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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA
LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO BRASILEIRA.
LUA CAMBARÁ, A BRASILIAN HAUNT
CAMPINAS
2018
INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA
LUA CAMBARÁ, UMA ASSOMBRAÇÃO BRASILEIRA.
LUA CAMBARÁ, A BRASILIAN HAUNT.
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas para obtenção do
título de Mestra em Artes da Cena, na área de Teatro,
Dança e Performance.
e
Dissertation presented to the Institute of Arts of the
State University of Campinas in partial fulfillment of
the requirements for the degree of Master in Arts of the
Scene, in the Area of Theater, Dance and Performance.
ORIENTADORA: GRÁCIA MARIA NAVARRO
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA INÁCIA
RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA E
ORIENTADA PELA PROFESSORA DOUTORA GRÁCIA
MARIA NAVARRO.
CAMPINAS
2018
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
INÁCIA RITA MARIA LARISSA BARROS DE SANTANA
ORIENTADOR: GRÁCIA MARIA NAVARRO
MEMBROS:
1. PROF(A). DR(A). GRÁCIA MARIA NAVARRO
2. PROF(A). DR. ADILSON NASCIMENTO DE JESUS
3. PROF(A). DR(A). ISA ETEL KOPELMAN
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se
no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
DATA DA DEFESA: 14/12/2018
Vozes de mundos desconhecidos
O chão que eu piso me conta histórias
Pisei por muito tempo nas cinzas dos meus antepassados
Eu escuto suas histórias com os pés
E eles comunicam para o resto do corpo
O corpo responde aos impulsos que vem do chão
Chicoteia, sacode, suspende.
A voz das minhas avós se juntam a milhares de outras vozes
Ruídos que entram de ouvidos a dentro.
Nos meus pés estão as minhas raízes
Uma pessoa sem raiz, não se equilibra,
Não se sustenta
Atrás das minhas costas há toda uma geração
De mulheres esquecidas pelo tempo e memória
Cujos nomes foram silenciados na boca dos parentes
Até não serem mais lembrados
Mas são elas que me dão força
Eu não sou só eu só
Eu sou a filha, a mãe e a avó.
Puxo com as mãos no ar o que foi esgarçado pelo tempo.
Larissa Santana 13 de março de 2015
AGRADECIMENTOS
Ao Divino Espírito Santo, às Divindades, as Yabás, Oxum, Yansã, Nanã,
Oxalá, aos Encantados, ao povo da Jurema, Salve todo o Juremá. Salve a estrela que
me guia. Salve a força que me sustenta.
Às minhas bisavós (in memoriam) que me mostraram por onde começar, em
especial Rosa Cipriano.
Às minhas avós, Rosa Santana de Lima e Doralice Barros (in memoriam),
pela graça de observá-las tecer histórias com seus gestos, cozinhando ao pé do fogão de
lenha, partilhando generosamente o alimento, costurando bonecas de pano e colchas de
retalhos nas memórias aquecidas nesses encontros e andanças pelo Sertão.
A quem me deu tutano, mas também me deu asas, meus pais, Elisabete
Santana de Lima, José Arnaldo Barros da Silva. A estes que são âncora e balão dentro
de mim.
A meu irmão, Ariston Lavoisier Barros de Santana, pela compreensão em
ver-me ausentar do convívio dos meus.
Aos amigos, Martha Procópio Péclat, José Carlos Prado Péclat e
Chavannes Procópio Péclat, por serem impulsionadores de sonhos, soprando as velas do
meu barco, encorajando-me nessa jornada.
À Grácia Maria Navarro, por acreditar nessa pesquisa, pela partilha e
exemplo de hombridade, compromisso, ética, pela possibilidade de dançarmos juntas nas
mesmas rodas, partilhando outros tipos de saberes. Também pela orientação cuidadosa do
trabalho, respeitando sobretudo a pesquisa e o seu crescimento, obrigada.
Às Caixeiras das Nascentes nas pessoas de Cristina Bueno e Inês Vianna,
por partilharem conosco o estudo de práticas, celebrações e saberes que aprenderam com
mestres e mestras da Cultura Popular, deixando que eu guarnecesse minhas raízes daquilo
que elas precisavam para a minha resiliência de migrante.
À Elias de Lima Lopes, pelas provocações nos laboratórios criativos, por seu
tempo, ouvidos, olhos, sensibilidade, confiança, pela amizade, pelas longas conversas e
café, pelo silêncio da partilha de uma verdadeira amizade, eu agradeço.
À Venúsia Ferraz, por me estender as mãos quando mais precisei e me ajudar
nos dolorosos processos de mudança.
Às amigas, Aline Sampaio, Hariane Eva, pela oportunidade do desabafo para
tomar fôlego nos momentos de dificuldades.
Às amigas, Vera Lúcia Silva, Sthefanie Brito, por compartilharem sua luz
comigo.
À Brisa Vieira, pelo lar, pela família, pelo quintal, pela partilha, que me deu
possibilidade de uma expansão para o universo, convivendo diariamente com a terra, o sol,
a lua, as estrelas, o vento, a chuva, o horizonte.
À Cora, este Erê que me diz coisas tão profundas, quando me diz tão somente:
“Coragem!” e torna a brincar em nosso quintal, como se nada fosse.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, com
quem tive o prazer de ter aulas, pelas provocações e desafios que lançaram ao meu
aprendizado intelectual.
Ao Departamento de Artes Cênicas, nas pessoas de Deyse, Dona Zete, Luís
e Anderson.
Aos funcionários da secretaria de Pós-Graduação, nas pessoas de Neuza,
Letícia e Rodolfo.
À Consuelo Timóteo, por abrir a Casa das Almas com suas narrativas
assombrosas a essa pesquisa e experimentação no cemitério do seu quintal e no castelo
anexo à casa grande.
À rezadeira Dona Francisca, que nutriu meu imaginário, com os causos da
seca de 1970, da linha do trem, das histórias dos retirantes, ciganos, “envurtados”, das
mulheres amaldiçoadas que “correm bicho”, lobisomens, encantados, livros de magia, nas
tardes em que me benzia de mal olhado, ao mesmo tempo em que me ensinava suas rezas.
À Cida, da Ong Mulher Maravilha, pela ponte junto ao Quilombo
Travessão do Caruá, por literalmente me colocar no carro de lotação e providenciar a
minha recepção em sua família.
Ao autodidata Dezinho, ou Seu José Alfredo Vitor da Silva, que compartilhou
histórias dos seus antepassados, de quando fugiram de Palmares na época em que este foi
invadido, embrenhando-se de Moxotó a dentro até parar no Alto Sertão do Pajeú, onde
tiveram a proteção de Lampião para se instalar nas terras do Travessão do Caruá, em que
mora atualmente. Por partilhar histórias, danças, canções. Também à Severina, sua esposa,
por partilhar o aconchego de seu lar.
A José Lopes da Silva, fabuloso artesão e rezador da Serra da Barriguda,
por me deixar vê-lo construir narrativas num tronco de árvore, transformando-o com o seu
fazer em canga para carro de boi, que por sua vez continuaria tecendo outras narrativas.
Também pela reza para “fechar o corpo”, a qual muito me ajudou nessa escrita.
Ao vaqueiro Augusto, por partilhar um pouco da sua rotina de trabalho na casa
do seu patrão, Si Toin, na transferência do gado para outra roça e no adestramento do
cavalo Napoleão.
A Elisabete Santana de Lima, pelo envolvimento com esse processo criativo,
na via mítica, tecendo com a ciência do fazer os figurinos que iam compor os corpos dessas
personagens e por me levar à chã da serra sempre que preciso de Axé, contando-me a cada
passo da subida, onde se escondem as árvores curativas.
A Rosa Santana de Lima, por me contar histórias da minha bisavó, Mãe
Isabel, mestiça de sangue indígena e português e histórias de como morriam os anjinhos de
morte matada no Sertão.
Às artesãs e artesãos de Pernambuco e Paraíba, que encontrei nessa trajetória
e dos quais obtive além dos objetos que compõem a cena, as narrativas que os
acompanham, pela graça de manipular essas narrativas simbólicas, meu muito obrigado.
À Rita Cássia, Rodolfo Ventura e Raielle Mazzarelli, que me auxiliaram
nessa escrita poética, com a captação das imagens, edição e foto-grafia, sem os quais o
registro do processo criativo nesta dissertação não seria tão rico.
À CAPES, que patrocinou essa pesquisa, contribuindo decisivamente para o
desenvolvimento e dedicação exclusiva a esse trabalho. (O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001).
RESUMO
Esta dissertação resulta de uma pesquisa na linha de Poéticas e Linguagens da Cena, sobre
o processo de criação da personagem Lua, inspirada no conto de Ronaldo Correia Brito,
Lua Cambará, transcrito da tradição oral em 1970. O objetivo central foi descobrir a partir
de um texto literário que evoca imagens arquetípicas do Sertão e do feminino, como
adentrar as camadas da personagem lunar, de modo a traduzir as provocações do conto em
linguagem cênica. Além da criação poética, conto gerou um estudo sobre os atravessamentos
que permeiam o feminino na personagem, tais como a condição de mestiça sertaneja, numa
aproximação em fricção com o contexto da personagem, do qual emergem situações
complexas que envolvem a construção cultural do feminino no século XIX. Ancoro as
reflexões sobre a mestiçagem no pensamento de Serge Gruzinski, Garcia Canclini, Milton
Santos e Larissa Vianna, a fim de compreender a força transgressora de Lua, em relação ao
contexto em que o autor do conto situa tal personagem. A seca no Nordeste, quase uma
entidade atemporal no conto, aparece no palco como uma metáfora, escrita no corpo de
atriz e na cena. Essa metáfora é criada com os silêncios, texturas, projeção de imagens,
canções e no corpo de atriz ao recuperar sensações da pesquisa de campo. Assim as
materialidades retidas na memória e transformadas em metáforas na cena, por meio das
ações, dos objetos, figurinos, encontram-se em consonância com a metodologia de
intercâmbio com o campo no modo artesanal de fazer, o qual envolve uma artesania muito
delicada, irradiada pelos afetos, encontros, vivências com os materiais que compõem os
detalhes dessa encenação desde aqueles mais singelos. A escolha por objetos artesanais
está estreitamente ligada aos trajetos e narrativas simbólicas que constroem a partir do seu
manuseio, por meio das associações com as pessoas, lugares, narrativas que
acompanharam a aquisição desses objetos. A pesquisa parte da literatura, permeando a
cultura popular, celeiro criativo, no qual busco desenvolver a presença de atriz e relação
com o público, bem como o fluxo entre as qualidades que identifiquei na personagem: moça,
guerreira, anciã, elementos que, ao final, compõem a consciência atemporal de Lua na
qualidade de assombração. Ao perceber que os métodos de criação de personagens
conhecidos e experimentados em minha formação não serviriam para este trabalho
específico, no próprio fazer fui criando a metodologia do fazer específica deste processo
criativo, a qual chamei de “Filosofia do Guarnecer”. Esse é um conceito misto inspirado no
guarnecer do Boi do Maranhão, conforme estudado por Marianna Monteiro e na Filosofia
do Teatro, de acordo com Jorge Dubatti. Relaciono as performances culturais rituais e
estéticas com o acontecimento, o que aproximou dos estudos de Illeana Diéguez, Victor
Turner e Richard Schechner, acerca dos conceitos de limen, liminaridade e ritual. Dessa
forma, a Filosofia do Guarnecer orienta a prática artística e o modo de lidar com as
práticas, saberes e celebrações da cultura popular brasileira num ponto de vista proximal,
afetivo e participativo, em que eu me encontrei em termos de horizontalidade, envolvida
nas rodas com os fazedores da cultura popular. Nessa pesquisa, alio teatro com fotografia e
vídeo, compreendendo o registro audiovisual e fotográfico como grafia. As foto-grafias
são recortes da experiência, com as quais reescrevo as cenas para o espectador leitor,
convidando a olhar de novo as metáforas da criação, quando projetadas sobre o corpo da
atriz e no espaço, podem fazer o transporte através das provocações sensoriais.
Palavras-chave: Teatro; Literatura; Cultura Popular; Processo Criativo; Personagem;
Foto-Grafia.
ABSTRACT
This master‟s thesis results from a search on line Poetics and Languages scene on the
process of creating the Lua character, inspired by the tale of Ronaldo Brito Correia, Lua
Cambara, transcript of the oral tradition in 1970. The main objective was to create from a
literary text that evokes archetypal images of the Sertão and the feminine, discovering how
to penetrate the layers of the lunar character, in what way translate the tale provocations in
scenic language and aesthetic creation. Beyond of poetic creation, the tale generated a
study of the crossings that permeate the feminine in the character, such as the condition of
mestiza sertaneja, in an approach in friction with the context of the character, from which
complex situations emerge which involve the cultural construction of the feminine in the
nineteenth century. I anchor the reflections on mestizaje in the thought of Serge Gruzinski,
Garcia Canclini, Milton Santos and Larissa Vianna, in order to understand the transgressor
force of Lua in relation to the context in which the tale's writer situates the character. The
drought in the Northeast, almost a timeless entity in the tale, appears on the scene as a
metaphor, written on the actress's body and on the scene. This metaphor is created with the
silences, textures, projection of images, songs and in the actress body, when recovering
sensations of the field research. So the materialities retained in memory and transformed
into metaphors in the scene, through actions, objects, costumes, are in accordance with the
methodology of exchange with the field in the artisanal way of doing, which involves a
very delicate craftsmanship, radiated by the affections, meetings, experiences with the
materials that compose the details of this staging, from the simplest. The choice of craft
objects is closely linked to the paths and symbolic narratives that build on its handling,
through the associations that I make with the people, places, narratives that accompanied
the acquisition of these objects. The research is part of literature, permeating popular
culture, creative barn, where I seek to develop the presence of actress and relationship with
the public, as well as the flow between the qualities that I identified in the character: girl,
warrior, old woman who end up the ghost, composing Lua as a whole, the timeless
awareness Lua. When realizing that the methods of creation of characters known and
experienced in my formation, would not serve for this specific work, in the own doing I
was creating the methodology of doing, specific of this creative process, which I called
"Philosophy of the Guarner". This is a mixed concept inspired by the garnish of Maranhão
Boi, as studied by Marianna Monteiro and Philosophy Theater according with Jorge
Dubatti. I relate the ritualistic and aesthetic cultural performances with the event, which
approached the studies of Illeana Diéguez, Victor Turner and Richard Schechner, about the
concepts of limen, liminarity and ritual. In this way, the Guarnecer Philosophy guides the
artistic practice and the way of dealing with the practices, knowledge and celebrations of
Brazilian popular culture in a proximal, affective and participative point of view, where I
found myself in terms of horizontality, involved in the wheels with makers of popular
culture. In this research, I combine theater with photography and video, including the
audiovisual and photographic record as spelling. The photographs are a cut-out of the
experience, with which rewrite the scenes for the reader's spectator, inviting to look again
the metaphors of creation, when projected onto the body of the actress and in space, can
make the transport through the sensorial provocations.
Keywords: Theater; Literature; Popular culture; Creative process; Character;
Photography.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Imersão em campo, chã da serra, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de
Afogados da Ingazeira-PE, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora.....................................................43
Imagens 2,3,4: Laboratório de personagem, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de
Afogados da Ingazeira-PE, janeiro de 2018. Arquivo pessoal da autora................................................... 44,45
Imagem 5: Laboratório de criação, Sítio Catolé, Afogados da Ingazeira-PE. Objetos cênicos confeccionados
à mão. Luzia, Jovina, Catarina, Tereza, Mariquinha, Quitéria, Rosinha. Fevereiro de 2018. Arquivo pessoal
da autora............................................................................................................................................................58
Imagem 6: Castelo Casa das Almas, Sítio das Almas, Rota do Cangaço, Triunfo. Divisa entre os estados de
Pernambuco e Paraíba. Fevereiro de 2018. Arquivo pessoal da autora..........................................................65
Imagens 7, 8, 9, 10 ,11, 12: Experimentação audiovisual Sangangá, Paviartes, sala AC 011 do Instituto de
Artes da Unicamp. Junho de 2017. Captação de imagens de Hariane Eva......................................................67
Imagens 13, 14, 15, 16, 17, 18: Passeio. Pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa Pindorama:
Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello, Ysmaille Ferreira, Inácio Azevedo e passantes Lauro Mota, Hugo
Kojimiura e Victor Santos. Praça da Paz, Unicamp. 18 de outubro de 2016. Fotos de Letizia
Nicoli............................................................................................................................................................80, 81
Imagem 19: Andor de Santa Luzia, Sítio Queimadas- Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco, 13 dezembro de
2017. Arquivo pessoal da autora......................................................................................... ..............................86
Imagem 20: Presépio, Afogados da Ingazeira, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco, 22 de dezembro de 2017.
Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................87
Imagem 21: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco, janeiro de 2018
Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................88
Imagem 22: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco, janeiro de 2018.
Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................88
Imagem 23: Roça de palma, pesquisa de campo, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Alto Pajeú,
Pernambuco, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora...........................................................................89
Imagens 24, 25: Captura do registro audiovisual de laboratório criativo realizado em 26 de dezembro de
2017. Arquivo pessoal da autora.................................................................................... ...................................90
Imagem 26: Perneira do vaqueiro, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle
Mazzarelli............................................................................................................ .........................................91
Imagem 27: Figurino base da Cacurucaia Maria, Paviartes, Instituto de Artes, julho de 2018. Foto de
Raielle Mazzareli................................................................................................................. ..............................92
Imagem 28: Caju, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú, Afogados da Ingazeira,
janeiro de 2018. Arquivo pessoal da autora....................................................................... ..............................94
Imagem 29: Pimenta do reino e coloral, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú,
Afogados da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal...................................................................95
Imagem 30: Sabugo de milho no terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto Pajeú, dezembro de 2017.
Arquivo pessoal da autora................................................................................................... ..............................96
Imagem 31: Flores secas de sombreão, terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto Pajeú, dezembro de
2017. Arquivo pessoal da autora......................................................................................... ..............................96
Imagem 32: Pé de sombreão no terreiro de Elisabete Santana, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú,
fevereiro de 2018. Arquivo pessoal da autora...................................................................................................97
Imagens 33, 34: Captura do registro audiovisual do laboratório de criação realizado no Castelo da Casa
das Almas, rota do cangaço, Triunfo, Pernambuco, detalhes da capa de Lua, 16 de janeiro de 2018.
Captação de imagens de Rita Cássia................................................................................................................94
Imagens 35, 36, 37, 38: Casa abandonada (aqui morava Maria) Sítio Barriguda, Alto Sertão do Pajeú,
Afogados da Ingazeira, Pernambuco, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora...................................99
Imagem 39: Cabra, Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle
Mazzarelli........................................................................................................................................................100
Imagem 40: Laboratório criativo realizado no Castelo da Casa das Almas, rota do Cangaço, Triunfo
Pernambuco, 16 de janeiro de 2018. Foto de registro audiovisual, captação de imagens de Rita
Cassia..............................................................................................................................................................100
Imagem 41: Cenário, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 13 de maio de 2018. Arquivo
pessoal da autora.............................................................................................................................................101
Imagem 42: Pesquisa de campo, restauração de cerca de vara a caminho da chã da serra. Sítio Barro
Branco, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco. Arquivo pessoal da autora.......................................................102
Imagem 43: Maquiagem de Lua, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 17 de maio de 2018.
Arquivo pessoal da autora...............................................................................................................................103
Imagem 44: Vista do amanhecer. Pesquisa de campo, errância, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú.
Dezembro 2017. Arquivo pessoal da autora...................................................................................................104
Imagem 45: Caatinga, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro 2017.............105
Imagem 46: Atrás a serra, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de
2017.............................................................................................................................. ...................................106
Imagem 47: Corrida na caatinga, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de
2017.............................................................................................................................. ...................................106
Imagem 48: Cata-vento, Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017........................107
Imagem 49: Cata-vento, Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017........................107
Imagem 50: Sombra do Cata-vento no chão seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro
de 2017.............................................................................................................................. ...............................108
Imagem 51: Tronco seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.......................108
Imagem 52: Assombração. Castelo Casa das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de
2018............................................................................................................. ....................................................109
Imagem 53: Fogão de lenha na casa de vó. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual, dezembro de
2017................................................................................................ .................................................................109
Imagem 54: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro
audiovisual, fevereiro de 2018........................................................................................................................110
Imagem 55: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro
audiovisual, fevereiro de 2018........................................................................................................................110
Imagem 56: Sangue que escorre, Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de
2018.................................................................................................................................................................111
Imagem 57: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................111
Imagem 58: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................112
Imagem 59: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................112
Imagem 60: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.......................................................................................................................113
Imagem 61: Lua, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de 2018.........................113
Imagens 62,63,64,65: Prólogo. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................116
Imagens 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75: Cacurucaia Maria. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.........................................................................119, 120
Imagem 76, 77: Narradora. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................120
Imagens 78,79,80,81,82,83,84, 85: Vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de
2018. Fotos de Raielle Mazzarelli...........................................................................................................121, 122
Imagens 86, 87, 88, 89: Parto. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, AC 04, julho de 2018. Fotos de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................123
Imagens 90, 91, 92, 83, 94, 95: Lua moça. Paviartes, Instituto de Artes, julho de 2018, Unicamp. Fotos de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................124
Imagem 96: Eles são quantos? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Foto de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................126
Imagens 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103,104,105, 106: Lua guerreira. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.............................................................................................128
Imagens 107, 108, 109, 110: Confissão de Lua. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de
2018. Fotos de Raielle Mazzarelli............................................................................................... ...........129, 130
Imagens 111, 112: Recusa. Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de
Raielle Mazzarelli............................................................................................................................................131
Imagem 113: Se eu lhe pedir uma coisa, você faz? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04. Foto
de Raielle Mazzarelli.......................................................................................................... .............................132
Imagens 114, 115: Maldição de Irene, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04, julho de 2018.
Fotos de Raielle Mazzarelli.............................................................................................................................132
Imagens 116, 117, 118, 119: Sentença, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018.
Fotos de Raielle Mazzarelli. ...........................................................................................................................133
Imagens 120, 121, 122: Enterro do vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de
2018. Fotos de Raielle Mazzarelli...................................................................................................................134
Imagens 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130: Lua, a pomba gira das escruzilhadas de terra. Paviartes,
Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli ..................................135
Imagem 131: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC
04, julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.................................................................................................136
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO (ou como tudo começou) .................................................18
CAPÍTULO 1: DO PONTO DE VISTA DA ARTISTA ............................30
1.1 Sobre o fazer, a Filosofia do Guarnecer ................................................30
1.2 O mito do corpo-seco: a seca como metáfora na poética da cena ......43
CAPÍTULO 2: LUA CAMBARÁ ...............................................................52
2.1 Lua Cambará, a lua como símbolo cósmico do feminino .....................52
2.2 Uma mestiça de gênio ruim e raça de branco, Lua Cambará uma
revolucionária politicamente incorreta ........................................................58
CAPÍTULO 3: DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..............65
3.1 Procedimentos metodológicos ...............................................................65
3.2 Sobre fazer à mão, artifício e artesania .................................................83
3.3 Condensação de experiências: Teaser de As nove luas de Lua Cambará.
...................................................................................................................105
CAPÍTULO 4: DA ESCRITURA CÊNICA .............................................115
4.1 Da escritura cênica: foto-grafia, um fotograma poético ......................115
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................142
ANEXOS ...................................................................................................146
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INTRODUÇÃO (ou como tudo começou)
Nesta pesquisa, proponho uma trajetória que parte da literatura em direção à
criação cênica. A cultura popular aparece como intermediária entre esses dois pontos, uma
vez que o conto disparador para a criação cênica, surge da tradição oral, a qual expressa-se
de diversas maneiras na cultura popular nordestina, desde a contação de causos, o repente,
ou mesmo as vivências com mestres e mestras no contexto religioso e/ou festivo. O conto
evoca um sertão remoto, fadado a acontecimentos funestos, no qual as forças que regem o
destino vêm acompanhadas de maldições ancestrais, onde seres em trânsito entre mundos
aparecem para confundir e atormentar os vivos.
A riqueza de imagens desafia o trabalho de atriz, pois além de buscar
qualidades de presença distintas, em fluxo, necessitava recorrer à criação de metáforas na
cena que buscassem acordar no imaginário do espectador um sertão mítico de forma
palpável. Sem a pretensão de esgotar o conto, nem tampouco reproduzi-lo letra por letra,
persisti nesse trabalho em que enfrentei momentos caóticos e vazios criativos, até encontrar
um fio, pelo qual pudesse seguir. Da imersão em loco, surge a provocação do corpo como
tela, poroso, que deixa transparecer as materialidades que contêm, deste corpo mesmo que
carrega o sertão onde quer que vá.
No primeiro capítulo, apresento ao leitor a Filosofia do Guarnecer, conceito
misto que fui desenvolvendo ao longo do trajeto para traduzir em palavras um modo de
criação específico, que despontou neste trabalho, a partir do termo Guarnecer da
brincadeira do Boi do Maranhão, relacionado à Filosofia do Teatro de Jorge Dubatti.
Percebo as características do acontecimento excepcional enumeradas pelo referido autor,
não só nas práticas teatrais, mas também nas performances culturais, práticas e saberes da
cultura popular que tive oportunidade de vivenciar em que identifiquei, nessas ocasiões, a
geração de communitas criada pelo contexto em que se dá o convívio, a transmissão e a
resistência desses movimentos.
Procurei desenvolver como o guarnecer orienta uma postura diante das
manifestações populares, transformando-se no fazer teatral na medida em que as memórias
corporais, guarnecidas em situações de convívio, têm dado vida a essa personagem nas
suas qualidades de presença. Para isso, dialogo com o pensamento de Jorge Dubatti acerca
da Filosofia do Teatro em relação a outros pensadores, para traçar uma linha de raciocínio, a
partir da minha experiência com a cultura popular, acerca da situação de liminaridade que
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acredito decorrer da excepcionalidade comum ao teatro e à cultura popular. Nesses
encontros, vou guarnecendo, corpo, memória, imaginário e raízes que ao retornar à sala de
ensaio, busco recuperar as experiências vividas, através dos sentidos, como aquecimento
para o trabalho, com o trabalho e no trabalho.
A partir do contato dos sentidos com o campo de pesquisa que realizei no
Sertão pernambucano, vivenciando técnicas de comer, sentar, dormir, de estar no tempo,
diferenciadas daquelas a que normalmente nos habituamos nas cidades grandes, expando a
minha percepção corporal para um sentido de corpo como tela, um corpo poroso, que deixa
entrever as materialidades que contém retidas na memória e transformadas em metáforas
na cena, por meio das ações, dos objetos, figurinos. Esse corpo como tela visa a
experienciar a seca, com o mais profundo da observação ativa, afetiva, proximal com o
campo, a fim de entender o que vem a ser encarnar o mito do corpo-seco que dá origem ao
conto.
No segundo capítulo, adentro duas camadas apontadas no conto, primeiramente
um aspecto mítico que me fez criar aproximações com imagens arquetípicas de um
feminino ancestral, cujo elemento de representação primordial é o elemento cósmico da
lua. Na trajetória da personagem, observo “fases” as quais relaciono às imagens
arquetípicas que acessei por meio das vivências em terreiros desde 2010 e das transcrições
dos mitos das Yabás Oxum, Yansã, Nanã. Percebo que o conto possibilita essa relação
quando identifico na personagem fases luminosas, sombrias e intermediárias, num
continum ciclo de impermanência e fluxo.
Outro aspecto é aquele que emerge do contexto em que o autor localiza a
personagem, o qual tomado como meio de investigar as relações sociais estabelecidas na
época proposta, principalmente a recepção da sociedade escravocrata nordestina em fins do
século XIX à figura da mulher livre, mestiça, herdeira, exercer funções de comando. Ao
que, o contexto ficcional em relação ao contexto da época, faz depreender que a
personagem seria uma revolucionária, feminista, politicamente incorreta. Daí, talvez
advém a condenação a que Lua é submetida, colocada na boca de Irene, personagem que
caracteriza o modelo de feminino tido como ideal dentro desse contexto.
No terceiro capítulo, faço uma reflexão sobre a conduta ética que adotei em
relação à cultura popular na minha metodologia de criação, através da Filosofia do
Guarnecer, em que proponho uma metodologia de trabalho, inspirada nos encontros com a
cultura popular, esta compreendida enquanto celeiro criativo que sustenta pontes entre
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aquele que faz e o público, através dos afetos nas feiras, praças, sítios, trajetos e andanças.
A partir de exercícios iniciais, em que fui acerando a personagem pelas margens até
encontrar um fio condutor, o leitor poderá ter acesso a parte do registro desse processo
criativo, no compartilhamento das foto-grafias, compreendidas aqui como uma forma
sensível de escrita que perdura no tempo mais do que simplesmente um recorte da
experiência.
Refletindo sobre os exercícios realizados, identifico que durante esse trajeto, a
experimentação criativa e a apresentação de tais exercícios foram constantes, durante o
processo criativo, configurando uma metodologia em que o compartilhamento do resultado
estético se dá no próprio processo de construção, ao invés de optar por somente realizá-lo
ao final. Por meio do compartilhamento, mesmo as experimentações incipientes,
apontaram pistas no seu fazer daquilo que viria a ser o exercício cênico As nove luas de
Lua Cambará.
Compartilho então, pistas a partir de três exercícios iniciais, Laboratório,
Oficina e Passeio, os quais culminaram na experimentação audiovisual Sangangá e na
escrita da dramaturgia cênica, com base na escolha de trechos do conto, em que a
perspectiva autoral busca traçar uma trajetória cíclica da personagem. Ao escrever sobre o
processo de construção da personagem, lanço-me nesse abismo que é a escrita, numa
produção textual sensível sobre a experimentação. Privilegio um polo de inteligência
encarnado, em que pretendo situar a escrita de modo a evitar a separação entre sujeito e
objeto, atentando para aquilo que emerge e enquanto conhecimento das experimentações,
nas quais a personagem desenha um trajeto que permite o encontro entre sujeito e campo
de pesquisa no seu fazer.
Como resultado das experimentações criativas em campo, além do exercício
cênico, obtenho um vídeo-arte. Rita Cássia juntamente e Rodolfo Ventura foram
cocriadores desse material, que se integrou à cena, em que as texturas e materialidades do
campo transbordam e são oferecidas às retinas do público, como portal para essa passagem
sensorial ao sertão das minhas andanças.
No quarto capítulo, trago ao conhecimento do leitor o resultado cênico
intitulado As nove luas de Lua Cambará, em que escrevo com as foto-grafias o registro da
experiência cênica, aliado à escrita dramatúrgica inspirada no conto de Ronaldo Correia
Brito, traço uma trajetória autoral de pesquisa e criação em personagem, que resulta em um
trabalho poético e estético.
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O processo de construção da personagem Lua Cambará trouxe um
levantamento de questões sobre a representação do feminino. Na construção desse aspecto,
procuro explorar qualidades de energia e presença, através das matrizes da cultura popular
brasileira, de modo a tentar dialogar com elas na relação com um sertão mitológico e
arquetípico. A maneira como fui me acercando de tais matrizes, fricciona o eu da atriz com
a alteridade da personagem em um processo que se deu no cumprimento de um ciclo.
Já dispus a organização da dissertação, apresentei o menu, por assim dizer,
mas o leitor pode estar se perguntando como tudo isso começou afinal, de onde surgiu o
interesse em trabalhar com um texto literário, ao invés de optar por um texto teatral. A
seguir trago o relato para que se possa acompanhar em que nível se deu essa fricção entre
as histórias de vida da atriz e da personagem, como se cruzaram na criação, peço licença
pois terei de voltar um pouco no tempo.
Em 1999, eu e minha família nos mudamos da cidade de Iguaracy, para a zona
rural no Sítio Barro Branco, no Sertão pernambucano. Construímos nossa casa ao lado de
um terreno onde havia ruínas, alguns tijolos de barro e talvez o que poderia ter sido o chão
de uma casa.
Em 2009, estava terminando a faculdade de letras, algo despontou ali quando
cursei as últimas matérias de Literatura Brasileira, com Dona Maria José. Foi o meu
primeiro contato com o conto Lua Cambará. Impactou-me, desde então, a assombração
que passa a vagar. As imagens deste conto começaram a povoar meu imaginário a partir
desse momento, como se estivessem à espreita.
Em 2012, lembrei-me do conto, veio a vontade de trabalhar com ele, mas logo
abandonei essa ideia. Estava frequentando um círculo de Constelação Familiar, em João
Pessoa, quando, certo dia, entre o sono e a vigília, fui acordada por uma voz incisiva que
me disse que Madrinha Rosa precisava que eu fizesse isso. Eu nunca tinha ouvido falar
nessa parenta, entrei em contato com minha mãe, minhas tias, minha vó, juntei as partes
daqui e dali. Madrinha Rosa foi uma bisavó materna que tinha sido esquecida pela família.
