Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

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    A Inadmissibilidade da Tentativa em Crimes Preterdolosos

    Felipe Moraes Forjaz de Lacerda

    Bacharel em Direito/MG

    RESUMO: A exposição temática desenvolvida no presente trabalho tem por finalidade explicitar

    à comunidade acadêmica uma abordagem acerca da incompatibilidade penal existente entre

    os institutos da tentativa e do preterdolo, com a finalidade precípua de questionar o modo como

    a questão vem sendo tratada no mundo prático, principalmente, em relação às decisões

     jurisprudenciais. A metodologia utilizada foi a leitura atenta de obras dos mais renomados

    autores que direta ou indiretamente tratam de questões ligadas as tema, bem como o estudo

    das mencionadas decisões, sempre considerando o atual momento em que se encontra o

    nosso direito, ou seja, tendo por escopo o Estado Democrático de Direito e seus princípios

    consectários, em especial o da dignidade da pessoa humana.PALAVRAS-CHAVE: Tentativa – Culpa – Dolo – Preterdolo - Jurispudência

    ABSTRACT: The Thematic Exhibition developed in this work has the aim to clarify for academic

    community an approach about criminal incompatibility between institutes of attempted and

    preterdolo , with primary aim for questionig the way about how the subject has been treated in

    practical world, mostly, in relation to jurisprudential decisions. The methodology used was the

    careful reading of works made by the most renowned authors, which ones deal with issues

    related to the subject, and the study about the mentioned decisions, always considering current

    moment that our Law is passing through, ie, with the scope on the Democratic State of Law andit’s derivatives principles, especially the Dignity of Human Person.

    KEYWORDS: Attempt - Blame – Deceit - Preterdolo - Jurispudence

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    SUMÁRIO

    1 - INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 2

    2 - O INSTITUTO DA TENTATIVA................................................................................................ 3

    2.1 - O iter criminis .................................................................................................................... 3

    2.2 - Conceituação e elementos da tentativa............................................................................ 32.3 - Punibilidade....................................................................................................................... 4

    2.4 - Crimes que não admitem a tentativa ................................................................................ 5

    3 - CRIME DOLOSO ..................................................................................................................... 5

    3.1 - Considerações iniciais ...................................................................................................... 5

    3.2 - Teorias sobre o dolo ......................................................................................................... 6

    3.3 - A incompatibilidade penal entre a tentativa e o dolo eventual.......................................... 6

    3.4 - Conceito e elementos do dolo........................................................................................... 8

    3.5 - Espécies de dolo............................................................................................................... 9

    3.6 - O dolo e o erro de tipo .................................................................................................... 104 - CRIME CULPOSO ................................................................................................................. 10

    4.1 - Elementos do delito culposo........................................................................................... 10

    4.2 - Modalidades de culpa ..................................................................................................... 11

    4.3 - Espécies de culpa ........................................................................................................... 11

    4.4 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes culposos........................................................ 13

    5 - PRETERDOLO ...................................................................................................................... 14

    5.1 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos ................................................ 17

    6 - CONCLUSÃO......................................................................................................................... 24

    7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................... 25

    1 - INTRODUÇÃO

    O presente trabalho tem por finalidade questionar se é possível punir um indivíduo com a pena

    cominada a um crime qualificado pelo resultado mais gravoso culposo, diminuída de um a dois

    terços, quando o resultado almejado com a prática delituosa não for alcançado em razão de

    circunstâncias alheias à sua vontade.

    Busca-se, pois, a partir da questão levantada, a comprovação de que não é admissível “a figura

    da tentativa de crime preterdoloso, uma vez que neste o resultado vai além do que o agente

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    desejou e naquela ele não atinge o evento pretendido”1. Dessa forma, equivocam-se os juízes

    e doutrinas que vêm entendendo em sentido contrário.

    A meu ver, a tentativa e o preterdolo são absolutamente incompatíveis, já que aquela

    pressupõe consciência e vontade do agente para a realização de um tipo penal e se o

    resultado mais gravoso de um crime ocorreu em decorrência da intenção do indivíduo, não há

    que se falar em preterdolo, mas em concurso material de crimes.O tema será analisado sob a ótica do atual contexto em que se encontra o ordenamento

     jurídico brasileiro, ou seja, com enfoque em princípios como o da dignidade da pessoa humana

    e da segurança jurídica.

    Critica-se, nesse sentido, a aplicação exacerbada de pena àquele que tenta praticar

    determinado crime, sem obter sucesso, quando ocorre um resultado mais gravoso inesperado

    pelo agente, eis que, neste caso, restariam ofendidos os aludidos princípios.

    Para facilitar a compreensão dos fins a que se destina este trabalho, mister se faz uma breve

    análise sobre alguns institutos jurídicos, em especial o da tentativa, o do crime doloso, o do

    crime culposo e o do crime preterdoloso.2 - O INSTITUTO DA TENTATIVA

    2.1 - O iter criminis

    Não há como discorrer acerca da tentativa sem se falar, ao menos em termos gerais, sobre a

    trajetória do crime (iter criminis ).

    Embora haja divergência entre os estudiosos quanto às fases do delito2, limitarei a fazer

    menção às quatro fases que preponderam na doutrina: a cogitação, a preparação, a execução

    e a consumação.

    A primeira diz respeito ao momento em que o agente decide se irá ou não praticar a ação

    delituosa. É a fase de ideação, na qual o indivíduo antecipa mentalmente o resultado, elege osmeios e analisa os efeitos concomitantes.

    A preparação ocorre quando o agente exterioriza atos precedentes da execução. Começa,

    dessa forma, a se tornar visível aquilo que até então estava apenas na esfera do pensamento

    do delinqüente.

    Já a execução é a fase em que o agente realiza, ou começa a realizar, aquilo que descrito no

    tipo penal de modo que se torna indubitável a agressão ao bem jurídico protegido pela norma.

    Por fim, a consumação ocorre quando é realizada a figura típica em sua totalidade, ou seja, o

    resultado pretendido pelo agente é atingido.

    Feitas as considerações acima, passemos à análise do instituto da tentativa.

    2.2 - Conceituação e elementos da tentativa

    Nos dizeres do professor Jair Leonardo Lopes:

    “A tentativa consiste no início de execução de figura típica, com a vontade de realizá-la

    inteiramente, tal como descrita, para lesar o bem jurídico protegido, sem, contudo, conseguir o

    fim visado, por circunstâncias alheias à vontade do agente”.3 

    1 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte geral. 26. ed. São Paulo: Saraiva 2003. p. 293.2 ZAFFARONI; Eugenio Raul; PIERANGELI, Jose Henrique. Da Tentativa: doutrina e jurisprudência.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 13.3 LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2005. p. 164.

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    O Código Penal Brasileiro, em seu art. 14, inciso II, estabelece que o crime será tentado

    “quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do

    agente”.

    Exige-se, pois, o início da execução para que o delito possa ser punível. Antes desse

    momento, nunca se poderá falar em punição, mesmo que os atos preparatórios de um tipo

    penal coincidam com atos executórios ou consumatórios de outras figuras típicas. Neste caso,haverá punição, sim, pelos atos de execução ou consumação do outro crime, mas nunca pelos

    atos preparatórios propriamente ditos.

    Só se poderá falar em tentativa quando o agente agir com consciência e vontade para praticar

    determinada infração penal, de modo que é o dolo direto um dos elementos essenciais à

    configuração de um crime tentado. Devido ao fato de o aludido artigo fazer menção expressa à

    “vontade do agente” , conclui-se que o dispositivo não abrangeu o dolo eventual e a culpa.

    Outra exigência legal à concretização da tentativa, além da necessidade de que tenha havido

    ao menos o início da execução de um delito por aquele que atue com dolo direto, é que a sua

    não consumação decorra de fatores externos à vontade do agente.2.3 - Punibilidade

    Com o intuito de viabilizar a punição do crime tentado, surgiram duas teorias.

    Segundo a Teoria Subjetiva, a punição da tentativa se fundamentaria na manifestação de

    vontade do indivíduo, independente de o resultado pretendido ocorrer ou não. Dessa forma, a

    punibilidade do crime tentado não se distinguiria da punibilidade do crime consumado, ou seja,

    a imperfeição do delito se limita ao seu aspecto objetivo.

    Por outro lado, conforme a Teoria Objetiva, o sancionamento da tentativa se embasaria no

    perigo em relação ao qual o bem jurídico é exposto. Assim, forçoso seria reconhecer uma

    redução na pena aplicável ao crime consumado quando o agente não consiga, efetivamente,atingir o resultado pretendido.

    Extrai-se a partir do parágrafo único do art. 14, do Código Penal, que a legislação brasileira

    adotou como regra a Teoria Objetiva: “salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a

    pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”.

    Ressalte-se, entretanto, que a regra não é absoluta, já que o referido dispositivo permite que a

    tentativa seja punida com a mesma pena cominada ao crime consumado, no caso de existir

    disposição legal em contrário.

    Em observância aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, qualquer sanção penal

    deve ser respaldada em lei anterior clara e precisa. É essencial, portanto, a perfeita subsunção

    do fato típico à norma jurídica penal.

    Atento a essas considerações e com o intuito de assegurar a punibilidade em situações nas

    quais um indivíduo, embora buscasse a realização de um tipo penal, não alcançasse o

    resultado almejado por circunstâncias alheias à sua vontade, é que o legislador criou a figura

    da tentativa.

    Trata-se, portanto, de adequação típica de subordinação mediata em que a punibilidade tem

    seu fundamento no art. 14, inciso II, do Código Penal. Este dispositivo é considerado como de

    extensão por, de certo modo, ampliar a figura típica de maneira que esta passa a abranger

    situações não previstas expressamente pelo tipo penal.

