34
l ' 1_ ldentidade e uma . ______ Kathryn Woodward lntrodu9ao 0 cscritor e radialista Michael Ignatieff conta a seguinte l1isloria, a qual se passa no contexto de urn pais dilacerado pela guerra, a antiga IugosLivia: ' ' Sao quatro horas da manha. Estou no posto de comando da milfcia servia local, em uma casa de fazenda abandona- da, a 250 metros da linha de frente croata ... nao na Bosnia, mas nas zonas de guerra da Croacia central. 0 mundo nao esta mais olhando, mas toda noite as milicias croatas e servias trocam tiros e, as vezes, pesados ataques de bazuca. Esta e uma guerra de cidade pequena. Todo mundo co- nhece todo mundo: eles foram, todos, a escola juntos; antes da guerra, alguns deles trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda noite, eles se comu- nicam pelo r<'idio do cidadao" e trocam insultos - tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar se matar uns aos outros. Estou falando com soldados servios- reservistas cansados, de meia-idade, que preferiam estar em casa, na cama . Estou tentando compreender par que vizinhos comec;:am a se matar uns aos outros. Digo, primeiramente, que nao consigo distinguir entre servios e croatas. "0 que faz voces pensarem que sao diferentes ?" 0 hom em com quem estou falanclo pega urn mac;:o de cigar- ros do bolso de sua jaqueta caqui. "Ve isto? Sao cigmTos serYios. Do outro laclo, eles fumam cigarros croatas." ·'!\las clcs sao, ambos, cigarros, certo?" 7

in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

  • Upload
    vokhanh

  • View
    220

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

l

'

1_

ldentidade e diferen~a: uma . ______ in_t_r_o_d_u_.._~_a_o_t_e_6_r_ic_a_e_c_o_n_c_e_it_u_a_l

Kathryn Woodward

lntrodu9ao

0 cscritor e radialista Michael Ignatieff conta a seguinte l1isloria, a qual se passa no contexto de urn pais dilacerado pela guerra, a antiga IugosLivia:

'

'

Sao quatro horas da manha. Estou no posto de comando da milfcia servia local, em uma casa de fazenda abandona­da, a 250 metros da linha de frente croata ... nao na Bosnia, mas nas zonas de guerra da Croacia central. 0 mundo nao esta mais olhando, mas toda noite as milicias croatas e servias trocam tiros e, as vezes, pesados ataques de bazuca.

Esta e uma guerra de cidade pequena. Todo mundo co­nhece todo mundo: eles foram, todos, a escola juntos; antes

da guerra, alguns deles trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda noite, eles se comu­nicam pelo r<'idio "f~1ixa do cidadao" e trocam insultos -tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar se matar uns aos outros.

Estou falando com soldados servios- reservistas cansados, de meia-idade, que preferiam estar em casa, na cama .

Estou tentando compreender par que vizinhos comec;:am a se matar uns aos outros. Digo, primeiramente, que nao consigo distinguir entre servios e croatas. "0 que faz voces pensarem que sao diferentes ?"

0 hom em com quem estou falanclo pega urn mac;:o de cigar­ros do bolso de sua jaqueta caqui. "Ve isto? Sao cigmTos serYios. Do outro laclo, eles fumam cigarros croatas." •

·'!\las clcs sao, ambos, cigarros, certo?"

7

Page 2: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

«Voces estrangciros niio entenclem nacla" - clc cL'i de ombros e come<:;a a limpar a 1netralhadora Zastuco.

Mas a pergunta que cu flz incomoda-o, de forma que, alguns minutos mais tarde, ele joga a arma no banco ao lado e diz: "Olha, a coisa e assim. Aquelcs croatas pensam que siio melhores que n6s. Eles pensam que siio europeus flnos e tudo o mais. You lhe dizer uma coisa. Somos todos lixo dos Balciis" (Ignatieff, 1994, p. 1-2).

Trata-se de uma hist6ria sobre a guerra e o conflito, desenrolada em um cenario de turbulencia social e politica. 11-ata-se tambem de uma hist6ria sobre identidades. Nesse cenario mostram-se duas identidades diferentes, depen---- .. - ' ,- '

dentes de cluas posi<;6es nacionais separadas, a dos servios e ados croatas, que sao vistos, aqui, como do is povos claramen­te identificaveis, aos quais os hom ens envolvidos supostamente pertencem - pelo menos e assim que eles se veem. Essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos

sistemas simb6licos pelos quais elas sao representadas.

Arepresentac;:ao atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas rela<;6es no seu interior (Hall, 1997a). Como se poderia utilizar a ideia de representac;:ao para analisar a forma como as identidades sao construidas nesse caso? Exami­nemos outra vez a hist6ria de Ignatieff 0 que e visto como sendo a mesma coisa eo que e visto como sendo diferente nas duas identidades - a dos servios e a dos croatas? Quem e incluido e quem e excluido? Para quem esta clisponivel a iclenticlacle nacional servia enfatizada nessa hist6ria?

Trata-se de povos que tem em comum cinqtienta anos de unidade politica e economica, vividos sob o regime de Tito, na na<;ao-estado da Jugoslavia. Eles partilham o local c divcrsos aspectos da cultura em suas vidas coticlianas. Nfas 0 argumcnto do rniliciano servio e de que OS servios e OS

croatas sfto totalmcnte diferentcs, ate mcsmo nos cigarros que fumam. A princfpio, parcce nao existir qualqucr coisa em cmnum entre servios c croatas, mas em poucos minutos

8

o horn em est{t clizcndo a Ignatieff que sua maior qucixa contra seus inimigos 6 que os croatas sc pensam como sendo melba­res que os servios, embora, na vcrclade, "sejam os mesmos": segundo cle, nfm b{t nenhuma chfcrenga entre os dois.

Essa hist6ria mostra que a id~ntidade. e relacional. A identiclade servia depende, para existil~ de algo fora dela: a sabe1~ dc outra identidacle ( croc1cia), de uma identidade que ela.

·~---- -- - -

n~g e, que difere cla identidacle servia, mas que, entretanto, fornece as conclic;:6es para que ela exista. A identidade servia se distingue por aquila que ela nao e. Ser um servia e ser um "nao-croata". A identidade e, assim, marcada pela diferen<;a.

Essa marcac;:ao da cliferen<;a nao deixa de ter seus pro­blemas. Por um lado, a assergao cla diferenc;:a entre servios e croatas envolve a negagao cle que nao existem quaisquer similaridades entre os dois grupos. 0 servio negaaquilo que ele percebe como sendo a pretensa supcrioridade ou van­tagem dos croatas, os quais sao, todos, reuniclos sob o guar­cla-chuva da identiclacle nacional croata, constituindo-os, assim, como estranhos e como "outros". A cliferen<;a e sus­tentada pela e~clusao: se voce e servio, voce nao pode ser croata, e vice-versa. Por outro lado, essa afirmagao da dife­renga e problematica tambem para o soldado servia. No nivel pessoal, ele esta certo de que os croatas nao sao melhores que OS sen·ios; na verdade, ele cliz que eles sao a mesma coisa. Ignatieff observa que essa "rnesmiclade" e o produto da expe­riencia vivicla e das coisas cla vida cotidiana que os servios e os croatas tem em comum. Essa clisjunc;:ao entre a unidacle cla iclentidade nacional (que enfatiza o coletivo "nos somos todos servios") e a vida cotidiana cria confusao para o soldado que parece sc contraclizer ao afirmar uma grande diferenga entre os s6rvios e os croatas e, ao mesmo tempo, uma grande simila­ridaclc- ''somos todos lixo dos B<\lcas".

A identidade e marc ada por mcio de sfmholos; por exem­plo, pelos proprios ciganos llue sao furnados em cacla lado.

9

- -- -------------: ~- --~--~--- - --

- ------ -·------ - - --

carlaabreu
Realce
Page 3: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

Existe uma associa<,;ao entre a iclentidade da pessoa c as coisas que uma pessoa usa. 0 cigarro funciona, assirn. ncstc

L .

caso, como um significantc importante cla difcrenc;;a e cla identidaclc e, al6m disso, como um significantc que ~\ com freqtiencia, associado com a masculinidacle (tal como na . canc;;ao dos Rolling Stones, "Satisfaction": "Bern, ele nao pode ser um homem porque nao fuma os mesmos cigarros que eu" [Well he can't be a 1nan 'cause he doesn't smoke the same cigarettes as me]). 0 homem cia milicia servia e expli­cito quanto a essa referfmcia, mas menos clireto quanto a outros significantes da identidacle, tais como as associa­c;;6es com a sofisticac;;ao cla cultura europeia ( ele fala de "europeus finos"), cla qual sao, ambos, servios c croatas, exclufdos, e a inferioriclade cla cultura balcanica que e, implicitamente, sugericla como sendo sua antftese. Isso estabelece uma outra oposic;;ao, pela qual aquilo que a cultura bald1nica tem em comum e colocaclo em contras­te com a cultura de outras partes cia Europa. Assim, a construc;;ao da identidade e tanto simb6lica quanta sociai/ A Iuta para afirmar as diferentes identidades tem causas e conseqi_iencias materiais: neste exemplo isso e visivel no conflito entre os grupos em guerra e na turbulencia e na clesgrac;;a social e economica que a guerra traz.

Observe a freqiiencia com que a identiclade nacional e ' - ·-

m;:trcada pelo genero. No nosso exemplo, as identiclades nacionais produzidas sao masculinas e estao ligadas a con­cepc;;6es militaristas de masculinidade. As mulheres nao fazem parte desse cemh-io, embora existam, obviamente. • outras posic;;6es nacionais e etnicas que acomodam as mu-lheres. Os homens tendem a construir posic;;oes-de-sujeito para as mulhcrcs tornanclo a si pr6prios como ponto de rcferencia. A (mica mcn<,;fto a mulhercs, ncstc caso, 6 as "garotas" que clcs "namoravam", ou mdhor, que f(wam

"namoraclas" no passado, antes do surginwnto do conflito.

]()

As mulhcres sao os significantes cle uma iclentidade mascu-c.

lina partilhada, mas agora fl·agmentacla e reconstruicla, for-manclo iclentidacles nacionais distintas, opostas. Neste mo­mento hist6rico especifico, as clifcrcngas entre os homens sao maiores que quaisquer similariclades, uma vez que o foco esta colocaclo nas identidacles nacionais em conflito. A iclentidade e marcada pela cliferenga, mas parece que algu­mas diferenc;;as- neste caso entre grupos etnicos- sao vistas como mais importantes que outras, especialmente em Juga­res particulares e em momentos particulares.

Em outras palavras, a afirmac;;ao clas identiclades nacio­nais.6 historicamente especifica. Embora se possa remontar as raizes das identiclades nacionais em jogo na antiga Iugos­lavia a hist6ria clas comunidades que existiam no interior daquele territ6rio, o conflito entre elas surge em um mo­mento particular. Nesse senticlo, a emergencia dessas dife­rentes identidacles e hist6rica; ela esta localizada em um ponto especifico no tempo. U ma das formas pelas quais as iclenticlades estabelecem suas reivinclicac;;6es e por meio do apelo a ar!_tecedentes hist6ricos. Os servios, OS b6snios e OS

croatas tentam reafirmar suas iclentidades, supostamente percliclas, buscanclo-as no passado, embora, ao faze-lo, eles

~,_ . -

possam estar realmentc procluzindo novas iclenticlades. Por exemplo, os servios ressuscitaram e redescobriram a cultura servia dos guerreiros e dos contadores de hist6rias - OS

Guslars da !clade \leclia- como um elemento significativo de sua hist6ria, refor<,;ando, por esse meio, suas atuais afir­mac,:6es de identidade. Como escrevc Ignatieff em outro local, "os senhores da guerra sao importantissimos nos Bal­cas; cliz-se aos estrangeiros: 'voces tem que comprecnder nossa hist6ria ... ' c vinte minutos mais tarde ainda cstamos ouvindo hist6rias sobre o rei Laza1~ os turcos e a batalha de Kosovo" (Ignatie1ll993, p. 240). A reproduc;fw clesse pas­saclo, ncsse ponto, sugcrc, entrctanto, um momento de crisc

11

--~--------~ -

carlaabreu
Realce
Page 4: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

e nao, como se poderia pcnsa1~ que haja algo estabelccido e fixo na construc.;ao da idcntidade servia. Aquilo que parece ser sirnplcsmcnte um argurncnto sohre o passado c a reafir­mac.;iio de uma venlade hist6rica pode nos clizer mais sobre a nova posic.;iio-de-sujeito do guerreiro do scculo ~X que esta tentando defender e afinnar o sentimento de separa(.;ao e de distinc;;ao de sua identidade nacional no presente do que sobre aquele suposto passado. Assim, essa red~~_Q_nherta~lo - . ~

passado C parte do proc;:esso g~CQ]1StrtlQtZO da identiclade qtie~sta ocorrendo neste exato mon1ento e que, ao que

••

parece, e caracterizado por conflito, contestac;;ao e uma possivel crise.

Esta discussao da identidade nacional na antiga Iugos­lavia levanta quest6es que podem ser formuladas de forma mais ampla, para fundamentar uma discussao mais geral sobre a identidade e a diferenc;;a:

- Por que estamos examinando a questao da iclenticlade neste exato momenta? Existe mesmo uma crise da identi­clade? Caso a resposta seja afinnativa: por que isso ocorre?

- Por que as pessoas investem em posigoes de iclentida­de? Como se pode explicar esse investimento?

Na base da discussao sobre essas quest6es est;i atensao entre perspectivas essencialistas e perspectivas nao-essen­cialistas sobre identidade. Uma definic;;ao essencialista da identidade "servia" sugeriria que existe um conjunto crista­lino, autentico, de caracterfsticas que toclos os servios par­tilham e que nao se altera ao Iongo do tem110. Uma definic;ao nao~essencialista focalizaria as diferengas, assim como as caracteristicas comuns ou partilhadas, tanto entre os pr6-prios servios quanto entre OS servios e outros grupos etnicos. Uma defini<.;ao nao esscncialista prestaria atcnc;Cw tamb6n as fonnas pdas quais a clefini<:;ao daquilo que significa ser urn "servio" tem mudaclo ao Iongo clos seculos. Ao afirmar a prirnazia de uma idcntidade - por exemplo, a do s{~rvio -

12

parece necessario n~lO apenas coloca-la em oposic.;ao a uma outra identidacle que e, entao, desvalorizada, mas tarnbem reivinclicar alguma iclentidade s{~rvia "verclacleira", autcnti­ca, que teria permanecido igual ao Iongo do tempo. Mas c isso o que ocorre? A iclcnticladc e fixa? Podcmos encon­lrar uma "verdadei~·a'' identidade? Seja invocando algo ;1t~-~ s~riainerente a pessoa, seja buscando sua "autenti­ca" fonte na hist6ria, a afirmagao da identidade envolve necessariamente o apelo a alguma qualidade essencial? Existem alternativas, quando se trata de identidacle e de < liferenga, a oposigao binaria "perspectivas essencialistas versus perspectivas nao-essencialistas"?

Para tratar dessas quest6es precisamos de explicag6es que possam esclarecer os conceitos centrais envolvidos nessa discussao, bem como de um quadro te6rico que possa nos dar uma compreensao mais ampla dos processos que l~stao envolvidos na construgiio da identidade. Embora es­teja centrada na questiio da identidade nacional, a discussao de :Michael Ignatieff ilustra diversos dos principais aspec­tos da identidade e da diferenga em geral e sugere como po­llemos tratar algumas clas quest6es analisadas neste capitulo:

1. Precisamos de conceitualizag6es. Para compreender­mos como a identidade funciona, precisamos conceitualiza­la e dividi-la em suas diferentes dimens6es.

2. Com freqiiencia, a identidade envolve reivindicag6es essencialistas sobre quem pertencc e quem nao pertence a um determinado grupo identitario, nas quais a identidade e vista como fixa e imutavel.

3. Algumas vezes essas reivindicag6es estao baseadas na natureza; por exemplo, em algumas vcrs6es da identiclade ctnica, na "raga"' e nas relac,;Cws de parentcsco. Mais frc­qiientcmente, entretanto, cssas reivindicac.;6cs estao basea­das em alguma vcrsao esscncialista cla hist6ria e do passado,

c.

1 ,, .~

~ ~ ~

~---~

----- ---­~ ~ ~

Page 5: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I ' ' ' '

' ' . I ' '

I ' , ' ' ' '

i '

i '

., I ;: ' ,,

I , I ; :

I I

I I

' ' ' ' ' '

' ' ' '

I I i ,I '

' ' ' ; I , '

: i

' ' I ' I i ' ' , i I

' ' '

' ' ' ' i

i i I

! I : ' :

' ' ' 'I ' i' '

' ' , I

' ' ' i

' '

' , I

' '

I I

' ' ' ! ! I

' ' ! i '

I , I

na qual a hist6ria e construida ou represcntada como uma verclade imutivel.

4. A iclentidade e, na verdade, relacional, e a diferenc;a e estabelccida por uma marcaqiio sirnb6lica relativamente a outras identidades (na afirmac;ao das identidades nacionais, por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a diferenc;a podem incluir um uniforme, uma bandeira nacio­nal ou mesmo os cigarros que sao fumados).