Após sua morte, suas coisas foram queimadas, sua casa destruída, nenhuma vela foi acesa,
nem de sete dias, nem de 30 dias, nunca mais se falou nela. O grande erro que ela cometeu
foi romper com o ideal estabelecido para o feminino, da pureza, virgindade e do temor aos
homens: engravidou antes do casamento, a família Cipriano tinha posses, o pai e o irmão
chegaram a lhe ameaçar de morte para que ela abortasse e dissesse de quem era a criança.
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Ela não contou, foi destituída da herança. A filha viveu até os treze anos de idade, quando
um dia foi com a mãe lavar roupa no açude, pisou num ferro, contraiu tétano e morreu. O
desgosto a consumiu, adquiriu um câncer de útero.
Naquela época, no sertão, as pessoas pensavam que o câncer fosse um tipo de
lepra, os parentes passaram a jogá-la de uma casa para outra, sem querer cuidar de suas
feridas, com medo de que fosse contagioso. Meu avô materno, Brás Macena, tratava das
feridas como se fosse qualquer novilha, cabra, ou semelhante, jogava pinho sol na entrada
da sua vagina, para tirar as larvas que lhe roíam o ventre. A casa de Madrinha Rosa foi
derrubada e todos os seus pertences, inclusive os retratos, após sua morte, foram
queimados. Quando cavouquei essa história, descobri que as ruínas na roça ao lado, na casa
do Sítio, eram a antiga casa dela.
Cogitei a possibilidade de trabalhar com as imagens arquetípicas do feminino
que o conto evoca, quem sabe, emprestar o nome de Lua Cambará, para falar de coisas que
há muito tempo não se falava. No primeiro momento, não tive coragem de me afundar
nesse pântano, tive receio de depois não saber lidar como o que transbordaria. A história de
Marinha Rosa, a de Lua e a minha.
Em 2013, passei por uma violência sexual, foi um período de trevas na minha
vida que coincidiu com o término do curso de bacharelado em teatro na Universidade
Federal da Paraíba. Foi quando senti na carne a maldição de ser mulher. Todas as questões
relacionadas, a útero, feminino, masculino, contato físico, maternidade, sangue, foram
motivo de muita revolta em meu ser, eu afundei dentro de mim e quase não quis mais
viver.
A dança popular me trouxe de volta à vida, desde então, ela sempre me ajuda a
fazer o caminho de retorno. Fiz como pesquisa de TCC uma investigação sobre o corpo do
deprimido e como as danças populares brasileiras podiam fazer um aterramento,
conectando o indivíduo de volta ao presente, abrindo e expandindo o corpo ao contato
consigo, com o outro, com o espaço. É claro que diversos fatores me atravessavam nessa
pesquisa, eu mesma era cobaia dessa investigação, juntamente com outras pessoas que já
haviam passado por algum episódio de depressão. Comecei a perceber nas danças do Coco,
Afoxé e Ciranda qualidades energéticas para além do passo, para além da forma.
Em 2015, prestei mestrado pela primeira vez na Universidade Federal da
Bahia, tornei a prestar o exame na Universidade Estadual de Campinas em 2016, quando
fui aprovada com aluna efetiva, mas em 2015 mesmo, tomei coragem! Respirei fundo... e
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comecei a acerar essa história. Quando digo, acerar, é no sentido de ir pelas bordas,
lentamente em direção ao centro. Como quando a gente entra em água desconhecida, pé
ante pé, testando a fundura da água e a firmeza do chão.
Pois bem, foi assim que comecei acerando. Fiz disciplinas como aluna especial,
nas quais, pela primeira vez, propus uma prática a partir do conto referido. E a pergunta
dentro de mim ecoava: quando era que eu iria ter coragem de sair da margem, do papel de
observadora, para intérprete? Depois de observar, nessa ocasião e numa oficina em que eu
repeti o mesmo exercício, uma força despontou em mim e aí de fato começaram os
trabalhos. Pela primeira vez, comecei um trabalho não pelo corpo, não pelo treinamento,
não pelo texto, mas por canções. Canções de invocação da lua no Santo Daime, que eu
cantei muitas vezes.
Até que comecei a sonhar com a personagem, alguns sonhos eram cenas
prontas, com figurino, texto, iluminação, cenário... Como se eu visse um filme diante de
meus olhos, como se a personagem me dissesse o que queria que fosse feito, como se fosse
coisa viva a direcionar a mim no trabalho e não o contrário, não era eu, a pessoa da atriz a
criar uma personagem, mas uma outra alteridade me dizendo o que queria de mim.
Nesse processo, a criação se deu primeiro num plano do imaginário, para ir
tomando lugar e forma no corpo e aconteceu também de forma concomitante à criação. Ao
olhar para trás, do ponto onde estou, percebo que subestimei esses materiais, por não
encontrar formas de escrever sobre eles e “validar” esse procedimento, que agora entendo
que tem a ver com uma disponibilidade, porosidade e entrega muito grande ao processo
que se iniciava.
Primeiro, sonhei com minha orientadora fazendo pesquisa de campo, em
bordéis. Indo a campo nesse mundo dos sonhos, visitei bordéis de movimento fraco,
conversei com prostitutas velhas de profissão, que me falavam de suas expectativas e
frustrações, contavam-se sobre suas paixões, angústias, sobre como era ruim, beber
sozinhas, encarar ao fim das festas, os copos e as camas vazias, faziam da solidão uma
companheira cotidiana em meio ao vazio, dos corpos. Ainda no sonho, eu encontrava a
orientadora, conversávamos sobre as observações de campo, retornávamos para a sala de
ensaio, levadas por um vento que fazia nossos corpos caminharem em espirais no tempo-
espaço, como se tivéssemos passado por um portal.
Como indicação, a partir dessa “pesquisa de campo”, eu recebia um programa
em que deveria ir vestida de noiva a uma rodoviária ou estação de metrô, para confundir os
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passantes com o texto seguinte: “Oi, você me ajuda a completar minha passagem? É que meu noivo, tá
me esperando hoje para a gente casar, você sabe como eu faço pra chegar em Brasília? Meu noivo, mora lá,
eu tenho que chegar pro casório que acontece agora às 19h, será que esse dinheiro dá pra eu chegar lá?”
A indicação de figurino era um vestido de noiva, sujo de lama vermelha,
rasgado, velho, amarrotado, cheio de galhos, folhas e penas enganchados na roupa e nos
cabelos. (Dou-me conta de que este figurino se materializou depois na cena, o leitor poderá
conferir mais adiante nas foto-grafias que servem de registro ao exercício cênico).
Outro sonho foi com o cenário, tratava-se de uma estrutura que imitava os
galhos secos e retorcidos da caatinga, parafusados de forma que eu pudesse subir neles e
no centro havia um espaço oco na estrutura. No chão, tinha o desenho de uma mandala
sustentando como centro a lua cheia e no entorno diversas fases da lua, nos seus
intermediários crescentes e minguantes e a lua nova. Ao início de cada apresentação, era
sorteada uma lua, a encenação começava daquele ponto.
Neste sonho, entrava em cena a assombração, com um longo kimono de seda
que lhe cobria as mãos e os pés, no rosto, uma máscara grande, as luzes apagavam. Havia
uma troca de figurino, quando as luzes acendiam novamente, esta corria e descia escadas
de uma arquibancada vazia, dizendo o texto da encomenda da morte de Irene, passava
entre o público dizendo-o e correndo entre os espaços da arquibancada. Novamente,
escuro, depois um foco de luz ao centro da cena, as pessoas assistiam do alto.
A personagem se despia, as roupas ficavam penduradas num biombo de
madeira, por onde um feixe de luz passava através do trançado. Ervas cheirosas eram
cozidas e incensavam o ambiente, enquanto me banhava numa bacia, tocava a região
íntima, enfiava os dedos no canal vaginal, tirava de lá uma coloração vermelha semelhante
ao sangue, com a qual me lambuzava e aos poucos lambuzava também algumas pessoas da
plateia, dizendo o texto referente à recusa do amor de Lua por João Índio. Novamente
escuro, quando a luz tornava a acender, eu aparecia entre as estruturas de galhos trançados,
entrando e saindo do oco, subindo, descendo, ficando de cabeça para baixo, enquanto dizia
o texto do delírio de morte.
Ao acordar desse sonho, comecei a “discutir” com a personagem. Indispus-me
a realizar na cena esse sonho, perguntei-lhe o que ela queria dizer com isso, achava
totalmente desnecessário uma cena de masturbação feminina que simulasse a menstruação.
A resposta que surgiu foi num tom de deboche “Ah é, você quer me dizer então que a
masturbação feminina é assunto ultrapassado, superado, me diz por que o clítoris não está
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nos livros de biologia do ensino fundamental e médio? Por que não há um estudo
aprofundado sobre essa anatomia? Quer dizer que menstruação também é assunto batido e
superado? Então por que você não sai na rua sangrando? Por que tem que dissimular seu
sangue todo mês? Se é tão natural, por que ainda espanta, uma mulher sangrar? O sangue é
por acaso sujo? Como se Lua fosse coisa viva que exige de mim um mergulho profundo
nos tabus relacionados ao feminino, eu vou tateando entre as sombras, tentando ver até
onde tem pé, nessas águas escuras e desconhecidas, nesse rio pantanoso do inconsciente
que vem à tona através do trabalho.
No começo dos laboratórios individuais, senti-me divagando, era um vagar sem
fim, divagar de não saber por onde começar, como seguir, aonde iria chegar, uma angústia
criativa terrível. E de-vagar, de sentir uma progressão tão lenta, impossível, a vontade de
desistir, o vazio, o sentimento de passar horas sem chegar a lugar nenhum e de, às vezes,
encontrar um cisco que se resumia a uma marca que mal preenchia dois segundos de
verdade. Trabalhar sozinha era mais difícil do que eu imaginava. Era aterrador, eu sofria
quando chegava à sala de ensaio. Precisava criar estratégias. Um “círculo de atenção” que
evitasse minha dispersão.
Intercalava alguns exercícios, mas não encontrava uma linha pela qual pudesse
seguir, um ponto em que me apoiar. Foi aí que chamei pessoas para conduzir alguns
laboratórios de criação, dentre elas, a que mais permaneceu guiando alguns laboratórios foi
o Professor Elias de Lima Lopes (UFPB) que estava realizando o doutorado em Coimbra e
veio de passagem por Campinas para realizar coleta de dados para sua pesquisa.
Trabalhamos de agosto a outubro de 2017, em espaços desafiadores, lidando com diversas
variáveis, inicialmente, sem pretensões de chegar à personagem, investigando modos de
andar, trajetórias no espaço, dinâmicas nos planos, exercícios com objetos.
O contato dos pés com materiais variados e principalmente com a terra se
mostrou essencial para o trabalho. Após esses primeiros laboratórios, decidi retornar ao
Sertão, ao meu Sertão, já conhecido em minhas andanças, mas agora com outra perspectiva
de olhar. Fazia dois anos que eu não retornava à terrinha, mas me deu a sensação de que
pareciam dez anos. Perguntava-me: “onde eu estive todo esse tempo?” A sensação que
vivenciei foi de ser estrangeira, de ser de fora, de ter ficado excluída por um tempo.
Meu quarto já não era mais o mesmo, não encontrei no armário, roupas, nem
mesmo a cama, nenhum sentido de propriedade. Apenas o espaço e uma rede, um armário
cheio de coisas que não eram minhas. Minha mãe me trouxe uma trouxa, com os pertences,
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estavam em seu armário, guardadas como um relicário, empoeiradas do tempo, como se a
minha presença, mesmo no espaço, fosse algo que estivesse esquecido há tempos. Senti-me
como uma sombra no espaço que pouco a pouco vai reabitando e deixando forma e
contorno, quase como se eu já tivesse morrido e viesse fazer uma visita aos vivos.
E os vivos, eram elas, as mulheres da família, eu não, eu era uma sombra, que
vinha mais uma vez nutrir-me dessa seiva, alimentar-me dessa matéria, para retornar à
cidade grande, à vida corrida que eu levava, que me afastava de mim, da minha gente, da
própria sensação de existir. Foi um susto, um baque.
Passei a dormir na rede, durante um mês e meio. A comer o que tivesse, sem
luxo, sem excesso. Comi o que vem da terra, raízes e grãos em sua maioria. Nesse tempo,
refleti sobre os hábitos alimentares sertanejos, ao meu ver, são bem indígenas. Por
exemplo, a base da alimentação, na minha casa, no Sertão, é o milho com ele se faz o
cuscuz, o xerém, a canjica, a pamonha, o bolo, o mingau, a mandioca, que se come cozida,
assada, como farinha, faz-se também o pirão, engrossa-se o caldo do feijão.. Num sentido
metafórico, alimentar-me do que vinha da terra, do básico, fez-me sentir afundar no chão,
na medida em que, se eu sou o que como, então eu virei raiz e grão, criei um corpo grão,
um corpo macaxeira, isso me dava a sensação de estar forte, nutrida, pesada.
Fazíamos as refeições, geralmente sentadas pelos batentes, na minha família,
quase não usamos mesa, só mesmo para pôr as panelas em cima, ou quando é alguma data
festiva e vêm visitas, aí sentamos à mesa e comemos com garfo. O mais comum é minha
avó sentar-se no seu tamborete e nos sentarmos ao seu redor pelos batentes. Às vezes, ela
come com a mão, nós de colher. Então, era certo que duas vezes ao dia, pelo menos, eu
estaria de cócoras perto do chão. Quando vejo os vídeos dos ensaios, percebo que há
muitas partituras de movimento assim, no plano médio – baixo e não é que eu não pudesse
fazer tudo no plano alto, mas simplesmente porque não faz sentido, quando a vivência
física com o “campo” se deu nessa relação espacial e psicofísica.
A percepção do tempo, por exemplo, o tempo como um ente, era ensurdecedor
o silêncio que eu sentia ao meu redor. Na minha casa no Sertão, não tem internet, não pega
sinal de celular, não tem tv a cabo, todos os vizinhos ao redor já morreram, qualquer
possibilidade de escapismo e dispersão, esgotava-se. Eu tinha que forçosamente ouvir
aquele silêncio do tempo que não passava. De sentar-me no alpendre e ver as pessoas
passarem, de ver a barra no dia quebrar, uma sensação de espera constante, à espera do
tempo passar. Em alguns momentos, era uma espécie de calma, em que diante de não
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termos outras opções, conversávamos eu e minha mãe, horas a fio. Às vezes, apenas
ficávamos uma ao lado da outra, em silêncio, por horas, em outros momentos, a minha
vontade era de gritar, de espernear, de ligar o som bem alto, mas permanecia sentada,
ouvindo o silêncio, sentindo-o me devastar por dentro numa pressa interna que não se
externalizava.
Fui em busca de afundar raízes terra adentro, de deixar o sertão entrar e habitar
por traz das retinas, das meninas dos olhos, de estar porosa a tudo, desde os sons, ou
ausência deles, as cores, cheiros, texturas, técnicas de comer, de dormir, de sentar, de estar
no mundo e na vida, aos estados, sensações, emoções que viessem, aos espaços, das casas,
das feiras, das praças, roças, descampados e caatingas. Esta parte da vivência cotidiana faz
parte da criação poética, em que mesmo nas atividades da rotina, eu estava atenta,
estudando as sensações que me percorriam, as reflexões que esta vivência ia desenhando
no meu pensamento.
Nos percursos que fiz, chamou-me a atenção o labirinto de sensações que me
atravessavam todo sábado quando eu percorria a feira, as cores, cheiros, texturas que
inspiraram a criação das materialidades que compõem a cena. Eu sentia falta de algo que
fosse diferente da roupa de ensaio, ou de qualquer coisa que eu pudesse comprar numa loja
e vestir, algo que tivesse energia vital, vivo, como tudo ao meu redor.
Depois de ouvir minhas lamentações, assim como eu, minha mãe sonhou.
Sonhou com a personagem dizendo como queria o figurino. Conforme as indicações do
sonho, minha mãe teceu. Essa maneira curiosa como ela participou desse processo criativo
despertou o questionamento se Lua não seria mesmo uma assombração, que assombrou o
autor quando escreveu, a mim, quando li, veio em sonho, assombrar minha mãe? A
parceria com minha mãe continuou, após o meu retorno para Campinas, conforme
avançava nos ensaios, sentia falta de alguma coisa, comentava com ela, que pensava,
seguia sua intuição, tecia, sem que eu visse, nem adivinhasse nada, enviava-me pelo
correio. Foi assim que chegou a perneira do vaqueiro, também a roupa da velha.
O interessante é que justamente o primeiro figurino a ser feito foi o da
assombração, o qual usei em minhas experimentações num cemitério bizantino construído
em 1808, na Casa das Almas, na cidade de Triunfo-PE, um dos lugares onde Lampião se
escondeu das volantes da polícia, devido à posição estratégica da casa que fica na divisa
entre Pernambuco e Paraíba.
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Antes de ir à Triunfo e visitar o Museu do Cangaço e a Casa das Almas, sonhei
com uma espécie de cemitério por onde passavam muitas pessoas indo e vindo, quase
como se houvesse uma estação de trem dentro daquele lugar. Uma moça estava perdida e
me pedia informação, eu lhe dizia que não se preocupasse, pois estava no Museu das
Almas, todos ali eram velhos conhecidos, alguns já tinham tomado o trem, outros não.
Daqueles que viajaram, os retratos estavam ficando apagados, os que ainda se encontravam
ali, no entanto, tinham os retratos muito nítidos, pendurados no saguão principal do museu.
Dizia a moça que se houvesse algum parente entre eles ela poderia localizá-los nos retratos,
neles havia o número do quarto de cada um, mas ela procurava mesmo o trem, então, eu a
deixei na plataforma, ela subiu e partiu.
Eu fiquei por ali, sabia exatamente quem era quem, alguns pararam no tempo,
como se fossem estátuas vivas, tudo ao seu redor tinha parado também, como uma nuvem
que pairasse sobre eles. Esses eram sonâmbulos, não se podia acordá-los e respeitava-se o
seu sono eterno. Eu era uma espécie de zeladora nesse lugar, sentia-me em paz, mas queria
também partir no trem, eu não tinha os bilhetes, portanto não podia embarcar como
clandestina. Foi um sonho curioso, eu me lembrei com bastante nitidez da parede com os
retratos.
Quando estive em Triunfo e vi no mapa da cidade Casa das Almas senti que
precisava conhecer aquele lugar. Ao entrar no referido espaço, que era também um museu
da imigração holandesa na cidade, fui caminhando de casa a dentro, parei diante de uma
parede cheia de retratos, olhei todos aqueles rostos que me eram muito familiares, pois
pareciam os mesmos do sonho. Então, eu perguntei à dona da casa, Consuelo Timóteo,
herdeira do castelo, se poderia realizar algumas filmagens ali, expliquei do que se tratava,
ela consentiu. Quando finalizei o laboratório criativo, Consuelo me contou que nesse Sítio
houve um assassinato. A esposa havia mandado matar o marido, a alma do marido
assassinado teria perseguido seu tio na roça, dizendo que não se sentasse ali, a cerca de 200
metros de onde eu estava, pois era o local onde havia morrido. Entendi porque foi tão
importante passar por ali, lidar com essas narrativas que evocam o fantasmagórico assim
de tão perto.
A meu ver, o grande diferencial desse processo criativo passa por percepções
sutis, numa outra lógica de trabalho, o seu modo artesanal de fazer na construção, nas
relações interpessoais entre as partes envolvidas, mas de uma certa artesania muito
delicada, em que ao final de tudo, como eu posso dizer que eu criei isso sozinha? Se a
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personagem passeou por nossas cabeças, como se estivéssemos criando em rede? Como eu
posso dizer que o sucesso desse trabalho se deve apenas ao meu empenho, sem incluir essa
rede? Desde a minha prima, que registrou as experimentações, minha mãe que sonhou e se
pôs a tecer, meu pai, que fez comigo diversos trajetos nas brenhas, nos sítios, nas
madrugadas afora?
É um trabalho solo, sim, mas tudo que eu vi, vivi, imaginei, compartilhei até
agora, transborda para além de mim, irradia e é irradiado pelos afetos, encontros, vivências
com os materiais que compõem os detalhes dessa encenação, que entraram de ouvido
adentro, de retina adentro, de pele a dentro, de sonho a dentro, e que se encontra em
constante transformação.
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CAPÍTULO 1: DO PONTO DE VISTA DA ARTISTA
1.1 Sobre o fazer, a Filosofia do Guarnecer
Tomo emprestado do Boi do Maranhão o termo Guarnecer, relacionado a
nutrir, fortalecer, preparar para festejar. O Guarnecer da brincadeira do Boi do Maranhão
emerge como metáfora na pesquisa, a respeito do posicionamento como pesquisadora
frente às práticas com as quais estou me envolvendo nessa trajetória. A pesquisadora
Marianna Monteiro sobre o guarnecer, afirma que este:
Trata-se literalmente de acumular forças. (...) Ele relaciona-se à fogueira, onde
são aquecidos os instrumentos percussivos – os pandeirões e o tambor onça –,
em torno do qual a multidão vai se aglomerando aos poucos. (...) Em torno da
fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos instrumentos percussivos para
afiná-los, os brincantes se confraternizam. (...) No “guarnecer”, assim como em
outros momentos dessa festa, estabelecem-se tessituras relacionais, conviviais,
indissociáveis da expressão artística, caracterizando uma “tecnologia”
sofisticadíssima a serviço de uma arte da inter-relação entre as pessoas.
(MONTEIRO, 2013, pp.142-143)
Realizo, nesta pesquisa, uma adequação do conceito de guarnecer no Boi a uma
forma subjetiva e pessoal que adoto para a minha ética de relacionamento com a cultura
popular na minha prática teatral, com o Guarnecer, proponho uma metodologia de criação
inspirada nos encontros com a cultura popular. O intercâmbio com artistas da cultura
popular e/ou interessados em praticá-la me fez aquecer memórias corporais que têm dado
vida a essa personagem, nas suas qualidades de presença.
Introduzo, para tanto, o pensamento de Jorge Dubatti acerca da Filosofia do
Teatro, a fim de traçar uma linha de raciocínio em que a excepcionalidade que percebo
comum, tanto ao teatro, quanto à cultura popular, leva-me a experimentar momentos de
liminaridade. Nessa reflexão, busco entender o que faz com que o teatro seja teatro, o que
há em comum entre este e a cultura popular e de que forma ela pode apontar para um
treinamento que se dá na vida, no desenvolvimento do olhar de atriz, pesquisadora,
brincante, na prática mesmo desse fazer.
Jorge Dubatti (2017) propõe uma Filosofia do Teatro, um estudo ontológico que
compreende o teatro como um campo que pode falar por si, requerendo para isso o
reconhecimento de sua especificidade, sem precisar se justificar através de outros ramos do
conhecimento humano. O autor parte da reflexão teórica sobre a práxis. É assim que “A
filosofia do teatro nasce da necessidade de questionar e superar as definições oferecidas
31
nos dicionários e manuais de teatrologia mais utilizados.” (P.26) Normalmente, esses
limitam o teatro à escrita dramatúrgica de um autor, espaço físico, à peça teatral, ou a
determinadas vanguardas teatrais. Nas palaras de Dubatti:
A filosofia do teatro afirma que ele é um acontecimento (...) algo que acontece e
que se dá a construção de sentido. Um acontecimento que produz entes em seu
acontecer, vinculado à cultura vigente, à presença aurática dos corpos. (...) O
teatro como acontecimento, é muito mais que o conjunto das práticas discursivas
de um sistema linguístico; ele exerce a estrutura de signos verbais e não verbais,
o texto, a cadeia de significantes aos quais é reduzido para uma suposta
compreensão semiótica. Assim nem tudo é reduzido a linguagem. (Dubatti, 2017,
p.27)
Para esse pensador, o teatro, enquanto acontecimento, requer a instauração de
uma zona de experiência composta por três subacontecimentos que interagem entre si: a
poiesis, o convívio e a expectação. Poiesis conforme a Poética de Aristóteles está
relacionada à fabricação de artefatos característicos do ramo artístico, o que abarca
inicialmente a poesia e por extensão a literatura e consequentemente a arte.
Sendo assim, o teatro como um todo, no instante mesmo em que sucede,
instaura um acontecimento poiético no qual poiesis, convívio e expectação estabelecem
uma obra autônoma, que fala por si a cada vez. Cada acontecimento é único, carecendo
dessa tríade para instaurar a experiência, em que “a materialização de uma performance
cultural implica processos sensoriais e emocionais que ocorrem para/nos seus observadores
(não existe performance sem público, ou seja, sem uma audiência que lhe assista e legitime)”
(Vianna & Teixeira, 2008, p.48). É nesse sentido que “há uma poiesis produtiva, gerada
pelo trabalho dos artistas e outra receptiva. Ambas se estimulam e se fundem no convívio
resultando em uma poiesis convivial”. (DUBATTI, 2017, p.37).
Pensar o teatro como acontecimento autopoiético não significa que a obra
artística seja instantânea, a intervenção humana, embora - idealize e execute a obra, esta,
ao final, responde por si mesma, devido à sua natureza singular. Mesmo em artistas que
tenham uma assinatura, ou construam formas similares de uma obra para outra, verifica-se
uma irrepetibilidade em decorrência das pequenas variações, principalmente quando se
trata de algo que envolve poiesis, convívio e expectação, isso é o que diferencia o teatro e
as performances culturais de outras composições artísticas como o cinema, o vídeo-arte, o
vídeo-dança, em que a geração de poiesis é anterior ao contato do público com a obra, sem
que criadores e expectadores convivam no momento de compartilhamento da obra.
Nas performances culturais, por sua vez, instala-se uma comunidade provisória
32
na qual os sujeitos se encontram em situação de convívio, dessa forma, a apreensão do
acontecimento se dá num intercâmbio de subjetividades, em que a comunicação
estabelecida entre estas vai gerar uma poiesis que é fruto do encontro, da experiência única
e intrasferível.
Na poiesis convivial, as heterogeneidades dos sujeitos, de alguma maneira,
ajudam a provisoriamente sustentar a experiência, na medida em que estas comungam em
situação de convívio. Um ponto de intersecção surge dentre a poiesis produtiva e receptiva,
em que é possível um diálogo que vai além da linguagem falada, mas é perceptível por
outras vias, uma via sensível, que dilui momentaneamente as diferenças na proporção em
que compõe um corpo coletivo, uma persona social. Assim,
(...) na experiência comunicacional, intervêm processos de interlocução e de
interação que criam, alimentam e restabelecem os laços e a sociabilidade entre os
indivíduos e grupos sociais que partilham os mesmos quadros de experiência e
identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passo comum. (A.D.
RODRIGUES apud SANTOS, 2014, p.316)
Acerca do convívio, Dubatti chama a atenção para a possibilidade de existir
convívio sem poiesis e sem expectação, por exemplo, num jantar em família. Da mesma
forma, também pode haver teatralidade sem teatro, pois esta se faz presente no
nosso cotidiano e nos rituais de passagem na vida das sociedades. Convívio e teatralidade,
de alguma forma, estão presentes nestes rituais cotidianos enquanto episódios que
estabelecem um espaço tempo de liminaridade.
Schechner amplia o sentido da palavra límen, inicialmente um termo da
arquitetura, segundo o qual um limiar é um espaço intermediário que liga dois espaços,
como uma via de acesso, um corredor ou passagem. Nesse sentido, ao tratar das
performances culturais, tanto as rituais como estéticas, compreendendo como límen um
espaço sutil, que é expandido de forma simbólica e conceitual.
Fazendo um paralelo com o teatro, podemos entender que “um espaço de teatro
vazio é liminar, aberto a todos os tipos de possibilidades – espaço que por meio da
performance poderia tornar-se qualquer lugar”. Assim como “o terreiro de dança de uma
aldeia africana e a construção temporária de um biombo para a wayang kulit (teatro de
sombra) javanesa são ambos, espaços liminares, preparados para serem habitados por
realidades imaginadas) (SCHECHNER, 2012, p. 65).
Ileana Dieguez, concorda que a “el arte y el ritual son generados em zonas de
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liminalidad donde rigen processos de mutación, de crisis y importantes câmbios”. (Turner
apud Dieguez, 2011, p.32) e por sua vez, invoca a palavra teatralidade, não como sinônimo
de teatro, mas – “noción que busca expressar la configuración escénica de imaginários
sociales, la resignificación de prácticas representacionales em el espacio cotidiano”
(DIEGUEZ, 2011, p.58).
Victor Turner (Turner, 2012), ao estudar situações limítrofes nas quais
acontece a instauração de uma communitas, em que é possível uma cumplicidade coletiva,
ou seja, uma relação sem mediação entre os sujeitos, que por se colocarem
espontaneamente em igualdade é que aparecem mais ainda as distinções individuais, acaba
dando pistas sobre os espaços onde hoje, em nossa sociedade, é possível ainda vivenciar
algum sentimento de pertencimento a uma comunidade, mesmo que temporário.
Nas sociedades contemporâneas, os indivíduos podem vivenciar estados
temporários de comunnitas no lazer, mas também por meio da arte. Richard Schechner
distingue a arte de um modo interessante, para ele “não existe arte onde tudo é
geneticamente determinado, onde não há aprendizagem, onde nenhuma improvisação é
possível, onde o erro e/ou vacilo não pode (m) ocorrer”. (SCHECHNER, 2012, p.58).
É curioso observar que existem práticas humanas que não estão fixas nessas
categorias, mas de certa forma permeiam as fronteiras entre a arte e a religiosidade no
campo da cultura e que, por vezes, fazem parte do calendário de algumas comunidades no
Brasil. Mesmo os limites entre as artes vêm se diluindo de forma que as contaminações dos
gêneros artísticos criam obras híbridas, situadas no espaço do entre, nesse sentido, trata-se
do “reconhecimento da teatralidade como um campo expandido” (DIEGUEZ, 2014, p.128)
que interfere na produção artística a tal ponto que “tornou-se uma das características mais
relevantes da arte contemporânea” (DIEGUEZ, 2014, p.128).
A implicação disso é que a teatralidade, como campo expandido, permite-nos
reconhecer a teatralidade fora do contexto específico da cena, mas no comportamento
humano cotidiano, nos ajuntamentos de gente, nas festividades populares, nos comícios e
protestos, que, muitas vezes, criam “communitas metafóricas en las que participan
decisivamente el linguaje poético y la dimension simbólica” (DIEGUEZ, 2011, p.34),
dessa forma, as fissuras donde emerge a arte contemporânea se espraiam nos territórios de
domínio público.
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Illeana, ao observar a liminaridade, tanto em práticas cênicas, quanto nas
representações sociais, vincula esta a estados poéticos e metafóricos, na medida em que
cria communitas, chama a atenção para aspectos sociais. Communitas, conforme
empregado por Victor Turner, (em que as hierarquias são suspensas e constituem-se relações
mais intuitivas, espontâneas e de igualdade), tornando-se um espaço de convívio, onde a
experiência se dá de maneira direta e não intermediada.
Algo peculiar de se observar, nesse sentido, abrange a conjuntura da cultura
popular brasileira, em que a communitas, gerada pelo encontro, acarreta em experiência no
espaço de tempo em que duram as rodas, os festejos, os cortejos, as rezas. A incrível
persistência da cultura popular em existir, durar, numa sociedade de consumo rápido como
a nossa, é uma militância silenciosa, que diante do esvaziamento de sentido da
contemporaneidade e com a globalização atingindo os interiores mais remotos do Brasil,
encontra espaço e cai no gosto das massas. Assim:
(...) a cultura popular deixa de estar acantonada numa geografia restritiva e
encontra um palco multitudinário, graças às grandes arenas, como os enormes
estádios e as vastas casas de espetáculo e de diversão graças aos efeitos
ubiquitários trazidos por uma aparelhagem tecnotrônica multiplicadora. Sob
certos aspectos, a cultura popular assume uma revanche sobre a cultura de
massas, constitucionalmente destinada a sufocá-la. (SANTOS, 2014, p.320)
Uma questão importante é que os shows de cultura popular, para que possam
agradar às massas, às vezes, exigem um tratamento outro, as manifestações passam por
uma edição a fim de que possam ser apresentadas nos palcos dos estádios e afins.
Exemplos dessa edição são as quadrilhas juninas, em Campina Grande, na Paraíba, e o Boi
Caprichoso e Garantido, em Parintins, no Amazonas, ambos vêm se estilizando a cada ano,
tomando trejeitos de escola de samba. A criação de quadrilódromos, bumbódromos e afins
requer das manifestações um trato mais “espetacular” para serem apresentadas para grandes
multidões, o que leva os fazedores a se empenharem, a cada ano, na confecção de
figurinos e adereços cada vez mais chamativos, assim como no desenvolvimento de
narrativas mais envolventes.
