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28 l Lua 10/2/12 10/2/12 Lua l 29 INHA 20 ANOS QUANDO, de forma artesanal, lançou o álbum T r i n c h e i - r a d e I d e i a s (2006) no mercado ne- gro em Luanda. Longe de imaginar que um jovem lavador de carros chamado Cherokee viria a ser assassinado pela guarda policial por apenas trautear a can- ção ‘A Téknica, as Kausas e as Konsekuên- cias’. « Q u e m f a l a a v e r d a d e v a i p a r a o c a i - x ã o » , dizia a letra. Imprensa e associações internacionais de direitos humanos caí- ram sobre o episódio trágico e Katrogipo- longopongo, nome de artista original, ou Katrogi Nhanga Luamba, « n o m e o f i c i a l s e m r e g i s t o c i v i l » , ou ainda MCK, como assina os discos, tornou-se um símbolo de liberdade de expressão (ou da necessida- de dela) em Angola. Nasceu no bairro de Macussulo, em Luanda, do qual se mudou, aos quatro anos, para o bairro de lata de Chabbá, na altura conhecido pelas casas feitas de chapas de zinco em que eram impressos os jornais. Filho de um motorista e de uma empregada doméstica, o rapper de 30 anos tirou o curso de Filosofia na Uni- versidade António Agostinho Neto, em Luanda, e vive hoje na Maianga. Actualmente estu- da Direito na Universidade Católica, também na capital angolana. A par da espaçada activida- de como músico – N u t r i ç ã o E s p i r i t u a l , o segundo álbum, foi lançado em 2006, e P r o i b i - d o O u v i r I s t o em Dezembro de 2011 – é sócio de uma em- presa de transportes, desenvolve projec- tos de marketing e comunicação e traba- lha na produtora Masta K Produsons, através da qual edita mensalmente o pro- jecto C i r c u i t o F e c h a d o , simulação de um programa de rádio vendido em CD para a divulgação de músicos PALOP como o moçambicano Azagaia. A entrevista decorreu durante a sua passagem por Portugal para apresen- tar o terceiro álbum, que no dia de lan- çamento em Luanda vendeu mais de 10 mil cópias, e para gravar o videoclipe da faixa ‘Nomes, Rimas e Palavras’ (produzida pelo português Sam The Kid) na Mouraria, em Lisboa. Não foi a primeira vez que actuou em palcos lusos: em 2007 passara pelo Cine- ma São Jorge, em Lisboa, e em 2008 pela Casa da Música, no Porto. Da última re- corda o episódio em que, durante o soundcheck, foi abordado por « t r ê s h o - m e n s d e f a t o e g r a v a t a » . Eram represen- tantes de três partidos angolanos e pro- puseram-lhe ser deputado. Não pensou duas vezes: recusou. O que significa Katrogipo- longopongo? Criei o nome quando co- mecei a ler literatura dos anos 70, relacionada com o renascimento cultural de África, sobre as lutas de li- bertação e muito votada ao pan-africanismo, à negritu- de. Daí surgiu a ideia de um nome que, não existindo, » I MÚSICA É o mais insurrecto de uma geração de rappers angolanos. Em P r o i b i d o O u v i r I s t o , MCK continua a dar voz ao silêncio conformado dos mais velhos Texto de AISHA RAHIM Fotografias de JOSÉ SÉRGIO P R O I B I D O LER ISTO «NO ASFALTO, QUANDO DEIXAS DE SER CRIANÇA SOBEM-TE A MESADA. NA PERIFERIA, TENS DE TRABALHAR» «A MINHA MÃE, QUE NÃO SABE LER, DIZIA-ME: ‘ÉS PRETO E ÉS POBRE, TENS DE ESTUDAR DUAS VEZES MAIS DO QUE QUEM TEM’» T

IMÚSICA PROIBIDO - Central Angola 7311 | Ponto de ... · O que significa Katrogipo-longopongo? Criei o nome quando co-mecei a ler literatura dos anos 70, relacionada com o renascimento

