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Instrumentum vocale, mallams e alufás: o paradoxo islâmico da erudição na diáspora africana no Atlântico* José Cairus Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos, que se assemelham ao árabe, usado entre os Ussás, que figurão terem hoje combinado com os Nagôs. [Relatório do chefe de polícia, Francisco Gonçalves Martins, em 1835] Introdução O estudo da diáspora africana no Brasil nas últimas décadas, em con- sonância com os estudos deste tópico principalmente no mundo acadêmi- co anglo-saxão, exige dos historiadores além de dotes interdisciplinares, um grau crescente de especialização e erudição. A descoberta, ou melhor, a redescoberta dos africanos e a percepção da pluralidade cultura desses in- divíduos reflete-se em uma produção acadêmica erudita e eclética. Aberta a “Caixa de Pandora” da escravidão percebeu-se mais: que não bastava de- Topoi, Rio de Janeiro, março 2003, pp. 128-164. * Este artigo é baseado em um dos capítulos da minha dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ (CAIRUS, José A. T. Jihad, cativeiro e redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, 2002). Agradeço aos professores Arno Wehling e José Murilo de Car- valho as contribuições sugeridas durante a defesa e ao meu orientador professor Manolo G. Florentino. Gostaria de fazer uma menção especial à erudição e à generosidade do embaixador Alberto da Costa e Silva, ao meu orientador no doutorado, em York, professor Paul E. Lovejoy e ao Harriet Tubman Resource Center on Africa Diaspora, pela oportunidade de estar fazendo parte de uma experiência rara em estudos africanos. Este artigo foi em parte reescrito e finali- zado em Lisboa, graças a bolsa concedida pelo Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian.

Instrumentum vocale mallams e alufás: o paradoxo islâmico ... · ... professor Paul E. Lovejoy e ao Harriet Tubman Resource Center on Africa Diaspora, ... segundo Lovejoy, na história

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Instrumentum vocale, mallams e alufás:o paradoxo islâmico da erudição na

diáspora africana no Atlântico*

José Cairus

Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteresdesconhecidos, que se assemelham ao árabe, usado entre os

Ussás, que figurão terem hoje combinado com os Nagôs.[Relatório do chefe de polícia,

Francisco Gonçalves Martins, em 1835]

Introdução

O estudo da diáspora africana no Brasil nas últimas décadas, em con-sonância com os estudos deste tópico principalmente no mundo acadêmi-co anglo-saxão, exige dos historiadores além de dotes interdisciplinares, umgrau crescente de especialização e erudição. A descoberta, ou melhor, aredescoberta dos africanos e a percepção da pluralidade cultura desses in-divíduos reflete-se em uma produção acadêmica erudita e eclética. Abertaa “Caixa de Pandora” da escravidão percebeu-se mais: que não bastava de-

Topoi, Rio de Janeiro, março 2003, pp. 128-164.

* Este artigo é baseado em um dos capítulos da minha dissertação de mestrado apresentada aoPrograma de Pós-graduação em História Social da UFRJ (CAIRUS, José A. T. Jihad, cativeiroe redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Dissertação demestrado, Rio de Janeiro, 2002). Agradeço aos professores Arno Wehling e José Murilo de Car-valho as contribuições sugeridas durante a defesa e ao meu orientador professor Manolo G.Florentino. Gostaria de fazer uma menção especial à erudição e à generosidade do embaixadorAlberto da Costa e Silva, ao meu orientador no doutorado, em York, professor Paul E. Lovejoye ao Harriet Tubman Resource Center on Africa Diaspora, pela oportunidade de estar fazendoparte de uma experiência rara em estudos africanos. Este artigo foi em parte reescrito e finali-zado em Lisboa, graças a bolsa concedida pelo Serviço Internacional da Fundação CalousteGulbenkian.

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tectar-se estruturas culturais monolíticas e exóticas trazidas pelos africanosna sua saga transatlântica mas outrossim, dentro de uma perspectiva bemmais alargada, entender as mudanças radicais ou sutis operadas em soloafricano e transportada nos negreiros. Mudanças que ocorreram muitasvezes na hinterlândia africana, e portanto, longe de qualquer interferênciaou influência européia, então quando muito, encerrados em feitoras e for-talezas ao longa da costa africana e tendo que contar com boa vontade dosrégulos locais. Nas rotas de comércio, quer fosse transariano ou subsariano,cruzando a zona de transição do Sael e penetrando na floresta tropical,afluíam comerciantes, clérigos e revolução, transportando mercadorias (in-cluindo seres humanos), religião e idéias respectivamente.

