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O mundo como museu; o artista como conservador e restaurador da vida Davi Silva Pereira Mestrando em Ciência da Arte – PPGCA – UFF Considerando as mudanças de paradigma entre modernismo e pós-modernismo pretende- se investigar o esvaziamento do estatuto das obras de arte, a limitação das instituições para uma arte pautada nas formas de comunicação e das discussões do homem em cultura e o surgimento de um novo artista que provocará uma aproximação entre sua prática e a comunidade na qual está inserido. Pós-modernismo; instituições; novo artista. Considering changes in the paradigm between modernism (self-referencial) and postmodernism (engaged production) we intend to investigate the deflation of the artwork statute, the institutions limitation to a kind of art based in some ways of communication and in the discussions of the man inside a culture and the emergence of a new artist (political and social agent) that will cause an approximation between its practice and its community without leave its poetic in the background. Postmodernism; institutions; new artist. “Poderia a arte superar a sua institucionalidade/nacionalidade capitalística na recuperação de alguma aventável estética (re)humanizante?” 1 Uma das mais importantes características que norteou o modernismo foi seu caráter auto-referencial, definindo o artista e sua obra como ser autônomo, entrincheirados em seu próprio campo, válidos por si mesmo e não para um outro fim. Cada arte deveria então “restringir sua área de competência, mas ao mesmo tempo iria III semana de pesquisa em artes 10 a 13 de novembro de 2009 art uerj processos artísticos contemporâneos 295

III semana de pesquisa em artes 10 a 13 de novembro de ... Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2005. GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São

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O mundo como museu; o artista como conservador e restaurador da vida

Davi Silva Pereira

Mestrando em Ciência da Arte – PPGCA – UFF

Considerando as mudanças de paradigma entre modernismo e pós-modernismo pretende-se investigar o esvaziamento do estatuto das obras de arte, a limitação das instituições para uma arte pautada nas formas de comunicação e das discussões do homem em cultura e o surgimento de um novo artista que provocará uma aproximação entre sua prática e a comunidade na qual está inserido.

Pós-modernismo; instituições; novo artista.

Considering changes in the paradigm between modernism (self-referencial) and postmodernism (engaged production) we intend to investigate the deflation of the artwork statute, the institutions limitation to a kind of art based in some ways of communication and in the discussions of the man inside a culture and the emergence of a new artist (political and social agent) that will cause an approximation between its practice and its community without leave its poetic in the background.

Postmodernism; institutions; new artist.

“Poderia a arte superar a sua institucionalidade/nacionalidade capitalística na recuperação de alguma aventável

estética (re)humanizante?”1

Uma das mais importantes características que norteou o modernismo foi seu caráter auto-referencial, definindo o artista e sua obra como ser autônomo, entrincheirados em seu próprio campo, válidos por si mesmo e não para um outro fim. Cada arte deveria então “restringir sua área de competência, mas ao mesmo tempo iria

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consolidar a posse dessa área,”2 uma vez que o contato com o fora suscitaria o perigo do encontro com o desconhecido e colocaria em risco a tão almejada pureza. Preservar a tradição e os padrões de excelência delineou-se como sendo parte integrante não só do programa modernista como também de todo o período da história da arte no qual as instituições tomaram a dianteira das questões mercadológicas e legitimadoras do mundo das artes; nesse caso seria impensável um caminhar de mãos dadas entre a Arte e algum tipo de desenvolvimento social. O que estamos pensando é que o isolamento da arte moderna e das instituições artísticas refletiu-se em um empenho, às avessas, por parte dessas instâncias em engajar-se nas questões inerentes à vida. Daí a pertinência do pensamento de Andreas Huyssen quando afirma que “o museu definiu a identidade da cultura ocidental ao desenhar as fronteiras externas e internas calcadas na exclusão

Bloco Bienal Vá de Retro Abacaxi, 2009.

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e na marginalização.”3 Os museus constituíram um conjunto de premissas (arbitrárias) atreladas ao capital para, através de suas coleções e políticas próprias, criarem um mecanismo de controle que iria, por conseguinte, formar nosso juízo de valor.

Pensando mais à frente, o pós-modernismo caracterizou-se por uma tomada de posição contrária àquela das grandes vanguardas históricas e requisitou uma produção poética comprometida, associada diretamente à práxis vital. Utilizando as palavras de Suzi Gablik: “a atividade criativa deve estar direcionada para responder uma necessidade cultural coletiva em vez de um desejo pessoal de auto-expressão”4. Tal mudança de paradigma, que já podíamos observar nos anos 50 e 60 do século passado nas ações do artista alemão Joseph Beuys e do grupo do qual fazia parte, o Fluxus, provocou um esvaziamento do culto às imagens e, por conseguinte, do estatuto das obras de arte. Os espaços institucionais, então, tornaram-se limitados para uma arte pautada nas formas de comunicação social e que tratava das discussões do homem em cultura.

Essa ação ampliada da arte no campo da vida, enxergada claramente no conceito de Escultura Social de Beuys5, fez emergir um novo tipo de artista, o artista como agente político e social. O “novo” artista é aquele que, sem relegar a segundo plano a articulação de alguma poesia, provocará uma aproximação entre sua prática artística e a comunidade na qual está inserido; o artista não é mais solitário e não está mais sozinho. “O período do mestre reverenciado, do artista com uma camélia na lapela, da poltrona do gênio acabou”6, o museu agora é o mundo. Desse modo diluem-se as fronteiras, há tempos arraigadas pelas tradições do campo artístico, entre autor, obra e fruidor. Assim sendo, poderíamos ressuscitar o “autor como produtor” de Walter Benjamin, não nos moldes daquele artista-ativista russo que orientava suas atividades em função do que fosse útil ao proletariado, mas como sujeito que estabelecerá um contato íntimo entre seus processos artísticos e os contextos sociais vivos.

