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1 Beto Borges

Informativo Intervozes: TV Digital, nº 2

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Na segunda edição do encarte publicado na revista Caros Amigos, o Intervozes aprofunda as razões por trás da 'pressa' na escolha do padrão digital e detalha os interesses envolvidos.

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As decisõestomadas num futuropróximo produzirão

forte impacto nomodo como

assistimosà televisão.

Criado, entre outras coisas, para promover a inclu-são social, propiciar a surgimento de uma rede univer-sal de educação à distância, estimular a pesquisa e de-mocratizar a informação, o Sistema Brasileiro de Televi-são Digital (SBTVD) corre risco de morte.

Com a posse do atual ministro das Comunicações,Hélio Costa, a sociedade civil passou a não mais serouvida. Ao mesmo tempo, o ministro anuncia desde ofinal de 2005 a tomada de decisões que visam benefici-ar exclusivamente os radiodifusores privados, como aescolha da modulação japonesa (ISDB) e a manuten-ção do atual cenário de concentração da propriedadedos meios de comunicação de massa (a despeito dasenormes potencialidades de mudanças que surgem coma digitalização).

Nos últimos meses, contudo, ficou evidente para ogoverno que a opção pela proposta da Globo tambémterá um alto preço político. Empresas e governos daUnião Européia têm mostrado todo o seu incômodocom a opção japonesa e sinalizam com uma possívelqueda nos investimentos na indústria eletrônica para ospróximos anos. Ambos, assim como as operadoras detelecomunicações, já deixaram claro o seu desconten-tamento com a posição do ministro.

Já as universidades reclamam que o dinheiro inves-tido em pesquisas pode se perder se não for garantidaa continuidade do desenvolvimento tecnológico e a suatransformação em produtos industrializados.

Por fim, a sociedade civil pressiona para que o go-verno cumpra o programa com o qual se elegeu e ga-ranta que a transição para a TV e o rádio digitais se dêmediante a elaboração de um novo marco regulatórioque responda à necessidade de democratizar as comu-nicações.

Pressionado por todos os lados, o governo federalparece perdido, sem saber qual o melhor caminho aseguir. Timidamente, demonstra que não quer sucum-bir ao pragmatismo eleitoral e tomar uma decisão queperpetue a concentração dos meios de comunicação,tão destrutiva à democracia brasileira. Ao mesmo tem-po, sabe que enfrentar o poderio das OrganizaçõesGlobo pode significar perder o apoio – ou pelo menos aneutralidade - do maior grupo de comunicação do paísdurante o período eleitoral.

Enquanto o governo silencia, nos corredores dopoder surgem quase todos os dias boatos que não per-mitem à sociedade saber o que de fato se passa nosgabinetes de Brasília. E, com isso, o país segue sem

Falta transparência

Editorial

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É preciso afirmarcom convicçãoque só um sistemadesenvolvidonacionalmente serácapaz de darrespostassatisfatóriasàs necessidadesdo país.

respostas satisfatórias à necessidade evidente de seutilizar o processo de digitalização do rádio e da televi-são como uma ferramenta para o desenvolvimento dosetor audiovisual e da democracia.

As demandasA sociedade civil – agora unida na Frente Nacional

por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital – jádeixou claro ao governo quais as suas reivindicações.

Em primeiro lugar, que o processo de discussãoseja transparente e democrático, envolvendo entidadesda sociedade civil, universidades e o Congresso Nacio-nal. E que tal processo culmine com uma nova legisla-ção para o setor, que defina direitos e deveres de todasas partes envolvidas com a digitalização da TV e dorádio, especialmente o atual oligopólio privado. A elabo-ração de uma nova legislação deve preceder a introdu-ção da TV digital afim de evitar a elaboração de fatosconsumados que terminem beneficiando o poder eco-nômico.

Em seguida, que este processo contemple ques-tões fundamentais para a própria democracia brasileiracomo o aumento da diversidade da programação com aentrada de novas emissoras, o estímulo à produção

independente e de caráter regional, a liberdade do usoda informação veiculada pela TV e rádio, a execução deuma política industrial que fortaleça a soberania nacio-nal, a criação de um sistema público de comunicação eserviços interativos que favoreçam o desenvolvimentocultural e social.

SilêncioEnquanto a sociedade civil torna públicas as suas

demandas e realiza debates e audiências públicas emtodo o país, o governo sequer divulgou os relatóriosfinais do SBTVD (prontos desde fevereiro deste ano),não mais convocou o conselho consultivo, silencia dian-te do Congresso Nacional e não aponta publicamente orumo a ser seguido e nem os motivos que irão guiar assuas decisões.

Com a discussão sendo levada à portas fechadas,cresce o poder de influência do lobby dos radiodifusorese aumenta a chance de que a decisão final venha anegligenciar o interesse público.

Neste momento, o que a sociedade civil mais desejaé um amplo debate público, transparente e democráti-co. Onde possam ser explicitados as reivindicações e asmotivações de cada um dos setores envolvidos. E que oconjunto da população brasileira possa ser melhor in-formado sobre os riscos e potencialidades que estarãoenvolvidos na transformação do rádio e da TV.

Longe do fimEnquanto cobra transparência por parte do gover-

no, a sociedade civil se prepara para uma longa bata-lha. Isso porque qualquer decisão que venha a ser to-mada sem uma nova legislação para o setor das comu-nicações carecerá não apenas de legimitidade como,também, de legalidade.

Travaremos uma dupla disputa. De um lado, peran-te os poderes republicanos: o executivo, o legislativo e,também, o judiciário. Ao mesmo tempo, vamosaprofundar o debate com a população em todos oscantos deste país, demonstrando que a TV e o rádiodigitais podem ser importantes instrumentos de desen-volvimento e transformação social. Afinal, comunicaçãoé um direito, não uma mercadoria.

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O elemento centraldessa disputa

é o espectroeletromagnético

por onde trafegamos sinais do rádio

e da televisão.

O processo de digitalização atingiu em cheio o maisimportante meio de informação do país: a televisão.Está em jogo a possibilidade de realizarmos uma verda-deira revolução, cuja dimensão central é relacionada aopotencial democratizante da TV digital.

Caso prevaleçam os princípios democráticos, o pro-cesso de digitalização pode transformar a tevê em umespaço mais plural, reduzindo distorções políticas e eco-nômicas, e criando um ambiente que seja reflexo dadiversidade do país. No entanto, se prevalecerem inte-resses privados, o que poderia ser uma nova TV devese tornar um espaço ainda mais desigual, com a ampli-ação da concentração dos meios de comunicação.

O elemento central dessa disputa é o espectro ele-tromagnético por onde trafegam os sinais do rádio e datelevisão. Trata-se de um bem público limitado, masque no Brasil é tratado como propriedade daqueles que,na realidade, são meros concessionários.

A desinformação, a falsa propaganda e a tese dosuposto direito adquirido das emissoras sobre o espec-tro confundem o debate e encobrem o fato de que, aose apropriarem indevidamente deste bem – defenden-do seus próprios interesses – as empresas televisivasjogam contra o interesse público.

Potencial democratizantePara compreender melhor este jogo, é preciso falar

sobre o espectro eletromagnético. Atualmente, deter-minados “pedaços” do espectro são dedicados às trans-missões de programações audiovisuais. Por lei, o Esta-do outorga uma concessão pública destes pedaços paraque empresas ou instituições transmitam uma progra-mação através das ondas eletromagnéticas.

Nas transmissões analógicas, cada emissora preci-sa de um “pedaço” de 6MHz do espectro para transmitirsua programação, que usualmente chamamos de “ca-nais”. Mas com o surgimento da nova tecnologia, é pos-sível transmitir som e imagem em melhor qualidade ede modo mais otimizado, ocupando um espaço menorno espectro. Os mesmos 6 MHz que só comportam

uma programação analógica, agora podem carregaraté oito programações digitais.

Do ponto de vista legal, as emissoras de televisãoreceberam suas concessões para transmitir apenas umaúnica programação. Portanto, se houver mudanças natecnologia de transmissão do sinal, deve-se promoveruma conseqüente redistribuição da faixa dos 6MHz,multiplicando os canais e possibilitando a entrada denovos programadores no espectro, especialmente osde caráter público.

Tese jurídica insustentávelMas a emissora que hoje monopoliza a televisão no

Brasil alega que para transmitir digitalmente deve rece-ber outros 6 MHz (para a transmissão simultânea, en-quanto durar o processo de transição) pois isso é umdireito adquirido, e que pode operar na forma que elabem entender, com quantas programações julgar apro-priado, apesar deste “espaço” lhe ter sido concedidoanteriormente para transmissão de uma única progra-mação. Se tal argumento vencer, o Estado brasileiroestará promovendo a apropriação privada de um bempúblico, que pertence ao conjunto da sociedade.

O redimensionamento da faixa dos 6 MHz para umafaixa menor necessária à transmissão do sinal digital,somado à multiplicação de atores pode tornar a novaTV um instrumento de fortalecimento democrático e degarantia de direitos fundamentais, a serviço da educa-ção, da inclusão, do escoamento da produção audiovisualindependente e do respeito à diversidade cultural e re-gional. Mas isso só vai acontecer se o governo tiverdisposição de enfrentar um dos maiores problemas bra-sileiros: a concentração dos meios de comunicação.