Mesmo ao lidar com matrizes que reivindicam sua permanência como
resistência à globalização e que buscam se diferenciar, na tentativa de escapar do
consumismo cultural, não nos esqueçamos de que as ações de uma comunidade acabam
tendo projeções que se espraiam para além dos limites geográficos. Não se pode isolar uma
manifestação do seu contexto, pretendendo enxergá-la estática no tempo e espaço. As
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performances culturais são moventes e se reinventam, conforme se dá a transmissão entre
seus fazedores, uma vez que elas se reciclam devido à impermanência mesma dos seres
humanos que a geraram. Na medida em que as gerações anteriores vão morrendo, cabe às
vindouras a continuidade, mesmo que se preze por uma fidelidade, haverá, em alguma
instância, uma brecha de inventividade, como consequência, a cultura dura mais do que os
corpos que a praticam.
Como artista, vejo na cultura popular um celeiro criativo muito rico, no qual
venho embarcando mais profissionalmente desde 2009, quando comecei a participar de
grupos parafolclóricos, onde busco exercitar a prática de treinamento de presença e relação
com o público. Cito aqui um exemplo de intercâmbio com a cultura popular, em que atuo
como participante desde 2015, trata-se das Caixeiras das nascentes, grupo de percussão
formado por mulheres. Tal conjunto têm a música como forma de partilha e celebração.
Fundado em 2009 em Campinas/SP, a partir do encontro da artista, arte- educadora e artesã
de Caixa do Divino, Cristina Bueno, com pessoas que tinham o interesse em pesquisar a
cultura brasileira e a Caixa do Divino.
Este grupo busca fazer uma releitura das manifestações populares, através da
memória das integrantes, da prática, aperfeiçoamento e difusão da arte das Caixas do
Divino, tambor pequeno, originário da Festa do Divino do Maranhão. As principais fontes de
pesquisa e inspiração do grupo, são as Caixeiras do Maranhão, as Congadas de Minas e
São Paulo, não só no sentido musical, como também na missão de cantar e tocar para
saudar as festas, as casas, as pessoas, os alimentos e os santos.
A prática de ações da religiosidade e brincadeiras populares acontece no
formato de curso, em que as pessoas interessadas realizam sob a orientação de Cristina
Bueno visando ao aprendizado de toques, cantos e danças do repertório sagrado e profano
de manifestações populares, tais como os cantos de celebração da Festa do Divino Espírito
Santo e a brincadeira do Carimbó das Caixeiras. A dinâmica do grupo varia entre prática
interna e apresentações públicas, sempre com o intuito de partilhar e divulgar saberes
relativos à cultura popular de raízes brasileira: seus cantos, ritmos, danças e brincadeiras de
prazer e entretenimento.
Considero a minha atuação nas Caixeiras das nascentes como parte do
processo criativo, sendo fundamental para o meu guarnecer de atriz. Tal grupo tem sido
uma ponte no meu trabalho para me aproximar de agremiações de cultura popular que se
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reúnem em ocasiões específicas no calendário. Como a Festa do Divino Espírito Santo, em
São Luís do Paraitinga, em que diversos conjuntos de Congada, Moçambique e Vilão se
apresentam e homenageiam o Espírito Santo em cortejos pela cidade. Apresentando-me
como Caixeira, nessas ocasiões, sinto partilhar de um universo simbólico que aquece
memórias, guarnecendo o corpo de estados que surgem através dessas festas e celebrações.
Eloísa Domenici (2009) no seu artigo A pesquisa das danças populares
brasileiras: questões epistemológicas para as artes cênicas, aponta para uma necessidade
de se pensar a produção artística brasileira não mais nos moldes canônicos eurocêntricos,
mas atentando ao léxico próprio das danças populares brasileiras, que tem mais a ver com
estados tônicos do corpo, do que com a noção de coreografia. Nas danças brasileiras, as
dinâmicas corporais são regidas por metáforas: “O aprendizado dos movimentos não está
dissociado das metáforas associadas e se dá simultaneamente, ou seja, a significação e a
técnica emergem no corpo de maneira concomitante e não-dissociada” (DOMENICI, 2009,
p.5). Nesse sentido, acho primordial criar epistemologias próprias para lidar com esse
campo tão extenso e complexo que é a cultura popular, inicio daquilo que me afeta no
modo como se dá a transmissão, o aprendizado e a prática do seu fazer.
Percebo com a experiência nas Caixeiras das Nascentes, a criação de um
público específico, isso me interessa do ponto de vista de artista e admiradora da cultura
popular para pensar inclusive o meu próprio fazer artístico, em que a atuação do grupo nem
se destina a grandes shows de reprodução da cultura popular, nem tampouco se define
como grupo de raiz, mas talvez um espaço entre, um límen, em que se exercita a memória
de encontros com mestres e mestras.
Posso apreender que emergem no fazer artístico das Caixeiras das Nascentes,
práticas mestiças, pois “como a modernização e a democratização abarcam uma pequena
minoria, é possível formar mercados simbólicos em que podem crescer campos culturais
autônomos” (GARCIA CANCLINI, 2006, p.68). Em minha perspectiva, o grupo constrói,
no campo da cultura, uma fenda que demarca um mercado simbólico, por assim dizer
autônomo, trata-se de uma situação bem específica, em que o grupo, apesar da influência na
cultura popular, reinventa-se, misturando tradições com liberdade criativa, criando suas
próprias tradições.
Para a reflexão que venho traçando, faz-se importante levar em consideração o
conceito de performance no contexto das manifestações populares:
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Em sendo um conceito elástico, ele se refere a um sentido relativo ao
acontecimento, ao ato deliberado de vivenciar e comunicar, ao aqui e agora das
ações humanas, com toda sua carga expressiva e singular de identidades, o que é,
em última instância, o lócus por excelência dessas políticas: o acontecimento do
fato cultural. (VIANNA & TEIXEIRA, 2008, p.42)
Ao relacionar o conceito de performance com acontecimento e este com o fato
cultural, Vianna e Teixeira apontam aproximações em relação ao pensamento que pretendo
desenvolver aqui, no que diz respeito ao ponto de vista sobre a cultura popular em que há
convívio, o qual pode gerar situações de liminaridade e communitas, enquanto instaura um
tempo espaço outro, diferente do cotidiano, muitas vezes, na fronteira entre sagrado e
profano. A importância das manifestações populares, como performances culturais, a meu
ver, é devido ao seu caráter efêmero, o que torna difícil apreender a sua dimensão
imaterial, principalmente porque as tradições, assim como a cultura, são reinventadas no
ato da transmissão e talvez por isso o seu aspecto de originalidade e autenticidade, pois se
trata de um campo simbólico que tem estreita relação com o presente, cuja importância está
no ato de fazer, conforme coloca Vianna e Teixeira:
Um campo de possibilidades simbólicas de uma cultura, circunscrita
socialmente, a qual é também dinâmica e se transforma. Assim, cabe retornar ao
conceito benjaminiano de autenticidade, relacionado ao que acontece aqui e
agora, algo fugaz, intangível e irreproduzível, que só existe em ações humanas,
ou seja, se seres humanos performarem fatos culturais. (VIANNA &
TEIXEIRA,2008, p.48).
Quando Jorge Dubatti enumera as características de um acontecimento
excepcional, “o excepcional como algo prodigioso, que se destaca do mais comum e batido
e oferece uma experiência portentosa e transformadora” (DUBATTI, 2017, p.161), embora
tal autor se refira ao teatro como acontecimento, ao que o torna realmente marcante,
memorável, percebo que vivenciei evivencio até hoje tais sentimentos, quando estou
protagonizando, junto a um grupo de pessoas, as ações da cultura popular, em roda, ou
quando observando e sendo inebriada pela experiência.
Na perspectiva da minha experiência com as manifestações populares, acredito
que elas criam linguagens poéticas e simbólicas as quais me dão a impressão daquilo que
Dubatti enumera como qualidades da excepcionalidade do acontecimento, desse modo, a
minha experiência artística é atravessada pela cultura popular, cultura estética que nutre
meu imaginário e que constitui a origem do meu encontro com a “excepcionalidade” do
acontecimento artístico.
Por exemplo, uma das primeiras lembranças de infância, precisamente aos
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cinco anos de idade e de que ainda trago vivas as sensações físicas desse encontro, foi
assistindo ao Bumba meu Boi em Pernambuco. Lembro-me bem do Jaraguá: a queixada de
um jumento batendo o maxilar, coberto com um pano de chita, por baixo, alguém conduzia
segurando um cabo de vassoura, do qual puxava um fio que fazia a queixada bater uma
contra a outra. Foi a primeira assombração verdadeira para o imaginário infantil.
As procissões de São Sebastião também ficaram vivas na memória. Era um
show de horror, o santo em tamanho real, amarrado em um tronco de árvore, em volta dele,
vários fogos de artificio que soltavam fogo, acompanhado de ladainhas, enquanto tiravam
as flechas do corpo do santo. Tenho poucas lembranças tão vivas, essas, as únicas que
ficaram da primeira infância, foram suficientes para me impressionar até hoje. Uma vez
que na cidade de interior o acesso à produção artística se dava principalmente pela
religiosidade e brincadeiras do circuito junino e carnavalesco, participei ativamente desses
ciclos e neles experienciei momentos de excepcionalidade que se repetiriam em outros
encontros.
Essa percepção se anuncia tanto durante a experiência na forma como guardei
na memória o que foi vivido pelos sentidos, quanto no sentimento de communitas. Dentre
as 17 características do acontecimento excepcional, mencionadas por Dubatti, (2017) faço
referência àquelas que normalmente experimento nessas ocasiões:inexorabilidade do
acontecimento; participação no sagrado; estimulação emocional e intelectual; oportunidade
existencial; percepção temporal alterada; incapturabilidade do acontecimento; sentimento
de altruísmo; contágio; construção autobiográfica; testemunho; sentimento de gratidão;
admiração artística.
A inexorabilidade é possível de ser sentida por meio da observação ou
participação ativa, quando presenciamos um sentimento de completude diante do
acontecimento. O que de certa forma nos transporta para um tempo-espaço ritual, que
conecta ao sagrado no qual os próprios sujeitos fazedores e plateia têm acesso
compartilhado. Na medida em que revolve as emoções e o intelecto, faz com que entremos
num nível de percepção e concentração aguçada, capaz de nos deslocar das preocupações
corriqueiras. Nas palavras de Dubatti, o acontecimento excepcional produz intensidade de
percepção, “captura a atenção (...), agita a memória e os sentimentos, promove emoções,
(...) consegue tamanho envolvimento que faz com que nos concentremos na zona do
acontecimento e nos tira do mundo”. (DUBATTI, 2017, p.167).
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Daí surge o sentimento de sermos privilegiados em ter acesso a esse terreno da
cultura popular, inclusivo, democrático. Nas performances culturais, verifica-se a
pluralidade de linguagens, as estratégias técnicas, estéticas e políticas, o espectador pode
ter a sensação de que os olhos da alma se enchem de vida e colorem a existência. Mesmo
que momentaneamente, elas configuram um momento de respiro na sociedade
contemporânea tão tumultuada, que de tão “simples”, tais performances através de outras
tecnologias, trazem de volta para o corpo, para o tempo presente. É quando surgem
percepções do tipo: não poderia estar arrumando nada melhor para fazer, por que seria uma
perda para mim mesma se eu não estivesse aqui.
A noção de tempo fica alterada, pois o acontecimento parece instaurar um
tempo próprio, altera a “percepção subjetiva do tempo real”, de alguma forma, transporta
para outro tempo. É comum o sentimento de que “poderia passar a noite ali, de que não
sentiria o tempo passar, aproveitaria cada instante, sem me preocupar com as obrigações da
vida cotidiana, sem sentir-me tomada pelo cansaço”.
Falar sobre o acontecimento, descrevê-lo para alguém, parece insuficiente
diante da complexidade que o envolve, é como se o relato diminuísse a experiência e
mesmo a filmagem sobre, já não comunica de fato o que é a sensação de estar lá e
vivenciar com os sentidos. “Adquirimos consciência da nossa impossibilidade de reter a
cultura vivente como vivente, de que o desejo de capturar o incapturável é absurdo.
Quanto maior a
Inexorabilidade, maior o sentimento de perda” (DUBATTI, 2017, p.169).
Motivada por isso, passo a recomendar aos outros para que possam vivenciar por si mesmos.
O contágio gerado pelo acontecimento, muda o estado tônico do corpo e o psíquico,
trazendo outras percepções, alterando também o humor e provocando o desejo de criar
artisticamente, de gerar poiesis.
Ao rever minha própria autobiografia, uma grande parte, ou a maioria dos
acontecimentos excepcionais, vêm sempre permeados pela cultura popular. Quando
participo de rodas de Tambor de Crioula, por exemplo, sinto-me transportada para outro
tempo, como que fosse entrando na terra, desenhando espirais de terra a dentro, como uma
broca até encontrar com os ancestrais no corpo, pelas raízes. Como numa meditação ativa,
não vejo o tempo passar e perco essa dimensão da duração. Esse outro tempo em que
encontro com os ancestrais e em que trago essas energias para dançarem na roda com as
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outras coreiras, faz-me permanecer num estado de alegria, em que continuo cantando,
dançando, vibrando, depois que acaba a roda, num estado interno que permanece pulsando.
Vivenciar esse estado, no corpo, faz-me estar viva na sala de ensaio, em que a dança e o
canto fazem parte do meu aquecimento, no sentido de uma técnica energética e de reviver a
lembrança do encontro.
A lembrança fazendo um convite a revisitar essas memórias inscritas no corpo.
O sentimento de viver misturado com a necessidade de transmitir o testemunho sobre os
contatos vivenciados com essas práticas, através dos sentidos, levam-me a ser grata pelas
oportunidades de estar com mestras, mestres, fazedores e brincantes nesse percurso.
Consequentemente, admiração pela resiliência que estes demonstram, tais
como mestre Júlio do Moçambique de Fagundes-MG, que tive o prazer de conhecer em
2016, quando participei, como Caixeira, da Festa de São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário. Mestre Júlio, mesmo num contexto de muita pobreza, fez uma promessa de sete
anos para alimentar os grupos de Congada e Moçambique que se reúnem anualmente em
Fagundes para comemorar a Festa. Nós fomos privilegiadas de participar do lado de dentro
da festa, de partilhar desse alimento, de tocarmos junto com os grupos no cortejo pela cidade
e do desafio de duração (a festa durou aproximadamente 12 horas nas quais
acompanhamos todos os cortejos).
Há ainda o grupo de Bacamarteiros São João da Roça de Carnaíba e Quixaba-
PE, que representam uma tradição de 200 anos no Sertão pernambucano. Com a proibição
do porte de armas, essa tradição ficou ameaçada de continuar, o grupo precisou recorrer à
promotoria de justiça para se organizar, conforme as burocracias. Hoje, todas as armas do
grupo têm registro e a cada apresentação é redigido um ofício para o regimento policial da
cidade, autorizando as “Salvas de Tiros”. O grupo regulamentado pela lei tem orgulho de
exibir os papéis, mas foi preciso uma intervenção de fora, reconhecendo a tradição para
que eles não fossem autuados como portadores ilegais de armas e tivessem suas atividades
proibidas pelo Estado. Alguém de fora do contexto da manifestação precisou dizer que
aquilo era legítimo para que os próprios fazedores pudessem exercer suas práticas. A
habilidade em se adaptar às mudanças determinou a resistência do grupo.
Nesse sentido, o engajamento da cultura popular na contemporaneidade aponta
para uma inserção que tanto é local como glocal, conforme Milton Santos:
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A cultura popular tem raízes na terra onde se vive, simboliza o homem e seu
entorno, encara a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar e de ali
obter a continuidade, por meio da mudança. Seu quadro e seu limite são as
relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu
alcance é o mundo. (SANTOS, 2014, p.327).
Diante da globalização atual, Milton Santos defende que a perspectiva local
acaba tendo uma projeção maior mesmo nas manifestações culturais mais remotas, seja por
intermédio da mídia, internet ou ainda pela busca do consumo cultural exótico. Nesse
sentido, o local é também global, tornando-se glocal. Seja ao vivo ou in vitro como diz
Dubatti, a projeção da cultura popular nos palcos internacionais promove o acesso e
reconhecimento de práticas que embora editadas para caber nos limites do palco, do vídeo,
do documentário, mesmo esta dissertação, podem, quem sabe, acender o interesse e
promover o contágio levando os indivíduos a loco.
Essa tem sido uma busca constante: o encontro em espaços públicos, na rua, no
terreiro, na praça, em sítio sempre que posso. São nesses encontros com a cultura popular
que venho desenvolvendo um modo de estar na vida e na arte que reúne habilidades de
cantar, dançar, tocar, rezar e festejar ao mesmo tempo, em que o sagrado não é destituído de
corpo e de alegria, assim como o profano tem, em si, uma dimensão de ligação com o
sagrado.
Assim, o treinamento, que envolve o desenvolvimento de uma presença e a
relação com o público, vem principalmente da relação com as brincadeiras e devoção
ancestrais, corporeidades, cantos, habilidades comunicacionais que vêm antes da cena
teatral. Embora haja pontos de intersecção com o fazer teatral em que se destacam a
teatralidade, a linguagem poética, a dimensão simbólica dessas práticas, elas não cabem na
definição de teatro, porque transbordam as molduras do conceito.
No dicionário, guarnecer é “prover do necessário, munir”, mas também
“enfeitar” e “fortalecer”. Aqui, posso definir tal vocábulo como a necessidade de manter a
terra firme sob meus pés, além de guardar no corpo as memórias, de aquecê-las, leva-me a
adquirir vivências, nas quais há cultura popular para fornecê-las ao imaginário, para criar
relações com os grupos e pessoas e, consequentemente, com a cidade, que deixa de ser
cenário, na medida em que é vivida pelos sentidos, constituindo um saber subjetivo,
afetivo, lúdico, empírico.
Na busca por criar conexões com as manifestações populares regionais, da
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minha terra de origem, em terras campineiras, deparei-me com outras que não conhecia e
como se eu fosse muda de planta, que pega de galho, procurei formas de adentrar as raízes
na terra por onde passo. Experimento uma situação de migrante a qual favorece trocas
culturais, ao passo que determina minha permanência no Sudeste. Sobre a situação dos
migrantes, Milton Santos (2006) coloca que a necessidade adaptativa em nova residência é
imprescindível para novas experiências, uma vez que a memória das experiências vividas
deixa de fazer sentido, pois como estão vinculadas a outro meio, criam um embate entre o
“tempo da ação e o tempo da memória” e sem utilidade para o cotidiano os migrantes se
veem obrigados a esquecer, mas,
cabe-lhes o privilégio de não utilizar de maneira pragmática e passiva o prático-
inerte (vindo de outros lugares) de que são portadores. Ultrapassando um
primeiro momento de espanto e atordoamento, o espírito alerta se refaz,
reformulando a ideia de futuro, a partir do entendimento da nova realidade que o
cerca. O entorno vivido é lugar de troca (...) (SANTOS, 2006, p. 228).
Dessa forma, um pouco de lá ainda permanece junto com o daqui,
transformando-se numa identidade movente, em fluxo contínuo, afetada pelas trocas, pelo
convívio, pelas situações de liminaridade, promovidos nas brincadeiras e rituais sagrados,
guarnecendo o corpo daquilo que ele precisa para se sentir vivo, enraizado, pulsante, para
dar sentido às trajetórias, adaptações e mudanças.
O treinamento na cultura popular tem a ver com a experiência de fazer e
vivenciar. Apreende-se o seu jeito de fazer em experiência, em “convívio”. As
características do acontecimento excepcional enumeradas por Dubatti, sinto-as, na
maioria das vezes, nas experiências com a cultura popular como participante dessas
práticas em situações de convívio.
No entanto, um problema que enfrento, ao retomar o trabalho em sala de
ensaio, é a frequente sensação de vazio, devido à intransponibilidade das experiências, a
impossibilidade de instaurar na cena as memórias tais como se deram. Por outro lado, as
experiências na cultura popular vão deixando traços no meu fazer artístico que criam, por
assim dizer, um modo de estar, quase uma filosofia de vida, uma filosofia do guarnecer.
A Filosofia do Guarnecer, na perspectiva desta pesquisa, tem a ver com a
vivência prática, com as manifestações populares em oportunidades de reencontro com
aquelas que já trago no corpo, mas também de descoberta de outras, a partir do local
43
migratório, onde se constrói a identidade de por enquanto. Procuro participar do máximo de
situações que me permitam o intercâmbio com pessoas, grupos e comunidades. Conquisto,
assim, a experiência que o acontecimento gera, além de guarnecer o corpo-memória-
imaginário-raízes de atriz, num ponto de vista proximal, íntimo, afetivo e participativo para
“acordar o batalhão” dentro da atriz e fazer voltar ao espaço mítico dantes.
Portanto, a Filosofia do Guarnecer desponta como uma alternativa a outras
formas de treinamento, desmitificando a condição da cultura popular como algo
acantonado, numa geografia remota, apenas observável do ponto de vista folclórico,
exótico e patrimonializável. Ademais, tal filosofia deixa de prestar ao recorte de passos
simplesmente, mas passa a ser encarada como campo vivo em situação de convívio. Nesse
sentido, guarnecer é um aquecer as memórias que servirão de transformação, transporte e
treinamento subjetivo da pessoa da atriz.
1.2 O mito do corpo-seco: a seca como metáfora na poética da cena
Imagem 1: Imersão em campo, chã da serra, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de
Afogados da Ingazeira-PE, dezembro de 2017. Arquivo pessoal da autora.
Há nessa criação, um forte cruzamento entre os relatos orais – recuperados da
memória afetiva das andanças no Sertão, durante a imersão sensorial, com as referências
literárias do conto que inspiraram o trabalho de atriz – atrelado à representação de um
feminino mítico.
Levo ao conhecimento do leitor um trecho da entrevista concedida pelo autor
do conto Lua Cambará, Ronaldo Correia Brito à pesquisadora Nathalia Perry Clark, na
Universidade de Brasília em 09/12/2010, contida nos anexos da dissertação de mestrado de
Nathalia Clark, intitulada Faca- face de um feminino sertanejo: impressões de um
regionalismo contemporâneo em Ronaldo Correia Brito, defendida em 2011 na
44
Universidade de Brasília.
As informações dadas pelo autor, nessa entrevista, foram relevantes para a
minha pesquisa de criação de personagem, norteando questionamentos, como, por
exemplo: O que vem a ser este “mito do corpo seco”? De onde vem? Qual sua ligação com
o conto em questão? Mas, principalmente, o que este mito pode provocar no trabalho de
atriz enquanto busca de estados, qualidades de movimentos, ou mesmo metáforas na
cenografia, figurino, maquiagem?
Eu- Queria que você falasse um pouco sobre a disposição da ordem do livro.
Para mim, Lua Cambará vem como um fechamento mesmo, uma síntese. Ela
vem como uma guerreira, como uma heroína mítica do sertão, como uma
justiceira, mas traz consigo uma fragilidade feminina, sempre presente, ela sofre
de amor... E queria que você falasse sobre a abertura do livro, com “A espera da
volante”, com a personagem que aparece em Galileia também, e o fechamento
com Lua Cambará.
RC- Lua Cambará é a primeira coisa que eu escrevi na vida, meu primeiro
conto. Isso foi em 1970, o que significa que publiquei um conto com 33 anos de
escrita.
Eu- O conto então ficou penando como ela, né...
RC- Sim e eu também... Eu escutei essa história contada inúmeras vezes por meu
pai. É uma história da mitologia sertaneja. É o mito do corpo seco, história de
uma personagem escravocrata do sertão dos Inhamuns. Não posso dizer seu
nome... É uma história que certamente se mistura à mitologia universal. Era uma
escravocrata cruel, perversa, e que contam que quando foi levada para o enterro
de seu corpo, aparecem dois diabos, demônios montados a cavalo e pedem para
ajudar a transportar a morta e desaparecem com ela. Então, as pessoas assustadas
enterram no lugar da morta um tronco de madeira. Então, na verdade, são mitos
arcaíssimos, que são incorporados à mitologia local. A alma penada de Lua
Cambará começa a ficar aparecendo aos tropeiros que se arrancham debaixo de
árvores, às pessoas que à noite estão de viagem. Eu começo o conto dizendo:
“meu pai jurou que viu, é muito forte, se meu pai jurou que viu então não há o
que duvidar, mesmo as pessoas dizendo que ela é mal-assombrada. O mito existe
e Lua Cambará existe, e me persegue até hoje. Tanto que já virou uma ópera-
balé, já virou disco, dois filmes, acabou de ser encenada, e é tão forte, tão real, tão
palpável. (CLARK, 2011, p. 195).
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Imagens 2,3,4: Laboratório de personagem, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, município de
Afogados da Ingazeira-PE, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.
O Corpo Seco é uma lenda que no Sertão se confunde nos relatos orais das
aparições de lobisomens ou de envultados. No dicionário Michaelis, a expressão corpo-
seco aparece descrita da seguinte forma: “Espírito esquelético que vaga pelas matas;
Mulher que definha por, supostamente, ter mantido relação sexual com o diabo”.
Nesse mito, pessoas perversas, principalmente com a mãe, ao morrer, tinham
suas almas recusadas por Deus e pelas piores almas do inferno, ao serem depostos na terra,
eram cuspidas por ela. Os cadáveres, que mais pareciam troncos de árvores retorcidos
passavam a assustar os vivos com suas faces descarnadas. Para tornarem a forma humana
habitual, precisavam sugar o sangue dos vivos, espreitando-os em caminhos ermos,
debaixo de árvores, em lugares desabitados. O mito sugere uma advertência, moralizante,
disciplinatória, àqueles que agiam com perversidade para com seus semelhantes,
principalmente a autoridade primordial da mãe, quem sabe como forma de respeitar uma
ordem matriarcal, nem que seja pela imposição do medo da condenação eterna. A
afirmação do autor, de que o mito existe, coloca o conto num patamar de verdade, uma
verdade feita de sujeitos e suas subjetividades, não procura provar que isso se deu de tal
forma, ao contrário, apela à palavra, este verbo jurado, a sua incontestabilidade, algo típico
das narrativas míticas, segundo Mircea Eliade,
O mito define-se pela sua forma de ser: não se deixa abarcar enquanto mito, a
não ser na medida em que revela que qualquer coisa se manifestou plenamente,
sendo esta manifestação, por sua vez, criadora e exemplar, já que também, na
verdade, funda uma estrutura, do real mais que um comportamento humano. Um
mito narra sempre que qualquer coisa se passou realmente, que um
acontecimento teve lugar no sentido estrito da palavra quer se trate da criação do
Mundo, da mais insignificante espécie animal ou vegetal ou de uma instituição.
(ELIADE, 1998, p.10).
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Resgato da memória uma história semelhante a essa, que ouvi em minhas
andanças no Sertão, no período da pesquisa de campo, de dezembro de 2017 a fevereiro de
2018, da rezadeira Dona Franscisca. O registro aqui é a memória afetiva, as palavras
contadas por ela entraram em meus ouvidos e imaginação de modo muito penetrante. Certo
dia, estava em casa angustiada e fui até a casa de Dona Francisca para que ela me benzesse
com seu raminho de arruda.
Nessa ocasião, após a reza, ela me mostrou seus pés de pimenta, acompanhei,
ajudando-a a jogar milho para as galinhas, ela me mostrou a reforma que estava fazendo
em casa, depois de muitos anos lavando roupa no sol quente, finalmente, ela construía uma
área de serviço em casa, a qual exibia agora com muito orgulho. Como começou a chover,
sentamo-nos no alpendre de casa, aguardando a chuva passar, mas também admirando as
gotas benditas que caiam do céu, enquanto saía um café, perguntei-lhe se ela conhecia
alguma história de assombração. Dentre os diversos causos, o que mais me marcou foi o da
mulher que a mãe amaldiçoou, por que ela era uma filha muito ruim.
Assegurava-me Dona Francisca que a história era real, que tinha acontecido no
tempo em que ela morou perto da barragem, antes de ser expulsa de lá pela construtora,
junto com outros tantos agricultores, felizmente, ela foi indenizada e, com o dinheiro que
recebeu, construíra sua casa ali à beira da linha do trem. O marido dessa mulher,
desconfiado dos sumiços constantes da conjugue, descobriu a maldição da mãe, que a
condenava a correr nas noites sem lua, sete pontes, sete fontes, sete montes. Após isso, ela
retornava descabelada, suja, descalça. Se a história de Dona Francisca é verdadeira, quem
poderá ter certeza?
O meu olhar para essas histórias se direciona noutro sentido, que não é o de
provar cientificamente a existência dos envultados, senão, lidar com esse dado subjetivo na
criação de uma poética. A partir de tal premissa, o convite de Eliade ressoa nessa criação:
Pensemos no mito como comportamento humano e, ao mesmo tempo, como
elemento de civilização, isto é, no mito tal, como se encontra nas sociedades
tradicionais, porque, ao nível da experiência individual, o mito nunca
desapareceu por completo; faz-se sentir nos sonhos, nas fantasias e nostalgias do
homem moderno, e a enorme literatura psicológica habituou-nos a reencontrar a
grande e a pequena mitologia na atividade inconsciente e semi-consciente de
cada indivíduo. (ELIADE, 1998, p.18).
Tomo a licença poética de mesclar histórias ouvidas, com outras imaginadas, na
inventividade de transmitir este dado simbólico e mítico elaborado em minha memória.
Esta conversa me aproximou de Lua, por uma via sensível do contato, ali no alpendre,
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tomando aquele café, admirando a chuva que acalmava a brasa quente do chão e embalava
aquela história.
Lua Cambará no momento da morte, encarna o mito do corpo seco, presente no
imaginário popular de forma muito particular. Ronaldo Correia Brito narra a “passagem”
(aqui me recordo também do termo límen, como uma via de acesso entre dois espaços), da
personagem para o mundo dos mortos, com uma profusão de imagens que lembram os
filmes de terror, avivando a imaginação, como se eu estivesse vendo a cena acontecer
diante dos meus olhos:
“– Meu avó presenciou tudo. Dizem que Lua se encontra enterrada no Ipu, mas
é mentira. Ali, naquele jazigo de família, com lousa de mármore preto, vindo da Itália, está
enterrado um tronco de mulungu.” (BRITO, 2003, p.166).
Quando o corpo foi deposto na rede alva, de varandas longas, que lembravam os
cabelos da que partia, soprou um vento das labaredas do inferno. Nenhuma chama
se manteve acesa e as portas e janelas não sustentaram as trancas, batendo sem
parar. O vento trouxe punhados de terra, atirados por mãos invisíveis. Meu
bisavô tentou empunhar uma cruz, porém faltou força em suas mãos. Nas
pressas, atravessaram a rede em um pau e partiram a pé, tropeçando no escuro
(BRITO, 2003, p.167).
Os escravos amedrontados com os negros surgidos do éter, em seus ternos
brancos e seus olhos de fogo montados a cavalo, entregam o corpo que seguia para ser
enterrado. Estes, enterram no lugar da morta, um tronco de madeira seco. A alma penada de
Lua passa a aparecer aos viajantes na lua nova à beira das estradas.
A diferença da lenda do corpo-seco para o conto de Lua Cambará, a meu ver,
dá-se pela ausência de um corpo, no caso o de Lua, seu corpo nem chega a ser enterrado,
ele some. O tronco de árvore seco é que ocupa o lugar do cadáver. E aí, uma pergunta
surge no meu trabalho de atriz: a personagem aparece aos viajantes para anunciar a
ausência deste corpo? Para cobrar-lhes o paradeiro de seus ossos com a sua visão
silenciosa? Como interpretar uma personagem que não tem corpo? Como representar a
morte?
Nas experimentações que tenho realizado, a morte vem sendo construída na
forma de uma instalação feita com o próprio figurino da personagem, despido do corpo da
atriz. Essa instalação é, ao mesmo tempo, um lugar do sagrado na cena, mas também do
terrível. As peças que vão sendo vestidas pouco a pouco presentificam na cena a
48
personagem em sua fase de assombração.
Na tenra infância, Lua Cambará mama o sangue-leite nos peitos da mãe morta
por inanição. A menina é resgatada por um vaqueiro que a leva ao pai, Coronel da fazenda,
que “fica com a encomenda, mas não a manda batizar”: “ – É filha da Negra Maria,
moradeira dos extremos de vossa terra. Vinham na direção de vossa casa. A mãe morreu de
fome. A filha mamou sangue nos peitos da morta. Tem gênio ruim e raça de branco”
(BRITO, 2003, p. 146). Na minha percepção, o autor arquiteta uma metáfora na narrativa
que recupera um imaginário muito forte dos relatos da seca no Nordeste.
