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7/21/2019 Impasses Da Literatura Contemporânea http://slidepdf.com/reader/full/impasses-da-literatura-contemporanea 1/3 Impasses da literatura contemporânea - por Alcir Pécora Texto publicado no jornal "O Globo" no último sábado, 23, no caderno "Prosa & Verso".  Num debate recente com a crítica Beatriz Resende, organizado pelo Instituto Moreira Salles, expus minha impressão de que o campo literário se encontra hoe numa situa!ão de crise, obser"á"el pela relati"a perda da capacidade cultural da literatura de se mostrar rele"ante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidos com a cultura# como se alguma coisa se introduzisse nela $sem e"entos "iolentos% e a tornasse ino&ensi"a, dom'stica( )m "írus de irrele"*ncia, por assim dizer(  Não gostaria de de&ender uma tese cabal sobre a &raqueza atual da literatura, mas me agrada a ideia de explorar, tão &undo quanto possa, esse lugar de crise da expressão( +ento &ormular sucintamente a seguir, em di&erentes ordens de argumentos, alguns dos impasses que percebo na literatura contempor*nea( corre, hoe, uma impressionante expansão das narrati"as no cerne da pr-pria exist.ncia( /ntes mesmo de existir como e"ento, a a!ão á se apresenta como narrati"a, como ocorre nos realit0 sho1, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a a!ão que lhes cabe( corre tamb'm na multidão que &ala pelos blogs e pelas redes sociais, ou se monitoram pelos celulares, de modo que a a!ão ou a con"ersa ' sempre exibi!ão2narra!ão da con"ersa( 3 como se o mundo inteiro &osse "irtualidade narrati"a antes de ser exist.ncia particular, e principalmente como se todo mundo &osse interessante o bastante para ser "isto2lido( 4sse ' um dos pontos não negligenciá"eis que  parecem retirar a prioridade ou a exclusi"idade da narra!ão do narrador literário( 3 um  problema basicamente de in&la!ão simb-lica( 4scre"er literatura, para mim, entretanto, ' um gesto simb-lico que traz uma exig.ncia# a de ser de qualidade( 5iteratura mediana ' pior que literatura ruim, pois, mais do que esta, denuncia a &alta de talento e a &ri"olidade( / literatura decididamente ruim pode ser engra!ada, ter a gra!a do 6itsch, do trash, da par-dia mesmo in"oluntária e grosseira# pode ter a gra!a per"ersa do rebaixamento( 7á a literatura mediana não ser"e  para nada( 3 a nega!ão mesma da literatura, cua primeira exig.ncia ' a de se usti&icar $usti&icar a pr-pria presen!a% &ace aos outros obetos de cultura( 4 o que eles exigem ' que "oc. os supere, que se apresente como no"o ou não d. as caras por lá( 8azer a li!ão de casa do o&ício de escritor, ser es&or!ado, tampouco basta, como não basta ter "ontade de &azer( Não adianta ser apenas um trabalhador, pois não se trata de adquirir direitos trabalhistas( 4stou tentando dizer que escre"er ' muito competiti"o( Boris 9ro0s &ala muitíssimo bem do assunto( :oc. escre"e em língua portuguesa, então tem de se de&rontar com "i"os e mortos( ;om os contempor*neos e com :ieira, 9reg-rio, Machado, Rosa etc( Não há meio de não medir &or!as# a literatura exige a demonstra!ão de &or!a# não há como &azer apenas para participar( atual democratismo in&lacionário das representa!<es, que mencionei, tende a menosprezar o domínio t'cnico( =ara mim, ' um erro, desde que literatura, como toda arte, ' em primeiro lugar techn' , t'cnica, produ!ão obeti"a( Não basta ser conhecimento, tem de produzir o que não ', o que não há( Sem produ!ão, não há arte# não há nenhum outro "alor simb-lico, de representa!ão, que substitua o obeto( >e outra maneira, a literatura está no campo da composi!ão, em nenhum outro( Não há atitude, comportamento ou op!ão ideol-gica que permita saltar sobre os mecanismos da composi!ão( /cho o menosprezo da produ!ão obeti"a, em &a"or do "olume expressi"o e representati"o um grande atalho &alho da produ!ão contempor*nea( /ssim, para mim,

Impasses Da Literatura Contemporânea

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7/21/2019 Impasses Da Literatura Contemporânea

http://slidepdf.com/reader/full/impasses-da-literatura-contemporanea 1/3

Impasses da literatura contemporânea - por Alcir Pécora

Texto publicado no jornal "O Globo" no último sábado, 23, no caderno "Prosa

& Verso".