5. A identidade esta vinculada tmnbem a condig6es sociais e rnateriais. Se um grupo e simbol'icamente mar­cado como o inimigo ou como tabu, is so tera efeitos rcais porque o grupo sera socialmente excluido e tera desvan­tagens materiais. Por exemplo, o cigarro marca clisting6cs que estao presentes tambem nas relag6es sociais entre

/ . servws e croatas.

6. 0 social e o simb6lico referem-se a dais processos cliferentes, mas cada urn cleles e necessaria para a constru­gao e a manutengao das identidades. A marcagao simb6lica e o meio pelo qual clamos sentido a praticas e a relagoes sociais, definindo, por exemplo, quem e excluido e quem e

/

incluido. E por meio cla diferenciagao social que cssas classificag6es da diferenga sao "vividas" nas relag6es sociais.

7. A conceitualizagao cla iclenticlacle envolve o cxame clos sistemas classificat6dos que mostram como as relag6es so­ciais sao organizadas e dividiclas; por exemplo, ela e dividida em ao menos dais grupos em oposigao - "nos e eles", " / . " servws e croatas .

8. Algumas diferengas sao marcadas, mas nesse proccsso algumas diferengas podem ser obscurecidas; por exemplo, a afirma~·ao cia identidade nacional pode omitir diiercnc;as de classe e diferenc;as de gcncro.

9. As iclcntidades nao sao unificadas. Pocle haver contra­chgoes no seu interior que tcm que ser negociadas; por

14

--

cxemplo, o miliciano servio parece estar cnvolvido em uma dificil negociac;ao ao dizer que os servios c os croatas sao os n1esrnos e, ao mesnw tenq)(), fundarncntalmente difercntes. Pode haver discrcpfmcias entre o nivel coletivo e o nivel individual, tais como as que podem surgir entre as deman­< las coletivas da iden tidade nacional servia e as experiencias cotidianas que os servios partilham com os croatas.

10. Precisamos, ainda, explicar por que as pessoas assu­IIW1n suas posic;oes de identidade e se identificam corn elas. Por que as pessoas investem nas posigoes que os diseursos < Ia identidade lhes oferecem? 0 nivel psiquico tambem deve Etzer parte cla explicac;:an; trata-se de uma dimensao que, juntamente com a simb6lica e a social, e necessaria para mna completa conceitualizagao da identidade. Todos esses elementos contribuem para explicar como as identidades sao formadas e mantidas.

1. Por que o conceito de identidade e importante?

Uma das discuss6es centrais sobre a identidade concen­t ra-se na tensao entre o essencialismo e o nao-essencialis­tno. 0 e~sencialismo pode fundamentar suas afirmagoes tanto na hist6ria quanto na biologia; por exemplo, certos lltovimentos politicos podem buscar alguma certeza na afir­IIJa<;:ao da identidade apelanclo Seja a "verdade" fixa de Ul1l

passaclo partilhado seja a "verdades" biol6gicas. 0 corpo e ttm dos locais envolvidos no estabelecimento das fronteiras

'

qnedefinem quem n6s somos, servindo de fundamento para

a identiclacle - por exemplo, para a identidade sexuaL E necessaria, entretanto, reivindicar uma base biol6gica para a iclcntidacle sexual'? A rnaternidade (? outro exemplo no qual a iclenticlacle parece cstar biulogicamente funclamentada. Por outro !ado, os movimcntos 6tnicos ou religiosos ou ttacionalistas freqiientemcnte rcivindicam uma cultura ou 11111a l1ist6ria comum como o fumlamcJJto de sua identidaclc.

LS

carlaabreu
Highlight
Page 6: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

0 essencialismo assume, assim, diferentcs formas, como se ' dcmonstrou na discus sao sobrc a antiga I ugosLivia. E pos-

sfvel afinnar a idcnticlaclc etnica ou nacional sem reivinclicar uma hist6ria que possa ser recuperada para scn·ir de base para urna iclenticlade fixa? Que alternativas cxistcm a estra­tegia de basear a identidade na certeza essencialista? Sera que as identiclacles sao fluiclas e mutantes? Ve-las como fluiclas e mutantes e compatlvel com a sustentagao de um projeto politico? Essas quest6es ilustram as tensoes que existem entre as concepg6es construcionistas e as concep-goes essencialistas de identiclacle. ··

Parajustificar por que estamos analisando o conceito de iclentidacle, precisamos examinar a forma como a identidacle se insere no "circuito cla cultura''1 hem como a forma como a identidacle e a diferenga se relacionam com a discussao sobre a representagao (Hall, 1997). Para compreender o que f~1.z da identidacle um conceito tao central, precisamos examinar as preocupagoes contemporaneas com quest6es de identidade em cliferentes niveis. Na arena global, por exemplo, existem preocupagoes com as iclenticlades nacionais e com as identida­des etnicas; em um contexto mais "local", existem preocupa­goes com a identidacle pessoal como, por exemplo, com as relagoes pessoais e com a politica sexual. Ha uma discus sao que sugere que, nas tlltimas decadas, estao oconendo mudangas no campo da iclentidade- mudangas que chegam ao ponto de produzir uma "crise da identidade". Em que me elida o que esta acontecendo hoje no mundo sustenta o argumento de que existe uma crise de identidade e o que significa fazer uma tal afirmagao? Isso implica examinar a forma como as identidades sao formadas e os processos que estao ai envolvidos. Implica tambem perguntar em que medida as identiclades sao fixas ou, de f()l·ma alternativa, Huidas e cambiantes. Comec.;arcrnos a discus sao como lugar da identidade no "circu ito da cultura".

16

1.1. Identidade e representar;ao

Por que estarnos examinando a iclentidade e a dif(~rcnga? Ao examinar sisternas de rcprcsentagao, 6 neccss:cirio anali­sar a relagao entre cultura c significado (Hall, 1997). S6 pod~mos compreendcr os significados cnvolvidos nesscs sistemas se tivermos alguma ideia sobre quais posigoes-de­sujeito eles produzem e como n6s, como sujeitos, podemos scr posicionaclos em seu interior. Aqui, estaremos tratando de um outro momento do "circuito da cultura": aquele em <1ue o foco se clesloca dos sistemas de representac;ao para as identidades produziclas por aqueles sistemas.

A representagao inclui as praticas de significac;ao e os sistemas simb6licos por meio dos quais os significaclos sao

/

produzidos, posicionando-nos como sujeito. E por meio dos significaclos procluzidos pelas representac;oes que damos scntido a nossa experiencia e aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simb6licos tornam pos­sfvel aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representagao, compreenclida como um processo cultural, cstabelece iclenticlades indivicluais e coletivas e os sistemas simb6licos nos quais ela se baseia fornecem possiveis res­postas as questoes: Quem eu sou? 0 que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de repre­sentagao constroem os lugarcs a partir dos quais os indivi­duos poclem sc posicionar c a partir clos quais podem falar. Por exemplo, a narrativa clas telenovelas e a semi6tica cla publicidade ajuclam a construir certas iclenticlades de gene­ro (Gledhill, 1997; Nixon, 1997). Em momentos particula­rcs, as promoc;oes de marketing podem construir novas identidades como, por exemplo, o "novo homem" das deca­das de 1980 e de ] 990, identidades clas quais podemos nos apropriar e que podemos reconstruir para nosso uso. A mfclia nos cliz como clevemos ocupar uma posi<,;ao-de-sujcito particular- o adolcsccnte "csperto", o trabalhador em as-

17

carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
Page 7: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

.. .

censao ou a mae sensivel. Os an{mcios s6 serfto "cf!cazes" no scu objetivo de nos vender coisas se tivcrem apelo para os consumidores c se fornecercm irnagens com os quais

' eles possam se iclcntificar. E claro, pois, que a produgao de significaclos e a produgao das iclenticlades que sao posicionadas nos (e pelos) sistemas de representagao esUio estreitamente vinculadas. 0 cleslocamento, aqui, para uma enfase na identidade e um deslocamento de enfase - um cleslocamento que muda 0 foco: da repre-sentac;ao para as identidades. ..

A enfase na representagao eo papel-chave da cultura na produgao dos significados que permeiam todas as relac,;6es sociais levam, assim, a uma preocupagao com a identificaqao (Nixon, 1997). Esse conceito, que descreve o processo pelo

" -- -

qual nos identificamos com os outros, sejapela ausencia de uma consciencia da diferenga ou da separac,;ao, seja como resultaclo de supostas similaridades, tem sua origem na psicanalise. A identificac;ao e um conceito central na com­preensao que a crianga tem, na fase edipiana, de sua pr6p1ia situagao como um sujeito sexuado. 0 conceito de identificac,;ao tem sido retomado, nos Esh1clos Culturais, mais especifica­mente na teoria do cinema, para explicar a forte ativagao de desejos inconscientes relativamente a pessoas ou a imagens, fazenclo com que seja possivel nos vermos na imagem ou na personagem apresentacla na tela. Diferentes significados sao procluzidos por diferentes sistemas simb6licos, mas esses significados sao contestados e cambiantes.

Pocle-se levantar quest6es sobre o pocler da repre­sentagao e sobre como e por que alguns significados sao prefericlos relativamente a outros. Toclas as praticas de sig­nificagfw que produzem significados envolvem rclac.;oes clc poclc1~ incluindo 0 pocler para clcfinir quem e incJufdo e ClUem 6 exclufclo. A _cuLl!IGt]J10ldaa iclcntidacle,.11Q_clar scnticlo _;:'t

c~n~riDncia e ao tornar possiyel gptar, e11_trte~_ <J.s varias iclen-

18

ticlacles possivcis, por u1n modo espccifico de subjetiviclade -tal como a cia feminiliclacle loint c eli stante on a cia mascu­linidacle ativa, atrativa c soflsticada dos an{mcios do vValk­man da Sony (Du Gay, Hall et alii, 1997). Somos constran­giclos, entretanto, nao apenas pcla gama de possibilidades que a cultura oferece, is to e, pela variedade de. repre­sentag6es simb6licas, mas tambem pelas relag6es sociais. Como argumenta Jonathan Rutherford,

" ... a identidade marca o encontro de nosso passaclo com as relag6es sociais, culturais e economicas nas quais vivemos agora ... a identiclade e a intersecgao de nossas viclas cotidia­nas com as relag6es economicas e politicas de suborclinagao e dominagao" (Rutherford, 1990, p. 19-20).

Os sistemas simb6licos fornecem novas formas de se dar senticlo a experiencia das clivis6es e desigualdades sociais e

- ----- .

aos meios pelos quais alguns grupos sao excluidos e estig-matizados. As iclcnticlades sao contestadas. Este capitulo comec:;ou com um exemplo de identiclacles fortemente con­testadas. A discussao sobre iclenticlades sugere a emergen­cia de novas posig6es e de novas iclentidades, produzidas, por exemplo, em circunstancias economicas e sociais cam­biantes. As mudanc:;as mencionadas anteriormente e enfati­zadas no exemplo cia antiga Iugoshl.via sugerem que pocle haver uma crise de iclenticlade? Que muclangas podem estar ocorrenclo nos niveis global, local e pessoal, que possam justificar o uso da palavra "crise"?

2. Existe uma crise de identidade? Quase todo mundo fala agora sobre "iclentidade". A iden­tidade s6 se torna um problema quando esta em crise, quando algo que se supoc ser fixo, coerentc c estavel e clcslocaclo pela espcriencia da dtivicla e cla incerteza (rvl er­cer, 1990, p. 4).

"Identidadc" c ''crisc de identidacle" sao palavras e ideias bastantc utilizaclas atuahnente e parecern scr vistas

19

carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Linha
carlaabreu
Linha
Page 8: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

por sociologos e teoricos como caracteristicas das sociccla­cles contempor:meas ou da modernidade tarclia. }:1. mostra­mos o cxernplo de uma {J.rea rw munclo, a antiga I ugosla,·ia, na qual sc observa o ressurgimento de identiclaclcs 6tnicas e nacionais em conflito, fazcndo com que as idcntidades existentes entrassem em colapso. Nesta sec,:ao, examinare­mos uma serie de diferentes contextos nos quais questoes

c

sobre identidade e crise de identidade se tornaram centrais. Examinaremos, assim, a globalizac,:ao e os processos associa­dos com mudanc,:as globais, incluindo quest6es s9bre hist6-ria, mudanc,:a social e movimentos politicos.

' .

Alguns autores recentes argumentam que as "crises de identidade" sao caracteristicas da modernidade tardia e que sua centralidade atual s6 faz sentido quando vistas no con­texto das transformac,:oes globais que tem sido definidas como caracteristicas da vida contemporfmea (Giddens,

'

1990). Kevin Robins, por exemplo, argumenta que o feno-meno da globalizat;iio envolve uma extraordim1ria transfor­mac,:ao. Segundo ele, as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entraram em colapso, cedendo Iu­gar a uma crescente "transnacionalizac,:ao da vida economica e cultural" (Robins, 1997). A glgJ=>ali~<!C,:~O e11volv_~1~a interac,:ao entre fatores economieos e eulturais, eausando rnudanc,:as nos padroes de produc,:ao e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidacles novas e globalizadas. Essas novas iclentidades, caricaturalmente simbolizadas, as vezes, pelos jovens que comem hamblirgueres do McDonald's e que an dam pela rua de ~7alkman, formam um grupo de "consumidores globais" que podem ser en­contrados em qualquer Iugar do mundo e que mal se distin­guem entre si. 0 clesenvolvimento global do capitalismo nao (~, ohviarnentc, novo, rnas o qu~ caractcriza sua fase mais rcccnte e a convergt·ncia de culturas c estilos de vida nas socieclaclcs que, ao redor do munclo, sao expostas ao seu impacto (Hobins, 1991).

20

A globalizac,:ilo, entretanto, produz diferentcs resultados. 1 '

cmtermos de identidade. A homogeneidadc cultural pro- · lllOvida pclo mcrcado global pmlc lcvar ao clistanciamento da identiclaclc relativamcntc a cornunidade e a cultura local. I )e f(wma altcrnativa, poclc levar a urna resistencia que podc f(>rtalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posic,:oes de identidade.

As mudanc,:as na economia global tem produzido uma dispersao das demandas ao redor do mundo. lsso ocorre nao apenas em termos de hens e servic,:os, mas tambem de lllCrcados de trabalho. A migrac;;ao dos trabalhadores nao e, ohviamente, nova, mas a globalizac,:ao estc1 estreitamente associada a a~clerac,:ao cia migrac,:ao. Motivadas pcla neces­sidade economica, as pessoas tem se espalhado pelo globo, de forma que "a migrac,:ao internacional e parte de uma rcvoluc,:ao transnacional que esta remodelando as socieda­des e a politica ao redor do globo'' (Castles e Mille1~ 1993, p. 5). A migrac,:ao tem impactos tanto sobre o pais de origem < 1uanto sobre o pais de destino. Par exemplo, como resultaclo do processo de imigrac,:ao, muitas cidades europeias apre­scntam exemplos de comunidades e culturas diversificadas. Existem, na Gra-Bretanba, muitos desses exemplos, in­duindo comunidades asiaticas em Bradford e Leiceste1~ e partes de Lonch-es, tais como Brixton, ou em St. Paul's, em Bristol. A rnigrac,:ao produz identidades plurais, mas tam­hem identiclades contestadas, enrum processo que e carac­tcrizado por grandes clesigualclades. A migrac,:ao e um processo caracterfstico da desigualdade em termos de de­senvolvimento. N esse processo, o fa tor de "expulsao" dos paises pobres e mais forte do que 0 fator de "atrac,:ao" das sociedacles pos-inclustriais c tecnologicamente avan~·adas. 0 movinwnto c;lobal clo capital e gcralmente rnuito mais

C.

livre c1ue a mobiliclade do trabalho.

21

carlaabreu
Realce
Page 9: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

'I I I , I I

, I ' : ' ;

I I ' I

' 'I ' "

' ' '

'

I " I

;

'I ' '

'i I' I ' . I

' I ' ' ' ' '

' ' ' ' ' I

' ' '

; i ' ' '

Essa dispcrsao das pessoas ao rcdor do globo procluz idcntidades que sao moldadas e localizadas em difcrentes lugarcs e por difcrentcs lugares. Essas novas idcntidacles poclcn1 ser dcsestabilizadas, mas tam b6m dcscstabilizado­ras. 0 conceito de diaspora (Paul Gilroy, 1997) e um dos conceitos que nos permite compreencler algumas dessas identidades - identidades que nao tem uma "patria" e que nao podem ser simplesmente atribuidas a uma {mica fonte.

A no<,;ao de "identidade em crise" tambem serve para analisar a desestabilizagao que se seguiu .. ao colapso da ex­U niao Sovietica e do bloco comunista do Leste Europeu, causando a afirma<,;ao de novas e renovadas identidades etnicas e a husca por identidades supostamente perdidas. 0 colapso do comunismo, em 1989, na Europa do Leste e na ex-Uniao Sovietica, teve impmiantes repercuss6es no campo das lutas e dos compromissos politicos. 0 comunismo simplesmente dei­xava de existir como urn ponto de refen3ncia na definigao de posig6es politicas. Para preencher esse vazio, tern ressurgido na Europa Orientale na ex-Uniao Sovietica fm·mas antigas de identifica<,;aO etnica, religiosa e nacional.

