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A canadense Montreal é consi- derada a cidade do design, en- quanto a colombiana Popayan foi a primeira a ser definida pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultu- ra (Unesco) como cidade gastro- nômica. Na basca Bilbao, a déca- da de 1990 foi o momento de im- plementar uma estratégia de re- posicionamento que a livrasse da recessão industrial que se ar- rastava há mais de duas décadas — parte disso foi a construção do Museu Guggenheim, passo inicial que, só no ano de inaugu- ração, recebeu quase 1,5 milhão de visitantes. Em Abu Dhabi, o governo investe em um distrito cultural para tornar perene sua economia quando o petróleo já não for capaz de garantir essa es- tabilidade. Os exemplos são abordados em livros e artigos da economista Ana Carla Fonse- ca Reis, que trocou a carreira executiva na Unilever para se dedicar ao universo da econo- mia criativa e hoje consultora in- dependente da ONU e fundado- ra da Garimpo de Soluções. En- tre os temas de sua especialida- de estão as cidades criativas que, sem fórmula única, encon- tram maneiras de tornarem sin- gulares. “Cidades criativas são aquelas capazes de encontrar dentro de si a solução para seus problemas”, define. No Brasil, ela destaca a atrativi- dade do festival literário em Para- ty, no Rio de Janeiro, e de jazz em Guaramiranga, no Ceará. Mas o trabalho atual desenvolvido por Ana Carla é justamente mapear as cidades brasileiras como poten- cial criativo, para que empresas e governos possam traduzir esta lis- ta em estratégia de negócios, uma vez que a economia criativa provoca reação em cadeia. Exem- plifica com a moda brasileira que, ao se disseminar pelo mundo, exi- ge do setor têxtil uma diferencia- ção. “Afeta até mesmo o produ- tor de algodão, que pode buscar formas inovadoras de plantio e melhoramento do produto.” O que é uma cidade criativa? Uma cidade criativa não é neces- sariamente uma na qual a econo- mia criativa é mais pujante, mas que sua criatividade pode impul- sionar outras estratégias preva- lentes, a exemplo do turismo. Do mesmo modo, a economia criativa pode desabrochar em locais que não são caracteriza- dos por cultura ou conexões. O que são essas conexões? Quais as características das cidades criativas? Em 2009 desenvolvi um estudo congregando 18 autores de 13 países (que resultou no livro Creative City Perspectives) , tão diversos como Taiwan, Norue- ga, África do Sul e Estados Uni- dos, buscando características comuns às cidades que se pre- tendem criativas. O que pude concluir é que, independente- mente de sua escala, de seu con- texto ou de sua situação socioe- conômica, uma cidade criativa tem ao menos três característi- cas: inovações (tecnológicas, so- ciais, culturais, soluções); cone- xões (entre áreas da cidade, pú- blico e privado, local e global) e cultura (representatividade eco- nômica, impacto na agregação de valor a outros setores e for- matação de um ambiente mais favorável à criatividade). O que impede o avanço de cidades criativas no Brasil? Creio que, em primeiro lugar, o reconhecimento de que criativi- dade tem impacto econômico, em segundo, a tendência que muitas cidades apresentam de olhar primeiro para fora — ob- servando o que dá certo em ou- tras cidades, para tentar copiar uma receita —, em vez de olhar para dentro de si mesmas, em busca de suas singularidades. Só dá para atrair interesse para esse mercado se houver incentivo público? Não conheço um exemplo de economia criativa no mundo que funcione sem uma gover- nança compartilhada entre go- verno, setor privado e socieda- de civil. Governo porque é quem traça uma estratégia de longo prazo, setor privado por- que economia não se faz por de- creto, e sociedade civil porque é quem exige cumprimento, trans- parência e continuidade. Mas no Brasil essa dependência não é excessiva? A economia criativa, no Brasil, tem florescido em muitos casos apesar da ausência de uma estra- tégia de governo, salvo raras ex- ceções. Incentivo fiscal é um instrumento de intervenção de mercado, que tem sido muito utilizado para promover proje- tos culturais, mas isso não tem relação direta com a economia criativa. Economia é feita com base em empreendedorismo e com incentivos a isso. O que é um produto criativo típico do Brasil? Artesanato e futebol, por exemplo? Artesanato é um dos setores criativos. Não há um consenso, mas esportes costumam ficar alheios à definição de indústrias criativas, pois não são setores econômicos com especial agre- gação de valor. O Brasil tam- bém é muito caracterizado pela Rafael Palmeiras [email protected] Inovação e cultura para eternizar cidades TERÇA-FEIRA EMPREENDEDORISMO Não conheço um exemplo de economia criativa no mundo que funcione sem uma governança compartilhada entre setor público, privado e sociedade civil Incentivo fiscal é um instrumento de intervenção de mercado, que tem sido muito utilizado para promover projetos culturais, mas não tem relação direta com a economia criativa Conceito de municípios criativos ganha espaço para revitalizar laço entre governo e sociedade e redefinir estratégias de negócios ECONOMIA CRIATIVA QUARTA-FEIRA EDUCAÇÃO/GESTÃO Editor: Maria Luíza Filgueiras [email protected] ENTREVISTA ANA CARLA FONSECA REIS Consultora especializada em Economia Criativa Ana Carla: trunfo de cidades é reconhecer suas singularidades, e não copiar experiências alheias 18 Brasil Econômico Segunda-feira, 22 de agosto, 2011