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INHA 20 ANOS QUANDO, de formaartesanal, lançouoálbumTrinchei-ra de Ideias (2006) no mercado ne-

gro em Luanda. Longe de imaginar queum jovem lavador de carros chamadoCherokee viria a ser assassinado pelaguarda policial por apenas trautear a can-ção ‘ATéknica,asKausaseasKonsekuên-cias’. «Quem fala a verdade vai para o cai-xão», dizia a letra. Imprensa e associaçõesinternacionais de direitos humanos caí-ram sobre o episódio trágico e Katrogipo-longopongo, nome de artista original, ouKatrogi Nhanga Luamba, «nome oficial sem registo civil», ou ainda MCK, comoassina os discos, tornou-se um símbolo deliberdade de expressão (ou da necessida-de dela) em Angola.

Nasceu no bairro de Macussulo, emLuanda, do qual se mudou, aos quatroanos, para o bairro de lata de Chabbá, naaltura conhecido pelas casas feitas dechapas de zinco em que eram impressosos jornais. Filho de um motorista e deuma empregada doméstica, o rapper de30 anos tirou o curso de Filosofia na Uni-versidade António Agostinho Neto, emLuanda, e vive hoje naMaianga. Actualmente estu-da Direito na UniversidadeCatólica, também na capitalangolana.

A par da espaçada activida-de como músico – Nutrição Espiritual, o segundo álbum,foi lançado em 2006, e Proibi-do Ouvir Isto em Dezembrode 2011 – é sócio de uma em-

presa de transportes, desenvolve projec-tos de marketing e comunicação e traba-lha na produtora Masta K Produsons,através da qual edita mensalmente o pro-jecto Circuito Fechado, simulação de umprograma de rádio vendido em CD paraa divulgação de músicos PALOP como omoçambicano Azagaia.

A entrevista decorreu durante a suapassagem por Portugal para apresen-tar o terceiro álbum, que no dia de lan-çamento em Luanda vendeu mais de 10mil cópias, e para gravar o videoclipeda faixa ‘Nomes, Rimas e Palavras’(produzida pelo português Sam TheKid) na Mouraria, em Lisboa.

Não foi a primeira vez que actuou empalcos lusos: em 2007 passara pelo Cine-ma São Jorge, em Lisboa, e em 2008 pelaCasa da Música, no Porto. Da última re-corda o episódio em que, durante osoundcheck, foi abordado por «três ho-mens de fato e gravata». Eram represen-tantes de três partidos angolanos e pro-puseram-lhe ser deputado. Não pensouduas vezes: recusou.

O que significa Katrogipo-longopongo?

Criei o nome quando co-mecei a ler literatura dosanos 70, relacionada com orenascimento cultural deÁfrica, sobre as lutas de li-bertação e muito votada aopan-africanismo, à negritu-de. Daí surgiu a ideia de umnome que, não existindo, »

I MÚSICA

É o mais insurrecto de uma geração de rappersangolanos. Em Proibido Ouvir Isto, MCK continua a darvoz ao silêncio conformado dos mais velhos

Texto de AISHA RAHIM Fotografias de JOSÉ SÉRGIO

PROIBIDOLER ISTO

«NO ASFALTO,QUANDODEIXAS DE SERCRIANÇASOBEM-TE AMESADA. NAPERIFERIA, TENSDE TRABALHAR»

«A MINHA MÃE,QUE NÃO SABELER, DIZIA-ME:‘ÉS PRETO E ÉSPOBRE, TENS DEESTUDAR DUASVEZES MAIS DOQUE QUEM TEM’»

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soasse a África. E que ao mesmo tempoamedrontasse, como os nomes dosrappers americanos que ouvia no iníciodosanos90,porexemploosPublicEnemy.Atribuí-lhe o significado de ‘paz de espíri-to’. Sou ‘o pacificador’, ‘o diplomata’...Um diplomata que cresceu num bairrode lata. Como foi a sua adolescência?

