek, de um seminário realizadona Fundação Konrad Adenauer, na Alemanha (Bonn), em que se discutiramassuntos de interesse comum aos dois países.

Um dos painéis foi sobre a Amazônia, do qual participamos proferindo palestrae debatendo, Roberto Campos, eu e dois professores alemães. Já no dia anterior apresidente do IBAMA também participara sobre o tema do meio ambiente.

Na exposição dos dois professores alemães, houve nítido posicionamentoa favor da internacionalização da Amazônia. O argumento era simples. Comoa humanidade dependerá, no século XXI, da preservação do meio ambientee como a Amazônia representa uma das últimas grandes reservas depreservação ambiental, nada mais razoável que não um só país, mas toda acomunidade internacional dela cuidasse 1.

1 Oscar Corrêa teme que, a título de preservação de tais populações, grandes empreendimentosinternacionais se apropriem de terras brasileiras: “Nessa época (1966), novamente alertei oGoverno para a gravidade da situação. De lá para cá a situação, certamente, agravou-se, com aaquisição de grandes áreas até mesmo na zona de fronteiras — por empresas multinacionais,sem a correta fiscalização (difícil, senão impossível) das autoridades nacionais. Impõe-se, pois,nos apossemos realmente da região, das mais ricas do País, e ainda quase totalmente inexplorada.Em exploração planejada, que preserve os recursos naturais, mas aproveite as riquezasracionalmente exploráveis. Antes que os “donos do mundo” se cansem de esperar por nossaatuação e pretendam, eles mesmos, desenvolvê-la. O que devemos evitar e impedir, a todocusto” (A Constituição de 1988 - contribuição crítica, Editora Forense Universitária, 1991, Riode Janeiro, p. 237).

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Roberto e eu reagimos, de imediato, concordando com a tese geral, masdiscordando do direito da comunidade internacional intervir em assunto afetoà soberania do Brasil. A única colaboração possível seria, como contrapartidaaos ônus que têm que suportados para a preservação bem de interesse global,ofertar recursos financeiros e técnicos para que o País possa cuidar daAmazônia, sem que se possa admitir a internacionalização ou redução dasoberania nacional sobre o território amazônico 2.

Cheguei a lembrar que, para conquistar o elevado padrão de vida deque hoje desfrutam, os europeus, ao longo da história, não souberam ou nãose preocuparam em preservar suas florestas, faltando-lhes, portanto,autoridade para exigirem que o Brasil bloqueie seu desenvolvimento naquelaárea, em prol de assegurar maior conforto às nações civilizadas.

Propus mesmo que os recursos internacionais a serem destinados a Amazôniapara exclusivo uso do Brasil, na preservação da rica região, deveriam incluirtambém valores compensatórios pela não exploração agropecuária, extrativa,comercial e industrial da região, ressarcindo aqueles que seriam privados de obtero mesmo grau de desenvolvimento europeu, por serem obrigados a preservar desuas florestas, quando a Europa não preservou as suas.

A discussão, embora acadêmica, revelava, todavia, o permanente desejo daComunidade internacional, manifestado nos mais variados “fóruns internacionais”,de que um dia a Amazônia se transforme em área internacional, administrada pelos“guardiões do mundo”, ou seja, as nações desenvolvidas (EUA-EU-Japão) 3.

2 É se lembrar as palavras de Artur Bernardes, na Câmara de Deputados, denunciando em 14/12/1950 o Convênio da Hileia Amazônica, que pretendia abrir espaço à internacionalização:“Aprovar o Convênio é consumar o desmembramento da Amazônia, ferir a soberania brasileira,e separar do Brasil mais de um terço do seu território. Além disso, o protocolo suplementarpode não ser aprovado; podem as nações se recusar à retificação do Convênio, e a mim meparece ser esse o pensamento de algumas delas. Com efeito, não é de hoje que o Itamaratyinsiste nesses convites sem maior resultado; estão como passarinhos que, escapas ao alçapão,relutam em voltar a ele” (Discursos e Pronunciamentos políticos, Governo do Estado de MinasGerais, Belo Horizonte, 1977, p. 202).3 Samuel Hanan e eu escrevemos para a Folha de São Paulo artigo em que enunciávamos: “Podeinteressar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região que tem —segundo estimativas de especialistas— de 14% a 20% da água potável do mundo? Pode interessar,a alguma nação ou organismo internacional, uma região que possui mais de 200 espécies diferentesde árvores por hectare, cerca de 30% da biodiversidade da Terra e é reconhecida como a maiorfonte natural para produtos bioquímicos e farmacêuticos (maior banco genético) do planeta?Pode interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região quetem em seu subsolo um potencial mineral de grande porte, estimado em centenas de bilhões dedólares, sendo que algumas das riquezas já detectadas são escassas no resto do planeta? Podeinteressar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, (...)

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O tempo, todavia, tem trazido outras preocupações às nações doprimeiro mundo, como as guerras do oriente próximo desde a 1ª invasãodo Iraque, em 1991; o desenvolvimento dos quatro grandes emergentes(Brasil, Rússia, Índia e China), denominados BRICs; a crise econômicado ano 2009; o alargamento da União Europeia para 27 países e odesmembramento da União Soviética e da Iugoslávia. O tema, portanto,continuou mais no plano da retórica e das discussões acadêmicas,que de interesse imediato, principalmente após os Estados Unidos nãoterem se interessado pelo Tratado de Kyoto sobre meio ambiente 4.

De qualquer forma, a questão, embora latente, continua apreocupar, mormente após o denominado direito de ingerência ter sidorepetidas vezes utilizado pelas nações desenvolvidas, nos últimos anos,direito este que permitiria à comunidade internacional intervir nasoberania de outras nações, quando a própria comunidade corresseriscos.

A grande questão, todavia, reside no fato de que o denominadodireito de ingerência é dirigido exclusivamente pelas nações poderosas.A comunidade internacional pouca força tem para opor-se ao pequenogrupo de nações que decide a sorte do mundo. A própria ONU é um

(...) uma região que tem mais de um terço das florestas tropicais do mundo? Pode interessar,em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma região com a extensãoequivalente a 45% do território brasileiro e à área de dezenas de países europeus reunidos(onde mora quase meio bilhão de pessoas), habitada por menos de 10 milhões de pessoase que produz menos de 5% do PIB brasileiro (enorme vazio econômico e demográfico)?Pode interessar, em algum tempo, a alguma nação ou organismo internacional, uma regiãoimensa que faz fronteira com sete países (três deles contaminados por narcotráfico e/ounarcoguerrilha)? É evidente que a soma dessas questões à omissão, ao descaso e aosilêncio do Governo brasileiro e da sociedade em relação à Amazônia poderá encorajar ojá existente processo potencial de interesse internacional sobre a região, transformando-o em problema real” (“A verdadeira Amazônia” artigo publicado no jornal “O globo”,Opinião, 07/11/2000, p. 7).4 Acresce-se o fato de que ocorre, efetivamente, um permanente alargamento do desmatena Amazônia, como noticia Eduardo Geraque (Folha de São Paulo, Caderno Ciência, p.A24, “Custo ambiental bloqueia BR-319”, 07/12/2008), tomando como exemplo asredondezas da BR-319: “Mas hoje o problema da chamada governança ambiental já édelicado na região, segundo dados do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente daAmazônia). Eles mostram que neste ano o desmatamento já subiu na Zona de influênciada estrada – que existe há décadas, mas é asfaltada apenas nas pontas, perto das duascapitais. “Os nossos boletins divulgados mensalmente mostram um aumento dodesmatamento no sul do Amazonas (municípios de Lábrea e Humaitá), área de influênciada BR-319”.

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organismo manietado pelo poder de veto de uma única nação, entre ascinco com assento permanente no Conselho de Segurança 5.

Assim, intervenções como no Iraque, no Afeganistão, ou em Kosovo,atingindo a soberania de países, embora fossem ditaduras, a maior partedeles não teve o consenso geral, até porque a guerra de Bush contra o Iraqueocorreu contra a manifestação dos técnicos da ONU, que não encontraramarmas de destruição que o governo americano afirmava existir naquele País.A decisão foi exclusivamente do Presidente Bush.

Ora, não excluo que o objetivo, quando as outras questões mundiaischamarem menos atenção, possa ser retomado6.

5 Escrevi em 2005 que: “O mesmo não ocorre com os Estados Unidos que, com populaçãosuperior a 250 milhões de habitantes e um PIB maior que 11 trilhões de dólares (o PIB mundialestá em torno de 35 trilhões), não só definem o destino econômico do mundo, como seusdirigentes se auto-outorgam o direito de dizer o que é bom e o que é ruim para a humanidade.As operações contra o Iraque, em 1991 e 2003, e contra o Afeganistão, em 2001, foramdeliberações dos Estados Unidos com ou sem o aval da ONU (Organização das Nações Unidas)e da grande maioria das nações, desenvolvidas ou não. O mesmo se diga da operação contra aIugoslávia, em que a decisão de combater Milosevic decorreu do aval dos americanos e dedecisão de um seleto grupo de países desenvolvidos, sem o apoio dos demais. Nas operaçõesmencionadas, toda a concepção jurídica de soberania elaborada no correr dos séculos,principalmente após o advento do constitucionalismo moderno — houve, em Atenas, umdireito nos moldes do constitucionalismo atual —, foi posta de lado, contando apenas o superiorinteresse das nações mais fortes, que se auto-outorgaram o direito de intervir em assuntosalheios sempre que seus dirigentes assim entenderam necessário. Em outras palavras, o conceitode soberania nacional foi substituído pela lei do mais forte. Não do “direito de ingerência daONU”, mas do “direito” de a nação mais forte impor sua vontade. E como a economia americana,de certa forma, serve de sinalização à estabilidade econômica mundial, todos os países, emmenor ou maior intensidade, que são dela dependentes, à evidência, curvam-se à sua liderançaauto-suficiente, que não carece, pois, da oitiva das demais nações. E esse o componente maiordessa nova realidade em que, após a queda do muro de Berlim, todos os países passaram a teruma dimensão secundária” (A queda dos mitos econômicos, ed. Pioneira/Thomson Learning,2004, p. 5). 6 No momento, a crise mundial e o xadrez do Oriente Médio chamam mais a atenção. Escrevi:“Quando menino, li um livro intitulado ‘Os mais belos contos russos’. Num deles, sete guerreirosinvencíveis reuniram-se para comemorar sua invencibilidade quando, no horizonte, surgiu umcavaleiro com elmo e espada, que cavalgou em direção ao grupo para desafiá-lo. Bastou umgolpe de um dos guerreiros invencíveis para dividi-lo ao meio. Do cavaleiro morto surgirão doiscavaleiros que, novamente, foram divididos em dois por dois golpes de dois guerreiros invencíveis.Os dois cavaleiros mortos transformaram-se em quatro e assim foram sendo multiplicadosenquanto eram derrotados. Após sete dias de combate com uma infinidade de cavaleiros, os seteguerreiros invencíveis foram vencidos pelos fracos cavaleiros que tinham o dom de se multiplicaremquando mortos.” Escrevi, tão logo Bush invadiu o Iraque, na Folha de São Paulo, o artigo“Terrorismo Oficial de Bush”, em que prenunciava que o Iraque seria uma nova Vietnã para osamericanos. É que estou convencido que o terrorismo político, arma dos mais fracos, não podeser combatido como se combate o narcotráfico ou a criminalidade em geral. (...)

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Temo, inclusive, que o debate futuro não se travará mais no campoda preservação do meio ambiente, mas da intervenção a pretexto de umasuposta necessidade de preservação de 400.000 índios brasileiros eestrangeiros, que vivem em 25% do território amazônico, em reservasnas quais os brasileiros não índios não podem penetrar, salvo por horas,com autorização da FUNAI7.

Embora discorde da leitura que ilustres magistrados fizeram do art. 231da C.F., assim redigido:

(...) Quem está disposto a sacrificar sua vida por uma causa, por mais errada que esteja – e osterroristas estão sempre errados pelos métodos adotados – acredita firmemente no ideal queabraça a ponto de sacrificar-se como “pessoa-bomba” em seus atos tresloucados. O terrorismopolítico só pode ser combatido com o diálogo à exaustão, sem preconceitos, aceitando-se asdiferenças culturais e nivelando-se o “status” do mais forte com o mais fraco, como Rui Barbosaprenunciou em Haia, ao defender a igualdade das nações independentemente de sua força. Opresidente Clinton obteve, em seu governo, um cessar fogo entre palestinos e israelensesmediante um diálogo permanente. É bem verdade que Arafat tinha mais sensibilidade que osradicais de Hamas, os quais, todavia, foram eleitos pelo povo. Do ponto de vista do DireitoInternacional, a resposta de Israel é justificada, pois foi o grupo Hamas que deu início àshostilidades, mas o objetivo de Israel de destruir por completo o foco dos radicais de Hamasatravés reação desproporcional, que matou tantos inocentes quanto terroristas, parece-me dedifícil consecução, pois o número de mortos palestinos termina por aumentar o ódio islâmicocontra Israel, o que poderá levar a uma luta semelhante ao dos sete guerreiros invencíveis. Ódiogera ódio. Morte de inocentes de ambos os lados gera a vontade de vingança, com o que o dramado Oriente Próximo nunca terá fim. Creio que a pressão crescente da comunidade internacionale a necessidade de abertura de um diálogo à exaustão entre as partes em conflito, são as únicastênues esperanças de que, um dia, teremos paz naquela conturbada região” (Israel x Hamas,artigo publicado no Portal Migalhas, www.migalhas.com.br).7 Escrevi : “1.702 índios Cué-Cué Marabitanas deverão receber, segundo noticia a Folha de SãoPaulo (p. 4 dia 27/12/08) , 808.597 hectares, ou seja, 8.085.970 kms² de terras na fronteira coma Venezuela e Colômbia, o que vale dizer : a pouco mais de mil índios será destinada áreasuperior à ocupada pela grande São Paulo, que inclui os municípios da capital, o mais populosodo Brasil, Santo André, São Bernardo, São Caetano, Osasco e outros. Com a futura outorga dessavasta extensão territorial , ao norte do Brasil, toda a fronteira com a Colômbia, quase toda afronteira com a Venezuela e parte da fronteira com a Guiana ficarão em mãos de algumasdezenas de milhares de silvícolas. Por estas terras não poderão os demais brasileiros transitar,nem possuir propriedades, muito embora aos indígenas , em favor dos quais essas reservasforam demarcadas, possam transitar livremente e possuir terras em todo o território nacional .Pelo art. 5º inciso XV da Constituição Federal, é assegurado aos brasileiros, sem exceção, odireito de transitar livremente e de possuir propriedades em todo o território nacional, sendocerto que mesmo aquelas áreas que constituem bens pertencentes à União (artigo 20) , aos Estados (artigo 25) e aos Municípios (artigo 29) são bens do povo . Em relação aos brasileironão-índios, esse direito, agora, ficou reduzido a apenas 87% do território do País. Já emrelação aos índios, nenhuma restrição existe: além das reservas que possuem, poderão terpropriedades e transitar livremente pelo País inteiro” (artigo “Cué-Cué Marabitanas” no Jornaldo Brasil, 13/01/2009).