Tecnologia digitala serviço da sociedadeAo permitir mais programações no canal de 6MHz, digitalização da TVtraz oportunidade histórica de democratizar a mídia no Brasil.

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Para administrar“situações de fato”criadas por novastecnologias, o CBTfoi acrescido de umverdadeiro cipoal deleis, decretos,portarias e normasdesconexas.

Com lei atual, início dastransmissões é ilegalMarco regulatório das comunicações precisa de revisão amplapara absorver os atuais desafios da convergência tecnológica.

Como afirma o próprio site da entidade, a Associa-ção Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão(ABERT) “nasceu nos corredores do Congresso Nacio-nal” como fruto do esforço de empresários do setor eminfluenciar o conteúdo do Código Brasileiro de Teleco-municações (CBT) de 1962. Na oportunidade, a ABERTconseguiu o feito inédito de fazer com que os parlamen-tares derrubassem 52 vetos do então presidente daRepública, João Goulart, tornando o CBT a expressãode seus interesses corporativos. Passados 44 anos, aindaé o mesmo CBT que regulamenta as emissoras de rá-dio e TV aberta no Brasil.

Além de conservador, complacente com as opera-ções privadas de rádio e TV e defasado no tempo, oCBT sofreu alterações durante a ditadura militar (quese tornaram inaplicáveis depois da promulgação daConstituição de 1988) e foi amputado de toda a sua

parte ligada às telecomunicações no governo FHC (tor-nando quase impossível a regulamentação de serviçosconvergentes, como o vídeo por IP). Para administrar“situações de fato” criadas por novas tecnologias, o CBTao longo dos anos foi acrescido de um verdadeiro cipoalde leis, decretos presidenciais, portarias ministeriais enormas desconexas.

Sem qualquer controleApesar da profusão de regramentos, a TV aberta

no Brasil praticamente não sofre qualquer tipo de con-trole público. Ao contrário dos países ditos desenvolvi-dos, o Brasil não conta com regras de regionalização daprodução artística e jornalística ou com índices obriga-tórios para a produção independente. Mesmo que for-malmente uma outorga de TV possa ser cassada, nãohá registro de que isso tenha ocorrido, apesar dos notó- ➧

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Somente um novomarco regulatório

aprovado peloCongresso Nacional

e debatido pelasociedade civil pode

evitar que a TVdigital seja usada

de formaanti-democrática.

rios desvios éticos existentes no setor. A única regracontra concentração da propriedade (dez emissoras,sendo no máximo 5 no VHF) é facilmente burlada pormecanismos jurídicos.

Por outro lado, o capítulo da comunicação na Cons-tituição Federal segue não regulamentado, impedindoa aplicação de regras contra o monopólio e o oligopólioprivados e a criação de um sistema público não-estatalde comunicação. Também não existem regras de con-vergência da TV aberta com a TV paga, uma vez quecabo (lei), micro-ondas (decreto) e satélite (portaria)são serviços regulamentados em separado, com direi-tos e deveres distintos entre si. Some-se a isto o esvazi-amento que sofreu o Ministério das Comunicações ain-da no governo FHC, e que não foi revertido no governoLula, fazendo com que se tornasse incapaz de fiscalizaro funcionamento das emissoras de rádio e TV.

Por tudo isso, a TV e o rádio são provavelmente ossetores da economia mais desregulados do país, o queainda se torna mais grave se lembrarmos a importânciacultural e política dos meios de comunicação nas socie-dades atuais.

A novela da Lei GeralDesde que o governo FHC promoveu a esdrúxula

separação entre “telecomunicações” e “radiodifusão”,promete-se a confecção de uma Lei Geral da Comuni-cação Social Eletrônica, capaz de regular o rádio, a TVaberta e a TV paga, além de lançar as bases para umafutura reunificação legal entre telecomunicações e radi-odifusão. Entretanto, jamais foi divulgada oficialmenteuma versão desta lei.

Já no programa de governo do candidato Lula erapossível ler sobre a “implantação de um sistema demo-crático de rádio e TV digital a partir de novo marcoregulatório para o setor” (ou seja, o presidente reco-nhecia à época o risco de se fazer o que está se fazendohoje: inverter o debate, introduzindo primeiro a TV e orádio digitais e depois discutindo a regulação).

A conseqüência mais evidente dessa falta de cora-gem para discutir uma nova lei é a manutenção dooligopólio privado dos meios de comunicação, que faz oEstado refém desses interesses. Estas empresas, e seufortíssimo lobby, estão hoje em posição privilegiada paraneutralizar as potencialidades democráticas da TV digi-tal e ao mesmo tempo usar as novidades tecnológicaspara reafirmar seu domínio sobre o setor. O que é agra-vado pelo fato de 2006 ser um ano eleitoral e a pressãodas emissoras sobre o governo federal tende a se agra-var quanto mais próximos estivermos de outubro.

Uma decisão tomada sem o amparo de uma novalei certamente beneficiará apenas os mais fortes. So-mente um novo marco regulatório aprovado pelo Con-gresso Nacional e debatido pela sociedade civil (comconsulta e audiências públicas) pode evitar que a TVdigital seja usada de forma anti-democrática. Além dis-so, uma nova legislação é a única forma de evitar que aintrodução da TV digital caia em conflito com a lei atual(que é de 1962!), que não dispõe sobre nenhuma dasnecessidades inerentes à digitalização.

Os riscos de ilegalidadesDurante muitos anos, teremos que conviver com o

“simulcasting” (emissoras transmitirão duas programa-ções: a atual analógica e a nova digital), até que todostenham aparelhos digitais ou terminais de acesso, afimde evitar que a parcela mais pobre da população fiqueimpedida de assistir televisão por não ter os equipa-mentos digitais.

O “simulcasting” significa que as emissoras terãoduas outorgas (uma analógica e outra digital) na mes-ma cidade. Apesar de necessário, ele é vedado pelaatual legislação, pois uma nova outorga deve ocorrermediante processo licitatório e não pode ser simples-mente “dada” para as atuais emissoras. A legislaçãodefine que a “mesma entidade ou as pessoas que inte-gram o seu quadro societário e diretivo não poderão sercontempladas com mais de uma outorga do mesmo tipode serviço de radiodifusão na mesma localidade”.

Fica claro que, ao vedar que uma mesma empresa(ou pessoas) tenha mais de uma outorga na mesmalocalidade, a legislação pretende evitar que se tenhamais de uma programação por localidade. Se no mun-do analógico cada programação equivalia a uma novaoutorga, com a TV digital uma outorga de um únicocanal de TV pode transmitir diversas programações di-

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A atual legislação éfraca, conservadora,ultrapassada,confusa e, ainda porcima, não permite aintrodução da TVdigital.

ferentes. Isso quer dizer que, se nada for feito, mesmocom apenas uma única outorga, as emissoras estarãoviolando uma regra de limite à concentração da propri-edade no setor de mídia que buscava evitar este tipo desituação.

Em sua defesa, as emissoras alegam direito adqui-rido sobre os canais de VHF e UHF. Mas os canais queserão disponibilizados para a transmissão digital sãonovos, e não os atualmente ocupados pela programa-ção analógica. Mesmo que não fossem novos, no Esta-do Democrático não existe direito adquirido nem direitode propriedade sobre bens públicos de posse da Uniãoe o objeto em questão (o espectro eletromagnético poronde trafegam as ondas de TV e rádio) não é umpatrimônio privado, mas um bem público. Portanto, oque as emissoras receberam foram apenas outorgasque, de acordo com a legislação, podem sofrer altera-ções ou até mesmo serem extintas.

De quem é o espectro?A noção de que cada outorga de TV corresponde a

um canal e que este canal ocupa os 6 MHz é bastantefrágil e está amparada apenas em resolução interna daAgência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Diver-sos juristas consultados pela sociedade civil são unâni-mes em afirmar que a outorga recebida pelas emisso-ras é de uma “prestação de serviço” específico e não deum “espaço” no espectro. Ou seja, as emissoras rece-beram uma autorização para transmitir uma única pro-gramação.

Portanto, as novas outorgas devem conceder o di-reito de uso para o oferecimento do mesmo serviço enão para disponibilizar um espaço maior do que é pre-ciso para transmitir a mesma programação. Se no mun-do digital é suficiente somente uma fração dos 6 MHzpara que seja distribuído o mesmo sinal, o espaço res-

tante deve ser utilizado de acordo com o interesse públi-co, e não para manter a concentração dos meios decomunicação. Se os atuais radiodifusores receberemmais 6 MHz para darem início às transmissões digitais,será flagrante o desrespeito a um princípio constitucio-nal importante: de que os governantes ou administra-dores devem dar a melhor utilização para os bens públi-cos. No caso em questão, o espectro.

Novo marco: a única saídaA atual legislação que regulamenta o rádio e a TV

aberta no Brasil é fraca, conservadora, ultrapassada,confusa e, ainda por cima, não permite a introdução daTV e do rádio digitais.

