Instrução e Estrutura Acusatória do Processo Penal Português

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  • 8/3/2019 Instruo e Estrutura Acusatria do Processo Penal Portugus

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    ACRDO N.o 23/90[1]

    Processo: n. 180/90.1 SecoRelator: Conselheiro Tavares da Costa.

    Acordam no Tribunal Constitucional:

    I

    1 Nos autos de inqurito n. 302/88 da Delegao da Procuradoria da Repblicado Tribunal Judicial de Faro, instaurados contra A., B., C., D., E. e F., para investigaode um crime de trfico de estupefacientes, o primeiro dos arguidos dirigiu ao respectivoJuiz de Instruo Criminal um requerimento onde, alm do mais, suscitou a nulidade

    do inqurito levado a efeito nos termos do artigo 263. do Cdigo de ProcessoPenal, por considerar inconstitucional a norma contida neste preceito, pois queofensiva dos n.os 4 e 5 do artigo 32. da Constituio da Repblica.

    Por despacho de 23 de Fevereiro de 1989, o Juiz de Instruo Criminal de Farodesatendeu o requerido, dando por vlida a tramitao processual j efectuada,estribando-se, para o efeito, no Acrdo n. 7/87 deste Tribunal Constitucional(publicado noDirio da Repblica, I Srie (Suplemento), de 9 de Fevereiro de 1987, enoBoletim do Ministrio da Justia, n. 363, pp. 109 e segs.).

    2 Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para o Tribunal daRelao de vora que, por Acrdo de 23 de Maio de 1989, negou provimento aorecurso, declarando vlido todo o inqurito, dado, em seu entender, o aludido artigo263. no se encontrar ferido de inconstitucionalidade (est publicado na Colectnea de

    Jurisprudncia, ano XIV, pp. 284-III e segs.). deste aresto que vem interposto o presente recurso, desenvolvendo-se o seguinte

    quadro de concluses nas alegaes entretanto oferecidas:

    a) O artigo 32., n. 4, da Constituio da Repblica dispe que toda a instruo da competncia de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutrasentidades a prtica dos actos instrutrios que se no prendam directamente comos direitos fundamentais;

    b) A expresso instruo utilizada naquele preceito constitucionalengloba a antiga instruo preparatria e o antigo corpo de delito, cuja

    finalidade consistia no conjunto de diligncias visando investigar aexistncia de um crime, determinar os seus agentes e averiguar a suaresponsabilidade;

    c) O denominado inqurito, nos termos do artigo 262. do Cdigo deProcesso Penal, compreende o conjunto de diligncias que visam investigara existncia de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidadedeles e descobrir e recolher as provas em ordem deciso sobre a acusao;

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    d) Sendo manifesta a similitude dos conceitos, manifesto tambm que oactual inqurito deve ser englobado na expresso instruo constante don. 4 do artigo 32. da Constituio da Repblica;

    e) Assim sendo, no pode atribuir-se ao Ministrio Pblico a direco doinqurito, a qual s pode ser incumbida a um juiz de instruo;

    f) , assim, inconstitucional o artigo 263., n. 1, do Cdigo de Processo Penal,

    que atribui a direco do inqurito ao Ministrio Pblico assistido pelos rgosde polcia criminal;

    g) Aquela atribuio de competncia ao Ministrio Pblico contraria tambm aestrutura acusatria conferida ao processo criminal pelo n. 5 do artigo 32. daConstituio da Repblica;

    h) Tem o Ministrio Pblico, segundo o sistema processual penal decorrente donovo Cdigo de Processo Penal, durante o inqurito, no s a respectivadireco, como o total acesso aos elementos de prova recolhidos, e decisivainterveno na durao da priso preventiva, em manifesta desigualdade com a

    posio do arguido que no tem acesso aos autos e que no pode contrariar as posies do Ministrio Pblico quanto aos fundamentos determinantes dadurao dos prazos de priso preventiva;

    i) Por isso, tambm por violao do preceituado no artigo 32., n. 5, daConstituio da Repblica, inconstitucional o artigo 263., n. 1, do Cdigo deProcesso Penal;

    j) Impe-se, assim, o provimento do presente recurso, declarando-se ainconstitucionalidade material do artigo 263., n. 1, do Cdigo de ProcessoPenal, por violao do disposto no artigo 32., n.os 4 e 5, da Constituio daRepblica, com as consequncias legais.