Inovação e cultura para eternizar cidades be22 ago

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A canadense Montreal é consi-derada a cidade do design, en-quanto a colombiana Popayanfoi a primeira a ser definida pelaOrganização das Nações Unidaspara Educação, Ciência e Cultu-ra (Unesco) como cidade gastro-nômica. Na basca Bilbao, a déca-da de 1990 foi o momento de im-plementar uma estratégia de re-posicionamento que a livrasseda recessão industrial que se ar-rastava há mais de duas décadas— parte disso foi a construçãodo Museu Guggenheim, passoinicial que, só no ano de inaugu-ração, recebeu quase 1,5 milhãode visitantes. Em Abu Dhabi, ogoverno investe em um distritocultural para tornar perene suaeconomia quando o petróleo jánão for capaz de garantir essa es-tabilidade. Os exemplos sãoabordados em livros e artigosda economista Ana Carla Fonse-ca Reis, que trocou a carreiraexecutiva na Unilever para sededicar ao universo da econo-mia criativa e hoje consultora in-dependente da ONU e fundado-ra da Garimpo de Soluções. En-tre os temas de sua especialida-de estão as cidades criativasque, sem fórmula única, encon-tram maneiras de tornarem sin-gulares. “Cidades criativas sãoaquelas capazes de encontrardentro de si a solução para seusproblemas”, define.

No Brasil, ela destaca a atrativi-dade do festival literário em Para-ty, no Rio de Janeiro, e de jazz emGuaramiranga, no Ceará. Mas otrabalho atual desenvolvido porAna Carla é justamente mapearas cidades brasileiras como poten-cial criativo, para que empresas egovernos possam traduzir esta lis-ta em estratégia de negócios,uma vez que a economia criativaprovoca reação em cadeia. Exem-plifica com a moda brasileira que,ao se disseminar pelo mundo, exi-ge do setor têxtil uma diferencia-ção. “Afeta até mesmo o produ-tor de algodão, que pode buscarformas inovadoras de plantio emelhoramento do produto.”

O que é uma cidade criativa?Uma cidade criativa não é neces-

sariamente uma na qual a econo-mia criativa é mais pujante, masque sua criatividade pode impul-sionar outras estratégias preva-lentes, a exemplo do turismo.Do mesmo modo, a economiacriativa pode desabrochar emlocais que não são caracteriza-dos por cultura ou conexões.

