Impressão Fria - Ramsay Campbell - Tradução Arthur Ferreira Jr

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  • 7/31/2019 Impresso Fria - Ramsay Campbell - Traduo Arthur Ferreira Jr.'.

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    Impresso FriaRAMSEY CAMPBELLTraduzido por Arthur Ferreira Jr.'.

    mesmo os servos de Cthulhu no ousam mencionar Y'golonac,pois vir o tempo em que Y'golonac libertar-se- da solido daseras para mais uma vez caminhar entre a humanidade...

    REVELAES DE GLAAKI, VOLUME 12

    Sam Strutt lambeu seus dedos e os limpou no seu leno; as pontas de seus dedos estavam cinzentase sujas de neve da barra da plataforma de nibus. Ento puxou seu livro da sacola de politeno aoseu lado, retirou o tquete de nibus do meio das pginas, uniu-o capa para proteger esta de seus

    dedos, e comeou a ler. Como muitas vezes acontecia, o condutor assumia que o tquete autorizavaa jornada atual de Strutt; e este no o corrigia. L fora, a neve rodopiava, descendo pelas ruaslaterais e escorrendo por entre as rodas dos carros estacionados.

    O barro enlameou suas botas quando saiu da Brichester Central e, escondendo a sacola sobseu casaco para melhor proteg-la, arrastou-se at a banca de livros, quase escorregando nos flocosde neve que se assentavam sobre a rua. As vidraas da banca no estavam bem fechados; a nevehavia se infiltrado e cado sobre as brochuras lustrosas. Olha s isso! reclamou Strutt com um

    jovem que estava perto dele e ansiosamente esquadrinhava a multido, colocando seu pescoo pordentro da gola, como se fosse uma tartaruga. No nojento? Essas pessoas no se importammesmo! O jovem, ainda observando os rostos midos, concordou de maneira abstrada. Strutt foi

    ao outro lado da banca, onde o assistente distribua jornais. Ei! chamou Strutt. O assistente,separando troco para um cliente, fez gesto de pedir que esperasse. Sobre as brochuras, pelo vidroesfumaado, Strutt percebeu o jovem correr e abraar uma garota, e ento gentilmente enxugar orosto dela com um leno. Strutt notou o jornal segurado pelo homem que aguardava o troco. Lia-seASSASSINATO BRUTAL EM IGREJA EM RUNAS; na noite anterior um corpo fora encontradodentro das paredes sem teto de uma igreja de Lower Brichester, quando a neve foi retirada de umaimagem de mrmore, revelou macabras mutilaes sobre o cadver, mutilaes ovais que pareciam

    O homem tomou do jornal e seu troco e saiu para a estao. O assistente voltou-se para Strutt,sorridente: Desculpe faz-lo esperar. Sim, disse Strutt. Voc percebe que esses livros esto

    pegando neve? As pessoas podem querer compr-los, sabe. Voc quer comprar um? respondeu oassistente. Strutt apertou os lbios e voltou-se para o vento que trazia a neve. Por trs dele ouviu o

    retinir de vidraa contra vidraa.

    A banca BONS LIVROS PRA LER NA ESTRADA servia de abrigo a quem passasse; ele fechou avidraa que batia e comeou a checar os livros. Nas prateleiras, os ttulos atuais mostravam a capafrontal enquanto outros, a contracapa. Garotas riam prximo a cartes de natal engraados; umhomem de barba por fazer foi pego por uma rajada de vento, cheia de flocos de neve incmodos, e

    parou, olhando ao redor, incerto. Strutt apertou a lngua com os dentes; no deveriam permitir quevagabundos ficassem nas livrarias, sujando os livros. Atento com a viso perifrica, para ver se ohomem dobraria as capas dos livros, ou quebraria as encadernaes, Strutt moveu-se entre as

    prateleiras, mas no conseguiu achar o que procurava. Porm, conversando com o caixa, estava umassistente que havia conversado com ele, elogiandoNoites Violentas no Brooklin quando Struttcomprara esse volume, semana passada, e pacientemente ouvira uma lista das leituras recentes do

    professor, embora houvesse parecido que ele no reconhecera os ttulos. Strutt aproximou-se einquiriu:

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    Ol tem outros livros empolgantes para esta semana?

    O homem o fitou, confuso. Outros...?

    Voc sabe, livros como este? Strutt levantou a sacola de politeno para mostrar a capa

    cinzenta de O Mestre do Chicote, de Hector Q., da editora Ultimate Press.

    Ah, no. Acho que no temos. Tamborilou os lbios. Exceto Jean Genet?