    3 Nas contra-alegaes apresentadas, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, apsdesenvolvida apreciao da constitucionalidade da norma impugnada, conclui doseguinte modo:

    1. A norma constante do n. 1 do artigo 263. do Cdigo de Processo Penal de1987, que atribui ao Ministrio Pblico a direco do inqurito, no viola osn.os 4 e 5 do artigo 32. da Constituio;

    2. Pelo que deve ser confirmada, na parte impugnada, a deciso recorrida.

    Percorridos que foram os trmites legais cumpre agora apreciar e decidir.

    II

    Os textos legais em causa.

    1.1 A Constituio da Repblica Portuguesa (CRP) dispe no seu artigo 32.,epigrafado Garantias de processo criminal, na parte que ora interessa:

    ............................................................................................................4 Toda a instruo da competncia de um juiz, o qual pode, nos termos da

    lei, delegar noutras entidades a prtica dos actos instrutrios que se no prendamdirectamente com os direitos fundamentais.

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    5 O processo criminal tem estrutura acusatria, estando a audincia dejulgamento e os actos instrutrios que a lei determinar subordinados ao princpio docontraditrio.

    ............................................................................................................

    Sistematicamente, o preceito inscreve-se no Captulo I Direitos, Liberdades e

    Garantias Pessoais do Ttulo II Direitos, liberdades e garantias da Parte I daCRP Direitos e deveres fundamentais.

    1.2 A recente reviso constitucional, aprovada pela Lei Constitucional n. 1/89,de 8 de Julho, manteve integralmente o texto anterior, resultante da Lei Constitucionaln. 1/82, de 30 de Setembro.

    Por seu turno, o actual Cdigo de Processo Penal (CPP), aprovado pelo artigo1. do Decreto-Lei n. 78/87, de 17 de Fevereiro, inicia a sua Parte Segunda com oLivro VI Das Fases Preliminares composto por trs Ttulos: I DisposiesGerais; II Do inqurito e III Da instruo.

    No Captulo I do Ttulo II, relativo s disposies gerais sobre o inqurito, retenha-se essencialmente o disposto no artigo 262. sobre a finalidade e mbito do mesmo,

    transcrevendo-se o seu n. 1:

    1 O inqurito compreende o conjunto de diligncias que visam investigar aexistncia de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles edescobrir e recolher as provas, em ordem deciso sobre a acusao.

    Logo a seguir, quanto direco do inqurito, acrescenta o normativo cujaconformao constitucional se discute, ou seja, o artigo 263.:

    1 A direco do inqurito cabe ao Ministrio Pblico, assistido pelos rgosde polcia criminal.

    2 Para efeitos do disposto no nmero anterior, os rgos de polcia criminalactuam sob a directa orientao do Ministrio Pblico e na sua dependnciafuncional.

    Para uma correcta e globalizante compreenso do regime estatudo adiante-se,desde j, que, nos termos do artigo 267. a abrir o Captulo II, Dos actos de inqurito,do Ttulo II em referncia o Ministrio Pblico quem pratica os actos e asseguraos meios de prova necessrios realizao das finalidades referidas no artigo 262., n.1, nos termos e com as restries constantes dos artigos seguintes (que oportunamenteabordaremos).

    III

    O problema da constitucionalidade do artigo 263., n. 1, do CPP face ao n. 4 do

    artigo 32. da CRP.

    1 Como se aludiu, este Tribunal j teve oportunidade, no Acrdo n. 7/87, de sepronunciar sobre a conformao constitucional da norma contida no preceito.

    F-lo em sede de fiscalizao preventiva e concluiu pela emisso de um juzo deno inconstitucionalidade.