Grandes espaços geográficos não apenas separam, mas também unem,de acordo com seus caprichos naturais, por uma perspectiva que podería-mos definir como braudeliana. Foi assim no Mediterrâneo, no Sara (cha-mado não por acaso de “Mediterrâneo sariano” por Vitorino MagalhãesGodinho), no Índico e no Atlântico, entre outros. Pois é essa a alma dopresente artigo, oferecer aos leitores a percepção de uma África e conse-qüentemente uma América, conectada a mundos, ideologias e com legis-lação próprias e diversas das existentes no Ocidente. As análises aqui apre-sentadas foram incorporadas a partir de um viés que transcende teoriashistoriográficas estabelecidas, e insere o tópico em um mundo conside-ravelmente maior, o Dar-al-Islam, exilado, recriado e transformado, nestecaso, em terras brasileiras.1

Metodologicamente produziu-se esse artigo a partir de fontes secun-darias especializadas e de documentação primária, que por sinal, repousaplacidamente em arquivos brasileiros.

As fontes e o surgimento de uma jurisprudência islâmica

O suprimento de escravos originários do golfo de Benin mudou dra-maticamente a partir do século XVIII e no decorrer do século XIX. En-quanto o império de Oió foi o principal fornecedor de escravos, as etniasnupe, borgu, hauçá e outras do grupo lingüístico ewe foram maciçamenteenviadas à Costa dos Escravos. No século XIX, com a destruição de Oió,inicia-se o fluxo contínuo de povos falantes do iorubá para os entrepostos

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escravos no golfo de Benin. No entanto, o surgimento do Califado deSocoto, no Sudão Central, criou um trânsito secundário de escravos hauçás.No início do século XIX, surgem pelo menos dois fluxos demográficosdistintos no tráfico da África Ocidental. Um dos fluxos buscava escravosna hinterlândia e os transportava para a costa, outro fez uma rota do litoral,com escravos do sexo masculino, mulheres e crianças, no sentido contrário.

Raramente, segundo Lovejoy, na história da escravidão nas Américas,foi possível correlacionar as trajetórias de origem dos escravos na África comas sociedades escravistas em que viveram na Américas. No caso do golfo deBenin e da Bahia, no século XIX, foi possível conectar origens, inserção notráfico e o estabelecimento desses indivíduos do outro lado do Atlântico.A cultura, ocupação e práticas religiosas são razoavelmente conhecidas equando a origem desses grupos da população escrava baiana é analisada sobesses aspectos, as razões da revolta de 1835 e a capacidade de resistênciaorganizada contra a cultura dominante, especificamente na Bahia, tornam-se mais claras e, ao contrário do que tem sido estabelecido, perfeitamenteviáveis dentro de uma perspectiva africanista.2

Pode-se dizer que existe um consenso sobre a presença de escravos emdiversas sociedades através do tempos, e de legislações específicas que re-gulavam essas relações. Portanto, na primeira parte do artigo o estudo decaso da jurisprudência islâmica maliquita sobre a escravidão pode esclare-cer estruturas sociais e jurídicas preexistentes para certos grupos de africa-nos escravizados enviados para o Brasil

A partir da percepção da existência de uma legislação diversa pode-seespecular, em terreno mais concreto, o impacto dessas diferenças sobre osafricanos originários de sociedades sob a tutela de um corpo de leis consi-deravelmente sofisticada.

A escassez de fontes secundárias para os dois primeiros séculos da eraislâmica pode ser explicada pela falta de documentos que expliquem asmudanças substanciais na jurisprudência sobre a escravidão ocorridas en-tre o Corão e as primeiras fontes legais.3 Esse hiato abrange um período de135 anos entre 632 e 767. Antes disso o Corão e as fontes históricas po-dem ser usados para avaliar as condições primitivas dos escravos no Islã.Para o período posterior a 767, pode ser utilizado o corpo jurídico maliquitaa partir das obras al-Muktasar al-kabir e Muwatta.