'

Ja na Europa p6s-colonial enos Estados Unidos,.tanto os povos que foram colonizaclos quanto aqueles que os colonizaram tern respondido a divcrsidade do multicul­turalismo por meio de uma busca renovada de certezas etnicas. Scja porn1eio de movimcntos religiosos, seja por meio do exclusivismo cultural, alguns grupos etnicos tem reagido a sua marginalizagao no interior clas sociedadcs "hospcdeiras" pelo apelo a uma energica reafirmagao de suas identidades de origem. Essas contestag6es estao liga­clas, em alguns pafses, a afiliag6cs religiosas, tais como o islamismo na Europa enos Estados Unic1os co catolicismo romano e o protcstantismo na Irlanda do :'\1 orte. Por outro laclo, os grupos clominantes nessas socicclaclcs tambem est2to em husca de antigas ccrtezas etnicas - h<.l, por cxcmplo, no

Rcino U niclo, uma nostalgia por uma "inglesidade'' mais cultu­ralmcnte bornogenea e, nos Estaclos Unic1os, um movimento porum retomo aos "velhos e bons valorcs da hmflia americana''.

~o Rcino Uniclo, os movimentos nacionalistas tern luta­do para afirmar sua iclentic1acle por meio da reivindica<:;ao de sua propria lingua, como, por exemplo, no caso do Plaid Cvmru, no Pais de Gales. Ao rnesmo tempo que ha a reafir-,

magab de uma nova "identiclade europeia", por meio do pertencimento a Uniao Europeia, travam-se lutas pelo re­conh.ecimento de identidacles etnicas no interior clos antigos cstados-na<:;ao, tais como a ;mtiga Iugoslavia. Para lidar com a fragmentagao do presente, algumas comunidades buscam retornar a um passado perdido, "ordenado ... por lendas e paisagens, por hist6rias de eras de ouro, antigas tracli<,;6es, por fatos ber6icos e destinos dramaticos localizados em tcrras prometidas, chcias de paisagens e locais sagrados ... "

(Daniels, 1993, p . .3).

0 passado e o presente exercem um importante papel ncsses eventos. A contestagao no presente buscajustifica<,;ao para"::tcriagao de novas- e futuras- identiclades nacionais, <'VOcando origens, mitologias e fronteiras do passado. Os :tluais conflitos estao, com freqiiencia, conccntrados nessas l'ronteiras, nas quais a identidade nacional e questionada e < ·ontestacla. A clesesperada produ<,;ao cle uma cultura servia ttnificacla e homogenea, por exemplo, leva a busca de uma idcnticlacle nacional que corresponcla a um local que seja pncebido como o territ6rio e a "terra natal" dos servios. rvl <'",Smo que se possa argumentar que nao existe nenhuma i< lcnticlacle fixa, servia ou croata, que remonte a I dade

-~ fVI(~dia (\1alcolm, 1994) e que poderia scr agora ressuscita-1 < Ia, as pessoas cnvolviclas ncssc proccsso comportam-sc

·' < '< IIllO se ela cxistisse c cxprcssan1 um clesejo pcla restaura-,~ < ·:io cla unidaclc des sa colnunidade imaginada. Benedict / ;\ ndcrson (1983) utiliza ~s-s~1. ~~Xl)ressao para dcscnvolver o

\

carlaabreu
Realce
Page 10: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I '

I '

! ' '

argumcnto de que a identidade nacional t~ inteiramcnte dependcntc da ideia que hlzcmos dela. Uma vcz que nao scria possfvel conheccr toclas aquelas pcssoas que partilham de nossa iclentidade nacional, clcvcrnos tcr uma ideia parti­lhada sobre aquilo que a constitui. A difcrcn<:;a entre as di­versas identiclades nacionais reside, portanto, nas diferentes fonnas peLts quais elas sao imaginadas.

No mundo contemporfmeo, essas "comunidades imagi­nadas" estao sendo contestadas e reconstituiclas. A icleia de uma iclentidade europeia, por exemplo, clefenclida por par­ticlos politicos de extrema direita, surgiu, recentemente, como uma reac:;ao a suposta ameac:;a do "Outro". Esse "Ou­tro" muito fi·eqi.ientemente se refere a trabalhadores da ' Africa do Norte (Marrocos, Tunisia e Argelia), os quais sao

representados como uma ameaga cuja origem estaria no seu suposto funclamentalismo islamico. Essa atitude e, cada vez mais, encontrada nas politicas oficiais de imigrac:;ao da Uniao Europeia (King, 1995). Poclemos ve-la como a proje­gao de uma nova forma daquilo que Edward Said (1978) charnou de "orientalismo"- a tendencia da cultura ocidental a produzir um conjunto de pressupostos e representag6es sobre o "Oriente" que o constr6i como uma fonte de fascinagao e perigo, como ex6tico e, ao mesmo tempo, amea­gador. Said argurnenta que asrepresentag6es sobre o Orien­te produzem um saber ocidental sobre ele- um. fato que diz mais sobre os meclos e as ansiedades ociclentais do que sobre a vida no Oriente e na Africa do 0J orte. As atuais constru~:6es do Oriente tem se concentrado num suposto funclamentalismo islamico, 0 qual e construido- "demoni­zado" seria o termo mais apropriado - como a principal e nova arncaga as tracligoes liberais.

As mudan~·as e transfonnag6cs globais nas estruturas polfticas c ccon(nnicas no nnmclo contcrnporaneo colocarn em rclcvo as quest6es de identidacle e as lutas pcla afirma-

<Jto c manuten<;ao das identidades nacionais c etnicas. Mcs­mo que o passaclo cp1e as idcntidacles atuais reconstroem scja, semprc, apenas imaginaclo, de proporciona alguma ccrteza em mn dim a que e de muclanga, fluidcz e crcscente incertcza. As iclentidades em conflito csUio localizadas no

-

interior de mudangas sociais, politicas e economicas, mu­dangas para as quais elas contribuem. As iclenticlades que sao construidas pela cultura sao contestadas sob formas particulares no mundo contemporaneo- num mundo que se pode chamar de pas-colonial. Este e um perioclo hist6rico caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas e pe}a produgao de novas form as de posicionamento. 0 que e importante para nossos prop6sitos aqui e reconhecer que a luta e a contesta<;ao estao concentradas na construc:;ao cultural de identidades, tratando-se de um fenomeno que esta ocorrendo em uma variedacle de diferentes contextos. Enquanto, nos anos 70 e 80, a luta politica era descrita e teorizada em termos de ideologias em conflito, ela se carac­teriza agora, mais provavelmente, pela competic:;ao e pelo conflito entre as diferentes identidacles, o que tende a re­forc:;ar o argumento de que existe uma crise de identidade no mundo contemporaneo.

2.1. Hist6rias

Os conflitos nacionais e etnicos parecem ser caracteri­zaclos por tentativas de recuperar e reescrever a hist6ria, como vimos no cxemplo da antiga Iugoslavia. A afirma<;ao politica das identidadcs exige algurna forma de autentica­gao. 1v1uito freqi.ientemente, essa autenticac:;ao e feita por meio da r:eivindica<;ao da hist6ria do grupo cultural em questfio. Esta se<;iio estar~l. eoncentracla nas qucstoes impli­caclas ncsse processo. Podc-se pcrgunt;u~ primciramcntc: cxistc uma n·nlacle hist6rica {mica que possa scr recupera­cla? Pensemos sohre o passaclo que a indl1stria que cxplora

-' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' -' ' ' ' ' ; ' ' ' ' ' " ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ; ' ' ' ' ' '

' ' ' ' ~

Page 11: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

uma suposta heranga inglesa reprocluz por meio cla venda de mansoes que represcntariam uma hist<Sria passada au­tcnticamcntc inglesa. Pensemos tambcm nas rcprcsenta­c.;ocs que a mfclia bz clesse presumido e autcntico passado como, por exemplo, nos filmes baseaclos nos romances de Jane Austen. Ha um passado ingles autentico e {mico que possa ser utilizado para sustentar e definir a "inglesidade" como sendo a identidade do final do seculo XX? A "incl{rs­tria" da heranc.;a parece apresentar apenas uma e {mica versao. Em segundo Iugar, qual e a hist6ria que pesa - a hist6ria de quem? Pode haver diferentes hist6rias. Se exis­tem cliferentes versoes do passado, como n6s negociamos entre elas? U rna das versoes do pass ado e aquela que mostra a Gra-Bretanha como um poder imperial, como um poder que exclui as experiencias e as hist6rias daqueles povos que a Gra-Bretanha colonizou. Uma hist6ria alternativa ques­tionaria essa descrigao, mostrando a diversidade desses grupos etnicos e a pluralidade dessas culturas. Tendo em vista essa pluralidade de posigoes, qual heranga hist6rica teria validade? Ou seriamos levados a uma posigao relativis­ta, na qual todas as diferentes versoes teriam uma validade igual, mas separada? Ao celebrar a diferenga, entretanto, nao haveria o risco de obscurecer a comum opressao eco­nomica na qual esses grupos estao profundamente envolvi­dos? S.P. Mohanty utiliza a oposic.;ao entre "hist6ria" e "hist6rias" para argumentar que a celebragao da diferen(,;a poderia levar a ignorar a natureza estrutural da opressao:

A pluralidade e, pois, um ideal polftico tanto quanta um ..

slogan metodol6gico. Mas ha uma questfio inc6moda que precisa ser resolvida. Como poclemos negociar entre mi­nha hist6ria e a sua? Como seria possfvel para n6s recupe­rar aquilo que temos em conmm, nao o mito humanista dos alributos humanos que partilharfamus c que suposta­mente nos distinguiriam clos animais, mas, de frm11a mais irnportante, a intersecc,:ao cle nossos \'c'irios pass ados e nossos varios presentes, as inevit{tveis relac,:6es entre signihcaclos

26

partilhaclos e signifkados contestados, entre valores e ' recursos materiais :J E preciso afirmar nossas densas pecu-

liaridaclcs, nossas cliferenc,:as vividas c imaginadas. Mas poclemos nos pennitir clcixar clc cxaminar a questfio de corno nossas clifercngas cstfto entrelac,:adas e, na verclade, bierarc1uicarnente organizaclas? Po demos nos, ern outras palavras, realmente nos permitir ter hist6rias inteiramcnte cliferentcs, podemos nos conccber como vivenclo- e tendo viviclo- em espac,:os inteiramcnte heterogeneos e separa­dos? (\Iohanty, 1989, p. 13).

As hist6rias sao realmente contestadas e isso ocorre, sobretudo, na luta polltica pelo reconhecimento das identi­dades. Em seu ensaio "Identidade cultural e diaspora'' (1990), Stuart Hall examina cliferentes concepgoes de iden­tidade cultural, procurando analisar o processo pelo qual se busca autenticar uma determinada identidade por meio da descoberta de urn passado supostamente comum.

Ao afirmar uma determinada identidade, podemos bus­car legitima-la por referencia a urn suposto e autentico passado- possivelmente urn passado glorioso, mas, de qual­quer forma, um passado que parece "real" - que poderia validar a identidade que reivindicamos. Ao expressar de­mandas pela identidade no presente, os movimentos naciona­listas, seja na antiga Uniao Sovietica seja na Europa Oriental, ou ainda na Esc6cia ou no Pais de Gales, buscam a validagao do passaclo em termos de territ6lio, cultura e local. Stuart Hall analisa o conceito de "identiclade cultural", utilizando o exem­plo das iclenticlades cla diaspora negra, baseando-se, empi­ricamente, na representagao cinematogn1fica.

N esse ensaio, Hall toma como seu ponto de partida a questao de quem e o que n6s representamos quando fala­mos. Elc argumcnta que o sujcito f~tla, scmpre, <lpartir de nma posigao hist6rica e cultural especffica. Hall aflrma que ha duas f(nmas diferentes deS(_' pensar a identiclade cultural. A primcira reflcte a pcrspcctiva ja discutida ncste capitulo,

l j

' i '

' ' ; ' '

t

carlaabreu
Realce
Page 12: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

'I I' II ! I ' '

'

I ' '

'

I ' I . i ' ' ' ~

I '

I ' : , I, ' ' ' '

''

' '

'

i I I,

' '

' ' ' ' .I : I ,

' ' ' : ,i

'

' ,,

, I

I

! I

na qual uma determinada comunidade busca recuperar a •

" IJ" l I "··ll"l 1· ,. vcrc a e so we seu passac o na urnc1c ac c c c uma 11stona e de uma cultura partilhadas que podcriam, cntao, scr rc­prescntadas, por excmplo, ern uma f(mna cultural como o filmc, para refon;ar c rcafirmar a identidade- no caso cia indtistria da heranc,;a, a "inglesidade"; no exemplo de Hall, a "caribenhidade". A segunda concepc,;ao de identidade cultural e aquela que a ve como "uma questao tanto de 'tornar-se' quanto de 'ser'". Isso nao significa negar que a idcntidade tenha urn passado, mas reconhecer que, ao rei­vindica-la, nos a reconstruimos e que, aler11 disso, o p::1ssado sofre uma constante transformac,;ao. Esse passado e parte de uma "co- munidade imaginada", uma comunidade de sujei­tos que se apresentam como sendo "nos". Hall argument<1 em favor do reconhecimento da identiclade, mas nao de uma identidade que esteja fixada na rigidez da oposic,;ao binaria, tal como as dicotomias "nos/eles", ou "servios/croatas", no exemplo de Ignatieff. Ele sugere que, em bora seja construi­do por meio da diferenc,;a, 0 significado nao e fixo, e utiliza, para explicar is so, o conceito de differan.ce de Jacques Den·ida. Segundo esse au tor, o significado e sempre diferido ou adiado; ele nao e completamente fixo ou completo, de forma que semprc existe algum deslizamcnto. A posic,;ao de Hall enfatiza a fluidez da idcntidacle. Ao ver a identidade como uma questao de "tornar-se", aqucles que rcivindicam a idcntidade nao se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriarn capazes de posicionar a si pr6prios e de reconstruir e transfcmmu- as iclentidades hist6ricas, herdadas de um suposto passado comum.

2. 2. Mudmu:;as sociais

Nao estao ocorrcnclo nmdanc;as apcnas nas cscalas glo­bal c nacional c na arena polltica. A f(mnac,;fto da idcn ticlacle ocorre tamb6m nos nfvcis hlocal" c pcssoal. As mnclanc,;as glo-

28

bais na economia como, por cxemplo, as transforrnac,;f>es nos paclroes de prodw,;Cto c de cmJsumo e o cleslocamcnlo do investimcnto clas inch'tstrias de marmLttura para o sctor de servic,;os tern um impacto local. Muclanc,;as na estrutura de dassc social constituem uma caracteristica dessas mudan­c,;as globais e locais.

As crises globais cia identidade tem aver com aquilo que Ernesto Ladau chamou de deslocamento. As sociedades modernas, ele argumenta, nao tern qualquer nticleo ou cen­tro determinado que produza identiclades fixas, mas, em vez disso, uma pluralidade de centros. Houve um cleslocamento dos centros. Pocle-se argumentar que um dos centros que foi deslocado e o cla classe social, nao a classe como uma sin1ples fun<,;ao cla organizac,;ao econ6mica e dos processos de procluc,;ao, mas a classe como um determinante de todas

. '' , as outras relac,;oes sociais: a classe como a categona mesh·a , que e como ela e descrita nas am'ilises marxistas cla estrutura social. Laclau argumenta que nao existe mais uma unica forc,;a, determinante c totalizante, tal como a classe no para­digma marxista, que molcle todas as relac,;oes sociais, mas, em vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere nao somente que a luta de classes nao e incvitavel, mas que nao e mais possivel argumentar que a emancipac,;ao social esteja nas maos de uma {mica classe. Laclau argumenta que isso. tem implicac,;oes positivas porque esse cleslocamento indica que ha m~titos e diferentes lugares a partir dos quais novas identiclacles poclem emergir e a partir dos quais novos sujeitos poclem se expressar (Laclau, 1990, p. 40). As vanta­gens de sse deslocamento da classe social podem ser ilustra­das pela relativa diminui<,;ao da importancia das afiliac,;oes baseaclas na classe, tais como os sinclicatos opcr{trios c o sm·gimcnto de outras arenas de conf1ito social, tais como as haseadas no genero, na "rac;a", na ctnia ou na sexualidade.

carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
Page 13: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

Os indivfduos vivem no interior de um grande n{nnero de cliferentes instituigocs, que constituem aquilo que Pierre Bourdicu chama de "campos sociais", tais como as f~m1ilias,

----·---------- -

os grupos de colegas, as instituigoes cclucacionais, os grupos de trabalho ou partidos politicos. N6s participamos clcssas instituigoes ou "campos sociais", exercendo graus variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espac,;o e um Iugar, bem como um conjunto de recursos simb6licos. Por exemplo, a casa e o espac,;o no qual muitas pessoas vivem suas identidades familiares. A casa e tambem um dos lugares nos qtiais somos espectadores das representag6es pelas quais a midia produz determinados tipos de identidades- por exemplo, por meio da narrativa das telenovelas, dos an{mcios e das tecnicas de venda. Em bora possamos nos ver, seguindo o senso comum, como sen do a "mesma pessoa'' em todos os nossos diferentes encontros e interag6es, nao e dificil perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papeis sociais que estamos exercendo (Hall, 1997). Diferentes con­textos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Consideremos as cliferentes "identida­des" envolvidas em diferentes ocasi6es, tais como participar de uma entrevista de emprego ou de uma reuniao de pais na escola, ira uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um centro comercial. Em todas essas situag6es, podemos nos sentil~ literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas n6s somos, na verdade, diferentemente posicionaclos pelas di­ferentes expectativas e restrigoes sociais envolviclas em cada uma dessas diferentes situag6es, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. Em urn ccrto senti do, somos posicionados - c tam bcm po­sicionamos a n6s mesmos - de acordo com os "campos so­ciais" nos quais cstamos atuando.