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    No desenvolvimento dos fundamentos decisrios, no se afastou muito do teorargumentativo anteriormente acolhido e trabalhado pela Comisso Constitucional,apoiando-se para o efeito, e de modo particular, no Acrdo n. 6 deste rgo, datado de5 de Maio de 1977 (publicado no Apndice ao Dirio da Repblica, de 6 de Junhoimediato, pp. 5 e segs.) e, bem assim, sem prejuzo de reconhecer a legitimidade dasdvidas suscitadas pelo texto constitucional e a teleologia garantstica nele

    plasmada, cuidou de buscar arrimo a posies reiteradamente defendidas porsectores da Doutrina, com particular destaque para Figueiredo Dias, confortando-se, ainda, com o espao de interveno exclusiva concedido pelo novo Cdigo ao

    juiz de instruo sempre que estejam em causa os direitos fundamentais doarguido.

    No obstante, certo no ter o aresto logrado consenso: a tese professada norecolheu a unanimidade de voto dos prprios juzes e, por sua vez, autores houveque se pronunciaram e continuam a pronunciar-se no sentido dainconstitucionalidade, entendendo configurar-se, assim, a desjudicializao dainstruo a sua policializao , nessa medida se desrespeitando o princpioconstitucional impositivo consubstanciador das garantias reconhecidas a todo ocidado no processo criminal, com solene expresso no n. 1 do prprio artigo 32.

    (O processo criminal assegurar todas as garantias de defesa). A entrada em vigor do novo CPP e o facto da redaco do n. 4 do artigo 32.

    da CRP se ter mantido inalterada aquando da 2. Reviso Constitucional,reavivaram a polmica j existente e, de certo modo, obrigam a reequacionar osdados da questo.

    Como j se escreveu, uma problemtica esgotada uma problemticadefinitivamente bloqueada, servindo de teste para a sua vitalidade verificar se ela marca

    passo, o que no parece ser o caso.

    2 Importar, na anlise a empreender, abordar os antecedentes jurisprudenciais,na estrita medida do indispensvel, mas no sem que, preliminarmente, se deixemclaramente expostos os postulados em que assentar o desenvolvimento subsequente.

    Por um lado, a afirmao do direito de defesa com a dignificao e a supremacia de princpio axiolgico constitucional de natureza imperativa, a exigir conformaoprocessual (instrumental) adequada, para alm da virtualidade da sua fora vinculativageral e abstracta e aplicabilidade directa, ex vi do artigo 18., n. 1, da CRP.

    Por outro lado, e sequencialmente, a funo activa de garante que ao juiz deinstruo compete exercer, directamente articulada com os direitos, liberdades egarantias fundamentais das pessoas.

    2.1 Posto o que, convir sublinhar, numa ptica retrospectiva que surpreenda amatriz do inqurito tal como concebido foi post-25 de Abril, a inteno do legislador aoeditar o Decreto-Lei n. 605/75, de 3 de Novembro, no decurso das medidas de curto

    prazo estabelecidas no Programa do Movimento das Foras Armadas.L-se no relatrio do diploma ter sido objectivo dignificar o processo penal emtodas as suas fases, dando execuo, como expresso prioritria, simplificao eceleridade processuais, sem prejuzo das garantias de ordem jurdica e social naaveriguao das infraces e na defesa dos arguidos.

    Uma das medidas institudas configurou-se no inqurito policial, naterminologia de ento , meio simplificado de recolha de provas, obrigatrio parao Ministrio Pblico e todas as autoridades policiais relativamente a crimespblicos, competindo a essa magistratura o respectivo controlo, o que ento se

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    harmonizava com o sistema em vigor que lhe atribua, em princpio, a titularidadedo exerccio da aco penal e a recolha de prova destinada a possibilitar esseexerccio (cfr. os artigos 1. e 14. do Decreto-Lei n. 35 007, de 13 de Outubro de1945).

    Surgiram posteriormente alteraes vrias v. g., Decretos-Lei n.os 618/76, de 27de Julho, 377/77, de 6 de Setembro, Lei n. 25/81, de 21 de Agosto, Decreto-Lei n.

    402/82, de 23 de Setembro , algumas delas objecto de juzos de inconstitucionalidade,e assistiu-se a uma progressiva judicializao, no inqurito j ento designadopreliminar, da actividade de recolha da prova. Entretanto, iniciara vigncia aConstituio de 1976, dando ensejo ao contencioso da constitucionalidade doinqurito.

