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Impasses da literatura contemporânea - por Alcir Pécora

Texto publicado no jornal "O Globo" no último sábado, 23, no caderno "Prosa

& Verso".

 Num debate recente com a crítica Beatriz Resende, organizado pelo InstitutoMoreira Salles, expus minha impressão de que o campo literário se encontra hoe numasitua!ão de crise, obser"á"el pela relati"a perda da capacidade cultural da literatura dese mostrar rele"ante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidoscom a cultura# como se alguma coisa se introduzisse nela $sem e"entos "iolentos% e atornasse ino&ensi"a, dom'stica( )m "írus de irrele"*ncia, por assim dizer(

 Não gostaria de de&ender uma tese cabal sobre a &raqueza atual da literatura, masme agrada a ideia de explorar, tão &undo quanto possa, esse lugar de crise da expressão(+ento &ormular sucintamente a seguir, em di&erentes ordens de argumentos, alguns dosimpasses que percebo na literatura contempor*nea(

corre, hoe, uma impressionante expansão das narrati"as no cerne da pr-priaexist.ncia( /ntes mesmo de existir como e"ento, a a!ão á se apresenta como narrati"a,como ocorre nos realit0 sho1, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narrama a!ão que lhes cabe( corre tamb'm na multidão que &ala pelos blogs e pelas redessociais, ou se monitoram pelos celulares, de modo que a a!ão ou a con"ersa ' sempreexibi!ão2narra!ão da con"ersa( 3 como se o mundo inteiro &osse "irtualidade narrati"aantes de ser exist.ncia particular, e principalmente como se todo mundo &osseinteressante o bastante para ser "isto2lido( 4sse ' um dos pontos não negligenciá"eis que

 parecem retirar a prioridade ou a exclusi"idade da narra!ão do narrador literário( 3 um problema basicamente de in&la!ão simb-lica(

4scre"er literatura, para mim, entretanto, ' um gesto simb-lico que traz umaexig.ncia# a de ser de qualidade( 5iteratura mediana ' pior que literatura ruim, pois,mais do que esta, denuncia a &alta de talento e a &ri"olidade( / literatura decididamenteruim pode ser engra!ada, ter a gra!a do 6itsch, do trash, da par-dia mesmo in"oluntáriae grosseira# pode ter a gra!a per"ersa do rebaixamento( 7á a literatura mediana não ser"e

 para nada( 3 a nega!ão mesma da literatura, cua primeira exig.ncia ' a de se usti&icar$usti&icar a pr-pria presen!a% &ace aos outros obetos de cultura( 4 o que eles exigem 'que "oc. os supere, que se apresente como no"o ou não d. as caras por lá(

8azer a li!ão de casa do o&ício de escritor, ser es&or!ado, tampouco basta, comonão basta ter "ontade de &azer( Não adianta ser apenas um trabalhador, pois não se tratade adquirir direitos trabalhistas( 4stou tentando dizer que escre"er ' muito competiti"o(

Boris 9ro0s &ala muitíssimo bem do assunto( :oc. escre"e em língua portuguesa, entãotem de se de&rontar com "i"os e mortos( ;om os contempor*neos e com :ieira,9reg-rio, Machado, Rosa etc( Não há meio de não medir &or!as# a literatura exige ademonstra!ão de &or!a# não há como &azer apenas para participar(

atual democratismo in&lacionário das representa!<es, que mencionei, tende amenosprezar o domínio t'cnico( =ara mim, ' um erro, desde que literatura, como todaarte, ' em primeiro lugar techn' , t'cnica, produ!ão obeti"a( Não basta serconhecimento, tem de produzir o que não ', o que não há( Sem produ!ão, não há arte#não há nenhum outro "alor simb-lico, de representa!ão, que substitua o obeto( >e outramaneira, a literatura está no campo da composi!ão, em nenhum outro( Não há atitude,comportamento ou op!ão ideol-gica que permita saltar sobre os mecanismos da

composi!ão( /cho o menosprezo da produ!ão obeti"a, em &a"or do "olume expressi"oe representati"o um grande atalho &alho da produ!ão contempor*nea( /ssim, para mim,

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rigor t'cnico signi&ica a radicalidade construída dentro do discurso( /titude resol"e o problema do roqueiro, não resol"e a questão da literatura(

corre certo triun&alismo da produ!ão contempor*nea, que en&aticamente senega a pensar seus impasses, ou enxerga neles apenas má "ontade gratuita, tiraniaacad.mica ou conser"adorismo crítico( /cho que essa recusa de sequer considerar a

ideia de impasse tem qualquer coisa de cegueira deliberada( 3 como se o presente seabsolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para a sua produ!ão( No entanto, a condi!ão da crítica e da cria!ão ' ustamente are&er.ncia a um tempo que não ' exclusi"amente o do presente, mas o tempo de longadura!ão da obra da arte( 5iteratura pode ser descrita como o que resiste ?s disputasexclusi"as do presente para existir como problema por muito tempo( 4la não tem comose &ingir de rec'm@nascida, li"re para não ter mem-ria e amar integralmente a si pr-priacomo in"en!ão de grau zero( =erdida a no!ão de heran!a cultural, perde@se a de crítica,de autocrítica e naturalmente a de cria!ão(