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Devido à falta de documentação independente para essa época, algu-mas questões importantes levantadas sobre a historicidade das fontes lite-rárias precisam ser enfocadas. A reconstrução da jurisprudência islâmicasobre a escravidão e sua prática no período da Revelação corânica baseia-se, segundo Brockopp, no terreno das delicadas fontes literárias tradicio-nais do Corão e nos hadiths com a biografia do Profeta. No seu estudo eleutilizou a versão padrão egípcia do Corão como fonte de informação so-bre o tratamento de escravos antes de 632.4

O estudo das primeiras leis revela uma extraordinária disposição dedebater as implicações legais dos versículos corânicos e a tendência de seinterpretar os hadiths para preestabelecer pontos de vista legal. Outra questãoé a admissão clara da escravidão encontrada no Corão (assim como emoutros textos religiosos) e a inexistência de escravos nas sociedades islâmicasatuais. A escravidão, profundamente incorporada à sociedade islâmica nopassado, não faz parte da agenda político-social nem dos mais conservado-res dos estados islâmicos modernos. No final do século XIX, os ideais dejustiça e igualdade entre os crentes prevaleceram sobre a opressiva institui-ção da escravidão.5 A decisão de se modificar um aspecto da lei islâmicanunca havia sido objeto de questionamento. Mudanças de teorias moraistão profundamente arraigadas implicam questões incômodas que resistemao desmantelamento, como no caso de instituições opressivas.

A história da escravidão sobre o tratamento dos escravos no textocorânico e no tempo do Profeta pode ser reconstruída de forma confiáveldevido às informações biográficas preservadas pelos muçulmanos de todoe qualquer individuo próximo ao Profeta. A escravidão doméstica nos sé-culos posteriores é menos conhecida. Entretanto, a vida de escravos pala-cianos, soldados e escravas treinadas como poetisas, tem sido objeto deestudos recentes.6

No tempo da elaboração da lei maliquita, os juristas islâmicos já ha-viam desenvolvido uma estrutura sofisticada e um vocabulário próprio sobrea jurisprudência escrava. Todos os primeiros textos legais compartilhavamalgumas categorizações básicas. Por exemplo, os deveres religiosos (ibadat)eram tratados, primeiramente, seguindo-se a herança, o casamento e odivórcio.7 Os juristas reservaram cerca de cinco capítulos particularmentepara a emancipação de escravos (itq), a relação do liberto com o cliente de

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seu ex-senhor (wala), o escravo a quem era prometido a manumissão apósa morte do senhor (mudabbar), o mukatab (escravo com contrato de eman-cipação) e umm walad (escrava que dava a luz à criança do seu senhor).8 Oponto significativo é a ênfase dada pelos juristas às questões concernentesà emancipação, em detrimento do tratamento devido aos escravos e os seusdeveres. A despeito das limitações das fontes, o material conhecido é sufi-ciente para uma análise ampla de questões específicas. Para a primeira ca-tegoria de emancipação, Malik ibn Anas, baseado na sunnah, proibiu ma-numissões que resultassem em liberdade parcial. Por exemplo, a situaçãoem que apenas um detentor da parte do escravo concedesse a emancipa-ção. Se esse sócio desejasse emancipar sua parte, teria que estar preparadopara comprar a parte do seu outro sócio.9 No caso de herança, Malik ado-tou o princípio básico de que o falecido poderia apenas legar um terço desua propriedade. Os dois terços restantes deveriam ser divididos entre osherdeiros, de acordo com as leis corânicas sobre herança. Portanto, se umsenhor fixasse em testamento a emancipação de escravos com valor corres-pondente acima do terço permitido, muito teria que ser discutido sobrequem realmente poderia ser emancipado. Nessa situação a emancipaçãoparcial era possível. Finalmente Maliki ibn Anas vetava expressamente aemancipação que estipulasse qualquer tipo de serviço do escravo liberto.10

A jurisprudência maliquita tratou também de casos específicos de eman-cipação. No caso do senhor que ferisse seu escravo, ele poderia ser forçado avendê-lo.11 Era proibido ao senhor emancipar escravos quando a emancipa-ção resultasse em perigo para o emancipado.12 Quando o senhor fosse obri-gado a libertar um escravo como punição de algum crime, o senhor era com-pelido a emancipar escravos que lhe causassem prejuízo real.13 Ainda sobreessa questão, o indivíduo que precisasse comprar um escravo para libertá-locomo punição de um crime cometido não poderia mencionar o fato ao ven-dedor de escravos. Presumivelmente essa prática visava impedir que o donoanterior pudesse reduzir o preço original como ato de caridade e, portanto,beneficiar o punido. É preciso lembrar que as regulamentações em questãoforam concebidas para os senhores, não obstante muitas delas terem contri-buído para melhorar a situação dos escravos categorizados pela lei.