    No tempo da Comisso Constitucional (CC), e sem embargo da censura exercidarelativamente a desvios evidentes no regime de recolha probatria, sempre a CC sepronunciou quanto existncia de duas fases distintas: uma inicial,frequentemente qualificada como preliminar, pr-processual ou extraprocessual,destinada ao registo da notitia criminis e deteco dos elementos de prova deimediata captao, no incompatvel com a CRP desde que respeitada aintangibilidade dos direitos, liberdades e garantias fundamentais nela consignados,

    e uma segunda fase, da competncia do juiz de instruo, sempre que postos emcausa esses valores, cabendo ainda ao juiz decidir se deve ou no submeter-se ofeito a julgamento, judicialmente se comprovando a opo do Ministrio Pblicoem acusar ou em se abster de o fazer.

    2.2 No fundo, a dicotomia investigao criminal instruo do processocriminal (neutramente nos exprimindo sem compromisso terminolgico, pordesnecessrio) funde-se em interdependncia e complementaridade: a fase prviaserve para criar a convico da entidade titular da aco penal, a subsequentedestina-se a moldar a convico do julgador. A garantia da natureza judicial destaltima expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados osdireitos fundamentais do arguido, implicando a interveno do juiz-garante.

    Nesta linha argumentativa assentam os primeiros acrdos da CC dos quais on. 6 se invoca paradigmaticamente.

    Posteriormente, surpreende-se uma sensvel inflexo da CC, porventura face reformulao sofrida pelo Decreto-Lei n. 605/75 e s alteraes introduzidas peloDecreto-Lei n. 377/77 no CPP de 1929: mantm-se a tese, mas acentuam-se asmodificaes de ndole criminolgica e de poltica criminal, comparatisticamenteafianadas. Sirvam de exemplos Acrdos como os n.os 39, de 28 de Julho de 1977,onde os rituais prprios do inqurito e da instruo destacam a dessintonia entre as duasfiguras, mas j no se esconde o interesse pblico na represso da criminalidade e oexemplo de outros ordenamentos, e 49, no datado, por lapso evidente (mas de

    Novembro de 1977), enriquecido doutrinariamente para justificar a simplificao

    processual em ordem eficincia, sem que da saiam diminudas as garantiasindividuais (cfr. os textos destes dois acrdos no Apndice ao Dirio daRepblica, de 30 de Dezembro de 1977).

    Nuance, de resto, observada por um dos mais constantes crticos do sistema,Germano Marques da Silva cfr. Da inconstitucionalidade do InquritoPreliminar, in Direito e Justia,vol. I, 1980, pp. 179 e segs., e Princpios gerais de

    processo penal e Constituio da Repblica Portuguesa, na mesma revista,vol. III, 1987-1988, pp. 163 e segs.

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    No cremos, porm, que a acelerao processual se reduza a uma questo dedisposio de meios, como alega este autor, nem to pouco que toda a problemticasubjacente seja reconduzvel pura substituio do juiz por qualquer outra entidadeno independente ou seja, preocupada com a perseguio dos criminosos e quecom base nas provas policialmente recolhidas, sem qualquer controlo se sujeite oarguido a julgamento, impendendo sobre ele, com base exclusiva nessas provas, um

    juzo judicial de suspeita.Se assim fosse, o n. 1 do artigo 263. do CPP seria materialmente inconstitucional

    por violao do n. 4 do artigo 32. da CRP.Mas no .

    3 Historicamente situada, a norma constitucional compreende-se comoreaco ao pendor inquisitrio do processo penal de ento.

    3.1 Assim, as consideraes expostas atestam suficientemente que o Decreto-Lein. 605/75, e legislao subsequente, se radicam na preocupao crescente deinterpenetrar, compatibilizando, os interesses da comunidade na preveno erepresso e a considerao indefectvel dos direitos do indivduo, na expresso de

    Antnio Carvalho Martins, a propsito do preliminary hearing(cfr. O Debate Instrutrio ao Cdigo de Processo Penal Portugus de 1987, Coimbra Editora,Coimbra, 1989, pp. 15 e segs).