 Num debate recente com a crítica Beatriz Resende, organizado pelo InstitutoMoreira Salles, expus minha impressão de que o campo literário se encontra hoe numasitua!ão de crise, obser"á"el pela relati"a perda da capacidade cultural da literatura dese mostrar rele"ante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidoscom a cultura# como se alguma coisa se introduzisse nela $sem e"entos "iolentos% e atornasse ino&ensi"a, dom'stica( )m "írus de irrele"*ncia, por assim dizer(

 Não gostaria de de&ender uma tese cabal sobre a &raqueza atual da literatura, masme agrada a ideia de explorar, tão &undo quanto possa, esse lugar de crise da expressão(+ento &ormular sucintamente a seguir, em di&erentes ordens de argumentos, alguns dosimpasses que percebo na literatura contempor*nea(

corre, hoe, uma impressionante expansão das narrati"as no cerne da pr-priaexist.ncia( /ntes mesmo de existir como e"ento, a a!ão á se apresenta como narrati"a,como ocorre nos realit0 sho1, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narrama a!ão que lhes cabe( corre tamb'm na multidão que &ala pelos blogs e pelas redessociais, ou se monitoram pelos celulares, de modo que a a!ão ou a con"ersa ' sempreexibi!ão2narra!ão da con"ersa( 3 como se o mundo inteiro &osse "irtualidade narrati"aantes de ser exist.ncia particular, e principalmente como se todo mundo &osseinteressante o bastante para ser "isto2lido( 4sse ' um dos pontos não negligenciá"eis que

 parecem retirar a prioridade ou a exclusi"idade da narra!ão do narrador literário( 3 um problema basicamente de in&la!ão simb-lica(

4scre"er literatura, para mim, entretanto, ' um gesto simb-lico que traz umaexig.ncia# a de ser de qualidade( 5iteratura mediana ' pior que literatura ruim, pois,mais do que esta, denuncia a &alta de talento e a &ri"olidade( / literatura decididamenteruim pode ser engra!ada, ter a gra!a do 6itsch, do trash, da par-dia mesmo in"oluntáriae grosseira# pode ter a gra!a per"ersa do rebaixamento( 7á a literatura mediana não ser"e

 para nada( 3 a nega!ão mesma da literatura, cua primeira exig.ncia ' a de se usti&icar$usti&icar a pr-pria presen!a% &ace aos outros obetos de cultura( 4 o que eles exigem 'que "oc. os supere, que se apresente como no"o ou não d. as caras por lá(

8azer a li!ão de casa do o&ício de escritor, ser es&or!ado, tampouco basta, comonão basta ter "ontade de &azer( Não adianta ser apenas um trabalhador, pois não se tratade adquirir direitos trabalhistas( 4stou tentando dizer que escre"er ' muito competiti"o(

Boris 9ro0s &ala muitíssimo bem do assunto( :oc. escre"e em língua portuguesa, entãotem de se de&rontar com "i"os e mortos( ;om os contempor*neos e com :ieira,9reg-rio, Machado, Rosa etc( Não há meio de não medir &or!as# a literatura exige ademonstra!ão de &or!a# não há como &azer apenas para participar(

atual democratismo in&lacionário das representa!<es, que mencionei, tende amenosprezar o domínio t'cnico( =ara mim, ' um erro, desde que literatura, como todaarte, ' em primeiro lugar techn' , t'cnica, produ!ão obeti"a( Não basta serconhecimento, tem de produzir o que não ', o que não há( Sem produ!ão, não há arte#não há nenhum outro "alor simb-lico, de representa!ão, que substitua o obeto( >e outramaneira, a literatura está no campo da composi!ão, em nenhum outro( Não há atitude,comportamento ou op!ão ideol-gica que permita saltar sobre os mecanismos da

composi!ão( /cho o menosprezo da produ!ão obeti"a, em &a"or do "olume expressi"oe representati"o um grande atalho &alho da produ!ão contempor*nea( /ssim, para mim,

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rigor t'cnico signi&ica a radicalidade construída dentro do discurso( /titude resol"e o problema do roqueiro, não resol"e a questão da literatura(

corre certo triun&alismo da produ!ão contempor*nea, que en&aticamente senega a pensar seus impasses, ou enxerga neles apenas má "ontade gratuita, tiraniaacad.mica ou conser"adorismo crítico( /cho que essa recusa de sequer considerar a

ideia de impasse tem qualquer coisa de cegueira deliberada( 3 como se o presente seabsolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para a sua produ!ão( No entanto, a condi!ão da crítica e da cria!ão ' ustamente are&er.ncia a um tempo que não ' exclusi"amente o do presente, mas o tempo de longadura!ão da obra da arte( 5iteratura pode ser descrita como o que resiste ?s disputasexclusi"as do presente para existir como problema por muito tempo( 4la não tem comose &ingir de rec'm@nascida, li"re para não ter mem-ria e amar integralmente a si pr-priacomo in"en!ão de grau zero( =erdida a no!ão de heran!a cultural, perde@se a de crítica,de autocrítica e naturalmente a de cria!ão(