    Quem? Ah, voc quer dizer,Jennet. No, no, obrigado, ele chato feito gua parada.

    Bem, desculpe, senhor, mas acho que no posso ajud-lo, ento.

    Oh. Strutt sentiu-se rejeitado. O homem parecia no t-lo reconhecido, ou talvez estivessefingindo. Strutt havia conhecido esse tipo de gente antes, sempre reprovando intimamente seugnero de leitura. Ele buscou pelas prateleiras novamente, mas nenhuma capa chamou sua ateno.

    Na porta, desabotoou furtivamente a camisa, para proteger seu livro mais ainda, quando sentiu umamo descer sobre seu brao. Cheia de gordura, a mo deslizou at tocar sua sacola. Strutt aexpulsou com raiva e confrontou o vagabundo.

    Espera um pouco! sibilou o homem. Voc est procurando mais livros como esse? Eu seionde pode encontrar alguns.

    Esta abordagem ofendeu o senso orgulhoso de leitura de Strutt, que no tinha razo para sersuprimido. Ele puxou a sacola dos dedos que dela se aproximavam. Ento, gosta desse tipo deliteratura tambm, no ?

    Ah, sim, tenho vrios.

    Strutt fisgou a isca para ver se valia a pena. Tipo quais?

    Oh,Ado e Evandro,Me Leve Onde Quiser, todas as aventuras do Harrison, voc sabe, sovrias.

    Strutt admitiu, resmungando por dentro, que a oferta do sujeito parecia genuna. O assistenteos observava; Strutt devolveu o olhar. Muito bem, disse. Onde esse lugar de que voc est

    falando?O outro tomou de seu brao e puxou-o com disposio para a neve que soprava. Erguendo

    sobre os rostos suas golas, os pedestres deslizavam por entre os carros, enquanto esperavam pelaremoo de um nibus que havia derrapado; os flocos de neve esmagavam-se nos cantos dos para-

    brisas e sobre os limpadores. O homem arrastou Strutt por entre as buzinas que soavam e gritavam,e ento por entre duas vitrines de lojas, onde moas fitavam presunosas enquanto vestiammanequins sem cabea, e ento por um beco. Strutt reconheceu a rea como um lugar onde havia

    procurado em vo por livrarias escondidas; desapontantes alcovas de revistas masculinas, oocasional hlito quente e pungente de cozinhas, carros cheios de coberturas de neve, bares ruidososoferecendo calor contra o clima frio. O guia de Strutt esgueirou-se pela porta de um bar pblico,

    para espanar o casaco; a camada branca rachou e caiu. Strutt juntou-se ao homem e ajustou o livroem sua sacola, aninhada sob sua camisa. Bateu as botas no cho, para tirar a crosta de neve, parandoenquanto o outro seguia; no queria ficar conectado quele homem, mesmo numa ao to trivial.

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    Observou com desagrado o companheiro, seu nariz inchado que agora fungava, a barba rala que semexia nas bochechas que inflavam quando o homem soprava as prprias mos trmulas. Strutt tinhahorror de tocar qualquer pessoa que no fosse meticulosamente limpa. Alm da porta, os flocos deneve j comeavam a cobrir suas pegadas, e o homem disse: Sempre sinto tanta sede, ao caminharrpido assim.

    Era esse seu jogo, no era? Mas a livraria o esperava. Strutt andou pelo bar e pediu duas doses auma enorme garonete, de busto arrepiado de frio, que ia e voltava com os copos e girava astorneiras com gosto. Velhos fumavam cachimbo em vagas alcovas, um rdio blaterava marchinhas,os homens segurando canecos alvejavam com jovial impreciso tanto um jogo de dardos quanto asescarradeiras. Strutt dobrou seu casaco e ficou prximo ao homem; o outro permaneceu comoestava e ficou olhando para a prpria cerveja. Determinado a no falar, Strutt prestou ateno aosespelhos turvos que refletiam grupos gesticulantes ao redor de mesas lotadas, fora de sua linha deviso direta. Mas gradualmente ficou surpreso com a taciturnidade de seu companheiro de mesa; eracerto que essas pessoas (assim pensava ele) eram notavelmente loquazes, na verdade, virtualmenteimpossveis de calar a boca? Aquilo era intolervel; sentar toa num boteco de esquina abafado,

    quando podia estar caminhando, ou lendo algo devia ser feito. Engoliu a prpria cerveja e bateucom o vidro no protetor de mesa. O outro o imitou. E ento, visivelmente embaraado, comeou a

    bebericar, parecendo estranhamente nervoso. Ficou depois bvio que o sujeito estava brincandocom a espuma, e ento ps o copo na mesa e comeou a fit-lo. Parece que hora de irmosandando, disse Strutt.