:30

Existc, em suma, na vida moderna, uma diversidade de posic.;i"Jes (1ue nos estao chsponiveis- posig6es que podemos ocupar ou nao. Parcce dif1cil scparar algumas dessas idcD­tidaclcs e cstabclcccr fronteiras entre elas. Algumas dessas identiclaclcs podem, na vcrclade, tcr muclado ao Iongo do tempo. As formas como representamos a n6s mesmos -como mulheres, como homens, como pais, como pessoas trabalhadoras- tem mudado radicalmente nos ultimos anos. Como individuos, podemos passar por experiencias de frag­mentagao nas nossas relag6es pessoais e no nosso trabalho. Essas experiencias sao vividas no contexto de mudangas sociais e hist6ricas, tais como mudangas no mercado de trabalho e nos padroes de emprego. As identidades e as lealdades politicas tambem tern sofrido mudangas: lealda­cles tradicionais, baseadas na classe social, cedem Iugar a concepgao de escolha de "estilos de vida" e a emergencia da "politica de identidade". A etnia e a "raga", o genero, a sexualidade, a idade, a incapacidade ffsica, a justiga social e as preocupag6es ecol6gicas produzem novas formas de identificagao. As relag6es familiares tambem tem mudado, especialmente como imp acto das mudanc,;as na estrutura do emprego. Tem havido mudangas tambem nas pr:iticas de

/

trabalho e na produgao e consumo de bens c servic,;os. E igualmente notavel a emergencia de novos padr6cs de vida domestica, o que e indicado pelo crescente n{tmero de lares chefiados por pais solteiros ou por maes solteiras bem como pelas taxas elevadas de div6rcio. As identidades sexuais tambern estao mudando, tornando-se mais questionadas e

' a111bfguas, sugcrindo mudangas e fragmentac,;6es que po-dem ser clescritas em termos de uma crise de identidade.

A complexiclaclc cia vida moclerna exige que assumamos difercntes iclcnticladcs, mas essas diferentcs identidadcs podcm estar em conflito. Podemos viver, em nossas vidas pessoais, tcnsoes entre nossas difcrentes identidades qmm-

31

Page 14: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I I •

• • •

'

,,

• •

'

' '

' I '

' ' . ' . ' . ,,

' ' .

':.: ·II

; .

I '

I • ' •

do aquilo que 6 cxigido por urna iclentidaclc interfere com as cxig<~ncias de uma outra. Urn exemplo 6 o conflito exis­tcnte entre nossa identiclacle como pai ou mae t,.~ nossa iclcn­tidade como assalariado/a. As dcrnandas de uma interfcrem com as demanclas da outra e, com fi-eqi_iencia, se contracli­zem. Para ser um "bom pai" ou uma "boa mae", clevemos estar disponiveis para nossos filhos, satisfazendo suas neces­sidades, mas nosso empregador tambem pode exigir nosso total comprometimento. A necessidade de ira uma reuniao de pais na escola do filho ou da filha pode entrar em conflito com a exigencia de nosso empregador para'" que trabalhe­mos ate mais tarde.

Outros conflitos surgem das tensoes entre as expectati­vas e as nonnas sociais. Por exemplo, espera-se que as maes sejam heterossexuais. Identidades diferentes poclem ser construidas como "estranhas" ou "desviantes". Audre Lorde escreve: "Como uma mae - feminista socialista, lesbica, negra, de 49 anos- de duas criangas, incluinclo um menino, e como membro de um casal inter-racial, com muita fre­quencia vejo-me como pertencenclo a um grupo clefinido como estranho, desviante ou inferior ou simplesmente er­rado" (1992, p. 47). Pode parecer que algumas clessas iclen­tidades se refiram principalmente a aspectos pessoais da vida, tal como a sexualidade. Entretanto, a forma como vivemos nossas identidades sexuais e mecliada pelos sig­nificados culturais sobre a sexualidade que sao procluzi­clos por meio de sistemas dominantes de representagao. Indepenclentemente de como Lorde decida afirmar sua identiclacle, por exemplo como mae, sua escolha e cons­trangida pelos cliscursos dominantes sobre a heterossexua­lidadc e pela hostilidade frcqiicntemcnte vivida por maes lesbicas. Lorcle cita uma gallla de c1ifc~rentes contcxtos nos quais sua idcntidade e construida ou negociada - sc:Tia

c

mclhor dizcr "suas idcntidades".

'> ') ,)~

Todo contcxto ou campo cultural tem scus controles e suas expectativas, hem como scu "imaginario"; isto {~, suas promessas de prazer e realiza<;ao. Como sugere Lorclc, os pressupostos sobrc hcterosscxualidaclc e os discursos racis­tas negam a algmnas familias o acesso a esse "imagin{trio''.

/

lsso ilustra a relagao entre o social eo simb6lico. E possivel sermos socialmente excluiclos da forma que Lorde descreve e nao sennos simbolicamente marcaclos como cliferentes? 'J:Ocla pratica social e simbolicamente marcacla. As iclenticla­des sao diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais nos quais elas sao vividas quanto nos sistemas simb6licos por meio dos quais clamos sentido a nossas pr6plias posigoes. Uma ilustrae,;ao clisso e o surgimento clos chamados "novos rnovin1entos sociais", os quais tem se concentrado em lutas em torno da identidade. Eles tem se caracterizado por cfetuarem o apagamento clas fronteiras entre o pessoal eo

politico, para adaptar o slogan feminista.

2. 3. Os '~novas movinwntos sociais ": o pessoal e politico

De acordo com Jeffrey \Neeks, tem haviclo um

ativo repensar da polftica, sob o impacto dos novos movi­mentos sociais e da polftica de identidade da geragao passacla, com suas lutas em torno cla nu;:a e da etnia, do genera, da polftica lesbica e gay, do ambientalismo e cla polftica do HIVe cla AIDS (Weeks, 1994, p. 4).

Esses "novos movimentos sociais" emergiram no Oci­dente nos anos 60 e, especialmente, ap6s 1968, com a rebeliao estudantil, o ativismo paciflsta e antibelico e as lutas pelos direitos ci\·is. Elcs clesafiaram o establishrnent e suas hierarquias burocraticas, questionanclo principalmen­te as politic as "revisionistas ., c "estalinistas" do bloco sovi(~­tico e as limita~{)es da polftica liberal ocidental. As lealcla­des polfticas tradicionais, baseadas na classe social, fcmun questionaclas por movimcntos que atravcssam as divisCJes

:33

Page 15: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

II

' '

de classc e sc dirigiam as idcntidades particularcs de seus sustentaclores. Por exemplo, o feminisrno se dirigia especi­fieamente as mulheres, o movimento clos direitos civis dos negros as pessoas negras C a polftica SC:'(Ual ~lS pessoas lesbicas e gays. A politica de identidacle era o que clcfinia esses movimentos sociais, marcaclos por uma preocupa­c,;ao profunda pela identiclade: o que ela significa, como ela e produzida e como 6 contestada. A politica de iden­tidade concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um cleterminado grupo oprimi-

'" do ou marginalizado. Essa identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilizac,;ao polltica. Essa politica envolve a celebrac,;ao da singularidade cultural de um determinado grupo, bem como a analise de sua opressao especffica. Pode-se apelar a identidade, entretanto, de duas formas bastante diferentes.

Por um lado, a celebrac,;ao da singularidade do grupo, que e a base da solidariedade politica, pode se traduzir em afirmac,;6es essencialistas. Por exemplo, tomando como base a identidade e as qualidades singulares das mulheres, alguns grupos feministas tem argumentado em favor de um sepa­ratismo relativamente aos homens. Existem, obviamente, diferentes formas de compreender e definir essa "singula­ridade". Ela pode envolver apelos a caracteristicas biologi­camente dadas da identiclade como, por exemplo, a afir­mac,;ao de que o papel biol6gico das mulheres como maes as torna inerentemente mais altruistas e pacificas. Ou pode se basear em apelos a hist6ria quando, por exemplo, as mulhe­res buscam estabelecer uma hist6ria exclusiva das mulhe­res, reivindicando, nos paises de fala inglesa, uma "hers­tory" (Daly, 1979), que os homens tcriam rcprimido. Isso implicaria, segundo esse argumcnto, a cxistencia de uma cultura cxclusiva clas rnulheres- havcria, ao Iongo cia hist6-ria, algo fixo e imut<'ivel na posic;ao clas mulheres que sc

:34

aplicaria igualmentc a todas elas, como uma csp(~cic de verdacle trans-hist6rica (J effrcys, 198.5).

Os aspectos essencialistas da politica de identidade po­clcm ser ilustraclos pelas visoes clc algumas das participantcs

- 9

clos acampamentos do ~vlovimento pela Paz, de Grecnham~. Algumas participantes claquela campanha contra os misseis teleguiados afirmavam representar as caracteristicas essen­cialmentc femininas da preocupac,;ao com o outro e do pacifismo. Outras criticaram essa posic,;ao como um "confor­lnismo como principio maternal que faz parte da construc,;ao social do papel da mulher, um principio que o feminismo deveria questionar" (Delmar, 1986, p. 12). De forma similm~ em uma tentativa de questionar as afirmac,;6es de que a homossexualidade e anormal ou imoral, tem-se apelado a discursos cientificos que confirmariam que a identidade gay (~ biologicamente determinada.

Por outro lado, alguns clos "novos movimentos sociais", incluinclo o movimento das mulheres, tem adotado uma I )OSi<_;:ao nao-essencialista com respeito a identidade. Eles tem cnfatizado que as iclenticlades sao fluidas, que elas nao sao < 'ssencias fixas, que elas nao estao presas a diferenc,;as que scriam permanentes e valeliam para todas as epocas (Weeks, 1994). Alguns membros dos "novos movimentos sociais" tem rcivinclicaclo o direito de construir e assumir a responsabilida­dc de suas pr6prias iclentidacles. Por exemplo, as mulheres ncgras tem lutado pelo reconhecimento de sua propria pauta de luta no interior do movimento feminista, resistin­do, assim, aos pressupostos de um movimento de mulheres I Jaseado na categoria unificada de "mulher" que, implicita­lnente, inclui apenas as mulheres brancas (Aziz, 1992).

Alguns clcmcn tos desses movimentos tern qucstionado, particulannente, cluas conccp~·6es que prcssup6cm () cara­lcr fixo cla iclcntidaclc. A primcira csta hascada na classc .~ocial, constituinclo o chamaclo "rcducionismo de classe".

'3~ \ ;_)

Page 16: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

Essa concepc,;ao baseia-sc na analise que~~ arx f~~z cla rclacJto entre base c supcrcstrutura, na qual as rela<,;ocs sociais sfto vistas como cleterminaclas pela base material cla sociedacle, argumentanclo-se, assirn, que as posic,;oes de g0ncro poclcm ser "decluzidas" clas posic.;oes de classe social. Ernbora cssa analise tenha o apelo de uma relativa simplicidacle e cla enfase na importfmcia dos fatores econ6micos materiais como determinantes centrais clas posic.;oes sociais, as mu­dangas sociais recentes colocam essa visao em questao. Mudanc,;as econ6micas tais como o declinio das indt1strias de manufatura pesacla e as transformagoes na··estrutura do mercado de trabalho abalam a propria definigao de classe open'iria, a qual, tradicionalmente, supoe oper<1rios mascu­linos, industriais e de tempo integral. As identidades basea­das na "raga", no genero, na sexualidade e na incapaciclade fisica, par exemplo, atravessam o pertencimento de classe. 0 reconhecimento da complexidade das divisoes sociais pela politica de identidade, na qual a "rac;:a", a etnia eo ge­nera sao centrais, tem chamado a atenc;:ao para outras clivi­soes sociais, sugerindo que nao e mais suficiente argumen­tar que as identiclades podem ser deduzidas da posic.;ao de classe (especialmente quando essa propria posic.;ao declasse est:'i muclando) ou que as fonnas pelas quais elas sao repre­sentadas tem pouco impacto sobre sua definigao. Como ar­gumenta Kobena Mercer: "Em termos politicos, as identi­dades estao em crise porque as estruturas tradicionais de per­tencimento, baseadas nas relagoes declasse, no partido e na nac.;ao-estado tem sido questionadas" (Mercer, 1992, p. 424). A politica de identidade tem aver com o recrutamento de sujeitos por meio do processo de formagao de identidacles. Esse processo se cl<'t tanto pelo apelo as identidades hcge­monicas - () consumidor sobcrano, () cidad:tn patri6tico -quanto pel a rcsistencia dos "novos rnovirnentos sociais", ao colocar em jogo idcnticlades que nao tern siclo reconhcciclas,

., (' ,) )

que tCm sido mantidas "fora da hist6ria" (Rowbotham, 1973) ou que tem ocupado espa<.;os as margens cla socicdade.

0 segundo desafio de alguns dos "novos movimentos sociais" tern consisticlo em questionar o essencialismo da iden­tidade e sua fixidez como alga "natural", is to e, como uma categmia biologica. A politica de identidade nao "e uma luta entre sujeitos naturais; e uma luta em favor da propria expres­sao da identidade, na qual perrnanecem abertas as possibilida­des para valores politicos que podem validar tanto a diversidade quanto a solidariedade" (Weeks, 1994, p. 12). 'Weeks argumenta que uma das principais contribuic;:oes da politica de identidade tem sido a de construir uma politica da diferenga que subverte a estabilidade das categorias hiologicas ~ a construc.;ao de oposigoes biml.rias. Ele argumenta que os novos movimentos sociais" historicizaram a experiencia,

enfatizando as diferenc.;as entre grupos marginalizados como uma alternativa a "universalidade" da opressao.

Isso ilustra duas versoes do essencialismo identitario. A primeira fundamenta a identidade na "verdade" da tradigao e nas rafzes da histori<l, fazenclo um apelo a "realidade" de um passaclo possivelmente reprimido e obscurecido, no qual a identidade proclamada no presente e revelada como um produto da hist6ria. A segunda est;_l. relacionada a uma categoria "natural", fixa, na qual a "verdade" estc'i enraizacla na biologia. Cada uma dessas vers6es envolve uma crenga na existencia e na busca de uma identidade verdadeira. 0 essencialismo pode, assim, ser biologico e natural, ou histo­rico e culturaL De qualquer modo, o que eles tem em comum e uma concepc.;ao W1fficada de identidade.

2. 4. S ll/llario da SC~'[i() 2

0Jossa discussao aprescntou visoes dikrentcs c fi·e­qiientementc contradit6rias sobre a idcntidadc. Porum lado,

'

I I

Page 17: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

'

' ' I ! II . . II , i I ·

'I II '• ' ' ' ' '

' ' ' ' ' ' '

I . I j ; I

I . I :

I , : ' I , ' ' '

' I I

' ' ' ' ' ' ' i 'i

' I '

' '

' ' ' ' '

I II I

I '

' : I l:i : 'II

I ' ' ' ' ' '

i '

1

.. I ' ' '; ' ,, '

' ' "

I ,

! I II I II ' I

, I ' ' ,I " I ! ,.

' ' I !· . I:

I : I

I , ; I , , ' ' ' ' ' '

' ' ' '

' '

I I

' li I '

II I

a identidade e vista como tendo algum rn'tcleo essencial que distinguiria um grupo de outro. Por outro, a idcntidade e vista como contingente; isto e, como o procluto de uma in­tcrsecc,;ao de diferentes componentes, de discursos politicos e culturais e de historias partieulares. A iclentidade contin­gente coloca problemas para os movimentos sociais em tennos de projetos politicos, especialmente ao afirmar a solidariedade daqueles que pertencem aquele movimento especifico. Para nos contrapor as negac,;6es sociais dominan­tes de uma determinada identidade, podcmos desejar re­cuar, por exemplo, as aparentes certezas do iJassado, a fim de afirmar a forc,;a de uma identidade coerente e unificada. Como vimos no caso das identidades nacionais e etnicas, e tentador- em um mundo cada vez mais fragmentaclo e em resposta ao colapso de um conjunto determinado de certe­zas- afirmar novas verdades fundamentais e apelar a raizes anteriormente negadas. Assim, em uma politica de identi­dade, o projeto politico deve certamentc ser reforc,;ado por algum apelo a solidariedacle daquelcs que "pertencem" a um grupo oprimido ou marginalizado. A biologia fornece uma das fontes des sa solidariedade; a busca universal, trans­historica, de raizes e lac,;os culturais fornecc uma outra.