As questões envolvendo vínculos de clientela na jurisprudênciamaliquita derivam-se da posição do escravo como parte da estrutura fami-liar. É significativo que Maliki ibn Anas não tenha discutido os benefícios

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das relações de clientela, mas sim essas relações em diferentes situações dedisputa.14 A sofisticação da lei maliquita pode ser constatada pela sua espe-cificidade, como por, exemplo, no caso da escrava grávida durante o pro-cesso de emancipação, e cujo marido continuava a ser escravo.15 Na mes-ma parte do código maliquita, trata da questão de quando o status do escravobloqueia a sucessão da herança. Em alguns casos pode ser bloqueado, porexemplo, no de uma criança nascida de um relacionamento de uma mu-lher livre e um escravo que falece posteriormente. Nestas condições, a he-rança da criança passa para a linha sucessória materna por linhagem agnata.16

No entanto, se o pai, mesmo na condição de escravo, possuir um avô livre,este passa a ter direito sobre sua herança. Finalmente nessas questões en-volvendo os vínculos de clientela, o código maliquita estabeleceu que essarelação não é objeto de negociação e, portanto, não pode ser alienada doseu detentor sob qualquer alegação.17

A contribuição corânica pode ser traduzida na sua ênfase em contex-tualizar o escravo na sociedade e na responsabilidade desta sociedade emrelação aos escravos.18 Essa atitude pode ser percebida nas exortações aobom tratamento dos escravos, à emancipação e à ajuda para que conseguis-sem adquirir a liberdade. A postura corânica em relação à escravidão refle-tiu o desejo de criar uma poderosa comunidade de crentes que sobrepujas-se a estrutura árabe baseada em clãs. Foram sobremaneira significativos osaspectos particulares dos antecedentes culturais enfatizados pelo Corão.Embora houvesse paralelos entre cristãos, judeus e romanos, a visão corânicada escravidão não se enquadrou em nenhum padrão existente, mesmoporque nenhuma dessas culturas foi tão claramente favorável à manumissão.Por último, o cristianismo pode ter enfatizado a igualdade dos escravos emtermos religiosos, o judaísmo, reduzido as punições de adultério aos escra-vos, e os romanos proibindo a prostituição escrava, mas somente o Corãocombinou esses três elementos e provavelmente estabeleceu a legislaçãoescrava mais progressista no seu tempo.

Etnicidade e religião: estruturas complementares

Os exemplos analisados demonstram padrões estabelecidos nos pri-mórdios dos códigos legais islâmicos. A escola maliquita, como já foi ob-servado anteriormente, exerceu uma grande influência no Magrebe e na

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África Ocidental. No século XVIII, Ahmad Baba de Tombuctu escreveu oMi’raj al-su’ud, segundo Hunwick, um tratado único no século XIX, quediscutiu extensivamente a etnografia religiosa na África Ocidental com ques-tões fundamentais como quais seriam os indivíduos passíveis de escraviza-ção e suas justificativas legais.19 O tratado foi utilizado pelo reformador fulaShehu Uthman dan Fodio, que o citou no seu texto sobre escravidão, Bayianwujub al-hijra, atualizando as questões sobre os muçulmanos e os não-mu-çulmanos nas terras hauçás.20 Segundo Hunwick, o manuscrito foi presu-mivelmente produzido em Tuwat, levando-se em consideração que era en-dereçado aos estudiosos da região e também do Marrocos, onde AhmadBaba era conhecido e respeitado e afinal aonde vários manuscritos de suaobra foram encontrados.21

Na introdução de sua obra, Ahmad Baba reproduz uma fatwa deMakhluf Al-Balbali sobre os escravos do Sudão:

A origem da escravidão é a descrença. Os infiéis do Sudão são como essescristãos, exceto aqueles sudan22 considerados majus.23 Para lembrá-lo queentre eles os povos muçulmanos de Kano, alguns de Zakzak, de Katsina, deGobir e todos de Songhai, todos são muçulmanos e, portanto, não podemser legalmente adquiridos.24

De acordo com essa fatwa, a escravidão estava definitivamente ligadaao status religioso do indivíduo, salvo exceções. É importante, no entanto,ressaltar que a identidade muçulmana dos indivíduos não estava totalmenteclara. Esta questão foi debatida continuamente nos tratados jurídico-reli-giosos elaborados pelos doutores da lei islâmica. Portanto, na tentativa deser o mais preciso possível, a categorização era religiosa e étnica.