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“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger efazer respeitar todos os seus bens” (grifos meus).

Estou convencido de que mais do que o equívoco na interpretação dodispositivo, a assinatura da Declaração Universal dos Povos Indígenas poderátrazer, no futuro, problemas sérios para o País, na medida em que já hámovimentos insuflando os povos destas reservas no sentido de exigir queelas se tornem países independentes, como um grupo de ianomanis templeiteado, junto a organizações internacionais 8.

8 Constam da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, assinadapelo Brasil, trechos como os seguintes:“Art. 3º Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito, determinamlivremente a sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico,social e cultural.....Art. 4º Os povos indígenas no exercício do seu direito a livre determinação, têm direito àautonomia ou ao auto-governo nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais,assim como os meios para financiar suas funções autônomas.Artigo 5Os povos indígenas têm direito a conservar e reforçar suas próprias instituições políticas,jurídicas, econômicas, sociais e culturais, mantendo por sua vez, seus direitos em participarplenamente, se o desejam, na vida política, econômica, social e cultural do Estado....Artigo 9Os povos e as pessoas indígenas têm direito em pertencer a uma comunidade ou nação indígenas,em conformidade com as tradições e costumes da comunidade, ou nação de que se trate. Nãopode resultar nenhuma discriminação de nenhum tipo do exercício desse direito.....Artigo 201. Os povos indígenas têm direitos a manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas,econômicas e sociais, que lhes assegure a desfrutar de seus próprios meios de subsistência edesenvolvimento e a dedicar-se livremente a todas as suas atividades econômicas tradicionais ede outro tipo.2. Os povos indígenas despojados de seus meios de subsistência e desenvolvimento, têm direitoa uma reparação justa e eqüitativa......Artigo 25Os povos indígenas têm direito em manter e fortalecer sua própria relação espiritual com asterras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente têm possuídoou ocupado e utilizado de outra forma, e a assumir a responsabilidade que a esse propósito lhesincumbem respeito, às gerações vindouras.

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O equívoco na leitura do texto constitucional reside, a meu ver, em não serespeitar o tempo do verbo utilizado pelo constituinte. Ao utilizar-se do presente doindicativo (ocupam) a Lei Suprema, preservou os direitos originários sobre as terrasque ocupavam em 5 de outubro de 1988 e não as terras que ocuparam antesdaquela data, e já não ocupavam em 05/10/1988 9.

Correta ou incorreta a leitura da Suprema Corte, o certo é que, 25% daAmazônia pertence exclusivamente aos indígenas, negando-se aos demaisbrasileiros o direito a parte do território nacional 10.

Ora, minha preocupação maior é de que as futuras reivindicações do “direitode ingerência” da comunidade internacional venham a ser “fundamentadas”numa pseudo-necessidade de preservação dos povos indígenas e de suas

.......Artigo 261. Os povos indígenas têm direito as terras, territórios e recursos que tradicionalmente tempossuído ou ocupado ou de outra forma ocupado ou adquirido.2. Os povos indígenas têm direitos a possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territóriose recursos que possuem em razão da propriedade tradicional, ou outra forma de tradicional deocupação ou utilização, assim como aqueles que tenham adquirido de outra forma.3. Os Estados assegurarão o reconhecimento e proteção jurídica dessas terras, territórios erecursos. O referido reconhecimento respeitará devidamente os costumes, as tradições e ossistemas de usufruto da terra dos povos indígenas......Artigo 301. Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou territórios dos povos indígenas, amenos que o justifique uma razão de interesse público pertinente, ou que o aceitem ou solicitemlivremente os povos indígenas interessados.2. Os Estados celebrarão consultas eficazes com os povos indígenas interessados, para osprocedimentos apropriados e em particular por meio de suas instituições representativas, antesde utilizar suas terras ou territórios para atividades militares....Artigo 41Os órgãos e organismos especializados do sistema das Nações Unidas e outras organizaçõesintergovernamentais, contribuirão à plena realização das disposições da presente Declaraçãomediante a mobilização, entre outras coisas, da cooperação financeira e da assistência técnica.Estabelecer-se-ão os meios para assegurar a participação dos povos indígenas em relação aosassuntos que os afetem”.9 Fernando Whitaker da Cunha lembra Mário da Silva Pinto: “A pretexto de cumprir-se o art.67 do ADCT, que determina prazo de cinco anos para a total demarcação das terras indígenas,não se pode, contudo, por um idealismo novecentista, atribuir-se aos silvícolas 10% do territórionacional (Mário da Silva Pinto, ‘Terras de índios e Reforma Agrária’, em Carta Mensal n. 429”(O sistema constitucional brasileiro, Ed. Espaço Jurídico, 1996, p. 371).10 Fernando Whitaker da Cunha critica: “A demarcação das terras indígenas, pois, não deve seratitude romântica e demagógica, como foi a que concedeu, ilegalmente, enorme território apoucos ianomanis despreparados, porque a competência para tanto era da União, através doCongresso Nacional (art. 67 do ADCT)” (O sistema constitucional brasileiro, cit., p. 371).

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comunidades, como nação independente, como, por exemplo, já ocorrecom as reivindicações do Tibete, que é parte da China, mas que a pressãointernacional é para que se separe de um dos quatro BRICs.

À evidência, sou favorável à preservação das reservas indígenas, masnos termos da Constituição Federal, ou seja, apenas aquelas terras queefetivamente ocupavam em 05/10/1988, e não que ocuparam nopassado11.

Defensor do governo do Amazonas, em diversas questões relativas àmanutenção da Zona Franca de Manaus – polo indispensável para odesenvolvimento daquela região – junto ao STF, perante o qual tiveoportunidade de produzir diversas sustentações orais, em que aquela Corteassegurou os incentivos pertinentes, assim como defensor intransigenteda soberania de nosso País, em fóruns internacionais, temo por ela, pelofato de quase toda a fronteira norte do país ser habitada por indígenas.No dia em que a comunidade internacional voltar seus olhos novamentepara a Amazônia, por certo vai fundamentar seu pretenso “direito deingerência” na proteção dos povos indígenas, além da preservação domeio ambiente 12.

11 É ainda Fernando Whitaker que esclarece: “Em documentos internacionais, o vocábulominoria é, constantemente, substituído pela expressão ‘ethnic, religious or linguistic groups’,mas isso não disfarça a gravidade da questão, que existe, com relação aos asiáticos, naÁfrica Oriental, aos drusos e judeus na Síria, aos árabes, em Israel, em Chipre, aos alemães,na Dinamarca (e vice-versa), e, ainda, na Iugoslávia, Polônia, na Checoslováquia, na Áustria,na Bulgária, na Romênia, na Hungria, na Lituânia, no Egito (coptas), na Argélia (berberes),na Indonésia (chineses e árabes), onde existem, vinte e cinco idiomas e duzentos e cincoentadialetos, no Irã, na Itália (minorias lingüísticas francesas, alemãs e eslovenas), na Estônia(alemães, russos e suecos), no Iraque e na Turquia (curdos), na Espanha e na Albânia, porexemplo. A Constituição desta última (art. 35) exara mesmo: ‘nella repubblica popolared’Albania le minoranze nazionali godono di tutti e diritti di protezione del loro svilupoculturale e dei libero uso della loro lingua” (O sistema constitucional brasileiro, cit., p.371).12 Oscar Dias Corrêa lembra: “Veja-se o caso da Amazônia. Ao lado dos que,ponderadamente, pleiteiam tenha ela aproveitamento adequado, planejado, racional, nãofaltam os que a querem intocada, como patrimônio universal, e outros, que pretendemcontinuar a explorá-la ao sabor das conveniências da hora, desordenada e irracionalmente”(A Constituição de 1988 - contribuição crítica, Forense Universitária, 1991, p. 235).

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13 É ainda Oscar Corrêa que lembra: “Essas duas últimas opções, obviamente, não servem aointeresse nacional, nem universal. (...)(...)Não há por que pretender excluir a soberania nacional sobre o vasto território, para lhe daraproveitamento racional, sem risco de quebra da harmonia ecológica desejada. Nem se há de sepermitir que interesses externos, qualquer que seja o disfarce, se insinuem para atingi-lo ouimpedi-lo.As nações ditas desenvolvidas não têm direito nem autoridade para imiscuir-se na solução doproblema, que, ainda interessando à humanidade, é de exclusiva alçada da soberania nacional.Soberania, aliás, há muito ameaçada por toda a sorte de ataques, principalmente os sub-reptícios,como os que vêm ocorrendo na região, na invasão de alienígenas que ali aportam com os maisvariados interesses e sob as mais diversas indicações” (A Constituição de 1988 - contribuiçãocrítica, cit., p. 236).

Para uma publicação que objetiva, fundamentalmente, levantarquestões para reflexão sobre a Amazônia, fiz questão de trazer matériaque é de minha permanente meditação, não só como professor de direitoconstitucional, mas, fundamentalmente, como brasileiro consciente do dever quetodos temos de defesa de nossa pátria, cujo hino conclama todos os brasileiros adar até mesmo a vida por ela 13.

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Objetivos de uma política externa do Brasil emrelação à Amazônia: proposta para discussão*

José Alberto da Costa Machado**

1 - Introdução

Na história da política externa do Brasil pós-colonial, a AmazôniaBrasileira1 pouca relevância teve como interesse sistemático (CERVOe BUENO, 2008). As situações nas quais a região recebeu destaqueforam pontuais e dissociadas das grandes linhas de atuação dos órgãosresponsáveis. Embora tendo, nas vezes que tal se deu, recebido atençãovigorosa e consistente, essas ocorrências, por terem sido inusuais,acabaram se transformando em marcos relevantes da história regional,

* Texto preparado para a “III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional– CNPEPI – O Brasil no mundo que vem ai”, realizada no Rio de Janeiro, nos dias 08 e 09/12/2008, pela Fundação Alexandre de Gusmão e Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,ambos do Ministério de Relações Exteriores do Brasil.** Professor Adjunto do Departamento de Economia e Análise da Universidade Federal doAmazonas, Doutor em Desenvolvimento Socioambiental, Mestre em Engenharia de Sistemas eComputação, Graduado em Administração de Empresas ([email protected]).1 Por Amazônia Brasileira ou Amazônia Legal entende-se o conjunto dos estados brasileirossituados na parte amazônica do Brasil: Acre, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Pará, Rondônia,Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. Por Amazônia Continental, Pan-Amazônia, GrandeAmazônia, Amazônia Internacional ou, simplesmente, Amazônia entende-se o conjunto dasporções nacionais integrantes do bioma amazônico dos seguintes países: Bolívia, Brasil, Colômbia,Equador, Guiana, Perú, Suriname, Venezuela e a Guiana Francesa (parte ultramarina do territórioda França).

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como os casos da disputa com os ingleses sobre parte do territóriohoje guianense; com os bolivianos sobre o território hoje estado doAcre; com os americanos sobre a abertura do rio Amazonas à navegaçãoestrangeira e outros. As razões dessa refratariedade podem seridentificadas na inserção tardia da Amazônia Brasileira na histórianacional2; no inexpressivo aporte de agentes políticos regionais cominfluência na formação da agenda brasileira de política externa3;na limitada assimilação pela agenda de interesses do estado nacional(no sentido dado por RIBEIRO, 2008:76-85) de suas demandas comosubregião periférica4; no pouco êxito dos dirigentes federais emconverter as singularidades regionais, tidas como potencialimensurável, em efetivo elemento estratégico do país5 e na pouca

2 Até 15/08/1823 a região hoje conhecida como a parte brasileira da Amazônia não tinha essacondição. Essa é a data de adesão da última unidade colonial portuguesa na América do Sul – oGrão-Pará e Rio Negro – ao Brasil. Até 1822, por ocasião da independência do Brasil, existiamtrês unidades coloniais portuguesas na América do Sul: o Brasil; o Maranhão e Piauí; e o Grão-Pará e Rio Negro. Estes dois últimos surgidos do desdobramento do Estado do Grão-Pará eMaranhão, em 20/08/1772. A unidade formada pelo Maranhão e Piauí aderiu imediatamente aoBrasil, mas o Grão-Pará e Rio Negro só o fizeram posteriormente: a capitania do Grão Pará, em15/08/1823; e a capitania de São José do Rio Negro em 09/11/1823. Até essas datas ambaspermaneceram ligadas diretamente a Portugal (GARCIA, 2004:16). Por essa razão, muitopouco da história regional, antes dessa data, foi absorvida na memória geral do país e, porextensão, no suporte cognitivo da história da política externa nacional.3 Os interesses das regiões mais desenvolvidas da nação, porque têm maior contribuição naformação da elite política e dos quadros dirigentes do Estado Nacional, acabaram hegemonizandoa agenda da política externa. Regiões periféricas, como a Amazônia, com baixíssima interferênciajunto aos poderes centrais, não poderiam mesmo ter inserção relevante nessa agenda.4 Com o advento dos Estados Nacionais a cultura que molda as políticas externas nacionaisrepousa na idéia de que só há interesses do Estado Nacional, como ente jurídico representativode um todo territorial, homogêneo em seus interesses. As especificidades subregionais e seusinteresses específicos pouca ou nenhuma relevância possuem na agenda nacional, pelo menosenquanto não puderem ser expressadas como interesse nacional. É o caso da Amazônia: aspartes nacionais dos países que a integram são subregiões periféricas sem peso - pelo menos atérecentemente - para transformarem suas demandas em interesses nacionais capazes de inserçãona agenda da política externa desses países.5 Até o presente o Brasil ainda não conseguiu dar unidade na forma de perceber as razões queconferem à Amazônia uma condição estratégica. Evoca-se seu patrimônio de biodiversidade;sua abundância em água doce; a importância de seu ecossistema no aquecimento global; oquestionamento internacional referente à soberania nacional sobre seu território.. A questão éque, tudo isso, tem permanecido na condição de discurso sem tradução estratégica para asdiversas políticas nacionais. Inexistindo formulação coesa por parte do Estado Nacional sobresua condição estratégica fica difícil que seus interesses venham a se refletir na agenda da políticaexterna.