As identidades sao produziclas em momentos particula­res no tempo. Na cliscussao sobre mudanc,;as globais, iden­tidades nacionais e etnicas rcssurgentes e renegociadas e sobre os desafios dos "novos movimcntos sociais" e clas novas clefinic,;6es clas iclenticlacles pessoais e sexuais, sugeri que as idcntidacles sao contingentcs, emerginclo em mo­mentos historicos particulares. Alguns elementos clos "no­vos movimentos sociais" questionam algumas das ten­clcncias a fixac,;ao das iclcntidadcs cla "rae,; a"' da classe, do genero e da sexualiclaclc, subvertendo certczas 1Jiol6gicas, enquanto outros afinnam a primazia de certas caracterfsti­cas considcradas essenciais.

38

Argumcntei, nesta ses;ao, que a identidacle importa por­quc existe uma crise da identidaclc, globalmente, localmcn­te, pessoalmente e politicamente. Os proccssos historicos que, aparentcmente, sustcntavam a fixac,;fto de ccrtas iden­tidades estao cntrando em colapso e novas identiclaclcs cstao scndo fmjadas, muitas vezes por meio da luta e da contes­tac,;ao politica. As dimcns6es politicas da iclentidacle tais como se expressam, por exemplo, nos conflitos nacionais e etnicos e no crescimento dos "novos movimentos sociais", estao fortemente baseadas na construc,;ao cla diferenc,;a.

Como vimos no exemplo de lgnatieff, no inicio cleste capitulo, as identidacles sao fortemente questionadas. Tam­bem vimos que, muito freqiientemente, elas estao baseaclas em uma dicotomia do tipo "nos e eles". A marcac,;ao da cliferenc,;a e crucial no processo de construc,;ao das posic,;6es de identidade. A diferenga e reproduzida por mcio de sistemas simbolicos (envolvendo ate mesmo os cigarros fumados pelos laclos em conflito, no exemplo de lgnatieff). A antropologa Mary Douglas argumenta que a marcagao da cliferenc,;a e a base da cultura porque as coisas- e as pessoas - ganham sentido por meio cla atribuic,;ao de cliferentes posic,;6es em um sistenw classificat6rio (Hall, 1997b ). Is so nos leva a proxima questao deste capitulo: por meio de quais processos OS significados sao produzidos e de que forma a diferenc,;a e marcada em relagao a identidade?

3. Como a diferenc;a e marcada em relac;ao a iden­tidade?

3.1. Sistenws classificat6rios

As idcntidacles sao fabricadas por meio da marcagao da diferenc,:a. Essa rnarcac,;ao cla diferenc,;a ocone tanto por rneio de sister11as si1Jlh(5licos de rcpresentac,;ao quanto por mcio de form as de exclusao social. A iclentidacle, pois, nao 6 o

39

carlaabreu
Realce
Page 18: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

oposto da clifcrenga: a identidade depende da cliferens;a. N as relag6es sociais, essas forrnas de diferen~·a- a simh6lica e a social - sao estahelecidas, ao menos cn1 parte, por meio de sistetnas classificat6rios. Urn sistema classificat6rio aplica urn principio de diferenga a uma populas;ao de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas caracteristicas) em ao menos dois grupos opostos -n6s/eles (por exemplo, servos e croatas); eu/outro. Na

' argumentagao do soci6logo frances Emile Durkheim, e por meio da organizagao e orclenagao das coisqs de acordo com sistemas classificat6rios que 0 significado e produzido. Os sistemas de classifieagao ciao ordem a vida social, senclo afirmados nas falas enos rituais. De acordo como argumen­to de Durkheim, em As formas elementares da dda religio­sa, "scm simbolos, os sentimentos sociais teriam uma existencia apenas preca.ria'' (Durkheim, 1954/1912, citado em Alexander, 1990).

Utilizanclo a religiao como um modelo de como os processos simb6licos fimcionam, ele mostrou que as relag6es sociais sao produzidas e reprocluzidas por meio de rituais e simbolos, os quais classificam as coisas em clois grupos: as sagraclas e as profanas. Nao existe nada inerentemente ou essencialmente "sagraclo" nas coisas. Os artefatos e ideias sao sagrados apenas porque sao simbolizaclos e repre­sentados como tais. Ele sugeriu que as representagoes que se encontram nas religioes "primitivas" - tais como os fetiches, as mascaras, os objetos rituais e os totemicos- eram considerados sagrados porque corporificavam as normas e os valores da sociedade, contribuinclo, assim, para unifica-la culturalmente. Segundo Durkheim, se quisermos com­prccnder os significaclos partilhados que caracterizam os difcrentes aspectos da vida social, tcmos que cxaminar como eles sao classificaclos simbolicamente. Assim, o pfto que e comido em casa e visto simplesmente como um elcmento cla vida cotidiana, mas, quando cspecialmentc preparado e

40

partido na mesa da comunhao, torna-se sagrado, podenclo simbolizar o corpo de Cristo. A vida social em geral, argu­mcntava Durkheirn, e estruturada por cssas tens6es entre o sagrado e o prohmo e 6 por meio de rituais como, por exemplo, as rcunioes coletivas clos movimentos religiosos

/

ou as refeigoes em comum, que o sentido e produzido. E nesses momentos que ideias e valores sao cognitivarnente apropriados pelos individuos:

A religiao e algo eminentemente social. As representagoes religiosas sao representagoes coletivas que expressam rea­lidades coletivas; os ritos sao uma maneira de agir que ocorre quando os grupos se reunem, sendo destinados a estimular, manter ou recriar certos estados mentais nesses grupos (Durkheim, citaclo em Bocock e Thompson, 198.5, p. 42).

0 sa~·ado, aquila que e "colocado a pmte", e definido e marcado como cliferente em relagao ao prof~mo. Na verdade, o sa~·aclo esta em oposigao ao profano, excluindo-o inteiramente. As fonnas pelas quais a cultura estabelece fi·onteiras e clistingue a diferenc;;a sao cruciais para compreender as identidades. A cliferenga e aquilo que separa uma identidade da outra, esta­belecendo distingoes, fi·eqi.ientemente na fonna de oposigoes, como vimos no exemplo da Bosnia, no qual as iclentidades sao construidas por meio de uma clara oposigao entre "nos" e "eles". A marcagao da diferenga e, assim, o componente-chave em qualquer sistema de classificagao.

Cada cultura tem suas pr6prias e distintivas fm·mas de ' classificar o mundo. E pela construgao de sistemas classifi-

cat6rios que a cultura nos propicia os meios pelos quais podemos dar senticlo ao mundo social e construir significa­dos. H<-1, entre os rnembros de uma sociedade, um certo gran de con sen so sobre como classificar as coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de signifi-

L.

cas;fw sao, na vcrdade, o que se en ten de por "cultura":

41

carlaabreu
Realce
Page 19: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

... a cultura, no senticlo dos val ores pu bl icos, padronizaclos, de uma comuniclade, serve cle intermeclia<;"ilO para a expe­riencia dos indivfduos. Ela f(Jrnece, antecipadamente, al­gumas categorias basi cas, um padrao positivo, pelo qual as ideias e os valores sao higienicamente onlenaclos. E, so­bretuclo, ela tem autoridade, uma vez que cacla um e induziclo a concordar por causa da concordancia dos ou­tros (Douglas, 1966, p. 38-9).

0 trabalho da antrop6loga social Mary Douglas desen­volve o argumento durkheimiano de que a cultura, na forma do ritual, do sfmbolo e da classificac,;ao, e central_a produc,;ao do significado e da reproduc,;ao das relac,;6es sociais (Du gay, Hallet alii, 1997; Hall, 1997b). Para Douglas, esses rituais se estendem a todos os aspectos da vida cotidiana: a prepa­rac,;ao de alimentos, a limpeza, o desfazer-se de coisas- tudo, desde a fala ate a comida. No restante desta sec,;ao, vamos explorar urn pouco mais a centralidade da classificac,;ao pa­ra a cultura e a significac,;ao, utilizando o exemplo cotidia­no da comida.

0 antrop6logo social frances Claude Levi-Strauss pro­pos-se a desenvolver esse aspecto do trabalho de Durkheim e utilizou o exemplo da comida para ilustrar esse processo. A cozinha estabelece uma identidade entre n6s - como seres humanos (isto e, nossa cultura) - e nossa comida (isto e, a natureza). A cozinha e o meio universal pelo qual a natureza e transformada em cultura. A cozinha e tambem uma linguagem por meio da qual "falamos" sobre n6s pr6prios e sobre nossos lugares no mundo. Talvez possamos aclaptar a fl:ase de Descar­tes e clizer "como, logo existo". Como organismos biol6gicos, precisamos de comida para sobreviver na natureza, mas nos sa sobrevivencia como seres humanos depencle do uso clas cate­gorias sociais que surgem das classificag6es culturais que utilizamos para dar scnticlo a natureza.

Aquilo que comemos pocle 110s clizer muilo sobrc quem somos e sohrc a cultura na qual vivemos. A cornida e um

42

meio pelo qual as pessoas poclem fazer afirmac,;oes sohre si pr6prias. Ela tambem pode sugerir mudanc,;as ao Iongo do tempo bem como entre culturas. Poclcmos pensar na enor­mc varicclacle de ingreclientes que estao hoje disponiveis nos supermcrcados e tam bem na diversidaclc etnica dos restaurantes nas grandes cidacles do mundo e mesmo em pequenas ciclades - bares que servem tapas espanholas e restaurantes tailancleses e indianos sao apenas alguns dos exemplos que podem ser citados. Para Levi-Strauss, e tam­bern a forma como organizarnos a comida que importa - o que conta como prato principal, como sobremesa etc.; o que e cozido ou o que e cru. 0 consumo de alimentos pode indicar quao ric as ou cosmopolitas as pessoas sao, bern como sua posigao religiosa e etnica. 0 consumo de alimentos tern uma dimensao politica. As pessoas poclem se recusar a comer os produtos de pafses particulares, em urn boicote que expresse a clesaprovagao das politicas daquele pais: os

' produtos cia Africa do Sui antes do fim do apartheid; os alimentos da Franc,;a, em protesto pelos testes nucleares franceses no Pacifico. Certas identidades podem se definir apenas com base no fato de que as pessoas em questao comem alimentos orgfmicos ou de que sao vegetarianas. As fronteiras que estabelecem o que e comestfvel poclem estar muclanclo e as praticas alimentares sao, cada vez mais, cons­trufdas de acordo com criterios politicos, morais ou ecol6-gicos. 0 consumo de alimentos tern tambem uma conexao material: as pessoas s6 podem comer aquilo que elas podem comprar ou que esta disponfvel em uma sociedade particu­lar. A analise das praticas de alimentac,;ao e dos rituais associados com o consumo de alimentos sugere que, ao memos em alguma meclida, "nos somos o que comcmos". Na vercladc, se consideramos as coisas que, por uma razao ou outra, n6s nc7o comcrnos, talvez a aflrma<;ao mais exata seja a de que "n6s somos o que nao comemos". Existem proibi­goes culturais fimdamentais contra o consumo de ccrtos

43

Page 20: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

.I . ' I

' i

' '

I i ,

'

' ·I . " ' '

i I I ' .

I

: I . .

. 'I

. ' I '

' ' I . ~

jill ' '

· II

I

alimcntos. Existe tambc~m uma divisao h1sica entre o co­mestivel e o nao-comestivcl que vai alem clas distin~·6es entre o nutritivo eo vencnoso. Is so pocle assurnir diferentcs form as como, por excmplo, a proihic;ao de hebidas alco6licas c de carne de porco pelos muc;ulmanos ou a proibic;ao de alimentos nao-kosher pelos jucleus. Mas, em todos os casos, a proibic;ao distingue as identidades daqueles que estao incluidos em urn sistema particular de crengas daqueles que estao fora dele. Constroem-se oposig6es entre vegetarianos e carnfvoros, entre consumidores de alimen~os integrais e consumidores de alimentos considerados pouco saudaveis.

Na analise de Levi-Strauss, a comida e nao apenas "boa para comer", mas tambem "boa para pensar". Com isso, ele quer dizer que ;;t_c_qmic:Ia eportadorade significaclos siJ:nb_6-licos e pode atuar como significante .. Para Levi-Strauss, o ato de cozinhar representa a tfpica transformac;ao da natu­reza em cultura. Com base nesse argumento, ele analisou as estruturas subjacentes dos mitos e dos sistemas de cren­ga, argumentando que eles se expressam por meio claquilo que ele chama de "triangulo culinario". Todo alimento, ar­gumenta ele, pode ser clivi dido de acordo com este esquema classificat6rio (Figura 1):

CRU

COZIDO -------PODRE

Figura l: 0 triangulo culim'irio de Levi-Strauss (forma primaria) (.Fonte: ba­seaclo em Leach, 1974, p. 30).

44

Levi-Strauss argurnenta que, da mesma forma que ne­nhuma sociedadc humana deixa de ter uma lingua, ncnhu­ma socicclade humana tampouco clcixa de ter mna cozinha (isto e, alguns meios para sc transh)nnar alimento cru em alimento cozido). 0 alimento cozido e aquele alimento cru que foi transformado por meios culturais. 0 alimento podre e 0 alirnento cru que foi transfonnado por meios naturais.

Levi-Strauss idcntifica os cliferentes processos de cozi­mento que ilustram essas transformag6es. Assar- que en­volve ex:posi<::ao clireta as chamas (que eo agente de conver­sao ), sem a mediac;ao de qualqucr aparato cultural ou do ar ou cia agua - e a posic;ao neutra. Cozer envolve agua, reduz o alimento cru a um estado que e similar a decomposigao do apodrecimento naturale exige algum tipo de recipiente.

A defumagao nao exige mediac;ao cultural. Ela envolve a adic;ao prolongada de ar, mas nao de agua. 0 alimento assado e o alimento festivo preparado para celebrac;6es, enquanto o alimento coziclo e mais utilizado no consumo cotidiano e pode ser dado as criangas, aos doentes e aos velhos. 0 esquema de Levi-Strauss pode parecer complica­do e ate mesmo um pouco forgado. Entretanto, em termos gerais, as analises estruturalistas de Levi-Strauss tem sido ex:tremamente influentes, e este exemplo e titil para chamar a atenc;ao para a import<lncia cultural do alimento: "Sao as convenc;6es cla socieclacle que decretam o que e alimento e o que nao e, e que tipo de alimento deve ser comiclo em

/

quais ocasic)es" (Leach, 197 4, p. 32). ~o papel doalimento na construc;ao de idcntidades e a mediac;ao da cultura na tra1;~forma~·aodo natural que 6 importante nesse desvio que fiZemos pclos czu1linhos cla cozinha.

·-~ '-" . ---

Outro aspecto importantc da tcoriza~·ao de Levi-Strauss 6 sua an{tlisc de como a cultura classifica os alirncnlos em

/

comcstfn·is c nCto-comestiveis. E por meio dcssa distinc,;Cto

Page 21: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

e de outras clifercngas que a ordcm social e produzicb e rnantida. Como argumenta Mary Douglas:

Sepanu~ purificar, dcmarcar c punir transgress6es tem como sua principal fun<.;ao irnpor algum tipo de sistema

' a uma expcriencia inercntemenle dcsorclenacla. E ape-nas exageranclo a cliferenr,:a entre o que estii clentro e o que esUi fora, acima e abaixo, homem e mulher, a favor e contra, que se cria a aparencia de alguma orclem (Dou­glas, 1966, p. 4).

Isso sugere que a ordem social e mantida por meio de oposig6es biml.rias, tais como a divisao entre "locai's" (insi­ders) e "forasteiros" (outsiders). A produgao de categorias pelas quais os individuos que transgridem sao relegados ao status de "forasteiros", de acordo com o sistema social vi­gente, garante um certo controle social. A classificagao

- -- . ---··' ---- ---·--

simb6lica estc'i, assim, intimamente relacionada a ordem sociaL Por exemplo, o criininoso e um "forasteiro" cuja transgressao o exclui da sociedade convencional, produzin­do uma identidade que, por estar associada com a transgres­siio da lei, e vinculada ao perigo, sendo separada e marginalizada. A produgao da identidade do "forasteiro" tem como referenda a identidade do "habitante do local". Como foi sugerido no exemplo das identidades nacionais, uma identidade e sempre produzida em relagao a uma outra. Douglas sugere, utilizando o exemplo dos elias da sema­na, que n6s s6 podemos saber o significado de uma palavra por meio de sua relagao com uma outra. :'-Jossa compreensao dos conceitos depende de nossa capacida­de de ve-los como fazendo parte de uma seqiiencia. Aplicar esses conceitos a vida social pratica, ou organizar a vida cotidiana de acordo corn esses princfpios de clas­sificac,;fto c de difercnga, cnvolvc, muito freqiicntemente, urn comportamento social rcpetido ou ritualizado, isto {~.urn conjunto cle pn'ilicas sirnh6licas partilhadas:

4()

Os elias da semana, com sua seqiiEmcia regulat~ seus nomes e sua singulariclaclc, alcm de seu valor pratico na iclentif!­ca<.;~lO clas divisoes clo tempo, tem, carla um clelcs, urn significado que faz parte de um padrfto. Cada dia Lem seu proprio significado e se existem hahitos que marcam a identidacle de um clia particuLu~ essas observancias regu­lares tem 0 efeito~ do ritual. 0 domingo nao e apenas um eli a de descanso. E o eli a que vem antes cla segunda-feira ... Em um certo senticlo, nao podemos experimentar a terga­feinl se por alguma razao nao tivermos formalmente nota­do que pass amos pela seguncla-feira. Passar por uma parte do paclrao e um ato necess<'irio para se estar consciente da proxima parte (Douglas, 1966, p. 64).