    O homem olhou para cima; o medo arregalou seus olhos. Jesus Cristo, eu estou todomolhado, resmungou. Levo voc l assim que a neve baixar.

    Era esse seu jogo, no era mesmo? Gritou Strutt. Nos espelhos, alguns olhos o fitaram.Voc no vai tirar esse drinque de mim, a troco de nada! No vim at aqui pra...!

    O homem andou para l e para c, encurralado.

    T bom, t bom, mas pode ser que eu no encontre o lugar nesse tempo feio.

    Strutt achou que essa ltima frase havia sido idiota demais para merecer resposta. Levantou,e abotoando seu casaco, atravessou as arcadas nevadas, olhando para trs para ter certeza de queestava sendo seguido.

    As ltimas vitrines de lojas, e por trs delas pirmides de latas, marcadas com rtulos mal

    escritos, eram substitudas por linhas de janelas furtivamente acortinadas, postas em panoramascansativos de tijolo vermelho; por trs das vidraas, decoraes de Natal penduradas como coroasde flores fnebres. Atravessando a rua, enquadrada pela janela de um quarto, uma mulher de meia-idade puxava as cortinas e escondia o rapaz adolescente em seu ombro. Strutt no perguntouexatamente aonde estavam indo; achava que podia controlar a figura frente sem falar com ele, e defato no tinha interesse de falar com o homem quando ele parava, trmulo, sem dvida devido aofrio, e voltava a andar, apressado, enquanto Strutt, cinco centmetros mais alto que o metro e setentado outro, e de melhor fsico, continuava a segui-lo. Por um instante, quando um pedao de nevecaindo o empurrou para a rua, os flocos superexpondo o ambiente e cortando suas bochechas comonavalhas temporrias de gelo, Strutt ansiou por conversar, falar das noites que passara acordado emseu quarto, ouvindo a filha da senhoria ser espancada pelo pai, no quarto um andar acima, tentando

    pegar os sons abafados que vinham do ranger de camas, talvez do casal abaixo. Mas esse momentopassou, levado pela neve; o fim da rua havia se aberto, separado por uma demarcao em duaspistas acarpetadas de neve grossa, uma virando para esconder-se entre as casas, e a outra mais curta,

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    pegada rotatria. E agora Strutt sabia onde estava. De um nibus que pegara antes, naquelasemana, havia notado aquela placa de MANTENHA ESQUERDA jogada intil sobre ademarcao, sua face voltada para baixo.

    Cruzaram a rotatria, embrenharam-se pelos restos decompostos de relheiras, cheios de poas

    enganosamente cobertas, acumuladas por trs do rastro de escavadeira de uma obra de restauraodo bairro, e adiantaram atravs do remoinho branco at um trecho de terreno baldio, onde umafogueira solitria esgotava a fora da neve. O guia de Strutt esgueirava-se para dentro de um beco eo professor o seguiu, tencionando manter-se prximo do outro conforme este batia a neve granuladadas tampas das latas de lixo e esquivava-se de portes de quintais onde ces arranhavam egrunhiam. O homem virou esquerda, e ento direita, por entre os paredes prximas elabirnticas, entre casas cujos cantos cruis das vidraas quebradas e portas oscilantes e tortas, nemmesmo a neve, mais gentil para com prdios do que para com seus ocupantes, pode suavizar. Umaltima virada e o homem deslizou para uma calada sob os restos de uma loja, sua fachada quasevazia, salvo por garrafas de vinho sob um pster com os dizeres, HEIN 57 VARIET. Uma massa deneve caiu dos frangalhos de toldo, apenas para ser engolida pelo bueiro abaixo. O homem ficou ali

    tremendo, mas quando Strutt o confrontou, apontou temerosamente para a calada oposta: Ali est,j chegamos.

    Rastros de lama da neve derretida molharam as calas de Strutt ao atravessar a rua, enquantoeste checava mentalmente que, enquanto o homem tentara desorient-lo, ele havia deduzido qualavenida principal estava a cerca de quinhentos metros dali, e ento leu a inscrio por sobre a loja:LIVROS AMERICANOS: COMPRA E VENDA. Tocou uma cerca que protegia uma janela opacaabaixo do nvel da rua, deixando uma ferrugem mida irrit-lo sob as unhas, e observou a vitrine na

    janela diante de si:Histria do Flagelo um livro que achara montono dividindo espao comromances de fico cientfica de Aldiss, Rubb e Harrison, que escondiam-se envergonhados porentre capas lascivas;Le Sadisme au Cinma; o Voyeurde Robbe-Grillet, parecendo estar perdido;

    Almoo Nu nada que valesse sua jornada at ali, refletiu Strutt. Tudo bem, hora de entrar,impeliu o homem para dentro, e com uma olhadela por cima do tijolo vermelho erodido na janela do

    primeiro andar, notando as costas do espelho de penteadeira encaixado para substituir uma vidraa,Strutt tambm entrou. O outro pausou mais uma vez e por um segundo desagradvel, os dedos dorapaz roaram o casaco mido do sujeito. Vamos l, onde esto os livros? exigiu, abrindo alas

    para entrar na loja.