No asfalto, quando deixas de ser crian-ça, sobem-te a mesada. No bairro de latapassa-se precisamente o contrário: aos 12anosemvezdeganharesumaPlaystation,tensdeircaçardinheiro.Porquenamaiorparte dos bairros periféricos o pai é bêbe-do e não contribui para as rendas da casa,e a mãe é mãe e pai ao mesmo tempo.Como caçava dinheiro?

Vendia água, petróleo, leite e, comosabia desenhar, vendia bonecos. Até osmeus próprios brinquedos eu criava. Fa-zia carros de lata. Normalmente quemconsegue sair dos guetos de Angola temdois sonhos que são os primeiros a con-cretizar: o carro caro e a casa bruta paraoferecer à mãe.E foi isso que fez?

Já tenho um Land Rover Discovery,mesmo bonito. E eu e os meus irmãosjá conseguimos comprar a casa da mi-nha mãe em Luanda, o que nos enchede orgulho. Agora estamos a lutar parapagar a nossa.Na música ‘Na Fila do Banco’ critica aprostituição, o consumo e o tráfico dedroga. Passou ao lado disso tudo?

Foi um milagre. A minha mãe nãosabe ler e mesmo assim eu cresci entrelivros. Com o salário mínimo não dei-xava de me comprar o material escolare pegava-me no braço para irmos àigreja dos Testemunhas de Jeová, quealém de produzir literatura semanal-mente, por si só é a igreja das proibi-ções todas: não à fornicação, não aoadultério, não a todos os vícios pesa-dos... Daquele bairro onde os índices decrime e alcoolismo são elevadíssimos,não tenho uma única memória de tercaído bêbedo. A minha mãe dizia: ‘Tu

MCK FOI À CAPITAL PORTUGUESA LANÇAR O DISCO PROIBIDO OUVIR ISTO

és preto, és pobre, tens de fazer duas ve-zes mais, tens de estudar duas vezesmais do que quem tem’.E acabou mesmo por fazer dois cursos:Filosofia e agora Direito.

A Filosofia oferece um bom conjuntode elementos para quem quer defenderalguma coisa. Com o Direito percebes adinâmica das leis, as limita-ções do cidadão mas tambémas do próprio poder político.Por exemplo, só agora consi-go perceber que o político emAngola vive em permanentepromiscuidade com os seusinteresses de empresário.Na música ‘Teologia da Pros-peridade’ diz que até a reli-gião parece minada pelacorrupção.

Quando eu era novo, aigreja batia-se pelo conceitode Paraíso. Hoje esse tema jánão atrai os crentes. Há ago-ra uma nova onda religiosaque vive da exploração dospobres: vende-lhes a ideia deque se forem à igreja terãodinheiro e promete-lhes a fe-licidade do aqui e agora. Osrostos mais visíveis são aManá, a Universal do Reinode Deus e a Mundial.Por que chamou ao primei-ro disco Trincheira de Ideias?

Estava a ler um livro de Fi-del Castro, Fidel e a Religião,que tinha um capítulo comesse título. Ele dizia que boaparte das coisas que aprendeuna vida foi na cadeia, ondeconviveu com um conjunto depresos políticos formados emáreas diversificadas. Colocá-mos na capa um cérebro que,ao ser protegido pelo crânio,é como um soldado numa trin-cheira. O título adaptava-se àquele mo-mento que Angola estava a viver.Olhando com 10 anos de distância, quemomento estava Angola a viver?

Na altura estávamos a experimentaruma democracia embrionária, a nossa so-ciedade civil era muito desestruturada,não havia uma imprensa privada varia-da. Hoje, mesmo condicionada, ela é maisalargada e tem algum poder. Já temosmais de dez jornais, mais de três estaçõesde rádio, mais do que uma cadeia televi-siva. Naquela altura havia apenas duas

ou três grandes personalidades que criti-cavamoregime:JonasSavimbi,presiden-te da UNITA, e a oposição mais directa;William Tonet, director do Folha 8; e umou outro padre que quando estava chatea-do com o Vaticano fazia umas críticas emgeral.O que acha que o álbum representou?