)ma "ariante desse argumento ' o seguinte# uma parte dessa cenacontempor*nea de crise existe por não ha"er qualquer disposi!ão para a crise( Auem

critica parece um "ilão, um estraga@prazer, um intrometido( Auem critica as obras, aindamais se &az isso com argumentos insistentes, tem qualquer coisa de indecente, deimpr-prio( Mas, por "ezes, a insist.ncia chata ' &undamental para pensar um poucomelhor( Não se "ai muito longe com um discurso que não admite contradit-rio, com umdiscurso de anima!ão de parceiros( Mesmo em casos de parceria, sem algumadisposi!ão para encarar a desa&ina!ão, não se "ai longe# nessas condi!<es, não háorquestra capaz de descon&iar de si mesma e exigir mais de seus membros( 4spanta,

 pois, "er a intoler*ncia para a crítica, como se &osse alguma trai!ão pessoal( >e onde"em essa ideia de parentesco traído =essoalmente, não "eo por que o crítico tem de ser animador, parceiro, di"ulgador ou chancela do escritor( 4le tem de apontar problemasno obeto, pois são problemas do obeto o interesse principal da arte, como da literatura(

4m termos de experi.ncia pessoal de leitura, quase sempre $nem sempre, masquase sempre% acho mais prazer textual, literário, em ler te-ricos do que, por exemplo,&iccionistas ou poetas contempor*neos( u, de outra &orma, a crise contempor*nea me

 parece mais patente nos textos críticos dos que nos de &ic!ão e de poesia( /cho que oque está acontecendo ' muito mais do que uma crise de bons autores# ' como se aliteratura, entendida como &iccionaliza!ão autCnoma, esti"esse es"aziada( =oucosautores de literatura contempor*nea me dão mais "ontade de ler como te-ricos tãodi&erentes entre si como Rort0, >a"idson, ;a"ell, /gamben, Renato Barilli, =erniola,Sloterdi6, 7onathan 5ear, Blanchot, Magris, Martha Nussbaum, Boris 9ro0s((( Dá muitagente interessante pensando o contempor*neo e pensando literatura( 8ico imaginando se

essa não será uma &orma de literatura dis&ar!ada( )ma no"a máscara da literatura(Mas por que esse menor poder literário dos autores &ace aos te-ricos Issoaparece para mim como uma e"id.ncia, digamos, sentimental, a&eti"a, mas as suasraz<es não são claras( Mesmo em termos de domínio t'cnico de língua, entre os quecitei @, as in"en!<es linguísticas de Rort0, com suas "iolentas trocas de "ocabulário, ouas situa!<es@limite da Eteoria de passagemE, em >onald >a"idson, por exemplo @, me

 parecem mais radicais como in"en!ão &iccional do que a narrati"a dos tantos escritoresmais ou menos con&ormados no esquema da prosa realista do s'culo FIF(

/ grande conquista da literatura do s'culo FIF &oi a sua autonomia &iccional,que se traduz basicamente por se tornar simbolicamente representati"a do mundo ouexpressi"a do sueito psicol-gico que a constitui( Auer dizer, restri!ão do *mbito t'cnico

da imita!ão e hipersimboliza!ão do real ou da subeti"idade deram aos &iccionistas o seuestatuto contempor*neo( Neste início de s'culo FFI, o processo se ampli&icou

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"ertiginosamente# a identidade psicol-gica original em sua rela!ão com o mundo hostilda mercadoria e não a distin!ão da pr-pria in"en!ão, enquanto in"en!ão engenhosa,

 pretende ser a &onte da quali&ica!ão autoral( Será que dá para ser assim Auem aindaacredita em representati"idade, &ora da discussão dos pr-prios crit'rios derepresenta!ão Auem ura ainda pela in"en!ão da narrati"a &ora da constru!ão de uma

metalinguagem que coloque seus &undamentos sob crítica ;ontar hist-rias, en&im,cansou 4 poesia contempor*nea, por que ' quase sempre 6itsch Aualquersubeti"idade pode ser um direito, mas parece igualmente expressão de banalidade(

+amb'm, quando algu'm diz que um autor ' representati"o, á não imagino boacoisa( 8osse bom, problematizaria a representa!ão, a identidade EnossaE, do EeuE, a

 pr-pria ideia de identidadeG nos obrigaria a retroceder para &ora de nossa experi.nciacomum( u mesmo nos expulsaria do po'tico, en"elheceria de um golpe os lugarescomuns da in"en!ão( 4le teria complicado o mundo representado, e destruído asubeti"idade expressa( Mas quem está &azendo isso /&ora alguns poucos &iccionistas e

 poetas importantes, acho que outros estão &azendo essa bagun!a melhor do que eles(4n&im, são palpites que partilho aqui, não uma tese( Não quero ad"ogar qualquer 

&im da literatura, mas não quero me poupar de discutir a sua rele"*ncia e pertin.ncia nocontempor*neo( / minha esperan!a ' que a exposi!ão crítica, a rudeza do trato o chãoduro da &ric!ão, como dizia Hittgenstein aude a coisa a andar(