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expressão econômica que a região possui em relação às outrasregiões brasileiras6.

Na atualidade, entretanto, com as questões ambientais ocupando cadavez mais espaços na agenda internacional e tendo esta poder configuradordas agendas nacionais (BECKER, 2005), a Amazônia ganha dimensão comotema relevante nas preocupações da nação e sua política externa não podemais deixar de considerá-la com destaque7. Assim como elegeu América doSul e relação Sul-Sul como focos estratégicos (GARCIA, 2008), torna-senecessário fazer o mesmo com a sua Amazônia. Nesse sentido, faz-senecessário trazer à tona os possíveis objetivos para a sua política externa emrelação à Amazônia. Tal é o objetivo deste texto.

2 - Identificação de objetivos

Para organizar a prospecção de possíveis objetivos para a política externado Brasil em relação à sua Amazônia tomou-se como foco os diversos âmbitosgeográficos nos quais são requeridos posicionamentos diferenciados do país,a saber, a Amazônia Continental ou Panamazônia, a América do Sul e omundo. Para cada desses âmbitos deve haver um propósito geral orientadore objetivos específicos que propiciem focos balizadores das ações concretasa serem desenvolvidas pela política externa.

2.1 - Em relação à Amazônia Continental ou Panamazônia

Nesse âmbito os países se vinculam por compartilharem o biomaamazônico, matrizes culturais similares e necessidades comuns de

6 O PIB dos estados da Amazônia Brasileira situou-se, em 2005, próximo a R$170 bilhões,algo próximo de 8% do PIB nacional, que alcançou R$2.147 bilhões, no mesmo ano (IBGE,2007). Suas grandes riquezas, como minério, recursos florestais, serviços ambientais, águadoce, biodiversidade, beleza cênica, peixes e outros, ou são explorados de forma predatória oucontinuam como eternos potenciais. Dos 5.506 municípios com IDH calculado em 2000, 10municípios desses estados estavam entre os 20 piores IDHs do Brasil. Sua infra-estrutura é amais frágil do país e energia continua sendo um grande problema. Não fosse pelo Polo Industrialde Manaus a região seria um grande vazio econômico.7 Uma evidência dessa constatação é a própria razão do tema “Amazônia” ter sido inserido naConferência para a qual este texto está sendo produzido. Ao lado de temas de viés apenasgeográfico, como América do Sul, Europa, EUA, África, Rússia, China, Índia e similares, comoé comum nas considerações sobre a política externa nacional, o tema “Amazônia”comparece eganha identidade própria na agenda dos formuladores dessa política.

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desenvolvimento. Por essa razão o propósito geral deveria ser o de construir,implementar e manter uma agenda de grandes temas comuns. O Tratadode Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, foi um grande esforçonesse sentido, porém, com pouca efetividade nos primeiros vinte anos deexistência. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA),criada para dar-lhe operacionalidade, também foi outra iniciativa relevante,porém seu funcionamento tem deixado a desejar, sobretudo por falta de realinteresse dos governos nacionais em dar-lhe condições estruturais para bemcumprir seu papel, conforme analisa ARAGON (2002, 2007 e 2008). Ostemas mais relevantes dessa possível agenda comum8, sobretudo na óticabrasileira, serão analisados nas seções seguintes.

2.1.1- Gestão de recursos hídricos

Tratando-se de uma mesma bacia hidrográfica não há como tal temaficar ao sabor de políticas estritamente nacionais. Os rios nascem em umpaís, atravessam outro e deságuam em um terceiro. O que acontece nasnascentes desses rios afeta diretamente as dinâmicas da calha principal dogrande rio Amazonas, quase toda ela no Brasil. De igual maneira o que aconteceaos corpos de água ao longo da calha também afeta o ciclo hidrológico daregião com consequências para os nascentes das miríades de pequenos egrandes fluxos de água que formam a bacia e que, geralmente, situam-se naparte amazônica de outros países.

Análises científicas sobre essa interrelação têm sido feitas em abundância.Em uma mais completa (ARAGON e CLUSENER-GODT, 2003) hádetalhamentos sobre ciclo hidrológico, poluição, transporte, energia,geopolítica, regulação e institucionalidade, gestão e cooperação internacional.Em outra mais recente (RAVENA e CAÑETE, 2007) há uma análise críticasobre os avanços, que são poucos, e em especial sobre o papel da OTCA.

Um objetivo da política externa em relação a esse tema seria obterharmonização na gestão dos recursos hídricos da Amazônia, através delegislações comuns, instituições específicas supranacionais e fóruns paradiscussão de grandes projetos nacionais com efeitos gerais na bacia.

8 Há outros temas que certamente poderiam compor essa relação. Porém, ou possuem fórum elógica própria para tratamento (como segurança militar) ou não são da agenda específica dasrelações externas (como questões aduaneiras e fitossanitárias).

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2.1.2- Complementaridade econômica

A população que vive na parte amazônica dos diversos países queparticipam do bioma é estimada em torno de 28 milhões de pessoas. Juntando-se a população dos estados da Amazônia Brasileira com a totalidade dapopulação dos demais países da Amazônia Continental, essa estimativaaproxima-se de 140 milhões (ARAGON, 2005). Trata-se, pois, de ummercado significativo, mas muito pouco dinamizado.

Os dados de comércio exterior desse mercado, referente a 2008 (MDIC,2009), indicam que:

a) Os estados da Região Norte do Brasil9 exportaram apenas 7% (US$ 825milhões) do total das exportações do Brasil para os países amazônicos (US$11.825milhões). As importações têm menor expressão ainda, pois representaram apenas4% (US$ 225 milhões) do total das importações feitas pelo Brasil desses países (US$5.253 milhões). Além de irrisória, gera um imenso déficit comercial contra essespaíses, o que se converte em foco de desconforto nas relações deles com o Brasil;

b) Além de diminutos, esses fluxos comerciais concentram-se, basicamente,entre dois estados brasileiros e três países (Venezuela, Peru e Colômbia), cujointercâmbio representa mais de 90% das exportações e mais de 95% dasimportações. As exportações do Amazonas representaram US$ 392 milhões e doPará US$ 353 milhões. As importações centradas no Amazonas, US$ 131 milhõese no Pará, US$ 88 milhões;

c) Um outro aspecto é que esse comércio centra-se em apenas algunsitens. Das exportações, 80,4% feitas pelo Amazonas concentram-se emcelulares, concentrados de bebidas, derivados de petróleo, televisores emotocicletas; e 96,5% feitas pelo Pará concentram-se bovinos vivos, manganêse subprodutos bovinos. Das importações, 90,1% feitas pelo Amazonasconcentram-se em prata, ligas e resíduos de alumínio, policroreto de vinila,laminados de ferro e poliestireno; e 99,6% feitas pelo Pará concentram-se emhulha e produtos relacionados e em coque de petróleo.

Entretanto, existe uma grande lista de produtos que a região compra doSul-Sudeste brasileiro ou de outras regiões do mundo que poderia ser suprida

9 Apenas parte do Maranhão e Mato Grosso não fazem parte da Região Norte embora sejamconsiderados parte da Amazônia Brasileira.

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por esses países, com preços muito mais baratos, como é o caso de adubose insumos para fabricá-los, artesanatos de têxteis, de pedras e de metais,calcário, cerâmica, cobre, zinco, derivados de petróleo, enlatados (atum,sardinha, etc.), enxofre, flores, frutas (morangos, uvas, etc.), frutos do mar,pedras ornamentais, material de construção e outros. Por outro lado, essespaíses compram de outras regiões do mundo produtos que poderiam sersupridos pelos Brasil por preços certamente menores, como é o caso deartigos de pesca, de telefonia, esportivos, náuticos, autopeças, bebidas emgeral, motocicletas e bicicletas, carne e frangos, eletroeletrônicos em geral,ferramentas, instrumentos musicais, minérios, material elétrico, pequenasmaquinas, peças de motores, sucos e concentrados, temperos e muito mais.

Por essas considerações um objetivo da política externa em relação aesse tema seria ampliar o comércio e diminuir os desequilíbrios dabalança comercial com esses países, a partir do estímulo àcomplementaridade econômica entre eles e os estados amazônicos,através da facilitação do comércio com redução de barreiras alfandegárias,fitossanitárias e logísticas.

2.1.3- Convergência de agendas internacionais

A Amazônia entrou na agenda internacional para ficar. Isso ocorretanto pela sua importância na regulação do clima planetário, quanto pelogrande potencial de riquezas que possui em suas jazidas minerais, em seuestoque de água doce, em sua biodiversidade, nos produtos madeireiros enão madeireiros de suas florestas, nos serviços ambientais ainda nãotransformados em mercadoria e muitos outros. Ao lado de interesseslegítimos, visando protegê-la em prol do bem do planeta, existem tambémos movimentos geopolíticos para minimizar a soberania dos países que adetém sobre a região e a ambição argentária de corporações econômicassobre suas riquezas.

Por essas razões, a mídia internacional tem enfatizado temas comodestruição de florestas, poluição de rios, agressão a povos nativos, violênciadesenfreada e similares, expressando, quase sempre, a ideia de que ospaíses amazônicos, especialmente o Brasil, não são capazes de zelar pelaintegridade da Amazônia. Sendo esta fundamental para o planeta, os paísespanamazônicos passam a ser cobrados nas agencias internacionais, pelosgovernos de países centrais, por grandes ONGs e similares. Quase sempre

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estão atuando na defensiva e com posições diferentes, quando não naessência, mas de certo na forma, pois não há uma construção prévia deposições comuns para fazer frente aos questionamentos e demandas quevão surgindo na comunidade internacional.

Por essas considerações um objetivo da política externa em relação aesse tema seria construir e manter convergências sobre itens da agendainternacional relacionada com a Amazônia, através da harmonizaçãoprévia intra-regional das diferentes visões que os países panamazônicospossuem acerca dos temas que a envolvem.

2.1.4- Prevenção de importações nocivas

Na Amazônia, devida sua dimensão, baixa densidade demográfica epouca presença dos estados nacionais, os atos ilícitos só são identificadoscomo problemas quando já tomaram proporções fora de controle. Algunsexemplos seguem abaixo:

a) Ocorrências relacionadas com a droga – sob esse tema três aspectossão relevantes:

a.1) Transformação da região em rota do tráfico internacional – asmilhares de pequenas embarcações que transitam nos incontáveis rios eigarapés regionais, associados às infindáveis rotas terrestres de circulaçãoentre as comunidades e pequenas cidades, tornam a região passagem atrativapara as grandes cargas de droga rumo ao hemisfério norte;

a.2) Disseminação incontrolável do uso de droga na região – ao transitarpelo interior regional a droga vai deixando seus efeitos, pois que, torna-senecessário criar usuários capazes de demandar a droga que é utilizada pararemunerar os diversos elos dessa infindável cadeia construída ao longo dasrotas;

a.3) Semeadura na região dos tentáculos dos cartéis internacionais – anecessidade de monitorar o trânsito das drogas e manter a harmonia entreos diversos elos ao longo da cadeia, tem trazido para a região os tentáculosde cartéis internacionais.

b) Transbordamento de conflitos internos de outros países – de todosos países da América do Sul com os quais o Brasil compartilha 16.886 Kmde fronteira terrestre, somente três (Uruguai, Argentina e Paraguai) estãofora a Amazônia. Na maioria destes, tem havido registros, intermitentes ou

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contínuos, de conflitos internos, muitos de longo curso e com possibilidadede transbordamento para o Brasil. Embora, até agora, tenham sido contidosnas fronteiras, continuam a representar potencial fonte de problemas. Algunsexemplos: as atividades guerrilheiras na Colômbia, cuja expressão maior, masnão única, são as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC);os remanescentes da desarticulação do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso,no Peru; os conflitos civis por autonomias regionais, na Bolívia, cujos fugitivostransferem-se para o lado brasileiro com a naturalidade de quem atravessauma simples rua ou ponte; a atuação de redes criminosas na fronteira daGuiana, nas proximidades da fronteira brasileira; e o recém-descoberto tráficode pessoas de nacionalidade chinesas que entram no Brasil pela fronteiraperuana;

c) Consolidação do contrabando como prática rotineira – a partir deredes bem organizadas, quase sempre sediadas em outros países, pratica-se o contrabando como atividade rotineira nas extensas fronteirasbrasileiras. Há os expressivos volumes de peixes saindo do Brasil emdireção a Bogotá, por Letícia, e em sentido inverso a entrada de madeirailegal no Brasil; o comércio de cereais oriundo do Peru e Equador e emsentido inverso as bebidas e manufaturados oriundos do Pólo Industrialde Manaus; o prosaico e volumoso comércio de calçados (tênis de marca)entre Lethem e Bonfim, na fronteira da Guiana; o perigoso e tosco ingressode combustíveis da Venezuela e em sentido contrário o de pedras parajóias.