Se não quiser ser questionado judicialmente, o go-verno deve desistir da aparente intenção de introduzir aTV e o rádio digitais através de decreto e encaminharuma nova legislação para o setor. Uma legislação queseja capaz, inclusive, de lidar com o fenômeno da con-vergência entre diferentes meios de comunicação. Foiassim que fizeram os Estados Unidos, o Canadá e aUnião Européia, por exemplo.

Este novo marco regulatório deve não apenas re-solver os problemas da atual legislação mas, principal-mente, atender aos princípios citados pelo artigo 221 daConstituição Federal: finalidades educativas, artísticas,culturais e informativas; promoção da cultura nacional eregional; produção independente; regionalização daprodução cultural, artística e jornalística; respeito aosvalores éticos e sociais. É isso que trata a nossa Leimaior. E cumprir a Lei é um dever do governante, sem-pre. Ainda que, para isso, tenha que enfrentar interes-ses específicos.

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“A TV digitalbrasileira precisa

mirar a questão doconteúdo

audiovisual e domodelo de negócios

associado àveiculação deste

conteúdo. Boa partedo restante é

acessório a estaquestão primordial”.

A discussão sobre a implantação da TV digital noBrasil tem se concentrado nas características do pa-drão tecnológico a ser adotado e nas compensaçõesindustriais que o país pode receber na negociação.Contudo, a atenção dada até agora a estes dois temasdesvia a discussão do ponto principal: o conteúdo queserá transmitido pela nova plataforma de comunicação.No processo de digitalização, importa, sobretudo, o quea televisão vai mostrar. Por necessariamente induzir umareconfiguração das regras da radiodifusão, a TV digitalpermite uma revisão qualitativa do conteúdo, sua lin-guagem e formato, ao mesmo tempo em que a amplia-ção diversificada e desconcentrada da produçãoaudiovisual.

O ministro da Cultura, Gilberto Gil, tem sido uma daspoucas vozes dentro do Governo Federal a defenderum debate aprofundado. “Interessa saber se a novatecnologia permitirá maiores opções de escolha de pro-gramas gratuitos, se a diversidade cultural estará aces-sível em todos os lares e escolas. Interessa, também,saber se toda a população terá acesso às novas mara-vilhas da comunicação”. A posição é partilhada porAlexander Galvão, doutor pela UFRJ na área deaudiovisual e assessor da Agência Nacional de Cinema(Ancine). “A TV digital brasileira precisa mirar a questãodo conteúdo audiovisual e do modelo de negócios asso-ciado à veiculação deste conteúdo. Boa parte do res-tante é acessório a esta questão primordial”.

As reflexões apresentadas se justificam pelas possi-bilidades advindas da nova tecnologia. Com a TV digital,é possível multiplicar o número de canais, o que podegarantir espaço na televisão aberta para novos progra-madores e produtores de conteúdo audiovisual. Do pon-to de vista econômico, esta abertura pode ser o saltopara um setor com grande potencialidade.

Setor econômico pujanteA pujança do setor audiovisual na economia dos

países desenvolvidos é sintoma de como o debate so-bre a digitalização no Brasil está sendo mal conduzido.

Nos EUA, por exemplo, o setor econômico mais impor-tante é justamente a economia da cultura e doaudiovisual. Por isso, discutir apenas quem dará maisincentivos industriais ao Brasil – como a tal fábrica desemi-condutores – é desperdiçar a oportunidade de pro-mover o desenvolvimento daquilo que é mais relevantee que pode gerar mais empregos qualificados a médioprazo.

Dados da pesquisa “Global Entertainment and Me-dia Outlook”, realizada por empresas de consultoria deâmbito internacional, prevêem que em 2009 a movi-mentação do setor em todo o mundo chegará a US$1,8 trilhão. De acordo com o estudo, o crescimentomundial deste mercado será de 7,3% ao ano no próxi-mo quadriênio, enquanto a América Latina atingirá índi-ce ainda maior, na casa de 8,2%, perdendo apenaspara a China. No Brasil, dados do Ministério da Culturamostram que o setor audiovisual movimenta R$ 4 bi-

Produção independenteé chave para novo modeloReformulação das regras do setor é inevitável, mas pluralidade só seráviabilizada com espaço para o conteúdo regional e independente.

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“Se o SBTVD nãotocar no modelo deexploração datelevisão aberta, oBrasil vai continuarrefém daprogramaçãohomogeneizada”.

lhões por ano, o que representa somente 1% do Produ-to Interno Bruto.

Para Geraldo Moraes, cineasta e ex-presidente doCongresso Brasileiro de Cinema (CBC), se as defini-ções acerca do SBTVD não tocarem no modelo de ex-ploração da televisão aberta, todo este potencial pode-rá ser desperdiçado e o Brasil irá “continuar refém deuma programação homogeneizada, baseada em mate-rial importado e produzido exclusivamente nas própriasemissoras”. Na avaliação do cineasta, a falta de diversi-dade de fontes de conteúdo e a exclusão da produçãoindependente na tevê brasileira são duas das principaiscausas do gargalo existente no modelo de distribuiçãodo audiovisual no país. “A televisão brasileira ignora aprodução independente, que no mundo todo sustenta atelevisão”, critica. Um exemplo é a União Européia, quepor meio da norma “Televisão sem Fronteiras”, promul-

Nenhum governante quis ou teve coragem de enfrentar a concentração dosmeios de comunicação. Ao contrário, muitos se beneficiaram dessa moeda de troca.No entanto, a digitalização traz a oportunidade de abrir o mercado para novosatores, sejam eles públicos ou privados. Mas as emissoras comerciais dizem que nãohá dinheiro. Nem qualidade.

O primeiro argumento reflete a apreensão das emissoras, que hoje vendem suaaudiência aos anunciantes. Elas alegam que a fragmentação das verbas publicitáriaslevaria ao enfraquecimento dos canais, que perderiam a capacidade de investir emproduções inovadoras e diferenciadas. Mas não cabe aos que já estão no mercadodizer que não querem concorrentes. Segundo algumas primárias leis econômicas,no entanto, o que acontece é o contrário: a eficiência econômica é garantida pelaconcorrência, que por sua vez impulsiona a inovação. Cabe ao governo estimular aconcorrência e combater práticas monopolistas. Além do mais, se concentraçãogarantisse diversidade, estaríamos assistindo a um festival de produções inovadoras.

O segundo argumento é o que diz que não haveria produção de qualidade parasuprir esses novos canais. Em primeiro lugar, vale a pergunta: por quais critériosseriam as TVs abertas hoje existentes um exemplo de qualidade? Como avaliar oconteúdo independente se ele é sufocado pela falta de espaço para veiculação?

Mesmo contra a lógica de mercado, sem incentivo nem apoio (afinal, comoinvestir sabendo que não há como escoar o conteúdo?) a produção descentralizadacresce, sendo o caminho mais curto para desenvolver o setor audiovisual brasileiro.As emissoras de TV, em sua polarização com as companhias de telecomunicações,tentam nos fazer crer que a defesa de seus interesses é a defesa do interessenacional. Mas ao manter um mercado fechado e com essas enormes barreiras deentrada, o Brasil sufoca a sua própria cultura.

Conteúdo sufocado porpráticas monopolistas

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A vez do Sistema Público

gada em 1997, instituiu reservas à produção indepen-dente de no mínimo 10% do tempo de programação(ou 10% do orçamento destinado à programação). Mas,as legislação de vários países-membros da União Euro-péia definem percentuais até mais altos do que o míni-mo continental de 10%.

A crítica ao modelo de programação é compartilha-da por Paulo Boccato, produtor e atual presidente doCBC. “A TV brasileira vive hoje uma pasmaceira de

A Constituição Federal é explícita ao estabelecer em seu artigo 223 o princípioda complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal na radiodifusão.Entretanto, hoje, as emissoras privadas são hegemônicas, criando um desequilíbrioque distorce a democracia. Conscientes da importância de manter ao menos parteda mídia comprometida com o interesse da sociedade, muitos países inclusive privi-legiam veículos de caráter público.

Para o Brasil, a digitalização do rádio e da TV é uma possibilidade de fazer dacomunicação não-comercial e não-estatal objeto de políticas públicas em todas asesferas de governo. Emissoras públicas fortes – com recursos suficientes, autôno-mas, que sejam geridas e controladas por uma representação equilibrada da socie-dade, independente do governo de plantão – são uma necessidade da democraciacontemporânea.

Com a abertura de espaço para novas emissoras, o Estado brasileiro deveplanejar sua ocupação. É urgente que o Brasil encare a criação de um sistemapúblico como uma das tarefas fundamentais do processo de mudança que a tecnologiadigital induz. Nesse sentido, além de uma avaliação das atuais concessões, o proces-so de implantação da TV digital deve considerar a centralidade da necessidade dasemissoras sem fins lucrativos, grandes e pequenas, nacionais e regionais, de carátereducativo e comunitário.