    Esclarece Nélson Hungria que:

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    “A tentativa é crime em si mesma, mas não constitui crime sui generis , com pena autônoma: é

    a violação incompleta da mesma norma de que o crime consumado representa violação plena,

    e a sanção dessa norma, embora minorada, lhe é extensiva. Subjetivamente, não se distingue

    do crime consumado (isto é, não há um elemento psíquico distintivo da tentativa, em cotejo

    com o crime consumado) e, objetivamente, corresponde a um fragmento da conduta típica do

    crime (faltando-lhe apenas o evento condicionante ou característico da consumação). No crimeconsumado, o evento corresponde à vontade do agente; na tentativa, fica ele aquém da

    vontade (precisamente o inverso do que ocorre no crime preterdoloso, em que o evento excede

    à vontade)”4 

    Cumpre salientar que, havendo interrupção da consumação de ilícito penal, pouco importa se

    ocorreram todos os atos necessários à consumação ou não para que seja caracterizada a

    tentativa. Não obstante, a causa de diminuição de pena descrita no art. 14, parágrafo único, do

    Código Penal, será graduada de acordo com a maior ou menor proximidade da consumação.

    Nesse sentido, se porventura ocorrer a denominada tentativa acabada (ou crime falho), com arealização de todos os atos necessários à consumação, deverá haver uma redução de apenas

    um terço da pena correspondente ao crime consumado.

    2.4 - Crimes que não admitem a tentativa

    Em consonância com grande parte da doutrina, entendi por bem reservar um tópico para tratar

    daqueles crimes em relação aos quais não se admite, em tese, a figura da tentativa.

    Dentre outros delitos, os doutrinadores elencam os seguintes como incompatíveis com o

    instituto em questão:

    a) crimes unissubsistentes, vez que neles não há fragmentação da atividade;

    b) crimes omissivos próprios, pois o momento consumativo é o da simples abstenção daatividade imposta por lei;

    c) crimes habituais, já que a consumação exige que o agente pratique determinada conduta de

    forma reiterada e habitual. Caso contrário, o fato será atípico;

    d) crimes culposos, eis que a tentativa pressupõe vontade dirigida à produção do resultado

    ilícito. Tal vontade inexiste nesta espécie delituosa;

    e) crimes preterdolosos. Em termos gerais, a inadmissibilidade da tentativa destes crimes se

    dá pela mesma razão em que crimes culposos não se coadunam com a forma tentada. No

    entanto, o assunto será objeto de análise mais profunda, por se tratar do foco principal do

    presente trabalho.

    No que respeita aos crimes praticados mediante dolo eventual, apesar de haver um

    entendimento doutrinário amplamente majoritário afirmando ser possível a tentativa, ouso

    sustentar a impossibilidade. Para tanto, me apoio principalmente na obra do ilustre professor

    Rogério Greco, um dos poucos que defendem a tese de que não há compatibilidade entre os

    institutos da tentativa e do dolo eventual. Esse assunto será melhor tratado mais adiante, em

    tópico próprio.

    3 - CRIME DOLOSO

    3.1 - Considerações iniciais

    4 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 11 a 27. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 74.

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    A tipicidade, ou seja, a adequação de uma conduta a um determinado tipo penal pressupõe

    que este seja realizado tanto no tocante ao aspecto objetivo quanto no subjetivo, de modo que

    não basta a aparência do crime, mas é preciso também que estejam presentes determinadas

    condições psicológicas ou subjetivas do agente, aferidas no momento da realização típica.

    Tais condições, quando se tratar de crimes dolosos, serão constituídas, necessariamente, pelo

    dolo e, eventualmente, por outros elementos subjetivos, quais sejam, os especiais fins de agir.Importante frisar que, devido ao fato de ter o nosso Código Penal adotado a teoria finalista da

    ação, o dolo é natural, pois “corresponde à simples vontade de concretizar os elementos

    objetivos do tipo, não portanto a consciência da ilicitude”5. Assim, o art. 21 do referido diploma

    legal afastou a teoria clássica, não acolhendo o chamado dolo normativo.

    3.2 - Teorias sobre o dolo

    Com o intuito de definir o dolo, foram criadas três teorias.

    Segundo a Teoria da Vontade, o dolo é a vontade do agente direcionada ao alcance de

    determinado resultado.

    Na lição de Bitencourt,“A essência do dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o

    resultado. Essa teoria não nega a existência da representação (consciência) do fato, que é

    indispensável, mas destaca, sobretudo a importância da vontade de causar o resultado”.6 

    Nos termos da Teoria da Representação, basta a previsão do resultado como possível para

    que haja o dolo. Dessa forma, pouco importa se o agente assumiu o risco de produzir o

    resultado antecipado mentalmente ou se ele, apesar de cogitar a ocorrência de tal resultado,

    acredita na sua não superveniência. Em outras palavras, para os adeptos desta teoria, é

    indiferente se o agente agiu com dolo direto ou eventual ou até mesmo com a denominada

    culpa consciente.Por fim, de acordo com a Teoria do Assentimento (ou Consentimento), o dolo é a vontade do

    agente que, prevendo certo resultado como possível de ocorrer, não o quer diretamente, mas

    assume o risco de produzi-lo.

    3.3 - A incompatibilidade penal entre a tentativa e o dolo eventual

    Sobre essa questão, tive oportunidade de publicar artigo na Revista Prática Jurídica. Para

    melhor compreensão do tema, entendi por bem transcrever alguns trechos do referido artigo:

    “Com o intuito de ilustrar o problema apresentado, expõe-se a seguinte situação: um indivíduo

    conduz seu veículo em via pública a 220 km/h e, apesar de conhecer e aceitar o risco de

    causar um acidente fatal, não reduz a velocidade e, com isso, atropela um pedestre, causando-

    lhe lesões corporais. Questiona-se, pois, se o condutor do veículo deveria responder por

    tentativa de homicídio, por ter agido com dolo eventual, ou por lesão corporal consumada.

    Tanto a jurisprudência quanto a doutrina, de forma amplamente majoritária, sustentam o

    entendimento de que nada obsta a tentativa de crime praticado com dolo eventual, eis que esta

    espécie de dolo se equipara à direta e, por conseguinte, o agente responderia por homicídio

    tentado.

    Ouso discordar desse posicionamento, pois que, se assim fosse, deveria o agente responder

    pela tentativa de homicídio não apenas em relação àquele indivíduo atropelado, mas em

    5 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit.. p. 288.6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 334. 

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    relação a toda e qualquer pessoa por quem tenha passado com seu veículo em alta

    velocidade. Da mesma forma, se alguém saca uma arma em meio a uma multidão e dispara

    contra um desafeto, sem se importar em acertar outrem, não poderia responder por tantas

    tentativas de homicídio quanto forem as pessoas no local.

    Por essa razão é que ao tratar do instituto da tentativa, destoando da regra geral do Código

    Penal Brasileiro, se amparou tão-somente na Teoria da Vontade, exigindo, assim, que o dolopossa ser tão-somente direto para que a conduta do agente seja incriminada.

    (...)

    Discordo, data maxima vênia , do ilustre mestre Cezar Roberto Bitencourt, quando afirma que

    ‘consentir na ocorrência do resultado é uma forma de querê-lo’7. Isso porque tanto o consentir

    como o assumir o risco, quando referentes à produção de um resultado, constituem o que

    chamamos de dolo eventual e se este traduzisse a idéia de querer (ou ter vontade de) produzir

    o resultado, não se distinguiria do denominado dolo direto. Por conseguinte, em última análise,

    as teorias da Vontade e do Assentimento se equivaleriam na prática.

    A meu ver, o autor visa, com a referida assertiva, embasar a afirmação de que ‘na tentativa oagente quer ou assume o risco de produzir o resultado’8, tendo em vista que o art. 14, inciso II,

    do Código Penal, dispõe expressamente sobre a vontade (ou o querer) do agente. Desse

    modo, se tornaria viável a tentativa de crime cometido mediante dolo eventual. No entanto, a

    vontade de produzir um resultado não se coaduna com o instituto do dolo eventual.

    O Código Penal Brasileiro adotou como regra, concomitantemente, as teorias da Vontade e do

    Assentimento, fazendo abranger no conceito de dolo tanto a sua forma direta quanto indireta.

    Não obstante, consoante ao exposto, a legislação adotou tão-somente a Teoria da Vontade ao

    tratar do instituto da tentativa.

    Pelas razões explanadas, há absoluta incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual,posto que este se funda na Teoria do Assentimento (o agente não tem vontade  de produzir o

    resultado típico, mas assume o risco de sua superveniência) e aquela se lastreou na Teoria da

    Vontade - dolo direto (o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade   do

    agente).

    Logo, a conduta do agente que assume o risco de produzir determinado resultado será atípica

    se este não se consumar, salvo se dela decorrerem outros resultados típicos, e. g., lesão

    corporal na hipótese supra exposta do agente que conduz seu veículo em alta velocidade

    sabendo que pode matar alguém”.9 

    Importante destacar o posicionamento de Celso Delamanto, refutando a possibilidade de ser o

    dolo eventual o elemento subjetivo de um crime tentado:

    “como o inciso II deste art. 14 faz referência à “vontade” do agente, deve haver dolo direto por

    parte deste. É impossível, assim, a tentativa nos crimes culposos ou praticados com dolo

    eventual”. 10 

    7 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 335.8 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 501.9 LACERDA, Felipe Moraes Forjaz de. A Tentativa e o Dolo Eventual: Incompatibilidade Penal. PráticaJurídica, Brasília, Ano VII, n. 74, p. 60-61, maio 2008.10 DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 14.