Por essas considerações um objetivo da política externa em relação aesse tema seria monitorar e prevenir a importação de dinâmicas sociaiscom potenciais nocivos para a região, através de trabalho de inteligência,atuação em conjunto com as autoridades respectivas dos outros países efortalecimento da presença do estado.

2.1.5 - Parceria em C&T e conexos

A tentativa de estabelecer relações mais consistentes para a cooperaçãoem C&T, ensino superior, pós-graduação e assuntos conexos já é antiga e,possivelmente, a que mais tem rendido frutos em termos de cooperaçãointernacional. Para ficar apenas em dois exemplos, embora existam muitosoutros, destacam-se a seguir:

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a) Associação de Universidades Amazônica (UNAMAZ, 2009) – Criadaem 18 de setembro de 1987, fruto de recomendações de cientistas,professores e pesquisadores dos oito países do Tratado de CooperaçãoAmazônica – TCA, busca ser um organismo catalisador de esforços parapromover a produção do conhecimento necessário ao desenvolvimentosustentável da Região, potencializar a atuação das instituições amazônicas deeducação superior e de pesquisa e fomentar a melhoria da qualidade dosrecursos humanos da Região;

b) Iniciativa Amazônica (IA, 2009) – Trata-se de um consórcio deinstituições pan-amazônicas de pesquisa, criada em outubro de 2004, poriniciativa da EMBRAPA, com o nome de Consórcio Iniciativa Amazônicapara a Conservação e Uso Sustentável dos Recursos Naturais (IA). Seusobjetivos são prevenir, reduzir, e recuperar áreas degradadas, contribuindopara a melhoria das condições de vida na região, buscando elaborar eimplementar programas colaborativos que identifiquem e promovam sistemassustentáveis de uso da terra.

Em recente esforço para identificar potenciais interesses do Brasil emrelação ao tema receberam destaque os seguintes (ARAGON, 2007): apertinência adequada para a pesquisa e educação superior para odesenvolvimento da Amazônia; a importância da cooperação Sul-Sul parao fortalecimento da Ciência e da Tecnologia na Amazônia; as redes comoinstrumentos de integração em Ciência e Tecnologia na Amazônia; ascondições da participação de instituições brasileiras em programasinternacionais de pesquisa; e o poder público como incentivador dacooperação internacional.

Além do já desenvolvido, regularmente, por instituições tradicionais,como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Museu EmilioGoeldi (MEG), Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), há emandamento movimentos de instituições federais de ensino superior visandoatribuir um caráter marcadamente internacional em suas atuações, como é ocaso da Universidade Federal do Para (UFPA); da recém criada UniversidadeFederal do Oeste do Pará (UFOP) que, inclusive, argui para si o papel deinstituição de integração amazônica; e a Universidade do Estado do Amazonas(UEA) que já recebe em seus cursos, como no campus de Tabatinga, alunosdos países vizinhos. Ainda nessa direção tem havido movimentações políticasinsistentes. O Senador João Pedro Gonçalves (PT, AM), com apoio da

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Presidência da República e suporte do Ministério de Educação e de RelaçõesExteriores, conseguiu aprovar matéria legislativa no Senado com o propósitode criar uma Universidade da Panamazônica.

Essas considerações indicam que a política externa brasileira não podeficar à parte dessa movimentação. Portanto, seu objetivo em relação ao temadeveria ser consolidar e aprofundar o processo de integração dasinstituições de C&T e de ensino superior na Panamazônica, através deiniciativas que permitissem, no futuro próximo, ter-se mobilidade natural entrepesquisadores, docentes e estudantes, bem como, interação desburocratizadaentre as instituições a agentes jurídicos envolvidos.

2.2- Em relação à América do Sul

A América do Sul comparece na agenda oficial das relações exterioresdo Brasil como prioritária (BARBOSA, 2008). Sendo a Amazônia uma regiãoespecial para o mundo todo, não poderá deixar de sê-lo dentro do própriocontinente que a abriga. Assim, o propósito geral dessa política, tendo emvista a Amazônia, deveria ser estabelecer foco cognitivo próprio àsdemandas e circunstâncias regionais no arcabouço das políticas einiciativas nacionais em relação à América do Sul. Nas seções seguintessão identificados três temas candidatos a se converterem em objetivosespecíficos dessa política.

2.2.1- Acesso a mercados da costa leste do Pacífico e Ásia

A Amazônia Brasileira, através dos estados Pará e Amazonas e, maisrecentemente o estado de Rondônia, têm ampliado seu comércio com ospaíses panamazônicos, mas este se dá com poucos países e com uma pautade produtos bastante aquém do potencial. Em relação à América do Sulesse potencial se amplia para uma escala que propiciaria aos estadosamazônicos do Brasil um mercado de grandes dimensões, próximoterritorialmente, com similaridade cultural e com facilidades aduaneiras emconstrução. Assim, parece lógico que os esforços de comércio exterior dessesestados se voltem para os países da América do Sul, especialmente os grandescentros urbanos da costa leste do Pacífico. Tal opção apresenta-se maisfactível do que as tentativas de negócios com Europa, Estados Unidos eOriente Médio, onde, além das diversas barreiras não tributárias, são mercados

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bastante disputados e, presentemente, vivendo uma crise sem prazo paraterminar.

Com acesso aos mercados da costa leste do Pacífico, a chegada a Ásiase torna o passo seguinte natural. E então, esse grande e rico mercado, passariaa ter conexão célere com a Amazônia beneficiando-a em vários aspectos.Exemplos de fluxos comerciais capazes de trazer efeito virtuoso para regiãopodem ser citados:

a) componentes eletrônicos fabricados na Ásia e importados em grandesvolumes pelo Pólo Industrial de Manaus;

b) manufaturados eletroeletrônicos, duas rodas, peças plásticas,equipamentos médicos, computadores, celulares e outros destinados aabastecer toda a costa leste do Pacífico, hoje atendida pelos Estados Unidos,México ou Ásia;

c) carnes, peixes, polpa de frutos, aves e similares, óleos nativos, extratosregionais, ervas medicinais e conexos, produtos fabricados com insumos dabiodiversidade regional, todos demandados em grandes quantidades pelaÁsia;

d) soja e seus derivados, sobretudo óleo, escoado do norte do MatoGrosso, tanto para os países latinos do Pacífico quanto para os países asiáticos;

e) minérios em diversos estágios de processamento oriundos de diversosestados brasileiros e países amazônicos, inclusive alguns estratégicos, comonióbio-tantalita10;

f) turismo massivo e integrado, pelo qual os asiáticos entrariam nocontinente através de um dos muitos atrativos existentes nos países da costaleste (Machu Picchu no Perú, Galápagos no Equador), chegariam à selvaamazônica e suas belezas tropicais, se deslocariam para o estuário amazônicoe depois demandariam o nordeste brasileiro.

Porém, para que esse imenso potencial venha a ser explorado, hánecessidade de infra-estrutura logística, especialmente as que possibilitam aconexão intermodal. Nesse sentido, como parte do grande programa

10 Hoje, essa liga quase bruta, sai do Amazonas (Municipio de Presidente Figueiredo), vai aosportos do sul-sudeste, depois segue para Talim, na Estônia (onde é convertido em óxido mineral),depois segue para Áustria (onde é transformado em wafers) e depois segue para a Ásia ondeintegrará alguns tipos de semi-condutores que, ao seu turno, voltam importados para o Brasil

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referencial expressado pela IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-EstruturaRegional Sul-Americana), já há em andamento várias iniciativas como: o EixoMultimodal entre Manta (no Equador) e Manaus (no Amazonas); o projetode conexão do porto fluvial no Rio Madeira (Porto Velho, Rondônia) comBolívia e depois os portos marítimos do Chile; a rodovia de conexão deporto-aeroporto na costa pacífica do Peru (Paita-Piura) com Iquitos na regiãode Loreto, já na bacia amazônica; e outros.

Essas considerações indicam que a política externa brasileira não podedeixar de considerar esse tema como relevante em sua agenda. Portanto,seu objetivo em relação ao tema deveria ser coordenar providências visandopossibilitar a conexão célere dos estados amazônicos brasileiros commercados da costa leste do Pacífico e Ásia, através de iniciativas paraconsolidar rotas de conexão já em construção ou em estágio de projeto nosdiversos países.

2.2.2 - Integração da subregião ao Mercosul

Ainda que atravessando constantes dificuldades o Mercosul é umaesperançosa realidade para os estados mais desenvolvidos do sul-sudestebrasileiro. Os fluxos comerciais entre estes e os países do bloco tem aumentadoconstantemente. Mas não tem ocorrido a mesma coisa com os estados donorte do Brasil, embora as preferências de comércio do bloco tenham seestendido, via acordos específicos, também para os países amazônicos.

Iniciativa no sentido de criar na Panamazônia, um bloco comercialespecífico já chegou a ser aventada, em 2004, por proposta daSuperintendência da Zona Franca de Manaus (GROSSO, 2004). Naoportunidade, os chanceleres dos países da Organização do Tratado deCooperação Amazônica, aprovaram no planejamento estratégico dessaagência, um item específico visando aprofundar a integração econômica daregião. A ideia do bloco comercial, que ficou conhecido, à época, comoMerconorte ou Mercado Comum Amazônico, vinha ao encontro dessepropósito integrativo. Entretanto, logo em seguida, o governo brasileirocomeçou a atuar visando ampliar para o norte o alcance geográfico doMercosul, seja pela admissão direta de novos países no bloco, como aVenezuela, seja legitimando fóruns para envolver estados do norte brasileiroe outros países amazônicos, como o Fórum Governadores da Frente Nortedo Mercosul. Apesar desses esforços o Mercosul, na Amazônia Brasileira,

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ainda é pouco conhecido e ainda menos utilizado como espaço econômicopara realização negócios. Suas instituições de governança ficam todas no sule o conhecimento de sua dinâmica é ignorado pelo setor produtivo, pelasinstituições acadêmicas, pela as agências de desenvolvimento (exceção daSuframa que atua intensamente em seus fóruns), pelos governos estaduais emunicipais, ou seja, pela quase totalidade da sociedade regional.

Essas considerações indicam que esse é mais um tema que não podeficar ausente da política externa brasileira. Portanto, seu objetivo em relaçãoao tema deveria ser tornar efetiva a integração dos estados amazônicosnas dinâmicas comerciais e institucionais do Mercosul, através da extensãode suas instâncias de governança e da disseminação de seu substrato cognitivopara toda a região, bem como, por iniciativas capazes de ensejar negóciosmassivos como feiras, escritórios de negócios e promoção comercialpermanente.

2.2.3- Conexão virtuosa com Caribe e Hemisfério Norte

A possibilidade de conexão segura, regular e barata, do centro-oeste esudeste brasileiros com o Caribe e Hemisfério Norte, via Amazônia, é umapossibilidade concreta. Já há uma malha de rodovias cujos fluxos chegam atéPorto Velho (RO) sem qualquer dificuldade. De lá, pela Hiodrovia do RioMadeira ou Rodovia Manaus-Porto Velho (em recuperação), esses fluxoschegam a Manaus (AM), e dessa cidade, pela BR-174 (Manaus-Boa Vista),chega-se até os portos caribenhos da Venezuela e também pode se chegaraté Georgetown (Guiana). Em relação a esta, há avançadas providênciaspara sua efetivação, pois a estrada até a fronteira está pronta, a ponte entreas duas fronteiras em fase de conclusão, faltando apenas o asfaltamento deum trecho até Linden, de onde, já existe até Georgetown. Nesse mesmosentido tem surgido um conjunto de noticias que potencializam o tema discutidonesta seção. Como exemplos citam-se, abaixo, apenas três:

a) Há em andamento a construção de um grande porto industrial emManaus, com capacidade para 250 mil containers anuais e está em curso aampliação do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, que hoje é terceiroem volume de carga, para o dobro da capacidade atual;

b) O governo federal sancionou a Lei No. 11.772, de 17/09/2008,alterando o Plano Nacional de Aviação, que passa a abrigar um dos maiores

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projetos de integração nacional, a Ferrovia Transcontinental (EF-354). Saindodo litoral do sudeste, passará por Minas Gerais, pela capital do país, porGoiás, Mato Grosso, Rondônia e chegará ao Acre, no município de Boqueirãoda Esperança. Daí, possivelmente, se integrará ao sistema ferroviário do Peru(BRASIL, 2008);

c) Acaba de ser concluído um grande estudo de viabilidade paraconstrução de uma ferrovia integrando o norte brasileiro ao Caribe e aGeorgetown. Apresentada como tese de doutoramento (FREITAS,2009) no Programa de Engenharia de Transporte da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, o estudo conclui que, em 2025, os pólos deManaus (mais o sub-polo de Itacoatiara, com soja), acrescido do poloagroindustrial de Roraima (com soja, arroz e milho) e mais o sub-polode Surucucus (com cassiterita), mais o polo do Trombetas- Pará (combauxita) e por fim o polo da Guiana, com arroz, açúcar e bauxita (paraa China e Rússia) representarão um total aproximado de 30 milhões detoneladas entre insumos e produtos acabados nos dois sentido a seremtransportadas. Isso tudo justifica, economicamente, o investimento naferrovia.

Embora o tema pareça mais afeto à política nacional de transporte elogística, trata-se, na verdade, de construir alternativas que agreguem maisvalor ao escoamento da produção do centro-oeste e sudeste brasileiros,potencializando as vias logísticas da Amazônia e suas conexões com ospaíses do norte sul-americano. Portanto, um objetivo para a políticaexterna brasileira em relação ao tema deveria ser garantir unidadecognitiva, potencializar apoios e coordenar as iniciativas visandoconectar a Amazônia Brasileira ao Caribe e Hemisfério Norte, atravésdo acompanhamento, apoio e promoção dessas iniciativas frente peranteos outros países.