O próprio Ibn Khaldun, cujo trabalho foi largamente utilizado comoreferência pelos juristas islâmicos, citando a maldição mencionada na Torá,afirmava que não havia menção à “negritude”. A maldição à escravidão li-mitava-se aos descendentes de Cam. Atribuir, segundo ele, a “negritude”a Cam revela equívoco da influência do clima sobre os seres humanos.Portanto, a cor da pele estava ligada às condições climáticas e da adaptabi-lidade dos seres humanos ao meio em que viviam. Quando Ibn Khalduncomparou certos povos negros a bestas, não anatematizou estes em parti-cular, pois incluiu os alvíssimos eslavos nesta categoria. Os abissínios, os

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povos do Mali e de Tacrur, por exemplo, eram igualmente negros. Os pri-meiros eram cristãos e os últimos muçulmanos; no entanto, esses povosnegros foram categorizados de forma distinta. Em outras palavras, é umequívoco racializar de forma estrita os conceitos de Ibn Khaldun.25

O historiador muçulmano em geral estava de acordo com os padrõesislâmicos que enfatizavam o status religioso como preponderante para de-terminar a legalidade de escravidão, aliás o erudito de Túnis foi muito além,elaborando uma interpretação refinada e complexa da visão do homemsobre o “outro”.

Em outra passagem traduzida por Hunwick do manuscrito de AhmadBaba, Al-Jirari em documento aparentemente anterior ao Miraj al-Su’ud,endereçou algumas questões tratadas posteriormente por Ahmad Baba. Sãoquestões sobre os grupos étnicos ou os povos que poderiam ser escraviza-dos legalmente. Vários grupos são listados e, além disso, al-Jirari levantadelicada questão em que os governantes de Songhai estariam escravizandogrupos que pagavam tributos e, portanto, estariam a salvo das incursões dospreadores de escravos. Hunwick argumentou na sua análise dos documen-tos que, embora Ahmad Baba pudesse ter respondido às perguntas de al-Jirari no seu exílio no Marrocos entre 1593-1608, não seria surpresa seAhmad Baba, devido à natureza polêmica das questões, nunca tivesse res-pondido a al-Jirari. Este em sua carta faz algumas considerações reveladorase complexas sobre a escravidão no Islã de acordo com as fontes tradicionais.

No caso de não se saber ao certo seu status, origem e se sua conversão foianterior à captura, seria legal comercializar o indivíduo sem uma completainvestigação? Essa investigação é compulsória ou recomendada? Qual seriao procedimento se chegasse a uma decisão dúbia? O que manda a lei? Apalavra do escravo deve ser aceita ou não? Se a questão resultar em dúvidasobre o impedimento da escravização, ela deve ser anulada? Como é a juris-prudência estabelecida nos casos de divórcio e manumissão? Ou como pro-ceder na dúvida sobre o estado de impureza após saber da necessidade doestado de pureza ser obrigatório? Ou no caso de se renunciar à retaliaçãoquando um pai que matou o filho com uma lança não for condenado à mortedevido à dúvida de sua intencionalidade. Sob que condições a retaliação serianecessária, devido à grande afeição e compaixão do pai?Em uma das respostas do jurista Abu Ishaq b. Hilal,26 ele estabeleceu suadiscordância afirmando que esses crimes provêm de ações inescrupulosas e,

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portanto, pode ser problemático imputar a esses delitos a dúvida sobre ascondições em que foram cometidos. Al-Qarafi endossou a validade dessesprincípios na Dhakhira na parte que trata do consenso.27 A única diferençade opinião foi quanto à aplicação do princípio. Entretanto, isso depende dadefinição de ‘dúvida’. Para al-Hilali, ‘a dúvida é o conflito de duas possibi-lidades’. Esta definição se baseou no dito do Profeta (a paz e as bênçãos so-bre ele): ‘O que é permitido é claro, o que é proibido é claro. O que ficaentre esses conceitos é duvidoso, e sobre o qual muitos podem discorrer’.28