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    Rogério Greco passou a abordar, nas edições mais recentes de seu Curso de Direito Penal, a

    incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual. Para a comprovação de seu raciocínio,

    diz ser essencial a demonstração de tal possibilidade nos casos concretos:

    “Imagine-se para fins de raciocínio com a tentativa no dolo eventual, o exemplo em que o

    agente, perigoso traficante de drogas, visualiza sua vítima, um dependente químico que, não

    tendo condições de arcar com sua dívida com a ‘boca de fumo’, foi jurado de morte. Nesseinstante, aponta-lhe o fuziu que trazia consigo. A vítima estava acompanhada de sua

    namorada, sendo que o traficante, ao mirar sua arma, representou como possível também

    atingir esta última, pois se encontravam abraçados, namorando. Se o agente, ao efetuar o

    disparo, vier a acertar no usuário de drogas, causando-lhe a morte, estaremos diante de um

    delito de homicídio doloso consumado, com dolo de primeiro grau. Se, em vez de acertar no

    mencionado usuário de drogas, vier a atingir sua namorada, causando-lhe a morte, também

    aqui estaremos diante de um homicídio doloso consumado, com dolo eventual. Essas

    hipóteses, na verdade, não traduzem qualquer problema. A discussão surge, contudo, quando

    levamos a efeito o seguinte raciocínio: Se existe a possibilidade de tentativa no dolo eventual,quando o agente efetua o disparo de sua arma em direção ao usuário de drogas, mesmo

    representado como possível acertar também a sua namorada, fato que lhe é indiferente, ou

    seja, aceita a produção de tal resultado, haveria concurso formal entre um homicídio

    consumado (quanto ao usuário de drogas) e outro tentado (no que diz respeito a namorada)?” 11 

    Para os doutrinadores portugueses, a questão não suscita maiores dúvidas:

    quanto à intenção, resulta em nosso entendimento a impossibilidade de configuração de

    tentativa por negligência e mesmo por dolo eventual:

    "Afigura-se-nos , pois, indispensável que se verifique a intenção directa e dolosa por parte do

    agente, em que parece ser de excluir o dolo eventual, já que o agente, apesar darepresentação intelectual do resultado como possível, ainda não se decidiu. Estar-se-á, desta

    maneira, perante uma formulação que consagra, a nosso modo de ver, um critério objectivo

    mitigado. Quer isto significar...que o critério fundamental se nos apresenta como objectivo, já

    que a tentativa tem sempre que integrar uma referência objectiva a certa lesão de bens

     jurídicos protegidos mas a que há que o próprio plano do agente integrado na sua

    intencionalidade, volitivamente assumida, que, face ao texto legal e segundo a nossa opinião,

    não pode ser limitado a mero papel de esclarecer o significado objectivo do comportamento do

    agente, antes deve ser valorado em si mesmo..."12 

    Reconhecem, todavia que

    “A jurisprudência do STJ tem, porém, seguido predominantemente a orientação de que a

    tentativa é punível mesmo quando o agente tenha actuado com dolo eventual, por considerar

    que nesta forma de dolo também há representação e vontade, embora enfraquecidas ou

    degradadas.”

    3.4 - Conceito e elementos do dolo

    Estabelece o art. 18, inciso I, do Código Penal, que o crime será “doloso, quando o agente quis

    o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

    11 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 10. ed. Niterói: Impetus, 2008. p. 262-265.12 GONÇALVES, M. Maia. Código Penal Português: anotado e comentado e legislação complementar.11. ed. Lisboa: almedina Coimbra, 1997. p. 131-132.

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    Doutrinariamente tem-se considerado o dolo como “a vontade dirigida à realização do tipo

    penal”13.

    Cumpre, entretanto, esclarecer que o conceito de dolo comumente trazido pela doutrina é

    incompleto, eis que se refere somente ao dolo direto, deixando de lado o dolo eventual, o qual,

    assim como aquele, é espécie do gênero dolo.

    Os elementos que integram o dolo, segundo os estudiosos, mas que na realidade dizem

    respeito ao dolo direto, são o cognitivo e o volitivo, sendo este a vontade de realização do tipo

    e aquele a consciência atual da realização do tipo.

    Saliente-se que essa consciência deve existir no momento em que realizado o tipo penal e

    deve, ainda, abranger todos os elementos e circunstâncias previstos na norma penal

    incriminadora.

    Da mesma forma, a vontade de realizar a conduta descrita no tipo deve ser simultânea à

    concretização deste. O elemento volitivo só existirá quando presente o cognitivo e há de

    abranger a antecipação mental do resultado típico, os meios empregados para atingi-lo e osefeitos concomitantes à utilização desses meios.

    3.5 - Espécies de dolo

    Como já abordado, o dolo se subdivide em direto, ou determinado, e indireto, ou

    indeterminado. O dolo direto ocorre quando o delinqüente age com consciência e vontade de

    produzir um resultado típico. Alguns autores o subdivide em dolo direto de primeiro grau e dolo

    direto de segundo grau. O primeiro é aquele que recai sobre o fim diretamente querido pelo

    agente, enquanto o segundo diz respeito ao resultado proveniente do meio escolhido ou da

    natureza do objetivo pretendido com a prática delituosa, que transcende ao fim diretamente

    desejado.Já o dolo indireto é aquele em que não se extrai do dolo um conteúdo definido e pode ele ser

    alternativo ou eventual. No dolo alternativo, o agente quer, dentre dois ou mais resultados,

    atingir qualquer um.

    Ressalte-se que o dolo eventual não se confunde com a culpa consciente, pois que

    relativamente a ele, o indivíduo prevê a superveniência de um possível resultado típico a partir

    de sua conduta, mas aceita o risco e age como se não importasse com as conseqüências de

    sua atitude. De igual modo, na culpa consciente o agente também prevê a possível ocorrência

    de um resultado típico, mas rejeita-a e age, geralmente por excesso de autoconfiança.

    Para Nélson Hungria, “o dolo pode ser mais ou menos determinado, mas nunca

    indeterminado”14, já que não se pode fazer um mal abstrato.

    Fala-se ainda na distinção entre dolo de dano e de perigo, sendo aquele o que diz respeito à

    vontade dirigida ou à aceitação do risco de produção de lesão efetiva ao bem jurídico. No dolo

    de perigo o agente não quer e nem assume o risco de causar dano, mas sua conduta (ou seu

    consentimento) se refere à exposição do bem tutelado a perigo de dano.

    A doutrina tradicional difere ainda dolo genérico e dolo específico. O primeiro condiz com a

    vontade de realizar o fato típico em seu núcleo e o segundo recai sobre a vontade de realizar o

    fato típico com um fim especial de agir.

    13 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal: parte geral. 18. ed. São Paulo: Atlas 2002. p. 140.14 HUNGRIA, Nelson. op. cit.. p. 111.

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    Sobre essa classificação, Damásio esclarece que

    “o dolo é um só, variando de acordo com a figura típica...o chamado dolo com intenção ulterior

    (dolo específico), que em si expressa um fim..., assim como o animus   que certos delitos

    exigem, não são propriamente dolo com intenção ulterior e sim elementos subjetivos do tipo.”15 

    Por fim, o dolo geral, que não se confunde com o dolo genérico, é aquele em que o agente,

    acreditando ter alcançado determinado resultado, pratica nova conduta e somente atravésdesta conduta é que efetivamente foi produzido o resultado inicialmente almejado. A rigor, o

    indivíduo deveria responder por um crime culposo, se houvesse previsão legal, em razão do

    resultado posteriormente concretizado em concurso material com tentativa do delito pretendido.

    3.6 - O dolo e o erro de tipo

    O erro de tipo é a falsa percepção da realidade, eis que incorre em erro o indivíduo que

    acredita estar em situação diversa da que realmente existe.

    Os elementos cognitivo e volitivo do dolo inexistem nessa hipótese, já que a vontade do agente

    não é dirigida à realização do tipo penal e sequer há consciência de que se pratica o delito.

    Nada obsta, contudo, que haja responsabilização pela prática do delito na forma culposa, sehouver previsão legal e se o erro for inescusável.

    4 - CRIME CULPOSO

    A figura do crime culposo é prevista pelo Código Penal no art. 18, inciso II, e ocorrerá, segundo

    o dispositivo, quando o agente houver dado causa a um resultado típico por imprudência,

    negligência ou imperícia.

    Via de regra, condutas tipificadas só são puníveis quando praticadas dolosamente. Entretanto,

    havendo previsão legal expressa, um indivíduo pode incorrer nas penas cominadas a

    determinado crime mesmo agindo com culpa.

    É, pois, exceção à regra geral a punição por conduta típica culposa. Nesse sentido, o parágrafoúnico do art. 18, do Código Penal, estabelece que “salvo nos casos expressos em lei, ninguém

    pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.”.

    Culpa, nos dizeres de Bitencourt, é “a inobservância do dever de cuidado, manifestada numa

    conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível”16. Geralmente, o

    agente age com um fim penalmente irrelevante, mas a falta de cautela objetiva recai sobre os

    meios por ele escolhidos.

    A culpabilidade, que se difere da culpa, diz respeito à imputabilidade, à consciência potencial

    da ilicitude e à exigibilidade de comportamento conforme ao direito, componentes estes que

    hão de estar presentes tanto nos tipos culposos quanto dolosos para que se possa falar em

    punibilidade.

    4.1 - Elementos do delito culposo

    O crime culposo se distingue do doloso, quanto à sua estrutura, principalmente por inexistir

    naquele o denominado tipo subjetivo, eis que a conduta do agente não é dirigida à realização

    de um tipo penal.

    Assim, são elementos do delito culposo: a conduta humana voluntária, a inobservância do

    cuidado objetivo devido, a produção de um resultado involuntário, o nexo de causalidade entre

    15 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit.. p. 294.16 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 347.

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    a conduta e o resultado produzido e a previsibilidade objetiva sobre as conseqüências da ação

    ou omissão do agente.

    A conduta inicial pode constituir infração penal ou não, mas o resultado dela proveniente há de

    ser lesivo a um bem jurídico protegido pela norma penal.

    Para o bom convívio do homem na sociedade é preciso que ele aja com a cautela devida para

    que não lese bens jurídicos de outrem. Portanto, “é a inobservância do cuidado objetivoexigível do agente que torna a conduta antijurídica”17.

    Inúmeras são as atividades exercidas pelo homem capazes de expor bens jurídicos ao perigo.

