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Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A. Av. António José de Almeida 1000-042 Lisboa www.incm.pt www.facebook.com/INCM.Livros [email protected] © Idalina Maia e Imprensa Nacional-Casa da Moeda Título: O Problema do Conhecimento em Francisco Sanches Autor: Idalina Maia Design de capa: Silvadesigners Livro composto em: Futura BT e Adobe Caslon Pro Impresso em: Chromocard (capa), Coral Book Ivory (miolo) Impressão e acabamento: INCM Concepção gráfica: INCM Revisão: Ana Isabel José Tiragem: 1000 exemplares 1.ª edição: Julho de 2013 ISBN: 978-972-27-2170-7 Depósito legal: 356 022/13 Edição n.º 1019435

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A. Av. António José de ... · O que se entende por empirismo sensorial e por racionalismo ... O que é o conhecimento para Sanches e qual o papel

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www.incm.ptwww.facebook.com/[email protected]

© Idalina Maia e Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Título: O Problema do Conhecimento em Francisco SanchesAutor: Idalina MaiaDesign de capa: SilvadesignersLivro composto em: Futura BT e Adobe Caslon ProImpresso em: Chromocard (capa), Coral Book Ivory (miolo)Impressão e acabamento: INCMConcepção gráfica: INCMRevisão: Ana Isabel JoséTiragem: 1000 exemplares1.ª edição: Julho de 2013ISBN: 978-972-27-2170-7Depósito legal: 356 022/13Edição n.º 1019435

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Índice

11 Agradecimentos

13 Introdução

4� Capítulo I — Sanches — Vida e obra

55 CapítuloII—Aabordagemsanchesianadopro-blema do conhecimento

55 1.O temadoconhecimentoeapossibilidadedeassunçãodediversas perspectivas

59 2. Onde e porquê se fazem sentir as críticas de FranciscoSanches

60 3. As críticas dirigidas por Sanches aos modelos aristotélicosde ciência

66 4. A crítica sanchesiana do modelo platónico de saber68 5. A importância desta fase «desconstrucionista» no quadro

da filosofia do conhecimento de Sanches�3 6. A importância da Dúvida no âmbito desta fase descons-

trucionistaenaantevisãodosprocedimentosnecessáriosparaa edificação de um novo saber

�9 �.Afase construtivada tematizaçãosanchesiana:a importân-cia dos sentidos e da razão na percepção da realidade e naconstrução de um conhecimento «relativo»

85 8. Que indícios nos levam a associar as posições de Sanchesao movimento nominalista?

89 9. A importância da experiência no âmbito do pensamento(nominalista) de Sanches

90 10. A noção de experiência no renascimento português93 11.Oqueseentendeporempirismo sensorialeporracionalismo

experiencial94 12. A posição de Sanches no quadro do experiencialismo: o

papel dos sentidos e da razão96 13.OqueéoconhecimentoparaSanchesequalopapelque

nele desempenham a experiência e a razão101 14. Os três elementos que caracterizam o processo cognitivo

segundo a perspectiva de Sanches101 14.1. O sujeito cognoscente106 14.2. A coisa conhecida10� 14.3. Conhecimento

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108 15.Consequências/leiturasantropológicasdapropostafilosóficade Sanches

114 16. A importância da matemática (geometria) na filosofia deSanches

118 16.1. A importância da segunda carta-consulta a CristóvãoClávio para o desenvolvimento do pensamento matemáticode Francisco Sanches

12� Capítulo III — A natureza em Sanches

12� 1. A complexidade do tema da natureza; a natureza comoobjecto privilegiado de discussão

140 2. O papel da natureza no quadro da posição epistemológicade Sanches

143 3. A relação entre o homem e a natureza149 4.A importânciadeDeusnoquadroda filosofiadanatureza

de Sanches

153 Capítulo IV — A pedagogia em Francisco Sanches

153 1. A influência da escola na Idade Média. Sabedoria vs. Elo-quência: o conflito entre filosofia e retórica