    Da, a natural prudncia do legislador constituinte, alis bem patente nos trabalhospreparatrios, editada nas revises j ocorridas.

    No obstante, no plano lgico, a leitura maximalista do n. 4 do artigo 32. da CRP proporcionaria, se levada s ltimas consequncias, o vcio inerente a toda aargumentao circular.

    Na verdade, denunciou-se em recente voto de vencido lavrado no Acrdo desteTribunal n. 408/89, de 31 de Maio ltimo, esse eventual risco: se se entender que entreos direitos fundamentais abrangidos pelo n. 4 do artigo 32. figura a prpria garantia docarcter judicial da instruo [e, poderia agora acrescentar-se, a garantia de que toda aindagao criminal haver que revestir a forma instrutria], est-se a delimitar agarantia do n. 4 do artigo 32. da CRP em funo dessa mesma garantia, e est-se,ainda, e implicitamente, a sustentar que todos os actos instrutrios, sejam eles quaisforem, sempre tero de ser dirigidos por um juiz de instruo, j que todos eles seentrelaam com um direito fundamental, isto , com a garantia do carcter judicial dainstruo.

    O que seria ir alm do prprio artigo 32., n. 4. Por outro lado, e esta ser uma tnica que adiante retomaremos, semelhante leitura

    colidiria com outros valores constitucionalmente tutelados.Vir a propsito transcrever certa passagem de um parecer do Conselho Consultivo

    da Procuradoria-Geral da Repblica, emitido relativamente a buscas e apreenses

    (Parecer n. 162/82, de 9 de Dezembro de 1982, publicado no Dirio da Repblica, IISrie, de 6 de Julho de 1983, e noBoletim do Ministrio da Justia, n. 328, pp. 211 esegs.).

    A se ponderou, no mbito das provas objecto de diligncias de busca, vistoria eapreenso:

    Entender o preceito constitucional [referia-se ao artigo 32., n. 4] no sentido deimpor (uma integral jurisdicionalizao) naquela rea onde, pela natureza dascoisas, embora existindo algum risco de incorrecta recolha de provas, tal risco

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    menor pode dizer-se que os elementos de prova real ou consistem em coisas ouem marcas materiais observveis , seria levar ao bloqueamento o sistema penal,com manifesto desequilbrio entre as garantias de defesa do arguido e a necessidadede uma eficaz luta contra a criminalidade, ambas indispensveis numa sociedadeestruturalmente justa, sendo certo que a especial valia das provas reais depende,quantas vezes, de uma actuao imediata e sob sigilo que a jurisdicionalizao

    irrestrita impediria ou, pelo menos, comprometeria.Cremos, que o enfoque certo da questo passa hoje por coordenadas prximas dapreocupao nsita no trecho reproduzido, projectadas prospectivamente.

    Observa Jos Antnio Barreiros que os escopos reactivo e garantstico almejadoscom a integral judicializao instrutria engendram efeitos perversos (A NovaConstituio Processual Penal, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48 (1988),tomo II, p. 440). Efeitos que obstam, ao banalizar-se a judicializao e ao bloquear-se correlativamente a desejvel acelerao processual, concordncia prticaentre as exigncias de verdade material e defesa social, por um lado, e de garantiados direitos das pessoas, por outro lado (Figueiredo Dias, O Novo Cdigo deProcesso Penal, noBoletim do Ministrio da Justia, n. 369, p. 15), quando, afinal, ofim ltimo do preceito constitucional intenta alcanar a proteco judicial do

    arguido na fase anterior ao julgamento, sem postergao daquelas exigncias.

    3.2 O CPP de 1987 veio valorar significativamente o estatuto do MinistrioPblico na fase em causa, reforada pelo reconhecimento da sua autonomia, anvel constitucional, com a 2. Reviso (cfr. o n. 2 do artigo 221.).

    Atravs da Lei n. 43/86, de 26 de Setembro, a Assembleia da Repblica avalizou onovo figurino ao autorizar o Governo a legislar em matria de processo penal com ainequivocidade que do seu artigo 2., n. 2, se colhe, maxime nos n.os 7, 8, 9, 25 a 30, 35e 45, exigindo-se a presidncia, a prtica ou a autorizao de qualquer acto porbanda do juiz, sempre que este acto se articule com os direitos fundamentais daspessoas.