    O legislador, considerando o grau do risco inerente a essas atividades e o valor do bem

     jurídico, incriminou determinadas condutas para que as pessoas, intimidadas, se vissem

    obrigadas a observar o dever de cautela exigido.

    Para que se possa, no caso concreto, aferir se o agente observou ou não o dever de cuidado

    necessário, leva-se em consideração o homem médio, ou seja, deve-se indagar se um homem

    razoável e prudente, nas mesmas condições em que se encontrava o agente, agiria de forma

    diversa para evitar a lesão ao bem.O resultado, conforme exposto, há de ser constituído pela lesão efetiva ao bem jurídico.

    Inexistindo tal lesão, não se poderá falar em crime culposo, mesmo que o agente não tenha o

    dever objetivo de cautela, salvo se a conduta, por si só, constituir ilícito penal. Atente-se que se

    voluntário o resultado, não haverá crime culposo, mas doloso.

    A incriminação de uma conduta culposa pressupõe nexo de causalidade entre a inobservância

    do cuidado devido e resultado típico produzido, sendo este decorrente daquela. Caso contrário,

    haveria responsabilidade objetiva, o que é inadmissível em nosso atual ordenamento jurídico.

    Por fim, as conseqüências da conduta do agente devem ser objetivamente previsíveis, mas

    não, necessariamente, previstas. Neste caso, ainda assim poderíamos estar diante de delitoculposo, conforme veremos quando tratarmos da culpa consciente.

    4.2 - Modalidades de culpa

    Nos termos do art. 18, inciso II, do Código Penal, o crime será “culposo, quando o agente deu

    causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.

    O tipo é aberto nos crimes culposos, vez que é atribuído ao juiz um maior poder discricionário.

    É que a lei se limita a estabelecer que a conduta do agente terá que ser praticada de forma

    imprudente, negligente ou imperita e, portanto, cabe ao magistrado identificar a conduta

    contrária ao cuidado objetivo.

    A modalidade imprudência é aquela em que o indivíduo age precipitada, inconseqüente ou

    imoderadamente. É caracterizada, pois, por uma conduta comissiva arriscada ou perigosa.

    A negligência, por sua vez, se relaciona com a displicência do agente, que não adota as

    cautelas necessárias ao agir ou que simplesmente não age, quando deveria e podia agir. Em

    termos gerais, é ligada a uma conduta omissiva.

    Já a imperícia é o despreparo ou a insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício de

    arte, profissão ou ofício. Seria, portanto, a imprudência ou a negligência dentro do campo

    profissional ou técnico.

    4.3 - Espécies de culpa

    17 MIRABETE, Julio Fabrini. op. cit.. p. 146.

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    A culpa pode ser consciente ou inconsciente. Em termos conceituais, a culpa consciente é

    aquela em que o agente, prevendo o resultado típico, atua confiante da sua não

    superveniência, geralmente devido a um excesso de auto-confiança. É por isso, também

    chamada de culpa com previsão.

    De outro norte, a culpa inconsciente diz respeito àquela em que o agente sequer prevê o

    resultado típico, embora este seja previsível. É a completa ignorância sobre as conseqüênciasde sua conduta e o indivíduo só não enxerga a possibilidade de o resultado vir a ocorrer porque

    a imprudência, negligência ou imperícia o cega.

    A legislação penal pátria não distingue uma da outra, razão pela qual o tratamento a elas

    conferido seria, em tese, equânime. Contudo, a doutrina e a jurisprudência cuidaram de

    diferenciá-las conceitualmente, mas, a meu sentir, elas também hão de ser diferenciadas

    quanto ao tratamento penal. Isso porque, ao analisar as circunstâncias judiciais na fase de

    aplicação da pena, o juiz deverá adequar a pena-base à maior ou menor reprovabilidade do

    fato e, considerando que a culpa consciente em muito se aproxima do dolo eventual, teria ela

    que ser tratada com maior severidade.Ressalte-se que existem divergências sobre a questão. Alguns doutrinadores, dentre eles José

    Cirilo de Vargas, entendem que não se pode fazer qualquer distinção entre a culpa consciente

    e a inconsciente no momento de aplicação da pena-base. Defende o referido autor que “as

    duas formas de culpa se equivalem, não se podendo distingui-las aprioristicamente, para

    diverso tratamento penal”18 

    Outros sustentam que maior reprovabilidade recai sobre a culpa inconsciente. Bitencourt,

    acolhendo esta corrente, expõe:

    “Na verdade, tem-se questionado se a culpa consciente não seria, muitas vezes, indício de

    menor insensibilidade ético-social, sendo de maior atenção na execução de atividadesperigosas, na medida em que, na culpa inconsciente, o descuido é muito maior e,

    consequentemente, mais perigoso, uma vez que a exposição a risco poderá ser mais freqüente

    quando o agente nem percebe a possibilidade da ocorrência de um evento danoso. Nesse

    sentido, afirmava Köller, “mais culpado é aquele que não cuidou de olhar o caminho diante de

    si, em cotejo com aquele que teve esse cuidado, mas credulamente se persuadiu de que o

    obstáculo se afastaria a tempo.”19 

    A diferença entre a culpa consciente e o dolo eventual consiste no fato de que neste o agente,

    prevendo o resultado típico, assume o risco de produzi-lo e naquela, não assume tal risco, ou

    melhor, rejeita-o.

    Via de regra, a previsão do resultado constitui elemento do dolo e, excepcionalmente, constitui

    elemento da culpa. Por possuir um elemento específico do dolo é que, conforme salientamos, a

    culpa consciente deve fazer com que a pena do crime se distancie mais da pena mínima

    abstrata do que a culpa inconsciente. O fato de um agente ter previsto as possíveis

    conseqüências de sua conduta, tendo todas as condições de evitá-la, é muito mais reprovável

    do que a sua completa ignorância. É como se, na culpa consciente, o indivíduo optasse por ser

    imprudente, negligente ou imperito, enquanto, na culpa inconsciente, ele não tivesse essa

    opção, uma vez que a natureza se encarregou de fazê-lo imprudente, negligente ou imperito.

    18 VARGAS, José Cirilo de. Instituições de Direito Penal: parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p.285.19 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p..357-358.

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    A doutrina fala ainda em culpa própria e culpa imprópria. A própria é a comum, é a culpa

    inconsciente.

    Culpa imprópria, também denominada culpa por extensão, assimilação ou equiparação, é

    aquela em que o agente prevê e quer o resultado, incorrendo em erro de tipo inescusável nas

    descriminantes putativas ou em excesso nas causas de justificação. Se inevitável o erro, não

    haverá culpa, pois a responsabilidade penal será excluída. “Só impropriamente se pode admitirfalar de culpa em uma conduta que prevê e quer o resultado produzido, sob pena de se

    violentar os conceitos dogmáticos da teoria do delito”20.

    Na realidade, um crime cometido com culpa imprópria nada mais é do que o crime doloso em

    relação ao qual o legislador determinou a aplicação da pena do delito culposo, com base na

    inobservância do cuidado objetivo exigido para a prática do ato.

    Hoje não mais existe a chamada culpa presumida, eis que a responsabilidade objetiva foi

    extirpada da legislação penal.

    4.4 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes culposos

    A doutrina pátria, quase em sua totalidade, defende ser inadmissível a tentativa nos crimesculposos e excepcionam a regra somente em relação à culpa imprópria. Entretanto, Bitencourt

    adverte:

    “Fala-se na possibilidade da tentativa na culpa imprópria, em que o resultado é querido, mas o

    sujeito incide em erro inescusável. Na verdade ocorre um crime doloso tentado, que, por erro

    ou excesso culposo, recebe o tratamento de crime culposo.”21 

    Atente-se que, por estar relacionada a um resultado querido pelo agente, a culpa imprópria

    sequer poderia ser equiparada, em sua essência, ao dolo eventual, mas tão-somente ao dolo

    direto, já que não há um risco assumido e sim uma lesão voluntária ao bem jurídico tutelado

    pela norma. Por essa razão, ou seja, por ter a culpa imprópria a essência do dolo direto, é quese pode falar em tentativa dessa espécie crime culposo.

    Delitos culposos, como regra (ante a exceção da culpa imprópria, que, a rigor, não se trata de

    culpa), pressupõe a ocorrência de um resultado típico não querido pelo agente, que nem

    mesmo assume o risco de produzi-lo. Se, contudo, houver inobservância do dever de cautela e,

    mesmo assim, o resultado não sobrevém, não haverá crime algum. Por outro lado, não se

    poderá falar em tentativa quando o resultado tiver efetivamente ocorrido, caso em que o ilícito

    penal será consumado e não tentado.

    Por essa razão, ou seja, em decorrência do fato de que na tentativa há intenção sem resultado

    e que no delito culposo há resultado sem intenção, os dois institutos aqui analisados são

    absolutamente incompatíveis.

    Em posicionamento um tanto quanto incomum, se não único, o professor Lydio Machado

    Bandeira de Mello sustenta que “a tentativa de crime culposo não é tão rara quanto parece” 22.

    Exemplificando o seu entendimento, o autor apresenta a seguinte situação:

    “Um indivíduo, em estado de embriaguez completa e culposa pode tentar matar (ou ferir) um

    amigo, impulsionado pela embriaguez. Se matasse ou ferisse o amigo, seria réu de homicídio

    20 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 359.21 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p..501.22 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. Manual de Direito Penal. Belo Horizonte: Faculdade de Direitoda Universidade de Minas Gerais, 1955. p. 223.

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    culposo (ou de lesão corporal culposa). Logo, tentando matar ou ferir o amigo será réu de

    tentativa de homicídio culposo ou de tentativa de lesão corporal culposa.”23 

    Interessante a questão suscitada pelo ilustre doutrinador, mas não condiz com a realidade. É

    que a vontade do ébrio, no referido exemplo, é equiparada à de um indivíduo imputável pela

    nossa legislação penal, que adotou a teoria da actio libera in causa . Nada obstaria, portanto,

    que o agente pudesse responder por um crime doloso, mesmo tendo se embriagadoculposamente.