166 2.As linhasmestrasquesubjazemaoproblemadapedagogiaem Francisco Sanches

168 3. Os grandes obstáculos a uma pedagogia ideal168 3.1. A f initude dos recursos humanos e a incompetência no

ensino1�0 3.2. A proliferação das escolas filosóficas; seus efeitos1�1 3.3. A necessidade de um bom método em pedagogia; sua

relação com o problema do conhecimento1�3 4.Oconhecimentoeaverdadecomoosobjectivosporexcelência

da pedagogia1�4 5. Dizer bem vs. Dizer a verdade; o papel das palavras no

discurso verdadeiro

1�9 CapítuloV—Sanches,precursordamodernidade

195 Conclusão

199 Bibliografia

199 1. Obras de Francisco Sanches200 2. Bibliografia consultada sobre Francisco Sanches201 3. Bibliografia geral

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Aos meus pais, ao Urbano, por tudo…

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Agradecimentos

Este ensaio é uma edição revista da minha dissertação demestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade deLisboa para a obtenção do grau de mestre em Filosofia.

Renovo,nestemomento,oagradecimentoaoProf.DoutorPedroCalafate, que nos prestou uma ajuda preciosa na condução dotrabalho que ora culmina nesta publicação.

Fica também o agradecimento à Fundação para a Ciência ea Tecnologia e ao FSE pelo imprescindível apoio financeiro quenos foiprestadoaoabrigodo IIIQuadroComunitáriodeApoio.

Por último, é tempo de agradecer aos meus pais, Dulce eJoaquim Maia, e ao meu marido Urbano. A respeito destas trêspessoas, tudo quanto possa dizer será muito pouco, dada a aten-ção, a ajuda, o carinho e o apoio que sempre me manifestaram.Agradeço-lhes, pois, de forma singela, o facto de estarem sempreameu lado edeo fazeremcomoparte integrantedaminhavida.A eles, o meu enorme obrigada.

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Introdução

ORenascimentoé,atodosostítulos,umconceitomuitoamplo,o que impede que se encontre uma designação unívoca capaz deexprimir toda a diversidade que precisamente define o períodorenascentista1.Essadiversidadedevetodaviaserencaradacomoum

1 ArespeitodestadificuldadeemdefiniroRenascimentoemtermossimples,dizWilliamWallace: «Thediversityof sources fromwhich it sprang […]argueagainst itseverhavingbeenamonolithicsystemofthought[…],hardlycapableof being characterised in simple terms.» (William Wallace, «Traditional Natu-ral Philosophy», in The Cambridge History of Renaissance Philosophy, CambridgeUniversity Press, p. 201.) Embora Wallace se estivesse a referir concretamenteà filosofia natural do Renascimento, julgamos que esta descrição se ajusta bemao conjunto de todo o movimento renascentista.Também Paul O. Kristeller serefere à complexidade do termo «Renascimento»: «O termo Renascimento foicausademuitasdiscussões e controvérsias, e tem sidodefinidodemodosmuitovariados.» Sem pretender participar neste complexo debate, Kristeller não dei-xará de referir que para si o termo Renascimento significa aquele período dahistória ocidental que vai desde 1300 ou 1350 a 1650. Entretanto, ao reflectirsobre os motivos que estão na origem da supra-referida controvérsia em tornodo significado deste conceito de Renascimento, o autor dirá: «The controversiesconcerning the meaning of this period in Western history are partly due tonational, religious, and professional ideals and preferences that have influencedthe judgment of historians, and partly to the great complexity and diversitythat belongs to the period itself and which will necessarily be reflected in theaccountsofmodernhistorians,dependinguponthoseaspectswhichtheychoosetoemphasize.»(PaulOskarKristeller,Renaissance Thought and its Sources,editadoporMichaelMooney,NovaIorque,ColumbiaUniversityPress,19�9,p.106.)Masháaindaoutrosfactoresque,segundoKristeller,permitemcompreendermelhorarazãode serdadiversidadeque caracteriza esteperíodo: «Evenwithin the sametime and geographical area, different subjects and professions do not present a

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capital importantedoRenascimento,comoumfactordedistinçãoque merece ser realçado, e não tanto como uma debilidade queo fragiliza. É de resto nessa perspectiva que devemos enquadrara diversidadede posições que coexistemno período renascentista,inclusive como veremos um certo revivalismo do platonismo (emautorescomoNicolaudeCusa,MarsilioFicinoePico)edopróprioaristotelismo(comoPietroPomponazziouZabarella).Daítambémque não se possa dizer, embora pareça tentador fazê-lo2, que oRenascimentoéumaépocaderupturacomtudoaquiloquevinhadaIdadeMédia.Emborapareçaparadoxal,umadascaracterísticasmais constantes do Renascimento é precisamente uma mudançapermanenteeumatransformaçãocontínuadeposições,oquenãoobstatodaviaaquesepossasurpreenderalgunsimportantestraçosdecontinuidadecomaIdadeMédia3.Semissodificilmentecom-preenderemos a coexistência de perspectivas múltiplas que tantasvezesparecem inconciliáveis.Masda relaçãoentrea IdadeMédiae o Renascimento falaremos mais adiante em maior detalhe.