Relatos semelhantes a esse trecho do conto, ouvi dos antigos da região do Sítio
Catolé, no Sertão do Alto Pajeú, a 380 Km da capital pernambucana, Recife, em dezembro
de 2017, durante a realização dos laboratórios de personagem, naquela região. As histórias
sobre as secas, envolvem as migrações dos retirantes, em que a viagem é um penar pelo
mundo afora, na qual se está sujeito a acontecimentos funestos. Dentre os relatos que ouvi,
um em especial me chamou a tenção. Contam que, no ano de 1877, houve uma grande
seca, a qual ficou conhecida como a seca de 70, retirantes passavam, vindo em caravanas,
dentre estes havia uma mulher sozinha com a filha, ela estancou à beira da estrada, sem
forças para prosseguir. Veio um retirante sozinho, ela lhe pediu um pouco de farinha, pois
estava faminta e não aguentava mais andar, ele negou, disse que logo atrás vinha uma
caravana de pessoas, que ela pedisse a eles. Passaram-se dois dias, a mulher não aguentou,
morreu de fome. Quando a caravana passou, a menina mamava o sangue, no peito da mãe já
morta. Os retirantes da caravana pegaram a criança e seguiram seu caminho, o paradeiro
desta é incerto, quem me contou essa história disse que talvez ainda morasse em alguma
das cidades circunvizinhas, mas como a história é triste, seria de mal gosto eu bater à porta
da possível mulher que mamou sangue nos peitos da mãe e perguntar a ela coisa tão
ofensiva.
Essa imagem no conto, em que Lua nutre-se do sangue da mãe, não deixa de
ter lá sua beleza, embora terrível, parece ressuscitar memórias presentes no imaginário
coletivo do povo nordestino. Na verdade, é isso que todos os fetos fazem, enquanto estão
na barriga, nutrem-se através do sangue, o que torna a imagem tão dolorosa é porque, na
circunstância ficcional, as últimas forças de Maria se vão, no ato de amamentar, como um
sacrifício ingênuo contra o qual ela nem teria tido forças de agir, falando mais alto o senso
de sobrevivência da infante.
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Quando comentava com as pessoas do local, acerca dessa passagem do conto, a
recepção era seguida de relatos como este, que vinham à tona carregados de um certo
desgosto como se fosse uma história assombrada na memória dos habitantes,
principalmente dos mais velhos. O meu interesse em retratar essa passagem do conto soava
como se eu estivesse expondo uma ferida de quem viveu a seca, como minha avó, por
exemplo, que passou momentos de tanta dificuldade, que chegou a perder alguns filhos,
abortados em decorrência da fome que sentiu. Nesse sentido, o conto ficcional, ao mesmo
tempo em que trata de uma lenda, traça, na narrativa, pontos de contato entre mito e relato.
Nesse sentido, eleger o corpo-seco como um estado, como possibilidade de
investigação, levou-me a procurar entender o processo climático da seca, primeiro por uma
via sensível, pela observação no meu corpo, no espaço e no tempo em que permaneci no
sertão. Durante minha imersão criativa, no período de dezembro de 2017 a fevereiro de
2018, estive muito atenta a todos os estímulos e um deles, que certamente marcou os
laboratórios de personagem, foi a sensação térmica, a percepção do clima em suas micro
alterações. Depois, por um entendimento social, estatístico, da seca como uma instituição,
que serve a interesses políticos, portanto à manutenção de privilégios. Na indústria da seca,
com o voto de cabresto, as promessas de pipas d‟água são moedas de troca, mas não
resolvem as condições que dificultam a sobrevivência no semiárido nordestino. Nessa
escuta atenta das sensações que permearam meu corpo nos laboratórios de criação, percebi
o clima como uma força que governa o cotidiano dos sertanejos. Observei, por exemplo, que
é costume olhar o céu, quando amanhece, ao entardecer e à noite quando a lua sai, à
procura de sinais de chuva. No final de janeiro a começo de fevereiro de 2018, tornou a
chover na região, que não registrava uma precipitação capaz de formar barro na terra e
juntar água nos reservatórios há pelo menos sete anos.
A instauração da chuva proporcionou alterações perceptíveis pelos sentidos de
um modo que eu não estava mais habituada a reparar, depois do afastamento geográfico do
sertão por um período prolongado de seis anos, morando na região litorânea da Paraíba e,
mais recentemente, nos últimos quatro anos no Sudeste brasileiro. Sensações como a
densidade do ar, temperatura, fluxo dos ventos, umidade, luminosidade da lua, formação das
nuvens no céu, cheiro do ar, observação das formigas, mariposas, besouros, sapos e
pássaros, fizeram parte do meu cotidiano nos três meses de imersão em que permaneci no
sertão.
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Comentários do tipo “parece que vai chover na passagem da lua nova”, termo
que incorporei às improvisações que realizei nos laboratórios na fala da personagem
Cacurucaia Maria, convidaram a essa vivência, por meio da observação ativa. O que me
levou a entender que se sente a chuva com diversas percepções táteis, olfativas, paladares,
visuais, intuitivas, sutis, que compõem uma percepção diferenciada como um todo, pela
experiência e observação.
Não se trata de profetizar, pois o tempo é algo que está imbuído no cotidiano
das pessoas e que a vida nas cidades grandes não favorece tanto esse contato. Percebi que
essa habilidade é um treino, uma escuta muito sensível do entorno, a qual é preciso se estar
aberto, poroso. Ao ponto que quando caiu uma forte chuva eu já a sentia de longe, se
aproximando pouco a pouco e como se esperasse há muito, muito tempo, esse encontro.
Não me detive, lancei-me no temporal, apreciando com os sentidos o toque gelado da
chuva, o gosto, o cheiro, os pés descalços na lama, até o corpo inteiro estremecer de frio.
Essa sensação, guardei-a como uma das partituras de movimento.
Para além da técnica, acho fundamental uma escuta global, tal habilidade carece
de um treino mais do que a propriocepção comum ao trabalho do ator. A vivência descrita
acima serve como exercício que proporcionou ampliar a escuta de atriz, trazendo
percepções diferenciadas, que venho tentando exercitar no trabalho de atriz, na sala de
ensaio e na troca com o público. Também a mesma vivência de percepção do clima no
corpo, com os sentidos, fez-me pensar numa possibilidade para a construção do cenário na
qual este não está fora do corpo da atriz, mas no próprio corpo. Surgiu a ideia do corpo
como tela. Tela no sentido de pintura, daquilo que se projeta no corpo, das materialidades
que compõem a caatinga e o sertão em suas cores, texturas, profundidades. É então que o
corpo de atriz, no espaço, é canal sensível de acesso a essas materialidades, como se fosse
portador de um mundo que não cabe em si, como se a alma da personagem fosse maior que
o corpo da atriz, trasbordando por meio dessas materialidades na cena.
As fotografias realizadas no período de dezembro a janeiro despontaram como
possibilidade de composição de parte do cenário, através de projeções. Também as
filmagens das experimentações em campo, foram compiladas e editadas por Rodolfo
Ventura e deram origem a um teaser que finaliza e sintetiza a saga de Lua em andanças
sertanejas. Aplicando esse pensamento do corpo como tela, em que o estado de corpo-seco
é uma avidez, uma busca que compõe poéticas na cena, ao lidar com dados estatísticos,
51
ficcionais e da memória coletiva do povo do lugar, as imagens captadas pela câmera da
pesquisadora transformam-se em metáforas e transbordam aquilo que não cabe em mim.
As notícias sobre as secas ajudaram a formar, no imaginário sulista, a figura do
Nordeste e do povo sertanejo, assim, por meio da literatura regionalista, das entrevistas e
relatos, criou-se um arquétipo da sofrência que ainda rende muita audiência nos programas
de televisão, reforçando um preconceito de origem e de classe, criando barreiras para o
entendimento das manipulações que os governos, a literatura, a mídia, têm feito desde
muito tempo. Será possível uma atriz sertaneja ter outro olhar sobre esses estereótipos?
52
CAPÍTULO 2: LUA CAMBARÁ
2.1 Lua Cambará, a lua como símbolo cósmico do
feminino
No conto Lua Cambará, notei que a lua tem uma importância muito grande em
vários trechos, marcando não só a passagem do tempo, mas anunciando eventos
desastrosos. Logo no início, o enunciado “Eram os três dias em que a lua morre, o vento da
noite tarde, já soprava com força” (BRITO, 2003, p.142), comunica-se ao leitor que algo
está para acontecer, a partir de dados que convocam os sentidos, a escuridão, o barulho do
vento, criando um clima de suspense que evoca da imaginação toda sorte de seres
sobrenaturais.
O conto de Ronaldo Correia Brito, suscita uma relação com mitos primais, em
que a lenda brasileira aponta para ressonâncias das antigas religiões pagãs, em que a lua
aparece como símbolo mítico da representação feminina, onde Lua encarna uma imagem
arquetípica lunar, nas suas diversas fases, “voltando sempre ao mesmo ponto nas noites
que não têm lua”. Talvez o que me encante nessa narrativa tenha a ver com aquilo que
Serge Gruzinski percebe como estratégia de criação nas obras híbridas, em que “a força
subversiva da fábula está ligada aos mundos primordiais que ela não para de ressuscitar.”
(GRUZINSKI, 2001, p.156).
Quando o conto enuncia que a personagem “tinha um ciclo lunar e variava a
cada lua” (BRITO, 2003, p. 147), traz a provocação de que esta personagem teria
comportamentos diferentes, conforme as fases da lua, encarnando a inconstância, o fluxo,
próprio da natureza, como eu poderia no trabalho de atriz criar essas dinâmicas?
Além dessas duas questões, outra também bastante fulcral para a pesquisa é
que Lua Cambará me faz pensar nos vários atravessamentos que perpassam o feminino,
inclusive sobre o próprio conceito deste. Um feminino que não é o oposto de masculino,
que não está limitado a questões biológicas, que não é politicamente correto, mas que tem a
sua força no conjunto e no fluxo de suas qualidades, que integram o aspecto sombrio ao
aspecto luminoso sem dualidades. Um feminino que tanto é terrível e sanguinário, quanto
onírico, etéreo e fantasmagórico.
Sendo a mulher e o feminino não uma diferença do homem, mas o gênero
53
como uma invenção e produto social, cultural, religioso, em que “A representação do
gênero é a sua construção _ e num sentido mais comum pode-se dizer que toda a arte e
cultura erudita ocidental são um registro da história dessa construção” (CLARK apud
LAURETIS in HOLLANDA, 1994, p. 49).
Por essa perspectiva, busquei entender a personagem por um aspecto tríplice,
lunar, mas ao invés de relacionar com a mitologia grega (com Perséfone-Deméter-Hécate
nos aspectos de virgem-mãe-anciã, por exemplo) pretendi uma relação mais próxima com a
cultura afro-brasileira, optando por um ponto de vista que privilegia mitologias abaixo da
linha do Equador, diaspóricas, negras. Tomo a liberdade de substituir o aspecto de mãe
pelo da guerreira, motivada pela trajetória da personagem, a quem enxergo como uma
personagem tríplice em que despontam as características da moça-guerreira-anciã.
Como espaço de reflexão, a escrita dessa dissertação e a poética de criação da
personagem me fazem querer dar voz às negações históricas, sociais, simbólicas, pelas
quais o feminino padece, principalmente aquele com o qual me identifico, na minha
situação de migrante nordestina.
Observo em Lua Cambará as qualidades de uma deidade tríplice de moça-
guerreira-anciã, o que me leva a realizar uma aproximação na mitologia Yorubá com três
divindades, que vejo neste trabalho de criação cênica, como polaridades do caráter da
personagem. São elas: Oxum, Yansã, Nanã.
Baseio-me em comparações, a partir da narrativa do conto e dos mitos
compilados por Reginaldo Prandi na obra Mitologia dos Orixás entre outras referências.
Sendo que a identificação mais direta é com o mito de Oyá, a mulher búfalo, por uma
semelhança de estados entre a personagem e a deidade no que diz respeito à imagem
arquetípica da guerreira em suas atitudes.
Quanto às outras Yabás, Oxum e Nanã, a identificação com as imagens
arquetípicas da moça e da anciã se dão em outro sentido. Com a moça, pelo encontro de
Lua Cambará com as águas escuras de um açude, onde a personagem tem a sua
feminilidade revelada por tais águas, seu encanto, seu segredo, guardado por Oxum, cujo
elemento simbólico se situa nas águas doces. Com a anciã, Lua Cambará vive a polaridade
inversa, que seria o oposto da sabedoria, a insanidade, a loucura, no encontro com a morte,
tabu regido por Nanã.
Se fosse falar nos termos usados nas casas de santo, diria que a personagem,
54
incorpora Yansã, uma qualidade de Yansã que come com Oxum e Nanã. O cruzamento
com a mitologia Yorubá parte de uma compreensão desses arquétipos como forças vivas
nas ações, comportamento, elementos, temperamento, energia, vibração. Uma concepção de
um comportamento que se transforma em ação, em gestos simbólicos.
Trazer Lua Cambará para perto de Yansã foi uma tentativa de compreender a
dinâmica do seu aspecto tríplice na qualidade de guerreira. Os trechos a seguir orientaram
essa aproximação:
Ouviu-se um ruído estranho, como das profundezas da terra se abrindo. E viram
Lua Cambará se erguer no suspiro de morte do pai, se alçando em filha herdeira,
de punhal na cintura. (...) Juntou um exército louco e mestiço, zumbis sem medo,
arrastados por uma força de mulher. (...) Calçava perneira, vestia gibão e
montava cavalo feito homem. Mas a fêmea escapava de dentro de todas as amarras
do couro. (...) Interpôs com o seu chicote, mulher avultada entre machos. (...)
Queimou a palma da mão aberta como quem pronuncia uma sentença. (BRITO,
2003, p. 149; 151; 153; 157)
Em um dos mitos de Yansã, na parte três da obra literária de Judith Gleason
(2006), Oya, Um Louvor à Deusa Africana é possível encontrar a seguinte narrativa: A
mulher- búfalo e os caçadores, com o subtema: Quando a mulher búfalo vira Oya.
Ela relata ainda que, “esta versão inglesa da história segue o formato oracular
no qual foi originalmente recitada pelo divinador iorubá Awotunde Aworinde, em junho de
1970, em Osohogbo”. Aqui, mais uma vez, a criação se depara com materiais que vêm da
oralidade, como o próprio conto que investiguei, como se Lua estivesse sendo tecida pela rede
desses afetos, que me atravessaram quer imageticamente, quer se transformando em ações, em
poética, em linguagem na cena.
Nessa narrativa, o caçador descobre o segredo de Yansã, esconde a sua pele de
búfala em casa, chantageando-a para que esta se case com ele e assim possa mantê-la por
perto. Ela aceita a condição, contanto que o caçador não fale às outras mulheres as
circunstâncias nas quais se conheceram, uma vez que este tinha um casamento poligâmico..
Com o nascimento do primogênito, e logo em seguida de mais oito crianças, as outras
esposas enciumadas da fertilidade de Yansã, embebedam o marido e fazem-no contar onde
tinha encontrado aquela mulher, pois Yansã era estrangeira naquela terra e não tinha
ninguém que a conhecesse dantes. De posse do segredo, elas tentam expor-lhe, insultando-a
com adjetivações depreciativas, o que termina revelando a força destrutiva da guerreira. Vejamos a
seguir na transcrição que faço do mito compilado em Judith Gleason:
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Vermelha, Vermelha, venha assim que estiver pronta – elas escarneceram. /
Iremos na frente/ vá no seu tempo, Vermelha/ Continue ruminando o seu alimento. / O seu
disfarce está seguro/ Lá entre as vigas/ Por isso, considere-se afortunada. Mulher
Vermelha! /Ai!Ai! Seu estômago revirou com a surpresa. / Assim que as co-esposas saíram
de vista, / Ela mandou que as crianças saíssem de casa, / Pegou uma bolsa feita de rato
gigante/ E foi buscar água. / Subiu até o lugar dos guardados sob as vigas do telhado, /
pegou a trouxa que continha o disfarce/ E começou a encharcá-lo. /Vestiu-o aos
pouquinhos,/ (...) Ela pulou e correu pela cidade/ (...) Correu para a primeira esposa,/
matou-a/ Correu para a segunda esposa,/ matou-a/ e também a terceira./ (...) e saiu na
direção do marido./ Ele a viu chegando./ Aquele búfalo na distância _ instintivamente ele
soube./ Ai!Ai! Minhas esposas arruinaram a minha vida! /Ela o teria matado de imediato,
/ mas ele começou a louvá-la. /Nobre búfalo. /Nada o faz parar.
/ Você faz o seu caminho pelas moitas. / Nenhum arbusto é denso o suficiente
para você./ Lutador, por favor, não mate o caçador/ pelo prazer de matar. (GLEASON,
2006, p.206)
Em um dos mitos de Yansã, compilado por Reginaldo Prandi (2001) em seu
livro, Mitologia dos Orixás, encontramos na narrativa a descrição do momento em que Oiá
se transforma em búfalo, após ser ridicularizada pelas outras esposas de Ogum: “Ela vestiu
a pele e esperou que as mulheres retornassem e então saiu bufando, dando chifradas em
todas, abrindo-lhes a barriga” (PRANDI, 2001, p.298-299).
Lua Cambará, assim como os mitos transcritos acima, é um conto que nasce na
oralidade. Sua história contada nos alpendres das casas, pelos tocadores de gado no sertão
dos Inhamuns, no Ceará, permanece viva de alguma forma no imaginário do povo até que
em 1970, Ronaldo Correia Brito transcreve a narrativa do mito para a literatura. Sua
inventividade, ao compilar relados ouvidos, vividos e imaginados, cria em Lua Cambará
uma espécie de força subversora ligada aos mitos primais que ela faz ressurgir, acendendo
uma relação com temas recuperados das mitologias pela literatura.
Pensar na personagem como uma “colagem”, uma figura híbrida, traz em si a
união das facetas da moça, guerreira e anciã, não como forças estanques, mas acordando no
meu imaginário um sentido multidimensional, fluido, levando-me a fazer relações de
aproximação com outros mitos, que, a meu ver, iam sendo encarnados por ela no seu ciclo.
Tenho a impressão de que essa alma penada que passa a vagar “sem princípio, meio e fim”
acorda algo muito antigo, tão antigo quanto a sua própria existência de personagem.
Também este cruzamento preza pela construção de uma linguagem inspirada
na lógica presente nos rituais de terreiro, enquanto instauração de um acontecimento, uma
teatralidade que transporta para um tempo mítico, por meio das ações rituais desenroladas
56
ali. Diante do conto Lua Cambará, em processo criativo, em fricção com a personagem,
perguntei-me o que esta gostaria de dizer com tal encenação, como consequência, recebi
como resposta um desejo de recomeçar a escrita por um trecho que aparentemente tem
pouca relevância dentro do arco dramático no conto. É o momento, na minha perspectiva,
em que a narrativa constrói o gatilho que depois dá força para Lua duelar com seu primo e
parentes e tomar posse de sua herança:
“Do outro lado, a casa do Monte Alverne, onde morreram sete filhas fêmeas todas
chamadas Maria, por capricho, até nascer um filho homem, Francisco Francelino
do Cambará, este que irá morrer, com um tiro no coração”. (BRITO, 2003,
p.151).
Senti a necessidade de dar corpo, na cena, a essas personagens, a esses corpos
ausentes, que assim como Lua, poderiam ser reveladas pelas sombras da lua nova, as quais
convidam toda sorte de espíritos a se apresentarem em nossa imaginação.
Em minhas andanças pelo Nordeste, veio a inspiração das bonecas de pano,
portadoras de memórias e narrativas, no seu fazer que transcendem o próprio material de
que são feitas. Confesso que fui atravessada por uma memória afetiva na aquisição dessas
obras, além da própria motivação extraída do conto de presentificar os corpos ausentes das
Marias, acrescida ainda da revolta ante a uma reportagem que li.
As bonecas que adquiri são de autoria de uma artesã idosa de João Pessoa, que
estava prestes a desistir de fazê-las, porque “as pessoas não se interessam mais em ter
boneca de pano”. Sua fala ressalta a desvalorização de suas obras, que, muitas vezes, ficam
empoeiradas nas prateleiras, o que caracteriza uma sociedade de consumo rápido e
industrializado. Pois cada boneca, feita totalmente à mão, cujas feições são bordadas,
demora um tempo que ao ser cobrado pela artesã, juntamente com os pequeninos retalhos
que compõem a roupa, os cabelos, “encarece” o produto na visão de alguns consumidores,
que preferem adquirir bonecas de plástico.
Chamou-me a atenção o acabamento das bonecas: os fios que costuraram o
recheio eram grossos e os nós todos à mostra, como se elas tivessem sido costuradas com
um fio único, tendo uma coesão interna, que embora deixasse entrever os nós, também
possibilitava ver as “falhas” na construção daquele feminino em que a beleza da obra, a
meu ver, resultava justamente de que o bordado luminoso convivia com os nós na pele
mesmo das bonecas. Era como se, nesse objeto, estivessem contadas todas as contradições
57
e incongruências da construção de um feminino.
Ao me deparar com tais bonecas, imediatamente, lembrei-me da minha avó
paterna, Doralice Barros, descendente de negros da etnia Banto, exímia costureira e artesã,
que fazia bonecas semelhantes, objeto mais desejado da minha primeira infância, e colchas
de retalho com o que juntava de suas costuras. Um pouco antes de sua “passagem”, ela me
presenteou com uma colcha de retalhos, a qual me aquece nas noites frias do Sertão
quando me recolho do mundo e habito no tempo.
Dei a essas bonecas nomes de matriarcas que morreram na região rural de
Afogados da Ingazeira, no Alto Sertão do Pajeú, em Pernambuco, achei importante nomeá-
las, homenageando-as, presentificando não só os corpos ausentes do conto, mas os troncos
familiares das contemporâneas da minha avó materna, Rosa Santana de Lima, daquelas que
morreram esquecidas em sua miséria e daquelas que, porventura, não chegaram a nascer,
num trânsito com o invisível, entre ficção e realidade, na criação cênica, como forma
também de denuncia e metáfora poética.
Uma das bonecas chamei de Tereza, em Tereza recupero na ação, o meu
incômodo em relação ao que aconteceu com os restos mortais de Saartijie 1 antes de serem
devidamente enterrados, na fala da Cacurucaia Maria:
Qual foi a outra? Os velórios foram ficando tão ligeiros... Eu esqueci? Não,
foram sete! (Reconta, dizendo o nome delas baixinho) Foi Teresa! É por isso que eu não
lembro! Teresa foi levar a lavagem dos porco e parece que eles tavam com a fome de
setenta, parece que fazia setenta ano que eles não comia. (Deixa cair Teresa) Acharo
Tereza só os pedaços... o caixão de Teresa ficou tampado, nem tinha retrato pra gente vê...
(Tapa o rosto de Teresa e recolhe com cuidado).
Na boneca de pano, que é sempre menina, mas velha também, cujas costuras
aparecem na pele, com seus nós à mostra, cujas pontas soltas deixam vir à tona o estofo de
que são formadas é uma metáfora singela daquilo que está escancarado na pele de mulher.
1 Saatije Baartman, conhecida como Vênus hotentote, após sua autópsia em 1815, teve durante 194 anos a
vagina, cérebro e ossos expostos no “Museu do Homem” em Paris, ao lado do cérebro de Descartes, para
servir de contraponto ao atributo da intelectualidade do homem branco. Na visão dos pensadores da época, as
partes genitais de Saartijie reforçavam o aspecto inferior da raça africana, para eles, uma prova de que as
“fêmeas” eram altamente sexualizadas, uma estratégia de rebaixar a raça, relevando os abusos. Só em 2002, o
governo Francês “aceitou” devolver os restos para serem devidamente enterrados na Cidade do Cabo, na
África do Sul, onde finalmente passou pelos rituais funerários. Fonte: New York Times, Sunday, May, 2002
France Returns Old Remains to homeland. In https://flashbak.com/saartjie-baartman-the-hottentot-venus-
who-aroused-the-victorians-50638/ Acesso em 25/03/2018. Saartjie Baartman: The Hottentot Venus Who
Aroused The Victorians by Paul Sorene on January 6, 2016.
58
Presentificar os corpos ausentes com um objeto cênico, em que convivem na textura da
pele, o bordado, os nós, numa conjuntura estética, na qual o mesmo fio que segura o estofo
deixa ver as pontas soltas e finaliza com nós palpáveis, parece-me uma boa metáfora desse
feminino que é luz, sombra, penumbra num só, em que as forças que dormitam na
personagem são desencadeadas pelo fio condutor da narrativa, fazendo emergir a moça, a
guerreira e anciã.
Imagem 5: Laboratório de criação realizado. Sítio Catolé, Afogados da Ingazeira-PE.
Objetos cênicos, confeccionados à mão. Luzia, Jovina, Catarina, Tereza, Mariquinha, Quitéria, Rosinha.
Fevereiro de 2018. Foto: arquivo pessoal da autora.
Percebo então que Lua, enquanto personagem, como esta imagem arquetípica
relacionada ao fluxo, inconstância, mas também ao retorno, aos ciclos, pode ser um recurso
poético de retorno a temas ligados à representação do feminino, desse feminino tríade, nas
suas contradições, na penumbra que revela, mas também esconde, na luz que ofusca e nas
sombras que desenterram os corpos ausentes, como no mito do corpo seco.
Quanta inventividade essa artesã que me permitiu com tão singela figura, ao
ponto de desencadear com um simples objeto memória, associações e poiesis.
2.2 Uma mestiça de gênio ruim e raça de branco, Lua
Cambará uma revolucionária politicamente incorreta
Acerca dos atravessamentos que compõem a personagem central do conto Lua
Cambará, proponho refletir sobre o contexto social da personagem, o qual traz
apontamentos importantes para pensar a situação da mulher mestiça nordestina, sertaneja
59
no final do século XIX.
As tensões que marcaram a construção e representação do feminino, nessa
conjuntura histórica, foram grandemente marcadas pela herança patriarcal machista.
Conforme irei demostrar, Lua Cambará transgride as normas do patriarcalismo, numa
narrativa que remonta a um sertão longínquo, escravocrata.
Ao emergir como transgressora revolucionária, a mestiça de “gênio ruim e raça
de branco”, acorda fantasmas ainda recentes. Sobre esse trecho do conto, pus-me a pensar o
que significaria a expressão “gênio ruim e raça de branco”. A ruindade seria herdada da
parte negra do seu sangue? Mas isso não explicaria o instinto sanguinário da personagem.
Lua Cambará é uma figura instável devido à mestiçagem do seu sangue?
Se não explica o instinto sanguinário, a descrição compartilha da opinião que
se tinha dos indivíduos mestiços no Brasil colônia.
A visão de letrados e autoridades coloniais sobre os mulatos, (...) girava em torno
de uma série de adjetivos e comportamentos identificados como atributos dos
mestiços: presunção, vileza, soberba, desonra, ilegitimidade e ociosidade”
(VIANNA, 2007, p.85).
Associado à herança do sangue materno, o “gênio ruim”, conforme incutido no
senso comum e “comprovado” pelos “cientistas sociais”, que consideravam na época o
negro como uma subespécie, parente dos primatas, tornava o mestiço um tipo de mula,
infértil, em que estavam depositadas as piores qualidades de ambos os lados, em que,
quanto maior o percentual de sangue negro, mais inferior o tipo humano.
Lua Cambará renega o sangue negro da ascendência materna, rompendo o
cordão umbilical com a mãe, representado pelo rosário que carregava no pescoço, rompe
assim com um símbolo religioso e cultural,2 para assumir o lado branco e se apossar da
herança.
Por ser mestiça, considerada filha ilegítima, teria a “mácula” atribuída ao
sangue mulato. Única herdeira do coronel Pedro Francelino do Cambará, Lua é odiada e
repudiada pelo tio e primo, que não reconhecem a bastarda, filha da negra Maria, como
2 Conforme Larissa Vianna (2007), nas irmandades de pardos, o rosário dos pretos foi durante muito tempo
uma prática religiosa comum dos negros e mestiços que se tornaram devotos de Nossa Senhora do Rosário,
conquistando por seu “bom comportamento” o direito de construir suas igrejas, uma vez que não podiam
entrar nas dos brancos, a organização dessas irmandades, na sociedade colonial, foi uma forma de se
organizar dentro dos parâmetros permitidos pelo catolicismo, ao passo que passaram a ser temidas e
controladas.
60
legítima herdeira. No momento da morte do coronel, quando este expressa que a reconhece
como herdeira, alertando-a sobre o tio e o sobrinho, pretenso herdeiro, filho varão que
deteria a legitimidade do direito à herança, estabelecem-se as condições para o drama se
instalar:
Meu irmão não te reconhece como minha herdeira. Ele vai querer cortar sua
cabeça, tão logo eu feche os olhos. És o filho homem que não tive. Prova a
coragem que tens defendendo o que é teu. Encara o lado do teu pai e renega o
sangue de tua mãe, do teu povo escravo que só faz te rebaixar. (BRITO, 2003,
p.148).
Nessa fala, o coronel dá a entender que Lua, na falta de um filho homem, seria
a única alternativa para que as posses não fossem repassadas para o irmão. Os homicídios
dos parentes, na narrativa, seriam a única alternativa de Lua Cambará, algo que
aparentemente não causa maiores problemas, visto que a personagem não possuía em seu
caráter a culpa católica, pois fora criada “sem crença”, sem a “benção do batismo”, que
considerando o contexto, em finais do século XIX, é de se pensar que benção mesmo era
não ter sido batizado.
Ao meu ver, a novidade, em Lua Cambará é que, além de romper com o ideal
da época e de trazer à tona questões relativas ao feminino, à mulher mestiça, contemplando
as contradições e ambiguidades no contexto do conto, traz para a posição de protagonista
essa personagem, se compararmos com outros contos regionalistas, nos quais o
protagonista é normalmente o sertanejo.
No conto, Lua precisa empunhar a faca, degolar seus parentes para usufruir de
um direito que, àquela época, já era concedido por motivos legais. Vibro pela valentia da
personagem, que o meu ver, de maneira simbólica ataca conceitos usados para justificar
princípios discriminatórios. Uma primeira leitura pode apontar para o reforço da
degenerescência da mestiça, por não considerar os laços consanguíneos que a ligam ao tio
e primo, mas proponho enxergar de outra maneira. Ela mata o que não lhe reconhece como
semelhante, como igual, ela mata a negação, este é um dos primeiros aspectos que me
fazem enxergar a personagem com traços esboçados de feminismo e revolução.
O drama que se constrói, a partir dessa situação, lembra-me expressões como
“matar um leão por dia”, as quais, não raro, são ouvidas na rua, no vocabulário das
populações onde a luta pela sobrevivência diária toma a forma de um monstro,
aproximando a personagem de pessoas reais e de um tempo presente. Transcrito da
61
tradição oral, do imaginário popular, transformado em conto regionalista, protagonizado
pela figura da mulher sertaneja, as passagens lembram histórias antigas, contadas pelos
mais velhos no sertão, que constroem na literatura uma personagem que sintetiza diversos
atravessamentos.
Além de mestiça, a personagem ainda é bastarda, concebida de um estupro. No
século XIX, os filhos mestiços podiam ser libertados pelos seus senhores e pais, mas a
grande maioria não era fruto de relacionamentos amorosos que resultaram em casamentos.
Em alguns casos, eram inseridos no testamento dos pais, quando estes não tinham filhos
naturais, ou, se tivessem, os bastardos não recebiam a mesma proporção que os legítimos.
Os filhos das escravas nasciam, tendo de lidar com sua situação humilhante de serem frutos
do acaso, do abuso sexual de seus senhores.
A orfandade da personagem Lua Cambará, na ficção de Ronaldo Correia Brito,
permite fazer um contraponto à realidade da época em que se passa o conto. Para uma
criança nessas condições, restava o “outro extremo social” das sinhazinhas,
o labor era a sina das meninas que nasciam pobres, fossem elas escravas, libertas,
“ingênuas” ou livres. A partir dos 4 ou 5 anos de idade, começavam a auxiliar nas
lidas domésticas, com os animais (galinhas, vacas, porcos) e no cuidado de
outras crianças. Nas cidades, também saíam a vender mercadorias junto dos
adultos, auxiliavam na lavagem de roupas das famílias de mais posses ou eram
postas para pedir esmolas. Algumas aprendiam ofícios considerados
especializados, tais como a tecelagem e a costura, os relativos aos partos e
benzeduras e as habilidades para produzir quitutes que seriam vendidos em
tabuleiros ou barraquinhas nas ruas. Nas propriedades agrícolas, a mão de obra
infantil feminina era utilizada, sobretudo, em atividades que exigiam habilidade
manual e menor força física. (AREND, 2012, pp.67-68).