    De acordo com a teoria, o agente que pratica um fato típico, após se colocar voluntária ou

    culposamente em estado de inimputabilidade, responde criminalmente. A liberdade do

    indivíduo é originária, pois diz respeito ao momento em que ele se embriaga, mas não abrange

    o momento de produção do resultado típico.

    Nos termos do art. 28, § 1º, do Código Penal, somente a embriaguez completa proveniente de

    caso fortuito ou força maior isenta de pena o agente.

    Em razão de o Direito Penal contemporâneo repudiar a punibilidade objetiva, o art. 28, inciso II,

    do Código Penal, deve ser interpretado dentro do âmbito da teoria da actio libera in causa .5 - PRETERDOLO

    Crimes preterdolosos são aqueles praticados por agente que age dolosamente, mas que, por

    sua conduta, provoca um resultado mais grave culposo.

    Infere-se a partir do conceito de preterdolo que o aludido resultado transcende à vontade do

    delinqüente, que sequer assume o risco de produzi-lo. Praeter   tem sua origem no latim, que

    significa “além de” e, sendo assim, preterdolo se refere ao resultado que vai além do dolo, ou

    que vai além da vontade do agente, ou até mesmo que não derivou do dolo.

    Ressalte-se, contudo, que deve estar presente ao menos a previsibilidade, e não previsão

    efetiva, da ocorrência do resultado. Apesar dos delitos preterdolosos normalmente preveremum resultado como se fosse objetivo, dando a entender que basta a sua concretização para

    que se possa considerar consumado o crime qualificado pelo resultado, temos que adequar

    esse tipo penal aos preceitos do art. 19, do Código Penal, sob pena de haver a

    responsabilização objetiva do agente.

    Sob essa perspectiva, se alguém desfere um soco na face de outrem para lesioná-lo, sem

    saber que este sofre da doença osteogênese imperfeita (que causa fragilidade intensa nos

    ossos), não poderia responder pelo crime de lesão corporal seguida de morte se a vítima vier a

    falecer em função da lesão provocada pelo soco. Isso porque sequer lhe era previsível o

    resultado morte em decorrência desse tipo de agressão.

    Acerca do elemento psicológico nos delitos preterdolosos, Aníbal Bruno faz interessante

    ponderação:

    “Ao contrário do dolo e da culpa, não há no agente uma situação psicológica que possamos

    chamar preterintenção. A preterintencionalidade está no fato, não no agente, e nisso distingue-

    se das duas formas tradicionais da culpabilidade, que, qualquer que seja a concepção que dela

    tenhamos, requer sempre um momento psicológico no que atua, um querer ou uma incúria

    contrária ao dever.

    (...) Não há, portanto, preterintenção como forma de culpabilidade, mas preterintencionalidade

    como ocorrência de fato conducente a uma forma anômala de responsabilidade penal.”24 

    23 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. op. cit.. p. 223.

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    Embora não posso dissentir de Anibal Bruno, no sentido de que o preterdolo está mais

    relacionado ao fato (conduta dolosa e resultado culposo) do que com a intenção do agente

    propriamente dita, desta ele não se dissocia, razão pela qual ele não deixa de integrar o

    elemento psicológico.

    Por outro lado, Basileu Garcia sustenta que

    “o crime preterintencional é doloso, porquanto o agente visa certo evento proibido penalmente,embora diverso do que é causado. (...) Não pode ser culposo o resultado proveniente de ação

    voluntariamente criminosa. A culpa tem como antecedente objetivo um comportamento ilícito.”25 

    Na contemporaneidade, não há qualquer questionamento em relação ao resultado culposo.

    Hoje, não se discute que o preterdolo é dolo na conduta e culpa no resultado subseqüente

    àquela.

    Bitencourt diferencia delito preterdoloso e delito qualificado pelo resultado. Leciona o estudioso

    que

    “no crime qualificado pelo resultado, ao contrário do preterdoloso, o resultado ulterior, mais

    grave, derivado involuntariamente da conduta criminosa, lesa um bem jurídico que, por suanatureza não contém o bem jurídico precedentemente lesado.”26 

    Outros doutrinadores, dentre eles Damásio de Jesus e Celso Delmanto, dizem que o crime

    qualificado pelo resultado pode ser composto por dolo tanto na conduta como no resultado,

    enquanto o preterdoloso é constituído por dolo no antecedente e culpa no conseqüente.

    Para mim, crime qualificado pelo resultado é gênero do qual é espécie o crime preterdoloso,

    pois que, naquele, o resultado qualificador pode ser doloso ou culposo, enquanto neste há de

    ser necessariamente culposo.

    Esse é também o posicionamento de Luiz Flávio Gomes:

    “Os crimes qualificados pelo resultado (CP, art. 129, § 1º, II - v.g.-, 129, § 3º, 135, parágrafoúnico etc.), em regra são punidos a título de preterdolo (dolo no antecedente e culpa no

    resultado subseqüente). Mas é possível que o crime qualificado pelo resultado subseqüente

    seja inteiramente doloso (e, portanto, muito mais reprovável).

    (...) se da lesão corporal (dolosa) resulta deformidade permanente da vítima, também

    pretendida pelo agente, não há que se falar em crime preterdoloso. Se o agente, desde o

    princípio, tinha deliberada intenção não só de produzir a lesão, senão também a própria

    deformidade, temos um crime qualificado pelo resultado integralmente doloso (dolo no

    antecedente e dolo no resultado subseqüente). O crime preterdoloso, em síntese (dolo +

    culpa), não se confunde com o crime integralmente doloso (dolo + dolo).”27 

    Entendo, por duas razões, que o legislador não deveria ter previsto hipóteses em que o

    resultado mais gravoso pode derivar tanto do dolo quanto da culpa. Primeiro, porque o instituto

     jurídico do concurso de crimes é suficiente para penalizar o agente que produz um resultado

    mais grave doloso e, segundo, porque o legislador acaba deixando uma ampla margem de

    discricionariedade ao juiz quando estabelece uma pena mínima muito distante da máxima.

    24 BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Tomo 2. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1956. p. 460.25 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Tomo I. 3. ed. São Paulo: Max Limonade, 1956. p.270.26 BITERNCOURT, Cezar Roberto. op. cit.27 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 196.

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    A pena abstrata de um tipo penal, quando excessivamente abstrata, atenta contra toda a lógica

    do direito penal, que deve restringir ao máximo o poder discricionário do juiz. Caso contrário,

    não haveria segurança jurídica ao delinqüente, que ficaria à mercê da boa vontade do juiz.

    Considerando que o legislador previu penas muito altas para certos crimes qualificados pelo

    resultado, não só a doutrina, mas também a jurisprudência têm entendido que tais penas

    abrangeriam resultados mais graves culposos e dolosos. É o caso, por exemplo, do latrocínio.Nos termos do art. 157, § 3º, do Código Penal, se da violência decorrente do crime de roubo

    resulta morte, “a reclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, sem prejuízo da multa”.

    Seria ilógico imputar a pena de trinta anos a um agente que praticasse o crime de roubo, mas

    que, por falta de cautela, matasse a vítima.

    O latrocínio não é um delito autônomo, mas se submete ao caput  do art. 157, do Código Penal.

    Dessa forma, a violência descrita no § 3º do dispositivo em questão é aquela voltada à

    subtração de coisa alheia móvel, ou seja, o agente não pratica a violência para matar, mas

    para roubar. Se agisse com dolo direto ou ao menos assumisse o risco de matar a vítima, seria

    mais justo que o delinqüente respondesse por roubo em concurso formal impróprio comhomicídio doloso, aplicando-se a regra do cúmulo material. Note-se que, nesse caso, serão

    ofendidos dois bens jurídicos tutelados pela norma penal mediante desígnios autônomos do

    agente. Não obstante, ele responderá pelo crime de roubo qualificado.

    O legislador cominou penas aos delitos qualificados pelo resultado sem critério algum. Extrai-

    se, a partir da análise da quantificação da pena imputada a esta espécie de crime, que ora a lei

    limita o resultado mais grave à forma culposa, ora permite que tal resultado possa ser doloso

    ou culposo. Dessa forma, cada tipo penal deve ser analisado separadamente para que possa

    concluir se se trata de delito necessariamente preterdoloso ou simplesmente delito qualificado

    pelo resultado.No crime de maus-tratos, e. g., caso ocorresse o resultado morte, a pena seria de quatro a

    doze anos de reclusão. Se a vontade do agente tivesse sido dirigida à prática de homicídio, a

    pena seria, no mínimo, de seis a vinte anos. Portanto, a pena cominada ao crime de maus-

    tratos com morte da vítima se refere ao resultado mais grave culposo, necessariamente. Nesse

    sentido, o delito previsto pelo art. 136, § 2º, do Código Penal será sempre preterdoloso.

    Já ao tipificar a lesão corporal seguida de morte, o legislador optou por prever expressamente

    que a pena ali cominada diz respeito ao resultado morte culposo.

    Dispõe o art. 129, § 3º, do Código Penal:

    “Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem

    assumiu o risco de produzi-lo:

    Pena --- reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.”

    A interpretação deste dispositivo é a mesma do art. 136, § 2º: não faria sentido se a pena do

    homicídio simples fosse mais severa do que a pena imputada a um agente que, após uma

    conduta inicial dirigida à lesão da vítima, matasse-a com consciência e vontade.

    Por sua vez, o crime de extorsão mediante seqüestro abrange tanto o dolo quanto a culpa em

    relação ao resultado morte, que porventura ocorrer. Isso porque o tipo penal descrito no art.

    159, § 3º, do Código Penal, prevê uma pena abstrata completamente exacerbada. Mesmo se

    fosse aplicada a regra do cúmulo material entre as penas do caput  do art. 159 e do caput do

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

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    art. 121, a pena mínima seria de quatorze anos e, portanto, muito inferior à do § 3º, do art. 159.