Entretanto, um dos aspectos que contribuíram decisivamentepara esta diversidade que define o período renascentista é clara-menteomovimentohumanista.«Ohumanismofoiumdostraços

homogeneous picture. We do not find, and we cannot expect to find a paralleldevelopment in political and economic history, in theology, philosophy, and thesciences, in literature and the arts. In the Renaissance, just as in our own timeor at any other time, we must be prepared to encounter a number of crosscur-rents and conflicting currents even within the same place and time and subjectmatter.» (Paul Oskar Kristeller, ibidem, p. 10�.)

2 «At one time it was fashionable to propose a sharp dichotomy betweenthephilosophyof theMiddleAgesandthatof theRenaissance,as thoughtheirsubjects of interest and methods were markedly different.» (Ibidem, p. 202.)

3 Até porque não é só o Renascimento que é palco das grandes convulsões.A própria Idade Média (principalmente na fase tardia do período medieval)assistiu igualmente a um período de grandes transformações, muitas das quaisterão continuidade no Renascimento. Referindo-se precisamente a esta evoluçãoporventura tão complexa quanto aquela que marcou o Renascimento, escreveKristeller: «Moreover, differences, for example, between the period of the bar-baric invasions, the Carolingian age, and the twelfth or thirteenth century mayseem even greater than those between the fourteenth and sixteenth centuries;and in the thirteenthcentury, after the riseof theuniversities, the specializationof learning and the diverse development of different sectors of civilization wasas great, or nearly as great, as during the Renaissance.» (Paul Oskar Kristeller,ibidem, p. 10�.)

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maisdifusosdoRenascimento,eafectoudeformamaisoumenosprofunda todos os aspectos da cultura da época incluindo o seupensamento e filosofia.»4 Embora pareça tratar-se de uma «novi-dade» deste período, Paul Oskar Kristeller considera tratar-sede uma designação que é recuperada de um termo ainda maisantigo, o de studia humanitatis, utilizado por autores tão longín-quos como Cícero para definir um programa para uma educaçãoeminentemente literária. E manterá esse cunho de um programaintelectual e literário pelo menos até ao século xv. É ainda estacaracterística que levará autores como Kristeller a afirmar que ohumanismoémaisummovimentoliterárioenãotantoumsistemafilosófico, embora o próprio reconheça não só que o humanismoinfluencioude certa formaa filosofia (sempredeumaperspectivaexternaàprópriafilosofia)mastambémqueelepróprio,enquantomovimento, contemplava disciplinas filosóficas como a ética e amoral (regressaremos a este tópico mais adiante). Diz Kristeller:«O humanismo tem o seu domínio próprio ou um território seunashumanidades,enquantotodasasoutrasáreasdaaprendizagem,incluindoa filosofia (àexcepçãodaética), seguiramo seuprópriocurso[…]Essasdisciplinasforamafectadaspelohumanismofun-damentalmente a partir de fora e de uma forma indirecta […]»5Começaaqui a configurar-seumacisão entredisciplinas literárias(gramática,retórica)efilosofia.Deumaformabreve,podedizer-seque essa oposição ganhará contornos mais concretos justamenteface à insistência dos humanistas do século xv em «absolutizar»a retórica, emdetrimento justamenteda filosofia.Do ladoopostopoderá surpreender-se, principalmente a partir do século xvi, areacção daqueles que criticarão o ideal ciceroniano de eloquênciaque preside à tal tentativa de absolutização da retórica, numareacção que constitui precisamente uma das manifestações mais

4 «Humanism was one of the most pervasive though traits of the Renais-sance, and it affected more or less deeply all aspects of the culture of the timeincluding its thought and philosophy.» (Paul Oskar Kristeller, «Humanism», in The Cambridge History of Renaissance Philosophy, Cambridge University Press,p.113; itálico nosso.)