    A amarelada luz solar fazia-se ainda mais sombria pela influncia da vitrine e das revistas depin-up penduradas pelo lado de dentro da janela almofadada; a poeira flutuava preguiosamentepelos raios de luz dispersos. Strutt parou para ler as capas das brochuras enfiadas em caixas de

    papelo em uma mesa, mas as caixas continham apenas faroestes, fantasias e erotismo americano,vendidos por metade do preo. Fazendo careta diante dos livros que tinham as pontas esticadascomo ptalas em flor, Strutt passou pelos encadernados e espiou atrs do balco, levemente

    preocupado; quando havia fechado a porta ao passar pelo sino sem lingueta, havia imaginado ouvirum grito em algum lugar prximo, rapidamente contido. Sem dvida, seria o tipo de coisa que seouve o tempo todo por aqui, pensou, e voltou-se para o outro: Bem, eu no vi ainda a razo parater vindo aqui. Ningum trabalha nesse lugar?

    De olhos arregalados, o homem fitava para alm dos ombros de Strutt; este olhou para trs e viu opainel de vidro fosco de uma porta, um canto do vidro completado com papelo, negro contra uma

    difana luz amarelada, que filtrava-se atravs do painel. Presumiu ser o escritrio do livreiro serque ele havia ouvido o comentrio de Strutt? O professor confrontou a porta, pronto para enfrentaralguma impertinncia. Ento o homem passou por ele, buscando distraidamente algo por trs do

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    balco, abrindo descuidadamente uma cristaleira cheia de volumes de sobrecapas de papel marrom,e finalmente extraindo um pacote de papel cinzento de seu esconderijo em um canto da cristaleira.Jogou o pacote para Strutt, resmungando, a pele sob seus olhos pinicando em tiques: Olha um a,olha um a, e observou Strutt rasgar o pacote.

    A Vida Secreta de Wackford Squeers Ah, esse bom, aprovou Strutt, distraindo-se

    momentaneamente e metendo a mo no bolso em busca da carteira; mas dedos gordurentosagarraram seu pulso. Pague na vez seguinte, implorou o homem. Strutt hesitou; ser que dava praficar com o livro sem pagar? Naquele exato momento, uma sombra tremulou por sobre o vidrofosco: um homem sem cabea, arrastando algo pesado. Decapitado pelo vidro fosco e por sua

    posio agachada, racionalizou Strutt, percebendo ento que o livreiro deveria ter contato com aUltimate Press; e ele no deveria prejudicar este contato, roubando um livro. Empurrou os dedosfrenticos do sujeito para o lado e contou duas libras; mas o outro recuou, esticando os dedos numvisvel temor, e escolheu-se contra a porta do escritrio, de cujo painel a silhueta de antes haviadesaparecido, antes de quase aninhar-se contra o peito de Strutt. O professor o empurrou e deixou asnotas no espao deixado na cristaleira, onde estava antes o Wackford Squeers, e ento virou-se parao sujeito: No vai embalar o livro? Alis, no, pensando melhor, eu mesmo fao isso.

    O cilindro no balco soltou de maneira estrondosa uma faixa de papel marrom; Strutt tirouum pedao descolorido. Ao empacotar o livro, afastando o p da embalagem anterior, algo caiu nocho. O outro havia recuado at a porta da frente, quando fez um boto solto de seu punho puxou a

    borda de uma caixa cheia de livros; ficou pasmo diante dos livros espalhados no cho, mos e bocabem abertas, um p sobre um romance aberto como se fosse um mariposa pisada, e ao seu redorflutuavam os ciscos de poeira por entre os raios de luz salpicados de neve solta. Em alguma parte,ouviu-se o clique de uma tranca. Strutt respirou fundo, fechou seu pacote com fita adesiva e,rodeando o homem com ar de desagrado, abriu a porta. O frio atacou suas pernas. Comeou a subiros degraus e o outro disparou em seguida. O p do homem estava na soleira da porta, quando

    passadas fortes aproximaram-se, sentidas no tremer das tbuas. O homem deu meia-volta, e abaixode Strutt, a porta bateu. Strutt esperou; mas ento ocorreu-lhe que poderia se apressar e livrar-se doguia. Alcanou a porta e uma brisa purulenta de neve alfinetou-lhe as bochechas, limpando a poeiravelha da loja. Virou o rosto e, chutando a casca de neve que formara-se sobre a manchete de um

    jornal molhado, dirigiu-se para avenida principal, que ele sabia ser prxima.