    Maior ainda seria a discrepância entre as penas se considerado o art. 159, caput , c/c art. 121, §

    3º. Por esta razão, não deveria o art. 159, § 3º sequer abranger o resultado mais grave

    culposo.

    Conforme salientado, a realização de um mesmo tipo penal pode, de acordo com o elemento

    subjetivo em relação ao resultado mais gravoso, descrever tanto um crime preterdoloso comoum crime complexo distinto daquele, o qual seria em termos genéricos um crime qualificado

    pelo resultado.

    Luiz Flávio Gomes diferencia ainda do crime preterdoloso a figura delituosa em que há culpa no

    fato antecedente e dolo no fato subseqüente, exemplificando essa hipótese a partir de uma

    “lesão corporal culposa no trânsito (CTB, art. 303) seguida de omissão de socorro dolosa

    (neste caso a omissão de socorro agrava o crime anterior)”28. Esclarece o autor que

    “Tampouco parece acertado utilizar o nome preterculposo (porque o prefixo preter, do latim

    praeter, que significa ir além, só parece compatível com a conduta precedente dolosa).”29 

    Por fim, também não há que se cogitar em crime preterdoloso quando a hipótese for de culpano antecedente e culpa no resultado mais gravoso, como ocorre no incêndio culposo em razão

    do qual morre alguém.

    5.1 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos

    Para que um indivíduo possa responder por um crime tentado, é preciso que sua consciência e

    vontade sejam dirigidas à realização do tipo penal em sua integralidade, de modo a abranger

    todos os seus elementos.

    Ocorrendo uma qualificadora especial, passa ela a integrar a norma e, portanto, a consciência

    e vontade do agente têm que recair sobre ela também.

    No caso dos crimes preterdolosos, não há o elemento volitivo em relação ao resultado maisgrave. Via de conseqüência, em hipótese alguma poderá haver tentativa dessa espécie

    delituosa.

    Se o resultado é culposo e, como visto, a culpa não se coaduna com a tentativa, por

    conseguinte, não é possível que haja tentativa de delito preterdoloso, que é constituído pelos

    elementos subjetivos dolo e culpa.

    Em tese, a questão não suscita maiores problemas, vez que a maioria dos doutrinadores não

    discordam da inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos. Entretanto, na prática, a

     jurisprudência vem entendendo em sentido diverso, o que gera conseqüências irreparáveis

    principalmente ao condenado.

    Nesse sentido expõem-se os seguintes julgados:

    “TENTATIVA DE LATROCÍNIO. ALEGAÇÃO DE DISPARO ACIDENTAL DA ARMA

    EMPUNHADA POR UM DOS CO-AUTORES. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 19, DO CÓDIGO

    PENAL. RECURSO IMPROVIDO.

    O RESULTADO QUE AGRAVA ESPECIALMENTE A PENA DO CRIME DE ROUBO - ARTIGO

    157, §3º, COMBINADO COM O ARTIGO 14, II, DO CP, DEVE SER IMPUTADO AO RÉU

    AINDA QUE O TENHA PRODUZIDO CULPOSAMENTE.

    28 GOMES, Luiz Flávio. op. cit.. p. 197.29 GOMES, Luiz Flávio. op. cit.. p. 197.

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

    18/26

    NESTE SENTIDO, DE NENHUMA VALIA A ALEGAÇÃO DE DISPARO ACIDENTAL DA ARMA

    EMPUNHADA PELO ASSALTANTE, UMA VEZ QUE O MANUSEIO DO REVÓLVER SEM AS

    CAUTELAS EXIGÍVEIS, EXPÕE, NO MÍNIMO, A MANIFESTAÇÃO DA IMPRUDÊNCIA DO

    RÉU, MODALIDADE DE CULPA QUE LEGITIMA A IMPUTAÇÃO DO CRIME AGRAVADO

    PELO RESULTADO.”30 

    “PENAL - TENTATIVA DE LATROCÍNIO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA ROUBOQUALIFICADO PELO RESULTADO LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE -

    INEXISTÊNCIA DA VONTADE DIRIGIDA CONSCIENTEMENTE PARA O RESULTADO

    MORTE - DISPARO ACIDENTAL DA ARMA DE FOGO - PROVIMENTO. O LEGISLADOR

    PREVIU O AUMENTO DA PENA DO ROUBO, SE DA VIOLÊNCIA UTILIZADA NA AÇÃO

    RESULTASSE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE OU MORTE. ESTES

    RESULTADOS FORAM PREVISTOS OBJETIVAMENTE E SÃO PUNIDOS, NO MÍNIMO, A

    TÍTULO DE CULPA. ASSIM, VERIFICADOS OBJETIVAMENTE A OCORRÊNCIA DAQUELES

    RESULTADOS, A PENA DEVERÁ, OBRIGATORIAMENTE, SER MAJORADA PARA OS

    LIMITES PREVISTOS. PARA QUE O RÉU SEJA CONDENADO POR TENTATIVA DELATROCÍNIO, MISTER ESTEJA PRESENTE ANIMUS NECANDI. OCORRENDO DISPARO

    ACIDENTAL DA ARMA E ADVINDO PARA A VÍTIMA LESÕES DE NATUREZA GRAVE, DEVE

    SER ELE CONDENADO NAS PENAS DO ART. 157, § 3º, 1ª PARTE DO CÓDIGO PENAL.

    RECURSO PROVIDO.”31 

    Saliente-se que, em ambas as decisões, trata-se de crime cujo resultado foi culposo, apesar de

    o crime de latrocínio admitir que esse resultado fosse doloso.

    A questão foi até sumulada pelo Supremo Tribunal Federal: “Súmula 610 – Há crime de

    latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de

    bens da vítima”.Tal súmula é absurda e desprovida de qualquer sentido que encontre respaldo no ordenamento

     jurídico brasileiro. Se o tipo base do delito qualificado pelo resultado não se consumou, mas

    ocorreu a morte da vítima, haveria um crime autônomo tentado e outro consumado, não

    podendo a tentativa englobar os dois tipos penais em um só delito – o qualificado pelo

    resultado.

    Atento ao enunciado da Súmula 610, do STF O Tribunal de Justiça de Minas Gerais proferiu a

    decisão abaixo transcrita:

    “APELAÇÃO. TENTATIVA DE LATROCÍNIO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA TENTATIVA DE

    ROUBO MAJORADO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DO ANIMUS NECANDI. O latrocínio na

    modalidade preterdolosa não se admite a tentativa, somente sendo responsabilizado o agente

    por tal delito quando da conduta culposa resultar morte da vítima. Em não ocorrendo no

    famigerado evento, ainda que de forma culposa, a morte da vítima, e tampouco verificação do

    animus necandi, não há se falar na hipótese em tentativa de latrocínio, mas sim, tentativa de

    30  TJDF, Apelação Criminal 20030110562320APR DF, 1ª Turma Criminal, Desembargador RelatorEDSON ALFREDO SMANIOTTO. Julgado em : 03/06/2004. Publicado em: 25/08/2004.31 TJDF, Apelação Criminal 19990410038126APR DF, 1ª Turma Criminal, Desembargador RelatorNATANAEL CAETANO. Julgado em: 30/08/2000. Publicado em: 20/09/2000.

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

    19/26

    roubo duplamente majorado, em face da presença das majorantes do emprego de arma e

    concurso de pessoas.”32 

    Mais absurdo ainda é o entendimento de alguns aplicadores do direito no sentido invertido da

    referida súmula, ou seja, reconhecendo o latrocínio quando a subtração de bens da vítima se

    realizar, ainda que não se consume o homicídio:

    “APELAÇÃO - PENAL - CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - LATROCÍNIO - TENTATIVA. Nocrime de roubo seguido de morte - qualificado pelo resultado - o agente responde pelo

    resultado mais gravoso mesmo se este tenha ocorrido mediante culpa. Havendo subtração

    consumada e morte tentada, o crime deverá ser de latrocínio tentado.”33 

    Decisões como essa atentam frontalmente contra princípios constitucionais e penais, eis que

    se respaldam em uma verdadeira responsabilização penal objetiva. Não poderia o delinqüente

    responder por latrocínio, nesses casos, por uma simples razão: Para que haja latrocínio é

    necessária a morte da vítima, morte esta consumada e não meramente tentada. O legislador foi

    claro ao estabelecer, no art. 157,§ 3º, do Código Penal, a exigência do resultado morte

    causada pela violência intrínseca ao crime de roubo.Inobstante ser mais freqüente a aplicação concreta, pelos magistrados, da tentativa de crimes

    preterdolosos quando se trata de latrocínio, não raros são os casos em se comete o mesmo

    equívoco em relação aos delitos previstos pelo art. 223, do Código Penal (formas qualificadas

    do estupro ou atentado violento ao pudor).

    A título exemplificativo, temos o seguinte julgado:

    “Tentativa de estupro qualificado (CP, art 213, c/c 14, II, e 226, III). Configurado o ilícito a que

    responde o réu, sob a forma tentada, não há porque desclassificá-lo, predominante o crime-fim,

    à míngua de desistência voluntária. Apelação conhecida e parcialmente provida, para o fim de

    atenuar-se a pena, por confissão espontânea.”34 O Tribunal de Justiça de Minas Gerais teve a oportunidade de julgar um outro caso que

    elucidaria exatamente o problema aqui estudado, se não fosse a saída encontrada pelo próprio

    tribunal para viabilizar uma punição mais severa ao acusado. Nesse caso, uma vítima foi

    encontrada morta e semi-nua, com as calças arriadas até o joelho e com os seios expostos,

    sendo que não foi submetida à cópula vagínica. Devido à dificuldade, senão impossibilidade,

    de ser aferida a intenção do delinqüente no momento da prática criminosa, o tribunal julgou o

    acusado como incurso nas sanções cominadas ao delito previsto no art. 214 c/c 223, parágrafo

    único, ambos do Código Penal:

    “(...) Diante disso, não há dúvidas de que pretendia o apelante manter com a ofendida atos

    libidinosos diversos da conjunção carnal, pois, em momento algum, sequer tentou praticar a

    cópula vagínica. Configurado, pois, o crime do art. 214 do Código Penal, qualificado pelo

    resultado preterdoloso morte. (...)”35 

    32 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0439.04.036711-2/001(1), Desembargador Relator VIEIRA DEBRITO. Julgado em: 03/10/2006. Publicado em 10/11/2006.33 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0079.06.287234-0/001(1), Desembargadora Relatora MARIACELESTE CUNHA. Julgado em: 08/01/2005. Publicado em: 25/01/2005.34 TJDF, Apelação Criminal APR1425994 DF, 2ª Turma Criminal, Desembargador Relator ROMEUJOBIM. Publicado em: 06/10/1994. Publicado em: 17/05/1995.35 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.00.300125-2/000(1) , Desembargador Relator SÉRGIORESENDE. Julgado em: 13/02/2003. Publicado em: 18/03/2003.