5 «Humanism has its proper domain or home territory in the humanities,whereas all other areas of learning, including philosophy (apart from ethics),followed their own course […] These disciplines were affected by humanismmainly from the outside and in an indirect way […]» (Ibidem, p. 114.)

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comuns do platonismo renascentista, que oferecia não apenasuma alternativa à escolástica, severamente criticada neste período,mas que continha ainda um manancial de argumentos contráriosàs pretensões da retórica, que em certos pontos serão reeditadospelos humanistas a partir do século xvi. Entretanto, seria preci-samente esta importância atribuída àsquestõesde linguagem,porum lado,eà recuperaçãodosclássicos,poroutro,queestariamnabase da crítica humanista à escolástica: a pouca relevância confe-rida às questões de eloquência e o desconhecimento dos grandesmodelos clássicos serão dois dos principais argumentos que serãoapontadospelohumanismo renascentista contra a escolástica e osfilósofos escolásticos. Porém, a linha divisória entre Idade Médiae humanismo renascentista que aqui se parece ter estabelecidodeve ser de alguma forma relativizada. Com efeito, seria um errosustentarqueoestudodaliteraturaclássicafoiesquecidocomoumtodo durante a Idade Média, da mesma forma que seria incorrerem erro se não reconhecêssemos que o património da literaturalatina foiclaramenteampliadoemconsequênciaprecisamentedosdescobrimentoshumanistasedasuaintensaactividadeintelectual.Reforçando precisamente a importância dos humanistas para aapreciável ampliação em termos de conhecimento dos clássicos,Kristellerafirma:«Oprofundo interessena literaturaclássicaenahistória que era comum a todos os humanistas não se exprimiaapenasnassuasactividadesenquantocopistaseeditores.Antesqueum texto possa ser copiado ou editado, era necessário localizá-looudescobri-lo[…]AprocuradevelhosmanuscritosdosclássicosLatinos por toda a Europa era uma das preocupações preferidasdemuitosdestacadoshumanistas […]Eles […]encontraramnãoapenasmanuscritosdeconhecidosescritoresclássicosmaisvelhos,melhores ou mais completos, mas descobriram ainda escritos quenão eram bem conhecidos ou lidos durante os séculos medievaisprecedentes.»6 Para além destas importantes actividades de filo-

6 «The deep interest in classical literature and history which was commonto all humanists was not only expressed in their activity as copyists and edi-tors. Before a text could be copied or edited, it had to be located or discovered[…] The search for old manuscripts of the Latin classics all over Europe wasa favourite concern of many leading humanists; […]They […] found not onlyolder, better, or more complete manuscripts of known classical writers, but also

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logistas,decopistaseeditores,oshumanistasproduziramtambémum vastíssimo corpo de comentários sobre autores latinos, quedecorria da sua actividade enquanto pedagogos e educadores�.Aimportância da sua actividade de tradutores deve igualmenteserrealçada.Comatraduçãopara latimdequasetodaa literaturagrega então conhecida8, os humanistas permitiram que se gene-ralizasse o conhecimento dessas obras, com benefícios óbvios emtermos da aprendizagem, que não apenas era agora mais difusa(quer dizer, já não se dedicava exclusivamente a um auditório deespecialistas), como mais diversificada, permitindo definir novasmetas e rasgar novos horizontes.

Dosautoresantigos,umdosquemaisforamadmiradosesegui-dospeloshumanistasfoiCícero.ComotambémreconheceKristeller,ohumanismorenascentistarepresentauma«épocadeciceronismo»,marcada por um interesse generalizado pelo estudo e imitaçãode Cícero. Os seus discursos, cartas e diálogos eram tidos comomodelos a seguir nas mais diversificadas áreas do saber; a aliançaentre retórica e filosofia defendida por Cícero constituirá para oshumanistas,emespecialosdoséculoxv,um idealqueprocurarão

discovered additional authors orwritings thathadnotbeenwell knownor readduring the preceding medieval centuries.» (Ibidem, p. 119.)