2.3- Em relação ao mundo

A Amazônia é preocupação para o mundo todo. Seja pelo seu papel naregulação biogeoquímica do planeta, seja pelo lugar que ocupa no imaginárioda humanidade como última fronteira de floresta tropical e memória idílicado mundo natural primitivo, com toda sua riqueza e complexidade. De umaforma ou de outra, sua defesa deixou de freqüentar apenas as exóticas agendas

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de militantes alternativos. O avanço dos processos de desenvolvimento, quasesempre predadores, chamou atenção de governos, agências multilaterais,fóruns científicos respeitáveis, organizações não governamentais sérias,entidades empresariais e outros. O mundo inteiro se sente com direito, oumelhor, com dever de discutir o futuro da região. Nesse sentido, um propósitogeral em relação ao tema seria atuar na construção da agenda sobre aAmazônia em fóruns de repercussão global, visando dar visibilidade aodireito nacional de fruir, com responsabilidade, de suas riquezas potenciaise de manter indiscutível a soberania sobre seu território. Desse propósitotrês objetivos surgem para formulação da política externa brasileira em relaçãoao tema.

2.3.1- Protagonismo sistemático na definição da agenda sobre aregião

Deixar que as discussões sobre a Amazônia surjam e ganhem dinâmicaprópria nos fóruns com importância global tem imposto embaraços ao paísque, ou comparece como responsável inconseqüente pelo que ocorre oucomo incapaz de evitar a contínua destruição da região. Desconhecimento,má fé, interesses geopolíticos, ambição argentária, militância ideológica eoutros, vão, pouco a pouco, legitimando, internacionalmente, uma agendacompletamente desfavorável ao Brasil e aos países amazônicos. Ummonitoramento prévio dos processos formadores dessa agenda minimizariao esforço para justificar-se diante da comunidade internacional, para desfazerpercepções equivocadas sobre as ocorrências envolvendo a região e parareduzir prejuízos na cooperação internacional. Exemplos de candidatos aesse monitoramento: fóruns do sistema da Organização das Nações Unidas,suas comissões, convenções e programas; as instituições financeiras comoBanco Mundial e suas agências e o de Banco Interamericano Desenvolvimento;as agencias reguladoras globais como Fundo Monetário Internacional; asagências gestoras dos grandes blocos político-econômicos, como a UniãoEuropeia; e outros.

Essas considerações indicam que esse deve ser um item específico dapolítica externa brasileira em relação ao tema, isto é, monitorar a agendasobre a Amazônia nos fóruns de repercussão global visando atuaçãopreventiva contra consensos formados em prejuízo dos interessesbrasileiros.

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2.3.2- Tratamento de seus potenciais naturais como capitalestratégico do país

Na discussão sobre a Amazônia o que tem prevalecido é a sua exploraçãopredatória e, por consequência, o comprometimento de sua integridade. Assim,na agenda brasileira perante a arena internacional, a região comparece, quasesempre, como fonte de problemas o que produz ônus, mas não propiciaqualquer bônus para o país que detém a maior parte de sua extensão territorial.

No entanto, essa importância que ela tem para o mundo precisa sertraduzida em retornos concretos para o Brasil, além do simplesreconhecimento de sua posse ou o respeito de sua soberania. Estudos nãofaltam indicando as possibilidades de converter suas florestas, rios eorganismos e em potentes fontes para gerar riquezas. Apenas como exemplodestacam-se aqui o interesse global nos serviços ambientais expressados pelaestocagem de carbono e regulação hídrica. Apesar dos avanços na tentativade encontrar instrumentos regulares para remuneração desses serviços, taisiniciativas, com exceções pontuais11, ainda não se tornaram fonte real derecursos em beneficio da região. Há, pois, necessidade que tanto o Brasilquanto a comunidade internacional consigam transformar o patrimônio naturalda Amazônia em capital estratégico para beneficiar seus habitantes.

Essas considerações apontam no sentido de que, um dos objetivos dapolítica externado Brasil em relação à região seria identificar instrumentoscapazes de transformar as virtudes ecológicas da Amazônia em capitalestratégico do pais a ser remunerado com apoio da comunidadeinternacional, para propiciar o compartilhamento de sua proteção ao mesmotempo que gera riquezas para seu desenvolvimento e melhoria da qualidadede vida do povo que a habita.

2.3.3- Fortalecimento da percepção sobre a indiscutibilidade desua soberania

Discussão internacional visando relativizar a soberania brasileira sobre aregião não tem faltado na mídia internacional. Verazes ou não, é possívelidentificar diversos temas sobre esse viés, em artigos que circulam na imprensa

11 Há o bem sucedido programa Bolsa Floresta, conduzido pela Fundação Amazônia Sustentável,por iniciativa do Governo do Estado do Amazonas.

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regular, em periódicos e livros de estudiosos, em documentos oficiais deinstituições públicas e outros. Apenas a título de exemplo são citados abaixocinco desses temas retirados (não todos) de artigo de professor titularuniversitário e conselheiro da Escola Superior de Guerra do Brasil, fóruminfluente na formulação das políticas de estado para o tema (COIMBRA,2001):

a) demarcação de terras indígenas com largas extensões ao longo dafronteira norte e estabelecimento de restrições para a livre circulação de nãoíndios, antecedendo ou logo seguindo a Declaração Universal dos Direitosdos Índios, em novembro de 1993, pela Organização das Nações Unidas, oque inclui a possibilidade de ser arguida soberania dos índios nessesterritórios12;

b) assistência militar com grande aparato de inteligência e recursostecnológicos para monitoramento territorial próximo das fronteiras brasileiras,como o chamado Plano Colômbia;

c) inserção em programas de instituições de atuação global deposicionamentos claros em favor da minimização da soberania brasileira naregião, como é o caso do Conselho Mundial das Igrejas, em seu documento“Diretrizes para a Amazônia”;

d) atuação massiva das ONGs ambientalistas, com desenvoltura tantona região como exterior, denunciando e ampliando o coro sobre a incapacidadedo Brasil em tomar conta da Amazônia;

e) produção de artefatos culturais massificadores de opinião, como filmes,jogos eletrônicos, documentários, revistas em quadrinhos e sites na WEB,mostrando devastação na Amazônia e “heróis” do primeiro mundo agindoem favor de sua proteção contra “vilões” brasileiros.

É obvio que há exageros nessas noticias, mas também há verdades. Apossibilidade de interesses externos buscarem minar a soberania brasileira naregião tem amparo em razões objetivas, sobretudo as de ordem ambiental.Mas a verdade incômoda é que, na essência, essa acusação de descaso do

12 O Fórum Social 2009, ocorrido em Belém (PA), no final de janeiro de 2009, foi pródigo emfóruns e debates sobre o tema. Além da militância em favor de temas globais, as 190 etniasindígenas presentes discutiram, no âmbito da chamada “democracia radical” da tenda dos DireitosColetivos de Povos e Nações sem Estado, aspectos e possibilidades de autodeterminação(EVOLVERDE, 2009)

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governo brasileiro para com a Amazônia é uma realidade sentida, há muitotempo, também pelos que vivem na região. As políticas públicas sãodescontínuas; a atuação do estado é ausente ou desarticulada; os recursossão parcos; os planos para desenvolvê-la são papéis com pouco encaixe narealidade regional; e as instituições públicas, quase sempre, desacreditadas.O único foco regular da atuação do estado “em favor” da Amazônia é proibir,proibir e proibir.

Tais considerações mostram a necessidade de considerar o tema comorelevante na política externa brasileira. Um objetivo para tal seria desenvolveriniciativas que ensejem o fortalecimento da percepção externa sobre asoberania do Brasil no território amazônico dentro de suas fronteiras,por meio de instrumentos capazes de demonstrar a competência do Brasilem protegê-la e também desenvolvê-la em beneficio de seus habitantes.

3 - Considerações finais

As propostas analisadas têm um fator subjacente comum: a falta ou apouca efetividade das políticas nacionais em relação à Amazônia e, entreestas, as de relações exteriores. Do que foi visto consegue-se constatar que,sem minimizar interesses escusos externos, há mais indiferença nacional doque cobiça internacional. Em boa hora, o Ministério das Relações Exteriorestraz o tema para o debate nacional, buscando, com isso, pelo menos em seuâmbito, encontrar rumos que superem as carências constatadas. Trata-se deum longo caminho, uma vez que não basta apenas o diagnóstico e aidentificação do que é necessário fazer. É preciso transformar as idéias eminiciativas efetivas, convertê-las em dinâmicas executivas, dando-lhesregularidade e permanência.

Nesse ponto é que reside a maior dificuldade. Como pode o MRE que,historicamente, esteve sempre voltado para fora do Brasil, mudar seu padrãode atuação para envolver-se com as demandas de subregião interna eperiférica? Como tornar possível sua atuação concreta em uma regiãolongínqua sem possuir tentáculos competentes na região13? Como dar

13 Há um Escritório de Representação do MRE no Norte (EREMA) mas, além de permanecera maior parte do tempo sem diplomata responsável, sua estrutura é mínima e dedicada,principalmente, às demandas da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA)onde está instalado.

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conteúdo e significado regional para uma agenda construída distante dosespaços territoriais onde os fatos acontecem?

Pelo menos a curto prazo um caminho para superar essas dificuldadesseria a parceria com agências federais setoriais e regionais ensejando divisãode competências. Em tais parcerias a formulação e governança ficaria como MRE; a organização do conteúdo ficaria com o ministério setorial associadoao tema; e a gestão operacional das iniciativas ficaria com uma agênciafederal sediada na região, que passaria a responsabilizar-se pela memória,gerência operacional e interlocução regional.

Obviamente não é tão simples assim. Mas é o início. O início de umconvívio mais próximo com a região que encanta pela pujança e pelaspossibilidades que traz de constituir-se em foco de uma nova utopiacivilizatória. Afinal, poucas regiões dispõem ainda, de condições ecológicase geográficas similares àquelas que deram origem às grandes civilizações doOriente Médio e, por conseguinte, representaram o marco inicial do processocivilizatório conhecido da Terra. Todas elas se instalaram e floresceram aolongo de quatro grandes rios: o Nilo, o Tigre, o Eufrates e o Indo. Descrevedeslumbrado o famoso historiador Geoffrey Blainey (BLAINEY, 2008: 49):

“Os grandes rios do Oriente Médio atravessavam planícies secas cujosolo era enriquecido pelas enchentes anuais. Dezenas de milhões detoneladas de sedimentos eram carregadas corrente abaixo e espalhadosem camadas finas sobre o solo empobrecido, como se fosse novofertilizante. Nas estações secas, os canais carregavam a água dos riospara irrigar as terras aráveis queimadas pelo sol. Nas planícies alagadas,as pessoas e as cidades podiam receber mais alimentos, dentro da mesmaárea, do que em qualquer outro lugar do mundo naquela época. Em umtempo em que o transporte por terra era primitivo, os rios largos eramtambém uma estrada, ao longo da qual os barcos podiam transportar apartes longínquas do reino e a baixo custo grãos e pedras paraconstrução”.

Se fosse uma descrição da grande bacia amazônica e de seu rio Amazonaspoucos retoques teriam. Eis ai uma estimulante justificativa para que o MREpense grande em relação à Amazônia. Quem sabe com esta vontade de olhá-la mais perto ele não descobre o lócus e o leit motiv para formular uma novaepopeia civilizatória nos trópicos?

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OBJETIVOS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA

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BRASIL (Governo Federal). Lei Nº 11.772, de 17 de setembro de 2008.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11772.htm. Acesso em: 12/02/2009.

CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exteriordo Brasil. 3a. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

COIMBRA, Marcos. A Amazônia e a cobiça internacional. 2001. Disponívelem: http://www.brasilsoberano.com.br/artigos/aamazoniaeacobica.htm.Acesso em: 13/02/2009.

EVOLVERDE (Revista Digital). Fórum Social Mundial: Povos sem Estadoacentuam a diversidade. Edição de 02/02/09. Disponível em: http://www.envolverde.com.br. Acesso em: 02/02/09.

FREITAS, Luiz Aimberê Soares de. Alternativa ferroviária para AmazôniaOcidental – saída pelo Atlântico Norte. Tese de Doutorado em Engenhariade Transportes. Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ (defendida em 19/02/2009).

GARCIA, Etelvina. Zona Franca de Manaus: história, conquistas e desafios.Manaus: Norma Ed.: Suframa, 2004.

GARCIA, Marco Aurélio. A opção sul-americana. In: Interesse Nacional,Ano 1, Numero 1, abril-junho 2008, pag. 11-21. Rio de Janeiro: AteliêEditorial, 2008.

GROSSO, Flávia. Cooperação Internacional e Integração EconômicaRegional na Amazônia. II Jornada de Seminários Internacionais da II FeiraInternacional da Amazônia. Manaus: Suframa (mimeo), 2004.

IA (Iniciativa Amazônica). Consórcio Iniciativa Amazônica para aConservação e Uso Sustentável dos Recursos Naturais (IA). Disponível em:http://www.iamazonica.org.br/. Acesso em: 09/02/2009.

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Contas Regionais doBrasil: 2002-2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.

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JOSÉ ALBERTO DA COSTA MACHADO

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MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior).AliceWEB (http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br). Acessado em 05/02/2009.

RAVENA, Nírvia e CAÑETE, Voyner R. Reflexões sobre a Integração Pan-Amazônica: O papel da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica(OTCA) na regulação da água. Revista Brasileira de Estudos Urbanos eRegionais, Vol. 9, No. 1, Maio 2007, p. 131-144.

RIBEIRO, R. J. Sobre o conceito de interesse nacional. In: Interesse Nacional,Ano 1, Numero 2, Jul-Set 2008, pag. 76-85. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial,2008.

UNAMAZ (Associação de Universidades Amazônicas). Disponível em: http://www.ufpa.br/unamaz/. Acesso em: 09/02/2009.

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Amazônia: reflexões sobre sua problemática

Leonidas Pires Gonçalves

1. Sobre o tema

É relevante e oportuno, pois a Amazônia, na atualidade, é área de“projeção planetária” que desperta interesse no mundo e, em especial, noBrasil.