Meninas pobres que nasciam de mães escravas no sertão, possivelmente,
trabalhariam nas plantações de algodão ou poderiam ser criadas como “enjeitadas”. A
situação de Lua Cambará não é a da sinhá, nem a da escrava, visto que o pai “reconhece a
encomenda, mas não manda batizar”, criando uma situação intermediária, semelhante à de
enjeitada, mas gozando de alguns poucos privilégios, permitindo que Lua fosse criada “sem
crença”, “como homem”, montando a cavalo, calçando perneira e gibão, tal qual um
vaqueiro, sem precisar pensar na confecção do enxoval, antes de completar 15 anos, como
costumeiramente acontecia com as filhas legítimas.
A narrativa remonta a uma ordem social em que a mulher era educada para
exercer as funções de dona de casa, esposa e mãe, num contexto em que, apesar de
62
localizado no século XIX, poderia muito bem falar de uma luta que se estende aos dias de
hoje. Quando renuncia aos papéis atribuídos ao feminino, tornando-se senhora soberana
sobre terras, animais e homens, mostra-se, segundo meu ponto de vista, uma transgressora
revolucionária, porque não assume os papéis atribuídos culturalmente pelo machismo à
mulher, retomando a uma ordem matriarcal, ajudando-me a refletir inclusive acerca das
tensões da construção e representação do feminino na minha própria condição de mestiça
brasileira.
Queria falar do feminino já há um tempo, mas não de um feminino qualquer,
não de um feminino resignado, submisso, obediente, não das funções atribuídas
socialmente e culturalmente pelo patriarcado machista. Isso não dava conta da
complexidade acerca da construção do gênero. Nesse entremeio, apareceu Lua, um nome
que empresto para falar das problemáticas levantadas por esse conto, o qual me leva a
ponderar que aproximações são possíveis entre mito, representação e contexto social na
criação de uma poética, procedimentos de tradução cênica e encenação, incluindo-se o
próprio conceito de feminino que desejo adotar na pesquisa. Um feminino que não é o
oposto de masculino, que não está limitado a questões biológicas, que não é politicamente
correto, que tem a sua força.
Lua Cambará ter sido criada “sem crença”, pagã, de certa forma, contribui para
o não adestramento da personagem ao modelo vigente de feminino, distanciando-a de uma
identificação com a Virgem Maria e a expressão da subserviência maternal de Maria em
suas atividades cotidianas. Começo a pensar, então, que a maldição que Lua Cambará
sofre, é simbólica, de uma mulher que encarna as qualidades associadas à natureza do
feminino, sob uma que escapa a essas denominações e mais poderia se aproximar das
cangaceiras do que da esposa e mãe devotadas. Essa passagem do conto permite observar
um confronto entre a ausência de modelos e a observância destes em que o autor nos
apresenta Irene em contraponto a Lua:
Irene moía o milho. Repetia um ofício milenar, aprendido de outra mulher como
ela, que também aprendera de outra, substituindo o grão a ser triturado, o milho
pelo trigo, celebrando o trabalho nos mesmos movimentos de mãos, braços e
tronco. Gestos arcaicos, que a tornavam igual a milhões, semente de um saber
que se tornava ciência pela repetição. As pedras atritadas salmodiavam uma
cantinela monótona, lembrando a dos bilros nas almofadas e a do fuso fiando o
algodão cru. A tarde sucedia a manhã e de noite não havia sol. Assim, sempre
tinha sido e assim sempre seria. O mundo se alimentava dessa ordem simples e a
vida de Irene entrava nessa ordem. Havia a casa para cuidar, redes para tecer e o
marido que chegava sem ser esperado. (BRITO, 2003, pp.155-156).
63
Na trama do conto, o autor vai criando situações que, por meio das imagens
narradas, vão suscitando uma tensão e disputa entre as duas, pelas atenções do vaqueiro
João Índio, até o ponto em que Lua, após confessar o “desaforo” na frente da vaqueirama
da fazenda, vê-se repudiada pelo vaqueiro, ardendo em rancores, manda matar Irene, como
se fosse uma cabra, já que ele não seria dela, que também não fosse da outra. Irene
aproveita-se do instante do seu próprio sacrifício para selar a maldição, ainda com o sangue
escorrendo de sua garganta, rogando “às forças do mundo, o mais terrível dos fins” para a
rival. Coisa que se cumpre mais a frente. A punição dos deuses vem no momento de
passagem para a morte, em meio as mais terríveis agonias, Lua Cambará se dá conta de seu
destino. No instante de sua morte, Irene condena a rival:
Eu rogo às forças do mundo que essa mulher tenha o mais terrível dos fins. Que
morra com as entranhas queimando e que a morte seja apenas o começo do seu
penar. Que nem o céu, nem a terra e nem o inferno a queiram. Que ela vague
para sempre. (BRITO, 2003, p.158).
Irene é a mulher cuja vida entra numa ordem simples, natural e monótona, é a
mulher que pila o milho, espera o marido, repetindo ofícios milenares. Lua Cambará é
aquela que não domina as sutilezas da sedução, confundindo o gesto de prender com o de
acariciar, para quem reter e subjugar é como amar. É engraçado como a noção de amor para
a personagem se parece com o usufruto que se fazia do corpo das mulheres no regime do
patriarcalismo medieval. O que é condenado nela, tornando-se alvo da maldição de Irene,
seria o comportamento “masculino” como manifestação “incorreta” no gênero feminino?
Mas afinal, o que é condenado em Lua Cambará? Uma mulher que fizesse as
atividades desempenhadas pela personagem, tais como andar a cavalo vestida de couro e
gibão, açoitando negros, derrubando bois pelo sertão, provavelmente, causaria
estranhamento entre os vaqueiros, cuja relação de codependência, com os donos do gado,
foi na literatura regionalista e nos diários de viagem, romantizada, ridicularizada e talvez
incompreendida em sua profundidade.
Ainda hoje no sertão de Pernambuco, no Alto Pajeú, as mulheres que se
dedicam à vaquejada como esporte encontram resistência pelos apreciadores do gênero e
pelos vaqueiros, que custam a admitir a habilidade das vaqueiras, diminuindo sua
importância como vaqueiras de esteira somente, embora a técnica para derrubar o boi não
seja tão distinta quando no mato, na caatinga, exigindo cuidados adicionais em relação à
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vegetação e obstáculos no caminho, mas que não impedem a utilização da técnica
apreendida nas esteiras. Felizmente, esse é um espaço em que, gradativamente, as mulheres
veem conquistando e ajudando a quebrar os estereótipos sobre as suas capacidades e
habilidades.
Penso que a trajetória de Lua Cambará representa qualidades de mestiça, que
porto e identifico com um tipo de brasileiro em que qualidades intensificadas pela negação
do patriarcado machista se materializam em transgressões de gênero. Emerge, nessa
personagem, uma transgressora revolucionária, por não aceitar as normas de um
patriarcado machista num sertão remoto, longínquo, atemporal, glocal, conforme Milton
Santos, aquilo que diz respeito a algo que tanto é local como global, está no mundo e para
ele se projeta. Como sertaneja, percebo que o sertão está dentro de mim como uma ânsia,
eu o carrego comigo onde quer que eu vá.
A bastarda, concebida de um estupro, mestiça de “gênio ruim e raça de branco”
traz à tona os atravessamentos que perpassam a manipulação violenta do feminino e a
própria construção do gênero. Incorreta e deslocada, a personagem acorda os fantasmas das
tensões em que se deu a mestiçagem no Brasil.
Pois Lua Cambará mata esse feminino resignado, que se conforma com as
atividades atribuídas desde os primórdios da civilização ocidental colonizada, qual o lugar
desse feminino anárquico? Audácia e irreverência fazem da personagem uma feminista
para a época e contexto em que se situa. Ronaldo Correia Brito cria uma personagem
atemporal que, apesar de localizada num contexto específico, faz ponte com o tempo
presente e com as lutas atuais, faz pensar na trajetória das mulheres nesse contexto que se
diferenciam dos padrões difundidos pela Igreja, Estado e instituições familiares, embutidas
no cotidiano da sociedade da época, e que, de tempos em tempos, ameaçam retornar,
assombrando a nós mulheres, artistas, que nadam contra a corrent
65
CAPÍTULO 3: DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3.1 Procedimentos metodológicos
Imagem 6: Castelo Casa das Almas, Sítio das Almas, Rota do Cangaço, Triunfo. Divisa entre os estados de
Pernambuco e Paraíba. Fevereiro de 2018. Foto: arquivo pessoal da autora.3.1 Sangangá: Exercícios
iniciais
O conto Lua Cambará de Ronaldo Correia Brito vem permeando meu
imaginário desde 2009, eu sentia um forte desejo de fazê-lo se materializar na cena. No
entanto, a escolha em investigar caminhos de composição artística, a partir do conto, é
recente, o desejo precisou ir maturando dentro de mim até que, em 2015, pudesse dar início
às experimentações criativas.
O processo de construção da personagem Lua Cambará trouxe um
levantamento acerca das questões sobre a representação do feminino, na construção desse
feminino procuro explorar qualidades de energia e presença, através das matrizes da
cultura popular brasileira para a construção poética da cena de modo a dialogar com um
sertão mitológico.
Nesse tópico do trabalho, compartilho impressões a partir de três exercícios
iniciais: Laboratório, Oficina e Passeio, os quais culminaram na experimentação
audiovisual Sangangá e num esboço da dramaturgia cênica, baseado na escolha de
66
momentos chave, em que a perspectiva autoral busca traçar uma trajetória cíclica da
personagem. Ao escrever sobre o processo de construção da personagem, lanço-me nesse
abismo que é a escrita numa escrita sensível sobre a experimentação.
Ao privilegiar uma sensibilidade encarnada no corpo, direciono a escrita,
evitando a separação entre sujeito/objeto, atentando para aquilo que emerge das
experimentações, em que a pessoa da atriz caminha em direção à personagem, percorrendo
um trajeto, que não é linear, que transporta para a fricção desses dois polos na construção
cênica.
Reflito em rede, os três exercícios iniciais e como culminaram na
experimentação audiovisual Sangangá (primeiro exercício que realizei, de fato, na primeira
pessoa, como intérprete solista) na mesma medida em que vou tecendo a reflexão sobre
como Sangangá, despontaria no exercício cênico As nove luas de Lua Cambará, que é um
resultado triplo das experimentações criativas na pesquisa de campo, do registro
audiovisual dessas experimentações, da escrita de um texto dramatúrgico na cena.
Ofereço uma imagem ao leitor, que acredito, desenha o trajeto dessa reflexão:
faço uma trança com os três exercícios iniciais, o conjunto deles chamo Sangangá, os fios
soltos dessa trança irão se desdobrar novamente em três outros , que juntos formam o
resultado poético dessa criação.
Sangangá é síntese da dramaturgia cênica, mas também arrasta em sua
composição pistas dos exercícios criativos anteriores, desenvolvidos sobre três
perspectivas diferentes, constituindo modos de me aproximar da personagem, (como aluna
proponente de uma ação numa disciplina de mestrado, como facilitadora de oficina, e como
atriz-pesquisadora) até chegar à configuração atual.
Sangangá é um neologismo que emprego aqui aproveitando o contexto mestiço
da personagem, para realizar uma mestiçagem estética e poética de duas palavras do dialeto
nordestino, „Sangangu‟ e „Mangangá‟. Sangangu seria algo como confusão, desordem.
Mangangá é uma palavra que denomina um tipo de peixe marítimo cuja espinha dorsal
lembra a de um escorpião, mas apelida também um tipo de besouro, preto, roliço e voador.
Sangangá, portanto é um vento que passa deixando barulho.
Nessa experimentação, trabalhei com três motivações (motivo + ações)
retiradas do conto: o instante em que a assombração passa a vagar, o momento em que Lua
67
encomenda a morte de Irene e o grito da mãe que Lua Cambará arranca da garganta.
Imagens: 7, 8, 9, 10, 11, 12: Experimentação audiovisual Sangangá, Paviartes, sala AC 011 do Instituto de
Artes da Unicamp. Junho de 2017. Captação de imagens de Hariane Eva.
Aqui,
a metáfora tem um papel privilegiado, por integrar os sentidos à progressão
intelectual. Pode-se até dizer que ela se situa exatamente a meio caminho entre o
lugar ocupado pelo sentido na vida social e sua integração no ato de
conhecimento. (...) importa encontrar instrumentos adequados, dentre os quais se
conta a metáfora. (MAFFESOLI, 1998, pp.21-22).
Nesse sentido, a exploração dos elementos cênicos, tais como os objetos, a
maquiagem, o figurino, está relacionada a uma percepção de estados, sensações,
imaginação, durante a execução dos movimentos e na produção de imagens, na construção
de metáforas concretas no corpo e com o corpo, por meio das ações que vão se
descortinando. Esse exercício de observação ativa, em fluxo, difere de um modo cotidiano
68
de percepção, aproxima-se de uma meditação consciente que visa a entender de onde vêm
os impulsos, procurando no corpo a sua expressão.
Desenvolvi algumas ações com uma rede de pesca conhecida como tarrafa
pelos pescadores, principalmente levando em conta a utilização desse elemento como
objeto cênico e sonoro. Na extremidade aberta da tarrafa, há pedaços de chumbo que, ao
rolarem pelo chão de madeira, produzem um barulho que lembra correntes sendo arrastadas
ou as ondas do mar. Ao ser lançada com força, a referida rede também produz uma espécie
de zumbido em contato com o ar. Era um objeto que me dava possibilidades sonoras, de
movimento e de vestimenta. A tarrafa cabe como uma metáfora da trama que envolve a
personagem: do seu penar sem início, meio e fim, em que os nós da trama que a compõem
são imagens que remetem, para mim, aos pontos chave na narrativa.
O trajeto que me levou à experimentação com a tarrafa se iniciou com o
manuseio de um lençol de algodão de tear manual. Nessas ocasiões, eu cantava uma
música das Catadeiras de Mangaba de Sergipe, com versos em quadrinhas, que
terminavam sempre com “Adeus amor”, pensando na recusa do personagem João Índio ao
amor de Lua, experimentava movimentos de forrar e desforrar a cama, de lançar, puxar,
cobrir-me, descobrir-me. Os movimentos de lançar e puxar fizeram-me ter vontade de
possuir uma rede de pesca. A assombração aparece sendo carregada na rede, era um
trabalho solo, não ia ter ninguém para me carregar. Manusear a rede de pesca parecia
viável, com ela se pode carregar, arrastar, lançar e puxar, achei que poderia ser interessante
investigar esse objeto.
Procurei aprender a lançar a rede como os pescadores fazem. Ela abre no ar,
como uma teia de aranha, antes de cair no chão. Esse jeito de lançar, revelou-se no meu
fazer uma técnica corporal muito sofisticada, apesar de considerar o movimento
cenicamente interessante, a minha execução falha desse tipo de lançamento me levou a
outros caminhos.
O jeito que achei no meu corpo, de fazer esse tipo de lançamento, foi ficar
com a base aberta, com um pé na frente do outro, os joelhos semiflexionados, enrolar uma
parte da rede da mão ao cotovelo esquerdo, abri-la com a mão direita, por baixo, pôr uma
parte dela por cima do ombro, fazer uma torção de tronco para a esquerda e lançar para a
direita, com o auxílio da mão direita para abrir a rede. De cada dez lançamentos que eu
fazia, em um ou dois a rede caia aberta.
69
Esse movimento de lançar a rede, criou um tipo de partitura corporal que
depois apareceu noutros momentos. Também experimentava com a rede, entrar nela, girar
até ela se abrir em teia, lançá-la e puxá-la, em diversas direções.
A maquiagem composta de duas cores, o preto e o branco, cores que habitam a
personagem como forças contrárias e em atrito constante. A boca, de onde Lua arranca o
grito que era da mãe, é negra, os olhos também, mas a testa e o queixo são brancos, altivos. A
inspiração para a maquiagem veio do conto e do clip de Ney Matogrosso, Sangue Latino,
exibido pela TV Cultura, numa reapresentação do Programa Siempre em Domingos, da
antiga TV Tupi, nessa música, há versos como os seguintes que me inspiraram muito para
essa experimentação em vídeo:
(...) Rompi tratados /Traí os ritos/ Quebrei a lança /Lancei-me no espaço/ Um
grito, um desabafo/ E o que me importa/ É não estar vencido/ Minha vida, meus
mortos/ Meus caminhos tortos/ Meu Sangue Latino/ Minh'alma cativa.
Por mais que a personagem seja livre, tenha herdado poder sobre terras,
animais e homens, arrasta a sua sina de alma penada. É cativa de seu destino, da sua sina
de mestiça, mesmo subvertendo as regras do patriarcado, a heroína politicamente incorreta
permanece a vagar em caminhos.
Em relação ao conto, esta contradição aparece assim descrita: “Do sangue
branco herdou a vontade de poder, a desobediência às leis de Deus. Da mãe, recebeu o
rosário que carregava no pescoço. Tentava negar seu sangue negro, mas a cor não
deixava”. (BRITO, 2003, p.147).
A ambiguidade e a contradição da personagem está inscrita na pele de Lua,
assim como a pessoa da atriz, em que a cor da pele anula a presença em determinados
lugares brancos ou negros. O híbrido, o mestiço é então um “problema epistemológico”,
como diz Milton Santos, é aquele que não é nem uma coisa nem outra, embora seja ambas,
como se permanecesse suspenso, o seu posicionamento no mundo depende da categoria
com a qual se identifica, enquanto ainda não é possível aquela em que ele se acha, a de
ambíguo, contraditório, limítrofe, sem raça definida.
As cores da maquiagem formam uma máscara que revela a identidade caótica
da personagem. As linhas que delimitam os territórios negro e branco no rosto, vão, aos
poucos, borrando suas fronteiras, então se constrói o entre, como uma fenda que a lágrima
abre na máscara e dá espaço para surgir a verdadeira identidade, esta que é mestiça,
70
borrada.
O corpo manchado de lama, carrega a mácula do seu nascimento, uma
concepção de um estupro e a decisão em negar o sangue materno, aprisiona a personagem
numa promessa feita no leito de morte do pai, essa mancha a acompanha ao longo da sua
trajetória. Ainda pequena, mama o sangue nos peitos da mãe morta, mais tarde, renega esse
mesmo sangue escravo do qual se alimentou, ao negar a mãe, nega toda a possibilidade de
reconciliação com o afeto. Expostas, na pele, no rosto, no corpo seminu suas mazelas.
Ao encomendar a morte de Irene, “como se faz com as cabras em dia de
sábado”, a sentença de uma, passa a ser a da outra. Não é Irene simplesmente que a
personagem deseja matar, mas um tipo de construção do feminino de que não pode
suportar a existência, como se matasse em si a própria sombra. Em Sangangá, executei a
ação de cortar a mão com uma adaga, aproximando o corte da chama da vela, enquanto
pronunciava a frase dita pela personagem ao capataz. Essa ação que aparece no conto
descrita assim: “queimou a palma da mão aberta, como quem pronuncia uma sentença”,
não tinha relação com a autoflagelação por meio do corte no vinco da mão, porém nesse
exercício, associo o corte da adaga aos espinhos que Lua deixa rasgar suas carnes na
corrida desembestada na caatinga.
Após a experimentação, retomei a leitura do conto na passagem da morte de
Irene, me dei conta de que Lua Cambará sofre a maldição lançada por ela quase
simultaneamente à sua morte, passando a repetir a sentença infinitas vezes, enquanto corre
na caatinga, deixando os espinhos rasgarem seu corpo, abrindo cortes que sangravam sem
cessar. Em minha perspectiva, nesse gesto de cortar-se, a personagem revive a culpa da
morte que encomenda para a outra, como se Irene fosse o duplo de Lua sendo, portanto,
impossível matar um aspecto do feminino em si, sem que os outros não sintam as
consequências da quebra, principalmente porque eu compreendo a personagem numa
dimensão tríplice. Na dualidade, é que eu percebo residir a verdadeira maldição de Lua, a
opção de um aspecto, em detrimento de outros, cria ocasião para se instalar o desequilíbrio
na personagem:
O capataz nunca a tinha visto de olhos baixos, até o dia em que pronunciou a
sentença fatal. Também não viu quando ela precipitou-se correndo, no
emaranhado de espinhos e galhos secos da caatinga, urrando feito animal ferido,
os cabelos enganchando-se nas unhas de gato e gitiranas, perdendo a sanidade e a
beleza no assomo de loucura. (...) – Com a mesma compaixão com que sangro
uma cabra, eu te sangro – repetia Lua, (...) já perdera a conta das vezes que
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repetia a sentença que também era sua. Não tinha como escapar. (...) Parecia uma
eternidade aquela corrida. Os espinhos da mata cravavam-se no corpo opulento de
Lua, abrindo feridas que não paravam de sangrar. (BRITO, 2003, pp.155- 158).
Ao refletir sobre as escolhas poéticas, nesse exercício criativo, em que o
registro audiovisual é um recorte da experiência, percebo influências das pistas que
despontaram nos exercícios anteriores. Até chegar a uma perspectiva autoral audiovisual,
passei por três momentos decisivos, Laboratório, Oficina e Passeio.
O primeiro exercício se deu na disciplina Laboratório de Criação, oferecida no
segundo semestre de 2015, no programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, na
Unicamp, em que tive a oportunidade de desenvolver uma aproximação com a personagem
Lua Cambará, como aluna proponente de uma ação, com o auxílio dos colegas da
disciplina para serem os intérpretes, em que a partir das indicações propostas ao conjunto
de alunos, cheguei a alguns apontamentos iniciais que passaram a fazer parte das
investigações criativas.
O segundo exercício aconteceu numa oficina que ministrei de 21 a 23 de
setembro de 2016, no Festival de Artes do Instituto de Artes, na Universidade Estadual de
Campinas, intitulada Laboratório de criação: composição de partituras a partir do conto
Lua Cambará e dos arquétipos de Oxum, Yansã e Nanã. Como facilitadora da oficina,
observei e testei os materiais selecionados para o primeiro exercício (fragmentos extraídos
do conto e imagens relacionadas aos arquétipos da moça, guerreira e anciã), acrescidos de
fotografias de idosas e do poema Mãe Preta, de Patativa do Assaré.
Nesse exercício, precisei criar um ambiente de confiança e de participação para
as pessoas que vieram fizeram a oficina se soltarem mais, criando livremente a partir
desses materiais. Nos primeiros dias, senti que o formato de oficina fez com que ficassem
esperando repetir alguma coreografia, visto que a maioria era de alunas da dança, ao invés de
criarem mais espontaneamente, agregando a voz ao movimento, por exemplo, ou
desconstruindo passos aprendidos anteriormente. Busquei quebrar essa expectativa, para
que não houvesse apenas uma imitação de movimentos, para isso, direcionei improvisações
criativas, a partir dos materiais, ora participando junto da investigação, ora observando
ativamente.
O terceiro exercício, por sua vez, foi no dia 18 de outubro de 2016, por volta
das 18h, na lua cheia, em que munida pelos exercícios anteriores, parti para uma
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experimentação como atriz pesquisadora juntamente com pesquisadores do grupo de
pesquisa Pindorama3, propus um passeio à Praça da Paz, na Unicamp, a fim de investigar a
primeira imagem do conto Lua Cambará, em que o cortejo de vultos passa a vagar
carregando a morta na rede.
Nos dois primeiros exercícios, trabalhei com fragmentos do conto e imagens
relacionadas aos arquétipos de Oxum, Yansã e Nanã com a intenção de que esses estímulos
pudessem gerar ignição criativa de materiais cênicos. No Laboratório, dei algumas
indicações de movimento e de vetores no espaço, usando a classificação dos fatores de
movimento do sistema Laban/Bartenieff, os quais relaciono com as danças desses orixás.
Já no segundo exercício, na Oficina que direcionei como facilitadora, busquei que a
identificação com os arquétipos fosse mais orgânica.
Nessa ocasião, o modo como inseri as imagens quebrou o andamento do
trabalho e fez com que os participantes da Oficina entrassem num fluxo mental,
bloqueando impulsos espontâneos no corpo. Isso se repetiu outras vezes, nos laboratórios
em duplas que realizei, após os três primeiros exercícios. Então, passei a questionar a
utilização de imagens como estímulo para a composição. Um problema que apareceu foi de
que maneira inserir imagens sem ficar presa à forma, mas dançar a sua essência, fazendo
com que possa acordar respostas motoras, imagéticas e ações, trazendo para o corpo uma
imaginação ativa que seja capaz de acionar tanto o trabalho de criação exterior quanto
interior da personagem, em que aquelas imagens possam ser ignição criativa sem limitar as
possibilidades de investigação.
A fim de responder a esse questionamento, de como trabalhar em fluxo com as
imagens nos laboratórios individuais, criei uma ambiência com algumas imagens
disponíveis na internet, as quais imprimi e dispus na sala de ensaio, em formato circular,
em que me coloquei dentro da roda com as figuras em torno, procurava gingar/jogar com
cada uma, colocando-me permeável a esses estímulos, tanto aqueles que convidam a
movimentos mais introspectivos, quanto a uma agilidade e expansão ou a um peso e
densidade mais intensos. Atualmente, não uso mais as imagens, elas encontram-se agora
3 O grupo nasceu e faz parte da Universidade Estadual de Campinas desde 2010. É formado por
pesquisadoras e pesquisadores do teatro, da dança e da performance, vinculados ou oriundos de pesquisas de
iniciação científica, mestrado e doutorado dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Artes da Cena
da UNICAMP. O escopo de pesquisas do grupo vai desde a espetacularidade popular brasileira, até à
produção teatral na contemporaneidade. O Pindorama tem se tornado um grupo cada vez mais afeito aos
diálogos entre linguagens artísticas, tendo flertado com o cinema, a música e as artes visuais performativas.
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diluídas nas ações da personagem.
Nos três dias de Oficina, optei por iniciar e finalizar os trabalhos com cantos em
roda, dentre eles, o Toré, Cocos de Pernambuco, Afoxés. Nessa ocasião, participava
ativamente na roda dos inícios e fechamentos, não só direcionando, mas procurando unir
vozes e corpos como um só corpo instrumento, no sentido de que a voz pudesse ser um
instrumento musical com o corpo, de modo a expandir a percepção sobre o espaço, mas
também construir juntos, sensações de acolhimento, de silêncios e vibração.
A partir dessa Oficina, uma metodologia de trabalho foi se construindo nos
laboratórios em sala de ensaio, onde cantos de tradição coletivos criam uma organização e
percepção espacial diferente, cantá-los faz parte da poética que estou criando e do meu
guarnecer. Adotei como marcador, para iniciar o trabalho, a prática de cantar alguns Torés
da etnia Kapinawá, Cantos Rojão da etnia Kariri Xocó, Ladainhas para o Divino Espírito
Santo e para Nossa Senhora da Guia, que aprendi com as Caixeiras das Nascentes,
enquanto vou tirando da mala, os objetos, os figurinos, aprontando o espaço. O que esses
cantos têm em comum é que são cantados em situação de convívio e no coletivo, em rodas,
ou batalhões.
É quando peço minha licença, toco meu tambor nas quatro direções, saudando
a Rosa dos Ventos, o espaço, as outras dimensões, as personagens. Digo para mim mesma,
estou aqui, para as personagens vocês estão aí, olá, como vão? Vamos dançar? Curioso,
cantar canções coletivas e criar essa sensação de que não jogo sozinha, trouxe-me mais
concentração no trabalho, presença, no sentido de conscientizar-me do estou aqui e agora
com vocês. Mesmo que se trate de um trabalho solo, pensar nas personagens como colegas
de trabalho, que eu saúdo com reverência, com respeito, por tudo que me fazem sentir e
viver, como “encantados” que vêm do astral, do invisível para estar ali comigo naquele
momento, fez-me ter também respeito pelo trabalho, pelo combinado, aquietando o vazio,
a vontade de ir embora, de abandonar o que estava fazendo, enfim a todas as formas de
evasão que experimentei de início.
Pensar nas personagens como “encantados”, também me fez conectar com
memórias vividas e narradas dos meus ancestrais na sua ligação com as entidades que
baixam nos terreiros, como Boiadeiro (Gonçalo-Marcolino/ vô Balbino), Preta-velha
(Cacurucaia Maria/ avós), Orixá (Yansã de Balé, Oxum Apará, Nanã Bruku) e Pomba-
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Gira (Sete-Saia, Maria Mulambo, Maria Navalha), num tensionamento entre memória,
imaginação, observação, mito, criação artística, na elaboração de uma “colagem de
espelhos”.
Cantar esses cantos foi algo que despontou no primeiro exercício, no
Laboratório, dei-me conta de que Lua Cambará podia cantar, ao direcionar e assistir o
trabalho dos colegas na disciplina ofertada pelo curso do mestrado, em que propus uma
ação inicial de investigação e aproximação com a personagem. Então, a partir daí, passei a
investigar cantos da cultura popular brasileira. Experimentei cantar nos laboratórios
individuais cantos de invocação da lua no Santo Daime, das Catadeiras de Mangaba de
Sergipe, aboios do Boi do Maranhão, do Cavalo Marinho de Bayeux, de vaqueiros do
Sertão pernambucano, Incelências e cantos em Yorubá de matriz afro brasileira. Dessas
experimentações, alguns cantos se acomodaram no meu guarnecer, outros migraram
também para a cena, ao passo que agora é como se o processo não fizesse sentido sem eles.
Como parte da metodologia de trabalho, procurei desenvolver as habilidades de
cantar, tocar, dançar, concomitantemente. Inspiro-me na lógica da cultura popular na qual
essas habilidades são integradas no fazer artístico, em contraponto a um jeito de fazer
aprendido na academia, no curso de graduação em teatro, em que as aulas de corpo e voz,
que tive em minha formação, eram separadas. Compreendo essa didática, que separa, como
geradora de um condicionamento no estilo de montagem em série, em que cada peça é feita
em separado na construção de um ator máquina.
Mesmo procedimentos de ensaios em grupos de teatro aderem a uma
lógica semelhante, na qual o trabalho se desenvolve em etapas, alonga-se o corpo,
aquece-se o corpo, aquece-se a voz, para então relacionar-se com o espaço, com as
pessoas, entrar em trabalho por meio de improvisações, depois, fixando o material,
esse é um modus operandi bem comum no teatro. Felizmente, não é o único, podemos
encontrar diversas abordagens. Apesar da tentativa, pude verificar o quanto eu mesma
estou condicionada a esse modo operacional, nem sei se consegui escapar daquilo que
eu mesma critico aqui, estou nessa busca, pode ser que leve ainda mais tempo para me
desautomatizar.
Enquanto artista da cena, vejo-me diante de uma grande encruzilhada:
como posso amalgamar ambos os saberes, popular e acadêmico, sem segmentar corpo
e voz no fazer artístico? É por isso que procuro desenvolver a minha maneira de
desconstruir essa lógica através da Filosofia do Guarnecer cantando, dançando,
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tocando, brincando em vivências práticas em loco com a cultura popular, nutrindo-me,
nessas ocasiões, para desenvolver tais habilidades e, quem sabe, poder criar um jeito
outro de lidar com o trabalho de criação artística.
Quanto ao espaço cênico, no Laboratório realizado na disciplina da pós, em uma
das improvisações feita pelas colegas da turma, ficaram pistas que despontavam para a
possibilidade de utilização cênica de lugares cotidianos, numa poética de criação com o
espaço, fazendo emergir de espaços cotidianos uma teatralidade que passava despercebida.
O que mais tarde me encorajou a realizar o Passeio na Praça da Paz, assim como me fez
aventurar-se em espaços que não eram próprios para ensaiar, como as quadras da FEF
(Faculdade de Educação Física da Unicamp). A falta de locais disponíveis somada à
vontade de fazer e o desafio de concentração foram exercícios valiosos que me
impulsionaram a mais tarde realizar as experimentações na pesquisa de campo no Sertão.
Nesse período, não havia salas disponíveis no Barracão das cênicas para
trabalhar, isso me forçou a sair bastante da minha zona de conforto. Os espaços em que
passei a ensaiar na Unicamp, exigiam de mim um estado de atenção muito grande, tanto
nas quadras abandonadas da FEF, de segunda e terça, como no palquinho do Centro de
Convenções da Unicamp, às quartas feiras, sempre havia gente jogando bola no entorno.
Bolas e funcionários atravessando o espaço da cena, sem pedir licença, nem desculpa.