A escravidão, como pode ser percebido, atormentava os juristas islâ-micos. São levantadas questões jurídicas complexas sobre o dolo e a culpa-bilidade, interpretações legais divergentes e convergentes. Todavia, não hádúvida a respeito da discussão em torno da afiliação religiosa. Na fatwa “Oacesso ao caminho da compreensão da Lei referente aos Negros captura-dos”, do próprio Ahmad Baba, ele estabelece o mesmo discurso centradono binômio religião/etnia.29

No final século XVII, no Marrocos, ocorreu uma amarga discussãoentre dois eruditos islâmicos envolvendo a escravização de indivíduos parafins militares na região de Marrakesh. Sidi Muhammad ibn Abdal Qadiral-Fasi, defendendo uma investigação mais apurada antes da captura deindivíduos de status desconhecido, escreveu ao ulemá de Fez afirmando:

... a liberdade é a condição básica do homem, se o status-escravo do indiví-duo não pode ser estabelecido com precisão, apenas se pode afirmar que oindivíduo é senhor de sua alma. Portanto, ninguém tem autoridade sobreesse indivíduo e ele não pode ser comprado ou vendido. Essa opinião é ba-seada no Kitab (livro, o Alcorão), na sunnah (tradição) e na Ijma (consensodos eruditos).30

Por outro lado, M. Ismail, que estava encarregado de capturar e alistarescravos sob o regime alauíta no Marrocos, alegava ter recebido aprovaçãodo ulemá do oriente e que realizava uma cuidadosa investigação com evi-dências concretas da origem escrava do indivíduo. Essa discussão sobre ostatus desses negros recrutados compulsoriamente se estendeu por meio defatwas condenando veementemente a escravização de negros muçulmanos.31

Cerca de dois séculos mais tarde, em meio um novo turbilhãoreformador islâmico, Uthman dan Fodio incluiu na sua agenda político-social suas preocupações com a escravidão, particularmente a escravização

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de muçulmanos e as restrições à conversão de escravos ao Islã.32 SegundoB.G. Martin, Uthman dan Fodio foi o homem talhado para promover arevolução da comunidade islâmica no Sudão Central. Ele era originário deum tradicional clã torodbe, cujos ancestrais imigraram paras as terras hauçásno século XV. Erudição e intelectualidade eram partes integrantes do seumundo. Ele foi instruído em estudos do texto corânico, na gramática ára-be, na lei maliquita e em todas as demais tradições islâmicas. De acordocom os costumes clânicos, estudou com seus tios letrados. Porém, esseconhecimento familiar foi suplantado pelos mestres tuaregues do sul doSaara. Entre esses estava Jibril bin Umar al Aqdasi, que havia realizado ohajj duas vezes e vivido no Egito por longo tempo. Jibril iniciou dan Fodioem três ordens sufis, a Qadiria, Khalawatia e Shadilia.33 O mestre de danFodio assumiu uma atitude intolerante em relação aos “pecados graves”,segundo ele, cometidos por muçulmanos. A doutrina de Jibril estava pró-xima das escolas teológicas islâmicas medievais Khawaji e Mu’tazila.Uthman dan Fodio, no entanto, iria futuramente discordar das idéias doseu mestre e estabelecer uma ortodoxia menos radical.34 O contexto per-mite entender as possíveis motivações e influências que serviram de panode fundo para a política dos líderes de Socoto e para suas ações sobre osmuçulmanos cativos.35 Os reformadores islâmicos procuravam estabelecerparâmetros para definir quem era muçulmano. Esta categorização, toda-via, revelou-se delicada e a escravização se tornou alvo de intenso debateintelectual. Com o início das hostilidades que deram origem ao califadode Socoto, essa questão se resolveu de forma pragmática passando a definiros padrões de escravização em termos práticos de apoiar ou não o jihad.De forma análoga ao que foi constatado no século XVII com Ahmad Baba,no século XVIII e XIX ocorreram sofisticados debates intelectuais sobre adefinição de um padrão de comportamento e práticas islâmicas. Uthmandan Fodio na sua obra Tamiyz al-Muslim min al-kafirin evitou polêmicasteológicas e escreveu seu texto “para ser entendido pelos leigos” estabele-cendo oito categorias de indivíduos existentes no Sudão Central:

“O ulemás cuja fé é sólida; eles realizam ghus (ablução maior) depois da janaba(um estado de maior impureza ritual); eles realizam a ablução (com água)antes das orações e não utilizam o recurso do tayammum (ablução alterna-