Douglas utiliza o exemplo da poluigao e, em particulm~ de nossa percepgao sobre o que conta como "sujo". Segundo ela, nossas concepgoes sobre "sujeira" sao "compostas de duas coisas: cuidado com a higiene e respeito pelas conven­g6es" (ibid., p. 7). Ela argumenta que a sujeira ofende a ordem, mas que nao existe nada que se possa chamar de sujeira absoluta. A sujeira e "materia fora de lugar". Nao vemos nada de en·aclo com a terra que encontramos no jarclim, mas ela "nao esta no lugar certo" quando a encon­tramos no tapete cla sala. N ossos esforgos para retirar a sujeira nao sao movimentos simplesmente negativos, mas tentativas positivas para organizar o ambiente- para excluir a materia que esteja fora de lugar e purificar, assim, o ambiente. Ela argumenta aincla que "uma ref1exao sobre a sujeira envolve uma ref1exao sobre a relagao entre ordem e desordem, o sere o nao-so·, o formado eo in-formado, a vida e a mortc" (ibid., p . .5). Assim, as categorias do limpo e do nao-limpo, tal como as clisting6es entre "forasteiros" e "lo­cais", sao produ tos de sistemas culturais de classificagao cujo ohjetivo 6 i1C~liag:m da orclem.

Poderiamos afirmar, talvcz, que csscs tc6ricos tendem a exagerar o papcl do sim b6lico as custas do material. Afinal, ao considcrar os alimcntos que as pessoas cmnem c aquelcs

4.~

I

Page 22: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

que elas cvitam, e tambem importante tratar clas restrigocs materiais. Ha ahmentos que voce gostaria de comer, mas pocle nao ter o dinheiro para compr::'i-los. Historicamentc, a escolha dos alirnentos tem se desenvolvido no contexto de sua escassez ou de sua superabuncLlncia relativas. 1\ ossa escolha clos alimentos - quando temos alguma escolha -desenvolve-se tambem em contextos econ6micos particula­res. Embora essas restrigoes econ6micas e materiais possam ser muito importantes, elas nao enfraquecem necessaria­mente o argumento sobre a centralidade dos sistemas sim­b6licos ou classificat6rios. 0 "gosto" nao e sit11plesmcnte determinado pela disponibilidade ou nao de recursos mate­riais. Os fatores econ6rnicos sozinhos- sem a cultura- nao sao determinantes. Mary Douglas argumenta que, no inte­rior de uma sociedade com as mesmas restrigoes econ6mi­cas, cada casa "desenvolve um padrao regular de hon1rios de alimentagao, de bebida e comida para as criangas, de bebida e comida para os homens, de comida festiva e comida cotidiana" (1982, p. 85). Seja la qual for o nivel relativo de pobreza ou riqueza, a bebicla atua como um marcador de genero cla "iclentidade pessoal e clas fronteiras da inclusao e cla exclusao" (ibid.). Existem proibigoes que impedem que as mulheres tomem "bebiclas fortes", mas os homens cla mesma classe e do mesmo grupo de renclimento sao julgados, em contextos particularcs (Douglas cita os homens que trabalham nos portos, mas seria possivel pensar em muitos outros exem­plos), "de acorclo com a maneira correta ou errada como eles carregam sua bebicla'' (Douglas, 1987, p. 8).

Os sistemas de alimentagao estao, assim, sujeitos as classificagoes do processo de orclenagao simb6hca bern como as clistim,;oes de gt'~nero, idacle c classe. Existem, ohvia­mentc, dilc~rengas de classe social em nosso gosto pela co­mida. Como argumenla Pierre Bourdieu (1984), certos ali­mentos sao associados com as mulhercs ou com os horncns,

48

de acorclo com a classc social. 0 peixe e percebido como impr6prio para os bonteus da classc operc'iria, sendo visto como "comida leve", mais apropriada para as crianc;as e os inv<'ilidos. Reccntes campanhas promocionais cla indtis­tria de carne bovina briHmica, planejadas para conter qualquer tenclencia ao vegetarianismo, parece confirmar isso, ao sugerir que somente os fracos comem vegetais e peixes ("Hom ens verdadeiros comem carne"; "Os ho­m ens precisam de carne"). As ansiedades sobre os riscos do consumo de carne bovina britanica, desde a crise cla "vaca louca", poclem, entretanto, prejudicar esse tipo de campanha. Bourdieu argumenta que o corpo se clesen­volve por meio de uma inter-relac;ao entre a localizagao de classe do individuo e 0 gosto. g ggsto e definido pelas fm·mas pelas quais os individuos se apropriam de escolhas eprefen3ncias que sao o produto de .restrig6es materiais e claquilo que ele chama de habitus.

. .

Esta segao analisou algumas das fm·mas pelas quais as culturas fornecem sistemas classificat6rios, estabelecendo fi:onteiras simb6licas entre o que esta incluido e o que esta excluido, definindo, assim, o que constitui uma pratica cultu­ralmente aceita ou nao. Essa classificagao ocorre, como vimos, por meio da marcagao cla diferenr;a entre categmias. Examina-

--,~~- -'"'' ~c,u ~"~'-''"

remos, na proxima segao, a importancia particular da diferenga na construgao de significaclos e, portanto, de identidaclcs.

3. 2. A dfferenr;a

Ao analisar como as identidades sao construidas, sugeri que elas sao formaclas relativamente a outras identidacles, relativamente ao "forasteiro" ou ao "outro", isto e, relativa­mcntc ao que n~to 6. Essa construgrto aparcce, mais comu­mentc, sob a forma de oposigoes binarias. A teoria lin­giifstica saussureana sustenta que as oposig6es bin~'irias- a forma mais extrema de marcar a clif(;rcnc;a- sao essenciais

19

carlaabreu
Realce
Page 23: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I.

.. ,, '1: I •

: i ! •

" ' .. '

I i ' '

' •• ;

I

' ' " '

.. ' ' ' • '

'

I .,

'

I I , ,I

I 1,1

; i I '

I ' '

'i I I

·I' ' •

para a produc;ao do significado (Jlall, 199/a). ~st<lsec,:ao c.~:_n_<llisanl. a questao da dif(~renc;a, cspecialmcnte a suapro­dw:;ao por meio de oposic;ocs binarias. Essa conccpc,:ao de diferenc;a e fundamental para se compreender 0 proccsso de construc;ao cultural das idcntidades, tendo sido adotacla por muitos dos "novos movimentos sociais" anteriormente discutidos. A diferenc;a pode ser construida negativamente - por meio da exclusao ou cia marginalizac;ao claquelas pessoas que sao clefiniclas como "outros" ou forasteiros. Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversida­de, heterogeneiclade e hibridismo, sendo vis.ta como enri­quecedora: e 0 caso clos movimentos sociais que buscam resgatar as iclentidacles sexuais dos constrangimentos cla normae celebrar a diferenc,:a (afirmanclo, por exemplo, que "sou feliz em ser gay").

Uma caracterfstica comum a maioria clos sistemas de pensamento parece se1~ portanto, um compromisso com os dualismos pelos quais a diferenc;a se expressa em termos de oposic;oes cristalinas - natureza/cultura, corpo/mente, pai­xao/razao. As autoras e os autores que criticam a oposigao binaria argumentam, entretanto, que os termos em oposigao recebem uma importancia diferencial, de forma que um dos elementos cla dicotomia e sempre mais valorizaclo ou mais forte que o outro. Assim, Den·ida argumenta que a relac;ao entre os dois termos de uma oposic,:ao binaria envolve um desequilibrio necessario de poder entre eles.

Uma clas mais freqtientes e dominantes dicotomias e, como vimos no exemplo de Levi-Strauss, a que existe entre natureza e cultura. A escritora feminista fi·ancesa Helene Cixous adota o argumento de Derrida sobre a distribuic,:ao clesigual de poclcr entre os clois termos de urna oposic;ao bin{tria, mas conccntra-se nas divis6es de genero c argu­menta que cssa oposic;ao de podcr tambC:~m 6 a base das

50

divis6es sociais, especialmente daquela que existe entre homens c mulheres:

0 pensamento semprc funcionou por oposi~·ao. 1' ~~1 a/ E s cri ta Alto/Baixo ... Isso significa alguma coisa? (Cixous, 197.5, p. 90).

Cixous argumcnta que nao se trata apenas do fato de que o pensamento e construido ern termos de oposic;oes bina­rias, mas que nesses dualismos um dos termos e sempre yalorizado mais que () outro: um e a norma e 0 outro e 0

"outro"- visto como "desviante ou de fora". Se pensamos a cultura em termos de "alto" e "baixo"; que tipos de atividade

/ .

associamos com "alta cultura"? Opera, bale, teatro? Que atividades sao identificadas, de forma estereotipada, como sendo de "baixa cultura"? Telenovelas, musica popular? Esse e um terreno polemico e uma dicotomia bastante questionavel nos Estudos Culturais, mas o argumento con­siste em enfatizar que os dois membros dessas divisoes nao recebem peso igual e, em particulm~ que essas divis6es estao relacionadas com o genero.

Cixous da outros exemplos de oposi<;6es biml.rias, per­guntando de que forma elas estao relacionadas como g€mero e especialmente com a posigao das mulheres no dualismo

em questao:

Oncle estd ela:':J A tividacle/pas sividacle, Sol/Lua, Cultural~ atureza, Dia/Noite. l')'ll. 1\·1 cte (_ j_.:_ _(_ _.,

Cabc~·a/cora~·ao,

ln teli gi \·ells en sfwl, H omem/:\lulhcr (ihid., p. 9()).

51

carlaabreu
Realce
Page 24: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I '' ''

' ' . " . I

' I '

I

: I I ' I , . I'

' I I '

i: •

'

I !

I Cixous sugerc que as mulheres cstao associaclas com a

natureza e nrw com a cultura, com o "conH.;ao" cas cmoc;i)es - " 1 " e nao com a ca )ega e a racionahdade. A tendencia para

classificar o nnmdo cm uma oposic;iio entre principios mas­culinos e femininos, identiJicada por Cixous, est{L de acorclo com as analises estruturalistas baseadas em Saussure as

' • A

qums veem o contraste como um princfpio da estrutura lingtifstica (Hall, 1997a). Mas, enquanto para Saussure essas oposic;6es binarias estao ligadas a l6gica subjacente de toda linguagem e de todo pensamento, para Cixous a forc;a psf­quica dessa duradoura estrutura de pensamento deriva de uma rede hist6rica de determinac;6es culturais.

Quao inevi taveis sao essas oposic;6es? Sao elas parte da l6gica de pensamento e da linguagem como Saussure e estruturalistas tais como Levi-Strauss parecem sugerir? Ou sao elas impostas a cultura, como parte do processo de exclusao? Estao essas dicotomias organizadas para desvalo­rizar um dos elementos? Tal como feministas como, por exemplo, Simone de Beauvoir e, mais recentemente, Luce lligaray, tem argumentado, e por meio desses dualismos que as mulheres sao consh11idas como "outras", de fonna que as mulheres sao apenas aquilo que os hom ens nao · sao. como

ocorre na teoria psicanalitica lacaniana. Podem as mulheres ser cliferentes dos hom ens sem serem opostas a eles? Irigarav utiliza o exemplo da sexualidade para argumentar que C:s mulheres e os homens tem sexualidades d&~rentes mas nao opostas (Irigaray, 1985). Entretanto, a identifica~·ao clas mu­lheres com a natureza e dos homens com a cultura tcm um lugar bem estabelecido na teoria antropol6gica.

Henrietta Moore sugcrc que a antropologia tcm siclo importante para clcsestabilizar categorias unit{trias tais COHlO a de "mulher'', cspeciaJmcJJte por causa de sua enLtsc IJa diversidade intercultural. As clesigualdades l(:m sido tratadas, na antropologia, a partir de clu-as perspectivas. Em

50 ' ~

primeiro Iugar, tem-se argumentaclo que a desigualdadc de genero est{tligacla ~t tendcncia a identitlcar as mulhcres com a natureza cos bomens com a cultura (a oposic,;ao fundamen­tal, aquela que Levi-Strauss toma como base da vida social). A seguncla posic;ao ccntra-se nas estruturas sociais: aqui as mulheres sao iclentificadas com a arena privada da casa e das relag6es pessoais e os homens com a arena p6blica do comercio, da procluc;ao e da polltica. A evidencia antropol6-gica rnostra, entretanto, que a divisao entre natureza e cultura nao e universal. 0 questionamento que Moore faz a oposi~·ao binaria entre natureza e cultura, em sua relac;ao com a oposigao entre mulheres e homens, possibilita anali­sar as especificidades cla diferenga.

Esta se<;;ao discutiu as oposi<;;6es binarias, um elemento essencial da lingiilstica saussureana adotada pelo estrutura­lismo de Levi-Strauss. Ela tambem tratou das criticas clesses dualismos como, por exemplo, a de Derrida. 0 questiona­mento que Derrida faz das oposig6es binarias sugere que a propria dicotomia e um dos meios pelos quais 0 significado

' e fixado. E por meio dessas dicotomias que o pensamento, especialmente no pensamento em·opeu, tem garantido a permanencia das relag6es de poder existentes. Derrida questionou as vis6es estruturalistas de Saussure e Levi­Strauss, sugerinclo que o significado esta presente como um "trac;o"; a relac;ao entre significado e significante nao e algo fixo. 0 significado e produzido por meio de um processo de diferimento ou adiamento, o qual Den·ida chama de diffe­rance. 0 que parece determinado e, pois, na verdade, fluido e inseguro, sem nenhum ponto de fechamento. 0 trabalho ge Denicla sugere uma alternativa ao fechament~~-a rigidez

. - - ·--·· ' . -·· -

QCl.S oposi~·oes binarias. Em vez de fixidez, 0 que existe e co11tingcncia. 0 significado esta sujcito ao dcslizamento. ----- (_ l_,- •

Cixcms clescnvohe essa critica, mas enhtizanclo, diferentc-mente de Dcrrida, as relagocs de podcr ligaclas ao g(;ncro.

.5:3

Page 25: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

3. 3. Sumario da seqiio 3

Os sistemas classificat6rios por meio dos quais o signi­ficado e procluziclo dcpenclem de sistemas sociais c simb6-licos. As percepc,;oes e a compreensao da mais material clas necessidacles sao construiclas por meio de sistemas simb6-licos, os quais distinguem o sagrado do profano, o limpo do sujo eo cru do cozido. Os sistemas classificat6rios sao, assim, construidos, sempre, em torno cia diferenc,;a e das fm·mas pelas quais as diferenc,;as sao marcadas. N ossa dis­cus sao procurou teorizar as formas pelas quais os sistemas simb6licos e sociais atuam para produzir identidades, isto e, para produzir posic,;6es que podem ser assumidas, enfati­zando as dimens6es sociais e simb6licas cia identidade. Esta sec,;ao buscou demonstrar que a diferenc,;a e marcada em relac,;ao a identidade. Analisamos tambem o pensamento que se baseia em oposic,;6es binarias tais como natureza/cul­tura e sexo/genero. Mostramos que os termos que formam esses dualismos recebem, na verdade, pesos desiguais, es­tando estreitamente vinculados a relac,;oes de poder. Esta sec,;ao tambem buscou questionar a perspectiva de que adotar uma posic,;ao politica e defender ou reivindicar uma posic,;ao de identidade necessariamente envolve urn apelo a autenticidade e a verdacle enraizadas na biologia. Discuti­mos tambem as possiveis alternativas a esse essencialismo, argumentando em favor de um reconhecimento cla posicio­nalidade e de uma politica de localizac,;ao que, como argu­menta Henrietta Moore, inclui diferenc,;as de "raga", classe, sexualidacle, etnia e religiao entre as mulheres.

Adiferenc,;a e marcada por representac;;6es simb6licas que atribuem significado as relac,;oes sociais, mas a explora­c,;ao da diferenc,;a nao nos diz por que as pessoas invcstcm nas posic,;ocs que elas investem nem por que existc esse invcstimcnto pessoal na ideJJtidade. Descrevemos alguns dos processos envolviclos na construc,;Cto clas posic,;ocs de

54

identiclacle, mas nao cxplicamos par que as pcssoas assumem essas iclcntidaclcs. Voltamo-nos agora para a tiltima grande questao cleste capitulo.