Certa vez na FEF, ensaiava respondendo às provocações do diretor paraibano Elias de
Lima, sob o chão de cimento grosso, quando a quentura do chão tirou a pele dos pés e das
costas das minhas mãos. Às vezes, para variar o chão, ensaiávamos no bosque, ao lado das
quadras esportivas, sobre a terra, que apesar do desnível, era mais agradável ao contato.
O desrespeito das pessoas que atravessam a cena em busca das bolas perdidas,
de início me aborrecia, pensei em agir com a mesma grosseria, mas foi incrível como um
pouco de humor resolveu metade das distrações, no Centro de Convenções, pelo menos,
sem precisar de maiores aborrecimentos. A insistência em ensaiar nesse local me fez lidar
com os funcionários que atravessavam o espaço com um jogo: se eles atravessassem a cena
iam ter que dançar comigo, a música que eu estivesse dançando na hora, resultado, eles
começaram a evitar passar pelo meio, começaram a passar pelas bordas.
Colho dessa experiência a possibilidade de ensaiar em qualquer espaço. É claro
que num local preparado para a cena, o trabalho tem um tipo de qualidade, mas as nuances
que outros espaços acrescentam como “treinamento de presença”, digamos assim, são
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bastante válidas para o meu percurso, na falta de um espaço ideal, eu não deixei de
produzir, eu não deixei de ensaiar, eu não deixei de treinar, de criar sentidos. Isso me
fortaleceu na pessoa de atriz, porque me permitiu abrir para outras possibilidades, como as
dimensões ampliadas de verticalidade e horizontalidade, que podem trazer-me a sensação
de ser engolida pelo espaço, o que me força a ampliar a presença física.
Em uma dessas ocasiões, em que estive no bosque, por exemplo, a camada
anciã da personagem começou a surgir, creio que em decorrência de uma forte relação com
o espaço, de estar com pés sobre a terra, pisando raízes de árvores, até que, de um ponto da
Jurema, começou um pequeno esboço da Cacurucaia Maria, sob o olhar atento e as
provocações pertinentes de Elias de Lima.
Essa experiência com outros espaços, para além da sala de ensaio, deu-me
como possibilidade pontos de vista distintos, primeiramente como aluna proponente da
ação, depois como atriz no Passeio, em que a ação com o espaço sai dos corredores do
Instituto de Artes, para uma praça pública próxima aos departamentos de química, biologia
e engenharia de alimentos, porém ainda dentro dos contornos da Universidade.
Compreendo esse avanço territorial ultrapassou que Instituto de Artes como uma
necessidade de obter outros olhares, diferentes daqueles já habituados com intervenções
artísticas, além disso têm coisas desse trabalho que não caberiam na sala de ensaio.
Na intenção de vivenciar outras perspectivas sobre o trabalho é que se deu o
Passeio. A praça como lugar de passagem, onde eu poderia experimentar um estado de
transeunte em que Lua também passa a vagar, juntamente com os colegas do Pindorama,
caminhando por caminhos de terra, fazendo trajetos cíclicos. Ao Passeio, seguiram-se
outras experiências de contato com esse estado de errância do vagar.
Ainda sobre o primeiro exercício, a improvisação de um dos grupos, realizada
na sala de aula, despontou para o grito mudo em Sangangá, essa é uma ação que surgiu
também a partir de imagens trabalhadas no Laboratório e que tornaram nessa
experimentação como inspiração poética daquilo que é inominável. O grito que Lua arranca
da garganta era o grito da mãe “extraído de suas entranhas”, dentre as diversas
possibilidades acordadas por essa motivação retirada do conto, uma delas é a expressão do
grito mudo. Este, deu lugar a uma metáfora que escrevi com a ação de tirar da boca fios
vermelhos, fios que são usados normalmente para tecer ou costurar. Essa ação, para mim,
provoca uma associação com aquilo que a gente cala, gerações a fio, os segredos, os tabus,
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os silêncios que são rompidos simbolicamente com a metáfora da ação.
Tornei a investigar essa ação nas experimentações que fiz no Castelo da Casa
das Almas, antes em Sangangá desenhada apenas com o grito mudo, ao que foi acrescido o
fio vermelho. Deixei-me guiar pela intuição, sentia que era algo que, apesar de não
entender, não podia simplesmente descartar, pois nem tudo passa pelo crivo da razão
quando estamos em processo criativo, há coisas que só depois vão assentando. Dessa
forma, persisti nessa ação no exercício As nove luas de Lua Cambará.
Como provocações para o trabalho, na Oficina, vieram conversas e reflexões
que mudaram o modo como eu enxergava a pesquisa sobre a criação da personagem Lua
Cambará. As dificuldades por parte dos participantes em adentrar nos exercícios que
visavam à identificação com as imagens arquetípicas da moça e uma preferência unânime
em vivenciar o arquétipo da guerreira, fizeram-me pensar sobre qual representação do
feminino estava tratando e sobre os atravessamentos que perpassam a construção do
gênero.
Os retornos problematizaram questões acerca da construção do gênero nos
corpos, nessa construção, foi quase unânime, nas falas, a identificação da necessidade de
exclusão de alguns aspectos como proteção pessoal, aqueles como a fragilidade,
sensibilidade, feminilidade, vistos de forma pejorativa. Acredito que o mais danoso seria a
construção de um feminino unilateral, em que os aspectos negados criam outras
dicotomias, escanteando outras inteligências nas quais atuam as forças sensíveis, por assim
dizer.
A discussão acalorada, ao final da oficina, convidou à possibilidade de
trabalhar com a personagem de Lua Cambará que, na minha leitura, recupera imagens
arquetípicas das mitologias matriarcais, em que o elemento cósmico da lua evoca um
aspecto tríplice que une sombra, luz e penumbra, uma vingadora sanguinária, uma
revolucionária para o contexto do conto, uma assombração que tanto provoca medo como
desejo de entrega, sem criar dualidades na escolha desse ponto de vista. É o que tentei
fazer nas experimentações em primeira pessoa como atriz, no Passeio, em Sangangá e nas
nove luas de Lua Cambará: unir os aspectos aparentemente opostos, mas complementares
na personagem através dos signos cênicos.
Ao lidar com o material extraído do conto nas experiências com o Laboratório
e Oficina, outras perspectivas de cena colaboraram para desconstruir imagens prévias, à
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medida em que pude vislumbrar outros modos de compor, diferentes daqueles que
imaginava quando propus os exercícios. Puderam ser experimentadas partituras vocais,
sonoras e de movimento, apontando uma metodologia de trabalho e abordagem do conto.
A partir dessas experiências, realizei trocas com outros artistas, em que eu direcionei as
investigações como proponente e trocas em que fui direcionada como atriz, laboratórios
individuais, laboratórios com testemunhas, nos quais, munida e avivada pelo coletivo,
tornei ao material aberta para investigar ações de modo a criar numa via de mão dupla
entre coletivo e a singularidade.
Lidar com a dificuldade de se auto dirigir foi um caminho áspero e que apontou
numa primeira instância a três soluções mais imediatas: Convidar uma atriz para ser a
intérprete; convidar alguém para dirigir minha atuação; deter-me na escrita dramatúrgica
da peça, deixando para a posteridade a montagem. Inicialmente, a pesquisa trata das
problemáticas que envolvem a criação de personagem enquanto trabalho de atriz, aliada à
criação de uma dramaturgia, a partir de um conto da oralidade. Estar em primeira pessoa
direcionando o trabalho e executando, foi uma batalha, ao que eu optei por uma resolução
plausível, chamando provocadores de laboratórios até o momento em que encontrei um fio
pelo qual pudesse seguir.
Tais provocadores leram o conto e propuseram exercícios, a partir de suas
impressões sobre o que julgavam fundamental desenvolver como atriz, para que pudesse
encarnar as qualidades de Lua. Trabalhei com propostas diferentes que trouxeram pontos
de vista bem distintos, alguns bastante enriquecedores, outras proposições ao contrário, não
convergiam com a poética que venho buscando, nem por isso, diminuo a experiência, pois
também por meio desses encontros, entendendo o que não era o trabalho é que fui
encontrando pistas do que poderia ser.
Dentre as dificuldades de dirigir o próprio trabalho, a primeira, nesse sentido,
foi no Passeio, em que coordenei os integrantes do grupo Pindorama. Essa ação envolveu
alguns preparos, mas não realizamos ensaios para o acontecimento, a não ser com o músico,
pois havia me organizado para cantar algumas canções que vinham fazendo parte do meu
imaginário: os Cantos da lua, de Cristina Tati, (em que trabalhei com duas canções de
invocação da lua no Santo Daime) Carcará, conforme cantado por Sandra Belê e Senhora
Santana, das Lavadeiras de Almenara. O preparo também se deu no sentido de
providenciar os elementos cênicos da ação, a rede de varanda, flores, velas, espadas de São
Jorge, incensos, água de cheiro. Queria que o cortejo tivesse cheiro, deixasse rastros, tivesse
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luz própria, itinerante.
A ação que propus ao grupo era simples, investigar a primeira imagem que
aparece no conto: o cortejo de vultos que passa a vagar, carregando a morta na rede. Meus
colegas transportavam a rede transpassada por um cabo de madeira de uma ponta a outra,
enquanto isso, eu deixava atrás de nós um caminho de flores brancas, como se Lua
Cambará passasse a vagar, debulhando sua própria coroa fúnebre. Para providenciar o
corpo, nós colocamos todos os nossos pertences enrolados num edredom e amarramos a
rede com uma corda de sisal, parecia um corpo que seguia para o enterro e sobre o qual
pretendia-se precaver. Vestidos de branco, caminhamos aproximadamente três horas,
lentamente, por caminhos de terra à espera da lua, o seu surgimento no céu marcaria o
momento de iniciar os cantos.
A rede foi um tema que retornou em Sangangá, não mais conforme descrito no
conto, e sim como metáfora no figurino e objeto cênico, posteriormente, essa metáfora
seria o próprio figurino de Lua. O tema da rede, como esse elemento que carrega, que
arrasta, que transporta, retorna não mais fora do corpo da atriz ou como elemento
sobreposto, mas vestindo-o, dessa forma, o invólucro que envolve o corpo da assombração,
ao invés de acontecer numa relação passiva como no conto, sendo carregada, é ele quem
sai carregando galhos, folhas, terra pelos caminhos, traçando trajetos.
No Passeio, a reação das pessoas na praça parecia distante do acontecimento
como se fosse algo rotineiro, apesar de estarmos afastados do Instituto de Artes, com
exceção de uma senhora e três rapazes, que se aproximaram tentando entender o que estava
acontecendo. Os rapazes, por sua vez, resolveram participar da ação junto conosco e nos
acompanharam por todo o percurso. Parece que além de sair do Instituto de Artes é preciso
sair dos portões da universidade.
No Passeio, comecei a entender por que, canções vêm habitar meu imaginário
quando procuro me aproximar da personagem. No intuito de cumprir o roteiro da ação, que
era cantar, assim que a lua se mostrasse no horizonte, acender as velas e partir deixando os
rastros das flores no espaço, vi-me diante de algo que poderia não ter fim, perdi a noção do
tempo e nossa caminhada durou mais do que o previsto. Lua Cambará canta, já que a terra,
o céu e o inferno não quiseram lhe aceitar, ela passa a vagar sem fim, então ela canta para a
lua, para se embalar, para buscar conforto ao seu destino de alma penada a vagar.
É importante situar que apesar desta pesquisa centrar-se na criação de
personagem em que eu atuei como atriz, não se trata de um projeto endógeno e
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autossuficiente. Cada pessoa que tem contribuído para que a pesquisa aconteça é muito
importante. Mãos que talvez não apareçam no produto final, mas que têm deixado sua
marca, suas provocações, têm me feito refletir sobre as experimentações durante esse
processo de criação.
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Imagens 13, 14, 15, 16, 17, 18: Passeio. Pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa Pindorama:
Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello, Ysmaille Ferreira, Inácio Azevedo e passantes Lauro Mota,
Hugo Kojimiura e Victor Santos. Praça da paz, Unicamp. 18 de outubro de 2016. Fotos de Letizia Nicoli.
Uso as imagens aqui, num sentido de foto-grafias, no sentido de escritura poética
semelhante às pinturas rupestres ou aos hieróglifos, cujos significados vão além da forma,
como uma linguagem, dotada de signos e não somente como um recorte de uma partitura
de movimento. Elas são o registro da experiência, mas também escritas no tempo, rastros
do processo o qual vai chegando a um ponto de acomodação. Apresento a seguir uma
tabela que sintetiza os exercícios até aqui rememorados, salientando quais pistas tirei de
cada um deles para a criação:
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TABELA 1- EXERCÍCIOS DE CRIAÇÃO
Os encontros, dados nos três primeiros exercícios, culminaram na criação da
experimentação audiovisual Sangangá em que contei com colaboradores para a realização
e espectadores convidados para a sua „estreia‟ virtual. O público que assistiu ao trabalho
foi composto de alguns colegas do programa de pós-graduação e do grupo de pesquisa
Pindorama, seus apontamentos fizeram-me repensar o trabalho numa regravação, de modo
a me aprofundar nas ações e na utilização dos objetos, em repensar a maquiagem,
encontrar uma edição que favorecesse a linguagem.
Com a experimentação que fiz em Sangangá, ficou mais claro sobre quais
Data Exercício Materiais Contexto Função Metodologia Resultados
11/11/15
Laboratório
de Criação.
Imagens, fragmentos
do conto, vetores.
Alunos da pós-
graduação. Aluna proponente
de uma ação na
disciplina
Indicação de
Vetores (Laban)
Improvisação
Lua canta
Laboratórios
coletivos e
individuais
21- 23/
09/16
Oficina Feia.
Fragmentos do conto,
Poema, Imagens,
fotografias, canções e
danças
Alunos da
Unicamp dos
cursos de dança,
música, Pós e
amadores.
Facilitadora da
oficina.
Roda, cantar e
dançar junto,
improvisação
individual e em
grupo.
A roda não tem
início, meio e fim.
Buscar organicidade
da roda.
Como
trabalhar com
imagens?
18/10/16
Passeio
1ª aparição do cortejo
de vultos no conto
Atriz em
colaboração com
membros do
Pindorama
Atriz
pesquisadora do
Pindorama
Passeio –
performance
Ação com duração no
tempo
22/06/17
Aula
performance
Imagens, fotografias,
fragmentos do conto,
cantos e danças
populares
Alunos da Pós-
graduação
Aluna proponente
de uma ação na
disciplina
Roda, cantar e
dançar junto,
improvisação em
grupos.
Instauração de uma
vivência
06/07/17
Sangangá
Imagem da Santa de
Los Muertos,
fragmentos do conto,
2 objetos cênicos,
aboio do Boi do
Maranhão.
Atriz (1ª vez
encarando a
personagem na1ª
pessoa, solista)
Atriz
Improvisação
sobre os materiais.
Lua se corta.
Proposição de vídeo
arte.
83
fragmentos do conto eu gostaria de me debruçar na criação, principalmente o que faltava
contemplar. Nesse sentido, tracei uma mandala que marca os momentos que considerei
importantes construir na cena, a partir desses primeiros esboços. A mandala também
sintetizava numa imagem, a minha sensação sobre a narrativa do conto, cíclica, em rede,
foi por meio dessa visualização que posteriormente criei um roteiro textual de ações e um
esboço do texto da personagem.
Marquei os momentos mais relevantes da narrativa como se fossem fases da
lua, em que as 9 luas de Lua Cambará, não constituem uma trajetória retilínea, mas
circular, onde um momento contém a semente do outro, sem que precisem estar
encadeados. Após a realização de Sangangá, esse gráfico serviu como ponto de orientação
para a criação das cenas.
A ideia quando desenhei a mandala das 9 luas, era recuperar dos sonhos que
tive com a personagem, a possibilidade de iniciar o espetáculo de qualquer ponto, como se as
cenas fossem independentes, porém articuladas entre si. Assim o espetáculo nunca seria o
mesmo, abarcando as diversas possiblidades apontadas a partir do texto, absorvendo na
própria estrutura de execução aquilo que não tem começo, meio ou fim, como é a própria
trajetória da personagem. Essa é uma lógica possível, mas percebo que as possibilidades
acordadas vão se afunilando e encontrando na linguagem dramatúrgica uma poética
específica.
3.2 Sobre fazer à mão, artifício e artesania
Richard Snennett (1943) propõe uma visão equilibrada em suas considerações
sobre o artífice e o processo de construção de peças artesanais, para ele: “o pensamento e o
sentimento estão contidos no processo de fazer”. No capricho que leva o ser humano a
produzir obras acabadas, bem-feitas, por meio de um impulso básico, derivado do
desenvolvimento de habilidade manuais, “as pessoas podem aprender sobre si mesmas,
através das coisas que fazem”, por meio da imaginação atrelada à prática corporal, numa
espécie de saber alcançado com a mão, “através do toque e do movimento”.
Posso dizer que, nesse sentido, o presente trabalho se aproxima muito mais do
artesanato, por incorporar no seu fazer uma lógica que vem das rodas, da convivência, da
geração de communitas. Resulta de uma trança entre diversos materiais que derivam desses
84
contextos, afetivos, proximais, participativos, em que a propriocepção de artista foi
atravessada por relatos e objetos portadores de memórias que guarneceram o corpo,
imaginário e raízes da pessoa, antes de virarem materialidade na cena.
Nos caminhos pelos quais andei, nos trajetos no campo de pesquisa, deparei-
me com peças artesanais, desde o litoral paraibano até o Sertão pernambucano, passando
pela Rota do Cangaço, na cidade de Triunfo e no Quilombo do Travessão do Caruá, no
município de Carnaíba em Pernambuco. A relação com esse tipo de fazer transbordou na
criação, perpassando desde a concepção de figurino, maquiagem, adereços, na encenação,
no trabalho de atriz, em que identifico algo de artesanal, quase “caseiro”, no modo como
fui construindo esse exercício cênico, privilegiando um ponto de vista intuitivo, afetivo e
aproximativo no decorrer do processo criativo e nas relações interpessoais que tracei nesse
percurso.
Nesses trajetos, inspirei-me a partir de diversos materiais com que tive contato
por meio dos sentidos: as cores e cheiros dos temperos, nas barracas da feira, as texturas
das peneiras e bonecas de palha, das bonecas de pano feitas à mão, das bonecas de EVA,
de pinturas e esculturas de artistas locais, dos cintos e bainhas de couro bordados à mão, de
canga para carro de boi talhada no tronco de madeira inteiriço, dos crochês, fitas, babados,
da textura das pedras, sabugos de milho, cerca de vara e arame farpado, dos troncos de
árvores secos, das casas de vara trançada com barro, dos potes de barro e canecos de
alumínio, dos cacos de telha, da textura e perfume das flores de Jurema Preta, das flores do
Mandacaru, de Pau Brasil e Sombreão, da textura e cheiro da lama, do gosto e cheiro de
água de pote, de terra molhada em fim de tarde, de feijão da roça catado à mão, com
farinha feita na casa de farinha, de peixe na folha de bananeira, cozido na brasa do fogão à
lenha, do barulho de folhas secas no chão, do vento, de chuva, de trovão, de silêncio, do
cacarejar de uma galinha, e do berrar de uma cabra, do cantar ensurdecedor de sapos, nas
primeiras chuvas, do cheiro de água de açude, do nascer e pôr do sol em seu esplendor, do
nascer da lua e das suas passagens, do cantarolar de um vaqueiro em fim de tarde, ou de um
rádio que embala a solidão.
Tudo isso se converte em imagem, sensação e materialidades nas cores, texturas
de figurino, de cenário, da construção do espaço cênico que tem uma ligação direta com o
fazer, este fazer da artesania, daquilo que a indústria não vende que só se faz à mão. Ao
primar por isso, neste trabalho, fortaleço ainda mais o sentido da Filosofia do Guarnecer,
85
dessa forma ela vai ganhando estrutura, vai ganhando osso e corpo a partir dos encontros.
Por exemplo, a confecção dos figurinos acompanhou pari passo o processo
criativo, em parceria com a artista e artesã Elisabete Santana de Lima, da qual tenho o
privilégio de ser filha, esta que é liderança comunitária no Sítio Barro Branco,
representante das agricultoras do Alto Sertão do Pajeú de Afogados da Ingazeira, em
Pernambuco, na Rede Mulher Nordeste. A partir das experimentações realizadas no
campo de pesquisa, no Sertão Pernambucano, houve empatia junto ao processo criativo por
parte dessa artesã e então os figurinos têm sido confeccionados à medida que os ensaios
vêm acontecendo. Mesmo depois que retornei do campo de pesquisa, estamos nos
comunicando, venho compartilhando inspirações e descobertas a partir dos ensaios e
Elisabete Santana, por meio desses relatos, vem tecendo, peça a peça desse espetáculo.
As bonecas foram algo que me chamaram bastante a atenção por onde caminhei
em meus trajetos. Fazer uma boneca, parece-me, tem a ver com contar histórias, com tecer
imaginários e criar narrativas. Nas conversas que tive com diversas artesãs nas feiras em
Pernambuco e Paraíba, era notável o carinho, o respeito e a existência dessas narrativas
simbólicas que criavam um vínculo dessas artistas com suas obras. As bonecas que agora
fazem parte da cena introdutória do espetáculo, por exemplo, adquiri em uma feira de
artesanato, em que uma senhora aposentada colocou-as à venda. A finalização delas
chamou-me a atenção: eram bordadas, mas todas as linhas que costuravam seus corpos
apareciam, assim sem acabamento, os nós estavam expostos na superfície evidente da pele
das bonecas.
Isso me levou a incorporá-las na cena, de modo a tornar presentes os corpos
ausentes das primas da personagem, que morrem assassinadas antes de nascer o filho
varão, de modo a criar ações simbólicas a propósitos que vão além do que está escrito no
texto, como tratar mesmo que indiretamente, do feminicídio.
Essa é uma escrita sensível do fazer à mão, que também é o ofício da artista em
cena, criar artifícios, construir relações, instaurar communitas metafórica, nesse sentido, eu
sigo, buscando coesão e fluxo entre as ideias, conceitos, técnicas, procedimentos e artifício
para assim, fazer algo que faça sentido para a subjetividade da pessoa da atriz, mas que
também gere sentidos, estéticos, poéticos e artísticos com a linguagem que estou
desenvolvendo. Nesse tópico, apresento as texturas que encontrei na pesquisa de campo e
como estas estão sendo traduzidas na cena.
86
Imagem 19: Andor de Santa Luzia, Sítio Queimadas- Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco,
13 dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.
O andor de Santa Luzia, enfeitado pelas moças do Sítio das Queimadas, moças
bem jovens, caboclas de seus 14 anos, cabelos compridos como os da Santa, para quem
cantavam com devoção um hino composto pelos moradores do local. O andor levado com
muito carinho, em cujos pés as pessoas faziam pedidos escritos em papel, colocavam
ofertas em dinheiro, doavam bodes, carneiros e bois para serem leiloados para a novena em
sua homenagem. Presenciar isso me trouxe uma sensação de reverência ao feminino, ali
representado pela imagem da Santa, aos pedidos de visão aguçada, inteligência e
iluminação que, naquele momento, eu também fazia, tocada por essa devoção coletiva.
As cores da vestimenta da santa atravessaram meus olhos por uma via
sinestésica. Não soube nomear a princípio. Fui lendo com a retina as informações da
imagem: o vermelho e o verde, cores complementares, ação e passividade, oferta e
sacrifício. O prato dourado na mão, os olhos no prato, embora o semblante calmo. Havia
algo do duplo feminino que existe também em Lua-Irene ali. Uma espécie de coragem e
entrega, visto que a história dessa santa, conforme contam é a da moça que arranca os
próprios olhos e oferece num prato, ao rapaz que a cortejava para o casamento, fissurado
por seus olhos, os “culpados” por lhe desencaminhar a vida, quando ela desejava seguir em
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castidade. O trágico, terrível, angélico na mesma imagem, uma possibilidade de construção
da moça-guerreira-anciã que também aparece em Lua.
Imagem 20: Presépio, Afogados da Ingazeira, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco,
22 de dezembro de 2017. Foto de arquivo pessoal.
Estive observando um tempo qual era a relação das pessoas com o presépio
feito em cerâmica em tamanho real, exposto no centro da cidade. Aquelas que passavam,
paravam, tiravam fotos, impressionadas com tanto capricho, elogiavam o artesão e o
presépio daquele ano. Alguns passantes paravam, observavam atentamente pareciam
desenvolver um diálogo ali. O presépio permaneceu intacto até o dia de reis, 6 de janeiro,
ninguém profanou as imagens. Talvez porque a maioria que passava por ali se reconhecia
naquela devoção católica cristã. Interessou-me, em tal observação, a instauração desse
sagrado. Essa instalação na rua que comunicava uma narrativa conhecida da população e
com a qual se relacionavam diretamente através de seus objetos.
As bonecas, a seguir, serviam para limpar as cinzas do fogão de lenha,
poderiam ser simplesmente vassourinhas, mas alguém teve o cuidado de pôr olhos, boca,
cinto, pulseira, bracinhos, perninhas, cabelos, de forma personalizada. Existe algo nessa
construção de um tecer o feminino, de expressar uma narrativa pelo próprio fazer. Sempre
que eu ia à feira, parava nessa barraca, a imagem dessas bonecas me provocou bastante os
sentidos.
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Imagem 21: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco,
janeiro de 2018. Foto de arquivo pessoal.
A palha áspera, ali penteada, tão caprichosamente ornada, comunicava um
imaginário no objeto. As bonecas tinham uma função clara, limpar as cinzas. No meu
imaginário, criei uma relação com Nanã, a Yabá anciã da terra, revolvendo as memórias, as
cinzas através do contato com o feminino. É difícil pôr isso no papel porque essas
associações não foram claras, num primeiro momento, eu não sabia por que gostava de
passar naquela barraca, onde se vendiam coisas de palha, eu queria aquilo na cena, mas não
sabia como.
Imagem 22: Barraca de feira, pesquisa de campo, Afogados da Ingazeira, Pernambuco,
janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.
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Imagem 23: Roça de palma, pesquisa de campo, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Alto Pajeú,
Pernambuco, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.
O contato visual e tátil com a aspereza da palha foi algo que eu busquei
experimentar nos laboratórios criativos, mais tarde, isso se transformou numa necessidade
tátil, sonora, ocular, na cena e não pude mais ignorá-la, pois ela passou a ser primordial
para a execução do trabalho.
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Imagens 24, 25: Captura do registro audiovisual de laboratório criativo realizado
em 26 de dezembro de 2017. Fotos do arquivo pessoal.
Realizei esse laboratório na caatinga, no Sítio Barro Branco, a caminho da chã
da serra, ele teve duração aproximada de 6 horas. Contei com o registro de Rita Cássia, que
me acompanhou em todos os laboratórios criativos no Sertão. Levamos água, rapadura e o
cachorro. Iniciamos cedo, às 6 da manhã até por volta de 12:40. As imagens 24 e 25,
capturam um momento, aproximadamente às 11:00, ao som ensurdecedor das cigarras e
dos chocalhos das vacas, o sol a pino. Desde as 3:00 da manhã, estava em estado de alerta,
a essa altura, sentia-me rendida pela fome, sede, cansaço, mas aproveitei esse estado para
experimentar uma partitura de movimento criada anteriormente, inspirada nos movimentos
de dois animais: ornitorrinco mais jacaré, acrescida de todo o cansaço, eu só pude rastejar
mesmo.
Conforme rastejava pelo chão, observei que o capim seco, antes onde era o
pasto na cheia, enganchava-se agora na minha roupa, eu sapateava na tentativa de me
levantar, a bota escorregava na palha seca do capim, fiquei um tempo sapateando sobre a
palha, vencida pela fraqueza do sol quente do meio dia. Os chocalhos das vacas, ao longe,
procurando pasto e o barulho ensurdecedor das cigarras era tudo que podíamos ouvir. Era
um dia parado de vento e muito quente.
Atualmente, essa caminhada rastejante está na cena como o momento em que
Irene, sangrando, sentindo as forças deixarem o corpo, lança a maldição sobre Lua. Nesse
laboratório, surgiu a ação de cuspir, pois eu me senti enojada de rastejar pelo chão onde as
91
vacas passavam defecando. Próximo, eu coloquei a caveira da cabra, ela ainda cheirava
mal, algumas moscas sentavam nela, aproveitei essa ação na cena como o fechamento da
maldição, Irene cospe na adaga que lhe sangra. Esse contato tão próximo à palha do capim
provoca sensações táteis incômodas de aspereza, coceira, mas curiosamente eu senti falta
dessas sensações no meu retorno à sala de ensaio, tão limpa e tão estéril.
O figurino da Cacurucaia, a fase anciã de Lua, parecia inadequado, tinha algo
estranho, que não funcionava, ou que funcionava em parte, o cenário também parecia
infértil, esterilizado. Relatando esse incômodo à Elisabete Santana, em relação ao figurino
provisório, que eu estava usando, que apesar de trazer-me uma memória afetiva, pois
tratava-se de uma camisolinha feita por uma costureira que eu adquiri na barraca da feira,
muito semelhante às camisolinhas que minha avó paterna usava, parecia realista demais
para o trabalho. Além disso, esse algo que faltava me parece que era aquele primeiro
lampejo que me deu ao ver as bonecas de palha na feira. Como eu podia carregar a
caatinga comigo? A rudeza da palha?
Minha mãe teceu, a resposta veio depois pelo correio, a palha veio a fazer parte
de modo muito simbólico na vestimenta de dois personagens que são quem vêm escavar a
terra para os segredos aparecerem, a velha, a Cacurucaia Maria, cujo figurino passou a ser
a base para todos os outros, e o vaqueiro ao qual é acrescido uma boiada inteira.
Imagem 26: Perneira do vaqueiro, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.
No figurino do personagem Gonçalo Marcolino, um elemento muito
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importante é a perneira, que diferente da vestimenta típica do vaqueiro sertanejo, a qual
normalmente é feita de couro de boi, para a proteger dos espinhos e garranchos da
caatinga. Como eu precisava de algo que recuperasse a sensação de estar na caatinga, esta
foi feita de modo a presentificá-la. Foi desse modo que Elisabete Santana teceu a perneira
do vaqueiro, com um material que ao contato me provocou sensação semelhante à palha do
capim, feita de barbante de sisal trançada, é uma espécie de cinto que eu afivelo por cima
do figurino base, nas costas, vários chocalhos de ferro, semelhantes aos que vi durante a
pesquisa de campo sendo utilizados pelos Tabaqueiros4.
Ele tem um peso, uma sonoridade e textura, próprios. Traz um peso ao quadril
que me faz modificar a postura, conforme me movimento, controlo a execução da
sonoridade dos chocalhos coordenado com os passos da dança do vaqueiro, a qual tem sua
base no coco, este é seu guarnecer, sua vibração: uma dança que acorda a terra, espalha e
confunde os caminhos. Sem esperar, ela teceu exatamente aquilo que faltava no vaqueiro,
qual foi minha surpresa quando chegou pelo correio. Foi como receber parte do corpo
mesmo do vaqueiro, as pernas e a boiada!
Imagem 27: Figurino base da Cacurucaia Maria, Paviartes, Instituto de Artes,
julho de 2018. Foto de Raielle Mazzareli.
4 Mascarados que saem no carnaval na cidade de Afogados da Ingazeira, estalando chicotes, correndo com
chocalhos nas costas, fazendo barulho, pedindo dinheiro aos passantes, roubando beijos das moças, sua
identidade é secreta, podem ser desde uma dona de casa, uma figura pública, ou um brincante. Quanto mais
chocalhos, mais carnavais a figura já brincou, dessa forma que se mede o status de um Tabaqueiro dentro do
grupo de brincadores.
93
Já o figurino da Cacurucaia Maria, que é a base de todos os outros, chegou
depois de diversas experimentações. Da forma como chegamos a essa base, acredito que
recupero algo das bonecas de palha, com as texturas com as quais ele foi feito, de algodão
cru, cetim e tule alaranjado, na cor de palha, esse tom pálido, areia, que fui colorindo com
os outros personagens. Sinto que ele funcionou como a roupa dos filhos de santo, nos
terreiros, antes de baixar os Orixás, em cuja base se acrescenta laços, volumes, com outros
tecidos e cores. Para finalizar o figurino da Cacuruaia, sobre esta base é acrescentada uma
rede de varandas, feita em tear, também areia. A rede foi um elemento que fez parte do
meu treinamento com a rede de pesca, do meu cotidiano na pesquisa de campo e que
depois seria uma metáfora da mãe, do útero feminino que acolheu Lua, formando a capa
sobre o figurino base. Ao me desfazer da capa, no caso a rede, desenvolvo uma ação que
atravessou toda a experiência em campo.