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tiva com areia) exceto em casos de necessidade; eles abandonaram qualquervestígio de descrença, como veneração de pedras, árvores, sacrifício de ani-mais.36 Os que não negavam nenhuma parte da shari’a. Esses são definitiva-mente muçulmanos.1- Os talaba (os que fazem exatamente como os ulemás acima) são definiti-vamente muçulmanos.2- Aqueles que ouvem e praticam os preceitos estabelecidos pelos ulemás eos talabas.3- Os infiéis que nunca aceitaram o Islã,37 nesse caso são claramente infiéis.4- Os que misturam práticas infiéis e islâmicas. São definitivamente infiéis.38

5- A sexta categoria, como a quinta, mescla práticas pagãs com islâmicas enegam (algumas) determinações da shari’a. São também infiéis.6- A categoria dos inovadores (bida). Os juristas emitiram parecer sobre essacategoria, porém existe um consenso que se trata de muçulmanos desobe-dientes.7- As pessoas ignorantes que abraçaram o Islã sem possuir conhecimentosuficiente. Afirmam sua Fé sem acreditar e não se interessam em aprimorarseus conhecimentos.”39

As primeiras três categorias eram constituídas de bons muçulmanosque aderiram consideravelmente à shari’a. A quarta, de muçulmanos com-pletamente infiéis. Movendo-se para o centro da escala, a sétima era forma-da por muçulmanos desobedientes e a oitava de ignorantes. Na quinta e nasexta estavam os sincréticos, os primeiros mesclando práticas islâmicas compagãs e os últimos desprezando o Islã e negando alguns princípios básicos.

Note-se porém que o tom moderado usado no documento sugere quesua compilação tenha acontecido no período pós-jihad. Ou seja, essadatação é fundamental em uma análise de quem visa estabelecer padrõesde islamização na diáspora africana. Qualquer tentativa que não leve emconsideração a historicidade dessas definições é imprecisa e incompleta. Asdefinições historicamente não se concretizaram de forma monolítica, nemmesmo dentro de um curto espaço de tempo. Antes e durante o conflito,esses parâmetros variaram de acordo com as agruras do conflito. É, por-tanto, compreensível que uma vez encerrado os combates, o líder fula te-nha tido atitudes mais conciliadoras na tentativa de estabelecer uma paxislamica no Sudão central, o que aliás não ocorreu. Seria interessante iden-tificar, segundo El Masri, em que localidades do Sudão Central havia efe-

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tivamente uma maioria islâmica receptiva ao discurso reformador de danFodio e de sua entourage. Essa classificação, no entanto, não pode ser feitacom as fontes disponíveis, e dessa maneira uma categorização mais prag-mática foi feita em termos étnicos.40

O padrão de definição étnico-religioso não constitui novidade nomundo islâmico nem deixou de ser utilizado nos dias atuais. Como já foicitado anteriormente, existiu um objetivo claro na revelação corânica emcriar uma comunidade coesa de crentes além dos limites de uma sociedadeárabe tribal. A expansão islâmica foi incorporando paulatinamente diferentespovos e culturas. Mesmo levando-se em consideração o caráter universalis-ta do Islã, a identidade étnica sempre forneceu a amálgama necessária quandoa definição religiosa se revelou inconclusa. Fredrick Barth enfatizou:

... que os sistemas que têm em comum o princípio de que a identidade étni-ca implica uma série de restrições quanto aos tipos de papel que um indiví-duo pode assumir, e quantos parceiros ele pode escolher para cada tipo detransação.41 Em outras palavras, se consideramos uma identidade étnicacomo status, este será superior em relação à maioria dos outros status e defi-nirá a constelação permissível de status, ou personalidades sociais, que umindivíduo com uma dada identidade étnica pode assumir. Neste sentido, aidentidade étnica é semelhante ao sexo e à posição social, pois ocasiona res-trições em todas as áreas de atividade e não apenas em determinadas situa-ções sociais.42

Na tentativa de desatar o nó antropológico, no caso islâmico é preci-so destacar algumas particularidades. Toda a tradição profética dos hadithsenfatizou a igualdade entre os crentes. Não há justificativa nas fontesislâmicas para qualquer superioridade étnica ou tribal.43 Esta premissa,porém, não se traduziu inteiramente em termos práticos, ao contrário, serviude complemento na categorização dos muçulmanos. Existe também umfator fundamental que foi a utilização do idioma árabe como vernáculosagrado disseminado pela revelação corânica, que obrigou os povos con-vertidos a possuírem, no mínimo, rudimentos lingüísticos do árabe e, con-seqüentemente, alguns dos seus hábitos culturais. A precedência de umaetnia sobre outra na aderência ao Islã passou a ser considerada um statussuperior, mas de forma nenhuma determinante em termos de limite doindivíduo.