Sistema EstatalUma das confusões mais comuns é entre as características dos sistemas público

e estatal. As emissoras públicas não têm fins lucrativos e não são geridas peloEstado, mas por representantes dos segmentos da sociedade, direta e indiretamen-te. Estas emissoras podem (devem, muitas vezes) receber recursos estatais, massua liberação não pode depender da vontade do governante (para que a emissoraseja verdadeiramente autônoma e independente).

Já as emissoras estatais são aquelas controladas diretamente pelo Estado,como as TV dos legislativos (TVs Senado e Câmara, no plano federal, e as TVsAssembléias, nos estados), do Judiciário (TV Justiça) e do Executivo (NBR, TVNacional). Estas emissoras também são fundamentais para a democracia, por pos-sibilitarem a comunicação direta dos representantes do Estado com a sociedade,apesar de não poderem predominar sobre as outras. Entretanto, tais emissoras sãoveiculadas majoritariamente na tevê a cabo, cuja assinatura é inacessível para aimensa maioria da população. Para eliminar essa contradição, a TV digital tambémdeve possibilitar a passagem destes canais para a TV aberta.

programação, uma mesmice avessa à novidade, domi-nada por intermediários que induzem um único padrão.Todo mundo quer emular o padrão vencedor, que é oda TV Globo, que também já não tem a mesma vitalida-de criativa de outras épocas e vive de direitos de trans-missão de futebol, reality shows e um velho modelo dedramaturgia e telejornalismo”, afirma.

Para Alexander Galvão, a manutenção deste mo-delo pode significar a falência de toda a cadeia produti-va que irá envolver a nova TV, a exemplo do que acon-teceu com os investimentos frustrados na TV por assi-natura. “Sem abrir espaço para esse tipo de conteúdo[independente], para a novidade na programação, todoo esforço envolvido na criação do modelo brasileiro detelevisão digital corre o risco de se tornar só em umapanhado de caixinhas conversoras”.

Diversificar para desenvolverPara os movimentos que lutam pela democratiza-

ção das comunicações, a saída é apostar na veiculaçãodesta produção, incentivando a fruição dos bens cultu-rais por toda a população e, conseqüentemente, o de-senvolvimento do setor audiovisual no país. “O dinamis-

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“Desde que existem,as emissoras nãodão espaço nempara 5% do que opaís produz”.

Tanto emissoras quanto as transnacionais do entretenimento querem proibirque se possa copiar o conteúdo televisivo para que seja utilizado para fins educativos,não-lucrativos e domésticos (assim como se faz hoje, com o VHS). Nesse sentido,para que a Lei brasileira seja respeitada, devem ser proibidos quaisquer tipos delimites de gravações digitais, como marca d’água, criptografia, Digital RightsManagement (DRM) e broadcast flag. A proibição, a priori, da confecção de cópiaspelos telespectadores constitui-se em uma violação explícita de princípios constituci-onais e da Lei 9.610, que permite a reprodução das obras preexistentes, de qualquernatureza, desde que não prejudique a exploração normal da obra nem prejudique oslegítimos interesses dos autores. Portanto, a utilização de mecanismos que limitam asgravações digitais imputam à tecnologia uma responsabilidade que cabe ao cidadão eimpede que o direito de reprodução previsto na legislação seja livremente exercido.

Liberdade para usodo conteúdo digital

mo dessa indústria, com geração de mais e melhoresempregos, depende da criação de novos instrumentoslegais para o setor, que contemplem preceitos constitu-cionais como o estímulo à programação regional e àveiculação da produção independente brasileira nasemissoras públicas e comerciais”, argumenta Gil.

A opção apresentada não é nova, e a resistência aela, também não. Desde 1991 tramita no Congressoum projeto de lei (PL 59/2003) que obriga as emissorasa veicular percentuais variáveis de programaçãoregionalizada, devendo uma parte dela ser indepen-dente. A proposta segue congelada no Senado a pedidodas emissoras, que afirmam não haver alternativa aomodelo de produção concentrada nas cabeças-de-rede.

Não contentes em não abrir parte do espaço de suaconcessão, os radiodifusores ainda tentam impedir queos novos canais que ficarão disponíveis com a TV digitalcumpram este papel. Um dos argumentos é que não háprogramação em quantidade e qualidade para ocupareste espaço.

Para Geraldo Moraes, esta avaliação das emisso-ras visa a justificar o impedimento da entrada de novosprodutores na TV aberta. “Desde que existem, as emis-

soras não dão espaço nem para 5% do que o paísproduz”, critica. No ano passado, o Brasil exibiu na TVsomente 1 dos 51 filmes produzidos no país. O paísainda possui outra distorção: a maioria das emissoras,em vez de comprar produções independentes, acabavendendo espaço na grade de programação para pas-tores evangélicos e promotores de venda. Independen-te do comprador, o fato é que vender espaço na gradede programação é flagrantemente ilegal.

Em jogo estão duas formas de ver o que a TV deve-ria transmitir. De um lado, as emissoras comerciais de-fendem que não haja ampliação de programações eque os canais apenas melhorem sua qualidade de ima-gem e som. De outro, acadêmicos, gestores públicos eintegrantes da sociedade civil defendem o aproveita-mento da TV digital para democratizar o concentradocenário da mídia brasileira e o cumprimento das finali-dades educativas e culturais definidos na Constituição.

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1. Apesar das emissoras afirmarem que são oúnico meio de comunicação eletrônica que ainda não étransmitido digitalmente e que, por isso, estão perden-do mercado para as poderosas empresas de telecomu-nicação, não há qualquer fato concreto que indique queestejam de fato sofrendo prejuízos com um supostoatraso na migração para a nova tecnologia. Questiona-das, as emissoras nunca apresentaram números oudados que comprovem essa afirmação.

2. O Brasil não está “atrasado”. A transição paraa plataforma digital ainda está começando na maioriados países europeus. No Japão, poucas cidades inicia-ram as transmissões digitais. Japão e Europa levarãoanos para completarem a migração. Já nos EUA, amaioria das casas possui TV por assinatura, o que tornao processo de menor importância. Na china, o início datransição está marcado para 2008. Na maioria dos ou-tros países, não há vestígio nem de discussões sobreTV digital.

3. Os testes do SBTVD (Sistema Brasileiro deTV Digital) não tiveram tempo hábil nem recursos sufici-entes para serem concluídos a contento. Pesquisado-res reivindicam somente mais alguns meses para con-cluir os testes de um padrão genuinamente brasileiro,mais avançado que os outros existentes. Apesar da faltade recursos não ter impedido o avanço das pesquisas,falta construir uma estação de integração das diferen-tes “partes” do SBTVD que foram desenvolvidas pelosconsórcios. Perto do que a adoção de tecnologia nacio-nal pode “render” ao Brasil economicamente, os recur-sos necessários são insignificantes. Se as pesquisasnacionais não forem aproveitadas será, inclusive, umdesperdício irresponsável de recursos públicos.

4. Uma decisão dessa magnitude, que tem rela-ções com a economia, a cultura e a política, não pode

ser tomada sem que a sociedade brasileira saiba quaisimpactos trará a adoção dessa nova tecnologia. Quantoscidadãos sabem, por exemplo, que eles terão que com-prar uma caixa conversora ou um novo televisor parareceber os sinais digitais? Tornar público um debate deinteresse público é um dos deveres dos gestores dogoverno federal, que infelizmente não têm, até agora,tratado a questão com a transparência que a democra-cia exige.

5. Não é aceitável que a decisão seja tomadasem que os diversos setores da sociedade tenham sidoouvidos. Enquanto os donos das emissoras têm as por-tas dos gabinetes abertas, as organizações que defen-dem a democratização das comunicações não conse-guem sequer serem recebidas pelos membros do go-verno. Uma única audiência foi realizada com a ministraDilma Roussef, sem que dela resultasse qualquer pro-cesso participativo. É preciso tratar a comunicação comoum campo de exercício de direitos e, assim como nasdiversas outras áreas que são objeto de políticas deEstado, promover imediatamente consultas e audiênci-as públicas, em que a TV digital seja debatida.

6. Por uma questão lógica (e até óbvia), as defi-nições acerca do modelo de exploração de serviços pre-cisam ser tomadas antes de qualquer definiçãotecnológica. Foi o que fizeram os países que hoje estãoem processo de migração: antes, discutiu-se o que oqueriam da nova televisão, quais serviços seriam pres-tados, como o espectro seria dividido, etc. Depois atecnologia foi adaptada às suas demandas. No Brasil, ogoverno ignora a ordenação lógica do debate e, antes,quer definir a tecnologia, para depois dizer como a tele-visão será explorada. Acontece que, se escolhido antes,o padrão de modulação induzirá um determinado mo-delo de serviços, sem que esse modelo sequer tenhasido objeto de debate.

10 razões para adiar a decisãoOrganizações da sociedade civil, movimentos sociais, representantesda academia, parlamentares e até setores empresariais reivindicamo adiamento – por alguns meses – das definições acerca da TV digital,até que se cumpram requisitos mínimos do processo democrático.Aqui você confere o que o governo Lula não quer escutar.

Tornar o debatepúblico é um

dos deveres dosgestores do

governo federal,que infelizmente

não têm, atéagora, tratado

a questão com atransparência que a

democracia exige.

