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Jornal SBC 82 - Jul/Ago 2007
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in memoriam
Protásio Lemos da Luz
Estamos aqui para o último adeus ao Prof. Luiz Venere Décourtnesta cerimônia carregada de emoção e simbolismo, na Congregação daFMUSP onde ele por tantos anos labutou. Em nome da direção doInCor, de todos os seus funcionários e da Fundação Zerbini, apresen-tamos nossa solidariedade à família. É muito apropriado que nossaFaculdade homenageie um de seus grandes expoentes. Há algum tem-po Zerbini se foi; agora Décourt. É um ciclo glorioso que se encerra.
Professor Décourt foi um homem muito especial. Chegou cedo àposição de professor titular e honrou o cargo como poucos. Dotadode rara inteligência, concentrou notáveis conhecimentos de Clínica Mé-dica e, portanto, sempre foi visto como um grande médico.
Sempre foi um estudioso disciplinado, um leitor voraz, que man-tinha fichas pessoais dos artigos que lia. E não apenas de medicina –são lendários seus profundos conhecimentos de música, matemática,história e artes em geral. Sempre valorizou a cultura geral, não comoum luxo de intelectuais, mas um instrumento valioso de comunicaçãoentre os homens, de aproximação entre médico e pacientes.
Amparou os jovens, incentivando-os com seu entusiasmo e mos-trando-lhes caminhos. Foi ao mesmo tempo disciplinador, compre-ensivo e sensível; intolerante com falácias e preconceitos, com a malda-de e a ignorância; acolhia, no entanto, livremente a discussão de idéiase, sobretudo, tinha enorme compreensão pelo ser humano, aceitandosuas limitações e diferenças. Graças a essa grande capacidade de com-preensão dos homens, foi um agregador, um formador de equi-pes. Seu serviço de Cardiologia atraiu milhares de alunos de todaa América Latina. Sempre procurava o lado bom das pessoas, eajudou a muitos, senão todos nós que convivemos com ele, emalgum momento de nossas vidas. Desde os tempos do HC cu-nhou a expressão “a mística da enfermaria”, para significar que anossa profissão tem um cunho sacrossanto porque se dedica apreservar valores inalienáveis da pessoa humana, como a saúde e avida. Entre seus discípulos diretos contam-se homens como Fúl-vio Pileggi, Radi Macruz, João e Bernardino Tranchesi e muitosmais jovens que hoje formam a Cardiologia brasileira. Foi um dosgrandes idealizadores e criadores do InCor, tendo sido seu diretorcientífico por muitos anos.
Discurso proferido na cerimônia dedespedida do professor Décourt
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Arrisco-me a dizer que Décourt teve três objetivos principais navida profissional: a ciência, o ensino e a pessoa humana. Na ciência,estudou, escreveu livros e artigos, pesquisou e esteve sempre atualiza-do. No ensino, foi insuperável; para mim, nosso maior didata. Comohumanista, um defensor dos pobres, dos doentes e um pregador dorespeito pela pessoa humana.
Ao perseguir esses objetivos, algumas outras características se des-tacaram: integridade, dedicação e visão do futuro.
Essas qualidades fizeram dele um exemplo inesquecível, e um lídercuja contribuição para a Cardiologia brasileira e da América Latina demuito excede sua existência terrena. E o que deu credibilidade à lide-
rança do Prof. Décourt foi a coerência de sua vida: ele pregou humanismoe foi caridoso; pregou amor pela ciência e sempre venerou o conheci-mento e o progresso; pregou a necessidade de ensinar; ensinou compalavras e exemplos, mas sobretudo, inspirou seus alunos, como umverdadeiro mestre deve fazer.
Senhoras e senhores: há sempre uma tristeza e uma conscientizaçãoda nossa finitude quando alguém tão majestoso, tão venerado comoLuiz Venere Décourt morre; sentimo-nos desamparados; um pedaçode nós também se vai. Nossas emoções, sinceramente, se juntam às dafamília. Nós, cardiologistas, também perdemos um pai.
Mas lembremos que ele deixou lições inesquecíveis, exemplos me-moráveis. Isso assegura que sua memória ficará sempre conosco. Nãonos fixemos apenas na tristeza da sua partida. Pensemos também nabênção que foi ele ter existido, na alegria e nos ensinamentos que elenos proporcionou.
Embora nada que digamos aqui possa se comparar ao que ele fezem vida, façamos um voto solene de preservar sua memória, pratican-do a medicina e o magistério sob os nobres princípios de dignidade ehumanismo, que ele sempre defendeu.
Leia a entrevista dada pelo Prof. Décourt ao Jornal SBC naedição de novembro/dezembro de 2000 (nº 42), no link:http://jornal.cardiol.br/2007/jul-ago/outras/jornal42-entrevista.pdf
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in memoriam
Charles MadyEntrei na casa de Arnaldo,
como carinhosamente chamamos
a Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de São Paulo, inaugu-
rada por Arnaldo Vieira de Car-
valho, em 1965, cursando o pri-
meiro ano. Nessa ocasião, a Con-
gregação da Faculdade era com-
posta de poucos professores ca-
tedráticos, que eram por nós en-
carados com profundo respeito,
às vezes até excessivo, beirando à
reverência. Éramos garotos idea-
listas, e neles não enxergávamos
defeitos, apenas virtudes. Eu me
formei em 1970, tendo passado
como aluno por Odorico Macha-
do de Sousa, Isaías Raw, Carlos da
Silva Lacaz, Euryclides de Jesus
Zerbini, Eurico da Silva Bastos,
Edmundo Vasconcelos, Antonio
de Barros Ulhoa Cintra, Arrigo
Raia, Emilio Mattar, Sebastião de
Almeida Prado Sampaio, Flavio
Pires de Camargo, e tantos outros,
todos ícones de nossa medicina.