4. Por que investimos nas identidades?

4.1. Identidacle e subjetividade

Os termos "iclenticlade" e "subjetividacle" sao, as vezes, utilizados de forma intercambiavel. Existe, na verclacle, uma consideravel sobreposic;;ao entre os dois. "Subjetiviclade" sugere a compreensao que temos sabre o nosso eu. 0 termo envolve os pensamentos e as emoc,;oes conscientes e incons­cientes que constituem nossas concep<;:6es sabre "quem nos samos". A subjetividade envolve nassos sentimentas e pen­samentos mais pessoais. Entretanto, nos vivemos nos sa sub­jetividacle em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dao significado a experiencia que temos de nos mesmos e no qual nos adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construfclos pelos discursos, eles s6 poclem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos sao, assim, sujeitaclos ao cliscurso e devem, eles proprios, assumi-lo como individuos que, clessa forma, se posicionam a si proprios. As posi<;:6es que assumimos e com as quais nos iclentificamos constituem nossas identiclades. A subjetiviclacle inclui as climens6es inconscientes do eu, o que implica a existencia de contradi­c,;6es, como vimos no exemplo das tentativas do solclado servio para reconciliar sua experiencia coticliana com as muclanc,;as politicas. A subjetividade pode ser tanto racional quanto irracional. Poclemos ser - au gostariamos de ser -pessoas clc cabcc,;a fria, agentes racionais, mas estamos su­jeitos a forc,;as que cstao alem de nosso controlc. _() conceito de subjetividadc pcnnitc uma exploragao dos sentimentos

- - - -

que est:w envolviclos no processo de produc,;ao da idcnticla-

carlaabreu
Highlight
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
Page 26: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

I ' ' ,, I ' I '

' .I '

I I I

I II ' •

' I I

' I i

' '

• • •

"

, I ! '

" I

' •

' '

I ' I.

" '

'

i

.Q<::',t:.chinvestimento. pe$soal que hzemos em posi~:oes especfficas de iclcntidade. Ele nos permite explicar as razoes pclas quais n6s nos apegamos a idcntidacles particularcs.

A fim de cxplorar urn pouco mais algumas clas ideias sobrc subjctividadc e identidade, gostaria de analisar um poema que e parte de uma serie sobre a questao da adogao de criangas. A poeta negra Jackie Kay, ela propria adotada, explora seus pr6prios sentimentos sobre a questao da ado­gao, em uma serie de poemas intitulada Docu1nentos de adoqiio (1991), utilizando uma serie de clife.rentes "vozes" (por exemplo, a voz cla mae naturale a cla mae aclotiva). Esse poema esta escrito na voz da primeira pessoa de uma mulher que quer aclotar um bebe e expressa seus sentimen­tos relativamente aos cliscursos da materniclade, os quais sao aqui apresentados como parte de pressupostos culturais partilhados, em particular sobre o que se espera de uma "boa mae". Inicialmente, Jackie Kay descreve sua experien­cia ao se inscrever em varias instituigoes de adogao, em suas tentativas para aclotar uma crianga:

A primeira institui~:,;ao a que fui nao queria nos colocar na sua lista nao monivamos suficientemente pr6ximos nem freqiientavamos qualquer igreja (mas nos calamos sobre o fato de que eramos comunistas). A segunda nos disse que nossa renda nao era suficiente­mente alta. A terceira gostou de n6s mas tinham uma lista de espera de cinco anos. Passei seis meses tentando nao olhar para balan~:,;os nem para carrinhos de bebe, - . . para nao pensar que essa cnan~:,;a que eu quena poderia ter agora cinco anos. A quarta instiluigao estava com as vagas esgotaclas. A sexta clisse sim, mas, de novo, nao havia nenhum behe. Quando eu ja estava na porta, Eu disse olha a gente nao liga pra cor. E foi assim que, cle rcpente, a espera acabou .

. 56

0 poenm continua, descrcvenclo a visita que a institui­c,;ao de aclogao fez a easa da futura mac adotiva e as prepa­ragoes que a mac- branca- faz a fim de se aprcscntar- c a sua casa- sob o angulo mais favoravcl possivcl, considc­rando-sc suas ansicclacles sobre nao ser vista como o tipo certo de mae:

Achei que tinha escondido tudo, que nao tinha deixado a vista nacla que pudesse me denunciar.

Botei \larx, Engels, Lenin (nenhum Trotsky) no armaria da cozinha- ela nao ia conferir os panos de prato, isso era certo. Os exemplares do Diario Operario Eu botei embaixo da almofada do sofa, a pomba da paz eu tirei do banheiro.

Tirei da cozinha Um poster de Paul Robeson que dizia: deem-lhe seu passaporte.

Deixei uma pilha de Burn, meus cantos policiais e as Obras Completas de Shelley.

Ela chegou as 11:30 exatamente. Sen·i-lhe cafe nas minhas non1s xfcaras de louga htmgara e tolamente rezei pra ela n:io perguntar de onde vinham. l''rancamente, esse hebe esta me subinclo a cabec;:a. Ela cruza as pernas no sofa Ouc,:o na minha cabec;:a o rufdo cb Dicirio Opcr(irio embaixo clela

Bem, cliz ela, voce tem uma casa interessante. Ela ,.e minhas sobrancelhas se erguerem . 1:: cliferen Le. acresccnta cia.

Droga. eu linha gastaclo tocla a rnanh~t tentanclo f~tzer com que parecesse uma casa comum, 11111a casa adorCtvel para o behe.

57

carlaabreu
Realce
carlaabreu
Realce
Page 27: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

Ela abotoa seu c:asaco tocla sorrisos. Fico pensando: agora c.

vamos para o tour cla casa.

Mas assim que chegarnos ao 1Iltimo canto o olho dela cai em c:ima ao mesmo tempo que o meu de uma fileinl de vinte distintivos pela paz mundial.

Claro como uma foice e um martelo na parede. Ah, diz ela, voce e contra armas nucleares?

Azar, seja o que Deus quiser. Com bebe ou sem bebe. Sim, eu cligo Sim. Sim, sim, sim. Gostaria que esse be be vivesse em um munclo sem perigo nuclear. ·.

Ah! Seus olhos se acenclem. Tambem sou a favor da paz, cliz ela, e se senta pra mais uma xfcara de cafe (Kay, 1991, p. 14-16).

Em casos de adogao, tornamo-nos agudamente cons­cientes sobre o que constitui identidades maternais ou paternais socialmente aceitaveis. Existe, aqui, um reconhe­cimento claro sobre a existencia de uma identidade mater­nal. Que sentimentos essa mae/poeta traz para esses discursos sobre maternidade? Que posigao de identidade ela quer assumir? Que outras identidades estao envolvidas? Quais sao as identidades que estao, aqui, em conflito? Como sao elas negociadas? Quais sao as contradigoes entre a subjetividade e a idcntidade, apresentadas no poema?

0 poema de Kay indica algumas das formas pelas quais as identidades sociais sao construfdas bem como as formas pelas quais nos as negociamos. Este poema ilustra as dife­rentes idcnticlades, mas, de forma crucial, uma delas em particular, que a mae/poeta reconhece como tendo predo­minancia cultural: a cia "boa" mae, da mae "normal'', tern uma ressonancia particularmcntc forte ncssc caso. 1'rata-se de uma idcntidacle que ela parcce assumir, embora ela cste­ja consciente de que est{t em conflito com outras iclcntida-

.58

des, especialmentc sua identidadc politica, associada, nessc casu com suas prefcrE'mcias pollticas de esqucrda. A futura mfte,vivencia um conflito psiquico, mas ha um final feliz. 0 pacifismo parece, afinal, ser algo aceit{tvel nesse caso. Dar um flnal feliz ao poema pode ser apenas uma liccnga poetica, mas tambem sugere que encontrar uma identidade pode ser um meio de resolver um conflito psfquico e uma expressao de satisfagao do clesejo- se e que essa resolugao e possivel. 0 poema tambem indica as formas pelas quais as identida­cles mudam ao longo do tempo. Isso e mostrado por urn simbolo historicamente especifico, o jornal comunista 0 Diario Operario, que tambem representa tudo que pode ser indesejavel em possiveis pais e maes adotivos.

Entretanto, ha tambem a sugestao de que os tempos esUio mudanclo, tornando aceitavel que a iclentidade mater­nal possa incluir uma posigao polltica - neste caso, uma posigao pacifista. Trata-se de uma identidade maternal na qual 0 sujeito (a mae/poeta) pocle fazer um investimento e com a qual ela pode se comprometer. Embora ela repre­sente, perante a inspetora de aclogao, um papel que ela ve como necessaria para a simulagao de uma identidade ma­ternal aceitavel, ela nao e interpelada por essa posigao-cle­sujeito, mas por uma posigao que se conforma com sua posigao politica. "Interpelagao" e o termo utilizado por Louis Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os

. ,, . '' sujeitos- ao se reconhecerem como ta1s: s1m, esse sou eu _ sao recrutados para ocupar certas posig6es-de-sujeito. Esse processo se cla no nivel do inconsciente e e uma form.a de descrever como os individuos acabam por adotar posi­goes-de-sujeito particulares. E uma forma de incoq)orar a dimensao psicanalitica, a qual nao se limita a descrevcr sistemas clc significado, mas tenta explicar por que posig(JCS particulares sfw assumidas. Os htores sociais podem cxpli­car uma construgiio particular de maternidade, especial-

59

Page 28: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

t I "l - " men c a c e )Oa mae , ncstc momento hist6rico, mas nao explicam qual o invcstimcnto que os indivfduos Ltzern em posig6es particulares c os apcgos que clcs dcsenvolvem por cssas posi<;6cs.

4.2. Dirnensoes psicanaliticas

Althusser desenvolveu sua teoria da suhjetividacle no contexto de um paradigma marxista que buscava h·azer algumas das contribuigoes da psican<-1lise e da lingiifstica cstrutural para o materialismo marxista. 0 trabalho de Al­thusser foi extremamente importante para a revisao do modelo marxista baseado nas nog6es de base e de supercs­trutura. N esse modelo, a base e definida como a fundagao material, economica, da sociedade. De acordo com essa perspectiva, essa base economica determina as relag6es sociais, as institui<;6es politicas e as formagoes ideol6gicas. Althusser tambem reformulou o conceito de ideologia ini­cialmente elaborado por Marx. Em seu ensaio sobre "a ideologia e os aparelhos ideol6gicos de Estado", Althusser (1971) enfatiza o papel da ideologia na reprodugao clas relag6es sociais, destacando os rituais e as praticas institu­cionais envolvidos nesse proccsso. Ele concebe as ideolo­gias como sistemas de representagao, fazendo uma complexa analise de como os processos ideol6gicos funcio­nam e de como os sujeitos sao recrutados IJelas idcolocrias

b ' mostrando que a subjetividacle pode ser explicada em ter-mos de estruturas e praticas sociais e simb6licas. Para Al­thusser, 0 sujeito nao e a mesma coisa que a pessoa humana, mas uma categoria simbolicamente construida: 'A icleolo-

. ' ' g1a ... reCI·uta sujeitos entre os indivfduos ... ou 'transforma' os inclivfcluos em sujeitos ( ... ) por esta operat;:Z'to rnuito pre­cisa a chamci de interpela<:;ao" (1971, p. 146). Esse proccsso de intcrpelagao nomeia e, ao mesrno tempo, posiciona o sujcito que e, assim, reconhecido e produziclo por meio de

pn'iticas e proccssos sirn b6licos. Ocupar uma posigfw-clc-su­jcito detcrminada como, por cxcmplo, a de cidadao patri6-tico, nfto 6 uma qucstao simplcsmente de escolha pcssoal conscientc; somos, na venlade, recrutaclos para aquela po­sigftn ao rcconhccc-la por mcio de urn sistema de rcpre­senta<;ao. 0 investimento que nela fazemos e, igualmente, um elemento central nesse processo.

A teoria marxista enf~ltiza o papel do substrato material, clas relagoes de produc:;ao e da agao coletiva, especialmente cla solidariedade de classe, na formagao das identidades sociais, em vez da autonomia individual ou da autodetermi­nagao. Os fatores materiais nao podem, entretanto, explicar totalmente o investimento que os sujeitos fazem em posig6es de identidade. Teorizagoes p6s-marxistas como, por exem­plo, o ensaio de Althusser, enfatizam os sistemas simb6licos, sugerinclo que os sujeitos sao tambem recrutaclos e proclu­ziclos nao apenas no nivel do consciente, mas tambem no nivel do inconsciente. Para desenvolver sua teoria cla subje­tiviclacle, Althusser baseou-se na versao da psicanalise n·eu­diana feita por Lacan.

0 que distingue a teoria da psicanalise de Freud e a teorizagao posterior de Lacan de outras teorias psicol6gicas e o lugar que elas conceclem ao conceito de inconsciente. 0 inconsciente, de acordo com a psicanalise, e formado de fortes descjos, freqiientemente insatisfeitos, que surgem da intervengao do pai na relagao entre o filho ou a filha e sua mae. Ele esta enraizado em desejos insatisfeitos, em desejos que foram reprimidos, de forma que o conte{rclo do incons­ciente torna-se censurado pela mente consciente, passando a ser-lhe inacessfvel. Entretanto, esses desejos reprimidos acabam encontrando algurna forma de expressao como, por cxcmplo, por meio de sonhos e enganos (lapsos fi·eudianos). 0 inconscientc pode ser, assim, conhecido, em bora niio por urn accsso direto. A tarch clo psicanalista consiste em des-

Cll

Page 29: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

cohrir suas vcrdacles c lcr sua linguagem. 0 inconsciente e orcposit6rio dos desejos reprimidos, niio obcdecendo as leis cia mente consciente: ele tem uma energia indepcnclcnte e segue uma l6gica propria. Como argumcnta Lacan (1977), cle e estruturado como uma linguagem. Ao dar primazia a essa concepgao do inconsciente, Lacan caracteriza-se como um seguidor de Freud, mas faz uma radical reformulagao das teorias freudianas, ao enfatizar o simb6lico e a lingua­gem no desenvolvimento da iclentidacle.

A "clescoberta" do inconsciente, de uma dimensao psf­quica que funciona de acordo com suas pr6prias 1eis e com uma logica muito cliferente cla l6gica do pensamento cons­ciente do sujcito racional, tem tido um consideravel impac­to sobre as teorias da identiclade e da subjetividade. A ideia de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as demandas das forgas sociais, tais como elas se expressam naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada para explicar comportamentos aparentemente irracionais e o investimento que os sujeitos podem ter em agoes que podem ser vistas como inaceitaveis por outros, talvez ate mesmo pelo eu consciente do sujeito. Podemos estar muito bem informados sobre urn determinado domfnio da vida social mas mesmo assim acabamos nos comportanclo contra nossos melhores interesses. Apaixonamo-nos pelas pessoas erradas, gastamos dinheiro que nao temos, deixamos de nos candiclatar a empregos que poderiamos conseguir e nos candidatamos para empregos para os quais nao temos qual­quer chance. Chegamos ate rnesmo ao ponto de realizar agoes que podem am eagar nossas vidas apenas para afirmar uma determinada identidade. Sentimos emogoes ambiva­lentes - raiva para com as pcssoas que amarnos e, algumas vezes, desejo por pessoas que nos oprimern. A psicaml.lise fi·eudiana f(Jmecc um meio de vincular comportamcntos aparentementc irracionais como csses a repressao e a ne-

62

cessiclacles c descjos inconscientes. Em vcz de um todo unificaclo, a psique compreendc o inconscicntc (o id); o supereu, que age como uma "consciencia", rcprcsentando as restric,:ocs sociais; e o ego, que tcnta fazcr alguma conci­liac,:fto entre os dois primciros. Ela estii, assirn, em um estado constante de conflito e fluxo. A experiencia que temos dela ' .

pode ser vivida como dividicla ou fragmentacla.

A teoria psicanalftica lacaniana amplia a analise que Freud fez dos conflitos inconscientes que atuam no interior do assim chamado sujeito soberano. A enfase que Lacan coloca na linguagem como um sistema de significagao e, neste caso, um elemento central. Ele privilegia o significan­te como aquele elemento que determina o curso do desen­volvimento do sujeito e a diregao de seu desejo. A iden­tidade e moldada e orientada externamente, como urn efeito do significante e cia articulagao do desejo. Para Lacan, o sujeito humano unificado e sempre um mito. Q sentimento de identidade de uma crianga surge cla internalizagao das visoes exteriores que ela tem de si propria. Isso ocorre, sobretudo, no perfodo que Lacan chamou de ''fase do espe­lho". Essa fase vem depois da "fase imaginaria", que e anterior a entrada na linguagem e na ordem simbolica, quando a crianga ainda nao tem nenhuma consciencia de si propria como separada e distinta da mae. Nessa fase inicial, o infante e uma mistura de fantasias de amor e odio, con­centranclo-se no corpo da mae. 0 infcio da formagao da identidade ocorre quando o infante se d{t conta de que e separado da mae. A entrada na linguagem e, assim, o resul­tado de uma divisao fundamental no sujeito (Lacan, 1977), quando a uniao primitiva da crianga com a mae e rompida. A crian<:;a reconhece sua imagem refletida, identifica-se com ela e torna-se conscicntc de que t~ um scr separado de sua mae. A crianc,:a, que nessa [lse infantil 6 um conjunto mal­coonlcnado de impulsos, constr6i um cu bascaclo no scu

63

Page 30: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

reflexo em um verdacleiro espelho ou no espelbo dos olhos de outros. Quando olhamos para o espelho vemos uma ilusao de unidade. A fase do cspelho de Lacan rcprcsenta a primcira com preen sao da subjetividadc: e quando a crianc;·a se torna conscientc da mae como um objcto distinto de si mesma. De acordo com Lacan, o primeiro encontro como processo de constru~ao de um "eu", por meio da visao do reflexo de urn eu corporificado, de urn eu que tem fronteiras, prepara, assim, a cena para todas as identificag6es futuras. 0 infante chega a algum sentimento do "eu" apenas quando encontra o "eu" refletido por algo fora de si 1ji·6prio, pelo outro: a partir do lugar do "outro". Mas ele sente a si mesmo como se o "eu", o sentimento do eu, fosse produzido- por uma identidade unificada- a partir de seu proprio interior.