� Kristeller admite que para a produção desse conjunto literário tenhamtambémcontribuídoos gramáticosmedievais, embora esteja por apurar a exactaproporção dessa contribuição e a sua importância, mas não há dúvidas de queela assinala mais um elo de ligação entre Idade Média e humanismo renascen-tista.Alémdisso, refereKristeller, noOrienteBizantino,nodecursodos séculosmedievais, há registos de que também se estudaram os clássicos gregos, que decerta forma terão influenciado os humanistas (que, como se sabe, introduziramoestudodogregonasuniversidades), embora seja igualmentedifícil avaliar comprecisão o alcancedessa influência.Em todoo caso, fica assinalado outropontode intersecção entre Idade Média e Renascimento. Cf. Paul Oskar Kristeller,«Humanism», in The Cambridge History of Renaissance Philosophy, CambridgeUniversity Press.

8 «During the fifteenth and sixteenth centuries, the humanists translatedinto Latin practically all classical Greek authors then available, some of themmore than once, and many for the first time, as well as making new trans-lations of those texts that had been available in medieval Latin translations.These translations introduced for the first time practically all of Greek poetry,oratory and historiography as well as sizeable proportion of Greek writings onmathematics, geography, medicine and botany, and also Greek patristic litera-ture.» (Ibidem, p. 120.)

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pôr em prática por todos os meios e que será consubstanciadonuma versão em tudo idêntica à de Cícero, a saber, a da sínteseentre sabedoria e eloquência. Tratar-se-á de um debate intensoque ocupará os grandes autores dos séculos xv e xvi, sendo quenumaparteestãoaquelesparaquemasimpleseloquênciabastava,com o argumento de que a eloquência serve melhor o propósitode obtenção da verdade que a própria dialéctica e que, portanto,a sabedoria seria ela própria indissociável da eloquência; do ladocontrárioestãoaqueles,comoGiovanniPicodellaMirandola,quenão aceitam esta primazia concedida à eloquência e à retórica equepretendemmostrarquea retóricaéapenasumacessóriocujofim se esgota no adornamento do discurso e que, no limite, podeaté ser dispensado. Para que uma teoria seja válida, importante éavaliar o seu conteúdo, e não tanto a sua forma. Encontraremosresquíciosclarosdesta tomadadeposiçãocontraaautonomizaçãodo pleno formal ou retórico em Francisco Sanches. Como vere-mos em maior detalhe, Sanches associa a retórica à função do«bem dizer», o que por si só já representa um desvio face àquiloque verdadeiramente pretende, que é o «dizer com verdade»; orase para além disso transformarmos este «dizer bem» na primeiradas nossas prioridades, ou se elegermos a forma em prejuízo doconteúdodaquiloquesediz,entãoaretóricaassume-secomoumobstáculo à clareza e simplicidadeque são exigidasnaprocurado«dizer com verdade», sendo que é esse objectivo, e nenhum outrofim acessório, que nos deve mobilizar.

Outro contributo importante do humanismo para o enrique-cimento da própria época renascentista terá sido a importânciaconcedida ao homem, o destaque da sua centralidade e o lugarprivilegiado que ocupa no universo, assim como a sublimação dadignidade da sua condição. Apesar da coexistência de múltiplospontos de vista sobre o tema, nem sempre coincidentes mesmono contexto do próprio renascimento italiano, a centralidade dohomeméclaramenteummarcorenascentistaimportante9(embora

9 «The dignity of man became a favorite theme of Humanistic oratory andservedasthestarting-pointforthespeculativeideaofhumandignityweencounterin both Ficino and Pico.» (Ernst Cassirer, Paul Oskar Kristeller, John HermanRandall,The Renaissance Philosophy of Man,Chicago&London,TheUniversityof Chicago Press, 19�1, p. 19.)