Esse álbum marcou a épo-ca pela ousadia do jovemcom 22 anos a falar de assun-tos que os mais velhos ti-nham medo de falar. Essesmais velhos, que antes de1975 tinham lutado pelosideais de marxismo, comu-nismo, união, tinham luta-do contra o colonialismo e aescravatura e sonhavam teruma Angola onde pudessemsentir-se orgulhosos de ternascido. Esses mais velhosficaram conformados – ouporque receberam dinheiroe resignaram-se à situaçãoou porque perderam a espe-rança. Uma música de Wal-demar Bastos até desincenti-vava: ‘Xé menino, não falapolítica’.Ficou assustado com o epi-sódio trágico do Cherokee?

Sou um tipo assim frio, cal-mo. Mas o facto é que recebivárias pressões. Primeiro, doregime. Segundo,da minha família,aquela pressão dequem te ama enão te quer per-der. Terceiro, esta-va receoso em sa-ber qual seria areacçãodafamíliado Cherokee. Masfelizmente para afamília dele preenchi o vazio

que o Cherokee deixou e fui acolhidocomo um filho.Recebeu pressões do Governo angolano?

Não há maior pressão do que a mor-te do Cherokee. Hoje já tenho alguns ca-los de caminhada, já consigo gerir me-lhor essas situações. Apesar de conti-nuar a haver jornalistas, tanto daimprensa pública como privada, inti-midados por divulgar a minha música.E espectáculos impedidos de serem rea-lizados. Enfim...E como se gere este tipo de situações?

Este disco cai num momento políticomuito excitante. Nasce no meio de umfenómeno de revolução do Norte deÁfrica e do surgimento de uma ferra-menta de intervenção e pressão políticanova em Angola: as manifestações. Nas-ce num momento pré-eleitoral, de âni-mos altos. Não interessava ao regimeangolano proibir um álbum chamadoProibido Ouvir Isto. A Direcção Provin-cial da Cultura chegou a pedir o discopara ouvir antes do lançamento, o quepara mim foi um acto de intimidação –e a nossa lei constitucional, no artigo42.º, diz que toda a obra de criação ar-tística é independente de censura ou deprivações dessa natureza.E chegou a entregar o CD?

Sim, mas com uma carta a dizer quese o proibissem estariam a cometeruma inconstitucionalidade. Além dis-so, foi tudo pensado estrategicamente:a minha venda ia acontecer no domin-go e eu entreguei o CD na sexta-feiradepois do almoço, porque em Angolahá a cultura de não trabalhar depoisdessa hora... Para quem, quando tevefome, criou bonecos para ir vender nacidade, não é muito difícil dar a voltaàs coisas. É uma das coisas que apren-des nos bairros periféricos, tornar o so-frimento numa escada para subir.Por que esteve parado durante cincoanos como músico?

Dou sempre quatro anos de distânciaentre os álbuns. Para este es-perei mais um ano porqueprecisava do momento estra-tégico de que falei. Quatroanos também é tempo sufi-ciente para observar se o Go-verno faz coisas boas. O Lulaem oito anos tirou mais de 12milhões de brasileiros da po-breza.Pondera envolver-se na

política do seu país?Já estou bem envolvido, mas por en-

quanto não quero que a minha músicatenha uma conotação partidária. O Iko-noklasta [músico angolano] costumadizer que eu seria um bom candidato àPresidência da República. E o curso deDireito, o exercício musical que estoua fazer como activista cívico, e os prin-cípios que defendo enquanto pessoa,tudo me empurra para aí. A Constitui-ção permite que me candidate aos 37anos... Quem sabe? l

[email protected]

«O POLÍTICOANGOLANO VIVEEM PERMANENTEPROMISCUIDADECOM OS SEUSINTERESSES DEEMPRESÁRIO»

«ESTE DISCOCAI NUMMOMENTOPOLÍTICOMUITOEXCITANTE, DEREVOLUÇÃO EÂNIMOS ALTOS»

«NOS BAIRROSPERIFÉRICOSAPRENDES ATORNAR OSOFRIMENTONUMA ESCADAPARA SUBIR»