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As paredes eram brancas e talvez tenham concorrido para me agravar o embaraço. Defronte da casa um carro de bois descansava sob a ramagem quase sem folhas de uma árvore alta. Desinteressei-me do carro de bois, igual a outros já vistos, mas desejei que me explicassem a árvore pelada, muito diferente do pé-de-turco do meu quintal. Guardei [pág. 037] silêncio, temeroso, aluí num canto da parede, longe das saias. Minha mãe, entre elas, estava importante. Não reparei na importância: os sapatos faziam-me esquecer o carro de bois, as redes, as mulheres que adulavam minha mãe, desprezando-a. Julgo que ela se chateava com as gentilezas. Não as entendia e bocejava de leve, sisuda, ausente dos que se esforçavam por obsequiá-la. Havia, uma senhora idosa e várias moças: uma grande, morena, bulhenta, outras que se escondiam por detrás dela, secundárias, hoje obliteradas. Riam, mexiam, animavam-se. Não sei como de repente me vi no meio do bando rumoroso: sei que me afastaram da parede e os sapatos deixaram de magoar-me os dedos e os calcanhares. Escancharam-me numa das redes, perto da senhora velha, e penso que me consideraram digno de interesse. Aí trouxeram a bandeja, a garrafinha de licor e os cálices. Minha mãe tocou a linha esquiva dos beiços naquela surpresa que tingia a substância rara, cruzou as mãos, franziu a boca numa tentativa de agradecimento. Com rigor, não me seria possível afirmar que tais gestos se realizaram. Surpreendi-os, contudo, em visitas posteriores e arrisco-me a referi-los. Os dedos finos e nodosos juntavam-se, inofensivos; os lábios duros contraíam-se, mudos; os olhos se esbugalhavam, parados, frios, indecisos. O que nessa figura me espantava era a falta de sorriso. Não ia além daquilo: duas pregas que se fixavam numa careta, os beiços quase inexistentes repuxando-se, semelhantes às bordas de um caneco amassado. Assim permanecia, contendo bocejos indiscretos. Miúda e feia, devia inquietar-se, desconfiar das amabilidades, recear mistificações. Quando cresci e tentei agradá- la, recebeu-me suspeitosa e hostil; se me acontecia concordar com ela, mudava de opinião e largava muxoxos desesperadores. [pág. 038] [pág. 039] imagem [pág. 040] em branco Quem me deu o primeiro cálice de licor foi a morena vistosa, mas não sei quem deu o segundo. Bebi vários, bebi o resto da garrafa. Comportei-me indecentemente, perdi a vergonha, achei-me à vontade, falando muito, desvariando e exigindo licor. Uma das moças trouxe-me um copo de vinho com mel. Minha mãe enferrujou a cara, estirou o braço enérgico, mas naquele

Infancia - Graciliano Ramos.19

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Page 1: Infancia - Graciliano Ramos.19

As paredes eram brancas e talvez tenham concorrido para me agravar oembaraço. Defronte da casa um carro de bois descansava sob a ramagem quasesem folhas de uma árvore alta. Desinteressei-me do carro de bois, igual a outrosjá vistos, mas desejei que me explicassem a árvore pelada, muito diferente dopé-de-turco do meu quintal. Guardei [pág. 037] silêncio, temeroso, aluí numcanto da parede, longe das saias. Minha mãe, entre elas, estava importante. Nãoreparei na importância: os sapatos faziam-me esquecer o carro de bois, as redes,as mulheres que adulavam minha mãe, desprezando-a. Julgo que ela se chateavacom as gentilezas. Não as entendia e bocejava de leve, sisuda, ausente dos que seesforçavam por obsequiá-la. Havia, uma senhora idosa e várias moças: umagrande, morena, bulhenta, outras que se escondiam por detrás dela, secundárias,hoje obliteradas. Riam, mexiam, animavam-se.

Não sei como de repente me vi no meio do bando rumoroso: sei que meafastaram da parede e os sapatos deixaram de magoar-me os dedos e oscalcanhares. Escancharam-me numa das redes, perto da senhora velha, e pensoque me consideraram digno de interesse. Aí trouxeram a bandeja, a garrafinhade licor e os cálices. Minha mãe tocou a linha esquiva dos beiços naquelasurpresa que tingia a substância rara, cruzou as mãos, franziu a boca numatentativa de agradecimento. Com rigor, não me seria possível afirmar que taisgestos se realizaram. Surpreendi-os, contudo, em visitas posteriores e arrisco-mea referi-los. Os dedos finos e nodosos juntavam-se, inofensivos; os lábios duroscontraíam-se, mudos; os olhos se esbugalhavam, parados, frios, indecisos.

O que nessa figura me espantava era a falta de sorriso. Não ia além daquilo: duaspregas que se fixavam numa careta, os beiços quase inexistentes repuxando-se,semelhantes às bordas de um caneco amassado. Assim permanecia, contendobocejos indiscretos. Miúda e feia, devia inquietar-se, desconfiar dasamabilidades, recear mistificações. Quando cresci e tentei agradá-

la, recebeu-me suspeitosa e hostil; se me acontecia concordar com ela, mudavade opinião e largava muxoxos desesperadores. [pág. 038]

[pág. 039] imagem

[pág. 040] em branco

Quem me deu o primeiro cálice de licor foi a morena vistosa, mas não sei quemdeu o segundo. Bebi vários, bebi o resto da garrafa. Comportei-meindecentemente, perdi a vergonha, achei-me à vontade, falando muito,desvariando e exigindo licor. Uma das moças trouxe-me um copo de vinho commel. Minha mãe enferrujou a cara, estirou o braço enérgico, mas naquele