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se possa dizer que essa «glorificação do homem» já existisse naliteratura grega), enfatizada por autores como Francesco Petrarca,Marsilio Ficino10, Pietro Pomponazzi e Pico11. Outros houve,porém, como Montaigne, que preferiram destacar a fraqueza doserhumanoouasituaçãomenosfavorávelemtermosdolugarqueocupam no universo. Apesar «de esta glorificação do homem tersidoumdos temas favoritosdaprimitiva literatura renascentista»,elaproduziu«duranteoséculoxviumaforte reacção».Essa reac-çãoébemevidente,comodissemos,emautorescomoMontaigne:«[…]MontaigneusouhabilidosamentetodaaliteraturaetodososmecanismosintelectuaisdoHumanismoitalianopararidicularizaressaglorificaçãoeparaatornarnoseuoposto.»12OpróprioFran-ciscoSanchespareceapontarnessesentido,aochamaràcolaçãoafraquezacaracterísticadossereshumanos,quesetraduzdesignada-mentenoseudesempenhoemtermosdeconhecimento.Emtodoo caso, ao mesmo tempo que destaca essa fragilidade constitutivadoshomens,Sanchesparecesimultaneamentefazerumapeloparaqueo reconhecimentodessa fragilidade se convertapositivamentena assunção de maiores responsabilidades por parte dos homens

10 Notextosupra-referidopodemosencontrarumaboasúmuladaspropostasdeFicinoquantoao lugarqueconsideradevidoaoshomens:«Ficinoemphasizesman’s skill in the arts and his universality; he assigns to the human soul thecentral place in the hierarchy of the universities.» (Ibidem.)

11 Ainda relativamente a este enaltecimento dos homens, Pico apresenta-seigualmente um marco importante nesse sentido: «Pico goes one step further inadding to man’s universality his liberty and in making of man a separate worldoutside the hierarchy in which all other beings have a fixed place.» (Ibidem.)Eugenio Garin comenta também a centralidade conferida por estes autores aohomem.Referindo-seconcretamenteaPico,afirmaGarin:«GiovanniPicodeter-mina commuitaprecisãoo alcance subversivodanova imagemdohomem,quefazia consistir precisamente na sua independência de todas as espécies e formaspré-determinadas, quase assomado para além do mundo das formas, senhor nãosó da sua própria forma, mas também de todo o mundo das formas que, atra-vés das operações mágicas, podia combinar, transformar, renovar […]» (EugenioGarin, Idade Média e Renascimento, Imprensa Universitária, Lisboa, EditorialEstampa, 1988, p. 90.)

12 «[…] Montaigne neatly used all the literature and intellectual devices ofthe Italian Humanists to ridicule that glorification and turn it into its oppo-site.» (Ernst Cassirer, Paul Oskar Kristeller, John Herman Randall, The Renais-sance Philosophy of Man, Chicago & London,The University of Chicago Press,19�1, p. 19.)

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noque respeita à conduçãodos seusprópriosdestinos e, simulta-neamente, numa exortação para a acção contra o imobilismo quepudesseadvirdeumaconsciênciafriadosseuslimites.Talexortaçãopode ser interpretada como uma tentativa de recuperar algumada dignidade que aparentemente havia sido beliscada pela préviaexaltação da sua fragilidade estrutural enquanto seres humanos.Nestecontexto,Sanchesparece-nosumexemploparadigmáticodasituaçãoaparentemente«ambígua»doRenascimentofaceàdefiniçãodo verdadeiro lugar dos homens no universo e da dignidade quelhes é devida. Por um lado, parece comprometer a centralidadeda sua posição no universo ao apontar, como fez Montaigne, afragilidadeestruturaldasuacondição;poroutrolado,aoexortá-lospara a acçãoestáde certa formaa reconhecerqueoshomens sãomerecedores da tal dignidade que é defendida pelos entusiastasrenascentistas do valor do ser humano. Esta vertente dúplice deum homem que, por um lado, perde a tradicional segurança queantes sentia com o reconhecimento dos seus limites, mas que,por outro lado, se sente impelido a agir ou a «reconstruir-se» éigualmente sublinhada por autores como Eugenio Garin. Diz oautor: «Não falta, decerto, o chamamento vivo e constante a umanovaconstrução.Tambémnão faltaa segurançadequeohomemé realmente capaz de reconstruir-se a si próprio e o seu mundo;mas há em todos os momentos a consciência de que a segurançatranquiladeumuniversofamiliaredomésticoordenadoeadaptadoàs nossas necessidades está definitivamente perdida.»13

Tomada por fim como traço constitutivo do próprio Renasci-mento(emborasesaibaquenesseperíodoexistamoutrassensibili-dades),aexaltaçãodadignidadehumanaconstituiumaspectoqueporsuavezcontribuiráparaumcrescenteapreçopelasingularidadedos sentimentos, experiências, circunstâncias e opiniões. Emborase trate de um aspecto eminentemente cultural da própria épocarenascentista,deleencontraremosindíciosclarosaoníveldaprópriafilosofia,designadamenteaoníveldaopçãonominalistadealgunsfilósofos renascentistas, entre os quais o nosso Francisco Sanches.A valorização do homem, das circunstâncias e das experiênciasindividuais constituiráabaseparaumanovaabordagemde temasimportantesda filosofia epara aprópriamundividênciada época.