    Strutt acordou tremendo. O sinal em neon do lado de fora da janela de seu apartamento, algo clich,mas teimoso como uma dor de dente, definia-se extravagante contra a noite a cada cinco segundos,e baseado nisso e nas rajadas de vento frio, Strutt soube que era manhzinha. Fechou novamente osolhos, mas embora suas plpebras estivessem quentes e pesadas, sua mente no se anuviou. Alm

    dos limites de sua memria, espreitava o sonho que o havia acordado; ele movimentava-setemeroso. Por alguma razo, havia pensado numa passagem de sua leitura noturna anterior:Quando Ado chegou porta, sentiu a mo de Evandro agarrar a sua, torcendo seu brao para trs,forando-o a ajoelhar-se no cho... Seus olhos abriram-se e buscaram a estante, em busca de alvio;sim, o livro existia, seguro dentro de sua capa, cuidadosamente alinhado a seus companheiros.Lembrou-se de retornar para casa uma noite, para encontrarSenhorita Whippe, Governanta Moda

    Antiga, enfiado dentro dePrefeitos e Bichas, escangalhado dentro dePrefeitos e Bichas; a senhoriaexplicou que ela deve ter substitudo erroneamente aps a limpeza, mas Strutt sabia que ela os haviadanificado de propsito. Comprou uma estante com tranca, e quando a senhoria pediu a chave, elerespondeu: Obrigado, acho que posso lidar com os livros eu mesmo. Voc no consegue fazeramizades hoje em dia. Ele fechou os olhos novamente; o quarto e a estante, criados em cinco

    segundos pelo neon e destrudos em igual regularidade, encheram-no de seu vazio, lembrando-o queainda restavam semanas at o comeo do novo perodo letivo, quando enfrentaria a primeira aula damanh e adicionaria o Vocs j me conhecem usual apresentao no estilo Vocs jogam limpo

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    comigo e eu jogo limpo com vocs, aviso que algum garoto certamente testaria, e Strutt teria delidar com ele; ele viu a extenso de cadeiras de ginsio espalhadas, l onde ele bateria um tnis deginstica com fora revigorante Strutt relaxou; embalado pelo eco totalizante de ps como pilessobre o cho de madeira do ginsio, o balanar febril das barras de parede quando os rapazessubiam como enxame na direo do teto, e olhando fixamente para cima, acabou adormecendo.

    Ofegando, obrigou-se a fazer os exerccios matutinos, e ento bebeu rapidamente o suco defrutas que era sempre sua primeira escolha na bandeja trazido pela filha da senhoria. Maldosamentebateu com o copo ao devolv-lo bandeja; o vidro trincou (ele iria dizer que era uma acidente; elepagava aluguel suficiente para cobrir esse prejuzo, e podia muito bem ter um pouco de satisfaocom esse dinheiro). Imagino que voc teve um Natal estupendo, falou a garota, inspecionando oquarto. Ele pensou em agarr-la pela cintura e satisfazer aquela feminilidade arrogante mas ela jhavia ido embora, as pregas de sua saia danando, deixando o estmago de Strutt embrulhado equente de antecipao.

    Depois, arrastou-se at o supermercado. De vrios jardins vinha o arranhar de ps limpandoa neve, rudo de fazer rangir os dentes; esses sons diminuam e eram respondidos pelo chiados da

    neve engolindo as botas que andavam. Quando emergiu do supermercado, abraado a um monte delatas, uma bola de neve roou seu rosto para esmagar-se contra a janela, formando uma barbatranslcida, que descia pela vidraa como o muco dos narizes daqueles rapazes que mais sentiam aclera de Strutt, pois ele tinha o propsito de extrair aquela feiura, aquela hediondez, na base doscastigos fsicos. Strutt olhou ao redor, buscando quem havia arremessado a bola de neve ummenino de sete anos, que subia em seu triciclo para fugir com rapidez; Strutt moveu-seinvoluntariamente, como se fosse puxar o garoto para dar-lhe uma surra. Mas a rua no estavadeserta; logo a me da criana, de bobes saindo por debaixo de um leno, batia na mo do filho:Eu te avisei, no faa isso Desculpe, dirigiu-se ela a Strutt. Est bem, resmungou, e marchoude volta a seu apartamento. Seu corao batia incontrolavelmente. Desejava de maneira febril que

