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trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contacto que tive com a justiça. [pág. 035] Uma bebedeira NDAMOS cerca de duas léguas a cavalo: minha mãe posta de meia esguelha, envolta na saia comprida e larga, uma perna presa no gancho A do silhão; meu pai todo pachola, boa lança nas cavalhadas, viajando no preceito, como quem executa um dever; eu seguro por ele, na maçaneta da sela, porque era pequeno demais e não me agüentava na garupa do animal. Íamos visitar um fazendeiro vizinho, homem considerável, de hábitos que mereciam a reprovação da gente cautelosa. Nesse dia não o percebi direito. Avistei-o alguns anos depois, na vila próxima, de calça branca, paletó de casimira, chapéu do Chile, botinas lustrosas, guarda-chuva caro, uma libra esterlina pendurada no correntão de ouro, escandalosamente próspero. E, ao cabo de longo intervalo, encontrei-o de novo, muito por baixo, carregando na aguardente, jogando baralho com polícias em balcões de bodegas e em calçadas. Meus parentes, econômicos em excesso, atribuíam esse [pág. 036] desmantelo ao guarda-chuva e à libra esterlina. E também às superfluidades que nos exibiu naquela manhã de verão: móveis esquisitos; redes alvas, de varanda, grossas e macias, trabalhadas como rendas; panos limpos, cheirosos; a garrafinha vermelha, na salva, rodeada de cálices, objetos que me provocaram admiração. No meio estranho encabulei — e isto me atenazava. Ainda isento de compromissos, murchava diante de pessoas desconhecidas. Com certeza já me haviam habituado a julgar-me um ente mesquinho. A minha roupa curta era chinfrim. Tentei esconder-me, arrastei-me sob os punhos das redes, coxeando, tropeçando, que os sapatos me aperreavam. Em casa eu usava alpercatas — dois pedaços de sola e correias. Quando me impunham sapatos, era uma dificuldade: os pés formavam bolos, recalcitravam, não queriam meter-se nas prisões duras e estreitas. Arrumavam-se à força, e durante a resistência eu ouvia berros, suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins amarelos, um par de infernos, marcou-me para toda a vida. Ignoro como chegamos à fazenda: as minhas recordações datam da hora em que entramos na sala. Meu pai e o proprietário sumiram-se, foram cuidar de negócios, numa daquelas conversas cheias de gritos. Minha mãe e eu ficamos cercados de saias.

Infancia - Graciliano Ramos.18.pdf

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  • trabalhavam na telha negra.

    Foi esse o primeiro contacto que tive com a justia. [pg. 035]

    Uma bebedeira

    NDAMOS cerca de duas lguas a cavalo: minha me posta de meia esguelha,envolta na saia comprida e larga, uma perna presa no gancho A do silho; meupai todo pachola, boa lana nas cavalhadas, viajando no preceito, como quemexecuta um dever; eu seguro por ele, na maaneta da sela, porque era pequenodemais e no me agentava na garupa do animal.

    amos visitar um fazendeiro vizinho, homem considervel, de hbitos quemereciam a reprovao da gente cautelosa. Nesse dia no o percebi direito.

    Avistei-o alguns anos depois, na vila prxima, de cala branca, palet decasimira, chapu do Chile, botinas lustrosas, guarda-chuva caro, uma libraesterlina pendurada no corrento de ouro, escandalosamente prspero. E, aocabo de longo intervalo, encontrei-o de novo, muito por baixo, carregando naaguardente, jogando baralho com polcias em balces de bodegas e em caladas.

    Meus parentes, econmicos em excesso, atribuam esse [pg. 036] desmanteloao guarda-chuva e libra esterlina. E tambm s superfluidades que nos exibiunaquela manh de vero: mveis esquisitos; redes alvas, de varanda, grossas emacias, trabalhadas como rendas; panos limpos, cheirosos; a garrafinhavermelha, na salva, rodeada de clices, objetos que me provocaram admirao.

    No meio estranho encabulei e isto me atenazava. Ainda isento decompromissos, murchava diante de pessoas desconhecidas. Com certeza j mehaviam habituado a julgar-me um ente mesquinho. A minha roupa curta erachinfrim. Tentei esconder-me, arrastei-me sob os punhos das redes, coxeando,tropeando, que os sapatos me aperreavam. Em casa eu usava alpercatas doispedaos de sola e correias. Quando me impunham sapatos, era uma dificuldade:os ps formavam bolos, recalcitravam, no queriam meter-se nas prises duras eestreitas. Arrumavam-se fora, e durante a resistncia eu ouvia berros,suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins amarelos, um par deinfernos, marcou-me para toda a vida.

    Ignoro como chegamos fazenda: as minhas recordaes datam da hora em queentramos na sala. Meu pai e o proprietrio sumiram-se, foram cuidar denegcios, numa daquelas conversas cheias de gritos. Minha me e eu ficamoscercados de saias.