    O prembulo do Cdigo, ao explicitar os contornos mais salientes da arquitecturado processo penal, expe, por sua vez a nova filosofia na sua Parte III, nomeadamentena alnea b) do n. 7.

    A esta luz se devem compreender artigos como os 53. (posio e atribuies doMinistrio Pblico no processo), 262. (finalidade e mbito do processo), 263.(direco do inqurito), 267. e seguintes (actos a praticar pelo Ministrio Pblico e pelo

    juiz de instruo) e 286. (finalidade e mbito da instruo).A conformidade constitucional da soluo consagrada no novo CPP foi

    defendida por Figueiredo Dias em vrias ocasies, nomeadamente na seguintepassagem que transcrevemos por se considerar relevante:

    Em primeiro lugar e a jurisprudncia da Comisso Constitucional, desde o

    incio, contribuiu para o revelar claramente , o sentido jurdico-processual penaldo termo instruo no est inscrito em qualquer lei natural ou natureza dascoisas, que permita decidir logo a partir dela o que e o que no instruo. Omais que desta perspectiva poder avanar-se que instruo, neste contexto,haver de ter o sentido de esclarecimento de um facto possvel em vista de serou no submetido a julgamento. Com este sentido se compagina em absoluto aproposta que acima ficou sugerida.

    Em segundo lugar, o carcter facultativo hoc sensu, disponvel que,naquela proposta, vem a caber instruo adequa-se perfeitamente natureza,

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    que segundo a Constituio lhe cabe, de direito das pessoas egarantia doprocesso penal. Nunca, na verdade, uma tal natureza poderia conduzir a que ainstruo fosse obrigatria ainda quando, nem o arguido, nem o assistenteentendessem opor-se atitude assumida pelo Ministrio Pblico no fim doinqurito preliminar.

    Em terceiro lugar, seria de todo infundado e, alm disso, carecido de

    sentido pretender que o sistema sugerido conduziria a uma perigosaadministrativizao do processo penal na fase anterior ao julgamento, com aconsequente acentuao de elementos autoritrios que em tal fase estolatentes. No por o Ministrio Pblico ter a direco da tarefa deinvestigao conducente fundamentao da deciso de acusar ou de noacusar que ele perde a sua exacta configurao jurdico-constitucional: a deuma magistratura autnoma, na qual vai implicada a obrigao de se moverpor critrios estritos de objectividade e imparcialidade. Pelo contrrio comoatrs ficou j sugerido s uma soluo deste tipo se adequa verdadeirae totalmente aos dados jurdico-constitucionais condicionantes; os quais se noesgotam na introduo da figura do juiz de instruo, mas compreendemtambm, e com no menor importncia para o problema, a nova

    caracterizao conferida magistratura do Ministrio Pblico.Nem se diga, em quarto lugar, que deste modo se esvazia de sentido e de

    contedo a funo do juiz de instruo. Pelo contrrio ainda aqui , sassim uma tal funo reconduzida sua dignidade jurdico-constitucional,consistente na prtica de actos materialmente judiciais e no na de actosmaterialmente policiais. Como s assim, de resto, se mantm umprincpio deunidade substancialda instruo criminal, que no deve mudar de critrios e denatureza processuais consoante tenha lugar antes da audincia de julgamentoou durante ela e, assim, consoante caiba ao juiz de instruo ou ao de

    julgamento. (Para uma reforma global do processo penal portugus Da suanecessidade e de algumas orientaes fundamentais, in Para uma Nova JustiaPenal, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 228 a 230).Posio retomada j na vigncia do novo Cdigo no trabalho Sobre os sujeitos

    processuais no novo Cdigo de Processo Penal, in Jornadas de DireitoProcessualPenalONovo Cdigo de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1988, pp. 5 e segs., e,sustentada, tambm, por Anabela Miranda Rodrigues, O inqurito no novo Cdigo deProcesso Penal, ob. cit.,pp. 59 e segs., e Jos Souto Moura, Inqurito e Instruo, in

    Jornadas cits., pp. 83 e segs., maxime, p. 110.