Dormir na rede, fez-me desenvolver outra relação com o espaço e o corpo no
acordar e estar no mundo. Percebi que ao final de um mês e meio, período em que realizei
a pesquisa de campo, senti-me naturalmente mais alongada, as dores na lombar diminuíram
consideravelmente, como se dormindo na rede eu tivesse recuperado os espaços entre as
vértebras, a ação da gravidade parece que agiu sobre elas descomprimindo, atenuando a
sensação de estar com a coluna soterrada, as vértebras enterradas uma na outra, sem
espaço, nem dobra. Já ao acordar, eu segurava nas bordas da rede e me punha de cócoras.
Essa era a primeira ação do meu dia.
Percebi que a dificuldade que antes eu estava sentindo de ficar de cócoras, era
o uso do corpo, que, em Campinas, colocava-me numa relação com o espaço na qual
raramente eu ficava de cócoras. Achei curioso como o uso do corpo influencia numa
determinada corporeidade, num jeito de estar na vida, nas relações que se estabelecem.
Será que a falta de profundidade que eu sentia nas relações pessoais eram, de alguma
forma, influenciadas pelas técnicas de uso do corpo no cotidiano das pessoas e na sua
relação com o mundo? São reflexões filosóficas que a reconexão com o Sertão foi
apontando no estar em campo.
O lençol em tear manual, a rede no Passeio, a exploração de movimentos com a
tarrafa, a rede de varanda diluída como metáfora nos figurinos, enfim, todos esses
elementos feitos à mão, mesmo os que participaram do treinamento e não estão mais em
cena, consistiram nesse trabalho numa relação diferenciada com os objetos, figurinos,
94
adereços, ao lidar com materiais feitos por artesãos, eu lido com histórias vivas, que vivem
na cena, junto comigo de forma paralela àquilo que está sendo contato, a história de como
aquilo foi feito, está implícita a cada vez que eu toco esses materiais em cena, a minha
relação afetiva com eles me provoca sensações, lembranças, memórias de coisas que não
estão ditas.
A construção de cada personagem se deu através de diversos estímulos, desde
aqueles acordados, através dos sonhos e pesadelos que tive, alguns com temas recorrentes
como, por exemplo, cemitério. Sonhei durante a pesquisa de campo, nos dois meses e
meio, quase todas as noites com o tema da morte. Mudava as circunstâncias, no entanto, o
tema se repetia. Além disso, também houve forte influência das provocações sensoriais na
criação. Um exemplo disso, é também o figurino de Lua na sua fase de assombração, que
aparece aos tropeiros nas estradas.
De estímulos cruzados, tais como os pesadelos, os estímulos sensoriais da
pesquisa de campo, as histórias que ouvi sobre os lobisomens e envurtados do imaginário
popular sertanejo com estímulos do próprio conto, Elisabete Santana teceu a capa de Lua, o
vestido e a saia, juntas tecemos a cabeça de Lua,mas se eu contar, talvez o leitor não
acredite, essas ideias foram fortemente influenciadas pelo sentido olfativo.
E foi na feira que alguns dos primeiros estímulos apareceu, eu já tinha uma
intuição de alguma coisa, por conta dos experimentos que já tinha feito, mas a
concretização dessa intuição em materialidade se deu ainda no Sertão. Foi o primeiro
figurino a ficar pronto, apesar de ser o último que visto em cena, certamente, foi o mais
experimentado, porque passeou mais que todos os outros encantados dessa peça.
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Imagem 28: Caju, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú,
Afogados da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.
O caju é fruta nativa lá no sertão, adstringente, tem um cheiro que ao se sentir é
mais agradável que o sabor, mesmo não gostando muito da fruta, como fazia tempo que
não comia, pois no Sudeste é iguaria, deu até saudade. O cheiro eu senti de longe, fui
conferir. Perto dali, outro cheiro me fisgou, foi o da pimenta do reino, um tempero bastante
usado na culinária sertaneja. Fiquei admirando os cajus, a pimenta, o coloral, essas iguarias
me encantaram. Eu queria algo assim com jeito de caju, pimenta e coloral para Lua. Colhi
essa provocação, como quem colhe fruta no pé, então ajuntei com outras que encontrei no
terreiro da casa da minha vó e da minha mãe.
Imagem 29: pimenta do reino e coloral, barraca de feira, pesquisa de campo, Sertão do Alto Pajeú, Afogados
da Ingazeira, janeiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.
Esse estado de atenção e observação por meio dos sentidos em situação de
convívio levou-me a estar muito porosa, sensível, aberta a todos os estímulos visuais,
sonoros, olfativos, intuitivos, imagéticos na criação. De modo a perceber essas angústias as
quais não conseguia nomear, não entendia como transformar em palavra o que era em si,
sensação, até que as sensações pudessem encontrar forma na materialidade que compõe a
cena. Saber sentir e guardar as sensações no corpo, na memória, sem utilizar do recurso do
gravador, do diário de bordo e recuperar na criação essas sensações parecia arriscado, mas
eu quis experimentar um estado de apreender integrado ao fazer.
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Imagem 30: Sabugo de milho no terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé, Sertão do Alto
Pajeú, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.
Imagem 31: Flores secas de sombreão por cima da areia, terreiro de vó Rosa, Sítio Catolé,
Sertão do Alto Pajeú, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.
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Imagem 32: Pé de sombreão no terreiro de Elisabete Santana, Sítio Bsrro Branco, Alto Sertão do
Pajeú, fevereiro de 2018. Foto do arquivo pessoal.
Mas, como eu poderia juntar essas lindezas aos sentidos, num elemento que
presentificasse a cor do caju, a cor da pimenta do reino, a textura das flores secas no
terreiro de minha avó, o amontoado dos sabugos de milho, o ajuntado das flores de
sombreão? Como é que Lua-Larissa poderia levar a sua casa consigo? Portar a própria casa
no corpo, com as cores e as texturas das coisas que estavam me provocando? Essas eram
algumas das questões que eu levantei numa conversa no alpendre em fim de tarde com
minha mãe. Foi quando ela sonhou com a personagem, dizendo a ela como deveria fazer o
figurino para que eu pudesse portar tudo aquilo no corpo. Muito inusitado esse modo de
criação. Eu comecei a pensar que talvez a assombração do conto fosse real, tivesse deixado
de passear em meus sonhos, invadido os sonhos da mãe, como coisa viva, que ao invés de
ser criada, faz o criador se adaptar às suas exigências e descobrir-se sendo criado numa
outra alteridade.
Ela teceu, durante alguns dias, o figurino que mais tarde eu usaria em minhas
experimentações na Casa das Almas. Primeiro foi a capa, depois a cabeça, depois o
vestido, agora já não é mais vestido, é saia. Na concepção da artista, a capa representa a
casa, a casa do conto, com suas 114 portas e janelas, seu telhado em telhas de barro.
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Imagens 33, 34: Captura do registro audiovisual do laboratório de criação realizado no Castelo da Casa das
Almas, rota do Cangaço, Triunfo, Pernambuco, detalhes da capa de Lua, 16 de janeiro de 2018.
Captação de imagens de Rita Cássia.
Para isso, Elisabete fez uma gola em crochê, que representa o telhado, uma
trama feita à mão com vários nozinhos, que é a rede, mas também as portas e janelas, com
tiras que cruzam no peito como guias de filha de santo, mas cujas contas são feitas de
lágrimas de Nossa Senhora, sabugos de milho e tiras que arrastam no chão, contendo os
sabugos de milho que colhi no terreiro da minha avó.
Parte desse figurino, no caso o adereço de cabeça, encontrei quando fui visitar
com meu pai, um artesão que trabalhava com couro, madeira e metal, na Serra da
Barriguda, município de Iguaracy-PE, na zona rural, ele estava trabalhando na construção
de uma canga para carro de boi. No caminho, vi uma casa de taipa, feita com cipós e barro
trançado em ruínas. Pedi a meu pai que parasse a moto, eu desci, entrei na casa, olhei
através de suas janelas, fui até a cozinha, restos de cinzas num fogão de lenha também
ruindo, entrei e sai dos cômodos, tentando vivenciar os trajetos possíveis naquele espaço.
Na porta da cozinha, tinha uma cabra morta. Estranho é que nenhum bicho
tocou em sua carcaça, os cachorros, que por ali andavam guardando um rebanho de cabras
que repousava na sombra de uma algaroba, não arrastaram sua carniça, nem mesmo os
urubus, que certamente se fartariam, pois havia 7 anos que não chovia na região. Talvez ela
tivesse sido picada por cobra, por isso secou e nenhum bicho mexeu. Eu me agachei junto
99
à carcaça e falei para ela, a morte: “licença dona morte que roeu os ossos, eu vou levar a
cabeça”. Assim, aquela cabeça começou a fazer parte do figurino, eu só entenderia o
sentido disso mais tarde.
Imagens 35, 36, 37, 38: Casa abandonada (aqui morava Maria) Sítio Barriguda, Alto Sertão do Pajeú,
Afogados da Ingazeira, Pernambuco, dezembro de 2017. Foto do arquivo pessoal.
Quando a personagem encomenda a morte de Irene, como se se tratasse de uma
cabra, fez sentido para mim que o símbolo dessa maldição fosse aquela cabeça que morreu
de veneno de cobra provavelmente. Eu tratei dela com banhos, defumações, rezas, e sol,
para sair o mal cheiro e assim poder manuseá-la, mas, curiosamente, durante o período em
que estive realizando a pesquisa de campo e principalmente depois de apossar-me da
cabeça da cabra, sonhei constantemente com cemitérios, indo buscar defuntas de outras
épocas em suas covas, trazendo-as pela mão para dormir ao meu lado.
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Imagem 39: Cabra, Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.
Imagem 40: Laboratório criativo realizado no Castelo da Casa das Almas, rota do Cangaço, Triunfo,
Pernambuco, 16 de janeiro de 2018. Foto de registro audiovisual, captação de imagens de Rita Cassia.
Assim que traduzimos as cores dos temperos, frutos, flores da terra não apenas
no figurino, mas também no cenário, como parte da textura que compõe o exercício cênico,
em que as folhas, flores e galhos secos foram incorporados na cena, uma vez que os
caminhos por onde passei, os lugares em que experimentei, ensaiei, dificilmente eram
lisos, encerados, pelo contrário, tinham texturas próprias, seja no bosque lateral da
Faculdade de Educação Física na Unicamp, no terreiro da casa de amigos, no Sertão, por
onde passei com Lua, o contato com a terra esteve lá de alguma forma.
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Imagem 41: Cenário, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
13 de maio de 2018. Foto do registro pessoal.
De modo que agora é como se faltasse tudo, quando ensaio sem as folhas no
chão, elas são metáforas desses caminhos por onde passei, sem elas é como se não
houvesse caminhos, apenas a esterilidade do chão, que me parece quase cirúrgico quando
ignoro essa necessidade.
Não é atoa que abro essa dissertação dedicando-a ao chão por onde pisei e as
histórias que ouvi com pés, dos meus antepassados e daqueles que transitaram por ali.
Ouvir com os pés, bagunçar o sentido lógico dos sentidos, desarticulados dos órgãos aos
quais estão relacionados move imageticamente uma habilidade de ouvir inclusive o não
dito, o secreto. É assim que ouvir o chão com os pés, deixar que esse fale ao corpo,
expressando as histórias que entram, feito raiz nos buracos do corpo em direção a terra,
move estruturas internas, fazendo com que o entendimento da metáfora se dê por outra via.
Bagunçar esses caminhos é para essa proposta, um convite a esse tipo de escuta.
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Imagem 42: Pesquisa de campo, restauração de cerca de vara a caminho da chã da serra.
Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú, Pernambuco. Foto do arquivo pessoal.
Os troncos que encontrei, a caminho da chã da serra – o ponto mais alto da
serra que há atrás da casa de minha mãe no Sertão – provocaram meus sentidos, queria, de
alguma forma, traduzir essa sensação. Mais tarde, me aventurei em alguns traçados
inspirados nesses encontros com a natureza rústica do Sertão, os quais vieram a compor a
caracterização de Lua, em que eu traço no rosto a lua, os troncos, as varas, o vermelho do
coloral. Fez sentido para mim, percebo diferença quando não me pinto. Encenar As nove
luas de Lua Cambará é uma guerra, de perseverar e acreditar na criação, na intuição, nas
histórias não ditas ali, que podem parecer muito simples, mas exigem de mim um
mergulho profundo num mundo mítico e sensorial ao qual eu preciso estar muito porosa.
A ideia do corpo como tela, que deixa entrever essas materialidades na cena,
foi algo de que me dei conta depois, quando comecei a escrever sobre a criação e percebi
essa necessidade de portar em cena elementos que me lembrassem das sensações da
pesquisa de campo e que pudessem, de alguma forma, transparecer como tela fina esses
contatos e, quem sabe, levar o público a mergulhar nessas imagens também.
Foram muitas madrugadas até aqui, em que eu pressenti um estado
assombração, de errâncias, em muitas delas, eu vi o sol nascer, a escuridão tornar-se
alaranjada, por mais clichê que possa parecer, nos espetáculos que tratam de temáticas que
levam à associação com o sertão e que, frequentemente, usam essa cor como recurso de
103
iluminação, eu não tive como fugir de tanta beleza que me invadia a cada amanhecer, em
que divaguei, fosse para escrever ou para me jogar nas experimentações dos laboratórios
criativos no Sertão. A este hábito, de amanhecer com o sol, seguido de conversas ao pé do
fogão de lenha na casa da minha avó, ou na cozinha, na casa da minha mãe, de anoitecer
com a lua, com as histórias de malassombros nas estradas, nas roças, eu tirei uma profunda
observação do entorno, deu lugar no meu ser à sensação de fazer parte, de estar conectada
a esse ciclo.
Imagem 43: Maquiagem de Lua, ensaio aberto, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, 17 de maio
de 2018. Foto do arquivo pessoal.
“E de tanto ouvir, também juro que vi!” Eu vi os lobisomens arrastarem suas
correntes nas estradas, uivarem para a lua, eu vi as almas que ficaram pelos caminhos, que
perambulam nos cemitérios, eu vi a cara da morte, eu vi! Vi os envurtados, que vigiam as
roças, para ninguém roubar as melancias, vi o homem da cerca, que carrega a pedra nas
costas, até hoje, sem decidir onde é, afinal, o limite do seu terreno, ele anda sem fim, até o
inferno, depois volta. Vi a mulher amaldiçoada, que corre bicho nas noites de lua, que
some sem o marido ter notícia, vi-a correr as sete pontes, sete fontes, sete montes, depois,
voltar ao convívio do marido como se nada fosse. Vi as crianças que morreram de fome
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nas estradas, abortadas, filhas da desnutrição, da seca, da miséria. Vi os ciganos
amaldiçoarem, cuspindo em cima da carne que roubaram no terreiro do meu avô. Vi a alma
que correu atrás daquele homem no Sítio das Almas. Eu vi todos eles. Eu vi vovó vir me
buscar para ensaiar, eu vi vovô tanger gado junto comigo, eu vi o malassombro de Lua,
observar-me na casa de dona Quitéria, nos ensaios, que medo, Lua existe! No final de tudo,
vou cantar para a lua, para Lua subir.
Como eu escapo disso tudo?
Imagem 44: Vista do amanhecer. Pesquisa de campo, errância, Sítio Barro Branco, Alto Sertão do Pajeú.
Dezembro 2017. Foto do arquivo pessoal.
Esse mundo vasto e profundo.
105
3.3 Condensação de experiências: Teaser de As nove
luas de Lua Cambará.
Este vídeo-arte, intitulado Quem vem Lá? é resultado da edição de cerca de 25
gigabytes de filmagens das experimentações nos laboratórios criativos no Sertão, para as
quais convidei Rodolfo Ventura, aluno do curso de midialogia da Unicamp, a fim de
realizar a edição desse material, com o meu consentimento para ser co-criador, conferindo
na edição a sua leitura sobre o conto, editando o material, a partir daquilo que lhe
atravessava. Tal material compõe agora um resultado paralelo ao exercício de criação
cênica, que faz parte da última cena, quando a assombração sai a vagar em que, de maneira
sensorial, através das texturas dessas imagens, convido o espectador a embarcar nesse
universo por meio das retinas, das meninas dos olhos.
As imagens dessas andanças no Sertão resultaram em texturas provocantes,
compartilho com o leitor frames desse vídeo-arte:
Imagem 45: Caatinga, Sítio Barro Branco, captura do registro audiovisual. Dezembro 2017.
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Imagem 46: Atrás a serra. Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.
Imagem 47: Corrida na caatinga. Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.
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Imagem 48: Cata-vento, Sítio Catolé, captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.
Imagem 49: Cata-vento, Sítio Catolé, captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.
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Imagem 50: Sombra do Cata-vento no chão seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual.
Dezembro de 2017.
Imagem 51: Tronco seco. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual. Dezembro de 2017.
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Imagem 52: Assombração. Castelo Casa das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual.
Fevereiro de 2018.
Imagem 53: Fogão de lenha na casa de vó. Sítio Catolé. Captura do registro audiovisual,
dezembro de 2017.
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Imagem 54: Cemitério Bizantino construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro
audiovisual, fevereiro de 2018.
Imagem 55: Cemitério Bizantino, construído em 1808, Casa das Almas, Triunfo. Captura do Registro
audiovisual, fevereiro de 2018.
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Imagem 56: Sangue que escorre. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro audiovisual.
Fevereiro de 2018.
Imagem 57: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.
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Imagem 58: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.
Imagem 59: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018.
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Imagem 60: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Castelo das Almas, Triunfo. Captura do registro
audiovisual. Fevereiro de 2018. audiovisual. Fevereiro de 2018.
Imagem 61: Lua, Sítio Barro Branco. Captura do registro audiovisual. Fevereiro de 2018.
“É a Lua que fia o Tempo, é ela que tece as existências humanas e as deusas do
destino são as Fiandeiras.” (ELIADE, 1998, p.178).
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Ficha técnica
Quem vem lá?
Inspiração livre no conto Lua Cambará
de Ronaldo Correia Brito
Direção:
Larissa Santana
Captação de imagens:
Rita Cássia
Edição e arte do vídeo:
Rodolfo Ventura
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CAPÍTULO 4: DA ESCRITURA CÊNICA
4.1 Da escritura cênica: foto-grafia, um fotograma
poético
Como forma de registro da escritura cênica, optei pela fotografia, por
compreendê-la como uma forma de escrita, uma grafia poética e sensível, que recorta os
instantes vividos da experiência cênica e que, ao mesmo tempo em que possibilita o
registro palpável ao leitor, que porventura não tenha visto o exercício cênico, “traduz” para
o papel uma memória.
Assim, apresento esses encantados, saudando os quatros cantos da Rosa dos
Ventos, como faço no meu Guarnecer de atriz, quem chegou comigo até aqui, saberá que
Lua é ser que ronda, Lua existe! E entrar nesse universo é com licença e com- o-
sentimento, para afundar pouco a pouco nas imagens e nos textos que desenvolvi a partir
do conto que me assombrava desde quando o li em 2009, neste ano, quando finalmente
concretizo as angústias criativas em dança, gesto e palavra, completo um ciclo de 9 anos.
“Ela virava bicho nas noites de lua, ela se encantava, se envurtava, minha
filha... ela corria! Corria bicho... foi uma maldição... ela corria 7 monte, 7 ponte, 7 fonte.
Mas como pode? Isso existe? Existe sim, minha filha... só os cachorros é que viam, a gente
só escutava aquele barulho de corrente sendo arrastada, só dava pra ver o vurto... ela
sumia, depois voltava. Tem no livro, de São Cipriano, mas não se pode fazer devoção
nesse livro não, tem oração para o bem e para o mal... esse livro não se compra, a gente
ganha”. Fevereiro de 2018. Conversa com a rezadeira Dona Francisca, extraída da minha
memória em minhas andanças no Sertão, uma vez que não usei gravador, nem caderno, por
opção, para que o único intermédio fosse o contato, o afeto, e a memória, esse trecho é já
um ponto atravessado pela oralidade e seu modo de transmissão. Com a evocação
imagética dessa conversa adentro As nove luas de Lua Cambará.
Prólogo
Aqui, começo a caminhar em direção à personagem, da Larissa que dormiu na
rede na pesquisa de campo, que sonhou esses pesadelos, para a personagem que tem
constantemente o mesmo sonho. Entro em giro, até enrolar sobre mim mesma como um
116
novelo, no tempo de uma canção de ninar, saio da posição fetal, de dentro da rede, no
acordar, no susto dos pesadelos que são meus, mas também são de Lua.
(Em giro, cantando) Sai Jaraguá, de cima do telhado, sai Jaraguá, de cima do
telhado... deixa essa menina dormir sono sossegado, deixa essa menina dormir sono
sossegado... (vai enrolando pouco a pouco até deitar-se em posição fetal e gradativamente
diminuindo o canto, até permanecer como se estivesse no balancinho da rede, finalmente,
suspirar em sono profundo, bola para um lado em súbito e abre a rede, formando
gradativamente o corpo da velha) Sempre esse mesmo sonho... sendo embalada pela mãe,
carregada na rede pra casa do pai...
Imagens 62,63,64,65: Prólogo. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04.
Julho de 2018, Fotos de Raielle Mazzarelli.
Cena 1 (lua nova)
Cacurucaia negra Maria: (Cacurucaia acende o candeeiro) Quem tá lá?
Quem tá lá? (suspende a chama, olha na direção do horizonte) Faz ano que ninguém cruza
o batente da minha porta. (Desconfiada, apoia o candeeiro sobre uma mesinha). Se eu
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soubesse que tu vinha eu tinha mandado barrê o terrêro... eu tinha me preparado... tinha
penteado os cabelos... Pode armar a rede debaixo desse juazeiro. Que lua é hoje? É que
Lua volta sempre ao mesmo ponto nas noites que não têm lua. Lua nunca morre igual... Tá
vendo ali? (apontando) do outro lado do rio, é a casa do Monte Alverne, foi onde morrero
sete fia, tudo feme, (desembrulha uma trouxa de onde caem sete bonecas de pano) até
nascer um fio, home! Francisco Francelino do Cambará! Esse que vai morrer com um tiro
no peito! Tudo aconteceu no tempo de um pesadelo. Durou o tempo da roda da desgraça
dar mais um giro. (Vai recolhendo uma a uma).
A premera foi Luzia. Fizero uma promessa pra o primeiro filho ser home, mas
nasceu Luzia... (Imita a voz da tia) Luzia! Oh Luzia! Vai panhá água na cacimba!
Ninguém sabe como foi, ninguém viu. (Deixa cair a boneca) Acharo Luzia emborcada na
cacimba... Enterraro ela toda vestida de azul, por causa da promessa pra Nossa Senhora.
Onde já se viu? Defunto pagar promessa?
Adepois foi Juvina. Juvina era danada! Eita menina danada! Ela tava
aprendendo a bordar a barra du‟a saia. Acharo uma cobra enrolada em Jovina... e parece
que a cobra tava no balaio das costura... (vai conferir)
Quitéria. (Se ri, imitando Quitéria) Quitéria era bem gordinha! A mãe dizia
que Quitéria era tão gulosa que comeu sozinha uma bacia de cuscuz! Eu me lembro de
Quitéria no caixão. (Imita a morta) Quitéria morreu assim! Inchada...
Rosinha era uma belezinha! Rosinha era bem alvinha. Mãe Bárbara, uma
parteira experiente num tratá do umbigo da menina?
Mariquinha era bem miudinha. A mãe disse que uma cobra mamou o leite da
menina... a cobra! num deixô nadinha pra ela, antes de sete dia já era semente pra terra.
Qual foi a outra? Os velórios foram ficando tão ligeiros... Eu esqueci? Não,
foram sete! (Reconta, dizendo o nome delas baixinho). Foi Teresa! É por isso que eu não
lembro! Teresa foi um dia levar a lavagem dos porco e parece que os porco tavam com a
fome de setenta, parece que fazia setenta ano que eles não comia. (Deixa cair Teresa).
Acharo Tereza só os pedaços... o caixão de Teresa ficou tampado, nem tinha retrato pra
gente vê... (Tapa o rosto de Teresa e recolhe com cuidado).
Catarina, ela tomou chá de cabacinha! O caixão de Catarina era desse
tamainho. (Mede com um palmo o tamanho do caixão) Eu inda tentei segurar na alcinha
do caixão de Catarina, num dexaro. (Coloca Catarina junto das outras, forma uma rede
com o tecido da trouxa).
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O coração do inocente é assim como a terra estrumada que a gente pranta a
semente, a merma nasce corada, lutrida, muntcho viçoça. Na nossa infança ditosa quando
o amô e a simpatia toma conta da criança, essa sodosa lembrança vai bate na cova fria.
Quem pela infança passô o meu dito considera, eu quero com muito amô, dizê, mãe preta
quem era! (Ri seriamente, embala as bonecas, formando a imagem da Pietá) Dorme, dorme
menininha, já chegou a escuridão, a treva da noite iscura está cheia de papão, dorme o
teu sono inucente com Jesus e com Maria, até chegar novamente o clarão do novo dia, no
teu sonho terás beijos da rosa e do bugari, que os isprito bem fazejo te defenda do saci.
(Enrola o tecido formando uma trouxa que embrulhada, agora é corpo rejeitado da que
fora abortada)
Nesses ano, tudo eu nunca vi uma frô, uma frôzinha sequer, aquele monte de
cruiz uma do lado da outra, (aponta para as cadeiras onde o público está sentado) tudo na
merma cova, será possível? Que ninguém se alembro, ou fizeram questão de esquecer! Só
eu que num esqueço! Que passo por aqui todo dia e me deparo com essas cruz! (Põe a
trouxa nas costas) Olhe, me faça um favor! Me livre de algo que eu carrego desni que eu
nasci! Tome! Num carece sentir ternura não! Eu também num vô senti! (Põe a trouxa no
chão).
Afundar nesse mito do Sertão, faz-me desencavar muitas histórias sobre os
funerais dos anjinhos, os retratos da época vitoriana, que ainda há nos álbuns de família da
minha avó, das crianças que morreram em poucos dias, de fome, de doença, de fraqueza,
cujos caixões eram caixas de sapato. Tão pequeninos. Faz-me acordar o medo e o pavor de
gestar, do parto, do filho não nascido. Essa passagem, no conto original, é muito
insignificante, resulta em uma linha simplesmente, na qual se diz que “morreram sete
filhas, todas fêmeas, todas chamadas Maria, até nascer Francisco Francelino do Cambará”.
Em fricção com a personagem e movida pelo arquétipo de Nanã, eu entro, atravesso esses
pântanos que fazem parte do meu mito familiar, mas também de muitas outras histórias
contadas no Sertão.
Essa cena sempre me traz um pesar, já senti fortes arrepios, beliscões, que
foram me dando a sensação de que não estou sozinha em cena. Como se acessasse uma
espécie de porosidade comum, tanto ao fazer artístico quanto ao mediúnico, por assim
dizer, em que percebo energias que não são deste mundo, são os seres do interior da terra, a
primeira ancestral familiar (aquela cabocla raptada de sua tribo, “pêga no mato”) que vem
contar comigo essas histórias do feminicídio.
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Imagens 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75: Cacurucaia Maria. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala
AC 04, julho de 2018, Fotos de Raielle Mazzarelli
Cena 2 (quarto crescente):
Narradora/ Lua: Minhas primas... morreram todas, eu não tive com quem
brincar de carrapeta, mas olhe, num sinta ternura não! Porque eu mesma num sinto! (Vai
até o fundo, senta-se, dirige-se ao espectador). Tu viesse por onde? Se tu viesse por lá,
deve de tê visto a casa de Maria, uma casa de cipó trançado e barro, Maria morava ali.
Apois, o finado vaqueiro Gonçalo Marcolino, dizia que ela teve uma fia bastarda cum‟o
Coronel Pedro Francelino do Cambará. Gonçalo ia um dia tangendo o gado, quando deu
de cara com Maria. Foi ele quem trouxe a criança pra cá.
Imagem 76, 77: Narradora. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018,
Fotos de Raielle Mazzarelli.
Vaqueiro: (Vai pondo o figurino, o último é o chapéu, aboia entrando em giro,
dança pelo espaço, espalhando os caminhos, revolvendo com os pés as folhas secas no
chão, até se deparar com Maria) Maria! Ô Cumadre Maria! (se aproxima e logo se afasta).
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Ela já tava gelada! E essa menina mamando sangue no peito da mãe! Oxe! Que
desgraceira Maria! (Tira o chapéu, trazendo-o junto ao peito. Canta um aboio enquanto
recolhe algumas folhas secas e joga sobre a rede, que representa o corpo de Maria, nesse
momento). Eu venho de tão longe, me dá um desespero... O mundo é tão, grande, eh boi...
ohoi boiada! As vezes tenho medo... Em busca de lugar, veredas e lajedos, eh mundo
traiçoeiro... eh boi, ohoi saudade! (Ajoelha-se para pegar a criança, galopa em direção à
casa grande, depõe o embrulho, embaixo da mesa, que nesse momento representa o
alpendre da casa grande). Coroné! Oh Coroné! Ói! É fia da nega Maria, moradeira dos
extremos de vossa terra, vinham na direção de vossa casa, a mãe morreu de fome, a filha
mamou sangue nos peitos da morta. Enterrei a mãe, salvei o rosário e botei no pescoço da
fia. Todo mundo sabe coroné, que o sinhô andava rondando o terrêro de Maria... e essa
menina num nega não! Tem gênio ruim e raça de branco! Veja lá o que faz patrão...
(Retira-se em galope até o outro extremo da cena, já se desfazendo da roupa, como se
chegasse a sua casa e falasse à mulher). O coronel ficou com a encomenda, mas num
mandou batizar! Há de ser por isso...
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Imagens 78,79, 80, 81, 82, 83, 84, 85: Vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, julho de 2018,
Fotos de Raielle Mazzarelli.
Narradora/Lua:
(As referências para a passagem desse tempo na voz de narradora são baseadas
em diversos animais, enquanto vai falando o texto, Lua vai crescendo, mas relembra o
momento do parto, quando mamou o sangue-leite nos peitos de sua mãe. O crescimento de
Lua é um engatinhar de gato, caminhar de gorila, escramuçar de bezerro novo). Ela
cresceu sem crença. Uma força de homem, um mando no braço igual ao pai. Do seu
sangue branco, herdou a vontade de poder, a desobediência as leis divinas. Do sangue
negro recebeu o rosário, que era o cordão umbilical com a mãe. Ela nasceu numa noite de
lua, tinha um ciclo lunar e variava a cada lua. Seu nome não foi dado em vão.
(Canção do Parto – canção em Yorubá para a divindade Oxum – Vou puxando
o figurino de Lua de debaixo das coxas, enrolando-o e trazendo-o ao peito, até vestir
finalmente a roupa, ao vestir, já não é mais a criança que mamou o sangue, no peito da
mãe, é a moça cujas “regras” se iniciam, entrando em giro, ao parar, é Lua a moça que vai
ao encontro do pai, após visitar dois tabus relacionados ao feminino, o parto e o sangue
menstrual). Orumilá mamã, Orumilá mamã, Oiá dê Oxum bambiô, a Oxum, Carolé, com
mamã ansiô, a té um di figu iabáomirô, iaôberé, ferigodô.
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Imagens 86, 87, 88, 89: Parto. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, AC 04, julho de 2018.
Fotos de Raielle Mazzarelli.
Essa é uma passagem de transição, da criança que nasce, entra em contato com
o sangue da mãe, com o leite-sangue de seus peitos para o desabrochar da moça.
Gradativamente, a Lua que narra, que relembra a mãe, dá espaço a fim de que a
personagem encarne e fale por si. A narradora é também lua, mas é como se fosse uma
espécie de consciência que tudo vê. Uma consciência que passeia nos tempos, antes mesmo
de a personagem ser. Aqui, eu brinco com a imagem arquetípica de Oxum, a moça que se
olha no espelho, compreendo essa passagem como um momento em que a personagem
entra num processo de reconhecimento e projeção da sua imagem, na progressão de moça-
mulher, mas que também tem a ver com a forma como esse processo criativo se iniciou, a
partir de imagens em meus sonhos que foram sendo corporificadas na sala de ensaio, de
texturas que foram se soprepondo na pesquisa de campo e criando o corpo de Lua. Observo
nisso a dualidade do espelho, em que há tanto o reconhecimento dessa imagem quanto o
estranhamento. Uma colagem de mil pedaços conhecidos, negados, obscuros, traslúcidos,
recolho os cacos, giro, busco me reconhecer nos traços, nos fulcros das mãos, eu quase
124
posso entrar, trespassar o rasgo do espelho. Ao girar, girar, girar, eu borro a imagem, só
o que permanece nítido é o espelho.
Imagens 90, 91, 92, 93, 94, 95: Lua moça. Paviartes, Instituto de Artes, AC 04, julho de 2018, Unicamp.