Pode ser definido como complexo, multifacetado e extenso, possibilitandovários enfoques.

Sua abordagem, na circunstância, impõe muita concisão e objetividade,de vez que o assunto sempre vale um Simpósio.

Pela vivência e responsabilidade profissionais que tive na área, tratardeste tema é empolgante, configurando-se uma verdadeira pregação pelasvezes que eu o tenho abordado, em textos e palestras, no Brasil e no exterior,há quase três décadas.

Fundamentalmente, objetivo discutir os problemas primordiais daAmazônia brasileira com uma visão das alternativas para enfrentá-los e resolvê-los, uma vez que é responsabilidade nossa cuidar deste inestimável patrimônionacional. Sem deixar de reconhecer, por dever de justiça, que a Amazôniavem sendo, crescentemente, considerada uma essencialidade geopolítica eestratégica para o Brasil, pelos Governos Federais.

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LEONIDAS PIRES GONÇALVES

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2. A Apresentação

a. Caracterização da área

Cabe, muito sumariamente, lembrar os aspectos singulares e imensosda área:

A Amazônia legal tem 5.217.423 km² (61% do Brasil), engloba noveEstados com uma população de 20 milhões de habitantes.

Possui impressionante floresta equatorial; um aranhol hidrográfico (25a 30 mil km de rios); alagados (várzeas e igapós); 1/5 da água doce doplaneta; campos e cocais.

Além disso, biodiversidade incomparável e grande riqueza mineral nosubsolo.

Estes aspectos – escritos – impressionam, mas quando, na realidade,são voados, navegados, caminhados e vividos impactam na medida emque nos apequenam, tudo sob o “signo da imensidão”. Imensidãoresponsável pelas dificuldades operacionais de toda natureza, limitadorado desempenho nas atividades da área, apesar dos modernos apoiostecnológicos disponíveis (aviação, navegação técnica, satélites, GPS) e,geralmente, pouco compreendidas.

Com muita acuidade, disse Euclides da Cunha no retorno de quando láesteve: “A inteligência humana não suporta, de improviso, o peso daquelarealidade portentosa”.

b. A problemática da Amazônia

O conjunto de problemas que a compõem indica grupá-los em trêsgrandes vertentes:

1. As questões ambientais, antropológicas, fronteiriças e de drogas:mitos, falácias e realidades.

2. O conflito de interesses: disputa geopolítica e confrontação estratégica– ações e contrapartidas.

3. A integração e o desenvolvimento da área: medidas para que estesobjetivos sejam efetivamente alcançados.

Normalmente, pessoas dos mais diversos níveis culturais preocupam-se com a primeira vertente: são preocupações válidas, mas não as únicas.

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AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA

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Cumpre preocupar-nos, também, com o Conflito de Interesses e aIntegração e o Desenvolvimento da área, pouco abordados pela mídia epouco conhecidos da opinião pública.

Estes aspectos merecem atenção, pois envolvem interesses nacionaisvitais.

Analisemos estas três vertentes:

1) As questões ambientais, antropológicas, fronteiriças e dedrogas: mitos, falácias e realidades

O estudo destas questões tem duas finalidades:

• Inteirarmo-nos dos fatos que têm realidade, são verdadeiros, e buscarsoluções eficientes e eficazes;

• Assinalarmos os mitos e falácias, dando-lhes tratamento adequado,eficiente e neutralizante.

Principalmente, termos subsídios para bem entender as outras duasvertentes da problemática, pois os identificamos como fatos-argumentosutilizados, falaciosamente, pelos poderosos do mundo, em apoio a seusinteresses.

a) Questões ambientais

• Pulmão do mundo: mito falacioso. Cientificamente sabe-se hoje que afloresta antiga não é geradora de superavit de oxigênio. O fenômeno daprodução do oxigênio é realizado pelos mares.

• Efeito estufa / clima do planeta.

Nos dias atuais o mundo segue, obedientemente, o “Relatório do PainelIntergovernamental sobre Mudanças Climáticas”, IPCC ( órgão da ONU ),que atribui ao CO2 antropogênico a responsabilidade da degradaçãoambiental.

Organizações científicas e cientistas de renome (Instituto Espacial daDinamarca; climatologistas importantes – Fred Singer, publicado pelo “TheHartland Institute”, Chicago, Illinois; R M Carter.“James Cook University”,Townsville e o físico A. Zichichini, em palestra na Pontifícia Academia de

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Ciências do Vaticano) o contestam, embora reconhecendo o fato doaquecimento global, não atribuem ao homem a responsabilidade identificadapelo Painel. Afirmam que estas são resultantes, sim, da posição do SistemaSolar na Galáxia e da radiação cósmica recebida pela Terra: o denominado“clima espacial”.

Nesse quadro, julgo que as ações governamentais, no que tange a medidasecológicas e também limitadoras do nosso desenvolvimento, sejam tomadascom cautela, aguardando a definição final da ciência ( reconheço que asmedidas atuais do Governo têm, de alguma maneira, adotado esta posição).

• Água: realidade preocupante por duas razões – temos de usá-la compropriedade, evitando poluição dos rios da bacia.

Depois, não esquecer que sua disponibilidade pode transformar-se emmotivo de cobiça internacional. Este é o problema.

• Hidroelétricas: cabe colocar nos pratos da balança de nossosinteresses duas considerações – atender à necessidade de energia paradesenvolvimento da área ou aos cuidados ecológicos. Buscar aharmonização. É o que vem sendo realizado, presentemente, pelaconstrução de hidroelétricas.

• Desflorestamento: o cuidado com a floresta é realidade. As ações doINPE, cujo desempenho se aperfeiçoa, tem conseguido alcançar, em parte,o controle que se impõe, fundamentalmente para proteção da nossabiodiversidade.

A recente versão do Plano Nacional da Mudança do Clima disciplina,de maneira inteligente e pragmática, as atuações na área.

• Desertificação: falácia. Carece de evidência e comprovação científica.• Biodiversidade: grande realidade. Deve ser preocupação prioritária,

para aproveitá-la corretamente e neutralizar a pirataria.

b) Fatos antropológicos

• Há duas grandes questões a considerar: – No tocante a índios: Integrar ou segregar? Qual a área a ser atribuída

às tribos? Contínuas? Insulares?

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AMAZÔNIA: REFLEXÕES SOBRE SUA PROBLEMÁTICA

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Impõe-se uma decisão. Na atualidade está aberta uma controvérsia.A decisão do Supremo Tribunal Federal, em curso, aponta para áreas

contínuas, mas com elementos disciplinadores que asseguram o domínio doEstado na área. Terá o mérito de estabelecer um parâmetro para futurasdisputas.

- No tocante a garimpeiros: esta massa humana merece nossa atenção,pois é formada por brasileiros mal assistidos.

c) ONGs: realidade a ser considerada. Há um número demasiadodestas organizações. É indicado discipliná-las, vigiá-las e neutralizar as quenão atendem aos nossos interesses. Temos sido muito lenientes einconsequentes.

d) Distúrbios de fronteira: realidade, mas com importânciasuperdimensionada. Não temos problemas de fronteira, mas pequenosproblemas na fronteira. A presença militar brasileira na área, na atualidade,tem poder dissuasório.

e) Droga: realidade a enfrentar com muita competência – vigilância erepressão.

Em resumo: estes são os problemas da primeira vertente mencionada,mas principalmente – repito – os fatos-argumentos utilizados ardilosamentepelos grandes do mundo, em apoio a seus interesses.

2) O Conflito de Interesses: disputa geopolítica e confrontaçãoestratégica – ações e contrapartidas

a) Aspectos gerais

É indicado avaliar o que está acontecendo nos planos, internacional enacional, naquele espaço do nosso território.

O assunto ficaria bastante esclarecido com respostas aos seguintesquestionamentos:

- Há, em verdade, uma cobiça internacional sobre a Amazônia? Estánossa soberania em perigo? Ou é fantasia?

- Se verdadeiro, o que estamos fazendo para neutralizar esta cobiça eeste perigo?

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b) A cobiça internacional

Desde logo, é bom lembrar que o planeta Terra tem dimensões definidas,consequentemente, finitude de riquezas.

Os grandes do mundo, possuidores de alta tecnologia (satélites espiões)varrem o espaço terrestre. Daí, são sabedores, melhor do que nós, das riquezase da multivocacionalidade da Amazônia – um dos últimos vazios da terra,fato que a torna objeto de cobiça de quem não a possui.

Algo inusitado? Não. Não esquecer as aspirações brasileiras na Antártica.A diferença é que lá é terra de ninguém; a Amazônia, legalmente nossa.

Esta cobiça é, basilarmente, o fator determinante do atual conflito deinteresses na área.

c) A disputa geopolítica

Everardo Backheuser nos ensina: “Geopolítica é a Política feita emdecorrência das condições geográficas”. De outra parte, a Política, no nívelNação, “é a arte de governar” (Platão), estabelecendo objetivos, concretosou abstratos.

É possível, então, identificar a disputa entre os dois grandes objetivosgeopolíticos presentes na bacia amazônica – o nosso, desejando que continuea nos pertencer; o dos grandes do mundo, querendo ter seu uso através dainternacionalização.

Há manifestações de cobiça históricas, mas, na oportunidade, impõe-seassinalar as dos séculos XX e XXI, consequentes da redescoberta daAmazônia, pelo conhecimento de suas reais potencialidades. Exacerbou-sea cobiça... Tornou-se clara a disputa geopolítica.

Qual nossa contrapartida?A principal é a nossa Manobra Geopolítica Interna de Integração, uma

atuação realista que nos faz herdeiros à altura dos ancestrais que, com grandevisão, nos legaram este imenso Brasil.

Foi e é assim (Anexo 1):

• Na primeira metade do século XX, assinalam os geopolíticos, eramidentificados no País cinco núcleos geográficos desvinculados: o central, osul, o norte, o centro-oeste e a bacia amazônica.

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• Nos anos 40/50: decisão de ligar o central ao sul e ao nordeste (estradasBR 116, 101 e TPS – ferrovia).

• Nos anos 60/70: decisão de ligar o central ao centro-oeste (estradasBR 040, 050 e 364) e a criação de Brasília.

• Nos anos 70 em diante: lançamo-nos para a Amazônia para integrá-la,que é trazê-la para o contexto político e socioeconômico da Nação (estradasBR 010, 364, 163, 319 e 174).

Tudo realizado pelas visões de Getúlio Vargas, Juscelino e dos GovernosMilitares, principalmente.

A integração da Amazônia, impõe-se ressaltar, passou a ser um objetivo,uma meta, de significado vital para o Brasil. E nada deve interromper nossadecisiva caminhada para atingir esta essencialidade geopolítica.

d) A confrontação estratégica

Cabe dizer que os poderes antagônicos se deram conta de nossa manobrageopolítica. A partir de então, aceleraram suas ações estratégicas.

Não houve, ainda, nenhuma ameaça real de invasão, mas estão bem nítidasas manobras estratégicas indiretas, com a finalidade de conservar aintocabilidade da região para um futuro propício a interesses que não são nossos.

No que consistem?Basicamente, acusam-nos de não saber bem cuidar da Amazônia. Utilizam

os fatos-argumentos mencionados: pulmão do mundo, efeito estufa(queimadas), alteração do clima, desertificação, questões indígenas,hidroelétricas, ardilosamente.

Exigências foram feitas ao governo brasileiro para adotar medidas deconservação (intocabilidade), em vez de utilização adequada do espaçoamazônico.

Primordialmente, com o propósito de enfraquecer nossos direitos deposse e transformar a região em um grande contencioso internacional.

É um exagero? Temos indicações? Temos. Vêm de todos os quadrantese de países grandes.

Ver nos Anexos 2 a 8 os pronunciamentos da Entidade e de líderes:Conselho Mundial de Igrejas Cristãs (1981); John Major (1992); MikahilGorbachev (1992); François Miterrand (1989); Henri Kissinger ( 1994);Pascal Lamy (2005) e Pascal Boniface (2006).

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Além desses, inteirei-me, por motivos funcionais, à época, de um episódiode grande significado que merece recordar: o Presidente Sarney , em 1989,foi convidado pelo Presidente Miterrand para uma reunião, em Amsterdam,com os integrantes do G-7. Finalidade: tratar de questões vinculadas a aspectosambientais da Amazônia, com vistas a uma possível ingerência internacionalna área, território nacional brasileiro.

A proposta foi, obviamente, repelida através da atuação do Itamaraty.Foram apenas imprudências verbais ou de atitude?Nossa leitura não é esta. São ameaças que podem transformar-se em

realidade. Considerando-se as datas dos pronunciamentos, vê-se que a maioria

não é recente.É fácil concluir o porquê: problemas maiores e mais prementes passaram

a preocupar os grandes do mundo e se agravaram no presente, dando-nosuma trégua.

Quais nossas contrapartidas às ações geoestratégicas antagônicas?Há três frentes:

· Aspectos legais

Nossa preocupação maior é a soberania brasileira na área.Temos de estear nossa argumentação na noção de soberania no Direito

Internacional Público que consta do texto de toda a jurisprudênciainternacional:

- A Carta da Justiça Internacional de Haia;- A Carta da ONU;- A Carta da OEA.Por isso, apesar de pressões de líderes, organismos internacionais e

ONGs, devemos lutar para que seja respeitada a pureza do entendimentoconceitual de nosso objetivo nacional – Soberania.

Avultam as atuações do Presidente da República e, principalmente, doItamaraty nos Organismos Internacionais.

· Medidas de ordem administrativa

Temos bons argumentos à disposição para neutralizar as acusaçõesfalaciosas através de medidas nacionalmente adotadas.

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No tocante à ecologia podemos ser mais enfáticos nos seguintes aspectos:- Mesmo considerando como reais as teses do IPCC sobre o clima,

nossa participação na poluição atmosférica (CO2 e outros) é pequenaem comparação com a dos países desenvolvidos. No entanto, só se dáênfase às queimadas da Amazônia. E as chaminés poluidoras do mundo?