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

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    Atente-se que o argumento utilizado pelo eminente relator para justificar o delito de atentado

    violento ao pudor consumado se fundou unicamente no fato de não ter o acusado tentado

    praticar a cópula vagínica. Entretanto, consta da própria decisão que o réu matou a vítima

    quando tentava vencer sua resistência (“diante da resistência física apresentada pela vítima,

    passou a espancá-la, chegando a asfixiá-la até a morte”). Data vênia , tal argumento não é

    suficiente, pois nada impediria que a intenção do acusado fosse de praticar o estupro apósvencida essa resistência.

    Se, em observância ao princípio do in dúbio pro reo , dada a dificuldade de se aferir, com

    segurança, o que se passava na cabeça do agente, o tribunal acolhesse a tese de ter havido

    tentativa de estupro ao invés de atentado violento ao pudor consumado, as conseqüências do

    acórdão seriam completamente diversas. A rigor, e com respaldo nos estudos apresentados

    pelo presente trabalho, o delinqüente responderia pelo crime de estupro tentado c/c homicídio

    culposo consumado, já que a violência é elemento daquele delito e foi o seu emprego, em

    excesso culposo, que ocasionou a morte da vítima. Note-se que, se assim fosse, a pena não

    passaria de 6 anos e 4 meses (art. 213 c/c art. 14 e art. 121, § 3º, todos do Código Penal).Reconheço, todavia, que a sanção seria muito branda para alguém que tentou estuprar outrem

    e acabou por cometer homicídio. Entretanto, se para que haja a justiça do caso concreto seja

    preciso extrapolar os limites legais, prendendo-se tão-somente a uma avaliação subjetiva do

     juiz, então essa justiça não pode se efetivar, principalmente quando se trata de matéria penal,

    pois existem valores maiores a serem preservados.

    Havendo uma lacuna no ordenamento jurídico acerca da previsão e punição desse tipo de

    situação, não pode o delinqüente sair prejudicado, sob pena de serem ofendidos princípios

    como o da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana. Se o legislador resolveu criar

    a figura do crime qualificado pelo resultado, poderia ter criado, por exemplo, um tipo própriopara aqueles crimes em que somente o resultado mais gravoso se consume, e não o tipo base.

    Insta salientar que, o eminente Desembargador Luiz Carlos Biasutti, no julgado supra-referido,

    voto vencido, acolheu o entendimento segundo o qual não se poderia afirmar ter consumado o

    atentado violento ao pudor. Em seu voto, manifestou:

    “(...) - Quanto ao pleito de reconhecimento da tentativa de estupro qualificada pelo resultado

    morte, ouso discordar do entendimento do i. Relator, segundo o qual o apelante pretendia

    manter com a vítima tão-só atos libidinosos diversos da conjunção carnal.

    Segundo ressai da confissão judicial do réu, afirmou ele que ‘desde o princípio pretendia se

    relacionar sexualmente com a vítima’ (fl. 71), ou seja, sua intenção sempre foi a de manter

    relações sexuais com a vítima, mas, diante da resistência dela, ‘acabou lhe tapando a boca e

    lhe desferindo vários socos’ (cf. fl. 71), donde se vê como ocorreram as lesões, bem como a

    morte por asfixia.

    Ora, diante de tão contundente confissão, não há que se falar em atentado violento ao pudor.

    O acusado deixa bem claro que sua intenção era a conjunção carnal - e não a prática de atos

    libidinosos diversos desta -, a qual só não se consumou por circunstâncias alheias à sua

    vontade, pois, procurando minar a resistência da vítima, acabou por asfixiá-la, causando a sua

    morte.

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

    21/26

    Assim, tendo em vista a intenção do agente, imperiosa a desclassificação do delito para o do

    art. 213, CP, em sua forma tentada (haja vista que o Relatório de Necropsia afirma não haver

    evidências de conjunção carnal), qualificado, ainda, pelo resultado morte. (...)”36 

    Apesar de reconhecer que o crime praticado foi o de tentativa de estupro, o ilustre

    desembargador conclui de forma equivocada, amparado nas lições de Júlio Fabrini Mirabete:

    “(...) Contudo, a despeito do que pleiteia a defesa - a redução máxima da pena pela tentativa -,razão não lhe assiste.

    Segundo leciona Mirabete, ‘referindo-se a lei a lesão grave ou morte decorrente da violência ou

    do fato e não do crime, cabe a aplicação da pena prevista no art. 223, sem diminuição, ainda

    que não se consume o crime sexual’. E completa: ‘Não se pode aplicar a regra do art. 14,

    parágrafo único, quando se trata de forma qualificada em que o fato ou a violência originaram

    um resultado mais grave tanto na consumação quanto na tentativa do crime antecedente, tal

    como ocorre no latrocínio (art. 157 § 3º do CP)’.

    Assim, entendo cabível a desclassificação pretendida pela defesa, mas não a redução da pena

    pela tentativa.(...) Feitas estas considerações, e considerando que as circunstâncias judiciais do art. 59, CP,

     já foram devidamente analisadas pelo MM. Juiz, sendo totalmente desfavoráveis ao réu,

    entendo deva ser fixada sua pena-base para o delito de tentativa de estupro qualificado pelo

    resultado morte em 13 (treze) anos de reclusão, nos termos do art. 223, parágrafo único, do

    CP, a qual aumenta-se em 01 (um) ano em razão da reincidência (art. 61, I, CP), e diminui-se

    no mesmo quantum em razão da atenuante da confissão espontânea (Art. 65, III, d, CP).

    Atentando-se às considerações doutrinárias feitas acima, deixa-se de proceder à diminuição

    em virtude da tentativa, restando concretizada, portanto, em 13 (treze) anos de reclusão,

    mantido o regime de cumprimento de pena integralmente fechado, por tratar-se de delitoelencado dentre os hediondos, a teor do art. 1º, inciso V, c/c art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.

    (...)”37 

    É óbvio que a morte prevista no art. 223, do Código Penal, decorre da violência, mas não da

    violência por si só e sim daquela vinculada ao crime de roubo, até mesmo porque existe

    tipificação própria para a morte causada por uma agressão desatrelada de qualquer outro tipo

    penal. Nesse caso, estar-se-ia diante do crime de homicídio.

    Assim, adotando esse posicionamento, pouco importaria se o tipo base - estupro - houvesse

    consumado ou não. Ignorar-se-ia, dessa forma, que a conduta do indivíduo que estupra e mata

    é muito mais reprovável do que a conduta do indivíduo que não chega a estuprar, mas mata.

    Estaríamos, mais uma vez, diante da repudiada responsabilidade penal objetiva.

    Comprovando o quanto as decisões jurisprudenciais são instáveis e sem o fundamento devido

    para solucionar questões como a presente, vale trazer à baila trechos do voto do

    desembargador vogal, ainda sobre o caso supra-referido:

    “(...) Com efeito, o réu em seu interrogatório deixa entrever que somente friccionou seu corpo

    ao da vítima, após desnudá- la, não chegando a manter conjunção carnal, como lhe era

    possível, vencida que estava a resistência da vítima, pela violência empregada, pelo que o

    36 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.00.300125-2/000(1) , em voto proferido pelo DesembargadorLUIZ CARLOS BIAZUTTI. Julgado em: 13/02/2003. Publicado em: 18/03/2003.37 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.00.300125-2/000(1) , em voto proferido pelo DesembargadorLUIZ CARLOS BIAZUTTI. Julgado em: 13/02/2003. Publicado em: 18/03/2003.

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    crime aperfeiçoado foi o de atentado violento ao pudor e não o estupro, "data venia" dos que

    pensam ao contrário.

    A sentença e o voto do Relator dão à espécie o enquadramento mais correto, tendo em vista

    que, pela prova contida nos autos, ainda que tenha o réu alimentado o desejo de manter

    conjunção carnal com a vítima, a desistência teria sido materializada no momento da

    resistência, passando a partir daí, a se contentar com os atos libidinosos diversos da conjunçãocarnal.

    (...) Do exposto, acompanho o i. Relator e nego provimento ao recurso.”38 

    Data maxima vênia , o eminente Desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro se equivoca

    totalmente na conclusão de seu voto. Não restam dúvidas que é da essência do crime de

    estupro a prática de certos atos libidinosos de menor gravidade.

    Nesse sentido, é a precisa lição de Cezar Roberto Bitencourt:

    “Há absorção do crime de atentado violento ao pudor pelo de estupro se os atos de libidinagem

    praticados na vítima resultarem em manchas hematosas no seio, na face ou no pescoço, pois

    são abrangidos pelo conceito geral de praeludia coiti , ou seja, fazem parte da ação física dopróprio crime de estupro; por isso, esses atos libidinosos não configuram crime autônomo,

    distinto do de estupro.”39 

    Se assim não fosse, seria praticamente impossível haver a figura da tentativa de estupro, pois

    na grande maioria dos casos já se poderia considerar o atentado violento ao pudor consumado.