13 Eugenio Garin, Idade Média e Renascimento, p. 84.

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Essa valorização pode ser interpretada, já o sugerimos, como umpasso importante no sentido de exortar os homens à assunçãoda sua responsabilidade na condução do seu próprio destino, quelhes confere necessariamente maiores responsabilidades mas quesimultaneamentealçaasuacondiçãodehomensaumadignidadesingular.Aexaltaçãodasnossasexperiências,dascircunstâncias,poroutro lado, é uma condição imprescindível para opções filosóficascomoonominalismo.Oantigodebateem tornodonominalismoencontraumterrenofértilnavalorizaçãodosindivíduos,dasexpe-riências e das próprias circunstâncias, e precisamente por isso seafigura como uma alternativa mais atractiva para alguns filósofosrenascentistas, que também partilhavam esses valores.

Esta intersecção entrehumanismo renascentista e filosofianãodeixará de ser reflectida por autores como Kristeller ou EugenioGarin. Como já tivemos oportunidade de referir, Kristeller consi-deraqueohumanismotemumterrenopróprioequeosrestantesdomínios, como a filosofia, seguem o seu próprio destino semqualquertipodeinfluênciadirectaouinternaporpartedohuma-nismo, que apesar de tudo exerce um tipo de influência exteriorpor vezes forte. Segundo este autor, o humanismo renascentista éessencialmente um movimento cultural e literário e, portanto, nãose tratava genuinamente de um movimento filosófico, emborativesse, como prevê o próprio Kristeller, consequências filosóficasimportantes.ParaKristeller,aúnicadoutrina filosóficaque logrouencontrar na literatura dos humanistas foi a crença no valor dohomem e dos studia humanitatis (até porque, segundo o autor, setratavadeaspectoscorrelacionados,namedidaemqueacrençanovalor do homem se ligava ao programa dos studia humanitatis14)e na renovação da sabedoria antiga. Já Eugenio Garin tinha umentendimentobemdiversodarelaçãoentrehumanismoefilosofia.Segundo Garin, o humanismo representa claramente uma nova

14 Já em Petrarca era possível surpreender esta associação entre o valorconcedido ao homem e o programa dos studia humanitatis: «In ridiculing thequestions of the logicians and natural philosophers of his time, Petrarca insistthat they are of no importance for man and his destiny; and, in emphasizingthevalueofclassical learning,he implies that it isofvitalconcern formanandhispropereducation—aconception thatwas soon to finddirect expression inthe program of the Studia Humanitatis.» (Ernst Cassirer, Paul Oskar Kristeller,John Herman Randall, The Renaissance Philosophy of Man, pp. 18 e 19.)

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visãodohomem,quepor sua vez vemviabilizarumanova formade pensar. Garin comenta assim a tese segundo a qual o huma-nismonãoéummovimento filosófico: «[R]epetir, como temsidofeito, que o Humanismo foi fenómeno não ‘filosófico’, puramenteliterário e retórico e que os humanistas foram apenas mestres deeloquência e gramática significa antes demais aceitar comopací-fica uma visão do filosofar que, pelo contrário, se encontra emdiscussão,esignificatambémnãocompreenderessesstudia huma-nitatis, essa ‘retórica’, essa ‘literatura’.Significa ainda esquecerqueaquele movimento de cultura se afirmou, antes de mais, fora da‘escola’, entrehomensde acção,políticos, senhores, chanceleresderepúblicasemesmo‘condottieri’,mercadores,artistaseartesãos.»15TambémRichardPopkinparecesubscreveraposiçãodeGarin,aosublinhar que a influência das posições de alguns dos mais des-tacadoshumanistasnão se cingiu simplesmente aomerodomínio«literário» e que mesmo quando eram feitas críticas à escolásticasob o pretexto de uma crítica literária, a influência dessa críticaultrapassava largamente a esfera do literário16.