    pudesse conversar com algum, como havia conversado com o livreiro dos limites de Goatswood,que compartilhava de seus instintos; quando o homem morrera, no comeo daquele ano, Struttsentira-se abandonado num mundo hostil e de conspirao tcita. Talvez o dono da nova loja

    pudesse provar-se similarmente simptico? Strutt teve esperanas de que o homem que o haviaconduzido at ali no fosse um atendente, mas se ele era, certamente poderia ser algum de quem se

    podia livrar um livreiro com contatos com a Ultimate Press certamente deveria ser algum similarao prprio Strutt, que se oporia tanto quanto ele presena daquele sujeito, enquanto estivessemconversando com franqueza. Alm desses devaneios, Strutt precisava de livros para ler naquelesferiados natalinos, e o Squeers no duraria o suficiente; a loja com certeza estaria fechada naVspera de Natal. Tendo definido seus propsitos, largou as latas na mesa da cozinha e desceucorrendo pelas escadas.

    Strutt saltou do nibus em silncio; a barulhada do motor rapidamente foi sumindo e abafou-se por entre as casas cobertas de neve. A neve empilhada aguardava a vinda de algum som. Elechapinhou por entre os rastros de carros at a calada, a camada de neve sobre esta marcada porincontveis pegadas sobrepostas. A rua serpenteava; to logo a avenida principal estivesse fora devista, a rua lateral revelava seu verdadeiro carter. A neve acumulada sobre as entradas das casastornava-se gasta; protuses enferrujadas surgiam em meio brancura. Uma ou duas janelasmostravam rvores de Natal, suas carumas envelhecidas caindo, seus galhos encurvados com asluzes voluptuosamente faiscantes. Contudo Strutt no tinha olhos para esses detalhes, mas mantinhaseus olhos na calada, buscando evitar as manchas circuladas por pegadas de ces. Seu olhar acabouencontrando o de uma velha senhora que fitava um ponto abaixo de sua janela, que talvez fosse o

    limite de seu mundo exterior. Sentindo um calafrio momentneo, apressou o passo, seguido por umamulher que, dado o contedo de seu carrinho de beb, havia parido uma pilha de jornais, e paroudiante da loja.

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    Embora o cu alaranjado mal podia iluminar o interior da loja, nenhum brilho eltrico eravisvel por entre as revistas, e a placa quebrada pendurada por trs do entulho poderia talvez terescrito a palavra FECHADO. Lentamente, Strutt desceu pelos degraus. O carrinho de beb rangeu

    prximo, os ltimos flocos de neve espalhando-se por sobre os jornais em seu interior. Strutt fitousua curiosa proprietria, voltou-se e quase caiu numa sbita escurido. A porta havia se abrido e

    uma figura bloqueava o umbral.

    No esto fechados, imagino? falou Strutt com a lngua enrolada.

    Talvez no. Em que posso ajud-lo?

    Estive aqui ontem. Livro da Ultimate Press, respondeu Strutt ao rosto na mesma altura do seu,desconfortavelmente prximo.

    Claro que esteve, sim, eu lembro. O outro oscilava sem cessar, como se fosse um atleta

    fazendo aquecimento, e sua voz variava constantemente de baixo para falsete, o que perturbavaStrutt. Bem, entre antes que a neve te pegue, disse o outro, e bateu a porta por trs deles,evocando uma nota do fantasma de lingueta do sino.

    O livreiro este deveria ser ele, presumiu Strutt assomou por detrs dele, uma cabea maisalto; descendo por entre a meia-luz, entre os vagos e vindicativos cantos das mesas, Strutt sentiuuma obscura compulso de assegurar-se de alguma forma, e comentou: Espero que tenhaencontrado o dinheiro do livro. Seu homem parecia no querer que eu pagasse. Algumas pessoasteriam levado isso ao p da letra.