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7. Exatamente por isso, há um sério risco dacriação de “fatos consumados”. Por exemplo, se forescolhido um padrão de modulação e testes forem libe-rados, as emissoras passarão a construir suas torres detransmissão. Acontece que uma das propostas mais im-portantes de diferentes segmentos (empresariais, in-clusive) é a instituição do “operador de rede”, um novoconcessionário exclusivamente responsável pela infra-estrutura de transmissão. Ora, se forem liberados tes-tes e as emissoras começarem a construir sua rede detransmissão, a figura do “operador de rede” estará mortasem que sequer tenha sido discutida.

8. A imensa maioria dos juristas e especialistasda área afirma ser impossível implantar a TV digital semuma revisão do marco regulatório do campo das comu-nicações. Não é possível sequer “emprestar” uma novaconcessão para que os atuais radiodifusores transmi-tam sua programação digitalmente, nem permitir quesejam transmitidos dados adicionais ao conteúdoaudiovisual tradicional, que é uma das maiores inova-ções da nova tecnologia. Além disso, não há qualquersustentação legal à cessão de 6MHz, já que o espectroé um bem público e, por isso, deve ser otimizado. Umadecisão que não considere a necessidade de uma LeiGeral de Comunicações é flagrantemente ilegal e certa-mente será questionada na Justiça.

9. Não é saudável para um país que se pretendedemocrático tomar uma decisão como essa em ummomento que antecede as eleições presidenciais. To-dos sabem que os barões da mídia são uma força polí-tica consolidada do país e, por isso, exercem perma-nentemente pressões sobre os governos. Entretanto,tal poder é multiplicado em períodos eleitorais, pois ne-nhum governante ou candidato quer ter as emissorasde TV na oposição durante as eleições. É por isso que aGlobo pede pressa. A pressa está em tomar a decisãoagora, já que nesse período os políticos se tornam re-féns de seu poderio midiático. Apesar de continuar exis-tindo após as eleições (ganhe quem ganhar), o poderdos radiodifusores é sensivelmente menor em períodosnão-eleitorais, o que contribui para que a decisão sejatomada sob o prisma do interesse público.

10. Uma decisão apressada, pouco transpa-rente, só beneficiará quem sempre se aproveitou doEstado frágil, dependente e incapaz de implementar umprojeto de desenvolvimento que inclua os milhões decidadãos hoje excluídos do processo de distribuição dasriquezas nacionais. Se isso acontecer, desperdiçaremosuma oportunidade histórica de implementar um projetoque democratize a televisão brasileira, tornando-a tantoum reflexo da pluralidade presente em nossa sociedadequanto um instrumento de desenvolvimento nacional.

Não é saudável paraum país tomar umadecisão como essaem um momento queantecede as eleiçõespresidenciais.

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A população só teráacesso aos

benefícios da TVdigital se ela for

economicamenteviável exatamente às

pessoas hojeexcluídas das

chamadas novastecnologias.

A discussão sobre o conteúdo para TV digital nãopassa somente pelo plano da multiplicação das possibi-lidades de programação, mas também pelo aproveita-mento das potencialidades em relação ao formato elinguagem. Uma das novidades é a possibilidade deinteratividade, que pode mudar a relação vertical entreo meio e o espectador. Com a presença de um canal deretorno (ou canal de interatividade), os cidadãos pode-rão enviar dados às emissoras, provedores de conteú-do ou prestadoras de serviço.

Tecnicamente, podem ser utilizados diferentes mei-os físicos para o envio da informação a partir do usuá-rio. Por conta da variedade de situações encontradasno Brasil, é até saudável possuir um sistema heterogê-neo, que se adapte às condições geográficas e sócio-econômicas do país. Se esse canal será via telefone(fixo ou celular), satélite, se será pela banda da radiodi-fusão (em cidades menores, por exemplo) ou se serávia Wi-Fi ou Wi-Max , é uma pergunta que só pode serrespondida considerando-se a realidade brasileira.

Acesso aos serviçospúblicos em riscoNo país, menos de 20% da população tem acesso à

Internet nas suas casas (só 6% banda-larga) e, paraefetivar o acesso da população aos benefícios da TVdigital, é preciso que ela seja acessível exatamente àspessoas hoje excluídas economicamente. Por isso, aúnica forma de fazer da digitalização um instrumento deinclusão é garantir a gratuidade do canal de retorno.

Nesse sentido, uma saída que pode ser incentivadaé a adoção de redes Wi-Fi, Wi-Max e ad hoc (que jávêm sendo empregadas com sucesso tanto no Brasilquanto em outros países) que possibilitam o acesso àbanda larga de populações inteiras a um custo baixo ese constituem como uma alternativa viável para os ca-nais de interatividade. Para que a implantação da TVdigital seja combinada com uma política pública inclusi-va, devem ser privilegiadas soluções que não impliquema remuneração permanente de operadoras de teleco-municações, inclusive pelo poder público.

Independentemente da solução técnica, se na im-plantação da TV digital não forem incluídas regras que

garantam a gratuidade no uso do canal de retorno, opróprio mercado de telecomunicações criará meios paracobrar por essa interatividade, perpetuando o corte eco-nômico que exclui hoje a maioria da população do aces-so às novas tecnologias.

Interatividade para os ricose conteúdo comercial?Há também o risco iminente de que as caixinhas

conversoras feitas para a população mais pobre só se-jam capazes de transformar o sinal digital em analógico,sem a possibilidade de interatividade. Já as caixas maiscaras teriam os recursos mais “sofisticados”, muitos delesjá acessíveis aos mais ricos, via Internet. Por isso, semuma regulação que obrigue os fabricantes a dotar osconversores de recursos interativos mínimos, o gover-no instituirá mais um corte econômico para o acesso aopotencial da TV digital. O baixo custo é fundamental,mas é preciso ter cuidado para que isso não justifiqueuma política excludente.

Uma terceira questão ainda em aberto, tão funda-mental quanto as duas primeiras, é se haverá a promo-ção e o oferecimento de recursos de interesse comum,como o acesso a e-mail (ou t-mail, no caso), aos servi-ços públicos e bancários, ou seja, uma interatividadeque privilegie um uso social e culturalmente relevante.Assim como nas questões anteriores, se não foremestabelecidas normas, o mercado naturalmente regula-rá os serviços, incorporando apenas aquilo que tragalucro direto para as empresas, perdendo o Brasil umajanela de oportunidades que não aparece todos os dias.

Interatividade para quem?Tecnologia tem potencial para se tornar um instrumento de inclusãodigital, mas gratuidade e serviços públicos não estão garantidos.

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No cerne dosaparatostecnológicos queintegram a nova TVestão doiscomponentespresentes em quasetodas as cadeiasprodutivasmodernas.

Ao não encontrar justificativas técnicas aceitáveispara emplacar o padrão preferido pela principal emis-sora do país às vésperas do período eleitoral, o gover-no brasileiro desviou o foco do debate. Em vez de discu-tir o modelo de serviços para a nova a tecnologia, centroua pauta nas pretensas contrapartidas econômicas. Pas-sou a dizer que o aspecto mais importante da TV digitalé o estímulo ao desenvolvimento industrial. Pela lógicapalaciana, portanto, o país que oferecer melhores ofer-tas leva de presente o maior mercado da América do Sul.

Com tal leilão em curso (e por mais que já se saibaquem dará o arremate final) parece essencial analisarcom profundidade se a política industrial deve ser mes-mo o fator decisivo na escolha do padrão de modulaçãoa ser adotado no país.

Ao mesmo tempo em que permite uma enormemudança na forma de produzir, distribuir e assistir àtelevisão, a introdução da TV digital pode representaruma janela de oportunidades para o desenvolvimentoda ciência e tecnologia nacionais. No cerne do conjunto

de aparatos tecnológicos que integram a nova TV, tantona emissora quanto na residência do usuário, estãodois componentes que têm presença transversal emquase todas as modernas atividades produtivas:semicondutores e softwares, sendo que o governo re-solveu centrar sua atuação na conquista de uma fábricade semicondutores para o país.

Os semicondutores (chips) são a base do hardwarede todo o processamento de dados e, por isso, estãopresentes em sinais de trânsito, carros, telefones, com-putadores, DVDs, aparelhos de som, etc. Já os softwaressão as instruções lógicas que determinam o funciona-mento dos semicondutores. Embarcados ou disponí-veis para serem instalados, onde houver chips haverásoftwares.

A cadeia produtiva do setorSe o Brasil optar pelo desenvolvimento interno des-

tes dois componentes centrais da TV digital, os reflexosserão sentidos em vários outros setores da economia –

Nas costas da Política industrialGoverno faz leilão entre os padrões estrangeiros, mas contrapartidassão pouco claras e não atingem o coração da cadeia produtiva do setor.

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como a indústria aeroespacial, a petrolífera e a automo-bilística –, que poderão usufruir da pesquisa emsemicondutores e chips originalmente feita para a TVdigital. Neste caso, pela lógica de divisão interna deatividades das multinacionais, deixaremos de ser ummero entreposto de montagem de produtos importadospara nos tornarmos produtores e até mesmo exporta-dores de tecnologias. Com isso, serão gerados empre-gos qualificados e diminui-se a evasão de divisas parapagamento de patentes.