Fotos de Raielle Mazzarelli.
Cena 3 (lua crescente):
Narradora/ Lua:
(Gira, cai de joelhos no chão, levanta, vai caminhando pé ante pé, até a mesa,
que agora representa o leito de morte do pai. No caminho tem folhas secas e galhos, estes
viram obstáculos ao silêncio total. Ao posicionar-se lateralmente à mesa, dirige-se ao
125
público) A primeira e última vez que eu entrei naquele quarto, foi quando ele disse assim:
(abaixa o ouvido em direção à mesa, como que para ouvir a voz do moribundo e trazê-la
gradativamente à boca no jeito de se expressar) Meu irmão e teu primo, não te reconhece
como herdeira, eles vão querer cortar tua cabeça, assim que eu fechar meus olhos.
(Levanta a cabeça, olha além do público, buscando aqueles que aguardam a morte do
Coronel, titubeia). És o filho homem que eu não tive. Prova a coragem que tens,
defendendo o que é teu! (Vai aumentando o volume da voz, relembrando os trejeitos de
falar do pai.) Encara o lado do teu pai e renega o sangue negro de tua mãe! De teu povo
escravo que só faz te rebaixar! (Aqui, já com muito desdém no jeito de falar, titubeia, olha
o rosário pendurado no pescoço).
Esse é o momento em que a personagem precisa tomar uma decisão, é um
impasse, na medida em que ela tem o reconhecimento da paternidade do coronel, há uma
exigência de cortar os laços com a mãe, mesmo que tais laços sejam simbólicos. Na
criação, isso me gerou um problema: como eu faço isso? Na minha encenação, será que lua
quer mesmo cortar esses laços, ou restaurá-los? Ainda estou tentando descobrir.
A indicação no conto é de que Lua quebra o rosário, apesar de achar a imagem
interessante, impactante, optei por realizar esse rompimento de outra forma. A partir desse
problema, eu, na minha condição de mestiça, como faria para extirpar de mim o que é
indisfarçável? Aqui, baseio-me no mito de Yansã, quando ela tem a sua pele roubada por
Ogum, recupero uma das partituras de movimento que realizei nos laboratórios conduzidos
por Elias de Lima Lopes, nos quais eu brinquei com o chicotear. Disso, resultaram
movimentos de sacudimento de cabeça, ombros, pernas, quadril. Certa vez, fazendo esses
movimentos o rosário saiu do pescoço, ele foi arremessado.
Por ora, tenho respondido a tal problema dessa forma, o rosário, que simboliza
o cordão umbilical com a mãe, é arremessado para fora do contato com o corpo da
personagem, então esse laço é rompido, através de movimentos bruscos, violentos. A
negação desse feminino ancestral, da mãe, é algo muito forte no conto, pedia de mim,
como atriz, algo que, de certa forma, correspondesse a essa força. É assim que ao som do
Run de Yansã, dou entrada à transição da moça para a guerreira, para a fase luminosa de
Lua.
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Imagem 96: Eles são quantos? Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de 2018.
Foto de Raielle Mazzarelle.
Cena 4 (lua cheia):
Lua: Eles são quantos? Aguarde o meu sinal... hoje mesmo ou morro ou acabo
com eles! Hei! Hei, Hei, Hei, Hei! (Lua empunha sua espingarda de fogo, dá o seu brado,
convocando seus cabras para a guerra).
Narradora/ Lua: Nas planícies do Jaguaribe, entre os dois montes, no sol
quente do meio dia. De um lado, a casa do Monte Carmo, onde reina Lua Cambará,
Idelfonso Roldão, o capataz e João Índio, o mais valente. Quase 120 homens
arrebanhados no grito. Exército louco e mestiço, zumbis sem medo, arrastados por uma
força de mulher. Do outro lado, a casa do Monte Alverne, cento e vinte parentes
arregimentados pelo ódio à bastarda usurpadora, falando em honra, tradição, direitos...
No meio dos inimigos, o rio Jaguaribe, limpo das últimas cheias, correndo para o mar,
com uma única certeza: a de que ninguém o atravessaria duas vezes, ninguém! No céu, os
urubus, que pressentem desgraça, sobrevoavam aguardando seu dia. E as ipueiras claras,
vermelhas dentro em pouco, do sangue inútil dos mortos.
Lua:
(Encantação do rio, lua derrama o seu sangue menstrual sobre as águas).
Rio Jaguaribe, que corres entre as pedras de saboeiro, que corres para o
mar... eu te conjuro! Que tu fiques vermelho do sangue dos meus inimigos! (Quebra prato,
Run de Yansã, o tecido então vira a guerra, até que num mergulho, Lua sai do outro lado
da margem).
128
Imagens 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106: Lua guerreira. Paviartes, Instituto de Artes,
Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.
Resta alguém vivo? (o tecido passa a ser o sangue que Lua lava do corpo, em
movimentos de esfregá-lo freneticamente pela pele). Pois então mande derrubar as cercas,
ocupem a casa do Monte Alverne, juntem o gado e ponham abaixo o seu cruzeiro. De hoje
em diante só existe um dono nessas terras! Eu! (Junta o tecido nas mãos em forma de
rodilha e bate no chão, semelhante ao movimento das lavadeiras, ajunta-o todo em uma
mão, corre, salta em cima da mesa, ocupando o espaço que representa o alpendre da casa
grande, lança o tecido de lá de cima, enquanto grita eu.
Nesse exercício, achei importante que o espaço do alpendre fosse em um nível
mais alto que o chão, de onde pudesse gritar, EU, lançando o tecido-sangue, alpendre
abaixo. Sobre o sangue dos mortos é que Lua pôde se tornar herdeira, é sobre esse sangue
que ela se assenta. Queria fazer uma cena em que a personagem tomasse um banho de
sangue, mas confesso que por sugestão da minha mãe, Elisabete Santana, que fez a
concepção de figurino, acatei a seguinte solução: ela acreditou que fazer esse banho
simbólico, com um tecido vermelho furta-cor, poderia ser mais interessante do que a ideia
da cuia, em que eu pensava tomar um banho com suco de beterraba. Eu acatei e confiei.
Revendo as fotos do ensaio com luz, percebo que ela tinha razão. O sangue era algo que
precisava aparecer de alguma forma, eu sentia como uma necessidade de tocar no tabu do
sangue feminino, como uma força que torna as mulheres misteriosas, perigosas, capazes de
matar, porque vivem no corpo o ciclo constante de vida-morte-vida a cada mês.
A imagem arquetípica da guerreira em Yansã tem forte ligação com o elemento
fogo, a tempestade, as emoções tempestivas, a energia da raiva e como dançar tudo isso?
Como ser trovão, tempestade, fogo, brisa, ao mesmo tempo, ser sangue, ser guerra, tudo
sozinha? Como lidar com tamanhas forças do feminino que é também sanguinário,
129
vingativo? Sigo buscando, encontrei essa forma de expressar isso. Certamente, há outras e
dentro de uma peça, de uma cena, cabem muitas outras. Nessa passagem, Lua é cheia,
cheia de si, cheia de coragem, de desejo de vingança, de tomar o que é seu nem que seja à
força.
Cena 5 (quarto minguante)
Narradora/Lua: (De cima do alpendre, bem assentada, Lua contempla as
terras até topar o olhar com João Índio, escolhendo alguém entre a plateia a quem mirar, o
sentimento de finalmente ocupar aquele lugar vai dando espaço a um amargor que a
condição de carrasca lhe dá. O semblante vai mudando, a herança começa a pesar sobre
seus ombros).
As crueldades em limites, os açoites recrudescidos dos negros, não calavam os
desejos no corpo e a ternura por um homem, João Índio, destemido e fiel a uma mulher,
Irene, com que dividia a pobreza e uma jura de amor. A confissão viria um dia numa
tarde, na frente de todos os vaqueiros, como um desaforo. (Arma a postura da perseguição
ao boi.) Corriam atrás de um boi desgarrado, menos por necessidade da presa, que pelo
orgulho de dominá-la. Ninguém se comparava a João, sustentando o cavalo sob os
joelhos, o peito aberto, as mãos livres para o ofício da derruba. Lua procurava estar ao
seu lado, foi ela quem susteve a cauda do boi, tentando passa-la à mão do Índio. João
recusou a gentileza, como se rejeitasse o amor de Lua. Ele deixou o bicho escapar,
perseguindo-o e derrubando-o sem qualquer ajuda. Lua não precisava de consentimentos
para possuir o que desejava.
130
Imagens 107, 108, 109, 110: Confissão de Lua. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04, julho de
2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.
Lua:
(Erguendo-se). Tua força só basta pra derrubar um boi ao chão. A minha
derruba qualquer homem ou mulher. Queres me desafiar?
Lua/narradora:
(Descendo e assumindo a postura de João)
João calou, não por medo. Sua patroa calçava perneira, vestia gibão e
montava a cavalo feito homem, mas a fêmea escapava de dentro de todas as amarras do
couro. Só não entrava no seu peito! Que procurasse outro, do mesmo quilate. Idelfonso
Roldão, seu capataz, aguardava um sinal pra ser seu escravo!
131
Imagens 111, 112: Recusa. Paviartes, Instituto de Artes da Unicamp, sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.
Cena 6 (lua minguante, ou o sacrifício de Irene)
A semente dessa cena despontou em Sangangá, dei prosseguimento na
exploração desse mote em As nove luas de Lua Cambará, aqui, nessa passagem, recupero
as partituras que foram realizadas durante o período de experimentação nos laboratórios
criativos da pesquisa em campo, na caatinga do Alto Sertão do Pajeú, procuro reviver as
sensações de quando estive lá, sob o sol escaldante do meio dia em minhas carreiras e
devaneios na caatinga.
Se ele não será meu, que também não seja dela! (Num ímpeto, sai da mesa em
direção aonde está a adaga, num jogo de sedução e perigo busca convencer o capataz a
atender seu pedido) Idelfonso! Idelfonso! Se eu lhe pedir um favor, você faz? Vai com dois
homens, dos melhores. Eu quero que você vá lá, faça com ela como se faz com as cabras
em dia de sábado! Quando passares a faca pelo seu pescoço, eu quero que diga assim:
Com a mesma compaixão com que eu sangro uma cabra, eu te sangro! (Ao terminar essa
frase, ela tem passado a faca na palma da mão e lambido o sangue do corte) Agora vá!
(Aqui assume a postura de Idelfonso, o gestual, o tom nojento de ser, caminha até a
marcação do rio, no centro da cena ao fundo).
132
Imagem 113: Se eu lhe pedir uma coisa, você faz? Paviartes, Instituto de Artes,
Unicamp. Sala AC 04. Foto de Raielle Mazzarelli.
Lua/ Idelfonso:
(Apontando a faca para Irene) Teu marido? (...) Volta logo? (...) Tens alguma
oração pra fazer? Mandaram que eu dissesse um recado: com a mesma compaixão com
que sangro uma cabra, eu te sangro! (Avança, dando três golpes no ar, ao final do
terceiro golpe, cai de joelhos, suplicante, na postura de Irene).
Lua/ Irene:
Eu? Não... eu vivo de alma limpa! (Abre os braços em tom de entrega ao
sacrifício) Eu rogo as forças do mundo, que essa mulher tenha o mais terrível dos fins!
Que ela morra com as entranhas queimando! E que a morte seja apenas o começo do seu
penar! (Virando-se para olhar o céu) Quem nem o céu, nem a terra, nem o inferno a
queiram, que ela fique a vagar eternamente. (Dá seu último suspiro e assume a postura de
narradora).
Imagens 114, 115: Maldição de Irene, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp. Sala AC 04,
julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli
Narradora/ Lua:
133
Irene pensou que seria bom se o sangue se misturasse às águas do rio Jaguaribe e
corresse até o mar, assim, mesmo morta poderia visitar as praias do mundo, na
companhia de João, trazido na força dos gritos, para morrer o seu lado. Quem vem lá?
Quem vem lá? É Lua, é Lua, é Lua... Cambará! (Levanta-se lentamente do chão, do leito
de morte, Irene/Lua/ Irene gradativamente inicia uma corrida em círculo, ao passar pela
caveira da cabra, Lua repete a sentença de encomenda da morte de Irene). Com a mesma
compaixão com que sangro uma cabra eu te sangro, Irene! Com a mesma compaixão com
que sangro uma cabra, eu te sangro Irene! Eu te sangro Irene! Eu te sangro! (Ora,
sussurrando, ora, grunhindo, ora gritando).
(Corre em círculos até cair, na queda pergunta ao capataz) Idelfonso, e João? Escapou?
(Lua recolhe a roupa do vaqueiro, enquanto canta, leva o figurino deste ao centro da cena,
cruza as mangas da camisa e fica velando o morto).
Imagens 116, 117, 118, 119: Sentença, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp, sala AC 04,
julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.
Vaqueiro, abra a porteira do curral e vem ver meu boi sair pra viajar... Abra a porteira
pra ele, que é pra poder caminhar! Lá vai meu boi, meu boi, e ele vai andando devagar,
vai trotar um passo miúdo que é pra poder caminhar... (Entra em giro, abrindo a porteira,
a alma de João, o boi, vai embora da fazenda de porteira afora).
134
Imagens 120, 121, 122: Enterro do vaqueiro. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
sala AC 04, julho de 2018. Fotos de Raielle Mazzarelli.
Pergunto-me, nessa criação, quem é que amaldiçoa Lua? É o escritor do conto,
que adere a um ponto de vista de julgamento sobre o padrão ideal de feminino? Era o
pensamento da época (1970) em que foi transcrita a narrativa? Um feminino sacrifica
outro, um feminino que, em alguns aspectos, identifica-se com o masculino e nega a
herança materna. Lua pede o sacrifício de Irene, como se esta fosse uma cabra, mas padece
desse mesmo sacrifício, pois a sentença que atinge Irene também a maltrata. Então, quem é
Irene no conto? Seria aquilo que Lua nega e por “matar” em si esse aspecto do feminino
torna-se, assim, amaldiçoada e impossibilitada de vivenciar o amor romântico com o
masculino? É muito forte isso. Mesmo a maldição que Irene lança sobre Lua, torna
impossível conciliar as duas facetas. A meu ver, Irene e Lua são a mesma pessoa em
conflito.
Na medida em que uma nega a outra, é como se o espelho se partisse, o passivo
e o ativo no feminino que é Lua iniciam um processo de autodestruição. Irene praticamente
amaldiçoa Lua a sangrar até a morte e condena esse aspecto sombrio a não ter um lugar
onde possa se acomodar. A única possibilidade de conciliação talvez seja a consciência
135
atemporal de Lua, que vem e procura restaurar o laço partido com a mãe, com o aspecto
masculino, com a ancestralidade, com as memórias.
Cena 7 (lua nova)
Narradora/ Lua:
(Entra em giro, bate cabeça para a assombração, na medida em que vai
vestindo, vai narrando). Meu pai jurou que viu, no tempo em que dividia suas horas com os
cuidados com a terra herdada do avô e ofício de boiadeiro, tocando rebanho de gado
pelas estradas. Dele ouvi o relato, repetido nas noites sem lua e de tanto ouvir, também
juro que vi.
Imagens 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130: Lua, a pomba gira das escruzilhadas de terra.
Fotos de Raielle Mazzarelli, julho de 2018, Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp.
136
Eram os três dias em que a lua morre, o vento da noite, tarde, já soprava com força. Um
cortejo de amortalhados passava ao longe, homens e mulheres pressentidos nos vultos,
numa rede alva, atravessada por um pau, carregada por dois negros montados a cavalo,
ela! É Lua Cambará que segue seu destino de alma penada! Gritaram no meio das
sombras. E aonde vão? Atreveu-se meu pai a perguntar. Vamos pelo mundo a vagar, a
vagar, a vagar... (Canta, caminhando em círculos pela cena).
Quem vem lá? Perguntavam.
Quem vem lá? Perguntam até hoje.
É Lua Cambará
(Vai tirando flores do figurino e passa onde estão o corpo do vaqueiro, da velha, busca as
meninas na trouxa, em baixo do alpendre, traz para o centro da cena, em cada um desses
pontos vai deixando solenemente uma flor).
Sua história, sua morte
Pena e sorte, ai de mim.
Uma assombração que passa
Sem princípio, meio e fim.
(Arranca lentamente da boca um fio vermelho deposita-o por cima da trouxa com o coro
das meninas).
Imagem 131: Arrancou da garganta o grito que era da mãe. Paviartes, Instituto de Artes, Unicamp,
julho de 2018. Foto de Raielle Mazzarelli.
“Ela arrancou da garganta o grito que era da mãe”. Lua Cambará – Ronaldo
Correia Brito. Lua Cambará, a Pomba-Gira das estradas que aparecia nos caminhos dos
137
tropeiros, quando levavam o gado de um lugar ao outro, só ela quem pode unir as pontas
das histórias e restaurar os laços rompidos. Retorno à lua nova, o ciclo se cumpre.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lua existe.
Quem vem lá? É Lua, é Lua, Cambará... lobisowoman, é vurto, é Pomba-
Gira que anda, que assombra, Lua Cambará, a Pomba-Gira das
encruzilhadas de terra. “E para onde vão? Vamos pelo mundo a vagar”.
A revirar a terra, os mortos, os caminhos tortos.
O modo artesanal com que construí relações, ao longo desse processo, levou-
me a uma metodologia de criação que compreende um ponto de vista proximal, afetivo e
participativo com as manifestações, saberes, práticas, religiosidade e ações da cultura
popular a que eu nomeei esse modo de estar em campo de pesquisa e experiência de
Filosofia do Guarnecer.
Nas oportunidades que tive de desenvolver o meu guarnecer de atriz, nas
vivências com a cultura popular, durante esse trajeto, continuei observando momentos em
que experimentei excepcionalidades típicas de um acontecimento gerador de liminaridade
e communitas, que me trouxeram um profundo sentimento de pertencimento às rodas e
celebrações e contato com as raízes, com os ancestrais no fazer dessas rodas.
A opção por materiais artesanais, feitos à mão, determinou também um modo
de estar no trabalho que tem estreita relação com a comunidade familiar, característica
daqueles que são fazedores da cultura popular. Posso dizer que como uma artista,
pesquisadora, amante da cultura popular, eu consegui aglutinar pessoas de modo
semelhante ao que acontece nos ajuntamentos de gente, voltados à prática e a saberes
populares, apesar de não ser nascida num círculo que zela por uma tradição específica,
como os parentes do Leitão da Carapuça ou do Brejo de Dentro, os quais pertencem a
comunidades quilombolas do Sertão, que desde cedo nutrem através do burburinho das
cozinhas, do convívio, da partilha, as suas resistências, assim como a transmissão da
tradição nas rodas de coco.
Apesar disso, no meu fazer e no processo artístico percebo que agreguei a
família e os amigos, criando em rede e também resgatando no meu guarnecer aqueles que,
de alguma forma, praticavam ações ligadas a este fazer, como as memórias dos ancestrais
mais próximos, no corpo e através dele, como por exemplo, meu avô Balbino da Silva, que
140
era vaqueiro de profissão e dançador de coco, embora o meu conhecimento dele seja
póstumo, intermediado por retratos desbotados e causos de família. Ou mesmo as
memórias das ancestrais femininas maternas mais próximas, intermediadas pelas
lembranças da minha avó Rosa Santana, cujas recordações se cruzam diretamente com os
temas da peça. Assim, todo o processo de construção da personagem foi atravessado pela
oralidade nos trajetos, afetos e relações que desenvolvi ao longo deste, mesmo em se
tratando de um trabalho solo, porém nutrido desses afetos, em que a confiança na rede, na
comunidade criadora permitiu o desenvolvimento de parcerias que possibilitaram a co-
criação e o desenvolvimento de um procedimento de trabalho específico de estar em
campo.
Assim, este trabalho agrega múltiplas narrativas nas materialidades que o
compõe, de forma que sinto que este trabalho é meu, mas é nosso também. Eu não danço
só, eu não ando só, eu não sou só, eu só, eu sou eu, a mãe, a avó. Nessa artesania delicada,
feita de relações, narrativas, afetos, a personagem passeou por várias cabeças.
Tudo o que eu sonhei, vi, vivi, imaginei, criei até aqui é irradiado pelos afetos,
encontros, vivências com os materiais que compõem os detalhes dessa encenação, que
entraram de ouvido a dentro, de retina a dentro, de pele a dentro. Pude depreender até aqui
a abordagem da personagem Lua Cambará em camadas justapostas, mitológica,
sociológica e poética.
Como metodologia de criação da personagem, sugerida por esse procedimento
da Filosofia do Guarnecer, intercalei procedimentos de laboratórios em que fui proponente,
em oficina e sala de aula; com laboratórios nos quais atuei. Intercalando ainda o trabalho
interno, sozinha, com provocações de colaboradores. Intercalando o trabalho fechado com
as diversas aberturas de processo, realizando, constantemente, o compartilhamento do
material com colegas convidados. Durante o processo mesmo, variando dinâmicas de
experimentações em espaços abertos e fechados.
As reflexões apontadas no texto me permitiram uma aproximação com a
personagem na situação de trajeto em que a subjetividade de atriz se encontra com a
subjetividade da personagem por uma via arquetípica, sociológica e criativa. Creio que uma
personagem tão complexa quando Lua Cambará fornece material bastante rico para o
trabalho de atriz, sem a pretensão de deter qualquer verdade irrefutável sobre a
141
personagem, nem esgotar o assunto, deixo decantar as experiências culminadas até aqui,
ciente de que ainda há muito caminho a percorrer.
142
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148
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149
B- MAPA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO LEITÃO DA CARAPUÇA E TRAVESSÃO
Fonte: GRES- Gerência Regional de Saúde de Afogados da Ingazeira – PE. Leitão da Carapuça.
Mapeamento de 1997.
150
Fonte: GRES- Gerência Regional de Saúde de Afogados da Ingazeira – PE. Travessão. Mapeamento de 1997.
151
C- MITO DE OYÁ
Na parte três da obra literária Oya, Um Louvor àDeusa Africana, a autora Judith
Gleason (2006, p. 206) traz a seguinte narrativa: A mulher-búfalo e os caçadores, com o
sub-tema: Quando a mulher búfalo vira Oya, na história abaixo citada, ela relata ainda que,
“esta versão inglesa da história segue o formato oracular no qual foi originalmente recitada
pelo divinador iorubá Awotunde Aworinde, em junho de 1970, em Osohogbo”.
“COMO O BÚFALO FOI LEVADO PELO CAÇADOR”
1 Saudações! Queremos agora louvar Osa Ogunda
um sinal que explica o nascimento de Oya.
“Osa-Ogum pode lutar” é o nome de um remédio
que o capacitará a suplantar seus inimigos.
Eeeeee! Você vê o caminho que Ifá tomou para ser chamado dessa forma?
2 Pequeno Redemoinho (o herbalista) sentado como cobertura –
Que Luar! Foi o nome do divinador
que jogou Ifá para o Chefe dos Caçadores
no dia em que ele saiu para buscar uma esposa
para brilhar radiantemente para ele.
3 Se você está na espreita, sacrifique,
disse o divinador, os seguintes itens:
inhames que possam brotar
um pequeno pote de vinho de milho-guiné
quatro galinhas, quatro pombos
e quatro sacos de búzios.
4 Tendo completado o sacrifício, ele saiu à noitinha para caçar,
passou fora a noite toda, mas nada avistou,
ficou no alto da sua plataforma nas árvores, esperando.
Chegou o amanhecer, e o caçador decidiu esperar um pouco mais
até que houvesse luz suficiente,
para voltar a casa com facilidade.
5 Então, de repente, ele viu uma fêmea se aproximando.
Ela olhou para a direita
ela olhou para a esquerda
não viu ninguém
e seguiu seu caminho, majestosamente.
Quando chegou perto da base de um cupinzeiro,
para grande surpresa do caçador, ela começou a remover
a própria pele –
despiu os braços
despiu as pernas
e o lado da cabeça.
Ele a observou fazer uma trouxa de tudo aquilo
e empurrá-la para dentro do formigueiro. Então,
ela olhou para a direita
152
ela olhou para a esquerda
não viu ninguém
e se transformou numa bela mulher.
6 Na sua plataforma de espreita o caçador ficou sentado,
olhando.
7 Quando estava vestida com roupas humanas
Essa bela mulher voltou para o cupinzeiro
pegou seu recipiente de sementes de alfarrobeira
e seguiu para o mercado.
8 O caçador esperou até que ela estivesse fora de vista
e deslizou de seu poleiro
e foi furtivamente até o local onde ela escondera sua pele,
pegou a trouxa e foi para casa.
9 Então o Caçador foi ao mercado para comprar
a especiaria de sementes de alfarrobeira.
Irú, três shillings, por favor,
disse para a mulher.
Eu não posso pagar agora
mas certamente você não se incomodará
de parar no seu caminho de volta para casa
para pegar o dinheiro
10 Quando a noitinha chegou, ela rumou para a floresta
onde o caçador vivia, clamando:
Irú, irú, alguém aqui
comprou do meu irú no mercado?
O caçador veio até a porta e disse que tinha sido ele.
11 Eu vim para apanhar o dinheiro, disse ela.
Muito bem, mas não quer entrar um momento?
Aqui, continuou ele, coma alguma coisa antes de continuar
a sua viagem.
E ele ofereceu um pouco de inhame.
E ele ofereceu um pouco de bebida
que tinha sacrificado para Ifá.
12 Tendo comido do inhame e bebido um pouco de vinho
a bela mulher sentiu-se muito cansada e sonolenta.
Quando acordou já estava muito escuro
para que ela saísse sem que houvesse comentários
(dos intrometidos).
13 Quando chegou ao local onde escondera sua pele,
a bela mulher viu que ela não estava ali.
Ai! Ai! O que aconteceu?
Eu olhei para a direita
Eu olhei para a esquerda
E não vi ninguém.
Quem então a teria pego?
Deve ter sido o homem
que comprou as minhas especiarias
Sem pagar. Será melhor voltar
E ter uma conversa com ele!
153
14 Quando chegou na casa do caçador, ela implorou:
Por favor, devolva as minhas coisas
daquele lugar (sem querer dizer o nome).
Eu não vi nada seu.
Mas você viu. Por favor, eu lhe peço.
Tenha piedade de mim, eu lhe imploro!
Então, case-se comigo, disse o caçador.
Eu casarei, disse a bela mulher,
mas você deve prometer
que irá observar os meus tabus.
Nunca mencione para as outras esposas
onde me encontrou e nem o que
tomou de mim.
Isso é tudo? Está bem, eu prometo.
disse o caçador.
15 E assim foi. O tempo passou
e eles também.
Ela teve o primeiro filho,
depois o segundo, o terceiro, o quarto...
O tempo passou, até que um dia
o caçador viu os feijões vermelhos
amadurecendo no campo
e pediu às suas mulheres que saíssem
para colhê-los.
16 Agora, suas esposas mais velhas
não paravam de perguntar
de onde aquela mulher tinha vindo.
Não tinham visto parentes dela,
nenhuma, nenhuma vez
a tinham visitado, e nem
ela tinha ido vê-los.
Que tipo de coisa era essa?
O caçador persistia na recusa de contar.
17 Contudo, uma noite
elas o dobraram com comida
elas o dobraram com bebida
até que ele não conseguiu mais se conter.
Senhor, estimado marido, pai
da casa, você
nos deve isso. É
apropriado que nós saibamos
o tipo de caráter a quem
somos forçadas a nos associar.
Viemos de famílias boas
(aparentemente ela não)
mas qualquer que seja a linhagem dela
nós precisamos saber.
Não acha que chegou o momento de nos dizer?
18 Não podem deixar essa pobre mulher sozinha?
154
O que ela é para vocês? – rugiu em meio a sua bebedeira.
Não é elaaa aquelaaa fêmeaaaa de mulherrr.
Eu a vi tirando suas roupas na floresta
naquele dia em que comprei irú dela
e ela veio pegar o dinheiro?
Por isso me casei com esse búfalo
alguém em que possa confiar
alguém para brilhar por mim.
O que vocês mulheres miseráveis sabem
A respeito dos segredos da floresta?
Por que um caçador não poderia se casar com um animal?
Agora, estão satisfeitas?
Deixem-me em paz. Estou cansado.
19 E-heh, elas se regozijaram; foi uma boa coisa.
o que você contou para nós, não foi?
20 Quando a época estava boa para a colheita dos feijões
o caçador saiu para passar a noite nos campos
As mulheres deveriam ir até ele
na manhã seguinte.
Assim que as esposas do caçador levantaram,
pararam na porta dela.
Está pronta?
Ainda não, ela respondeu, pois estava ocupada com as crianças.
Apresse-se, gritaram as mulheres. O sol já saiu.
Vai ser um dia quente.
Por favor, tenham paciência, ela replicou, estarei pronta em
um minuto.
Vermelha, Vermelha, venha assim que estiver pronta – elas
escarneceram.
Iremos na frente
vá no seu tempo, Vermelha
Continue ruminando o seu alimento.
O seu disfarce está seguro
Lá entre as vigas
Por isso considere-se afortunada.
Mulher Vermelha!
21 Ai!Ai! Seu estômago revirou
com a surpresa.
Assim que as co-esposas saíram de vista,
Ela mandou que as crianças saíssem de casa,
Pegou uma bolsa feita de rato gigante
E foi buscar água.
Subiu até o lugar dos guardados sob as vigas do telhado,
pegou a trouxa que continha o disfarce
E começou a encharcá-lo.
Vestiu-o aos pouquinhos,
A perna
A coxa
O braço
155
Agora! Ela pulou e correu pela cidade
sem tocar ou machucar nenhuma pessoa.
Ela correu direto para os campos.
22 Correu para a primeira esposa,
matou-a
Correu para a segunda esposa,
matou-a
e também a terceira.
Então viu os filhos vindo pelo caminho.
Ao ver o búfalo eles começaram a correr.
Por favor, não! Vejam...
(afastando o disfarce do rosto)
Sou a mãe de vocês!
Não, é não, você é um búfalo,
gritaram as crianças. Deixe-nos!
Por favor, volte para a floresta.
23 Claro que vou,
mas primeiro
(Quebrando um pequeno pedaço do chifre da sua cabeça)
quero dar isso a vocês.
Quando quiserem que eu faça alguma coisa para vocês peçam a ele.
Chamem na maneira correta, chamem por Oya
pois esse é o meu nome
e eu sempre responderei.
Se alguém usar de malícia contra vocês
contem para mim.
Se quiserem alguma coisa –
dinheiro, esposas, filhos –
é só me chamar, chamem por Oya, Oya.
Adeus!
24 Dizendo isso, ela puxou o disfarce para cima do rosto
e saiu na direção do marido.
Ele a viu chegando. Aquele búfalo na distância –
instintivamente ele soube.
Ai!Ai! Minhas esposas arruinaram a minha vida!
25 Ela o teria matado de imediato,
mas ele começou a louvá-la.
26 Nobre búfalo.
Nada o faz parar.
Você faz o seu caminho pelas moitas.
Nenhum arbusto é denso o suficiente para você.
Lutador, por favor não mate o caçador
pelo prazer de matar.
Foi ele que o alimentou com Inhame.
Foi ele quem lhe deu vinho de milho-guiné para beber.
Por favor, poupe o caçador que o tratou.
Fêmea lutadora!
27 E ela teve pena
Neste dia eu vou embora para sempre
156
mas deixarei um chifre com meus filhos.
Você também pode me chamar
Se precisar de mim
Se souber como
Sabendo quem eu sou
Este som – Oya!
Esta forma – o Búfalo!
Este poder –
E, então, desapareceu.
28 É por isso que os divinadores chamam essa estrada de Ifá
Osa „gun le já
Quer dizer: “Ele usou o remédio mágico para a tingir o seu propósito.”
Quer dizer. “Folha de búfalo, seja vitorioso.”
Remédios-pode-lutar
Filhos da fêmea
Filho de Oya
Aqui está a explicação.
Saudações pelo sacrifício prescrito e realizado.
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D- NO CAMINHO DO ROÇADO
Elisabete Santana de Lima. Artesã, liderança comunitária, representante das agricultoras do Sertão do Alto
Pajeú de Pernambuco na Rede Mulher Nordeste. Figurinista de As nove luas de Lua Cambará.
Sítio Barro Branco, dezembro de 2017.
Larissa Santana. Atriz, dançarina, pesquisadora, amante da cultura popular. Chã da serra,
Sítio Barro Branco, dezembro de 2017.
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É na pedreira onde o pássaro cantava... Chã da serra, Sítio Barro Branco.
Angico. Ciência. Salve a Jurema Sagrada, Salve todo o Juremá. Dezembro 2017.
Sítio Barro Branco, cerca de vara, cabra de Seu Romão. Dezembro 2017.