- Poucas nações registram em suas Constituições atenção especial aomeio ambiente como o Brasil. A floresta amazônica é considerada PatrimônioNacional.

- Criamos um Ministério do Meio Ambiente.- Atuação do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, cuja

capacidade de monitoramento é hoje altamente técnica, eficiente e eficaz,sem par no mundo.

– Temos leis punindo os crimes contra o meio ambiente. – Vários órgãos atuando na área.- Nossos índios têm recebido imensas áreas até desmedidas, como no

caso dos Ianomâmis, sem precedentes em outras partes do planeta. Atualmente,açulados pela Declaração da ONU, aumentam suas reivindicações.

Em suma, não obstante as dificuldades e as falhas operacionais, agravadaspelo “signo da imensidão”, temos buscado fazer o “dever de casa”.

Por que, então, esta acusação tão orquestrada contra a Amazônia?Por motivos óbvios: atuação dissimulada, indisfarçável, ameaçadora da

cobiça internacional.

· Área militar

A Política de Defesa Nacional (Decreto 5.484, de 30 de junho de2005) estabelece nas Orientações Estratégicas:

6.12 – Em virtude da importância e da riqueza que abrigam a AmazôniaBrasileira e o Atlântico Sul são áreas prioritárias para a Defesa Nacional

A Estratégia Nacional de Defesa (Decreto 6.703, de 18 de dezembrode 2008), nas Diretrizes da Estratégia Nacional , prescreve:

“10. Priorizar a região amazônicaO Brasil será vigilante na reafirmação incondicional de sua soberaniasobre a Amazônia brasileira.

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Repudiará pela prática de atos de desenvolvimento e defesa qualquertentativa de tutela sobre as suas decisões a respeito de preservação,desenvolvimento e de defesa da Amazônia.

As Forças Armadas vêm dando, dentro das limitações dos recursosrecebidos, prioridade à Amazônia.

A Marinha está estruturada no 4º Distrito Naval, em Belém; e noComando Naval da Amazônia Ocidental, em Manaus.

A Força Aérea tem Comandos Regionais em Manaus (1º COMAR)e Belém (7º COMAR) e Bases Aéreas em Belém, Manaus, Porto Velhoe São Gabriel da Cachoeira.

A COMARA, organização com a responsabilidade de construçãode pistas e aeroportos.

O Projeto SIVAM/SIPAM, integrado à Força Aérea, já exerceresponsabilidade de altíssima importância para o controle da áreaamazônica.

O Exército é representado pelo Comando Militar da Amazônia(CMA).

A sede deste comando tem como chefe um General-de-Exército, emManaus.

Esta organização militar que atende às direções estratégicas constade:

• Quatro Brigadas de Infantaria de Selva (organizações operacionais)– 1ª Brigada, em Boa Vista; 2ª Brigada, em São Gabriel da Cachoeira;16ª Brigada, em Tefé; 17ª Brigada em Porto Velho, todas com elementosdestacados na fronteira; e a 23ª Brigada, em Marabá.

• Duas Regiões Militares (organizações logísticas) – 12ª em Manause 8ª em Belém.

• Cinco Batalhões de Engenharia de Construção (estradas, aeroportose quartéis ) – 5º, 6º, 8º e 9º BEC.

• 4º Esquadrão de Aviação do Exército, em Manaus (cerca de 20 a25 helicópteros), que assegura razoável mobilidade estratégica e tática.

Este conjunto de força do Exército soma, basicamente, 2.000 oficiaise 25.000 praças (subtenentes, sargentos, cabos e soldados).

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3) A Integração e desenvolvimento da área: medidas para queestes objetivos sejam alcançados

É óbvio que jamais caberia a alguém, individualmente, detalhar as medidasa serem adotadas.

Por quê? Porque, com certeza, seriam frutos de estudos com fundamentospolíticos, administrativos, científicos, etc., a serem realizados por equipes dealto nível, em trabalho com excelência gerencial.

Impõem-se, na oportunidade, apenas sugestões amplas, mas com validade,pois são concretas e indicam objetivos e caminhos a serem seguidos.

Assim, vejamos:

• Antes de tudo, acelerar a ocupação da Amazônia e fazê-lo de maneiraracional, distante de dois extremos: intocabilidade e predação, adotando umdesenvolvimento sustentável que tecnologia e ciência possibilitam. “Inundar decivilização a Amazônia”.

• Realizar, em profundidade, a regulação fundiária na área, responsávelpor problemas de grilagem, nacional e internacional. Esta questão é fulcral epremente; ademais, facilita os assentamentos. Neste aspecto, cabe reconhecerque é objeto das preocupações do Ministério do Desenvolvimento Agrário edo Meio Ambiente.

• Definir, de maneira clara e precisa, o que deve ser feito para bem explorara multivocacionalidade da Amazônia em todas as frentes, inclusive a dabiodiversidade.

• Rever e reavaliar as organizações com atuação na região, a fim deaperfeiçoá-las (ou mesmo extinguí-las), consoante seu desempenho.

• Aumentar os efetivos das Forças Armadas na área, pois elas são a ossaturados vazios para a ocupação ordenada. O passado tem demonstrado estaafirmativa.

• Rever, atualizar e condensar a legislação em vigor, vultosíssima,purificando-a.

• Avaliar e vigiar as ações de ONGs na área, para identificar aquelas cujasatuações não estiverem harmonizadas com o interesse nacional, e afastá-las.

• Controlar, efetivamente, a pirataria em nossa biodiversidade.• Discutir o problema com a cidadania, a fim de que todos os brasileiros

saibam e preguem que a Amazônia não é museu ou laboratório da humanidade.É uma terra promissora para seu povo. Mantê-la intocada, qual santuário, é

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um absurdo (ou engodo) que somente cabe a descompromissados com ofuturo do Brasil, sejam eles estrangeiros ou maus brasileiros.

• Concitar os formadores de opinião, especialmente a mídia, para posiçãomenos alarmista sobre fatos ecológicos que desservem aos nossos interessesde desenvolvimento sustentável.

• Finalmente, aceitar uma velha ideia que, de quando em quando, vem àbaila: criar o Ministério da Amazônia.

Como vimos, a problemática amazônica envolve enormes e múltiplosproblemas, de vulto e natureza variável: é um “caldeirão candente”.

Mais um Ministério? Não! Talvez trocá-lo por alguns existentes e demenor prioridade.

Penso que somente um grande órgão, com poder e independência, poderiaenfrentar e harmonizar, com sucesso, as tarefas gigantescas assinaladas.

3. Conclusão

a. Uma firme decisão governamental, inteligente, explicitada e trabalhada,interna e externamente, fato que já ocorre e cabe aprofundar, considero passofundamental para o desenvolvimento e a defesa da Amazônia.

b. Aproveitar a situação internacional atual, em que os grandes estãopolarizados por problemas mais prementes – e nos estão dando uma trégua– para tomar todas as medidas necessárias (políticas, administrativas emilitares) que acelerem a integração e, mesmo, a projeção da Amazônia,baseadas na vigilância e no desenvolvimento sustentável.

***

Como palavras finais, ofereço sobre o tema Amazônia e sua problemática,que nos envolve racional e emocionalmente, minha manifestação, ainda válida,externada quando Comandante Militar da área, em 1982:

“A Amazônia integrada e desenvolvida – tarefa que estamos realizandocom determinação, apesar dos óbices – será o derradeiro pilar geosócio-econômico da nacionalidade, capaz de possibilitar ao nosso país a almejadaposição de grandeza.”

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Anexos

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Lista de Participantes da III ConferênciaNacional de Política Externa e PolíticaInternacional

1. Acsa Iracema Pessoa Silva2. Ada Braga3. Adalberto Luis Vidal4. Adeliz de Siqueira Ferreira5. Adherbal Meira Mattos6. Adilson Rodrigues Pires7. Admar Branco Brandão8. Adolfo Westphalen9. Adriane Pereira Gouvêa10. Adriano Benayon do Amaral11. Adriano Pires de Almeida12. Affonso Celso Ouro Preto13. Affonso Arinos de Mello Franco14. Alcimor Aguiar15. Alessandra Baldner Pontes16. Alessandra Fragoso S Caroli Sena17. Alessandra Gouveia Barbosa

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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18. Alex Fiuza de Mello19. Alex Gonçalves de Santiago Ribeiro20. Alex Jobim Farias21. Alex Medeiros Kornaçewski22. Alexandra de Mello e Silva23. Alexandre Addor24. Alexandre César Cunha Leite25. Alexandre de Oliveira Kappaun26. Alexandre Gonçalves27. Alfredo Lustosa Cabral28. Aline Martins Martello29. Aline Rocha Marinho30. Allyne Feller31. Aloysio Rodrigues Junior32. Aluizio de Magalhães Pacheco33. Alysson Amorim Mendes da Silveira34. Amanda de Castro Pires35. Amaury Porto de Oliveira36. Américo Alves de Lyra Júnior37. Amine Maria Moiséis Fernandes38. Ana Carolina Afonso Valladares39. Ana Catarina Moraes Ramos Nobre-de-Mello40. Ana Cristina Silva Campos41. Ana Flávia Vaz de Oliveira42. Ana Helena Avalcante43. Ana Lucia Segamarchi44. Ana Marta Soares Vasconcellos45. Ana Zuleide Barroso da Silva46. Analice Lima da Trindade Pinto47. Anderson de Oliveira Pereira48. André Luiz Coelho Farias de Souza

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LISTA DE PARTICIPANTES

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49. Andréa Menge Silva da Rocha e Reis50. Andréia de Castro Silva51. Angela Cunha da Motta Telles52. Ângelo Segrillo53. Aninho Mucundramo Irachande54. Anna Beatriz Sabino de Oliveira55. Anna Carolina Machado Maciel da Silva56. Anne Carolina Faria de Lima57. Anne Kathryn Leone Piani58. Antonio Augusto dos Santos Soares59. Antonio Barros de Castro60. Antonio Carlos Peixoto61. Antonio Correa de Lacerda62. Antonio Patriota63. Antonio Walber M. Muniz64. Arnaldo Carrilho65. Barbara Bravo66. Bárbara Castelo Branco Bacellar da Silva67. Bárbara Eduardo Silva Varela Olivares68. Bárbara Isabel Martins Furiati69. Beatriz Nascimento Lins de Oliveira70. Bernardo Wallauer71. Bertha Becker72. Bianca Sotelino Dinatale73. Bresser Pereira74. Bruna Drubi75. Bruno Barreto Lino76. Bruno Felice Araujo Perrella77. Bruno Lobo Motta78. Bruno Oliveira79. Bruno Oliveira de Souza

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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80. Camila Carlos da Silva81. Camila de Souza Dornellas82. Candido Mendes83. Carliana Sousa84. Carlos Aguiar de Medeiros85. Carlos Alexandre Viana Silva86. Carlos Biavaschi Degrazia87. Carlos Eduardo Schmidt Bedran88. Carlos Gabriel Ranquini Raffaeli89. Carlos Henrique Cardim90. Carlos Henrique Pissardo91. Carlos Leonardo Loureiro Cardoso92. Carlos Lessa93. Carlos Mello94. Carmen Sprinz95. Carolina Akemi Kano Silva96. Carolina Baldner97. Carolina Barbosa de Souza98. Carolina Nunes Goes99. Caroline Lodi100. Caroline Silva de Mendonça101. Cassiano Cardoso Cotrim102. Casuco Ito Abe103. Ceadelia Kiperman Aizic104. Cecília Rios105. Christian Lohbauer106. Christiane Rangel Sauerbronn dos Santos107. Cintia Pinheiro Ribeiro de Souza108. Cíntia Portugal Viana109. Claudia Botelho de Almeida110. Cláudia Marconi

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LISTA DE PARTICIPANTES

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111. Claudia Valentina de Arruda Campos112. Clayton Mendonça Cunha Filho113. Cleber Batalha Franklin114. Clecy Ribeiro115. Clelia Piragibe116. Constantino Cronemberger Mendes117. Consul Geral do Paraguai Sr. Ricardo Caballero Aquino118. Cônsul Geral Horacio del Valle119. Corival Alves do Carmo120. Cristiano Aloe Botafogo121. Cristina Acevedo122. Cristina Francis de Oliveira Cople123. Cristina Pecequillo124. Cyntia Malaguti Moya125. Daniel Aarão Reis126. Daniel de Campos Antiquera127. Daniel Kaufman Spector128. Daniel Moyses Barreto129. Daniela dos Santos Cruz130. Daniele Castanho Carvalho131. Daniele Dionisio da Silva132. Danielle de Oliveira Vieira133. Danielle Denny134. Danilo Marcondes135. Darc Costa136. Dario Maciel Bredis de Oliveira137. Débora Motta de Oliveira138. Denise Taveira Cruz139. Denison Augusto Batista140. Desembargador Fernando Luiz Ximenes Rocha141. Diego de Oliveira Souza

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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142. Diego de Souza Araujo Campos143. Diego Rafael Nunes dos Santos144. Domingos Savio da Cunha Garcia145. Doutor Alcimor Aguiar Rocha Neto146. Doutor Antonio Carlos Gondim147. Doutor Flávio Rocha de Oliveira148. Doutor José Monserrat Filho149. Doutor Laécio Noronha Xavier150. Doutor Luiz Alfredo Salomão151. Doutor Mario Teixeira de Sá Junior152. Doutor Rodrigo Oliveira de Lima153. Doutor Sérgio Gil Marques dos Santos154. Doutor Victor Hugo Klagsbrunn155. Doutor Wainer da Silveira e Silva156. Doutora Tânia Maria Pechir Gomes Manzur157. Doutora Monica Herz158. Doutora Regina Coeli da Silveira e Silva159. Eden Clabuchar Martingo160. Edjobson Almeida Pedrosa161. Eduardo Cesar Ferreira da Silva162. Eduardo Lisker163. Eduardo Simbalista164. Eduardo Stefano Martello165. Elaine Cristina Pereira Gomes166. Elia de Mello Esteves Lima167. Elian Preira de Araújo168. Élio Cantalício Serpa169. Elisa Maria Campos170. Elizabeth Nunes do Nascimento171. Elizabeth Santos de Carvalho172. Else Borinski