Cada vez mais, o valor agregado dos semicondutoresestá na definição de sua arquitetura interna. Chips noestado da arte, como o Pentium IV e o Athlon, reúnemem alguns centímetros quadrados mais de 100 milhõesde peças. A arquitetura e o desenho destas peças sãofeitos através de sofisticados softwares. Exigem, por-tanto, grande investimento no desenvolvimento de pes-soal qualificado, capaz de fazer os desenhos – e nãoprimordialmente na instalação de plantas fabris.

Então, se o Brasil quer se desenvolver na área damicro-eletrônica, por que não investe nesta área nasuniversidades, para formar quadros qualificados? Porque não investe na criação e manutenção de designhouses, como fizeram Irlanda, Índia e Israel, entre ou-tros, através das incubadoras de empresas?

A estas perguntas, podem se somar outras: por quenão temos uma política de atração de mão-de-obraestrangeira qualificada para o setor, como já têmos setores petrolífero e aeronáutico? Por que não sediscutem projetos de transferência de tecnologia emvez de transferência de plantas de fábricas, já que muitomais importante do que instalar uma fábrica no Brasilseria garantir que parte da tecnologia hoje usada nosetor de micro-eletrônica para a TV digital fossetransferida para universidades e empresas nacionais?

Sem possuir todo o ecossistema da indústria desemicondutores, o governo parece interessado em atrairlogo uma fábrica de chips, conhecida como “foundry”. Ainstalação destas fábricas custa alguns bilhões de dóla-res e sua produção, para atingir a escala necessária, églobalizada. O que significa que a produção de umafoundry brasileira teria que envolver todo um investi-mento em logística que lhe permitisse exportar fácil erapidamente para vários países do mundo.

Mão-de-obra barataNos últimos anos, o mercado internacional de

foundries tem se concentrado em países do sudesteasiático, como Taiwan e a própria China. A grande mai-oria das empresas de ponta do setor tecnológico possui

apenas foundries capazes de desenvolver e testar oprotótipo de seus chips. Depois, a empresa terceirizauma foundry para fazer a produção em larga escala. Aarquitetura e o desenho, contudo, são segredos bemguardados por elas, pois valem fortunas em royalties.

Agora, se deseja realmente começar sua políticaindustrial para semicondutores por uma foundry, porque o governo Lula não fez esforços para concluir a quejá possui e é parte integrante do Programa Nacional deMicroeletrônica? O projeto prevê uma “sala limpa” de800 m² para a prototipagem e produção desemicondutores. E há anos o Ceitec (Centro de Exce-lência em Tecnologia Eletrônica Avançada –www.ceitecmicrossistemas.org.br) espera do governofederal os recursos necessários para concluir suas obrasde instalação.

O SBTVD e o Decreto 4.901Ao contrário de agora, a postura do governo Lula,

em seu início de mandato, foi bem positiva. O governoeditou um Decreto Presidencial (4901), em dezembrode 2003, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital(SBTVD) e definiu seus objetivos. Entre eles, “estimulara pesquisa e o desenvolvimento e propiciar a expansãode tecnologias brasileiras e da indústria nacional”. Emparalelo, promoveu a licitação de 22 editais para pes-quisas a serem feitas por consórcios de universidades,centros de pesquisa e empresas, com recursos do Funttel(Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Tele-comunicações) e gerência da Finep (Financiadora de

As empresas deponta possuemfoundries paradesenvolver o

protótipo dochip. Depois,

a empresa terceirizauma fábrica para

produzir commão-de-obra barata.

É isso o que ogoverno quer trazer.

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Estudos e Projetos). Para cuidar da integração dos di-versos consórcios foi contratada a Fundação CPqD.

Porém, a condução das pesquisas (encerradas emdezembro de 2005) não foi tranqüila. Os recursos erampoucos e demoraram a chegar. Muitos pesquisadorestiveram que adiantar recursos dos próprios bolsos. Aofinal, no entanto, ficaram evidentes os resultados ex-pressivos que o país produziu, dentre as quais citamosduas das áreas fundamentais para a constituição de umsistema tecnológico de TV digital.

A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC-RJ) e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB)desenvolveram dois middlewares, respectivamente des-critivo (Maestro) e procedural (FlexTV) – atualmenteunificados sob o nome de “Ginga”. O middleware é umtipo de software que, como o nome em inglês diz, ficaentre o hardware e os vários softwares da TV digital. Éele que permite que diversos terminais de acesso (demarcas diferentes) rodem inúmeros aplicativos com fi-nalidades específicas e distintas entre si. É o mais im-portante software do terminal de acesso que o usuárioterá que comprar para a sua TV comum conseguir re-ceber o sinal digital.

A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande doSul (PUC-RS) e o Instituto Nacional de Telecomunica-ções (Inatel) desenvolveram sistemas (SORCER e MI-SBTVD, respectivamente) para realizar o núcleo-cen-tral da transmissão da TV digital: a modulação. É justa-mente na modulação que reside o foco das disputasentre os padrões internacionais.

O processo poderiaser conduzido emconjunto com ospaíses do Mercosul,aumentando a escalae o poder denegociação.

Com estes resultados, ficou claro que o país possuitecnologia própria para o desenvolvimento nacional departes importantes da TV digital. Obviamente, nem tudopoderia ser produzido no Brasil e seria necessário rea-lizar negociações com os países centrais para a adoçãode tecnologias importadas. Essas negociações poderi-am ser feitas em conjunto com os países do Mercosul,para aumentar nossa escala e, conseqüentemente,nosso poder de barganha. Também deveriam prevermecanismos de transferência de tecnologia e de forma-ção local de mão-de-obra especializada. Infelizmente,no entanto, não é assim que as coisas parecem caminhar.

Decisão estratégica?Na contra-mão do desenvolvimento, enquanto a

imprensa noticia a disputa por uma fábrica desemicondutores, o governo na prática favorece a im-portação de tecnologia. A Câmara de Comércio Exterior(Camex) publicou no Diário Oficial da União, do dia 25de fevereiro, decisão de reduzir de 16% para 2% aalíquota do Imposto de Importação sobre três tipos deequipamentos utilizados por emissoras de televisão.Foram incluídos na lista de bens de informática e teleco-municações, na condição de ex-tarifários, aparelhos demixagem e processamento de sinais de áudio digital,mesas de computação de sinais de vídeo e monitoresde forma de onda, que medem a qualidade do sinal detelevisão. Também foi renovada a redução, para 2%,da alíquota do Imposto de Importação para monitoresde vídeo profissional para estúdios de TV, utilizados emilha de edição ou unidades móveis das emissoras. Aredução ficará em vigor até 31 de dezembro de 2007.Se esta for a política adotada, ao contrário do que di-zem, continuaremos na contra-mão do desenvolvimen-to industrial.

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Uma das disputas que envolvem a TV digital noBrasil é a travada entre as empresas de telefonia e osradiodifusores. As emissoras preferem a modulação ja-ponesa (ISDB) e as telefônicas, a européia (DVB). Nocentro do debate está o controle de um bem público efinito: o espectro eletromagnético por onde trafegam asondas de TV.

No modelo atual da radiodifusão brasileira, cadaemissora recebe a concessão de um canal de TV, com6 Mhz de largura no espectro, para transmitir a suaprogramação. E cada emissora possui sua própria infra-estrutura (antena) para transmitir o conteúdo de suasproduções para a área de cobertura.

O sistema de transmissão digital permitirá compri-mir o sinal de TV, colocando mais conteúdo audiovisualno interior dos 6 Mhz de largura de espectro (que nóschamamos de “canal de televisão”). E as emissoras,obviamente, querem continuar as donas exclusivas desteespaço, que será ainda maior.

O que querem os radiodifusoresO projeto da Globo é transmitir três vezes a mesma

programação, dentro dos “seus” 6 Mhz, mas com defi-

nições de imagens diferentes: 1) para aqueles poucosque possuírem TVs de alta definição; 2) para aqueles –a maioria – que continuarem com suas TVs atuais, masque comprarem terminais de acesso a fim de receber osinal digital; 3) para aqueles que assistem TV em movi-mento (celulares, Palms ou mesmo pequenas TVs colo-cadas dentro de veículos).

Ao contrário do que a imprensa tem dito, assimcomo o ISDB, o DVB também permite que se transmitaem alta definição, em definição padrão e para recepçãoem movimento. Ocorre que o DVB não permite que sesegmente o espaço reservado para um único canal deTV a fim de colocar lá dentro três diferentes qualidadesde imagem. Com o DVB, dentro de um mesmo canal,todas as programações devem ser em alta definição ouem definição standard (ou ainda em low definition -para recepção em movimento).