Entretanto, falardeHumanismo implica falarnecessariamenteainda dos principais países de onde saíram as maiores e maisimportantes orientações para esse movimento. Um desses paísesé indiscutivelmente a Itália1�. Embora se trate de um tema quenão é consensual, a avaliação que podemos fazer do humanismo

15 Eugenio Garin, Idade Média e Renascimento, pp. 12 e 13.16 «Valla, Agricola, Vives and Ramus were not just insulting the logicians, or

pointingouttheirignoranceofclassicalliteratureorthebarbarousnessoftheirLatinexpression.Muchmore theywereofferinga technical analysisofwhat is involvedin scholastic reasoning, why it is not a method of discovering new knowledge.»(Richard Popkin, «Theories of knowledge», in The Cambridge History of Renais-sance Philosophy, Cambridge University Press, p.6�2.) Como dizíamos, a esfera deinfluênciadaproduçãohumanista esteve longede se cingir ao campooudomínioliterário, oquedeveria acontecer, a fazer fénosque, comoKristeller, afirmamqueohumanismoéummovimentoeminentementeliterário.OqueGarinvemdizer,eparecesersecundadoporR.Popkin,équeohumanismonãoesgotaasuainfluênciana área da eloquência e gramática, mas que pelo contrário tem também eficáciaao nível da avaliação de temas eminentemente filosóficos como o conhecimento.

1� «Humanism appeared in Italy toward the end of the thirteenth century.It was in part an outgrowth of the earlier traditions of professional teaching inrhetoricandgrammarinthemedievalItalianschools.»(ErnstCassirer,PaulOskarKristeller, John Herman Radall, The Renaissance Philosophy of Man, p. 3.)

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renascentistaitalianodeveráreconhecerqueaItáliamarcoudecisi-vamenteo seudestino, eque terá sido a Itália umadasprimeirasplataformasquepermitiuaextensãodopensamentohumanistaaosdemais países da Europa Ocidental. A controvérsia em torno daavaliaçãodesteperíododohumanismorenascentistaexisteporque,como é amplamente reconhecido, foi conseguido nesta fase umnotávelprogressoaoníveldosestudosmedievais, cujoefeitomaisvisívelfoiarejeiçãodatesesimplistasegundoaqualaIdadeMédiaéaIdadedastrevas,bemcomoaideiaconexadequeaessaIdadeobscurantista se sobreporia a «Idade da Luz», que corresponderiaprecisamenteaohumanismorenascentista italiano.Operigodestaconclusãopareceporémevidente:équeseconcedermosaosentu-siastas dos séculos medievais que esse período deve de facto serespoliado de muito da sua conotação negativa, teremos necessa-riamentede reavaliarapróprianecessidadedeuma«novaera»oudeum«renascimento»queopróprionomedomovimento indica.Neste ponto, os humanistas contraporão que aquilo que define omovimento humanista é de facto algo singular, e que ainda queseencontremvestígiosdeumrenascimentointelectualjánaIdadeMédia, ele estará ainda muito longe do vigor conseguido pelomovimento humanista. Outros há porém que insistem na defesade que o Renascimento marca uma época que vem pôr cobro aumlongoperíododetrevas,decadênciaeescuridão.CesareVasolidácontaprecisamentedealgunshumanistasparaquemoperíodomedieval representaumafasededecadênciaquesóéultrapassadapeloRenascimento:«Paraessesindivíduosaúnicamaneiradesairdeséculosdeescuridão,decadênciaecorrupçãoeravoltaràantigasapientia e recuperar a sua formaexemplardeviver epensar,bemcomoalinguagemqueconstituíaoseuveículo.Consequentementeomitoda renascentia eanoçãopróximadecicloshistóricos estãono coração do regresso aos antigos e no repúdio daquilo que eravisto como uma maneira de pensar moribunda e bárbara, comos seus impenetráveis matagais de comentários e quaestiones, asua linguagem e formalização lógica que estava tão distante dosmodelos da antiguidade, a sua teologia e jurisprudência reduzidasa uma mão cheia de controvérsias obscuras e sofísticas.»18

18 «Fortheseindividualstheonlywayoutofcenturiesofdarkness,decadenceandcorruptionwasbyreturningtotheancientsapientiaandrecoveringitsexem-

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