    Consoante o exposto, conclui-se que a jurisprudência relativiza em diversos casos a

    inadmissibilidade da tentativa de crimes preterdolosos. Até mesmo a doutrina, por vezes,

    procura excepcionar erroneamente a regra de que a tentativa e o preterdolo são incompatíveis

    entre si.

    Mirabete, e. g., diz que “é possível, igualmente, a tentativa de crime preterintencional quanto ànão-consumação do resultado previsto no tipo básico”40. Entretanto, como salientado, em razão

    de que a qualificadora do resultado mais gravoso passa a integrar o tipo penal, deve este ser

    considerado como um todo. Assim, se parte do tipo é incompatível com a tentativa, todo o

    restante fica prejudicado, mesmo que, separadamente, admita a forma tentada.

    Por essa mesma razão não coadunamos com o posicionamento de Luiz Flávio Gomes:

    “discute-se se o crime preterdoloso (dolo no antecedente e culpa no resultado subsequente)

    admite ou não a tentativa. A melhor solução nos parece a seguinte: na sua parte dolosa é

    perfeitamente possível haver tentativa. A parte culposa não admite a forma tentada, mas

    diferente é a parte dolosa. Exemplo: tentativa de aborto qualificado pelo resultado morte da

    vítima (leia-se: em razão da conduta abortiva o feto não morre, mas a gestante sim). Solução

    penal: tentativa de aborto qualificado, diminuída de um a dois terços (nos termo do art. 14 e

    seu parágrafo do CP).”41 

    Foi com base nesse exemplo de aborto tentado que o Núcleo de Computação Eletrônica da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro elaborou uma questão da prova de Delegado da

    38 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.00.300125-2/000(1) , em voto proferido pelo DesembargadorREYNALDO XIMENES CARNEIRO. Julgado em: 13/02/2003. Publicado em: 18/03/2003.39 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. v. 2. 2. ed. São Paulo:Saraiva, 2006. p. 6.40 MIRABETE, Julio Fabrini. op. cit.. p. 160.41 GOMES, Luiz Flávio. op. cit.. p. 197.

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    Polícia Civil do Distrito Federal, em 2005, na qual considerou como corretas as respostas

    fundamentadas na tentativa de crime preterdoloso. Dizia a questão:

    “Questão 05 - Após namorar Beltrana por mais de um ano, Fulano tomou conhecimento de que

    ela estava grávida e sugeriu que praticasse um aborto para que a gravidez não fosse

    descoberta por seus pais (de Fulano), eis que havia certa implicância pelo fato de que, embora

    ele já tivesse completado 19 anos e ela contasse apenas 13 anos de idade, era consideradauma jovem muito namoradeira, pois se relacionara com vários parceiros no mesmo período.

    Acertando o aborto, dirigiram-se ao consultório de um médico que, ciente de todas as

    circunstâncias, dispôs-se a realizar a manobra. Entretanto, ao aplicar a anestesia, Beltrana

    reagiu ao medicamento, sofrendo parada cardíaca e entrando em estado de coma. A gestação

    prosseguiu até o nascimento do bebê, tendo Beltrana falecido poucos dias após. Analise

    penalmente, de forma fundamentada, a conduta de Fulano.”

    Ainda no tocante ao exemplo aborto tentado qualificado pela morte ou lesão grave da gestante,

    Fernando Capez assevera ser a única exceção à regra da inadmissibilidade da tentativa em

    crimes preterdolosos e conclui que:“Neste caso, seria, em tese, possível admitir uma tentativa de crime preterdoloso, pois o aborto

    ficou na esfera tentada, tendo ocorrido o resultado agravador culposo. Entendemos, no entanto

    que, mesmo nesse caso, o crime seria consumado, ainda que não tenha havido supressão da

    vida intra-uterina, nos mesmos moldes que ocorre no latrocínio, quando o roubo é tentado, mas

    a morte consumada.”42 

    Discordamos também do entendimento de Fernando Galvão, para quem “a tentativa somente

    será possível em relação ao resultado antecedente (caracterizador de crime específico), que

    pode não ocorrer apesar do dolo”.43 

    Dessa forma, falar-se em tentativa de crime preterdoloso em razão da não consumação doresultado menos gravoso querido pelo agente, implicaria sua responsabilização por tentativa de

    crime culposo consumado, no tocante ao resultado mais gravoso, o que é completamente

    ilógico. É que, insisto, a tentativa tem necessariamente que abranger todo o tipo penal,

    inclusive em relação à conseqüência mais drástica culposa, essencial à formação do crime

    preterintencional.

    Bastante elucidativo à compreensão da questão aqui abordada é o conceito de tentativa do

    mestre Jair Leonardo Lopes, sobre o qual já fizemos menção: “A tentativa consiste no início de

    execução de figura típica, com a vontade de realizá-la inteiramente”44.

    Por essa mesma razão, sequer se poderia falar em tentativa de crimes qualificados pelo

    resultado quando há dolo na conduta e dolo no resultado, pois a forma tentada não englobaria

    todo o tipo.

    Se ocorre um delito qualificado pelo resultado, é porque esse resultado se materializou, ou

    seja, se consumou. Caso tal resultado fosse apenas almejado, se limitando à esfera da

    tentativa, não se poderia falar naquela espécie de delito qualificado. Por isso também não há

    que se cogitar em tentativa de crime qualificado pelo resultado quando houver dolo na conduta

    e dolo no resultado mais grave pretendido, sendo que nenhuma das conseqüências queridas

    pelo agente se concretizou.

    42 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 205.43 ROCHA, Fernando A. N. Galvão, Direito Penal: parte geral, Niterói, Impetus, 2004.44 LOPES, Jair Leonardo. op. cit.. p. 164.

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    Quando, no crime complexo qualificado pelo resultado, somente o ilícito penal querido pelo

    agente não se consumar, mais correto seria, portanto, punir a conduta contrária ao direito como

    tentativa do tipo básico em concurso de crimes com o tipo autônomo, doloso ou culposo, que

    descreva exclusivamente o resultado consumado. Caso não haja um tipo específico para

    punição do resultado culposo, deve ser punida somente a tentativa do delito pretendido pelo

    delinqüente, já que, se assim não fosse, haveria a responsabilização penal objetiva.6 - CONCLUSÃO

    Em princípio, não se discute que a tentativa e o preterdolo são institutos incompatíveis entre si,

    sendo que sempre que um estiver presente, o outro não poderá estar.

    Se assim for, forçoso concluir que, quando um crime não se consumar por circunstâncias

    alheias à vontade do agente, é porque esse crime não é preterdoloso, ainda que haja resultado

    culposo mais grave não pretendido pelo delinqüente.

    A solução que se propõe a esse tipo de situação é a de separar o crime preterdoloso em dois

    tipos penais, os quais, inclusive, lhe deram origem. A partir daí, aplicando-se as regras do

    concurso de crimes, torna-se viável punir o agente tanto pela tentativa do delito por ele querido,quanto pelo resultado mais grave que ele causou de forma culposa, se houver tipificação dessa

    conduta.

    O problema surge quando os aplicadores do direito, diante do caso concreto, resolvem admitir

    a hipótese de tentativa de crime preterdoloso. Isso gera sérias conseqüências no momento da

    aplicação da pena à qual será submetido o condenado, vez que, se fossem considerados dois

    crimes distintos, sendo um tentado e outro culposo, a pena seria certamente muito mais branda

    do que aquela prevista para o crime preterdoloso.

    Via de conseqüência, temos decisões sem respaldo algum no ordenamento jurídico e,

    especificamente, transgressoras de princípios basilares como o da segurança jurídica e dadignidade da pessoa humana. Até mesmo o princípio da individualização da pena estaria

    ofendido, pois não se pode falar em individualização quando um delinqüente, que por sua

    conduta consuma o crime pretendido e causa um resultado mais grave culposo, recebe o

    mesmo tratamento penal que outro, sendo que este, apesar de não conseguir realizar o delito

    almejado, causa um resultado mais grave culposamente.

    A violação desses princípios é tão grave que agride, em última instância, o próprio Estado

    Democrático de Direito.

    O direito à liberdade, assegurado pela Constituição Federal a todo brasileiro ou estrangeiro em

    seu art. 5º, inciso XV, é um direito fundamental que só pode ser limitado com o devido respaldo

    constitucional.

    Ao impor penas excessivas, sem a fundamentação adequada, o Poder Judiciário viola o direto

    à liberdade do condenado e acaba criando uma forma arbitrária de limitação a esse direito.

    Alexandre de Moraes salienta que:

    “Conforme proclamou o Superior Tribunal de Justiça, ‘a liberdade é indisponível no Estado de

    Direito Democrático’, não cabendo a nenhuma autoridade, inclusive do Executivo e Judiciário,

    ‘assenhorar-se das prerrogativas do Legislativo, criando novas formas inibidoras ao direito de ir

    e vir, sem a devida fundamentação e forma prescrita em lei’”.45 

    45 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 113.

  • 8/19/2019 Inadmissibilidade de Tentativa Em Crimes Preterdolosos

    25/26

    O estudo aqui realizado confere a atenção necessária a um assunto sobre o qual a doutrina e a

     jurisprudência não têm dado qualquer importância, apesar de que vários delinqüentes estão

    cumprindo cinco, dez, ou quem sabe quinze anos a mais do que deveriam, de acordo com a

    legislação penal pátria.

    7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal . 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte especial. v. 4. 2. ed. São Paulo:

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    complementar. 11. ed. Lisboa: Almedina Coimbra, 1997.GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal : parte geral. 10. ed. Niterói: Impetus, 2008.

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    1953.

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    Tribunais, 2005.

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    Relator NATANAEL CAETANO. Julgado em: 30/08/2000. Publicado em: 20/09/2000.

    TJDF, Apelação Criminal 20030110562320APR DF, 1ª Turma Criminal, Desembargador

    Relator EDSON ALFREDO SMANIOTTO. Julgado em : 03/06/2004. Publicado em: 25/08/2004.