Dessa forma, argumenta Lacan, a subjetividade e clivi­elida e ilus6ria. For depende1~ para sua unidade, de algo fora de si mesma, a identidade surge a partir de uma falta, isto e, de um desejo pelo retorno da unidade com a mae que era parte da primeira infancia, mas que s6 pode ser ilus6ria, uma fantasia, dado que a separa<;:ao real ja ocorreu. 0 sujeito ainda anseia pelo eu unitario e pela unidade com a mae da fase imaginaria, e esse anseio, esse desejo, produz a tenden­cia para se identificar com figuras poderosas e significativas fora de si proprio. Existe, assim, um continuo processo de identificac;ao, no qual buscamos criar alguma compreensao sobre n6s pr6prios por meio de sistemas simb6licos e nos identificar com as formas pelas quais somos vistos por ou­tros. Tendo, inicialmente, adotado uma identidade a partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com aquilo que queremos ser, mas aquilo que queremos ser esta sepa­rado do cu, de forma que o cu csta permancntcmcnte diviclido no seu proprio in tcrior.

/ '

E nessa lase cclipiana da entrada na linguagem e nos sistemas simbolicos que o mundo de bntasia da crianc;a, que

64

inclui a si propria e a mCte, c~ rompido pcla entrada do pai ou daquilo que Lacan chama cle "a lei do pai". 0 pai representa uma intrmnissfto externa; o pai rcpresenta o tabu contra o incesto, o qual proibc a bntasia que a crianc;a tcm de se casar com a mfte bcm como a vontade da mCte em ter a crianc;a como o objeto de seu desejo. 0 pai separa a crianc;a de suas fantasias, enquanto 0 clesejo da mae e reprimido para 0

inconsciente. Esse e o momento em que o inconsciente e ' criaclo. A medida que a crianc;a entra na linguagem e na lei

do pai, ela se torna capaz, ao mesmo tempo, de assumir uma iclentidacle de genero, ja que este e o momenta em que a crianc;a reconhece a diferen<:;a sexual. .,'\s~irll(lUe esse mun­do clo imaginario e clo desejo pre-edipiano pela mae e d~ixaclo de lado, e a linguagem e 0 simb6lico que passam a ~·

fornecer alguma compensac;ao, ao proporcionar pontos de apoios lingtiisticos nos quais se torna possivel ancorar a .identidacle. 0 pai - ou o pai simb6lico, simbolizado pelo phallus - representa a diferenc,;a sexual. 0 phallus e, assim, 0 significante primeiro porque e aquele que primeiro intro­duz a cliferenc;a (isto e, a diferenc;a sexual) no universo simb6lico da crianc;a, 0 que lhe da um poder que e, entre­tanto, "falso", porque, como argumenta Lacan, o phallus apenas parece ter pocler e valor por causa do peso positivo da masculinidacle no clualismo masculino/feminino. Mesmo que o pocler clo phallus seja uma "piacla", como afirma Lacan, a crianc;a e obrigacla a reconhece-lo como um signi­ficante tanto do pocler quanta cla cliferenc;a. Outros tipos cle cliferenga sao construidos de acorclo com a analogia da di­ferenc;a sexual- isto e, um termo (o masculino) e privilegia­clo em relac;ao a outro (o feminino). Isso tambem significa que, para Lac an, a en tJ·acla das garotas na linguagem se faz de f(Jrma muito clif(~rentc cla dos garotos. As garotas sao posicionaclas negativamcnte- como "bltantes". Mesmo que o podcr do phallus scja ilus6rio, os garotos en tram na ordem simb6lica positivamcntc valorizados c como sujcitos desc-

Page 31: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

jantes. As garotas tern a posic,;ao negativa, pas siva- sao sim­plesrnentc "descjaclas".

0 trabalho de Lacan e importante sobretudo por causa de sua enfase no simb6lico enos sistemas representacionais, pelo destaque dado a diferenc,;a e por sua teorizac,;ao do con­ceito do inconsciente. Ele enfatiza a construgao da identi­dade de genero do sujeito, ou seja, a construgao sirnb6lica da diferenga e da identidade sexuada. 0 "fracasso" desse processo de construgao da identidade e a fragmentagao da subjetividade tornam possfvel a mudanga p~ssoal. Como conseqilencia, a tcoria lacaniana de formagao da subjetivi­dade pode ser incorporada ao conjunto de teorias que questionam a ideia de que existe urn sujeito fixo, unificado.

As teorias psicanallticas de Freud e de Lacan tern sido bastante questionadas, sobretudo por feministas que assi­nalam as limitag6es de uma perspectiva sobre a produgao da identidade de genero que afirma o privilegiamento mas­culino no interior da ordem simb6lica, na qual o phallus e o significante-chave do processo de significagao. Apesar das afirmag6es em contnirio de Lacan, o phallus cmTesponde ao penis, na medida em que significa a "lei do pai" e nao cla mae. Ele realmente argumenta que as mulheres entram na ordem simb6lica de forma negativa- isto e, como "nao-ho­mens" e n:lo como "mulheres". Mesmo que o sujeito unifi­cado tenha siclo abalaclo pela teoria psicanalitica, parece tambem verdacle que as mulheres nao sao, nunca, plena­mente aceitas ou incluiclas como sujeitos falantes. 0 que e importante, aqui, e a subversao que as teorias psicanaliticas fazem do eu unificaclo, bem como a enfase que colocam no papel dos sistemas culturais e representacionais no processo

/

de construc,;ao da idcntidade. E irnportante tambcm a pos-sihilidaclc que clas oferecern de se analisar o papcl tanto dos clescjos conscientes quanto clos inconscientes nos processos de iclentificac,;ao. 0 conceito de inconscientc aponta para

66

urna outra dimensao cla identidade, sugerinclo um outm quaclro te6rico para se analisar algumas das razocs pelas quais invcstimos em posic,;ocs de identiclade.

Conclusao

Este capitulo apresentou alguns clos importantes con­ceitos relacionaclos a questao da identidade e da diferenc,;a, desenvolvendo, assim, um quadro de referenda para sua analise. Discutimos as raz6es pelas quais e importante tratar dessa questao e analisamos de que forma cia surge nesse ponto do "circuito" da produc,;ao cultural. Analisamos, alem disso, os processos envolvidos na prodw;;ao de significados por meio de sistemas representacionais, em sua conexao com o posicionamento dos sujeitos e com a construgao de identidades no interior de sistemas simb6licos.

A identidade tem se destacado como uma questao cen­tral nas discuss6es contemporaneas, no contexto das recons­tnu;;6es globais das identidades nacionais e etnicas e da emergencia dos "novos movimentos sociais", os quais estao preocupados com a reafirmagao das identidades pessoais e culturais. Esses processos colocam em questao uma serie de certezas tradicionais, dando forga ao argumento de que existe uma crise da iclentidade nas sociedades contempora­neas. A cliscussao cla extensao na qual as iclenticlades sao contestaclas no munclo contemporfmeo nos levou a uma am'ilise da importancia da diferenc,;a e clas oposig5es na construgao de posic,;6es de identidade.

A cliferenga e um elemento central clos sistemas classi­ficat6rios por meio dos quais OS significados SaO produzidos. Examinamos as analiscs estruturalistas cle L{~vi-Strauss c de ;\:fary Douglas, ao cliscutir os processos de marcac,;ao da . ..

difercnga e da constru~~:tO do "forasteiro" e do "outro", efe-tuados por meio de sis tern as cu lturais. Os sistemas sociais e

Page 32: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

'

. ' ' ' .

,, !

.. I

simb6licos produzem as estruturas classificat6rias que dao um certo sentido e uma certa ordcm a vida social e as disting6es fundamentais -entre n6s e cles, entre o f(xa e o dentro, entre o sagrado e o proLmo, entre o rnasculino e o feminino- que estao no centro clos sistemas de significa~·iio da cultura. Entretanto, esses sistemas classificat6rios nao podem explicm~ sozinhos, o grau de investimento pessoal que os individuos tem nas identidades que assumem. A discussao das teorias psicanaliticas sugeriu que, embora as dimensoes sociais e simb6licas da identidade sejam impor­tantes para compreender como as posigo.es de identidade sao produzidas, e necessario estender essa analise, buscan­do compreender aqueles processos que asseguram o inves­timento do sujeito em uma identidade.

Notas l. A autora refere-se ao esquema reprcsentado na Figura 2, desem·olvido por Paul du Gay, Stuart Hall, Linda Janes, Hugh Mackav e Keith Negus (1997). De acordo com as explicac;oes da autora cleste cnsaio em sua introduc;ao ao lino de onde ele foi extrafdo, Identity and difference, "no estudo cultural do Walkman como um artefato cultural, Paul du Gay e seus colegas argumentam que, para se obter uma plena compreensao de um texto ou artefato cultural, e necessaria analisar os processos de representac;ao, identidade, produc;ao, consumo e regu­lac;ao. Como se trata de um circuito, e passive] come~·ar em qualquer ponto; nao se trata de um processo linear, sequencial. Cada momenta do circuito esta tambem incxtricavelmente ligado a cacla um dos outros, mas, no esquema, eles aparecem como separaclos para que possamos nos concentrar em momentos especfficos. A cepresentac;~w refcre-se a sistemas simb6licos ltextos ou imagens visuais, por exemplo) tais como os envolvidos na publicidade de um produto como o \Valkman. Esses sistemas procluzem significados sabre o tipo de pessoa que utiliza um tal artefato, isto e, procluzem identidades que !he estao associa­das. Essas identidades eo artcfato com o qual elas sao associadas sao produzi­das, tanto tecnica quanta culturalmente, para atingir os consumidores que comprarao o produto com o qual eles - 6 isso, ao menos, o que os produtos esperam- se identifican'io. Um mtefato cultural, tal como o \\'alkman, tem um efeito sobrc a rcgulac;fto da vida social, por meio clas kmnas pelas quais clc e rcprcsentado, sobre as idcnticladcs com de associaclas c sobrc a articula~fto de sua produc;iio c de scu consumo" (N. doT).

68

identidadc

repre.senta<;:<lo produc;iio

regulac;iio consumo

Figura 2- 0 circuito da cultura, segundo Paul de Gay et alii (1997).

2. Refere-se ao grupo de mulberes que organizou, em agosto-setembro de 1981, uma demonstrac;ao de protesto contra a clecisao da OTAN (Organizac;ao do Tratado do Atlantica c'\ orte) de annazenar mfsseis nucleares na base acrea estadunidense de Greenham Common, na Inglaterra. Ap6s ter caminhado cerca de .50 quilometros, desde Cardiff, no Pais de Gales, ate a base de Greenham Commom, situada em Beksbire, Inglaterra, o grupo de mulheres acampou proximo ao portao principal da base (N. doT) .

Referencias bibliograficas

ALEXANDER, J. (org.). Durkheimian Sociology: cultural studies. Cambliclge: Cambliclge University Press, 1990.

ALTHUSSER, L. For 1\farx. Harmondsworth: Penguin, 1969.

-. Lenin and Philosophy, and other Essays. Lonclres: Left Books, 1971.

A?\DEHSON, B. Imagined Communities: reflections on the ori­gins spread of nationalism. Londres: Verso, 1983.

AZIZ, H. Feminism and the challenge of racism: deviance or difference, in: CHO\VLEY, H. & HIMMELWErf, S. (orgs.). Knowing 'Women. Cambridge: Polity!fhe Open University, 1992.

BOCOCK. R. & TlJ 0\ lPSON, K. (orgs.). Heligion and Ideology. \!an chester: \Ianchestcr University Prcss(l'he Open l!niver-'t JCJO,­Sl \'. , o;:).

69

Page 33: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem

BOUHD IE U, P Distinction: a social critique of the judgement of taste. Cambridge: MA, Harvard University Press, 1984.

CASTLES, S. & MILLER., M.J. The Age <~{Migration. Lonclres: Macmillan, 199:3.

CIXOUS, II. Sorties, La ]eune Nee. Paris: Union Generale cl'E­ditions, 10/12, 1975 (traclugao inglesa: in: MARKS, E. e De COURTIVRON (orgs.). New French [i'emiinisms: an anthology. Amherst, MA: The University of Massachusetts Press, 1980).

DANIELS, S. Fields ofVision: landscape, imagery and national identity in England and the US. Cambridge: Polity Pr~ss, 1993.

DALY, M. Gyn/Ecology: the metaethics of radical feminism. Lon­dres: The \Vomer{ s Press, 1979.

DELMAR, H. What is feminism?, in: MITCHELL, ]. & OAK­LEY, A. What is Feminism? Oxford: Basil Blackwell, 1986.

DERRIDA, J. On Grammatology. Baltimore/Lonclres: MD/Johns Hopkins University Press, 1976.

DOUGLAS, M. Purity and Danger: an analysis of pollution and

taboo. Londres: Routledge, 1966.

-. In the Active Voice. Londres: Routledge, 1982.

--. Constructive Drinking. Cambridge: Cambridge Press, 1987.

C ni \'ersi tv •

DU GAY, P (org.) Production of Culture/Cultures of Production. Londres: Sage/The Open University, 1997.

-. HALL, S.; JANES, L.; h11AC10\Y, H. & NEGCS, K. (orgs.). Doing Cultural Studies: the story of the Sony \Vcdk.nwn. Lon­clres: Sage/The Open University, 1997.

DUilKHE1NI, E. The Elementary Forms of the Heligious Life. Lonclres: Allen & Unwin, 1954.

GIDDENS, A. The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity, 1990.

GILHOY, Paul. Diaspora and the detours ofidcntily in: \VOOD­vVA H D, Kathryn (org.). I clcntity and difference. Lomlres: Sa­ges, 1997: 299-346.

70

\

GLEDHILL, C. Genre and gender: the case of soap opera, in: HALL, S. (org.). Hepresentation: cultural representations and

signifying practices. Lonch·es: Sage/fhe Open University, 1997.

,. HALL, S. Cultural identity and cliaspora, in: HUTLJEHFOH.D, J. (o'rg.). Identity: community, culture, difference. Londres: Law­rence and \Vishart, 1990.

HALL, S. (org.). Representation: cultural representations and signi­fying practices. Lonch·es: Sage/fhe Open Uni\'ersity, 1990 .

-. The work of representation, in: HALL, S. (org.). Repre­sentation: cultural representations and signifying practices. Lonclres: Sage/fhe Open Uni\'ersity, 1997a.

-. The spectacle of the Othe1; in: I-TALL, S. (org.). Representa­tion: cultural representations and signifying practices. Lon­dres: Sage(Ihe Open Uni\'ersity, 1997b.

IGNATIEFE \t The highway ofbrotherhood and unity, Granta. \~1. 45, p. 225-43, 1993.

-. The Narcissism of Minor Differences. Pavis Centre Inaugural Lecture, \Iilton Keynes: The Open University, 1994.

IIUGARAY, L. This Sex Which Is Not One. Ithaca, Nova York Cornell C ni\'ersitv Press, 1985.

JEFFREYS, S. The Spinster and her Enemies: feminism and sexuality, 1880-1.930. Lomlres: Pandora Press, 1985.

KAY, J. The Adoption Papers. Newcastle: Bloochue, 1991.

KING, R. Migrations, globalization and place, in: JVIASSEY, D. & JESS, P (orgs.). A Place in the World. Oxford: Oxford U ni\·ersity Press(fhe Open ll niversity, 1995.

' LACAN, J. Ecrits: a selection. Londres: Twistock, 1977.

-. New Hejlections 011 the Revolution of Our Time. Londres: Verso, 1990.

LEACH, E. Lh:i-Strauss. Glasgow: Collins, 1974. '

LEVT-STH.\l'SS, C. Le triangle culinaire, LArc, n. 2G, p. 19-29, l9(:i5 (lradw.;~to inglesa: New Society, 22 dez. 19()6, p. 9:37-~10).

71

Page 34: in t r o d u .. ~ a o t e 6 r ic a e c o n c e it u a lcarladeabreu.com/wp-content/uploads/2015/07/woodward-k.-identidade... · identidades adquirem sentido por meio da linguagem