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LISTA DE PARTICIPANTES

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173. Emanoelle M. G. de Farias174. Embaixador Csaba Pólyi175. Emília Carmem de Souza Nazaré176. Enilson Barbosa dos Santos177. Enio Cordeiro178. Ennio Candotti179. Ércole Tramontano180. Etiene Magalhães de Oliveira181. Etiene Magalhães de Oliveira182. Eugenio Carlos Barbosa183. Everton Vieira Vargas184. Fabiana Rita Dessotti Pinto185. Fábio Barcellos de Melo186. Fabio Ramos Ariston187. Fabíola de Paula Schwob188. Felipe Fanuel Xavier Rodrigues189. Felipe Franca da Costa Meireles190. Fernanda de Souza Antunes191. Fernando Guimarães Reis192. Fernando Simas Magalhães193. Fidel Pérez Flores194. Flavia Hasselmann195. Flávia Machado Cruz196. Flavia Miguel de Souza197. Flávia Skrobot Barbosa Grosso198. Flavio de Oliveira Nogueira199. Francisco Costa200. Francisco Otávio de Miranda Bezerra201. Francisco Tomasco de Albuquerque202. Franklin Serrano203. Gabriel Almeida

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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204. Gabriel Merheb Petrus205. Gabriel Nobrega Barrucho do Carmo206. Gabriela Pacheco207. Gabriela Roméro208. George Alexsandro Diniz de Dantas Moura209. George Koppe Eiriz210. George Thieme Verllague211. Gilberto Dupas212. Gilsimar de Brito Fernandes213. Gisele Rodrigues Gomes214. Gisele Vaz de Oliveira Rego215. Glauco Arbix216. Glauco Cesar de Sousa Salmazio217. Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão218. Grasiela Baruco219. Grasiela Cristina da Cunha Baruco220. Guilherme Pedroso Nascimento Nafalski221. Guilherme Violand Pierantoni222. Gustavo Ribeiro de Souza Leão223. Hannah Talita Azevedo Velho da Silva224. Heitor Gurgulino de Souza225. Helder Pereira da Silva226. Helenir Maria Góes de Medeiros227. Hélio Jaguaribe228. Henrique Alves Cruzeiro229. Henrique Oliveira Vianna230. Hildembregue Ordozgoith da Frota231. Hugo Luna Freire Cintra de Oliveira232. Igor Gielow233. Ima Célia Guimarães Vieira234. Isabel Aché

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LISTA DE PARTICIPANTES

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235. Isabela Garcia236. Isabela Saud Bueno237. Isabella Fernandes da Costa238. Isaias Montanari Júnior239. Ismael Alves Pereira Filho240. Ivan Tiago Machado Oliveira241. Izabele Lucena Lima Nascimento242. Jacimar Cavalcante da Siva243. Jalton Pinho244. Janet Ruth Colombo245. Jaurino Codar Filho246. Jefferson Virotti Laureano247. Jeronimo Moscardo248. Jessica Ausier da Costa249. Joan Frederick Baudet Ferreira França250. João Bruno Nogueira Campos251. João Carlos Nogueira252. João Carlos Nogueira253. João Gualberto Marques Porto Júnior254. João Henrique Catraio Monteiro Aguiar255. João Paulo Marques Schittini256. João Paulo Silveira257. João Ricardo Rodrigues Viegas258. Jonatas Luis Pabis259. Jonathan de Carvalho260. Jorge Calvario dos Santos261. Jorge José Barros de Souza262. Jorge Luiz Raposo Braga263. Jorge Marcos Barros264. Jorio Dauster265. José Alberto Cunha Couto

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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266. José Flávio Sombra Saraiva267. José Luiz Fiori268. José Malhães da Silva269. José Seixas Lourenço270. Joyce Cotrim Miranda271. Joyce Mayara da Silva Fonseca Lucas272. Juçara Lobato da Silva273. Julia Maciel de Carvalho274. Juliana Benicio275. Juliana de Souza Rodrigues276. Juliana Ferreira Meireles de Mello277. Juliana Forte278. Juliana Gaiolli Nicolodi279. Juliana Maciel Barreto280. Juliana Ribeiro do Nascimento Patricio281. Kamila S. R. Araujo282. Ketty Thathiany Cadete Dias283. Laécio Noronha Xavier284. Lara Azevedo Malheiros285. Laura Simonsen Leal286. Lectícia Cristina Barbejat Castro Cruz287. Leonardo Jefferson Fernandes288. Leonardo Puglia289. Leonardo Rabêlo290. Leonardo Rosa Maricato Santos291. Leorne Menescal Belém de Holanda292. Lia Raquel Vieira do Rêgo293. Liana Perola Schipper294. Líli Ane Fernandes Lourenço Cabral295. Lílian Helena Moreira Santos296. Linoberg Barbosa de Almeida

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LISTA DE PARTICIPANTES

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297. Lorena Lopes298. Luana Viana Gomes299. Lucas Gustavo Solli de Faria300. Lucas Oliveira Botelho de Carvalho301. Lucia Darós302. Luciana Azambuja303. Luciana Martins304. Luciana Melo Hervoso305. Luciano Dalcol Rodrigues Viana306. Luis Alberto Moniz Bandeira307. Luis Manuel Fernandes308. Luiz Alberto de S. A. Machado309. Luiz Alfredo Salomão310. Luiz Carlos Tavares de Carvalho311. Luiz Corrêa Meyer Bettencourt312. Luiz Fernando Viotti313. Luiz Gustavo Leite314. Luiz Pingueli Rosa315. Luzinete Maria de Paula316. M.Sc. René Berardi317. Magno Klein Silva318. Maickon Alex Alves Soares319. Manoela Louise Assayag de Magalhães Souza320. Marcele Lazoski Schiavo321. Marcelo Dornelles Hosannah322. Marcelo Raimundo da Silva323. Marcelo Viana Estevão de Moraes324. Márcia Cristina do Nascimento325. Márcia Erthal Ramos326. Márcia Pinto327. Marcio André Silveira Guimarães

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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328. Marcio Cesar Franco Santos329. Marco André Cabral da Ponte330. Marco Aurélio de Andrade Lima331. Marco Aurélio Garcia332. Marco Túlio Delgobbo Freitas333. Marcos Fernandes Passos334. Marcus Ferrer335. Margareth Rodrigues336. Maria Aurecy de Menezes337. Maria Cecília Alves dos Santos338. Maria do Ceu Carvalho339. Maria Edileuza F. Reis340. Maria Helena Gappo341. Mariá Marcele Almeida Aranha342. Maria Nazaré Imbiriba343. Maria Paula G. Lopes344. Maria Paula Nascimento Araujo345. Maria Ruth Martinelli Villela de Andrade346. Maria Simone de Oliveira Rosa347. Mariana Franco Moura348. Mariana Kalil349. Marilena Beraldi350. Marilene Correa da Silva Freitas351. Marilene Ferreira352. Marília de Aguiar Monteiro353. Marina Band354. Marina Caetano Pereira355. Marina Drummond356. Marina Ghirotto Santos357. Marina Magalhães Barreto Leite da Silva358. Mário Augusto dos Santos

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LISTA DE PARTICIPANTES

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359. Mário Ribeiro Pereira360. Marival Flávio Q. de Souza361. Mary Stella Carvalho Fernandes362. Mathilde Molla363. Mauricio de Almeida Rego Ferreira364. Mauricio de Faria365. Mauricio Dias David366. Mauro Marcos Farias da Conceição367. Mauro Santayana368. Mauro Schweizer Leite369. Maya Hagege370. Mayla Ilis Vigário371. Michael Cavalcanti Jangada372. Miguel Angel Pérez Peña373. Ministro Carlos Minc374. Mirian de Souza Dantas375. Mirtes Palmeira376. Monica de Sousa Braga377. Mônica Leite Lessa378. Monica Pinto da Fonseca379. Monike Gisele van Tilburg380. Moshe Penha Carneiro381. MS. Rafael Mandagaran Gallo382. Msc.Mário Rodrigues de Vasconcelos Neto383. Msc.Viviane Mozine Rodrigues384. Nadia Lemme C. de Carvalho385. Nair Maria Gaston Nogueira386. Narasha Tatiana da Costa Lopes de Souza387. Natália Bittencourt Vieira388. Natália Pickler Coelho389. Natália Trindade

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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390. Nathália Fernandes Reiser391. Nathalia Khayat392. Nathalia Ramoa Varaschin393. Newman di Carlo Caldeira394. Nilo Rafael Baptista de Mello395. Nina Fernández y Fernández396. Nina Paiva Almeida397. Oreste Pedro Maia-Andrade398. Orlando Ribeiro da Silva Netto399. Osana da Mota Silva400. Oséias Teixeira da Silva401. Osvaldo Peçanha Caninas402. Oswaldo Angarano403. Pamela Greenwell404. Paola Gonçalves Massena405. Patricia Freire406. Patricia Latini Barros.407. Patrícia Regina Barbosa Teixeira de Andrade e Silva408. Patrícia Tavares de Freitas409. Paula Cristina de Carvalho Queiroz410. Paula Cristina Pereira Gomes411. Paula Domitilla da Silva Bezerra412. Paula Drumond413. Paula Moreira414. Paulo Buss415. Paulo Cesar Azevedo Ribeiro416. Paulo Chacon417. Paulo Domingos Altomare418. Paulo Everardo de Souza e Silva419. Paulo Frederico Telles Ferreira Guilbaud420. Paulo Henrique Alves

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LISTA DE PARTICIPANTES

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421. Paulo Henrique Schau Guerra422. Paulo Norberg423. Paulo Sergio Caldeira Franco424. Paulo Visentini425. Paulo Werneck426. Pedro de Lima Serrano427. Pedro Luiz de Azevedo Filho428. Philip Albert Hime429. Priscila Campello de Siqueira e Pinto430. Queli Cristina Jonas Garcia431. Rafael da Fonseca Reis Pereira432. Rafael da Silva Leite433. Rafael de Almeida Daltro Bosisio434. Rafael Farias435. Rafael Heynemann Seabra436. Rafael Parada Toscano437. Rafael Reis438. Rafael Toledo439. Rafaella Lima Paixão Fontes440. Ramon Martins Andrade441. Ramon Silveira Menechini442. Ramoom F. Martínez443. Regina Gadelha444. Regina Gloria Carvalho445. Regina Kfuri446. Regina Maria Cordeiro Dunlop447. Renan Vidal Esteves448. Renata Bechara de Araujo449. Renata Farias de Souza450. Renata Mazeika451. Renata Reif e André Siciliano

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452. Renato Caldeira de Oliveira453. Renato Costa Franco454. Renato Pinheiro de Abreu455. Renato Rocha456. Ricardo Ades457. Roberta Soledade Azevedo458. Roberto Carlos Quintela de Alcantara459. Roberto Eugênio Vidal Velloso Junior460. Roberto Jaguaribe461. Roberto Mangabeira Unger462. Rodrigo Cintra463. Rodrigo Lopes Sardenberg464. Rodrigo Lourenço da Costa Maia465. Rodrigo Torres de Almeida466. Roger Cardoso Pires da Rosa467. Ronaldo Carmona468. Ronaldo Sardenberg469. Rosangela Ortiz Fugihara Karnal470. Rosiane Rigas471. Rossana Nava Morales Ortiz472. Rubens Batista Santos473. Rui Marques474. Samara Tanaka475. Samo Sérgio G. Tozatti476. Samuel Pinheiro Guimarães477. Sandra Caseira Cerqueira478. Sandra Maria Cordeiro Mattos479. Sandra Sena480. Sara Garay481. Sebastião C. Velasco e Cruz482. Sebastião do Rego Barros

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LISTA DE PARTICIPANTES

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483. Sérgio Luiz Pinheiro Sant’Anna484. Shirlei Sacchi de Almeida485. Sidney Ferreira Leite486. Silverio Zebral487. Silvina Alkerman488. Solange Pastana489. Solange Pastana490. Stenio Augusto Lopes Andrade491. Styven Molenda492. Suellen Borges de Lannes493. Suzelley Kalil Mathias494. Tábita Duarte495. Talita Anunciação da Silva496. Tamires Cosendey Bessa497. Tarcila Lucena498. Taruno Stiento499. Tatiana Deane de Abreu Sá500. Tatiana Molina501. Tenente Coronel Carlos Alberto de Moraes Cavalcanti502. Tereza Spyer503. Thaís Rangel Vieira504. Thalita Novo505. Thays de Chaffin e Sacramento506. Thaysa Menezes507. Thelma Araujo Coutinho508. Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino509. Thiago Fagundes Lopes510. Thiago Reis Portella Veiga511. Thiago Souza da Costa512. Tiago Luis Cesquim513. Tiago Munk

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL

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514. Valterian Braga Mendonça515. Vanessa C. Santos516. Vanessa Carneiro da Paz517. Vanessa Oliveira Batista518. Vera Crivella519. Victor Magalhães Feleppa520. Vilas Boas521. Vilson Aparecido Disposti522. Vilson Aparecido Viotto523. Viviane de Carvalho Queiroz524. Wagner Artur de Oliveira Cabral525. Wagner Menezes526. Wainer da Silveira e Silva527. Walber Machado de Oliveira528. Walber Muniz529. Wallace Silva Araujo530. Wanderley Guilherme dos Santos531. Wanderley Quêdo532. Wanildo José Nobre Franco533. Wendell dos Santos534. Wilson Danilo de Carvalho Eccard535. Wilson Galhego Garcia536. Zulema Zbrun de Puma

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Formato 15,5 x 22,5 cmMancha gráfica 12 x 18,3cmPapel pólen soft 80g (miolo), duo design 250g (capa)Fontes Times New Roman 17/20,4 (títulos),

12/14 (textos)