Falemos um pouco mais de Joseph Beuys; Não sabemos ao certo o quanto há de lenda ou verdade em sua história. E talvez nesse caso isso não tenha tanta importância; Joseph Beuys é uma lenda. Ex soldado nazista, tendo vivenciado as monstruosidades que o homem foi capaz de produzir, o artista alemão assumiu papel de protagonista na “tarefa coletiva de “reencantar” nossa cultura”7, na função de encontrar alguma forma salvar o mundo. Concluiu, então, que a arte poderia ser o instrumento de que

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necessitava para realizar seu desejo de metamorfose do ser humano. Defendendo por toda a vida sua crença na arte e na afirmação de que todo ser humano é um artista, encarnou as funções de xamã, pedagogo, político, pastor, terapeuta para colocar em prática seu programa. Transformou a rua em seu museu (as instituições sufocavam seus ideais) para buscar, através de ações, gestos e palavras, a regeneração da vida. Rompeu definitivamente com os limites entre arte e vida, não sendo mais possível em sua obra marcar qualquer diferenciação entre ambas. Considerando todo o legado que Joseph Beuys nos deixou, que caminho deveríamos seguir?

Hoje, permanecer distante tem implicações perigosas. Estamos todos juntos no mesmo anfiteatro global. Não há mais qualquer margem. As estruturas sociais e psíquicas nas quais vivemos se transformaram em extremamente antiecológicas, insalubres e destrutivas. Existe a necessidade de novas formas que enfatizem nossa interconexão essencial em vez de nossa separação, formas que evoquem o sentimento de pertencimento a um todo mais amplo em vez de expressar o “eu” isolado, alienado.8

A vida nesse momento chora; por todas as formas de violência física e psicológica. Somos responsáveis pela destruição da casa que nos acolhe, somos responsáveis por nossa destruição mútua. Poderia então a arte, pretensiosamente, enxugar algumas dessas lágrimas? Discutir questões do mundo acarretaria num enfraquecimento da produção artística? Acredito que não, pelo contrário, enxergar o a vida pela lente pós-modernista é perceber que o mundo constitui-se de camadas que se entrecruzam e crenças diversas que se roçam impossibilitando qualquer tentativa de definição de conceitos isoladamente.

Consequentemente os artistas devem pautar suas produções no modo de se relacionar com o mundo e com os habitantes desse mundo a que pertencem. Devem, atentos aos pequenos movimentos cotidianos que nos são oferecidos, também estar abertos à possibilidade de troca, percebendo o “ex-espectador” como alguém que pode contribuir de maneira efetiva em suas produções artísticas, não só como receptor de algo que o artista irá realizar como também como produtor de saberes artísticos. Para Beuys todos somos artistas; façamos então como ele profetizou.

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Numa certa tarde de domingo Bianca Bernardo, querida amiga, parceira, artista visual e pesquisadora abriu as portas de sua casa para receber a visita de Cristina Ribas, tão querida quanto e igualmente artista visual e pesquisadora. Como ótima anfitriã que é, Bia preparou um chá de camomila para confortar a conversa que fluiu agradavelmente, como de costume, em meio a livros de arte. Cris estava na casa de Bia com o intuito de realizar um de seus trabalhos, denominado Troca de azulejos. Ela, a “propositora” (autodenominação), troca um azulejo da casa do “participador” (como ela mesma diz) por outro de cor azul, numa espécie de destruição criativa. A proposta de Cris coloca em movimento uma engrenagem que origina um campo afetivo em que a dimensão das palavras “artista” e “espectador” tornam-se sem importância. Bianca é amiga de Cristina, mas não precisaria sê-la pois, como a mesma descreve na premissa

Davi Ribeiro, Desejo um mundo melhor,

2008.

Cristina Ribas, Troca de azulejos, 2004-2008.

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de sua ação, a intervenção poderia ocorrer na casa de um desconhecido. Relacionar-se com o outro e com a casa (sagrada para aquele que abriga)

desse outro é um ponto essencial do trabalho; como artista e cidadã do mundo Cristina precisa de contato. Cris vai embora, mas a lembrança daqueles momentos não se perdem; no lar de Bia ela deixou sua marca permanentemente; felizmente.

Referências bibliográficasBACH, Christina. O Lugar Beuys. In: Gávea. Rio de Janeiro, 1996, nº 14, PUC-RJ. BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001.DANZIGER, Leila. Pintar = Queimar. In: Gávea. Rio de Janeiro, 1994, nº 12, PUC-RJ. FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.______. Clement Green Berg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002.GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em disputa - A arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac e Naify, 1998.

Notas1 Prof. Dr. Aldo Victório por e-mail.2 FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia. Clement Green Berg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001, p. 102. 3 HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 222.4 GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002, p. 1. 5 Em suas conferências Joseph Beuys afirmava que qualquer mudança/revolução deveria ser necessariamente iniciada na esfera das artes, cabendo ao artista realizar o processo de re-humanização do homem.6 GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002, p. 2. 7 Ibid., p. 3. 8 Ibid., p. 1.