Se a Globo quisesse transmitir a sua programaçãocom os três diferentes tipos de definição, seria precisoadotar o “operador de rede”. Assim, o operador coloca-ria em alguns canais apenas as programações dasemissoras que transmitissem em alta definição, em ou-tros canais as programações em standard e em outroscanais somente as programações para recepção emmovimento. A Globo continuaria mantendo a estratégiacomercial de transmitir a sua programação com trêsdefinições de imagem, mas seria obrigada a adotar o“operador de rede” (vale lembrar que não é necessáriotransmitir a mesma programação em três definições

diferentes. Basta que os receptores sejam dota-dos do chamado down conversion, que con-verte os sinais de alta definição em definição

standard, persistindo apenas necessidade detransmitir em low definition para aparelhos por-

táteis).Portanto, a opção pelo ISDB reflete mais do

que uma estratégia comercial das emissoras deTV em transmitir em alta definição ou para recep-

ção em movimento. Trata-se, na verdade, da recu-sa em dividir o espectro eletromagnético que, apesar

A verdadeira disputaentre teles e emissorasNa briga para garantir a manutenção ou ampliação de seus privilégios,empresas buscam o controle sobre o espectro eletromagnético.

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A opção pelo ISDBreflete mais do que

uma estratégiacomercial das

emissoras de TV.Trata-se, também,

da recusa emdividir o espectroeletromagnético.

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Os sistemas DVB eISDB podem serusados paradefender doisdiferentes modelosde negócios.Nenhum dos dois,contudo,democratiza ascomunicaçõesbrasileira.

de um bem público, é considerado no Brasil proprieda-de privada dos radiodifusores.

Já as teles...Parte da preferência das operadoras de telecomu-

nicações pelo DVB deriva das relações existentes comfornecedores europeus (Nokia, Siemens, Phillips,Thomson, Alcatel, etc) e também da forte presença deteles européias no mercado brasileiro (Telefonica, Por-tugal Telecom e Italia Telecom).

Mas as teles também querem evitar que osradiodifusores controlem todo o espectro de TV e quepossam transmitir conteúdo audiovisual para recepçãomóvel, entrando em concorrência direta com os celula-res. Elas sabem que seu próximo passo é a transmissãoem vídeo e gostariam de também usar o espectro deTV. Para isso, sonham com o DVB e com o “operadorde rede” para transmitirem em alta definição, definiçãostandard e para recepção móvel (assim como tambémquerem fazer os radiodifusores). Mas, no modelo dasteles o “operador de rede” não viria para democratizaro espectro da TV, como na proposta das organizaçõesda sociedade civil (ver pág 20).

No fundo, radiodifusores e teles querem a mesmacoisa: o controle do espectro de TV. E da forma comoestá sendo introduzida a TV digital no Brasil, os siste-mas DVB e ISDB serão usados para defender diferen-tes modelos de negócios. Nenhum dos dois, contudo,democratiza a comunicação brasileira.

História mal contadaEm reportagens de jornais e TVs lemos que as

emissoras de TV defendem a escolha do padrão japo-nês de modulação da TV digital (ISDB) porque esteseria o único padrão que lhes permitiria fazertransmissão para recepção móvel usan-do a banda do espectro eletromag-nético reservada para o UHF.

Mas, no caso do padrão eu-ropeu (DVB), a transmissãopode ser tanto utilizando o UHFquanto a banda reservada paraa telefonia celular, o que inclui-ria as empresas de telefonia nonúcleo-central da operação deTV. Receosas desta concorrên-cia, as emissoras, então, prefe-rem a modulação japonesa.

Entretanto, o padrão de modula-ção brasileiro, desenvolvidos pela PUC-RS

e pelo Inatel (conhecidos como SORCER e MI-SBTV,respectivamente), também permitem a transmissão pararecepção móvel. Portanto, mesmo aceitando o argu-mento da Globo e das demais emissoras, poderíamosadotar uma modulação com tecnologia brasileira.

Mas continuemos na lógica que hoje impera no go-verno, ignorando a possibilidade de um padrão brasilei-ro ou sul-americano. Pois bem, desde março de 2005, aFinlândia possui uma operação-piloto de transmissãoda TV digital para recepção móvel utilizando o padrãode modulação europeu conhecido como DVB-H e trans-mitindo justamente pela banda de UHF, que a Globodizia ser uma exclusividade do padrão japonês. A Holandatambém já está construindo sua rede para transmitir emDVB-H igualmente usando a banda de UHF.

Dito isso, cabe perguntar: se definitivamente não éverdade o que as emissoras disseram que somente oISDB permitiria a transmissão para recepção móvel atra-vés da banda do espectro eletromagnético reservadapara a radiodifusão, se é verdade que o DVB e os bra-sileiros SORCER e MI-SBTV igualmente permitem estemesmo tipo de transmissão, se também é verdade quequalquer padrão garante a alta definição (defendidapelas emissoras) e a introdução de serviços interativos,então por que, afinal de contas, as emissoras de TVestão defendendo a adoção do ISDB japonês? Qual é aparte dessa história que nós não sabemos e que aindanão veio a público?

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A introdução do operador de rede é um elementocentral para a democratização do espectro por onde setransmitem a TV e o rádio. Trata-se de uma figura jáutilizada na Europa e até mesmo na TV paga brasileira.

O operador de rede é um novo concessionário, res-ponsável exclusivamente pela infra-estrutura de trans-missão. Sua adoção parte do pressuposto de que nãoexiste um direito de propriedade sobre o espectro ele-tromagnético, um bem público e finito. Com ele, cadaemissora recebe o espaço necessário para transmitirseu conteúdo, e se uma nova tecnologia possibilitar di-minuir este espaço, o excedente é automaticamente

Operador de redefavorece a democratização

redistribuído para a entrada de novas emissoras.Com o operador de rede, as emissoras transmitem

seu sinal para uma única antena (de empresa neutra,sem ligação com emissoras e fortemente controladapela agência reguladora), que reúne os sinais no espa-ço disponível e transmite em um único feixe para asresidências daquela área de cobertura. É mais baratopara uma pequena emissora, mesmo que comercial,pagar o rateio do serviço prestado pelo operador derede do que cada uma ter que bancar sua própria es-trutura de transmissão digital.

Isonomia e subsídio cruzadoAo nivelar a qualidade de transmissão entre peque-

nas e grandes emissoras, o operador de rede promovea isonomia entre elas e transfere a concorrência exclu-sivamente para a qualidade da programação. Além dis-so, por conta da regra de “co-localização”, o operadorde rede também permite diminuir a interferência entreos canais, aumentando o espaço útil no espectro para aintrodução de mais emissoras. Também é possível co-brar do operador de rede o “subsídio cruzado”, em queo operador é obrigado a carregar, sem custos, as emis-soras públicas e comunitárias.

O operador de rede também pode transmitir con-teúdos gerados por licenças de Serviço de Comunica-ção Multimídia (SCM), prestadas em regime público.Esta modalidade é caracterizada pela transmissão deprogramas multimídia (dados e segmentos de áudio evídeo) a usuários, grupos de usuários ou a toda a popu-lação, por meio da plataforma de TV digital, podendopermitir o acesso à internet. É aqui que surgem poten-cialmente os serviços interativos que não são típicos datelevisão, como tele-medicina, educação à distância, e-bank, governo eletrônico, etc.

Mas, principalmente, o operador de rede permitefracionar o canal de 6Mhz colocando várias emissorasem um espaço atualmente ocupado por apenas uma. Éisso que as emissoras comerciais hegemônicas não que-rem aceitar.

Separação entre produção de conteúdo e infra-estrutura de transmissãoajuda a otimizar o espectro e a abrir espaço para emissoras públicas.

O operador de redepermite fracionar o

canal de 6Mhz,colocando váriasemissoras em um

espaço atualmenteocupado porapenas uma.

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TV digital não é sinônimo de alta definição ou “highdefinition” (HD). A melhoria da qualidade de imagem éum caminho sem volta – e por isso não há como sercontra ela – mas é preciso ter responsabilidade em suaadoção, sob o risco de se aumentar o abismo que sepa-ra as grandes e pequenas emissoras e promover umaocupação injustificada do espectro.

Em primeiro lugar, porque transmitir em alta defini-ção fará com que o espectro seja sub-aproveitado.Quanto maior a resolução da imagem, menor será oespaço para o ingresso de novos atores e não faz sen-tido não permitir a entrada de novos programadores sea alta definição só será acessível a uma minoria. A mai-oria da população não pode adquirir um televisor digitalde 720 (ou 1080) linhas, que hoje custa cerca de R$ 10mil e a simples digitalização tornará a qualidade da ima-gem semelhante à de um DVD, mesmo que adotada adefinição standard (padrão).

Em segundo lugar, porque a HD tende a reforçar adeficiência das regras de isonomia concorrencial, já que

O fetiche da alta definiçãoMaioria da população não terá acesso à alta definição, que ocupamais o espetro e tende a aumentar o abismo entre as emissoras.

muitas emissoras públicas, educativas e mesmo comer-ciais (principalmente as locais) não terão como adquirirequipamentos para captação, edição e, principalmente,transmissão em alta definição, hoje ainda extremamen-te caros. Nesse caso, haverá uma tendência de con-centração ainda maior, pois só algumas emissoras trans-mitirão em alta definição.