A seguir, tornei-me residente
e preceptor, e meu contato com o
Prof. Décourt aumentou, tornan-
do-se praticamente diário, fazen-
do parte de um grupo que o ro-
deava nas atividades acadêmicas.
O tempo passou, e tornei-me
assistente da 2ª Clínica Médica, e
nosso contato aumentou ainda
mais.
Aos poucos, aquela aura de
professor catedrático foi se desfa-
zendo, e a imagem do Homem
O que significou oProf. Dr. Luiz V. Décourtpara nós
(com H maiúsculo) foi se mos-
trando, e seu lado humanista se
revelando. Notei que ele não vi-
via só para a medicina, mas tam-
bém por ela, que fazia parte de
um todo que poucos conseguem
atingir. Discutíamos historia, fi-
losofia, vinhos e, principalmen-
te, música. Era uma presença
para poucos, pois tinha uma
vida social restrita. Não era um
homem da mídia, não gostava
de “marketing”, tendo atingido
a grandeza no silêncio. Foi um
raro exemplo de reconhecimento
sem necessidade de força ou pro-
paganda. Era simplesmente um
humanista. Acreditava, como
Cícero, na consciência ética com
que fomos dotados pela nature-
za, que gera a justiça autêntica,
baseada não no interesse próprio
de pessoas ou povos. Conforme
o tempo passava, vários ídolos
da nossa Congregação foram ca-
indo, pela força da soberba, da
vaidade, da mesquinharia, do in-
teresse próprio, dos jogos políti-
cos rasteiros. Como todo sábio,
ele era humilde, e a academia
nunca foi para ele um meio, mas
sim um fim. Nunca usufruiu dela
para ganho próprio, tendo sem-
pre vivido de forma simples. E
com isso, sua imagem crescia,
crescendo de forma natural e es-
pontânea. Era autoridade pela
força da pessoa, e não do cargo.
Não conheço alguém que tenha
feito discípulos mais do que ele.
Alguns podem ter se perdido no
caminho, mas muitos permane-
ceram, frutos de seus ideais, per-
petuando uma determinada cons-
ciência. Essa herança é o que há
de mais nobre no ser humano.
Herança cultural, moral e ética.
Como Francisco de Assis, vivia
integralmente a serviço da digni-
dade humana. E como Tomás de
Aquino, tinha imenso respeito
pela tradição construtiva. Hoje,
com os exemplos que nos ro-
deiam neste país, ele seria um ho-
mem fora de moda, nessa época
em que mais vale a forma que o
conteúdo. Entretanto, seu perfil
será sempre atual, mesmo tendo
morrido numa época em que a
educação e a saúde tendem a tor-
nar-se simples mercadorias, que
existem apenas em razão de sua
capacidade de gerar lucros mate-
riais. Seguia Rousseau, em seu
pensamento de que “o forte nun-
ca é bastante forte para permane-
cer sempre no poder, se não
transforma sua força em direito”,
direito de todos e para todos.
Muitos tiveram o poder para mo-
dificar, fazer evoluir, construir de
forma desinteressada, mas nos
decepcionaram. Sabia ouvir, mas
era cerebralmente intolerante com
a intolerância alheia.
Sempre construiu, nunca des-
truiu. Sabia que a verdadeira edu-
cação é de cunho moral, e não téc-
nica. Construiu um paradigma de
caráter em nossa Congregação,
construindo alunos, médicos, ci-
ência, e a 2º Clínica Médica, da qual
muito se orgulhava, como tam-
bém nos orgulhávamos. Costu-
mava dizer que havia uma “mís-
tica” nessa clínica, demonstrando
apego e paixão por nosso ambi-
ente de trabalho. Mas, o mais
importante, nessa clínica: reuniu,
agregou um enorme número de
profissionais altamente produti-
vos, plantando as sementes do
que viria a ser o Instituto do Co-
ração (InCor), em integração com
o Prof. Zerbini, tendo sido o seu
primeiro diretor científico.
Na vida prática, era um clíni-
co com impressionante visão ge-
ral. Era, o que hoje nos falta, um
clínico de família, um conselhei-
ro médico, um “amigo”; como
dizia Agostinho, “é aquele com
quem se pode atrever-se a com-
partilhar os segredos do coração”.
Aliava a ciência à arte do contato
humano. Seus discípulos se re-
cordam muito bem de suas exi-
gências quanto ao respeito a se
dedicar aos pacientes, àqueles que
sofrem. Exigia informações com-
pletas, antes de recorrer às técni-
cas de laboratório.
Morreu pobre materialmen-
te, mas deixa para nós, da Facul-
dade de Medicina, lições que fa-
zem parte dos alicerces de nossa
escola. Sua missão está cumpri-
da, e seguramente está descansan-
do em paz. O que mais alguém
poderia desejar?