)ma "ariante desse argumento ' o seguinte# uma parte dessa cenacontempor*nea de crise existe por não ha"er qualquer disposi!ão para a crise( Auem

critica parece um "ilão, um estraga@prazer, um intrometido( Auem critica as obras, aindamais se &az isso com argumentos insistentes, tem qualquer coisa de indecente, deimpr-prio( Mas, por "ezes, a insist.ncia chata ' &undamental para pensar um poucomelhor( Não se "ai muito longe com um discurso que não admite contradit-rio, com umdiscurso de anima!ão de parceiros( Mesmo em casos de parceria, sem algumadisposi!ão para encarar a desa&ina!ão, não se "ai longe# nessas condi!<es, não háorquestra capaz de descon&iar de si mesma e exigir mais de seus membros( 4spanta,

 pois, "er a intoler*ncia para a crítica, como se &osse alguma trai!ão pessoal( >e onde"em essa ideia de parentesco traído =essoalmente, não "eo por que o crítico tem de ser animador, parceiro, di"ulgador ou chancela do escritor( 4le tem de apontar problemasno obeto, pois são problemas do obeto o interesse principal da arte, como da literatura(

4m termos de experi.ncia pessoal de leitura, quase sempre $nem sempre, masquase sempre% acho mais prazer textual, literário, em ler te-ricos do que, por exemplo,&iccionistas ou poetas contempor*neos( u, de outra &orma, a crise contempor*nea me

 parece mais patente nos textos críticos dos que nos de &ic!ão e de poesia( /cho que oque está acontecendo ' muito mais do que uma crise de bons autores# ' como se aliteratura, entendida como &iccionaliza!ão autCnoma, esti"esse es"aziada( =oucosautores de literatura contempor*nea me dão mais "ontade de ler como te-ricos tãodi&erentes entre si como Rort0, >a"idson, ;a"ell, /gamben, Renato Barilli, =erniola,Sloterdi6, 7onathan 5ear, Blanchot, Magris, Martha Nussbaum, Boris 9ro0s((( Dá muitagente interessante pensando o contempor*neo e pensando literatura( 8ico imaginando se

essa não será uma &orma de literatura dis&ar!ada( )ma no"a máscara da literatura(Mas por que esse menor poder literário dos autores &ace aos te-ricos Issoaparece para mim como uma e"id.ncia, digamos, sentimental, a&eti"a, mas as suasraz<es não são claras( Mesmo em termos de domínio t'cnico de língua, entre os quecitei @, as in"en!<es linguísticas de Rort0, com suas "iolentas trocas de "ocabulário, ouas situa!<es@limite da Eteoria de passagemE, em >onald >a"idson, por exemplo @, me

 parecem mais radicais como in"en!ão &iccional do que a narrati"a dos tantos escritoresmais ou menos con&ormados no esquema da prosa realista do s'culo FIF(

/ grande conquista da literatura do s'culo FIF &oi a sua autonomia &iccional,que se traduz basicamente por se tornar simbolicamente representati"a do mundo ouexpressi"a do sueito psicol-gico que a constitui( Auer dizer, restri!ão do *mbito t'cnico

da imita!ão e hipersimboliza!ão do real ou da subeti"idade deram aos &iccionistas o seuestatuto contempor*neo( Neste início de s'culo FFI, o processo se ampli&icou

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"ertiginosamente# a identidade psicol-gica original em sua rela!ão com o mundo hostilda mercadoria e não a distin!ão da pr-pria in"en!ão, enquanto in"en!ão engenhosa,

 pretende ser a &onte da quali&ica!ão autoral( Será que dá para ser assim Auem aindaacredita em representati"idade, &ora da discussão dos pr-prios crit'rios derepresenta!ão Auem ura ainda pela in"en!ão da narrati"a &ora da constru!ão de uma

metalinguagem que coloque seus &undamentos sob crítica ;ontar hist-rias, en&im,cansou 4 poesia contempor*nea, por que ' quase sempre 6itsch Aualquersubeti"idade pode ser um direito, mas parece igualmente expressão de banalidade(

+amb'm, quando algu'm diz que um autor ' representati"o, á não imagino boacoisa( 8osse bom, problematizaria a representa!ão, a identidade EnossaE, do EeuE, a

 pr-pria ideia de identidadeG nos obrigaria a retroceder para &ora de nossa experi.nciacomum( u mesmo nos expulsaria do po'tico, en"elheceria de um golpe os lugarescomuns da in"en!ão( 4le teria complicado o mundo representado, e destruído asubeti"idade expressa( Mas quem está &azendo isso /&ora alguns poucos &iccionistas e

 poetas importantes, acho que outros estão &azendo essa bagun!a melhor do que eles(4n&im, são palpites que partilho aqui, não uma tese( Não quero ad"ogar qualquer 

&im da literatura, mas não quero me poupar de discutir a sua rele"*ncia e pertin.ncia nocontempor*neo( / minha esperan!a ' que a exposi!ão crítica, a rudeza do trato o chãoduro da &ric!ão, como dizia Hittgenstein aude a coisa a andar(


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