    4 Pensa-se que leitura do preceito em causa do CPP pela ptica constitucionalcontinua a interessar, sem dvida, o elemento histrico bem como o feixe deargumentos em sua defesa at agora sobremaneira utilizados, mas igualmente se crimpor-se hoje uma interpretao mais dinmica da norma constitucional.

    Sempre o n. 4 do artigo 32. funcionar como referencial condicionante doordenamento jurdico infraconstitucional.Com efeito, o prprio legislador dotado de poder constituinte tem de se submeter,

    em sede interpretativa, lgica dos princpios legitimadores de que se reclama, sob pena de perverso da prpria ordem jurdica e consequente abalo do sentimentojurdico da comunidade.

    Tambm certo no ser legtimo, ao legislador ordinrio, fixar o sentido denorma constitucional, tal como faz por via de interpretao autntica relativamente s

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    normas que edita (cfr., a propsito, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4. ed.,2. reimp., Almedina, Coimbra, 1989, p. 167).

    Mas j aquele pode, e deve, mormente na rea dos direitos fundamentais,subsumir a tarefa interpretativa harmonizao ou concordncia prtica entre osbens constitucionalmente tutelados e os valores que representam.

    No desempenho dessa misso, no dever considerar isoladamente as normas

    constitucionais mas procurar integr-las num todo unitrio em obedincia a umdos princpios de interpretao constitucional que este ltimo autor enumera noseu catlogo-tpico, o da unidade constitucional (Canotilho, ob. cit., p. 162).

    Como organismo vivo que , Constituio repudia uma perspectiva fixista,mesmo que se no tolere o sacrifcio do primado da norma em proveito do primado do

    problema (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2. ed.,reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 117 e 227).

    Por outras palavras e no concreto caso, o n. 4 do artigo 32. da CRP prosseguea tutela de defesa dos direitos do cidado no processo criminal e, nessa exactamedida, determina o monoplio pelo juiz da instruo, juiz-garante dos direitosfundamentais dos cidados (reserva do juiz).

    Interveno do juiz que vale e s vale no mbito do ncleo da garantia

    constitucional.Assim ocorre em toda a fase de inqurito ao Ministrio Pblico confiada pelo

    CPP actual, compreendendo o conjunto de diligncias que visam investigar aexistncia de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrire recolher provas em ordem deciso sobre a acusao (artigo 262., n. 1),

    justificando-se a interveno do juiz-garante sempre que afectado aquele ncleo consoante o elenco de situaes descritas nos artigos 268. e 269.

    Mantm-se inclume o preceito constitucional e o regime por ele moldado e, domesmo passo, concilia-se a norma nele contida com outros valores tutelados aomesmo nvel o direito segurana (n. 1 do artigo 27.), envolvendocomponentes de segurana jurdica e de certeza quanto ao exerccio dos direitos, orespeito pelos direitos e liberdades dos terceiros expresso na Declarao Universaldos Direitos do Homem (n. 2 do artigo 29.), as exigncias de ordem pblica, soexemplos de referentes jurdico-constitucionais a exigir a observncia daadequao e da proporcionalidade.

    IV

    O problema da constitucionalidade do artigo 263., n. 1, do CPP face ao n. 5 do

    artigo 32. da CRP.

    1 Resta abordar este ltimo problema levantado pelo recorrente, para o qual osistema vigente viola a estrutura acusatria do processo criminal.

    Recorde-se aquele n. 5:O processo criminal tem estrutura acusatria, estando a audincia do

    julgamento e os actos instrutrios que a lei determinar subordinados ao princpio docontraditrio.

    Na tese do recorrente, a competncia atribuda pelo CPP ao Ministrio Pblicoigualmente contraria aquela estrutura.

    Ainda aqui lhe falece razo.

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    2 Na verdade, a estrutura acusatria exige diferenciao entre o rgo que

    investiga e (ou) acusa e o rgo que julga, o que se verifica no regime processualvigente, inclusivamente se outra fosse a soluo a conceder ao problema anteriormentedebatido.