    Ele no est hoje conosco. O livreiro ligou a luz dentro de seu escritrio. Quando seurosto de dobras e linhas gordas recebeu luz, pareceu crescer; os olhos afundaram-se em estrelasflcidas de rugas; as bochechas e a testa rebentaram com tantas linhas de expresso; a cabeaflutuava como um balo inflado pela metade, por sobre o palet de l. Por baixo do bulbo luminosodescoberto, as paredes se apertavam, cercando uma mesa bastante desgastada, da qual fluam cpiascheias de impresses digitais da revista O Livreiro, jogadas de lado por uma mquina datilogrficanegra, cheia de poeira, do lado da qual descansavam um toco de cera de lacre e uma caixa defsforos aberta. Duas cadeiras opostas em cada lado da mesa, e por trs desta uma porta fechada.Strutt sentou-se diante da mesa, espalhando p pelo cho. O livreiro caminhou de um lado para ooutro ao redor de Strutt e subitamente, como se atingido pela prpria pergunta, disparou: Diga-me,

    por que voc l esses livros?

    Aquela era uma pergunta muitas vezes dirigida a Strutt por aquele professor de ingls nasala de docentes, at que parasse de ler seus romances durante os intervalos. O sbito retorno da

    pergunta o pegou desprevenido, e conseguiu apenas soltar seu velho contra-argumento: Comoassim, por qu? E por que no?

    Eu no estava te criticando, apressou-se o outro, movendo-se inquieto atrs da mesa.Estou genuinamente interessado. Eu iria perguntar se voc no deseja que o que l acontea, decerta forma?

    Bem, talvez. Strutt ficou desconfiado com o rumo que a conversa estava tomando, e

    desejou poder impor seus prprios termos; mas suas palavras pareciam cair naquele silncio cobertode neve que escondia-se por dentro das paredes empoeiradas, para desaparecerem de imediato, semdeixar rastros.

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    Cthulhu ascender de sua tumba entre as algas, Glaaki arrebentar o alapode cristal, a prole de Eihort nascer para a luz do dia, Shub-Niggurathforar e esmagar a lente lunar, Byatis destruir sua priso, Daolothrasgar a iluso para expor a realidade que est oculta por trs dos vus.

    As mos em seus ombros mudavam constantemente a presso, afrouxando e apertando. A

    voz flutuava: O que achou disso?

    Strutt pensou que era um lixo, mas de alguma forma, sua coragem escorregou e se desfez;replicou de maneira bem mais suave: Bem, no no o tipo de coisa que se v venda.

    Achou o trecho interessante? A voz se aprofundava; agora era um baixo arrebatador. Ooutro rodou para trs da mesa; parecia maior sua cabea batia no bulbo, lanando sombras queespreitavam pelos cantos, e recuavam, e mais uma vez espreitavam. Est interessado? Suaexpresso era intensa, se que aquilo podia-se chamar de expresso; pois a luz movia as trevas nos

    buracos de seu rosto, como se a estrutura ssea estivesse visivelmente derretendo.

    L no fundo da mente ofuscada de Strutt, surgiu uma suspeita; ele no ouvira falar de seuquerido amigo morto, o livreiro de Goatswood, que um culto de magia negra existia em Brichester,um crculo de jovens dominado por um certo Franklin, ou Franklyn? Ser que estava sendoentrevistado para admisso no culto? Eu no diria isso, argumentou.

    Oua. Houve um livreiro que leu este trecho, e eu contei a ele que voc podia ser o altosacerdote de Y'golonac. Voc convocar os vultos da noite para vener-lo, em certas pocas do ano;

    prostrar-se- diante dele e em troca, sobreviver quando a terra for limpa para os Grandes Antigos;ir alm dos limiar para aquilo que se separa da luz...

    Antes que pudesse terminar, Strutt interrompeu sem pensar: Vocs estavam falando demim? Acabara de perceber que estava sozinho com um louco, num recinto fechado.

    No, no, quis dizer o livreiro. Mas a oferta agora para voc.

    Bem, desculpe, mas tenho outras coisas para fazer. Strutt preparou-se para levantar.

    Ele tambm recusou. O timbre da voz feria os ouvidos de Strutt. Eu tive de mat-lo.

    Strutt congelou. Como lidar com algum insano? Pacificando-o. Espere a, espere a, esperes um segundo...

    Que benefcio lhe traria a dvida? Tenho mais provas sua disposio do que voc seria capaz desuportar. Voc ser meu alto sacerdote, ou jamais deixar esta sala.

    Pela primeira vez em sua vida, enquanto as sombras entre as paredes opressivas moviam-semais lentas, como se antecipantes, Strutt batalhava para conter uma emoo; submergiu sua mesclade medo e clera com calma. Se no se importar, tenho de encontrar uma pessoa.