O que são essas conexões?Quais as características dascidades criativas?Em 2009 desenvolvi um estudocongregando 18 autores de 13países (que resultou no livroCreative City Perspectives) , tãodiversos como Taiwan, Norue-ga, África do Sul e Estados Uni-dos, buscando característicascomuns às cidades que se pre-tendem criativas. O que pudeconcluir é que, independente-mente de sua escala, de seu con-texto ou de sua situação socioe-conômica, uma cidade criativatem ao menos três característi-cas: inovações (tecnológicas, so-ciais, culturais, soluções); cone-xões (entre áreas da cidade, pú-blico e privado, local e global) ecultura (representatividade eco-nômica, impacto na agregaçãode valor a outros setores e for-matação de um ambiente maisfavorável à criatividade).

O que impede o avanço decidades criativas no Brasil?Creio que, em primeiro lugar, oreconhecimento de que criativi-dade tem impacto econômico,em segundo, a tendência quemuitas cidades apresentam deolhar primeiro para fora — ob-servando o que dá certo em ou-tras cidades, para tentar copiaruma receita —, em vez de olharpara dentro de si mesmas, embusca de suas singularidades.

Só dá para atrair interessepara esse mercado sehouver incentivo público?Não conheço um exemplo deeconomia criativa no mundoque funcione sem uma gover-nança compartilhada entre go-verno, setor privado e socieda-de civil. Governo porque équem traça uma estratégia delongo prazo, setor privado por-que economia não se faz por de-creto, e sociedade civil porque é

quem exige cumprimento, trans-parência e continuidade.

Mas no Brasil essa dependêncianão é excessiva?A economia criativa, no Brasil,tem florescido em muitos casosapesar da ausência de uma estra-tégia de governo, salvo raras ex-ceções. Incentivo fiscal é uminstrumento de intervenção demercado, que tem sido muitoutilizado para promover proje-tos culturais, mas isso não temrelação direta com a economia

criativa. Economia é feita combase em empreendedorismo ecom incentivos a isso.

O que é um produto criativotípico do Brasil? Artesanato efutebol, por exemplo?Artesanato é um dos setorescriativos. Não há um consenso,mas esportes costumam ficaralheios à definição de indústriascriativas, pois não são setoreseconômicos com especial agre-gação de valor. O Brasil tam-bém é muito caracterizado pela

Rafael [email protected]

Inovação ecultura paraeternizar cidades

TERÇA-FEIRA

EMPREENDEDORISMO

“Não conheçoum exemplo deeconomia criativano mundo quefuncione semuma governançacompartilhadaentre setor público,privado esociedade civil

Incentivo fiscalé um instrumentode intervenção demercado, que temsido muito utilizadopara promoverprojetos culturais,mas não temrelação direta com aeconomia criativa

Conceito de municípios criativos ganha espaço para revitalizarlaço entre governo e sociedade e redefinir estratégias de negócios

ECONOMIA CRIATIVA QUARTA-FEIRA

EDUCAÇÃO/GESTÃOEditor: MariaLuízaFilgueiras [email protected]

ENTREVISTA ANA CARLA FONSECA REIS Consultora especializada em Economia Criativa

AnaCarla: trunfodecidadeséreconhecersuassingularidades,enãocopiarexperiênciasalheias

18 Brasil Econômico Segunda-feira, 22 de agosto, 2011

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música, pela moda, pelo de-sign, mas há enormes discre-pâncias geográficas e, infeliz-mente, carecemos de uma basede dados que nos permita apro-fundar essa discussão.

Quando se fala emprofissionalização da cultura,falamos de avanço de direitosautorais, ao mesmo tempoem que, na era da internet,a cultura está ligada àpropriedade coletiva. Comoessas pontas se relacionam?

Os direitos de propriedade inte-lectual, que, para além de direi-tos autorais, incorporam indica-ções geográficas, marcas regis-tradas, patentes, desenhos in-dustriais, são para muitos amoeda da economia criativa etêm por objetivo remunerar ocriador, o que é fundamental. Is-so não significa que a única for-ma de funcionamento dos direi-tos de propriedade intelectualseja a que hoje vigora. Esse é oponto que me parece que temosque reformular. ■