    Observam, a este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituio da

    Repblica PortuguesaAnotada, Coimbra Editora, Coimbra, vol. 1., 1984, p. 217):

    A densificao semntica da estrutura acusatria (n. 5, 1. parte) faz-seatravs da articulao de uma dimenso material (fases do processo) comuma dimenso orgnico-subjectiva (entidades competentes). Estruturaacusatria significa, no plano material, a distino entre instruo, acusao e

    julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciao entre juiz deinstruo (rgo de instruo) e juiz julgador (rgo julgador) e entre ambos eo rgo acusador.

    Retenha-se o que outros autores a este respeito adiantam:Assim, para Figueiredo Dias, o que o sentido e o alcance do princpio acusatrio

    postulam que a entidade julgadora no tenha funes de investigao preliminare acusao das infraces, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro doslimites que lhe so postos por uma acusao fundamentada e deduzida por umrgo diferenciado (cfr.Direito ProcessualPenal, I, pp. 136 e 137), ideia retomada

    pelo mesmo autor noutro trabalho seu (La Protection des Droits de lhomme dans laprocdure pnale, portugaise, noBoletim do Ministrio da Justia, n. 291, p. 167).

    Para Castanheira Neves, o princpio da acusao concilia o interesse pblicoda represso com as exigncias, de no menor interesse pblico, da imparcialidadee objectividade no julgamento das infraces, atribuindo a rgos pblicosfundamentalmente distintos, por um lado, as funes de investigao e acusaodos delitos que compete em regra ao Ministrio Pblico [...] e, por outro lado,a funo de julgamento dessa acusao que compete ao tribunal criminal, comorgo de estatuto e estrutura jurisdicional (Sumrios de Processo Penal, pp. 33 e34).

    Tambm Cavaleiro de Ferreira escreve: O princpio acusatrio consiste, pois, naatribuio da funo investigatria, indispensvel para fundamentar a deciso, e naformulao da acusao, por entidade diferente do Tribunal (Curso de ProcessoPenal, I, 1955 e 1981, reimp., p. 43).

    No se infira, porm, que a estrutura acusatria do processo penal posterga as garantias de defesa que constitucionalmente n. 1 do artigo32. lhe compete assegurar, nomeadamente no campo dos direitos fundamentais.

    Nesta rea, sente-se de modo particular a necessidade de atribuir aos arguidosmeios legais de interveno compensatrios do desequilbrio em que se encontram

    face acusao, como se observa no Acrdo n. 150/87 ( Dirio da Repblica,II Srie, de 18 de Setembro de 1987). Reconhecendo que a orientao para a defesa do processo penal no o aceita

    neutro em relao aos direitos fundamentais, nem por isso, a essa luz, o artigo 263. doCPP parece afrontar o texto constitucional: a concluso que deve retirar-seconsiderando as cautelas que a vigente arquitectura processual penal adoptou quanto

    preservao do ncleo dos direitos fundamentais, como se procurou sublinharsupra.

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    V

    Em face do exposto, decide-se no julgar inconstitucional a norma do artigo 263.do Cdigo de Processo Penal, negando, consequentemente, provimento ao recurso.

    Lisboa, 31 de Janeiro de 1990.

    Alberto Tavares da CostaArmindo Ribeiro Mendes

    Antnio VitorinoVtorNunes de Almeida

    Maria daAssuno Esteves

    Antero Alves Monteiro Diniz (Continuo a entender, no essencial, pelas razesaduzidas na declarao de voto que produzi no Acrdo n. 7/87, que a norma do artigo263., n. 1, do Cdigo de Processo Penal, viola o disposto no artigo 32., n. 4, daConstituio. Na verdade, no s aquelas razes mantm a sua inteira validade(eventualmente acrescida aps a entrada em vigor da Lei Constitucional n. 1/89, de 8

    de Julho), como tambm as achegas entretanto agenciadas a favor do entendimentocontrrio padecem, em maior ou menor grau, do vcio de traduzirem, no rigor dascoisas, no uma perspectiva constitucional da lei, mas e contrariamente, umainterpretao legal da Constituio. E assim sendo, votei no sentido do provimento dorecurso).

    Jos ManuelCardoso da Costa.

    [1]

    Publicado noDirio da Repblica, II Srie, de 30 de Junho de 1990.