Por último, caso determinada emissora ou produtorindependente deseje produzir em HD para atender àsdemandas do mercado exterior, não haverá, como jáocorre, nenhum impedimento em fazê-lo, contanto queas transmissões pela televisão aberta sejam feitas emstandard, o que é perfeitamente possível.

A alta definição pode ser inevitável, mas é precisoatentar a essas questões, pois o fetiche pela tecnologiapode aumentar a exclusão. Nesse sentido, até que acurva de barateamento dos equipamentos (de capta-ção e recepção) os torne acessíveis a todos, é prudenteque as transmissões digitais sejam realizadas em defini-ção standard.

O ministro das Comunicações, Hélio Costa, perdeucompletamente o pudor de defender os interesses dasOrganizações Globo, provando a cada dia que não pos-sui a impessoalidade necessária para o exercício docargo e cumprimento de seus deveres constitucionais.

Ex-funcionário da emissora, Hélio Costa foi duranteanos um dos maiores lobistas da empresa no Congres-so Nacional. O ministro também é dono da rádio Suces-so FM 101,7, de Barbacena (MG), o que contraria oartigo 54 da Constituição Federal que veda a participa-ção de parlamentares (ele ainda é senador) em empre-sas concessionárias de serviços públicos.

Costa, mais de uma vez, se recusou a receber re-presentantes da sociedade civil organizada e as rádioscomunitárias. Ao mesmo tempo, se reuniu diversas ve-zes, a portas fechadas, com os donos de emissoras.

Sem qualquer vergonha

A última do ministro em defesa do padrão japonêsocorreu no dia 16 de maio, durante o seminário que aCâmara dos Deputados realizou sobre o tema, quandodeterminou que a Agência Nacional de Telecomunica-ções (Anatel) proibisse as transmissões experimentaisdos padrões norte-americano, europeu e brasileiro, jáque os japoneses não haviam aparecido. De uma sóvez, o ministro interferiu na independência de um outropoder da República e mostrou não ter a impessoalidadeque se espera de um ministro de Estado

Se o governo Lula não quiser entrar para a históriacomo patrocinador de um processo suspeito de ferirnormas básicas da conduta dos servidores públicos, teráque adiar a definição das regras para a introdução daTV digital e substituir Hélio Costa, que perdeu a legitimi-dade necessária para ocupar o cargo de ministro.

Caso determinadaemissora desejeproduzir em HDpara atender àsdemandas domercado exterior,não haverá nenhumimpedimento emfazê-lo.

Hélio Costa veta até demonstração de outros padrões.

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“O país tem assistido a um amplo e democráti-co debate sobre o sistema digital a ser adotadopela TV brasileira”.

A sociedade brasileira não só permanece sem me-canismos de participação como continua sem entendero que está em jogo nas definições acerca da TV digital.O fato das emissoras ignorarem o assunto – ou fazeremuma cobertura tendenciosa – é um dos principais moti-vos para o desconhecimento da população. Por isso, aafirmação de que a sociedade tem assistido a um amplodebate sobre a TV digital é uma abstração sem qual-quer vínculo com o mundo real. O Conselho Consultivodo SBTVD, composto por representantes da sociedadecivil, por exemplo, foi enterrado pelo ministro Hélio Cos-ta sem que cumprisse com o disposto no Decreto 4.901,ou seja, “propor as ações e as diretrizes fundamentaisrelativas ao SBTVD”. Simultaneamente, Hélio Costacriou espaços privilegiados de interlocução com osradiodifusores, mesmo que estes estivessem represen-tados no Comitê Consultivo. A Casa Civil também man-tém diálogo íntimo com os radiodifusores e fabricantes,mas realizou uma única audiência com as entidadesque defendem a democratização das comunicações,sem que dela resultasse qualquer processo mais amplo.

“Nada pode justificar que o brasileiro seja pri-vado de usufruir, gratuitamente, de uma TV comimagem e som de alta qualidade, que ofereça op-ções de interatividade”.

É preciso relativizar o conceito de gratuidade. Da-dos do FDNC (Fórum Nacional pela Democratizaçãoda Comunicação) apontam que cada brasileiro pagouem 2005 cerca de R$ 203 reais para as emissoras detelevisão, por meio da compra de produtos que têmparte de seu valor de face reinvestidos em publicidadetelevisiva. Além disso, somente o governo federal gas-tou em 2005 cerca R$ 443 milhões em publicidade nas

emissoras de televisão. Ou seja, os cidadãos pagampara ver televisão.

Em segundo lugar, é preciso esclarecer que, pormenor que seja a definição da imagem escolhida para aTV Digital, todos os brasileiros receberão uma qualida-de de som e imagem semelhante à de um DVD, sem“fantasmas” ou chuviscos. Por outro lado, a alta defini-ção defendida pelos radiodifusores só será possível deser assistida em aparelhos televisores cujo preço é ina-cessível à imensa maioria da população. Em terceirolugar, a interatividade depende do que os técnicos cha-mam de middleware e do canal de retorno, que nadatêm a ver com o padrão de modulação.

“Nós, representantes do setor de comunicação so-cial, (..) podemos afirmar que o sistema ISDB-T desen-volvido no Japão (...) é o único sistema que garantirá,gratuitamente, a todos os brasileiros todos os benefíci-os da TV digital”.

Não há qualquer relação entre os benefícios da TVdigital e o padrão japonês. Todos os padrões (inclusiveo brasileiro) podem transmitir com as característicasque reivindicam os radiodifusores. O fato de o modeloser pago ou gratuito depende exclusivamente da regu-lamentação e não da tecnologia.

“Diante das manifestações de outros setores sobreessa escolha, nos sentimos no direito e no dever deexternar publicamente a nossa opinião. Esta decisão éurgente. O tema vem sendo estudado pelo Governo,universidades, a Sociedade de Engenharia de TV eTelecomunicações e radiodifusores, desde 1988”.

Não é honesto dizer que o tema esteja sendo estu-dado desde 1988. Nessa época, pouco se sabia sobre aTV digital, e as poucas pesquisas existentes podem serconsideradas incipientes. Em 1998, foram iniciados osprimeiros testes com os padrões estrangeiros. Mas o

Argumentos poucoconvincentesEm anúncio de página inteira publicado em 23 de março nos principaisjornais do país, as emissoras apresentaram a sua reivindicação: aadoção imediata do padrão japonês. A seguir, você confere um outroponto de vista.

A sociedadebrasileira não só

permanece semmecanismos de

participação comocontinua sem

entender o que estáem jogo nas

definições acercada TV digital.

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Decreto que institui o SBTVD veio somente no final de2003 e os resultados ainda não foram oficialmente apre-sentados (apesar de terem sido financiados com recur-sos públicos). Se forem, aí sim a sociedade terá emmãos subsídios suficientes para iniciar um amplo deba-te que culmine na formulação de um marco regulatóriocoerente com a nova realidade. O debate real, portan-to, começou pra valer em 2006. E, mesmo assim, sem atransparência necessária.

“Não faz sentido que a TV livre e gratuita fique con-denada ao atraso tecnológico e impedida de oferecertelevisão de alta definição, de graça, ao povo brasileiro.”

Há duas inverdades nesse parágrafo. A primeira emrelação ao atraso tecnológico. A maioria dos países nomundo sequer iniciou os debates sobre a implementaçãoda TV digital. Os que já iniciaram esse processo estãoem fase inicial de transição. O fato de o Brasil ter come-çado seu processo um pouco depois de alguns paísesproporcionou, inclusive, que fossem aprimoradas astecnologias existentes, evoluindo tecnicamente em vári-os aspectos do sistema.

A segunda inverdade está no oferecimento de tele-visão em “alta definição, de graça, ao povo brasileiro”.Além da tevê não ser gratuita (como foi apresentadonas questões anteriores), um televisor de alta definição,como já foi dito, custa um valor totalmente inacessívelpara a maioria do povo brasileiro.

“Temos certeza de que o Governo Brasileiro tomarásua decisão com a urgência que o assunto exige embeneficio da sociedade brasileira, que merece continu-ar a ter acesso, livre e gratuito, a uma das melhorestelevisões do mundo”.

A urgência que o assunto exige é exclusivamente daGlobo, que quer aproveitar o poder de pressão quepossui sobre o governo em momentos eleitorais paraemplacar aquilo que é melhor para seus negócios. Ob-jetivamente, a Globo não perderá um centavo se o pro-cesso de transição for iniciado alguns meses mais tarde.Como já foi dito nas páginas 12 e 13, existem inúmerasrazões (sob o prisma do interesse público, é claro) parao adiamento da decisão.

Redes revelam fragilidadedas justificativas para a

“pressa”. Assinatura da TVCultura causa surpresa.

O acesso livre e gratuito, repita-se, depende da re-gulamentação, e não da tecnologia. A “melhor TV domundo” é uma avaliação das emissoras em relação aelas mesmas, da qual não partilha o conjunto dos movi-mentos sociais e organizações da sociedade civil. Ne-nhuma televisão oligopolizada e hegemonicamente co-mercial pode ser uma boa televisão.

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