    No quando seu destino est aqui entre essas paredes. A voz engrossara. Voc sabe queeu matei o livreiro estava em seus jornais. Ele fugiu para a igreja em runas, mas eu o segurei com

    minhas mos... E ento deixei que o livro na loja para ser lido, mas o nico que o pegou, porengano, foi aquele homem que o trouxe aqui... Um tolo! Enlouqueceu e entrou em posio fetal nocanto da sala, quando viu as bocas! Eu o mantive porque pensei que ele poderia trazer alguns de

  • 7/31/2019 Impresso Fria - Ramsay Campbell - Traduo Arthur Ferreira Jr.'.

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    seus amigos que chafurdam nos tabus fsicos e perdem as verdadeiras experincias, aqueles lugaresproibidos ao esprito. Mas ele acabou por contat-lo e traz-lo logo quando eu estava mealimentando. Aparece comida aqui, de vez em quando; jovens rapazes que vm buscando livros, emsegredo; eles tm de ter certeza de que ningum saiba o que esto lendo! e podem ser persuadidosa ler asRevelaes. Imbecil! Ele no pode mais trair-me com seu desleixo mas eu sabia que vociria retornar. E agora ser meu.

    Os dentes de Strutt rangiam silenciosamente, at que ele pensou que suas mandbulas iriamestourar; levantou-se, assentindo a cabea, e passou o volume dasRevelaespara a figura; estava

    pronto para, assim que a mo se fechasse sobre o encadernado, sair correndo pela porta doescritrio.

    Voc no pode sair, sabe disso; est trancado. O livreiro balanou os ps, mas no fezmovimento na direo de Strutt; as sombras agora estavam impiedosamente claras, e a poeira estavasuspensa no silncio. Voc no est sentindo medo parece ser calculista demais. possvel queainda no acredite? Tudo bem... colocou suas mos na maaneta da porta por trs da mesa:...voc quer ver o que restou de minha comida?

    Uma porta abriu-se na mente de Strutt, e ele recuou horrorizado do que poderia estar almdela. No! No! gritou. A fria seguiu-se a sua involuntria demonstrao de medo; desejou teruma bengala, com que subjugar a figura que o intimidava. Julgando por seu rosto, pensou, asmassas proeminentes no palet de l devem ser de gordura; se eles brigassem, Strutt venceria.Vamos deixar isto claro, gritou, j brincamos demais aqui! Ou voc me deixa sair ou eu... masencontrou-se procurando uma arma qualquer. Subitamente, pensou no livro que estava ainda em suamo. Roubou a caixa de fsforos da mesa, por trs da qual a figura observava, ominosamenteimpassiva. Strutt riscou um fsforo, e ento segurou as capas por entre o dedo indicador e o polegar,

    balanando as pginas. Eu vou queimar o livro! ameaou.

    A figura ficou tensa, e Strutt ficou frio de medo de seu movimento seguinte. Ele tocou achama no papel, e as pginas viraram-se, consumindo-se to rapidamente que Strutt teve aimpresso de fogo brilhante e sombras crescendo instavelmente massivas nas paredes, antes do livrotornar-se cinzas no cho. Por um momento, encararam um ao outro, imveis. Depois das chamas,uma escurido correu at os olhos de Strutt. Atravs dela, ele enxergou o palet rasgar-se comestrpito, diante da expanso da figura.

    Strutt jogou-se contra a porta do escritrio, que resistiu. Girou seu punho, e observou numestranho deslocamento atemporal o punho estilhaar o vidro fosco; o ato pareceu isol-lo, como sesuspendendo toda ao alm de si mesmo. Atravs das facas de vidro, na qual brilhavam gotas de

    sangue, viu os flocos de neve danarem na luz mbar, infinitamente distante; distante demais paraque pudesse chamar por ajuda. Assaltou-o um horror de ser seguro por trs. Do fundo do escritrio,veio um som; Strutt virou-se, mas ao faz-lo fechou os olhos, aterrorizado demais para encarar afonte daquele som mas quando os abriu, viu a razo pela qual a sombra no vidro fosco, ontem,

    parecia sem cabea, e ento gritou. Quando a mesa foi jogada para o lado, pela gigantesca figuranua, e cuja pele ainda prendiam-se trapos do palet de l, o ltimo pensamento de Strutt fora umainacreditvel convico de aquilo s estava acontecendo porque ele lera asRevelaes; em algumlugar, algum havia desejado que aquilo acontecesse com ele. No era justo, ele no fizera nada

    para merecer aquilo mas antes que pudesse gritar em protesto, seu flego foi cortado, quando asmos desceram sobre seu rosto e nas palmas, abriram-se bocas midas e vermelhas.

    Cold Printoriginalmente publicado em Tales of the Cthulhu Mythos, 1969.Tambm disponvel na coletnea de contos do mesmo nome e do mesmo autor.