SEXTA-FEIRA

TECNOLOGIAQUINTA-FEIRA

SUSTENTABILIDADE

Experiências singularesQuando cheguei a Paris, pronta para me decepcionartamanha a expectativa, obviamente me apaixonei pelacidade. Não bastasse o que todo mundo adora — a aurada cidade, os bistrôs do Marais, o jardim de Luxembur-go e uma lista que pode se tornar muito longa — fui to-mada de arrombo por uma sensação inédita ao entrarno Museu L’Orangerie. Ele fica ali discreto, em uma dasalças da longa e estreita praça que se faz de tapete parao Louvre. Eis que, na primeira sala oval, estão as quatroparedes cobertas pelas Ninfeias de Monet. Somando-seàs telas, de 2 a 16 metros, a música ambiente compõeum clima que, por piegas que pareça, me fez chorar. Aguia justificou que a disposição dos quadros foi defini-da pelo próprio artista, quando os doou ao governofrancês, conforme o impacto que queria causar.

Tinha vindo a São Paulo, em 1997, ver a exposiçãodas telas de Monet. Apesar de emocionante, não che-gou aos pés da sensação que tive no L’Orangerie, pelo ar-ranjo das peças, pela música de fundo ou quem sabe pe-lo ar parisiense. Não foi única. Repetiu-se quatro anosdepois, na despretensiosa cidade espanhola de Córdo-ba. A construção original era uma mesquita e, com aconversão espanhola ao cristianismo, foi engolida por

uma catedral. Os esti-los são distintos, as co-res, os materiais, a pe-draria e as colunas damesquita árabe com odourado e madeira escu-ra da igreja — e, por in-crível que pareça, com-pletam-se e convivemharmoniosamente, ape-sar do peso da história,criando uma simbiosede religiões como deve-ria ser. A visita noturnaao templo é organizadapela arquidiocese da re-

gião de Andaluzia e, no jogo de luzes e sons, resulta emnó na garganta e lágrima nos olhos. Patrimônio Mun-dial da Unesco, é universalismo cultural puro.

O que essas duas experiências, apesar de muito pes-soais, mostram é como uma cidade pode ser arrebatado-ra — e tirar proveito financeiro e social disso. A defini-ção de cidade criativa passa pelos complexos urbanosque usufruem de atividades culturais diversas comocomponente integral de seu funcionamento econômi-co, segundo a Unctad, ou que tem um número relevan-te de pessoas empregadas ou gerando receita nessa in-dústria. Ou seja, atraem público e investimentos porconta disso. Na prática, o que os exemplos mal e bemsucedidos têm mostrado é que não basta ter um acervo,mas criar uma atmosfera, proporcionar experiências.

Mais de 60 cidades no mundo inteiro já se definemcomo criativas ou elaboraram estratégias específicaspara ganhar essa pecha. A ideia surgiu na década de80, com esforços municipais para se destacar e manterculturas próprias bem como agregar novas, em umcontexto de padronização global. E está ligada ainda aquão incentivadas as pessoas e governos são, em seuambiente, a criar, pensar, imaginar, experimentar.

A especialista Ana Carla Fonseca Reis ressalta quenão se trata de seguir fórmulas, mas aproveitar singu-laridades e potenciais, contrapondo às fraquezas. SeParis dependesse da simpatia dos parisienses, prova-velmente seus indicadores de turismo perderiam vita-lidade. Não é missão simples. Em seu relatório sobre otema, a Unctad destaca justamente que “ser criativoenquanto indivíduo ou organização é relativamentefácil, mas ser criativo enquanto cidade é uma proposi-ção diferente, dado o amálgama de culturas e interes-ses que envolve.” ■

Henrique Manreza

Cidadesconquistam como que não se podereplicar, seja aemoção provocadapor Monet emParis ou amistura religiosade Córdoba

MARIA LUÍZAFILGUEIRASEditora de Finanças eInovação em Gestão

Entre experiênciasde cidades de paísestão diversos quantoTaiwan, Noruega,África do Sul eEstados Unidos,o que pudeconcluir é que,independentementede sua escala,de seu contexto oude sua situaçãosocioeconômica,uma cidade criativatem ao menos trêscaracterísticas:inovações, conexõese cultura

Segunda-feira, 22 de agosto, 2011 Brasil Econômico 19