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Na contramão da afirmação de Barth, a identidade étnica não podeser comparada com o gênero. De forma análoga, a comparação com a po-sição social procede, pois ambos, status étnico e social possuem mobilidadee são passíveis de mudança. O gênero, ao contrário, tem limites claramentedefinidos tanto no que diz respeito a deveres, direitos e espaço social.

O caso dos pathans do Afeganistão estudado por Barth é emblemático.Segundo ele, é condição sine qua non para um pathan ser um muçulmanoortodoxo. Neste caso, o termo ortodoxo tem a conotação de praticante esunita. Os pathans possuem um ancestral putativo que foi a Medina, ondeencontrou o Profeta e se converteu. A partir dessa tradição, a etnia pathanreivindica uma adesão de “primeira hora” e evitando um histórico de con-versão tardia como conseqüência de uma expansão manu militare.44

O código de vida e os costumes são fundamentais para se definir umindivíduo como pathan. A língua é apenas um dos elementos na constru-ção dessa identidade, mas não a mais importante. Paradigmaticamente porintermédio do exemplo pathan, pode se entender outros grupos de povosislamizados e concluir que identidades podem ser construídas além doslimites de grupos lingüísticos. Neste caso, os pathans se autodefinem comosendo pashto não aquele que apenas fala pashto; neste sentido, “agir comoum pashto significa viver de acordo um código um bastante severo, em ter-mos do qual alguns falantes de pashto claramente estão excluídos”.45

O xarifismo magrebino e subsaariano também podem ser vistos su-perficialmente como uma forma de estabelecer um status islâmico supe-rior. A descendência do Profeta podia determinar uma aceitação de lide-rança inconteste e uma ascensão social indispensável para clérigos sob certascircunstâncias.46 Não obstante, em muitas ocasiões, essas discussões torna-rem-se estéreis e alvo de controvérsias. Todavia, o xarifismo assumiu con-tornos endêmicos durante o século XIX nos variados movimentos que as-solaram a África islâmica.47

Portanto, a categorização étnico-religiosa de Ahmad Baba no séculoXVII não era a mesma de Uthman dan Fodio no século XIX. Em dois sé-culos, novas populações foram incorporadas ao Islã e as definições experi-mentaram mudanças de acordo com as necessidades políticas. Havia trêsgrupos étnicos majoritários na Hauçalândia: hauçás, tuaregues e fulas. Astrês etnias possuíam grupos islamizados e não-islamizados e, de acordo com

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El Masri, os fulas eram a etnia que exibia níveis de islamização e erudiçãomais sofisticados.48 Tanto dan Fodio como seu filho Muhammad Bellocitavam as fatwas de Ahmad Baba que enfatizavam o papel preponderantedos fulas nos assuntos islâmicos. No entanto, os pastores e os fulas Sullebawaeram pagãos ou apenas nominalmente muçulmanos. Não sendo possívelperceber em nenhuma etnia subsaariana uma identificação absoluta como Islã, foi necessário recorrer à etnicidade como parâmetro no intuito declassificar os indivíduos.

De acordo com Jibril ibn Umar, mestre de dan Fodio por volta de1800, a “venda de homens livres” era proibida porque era sabido que mu-çulmanos estavam sendo escravizados e vendidos. Para Jibril, a escraviza-ção de muçulmanos, o adultério, o consumo de álcool e o assassinato eramcrimes similares e gravíssimos.

Uthman dan Fodio, na sua obra Masa’il il muhimma, em 1812, esta-beleceu que a escravização de qualquer fulas era ilegal. Esta premissa era ba-seada no fato de que havia um consenso de que os fulas eram identificadosde longa data com o Islã. Era, portanto, segundo ele, a interdição destaspráticas que distinguia os muçulmanos.49 O poema em língua fulfube Tabbathakika previa que “aquele que escravizar um homem livre deverá ser ator-mentado. O fogo do inferno o escravizará, fique certo disso!”.50 No docu-mento considerado como o manifesto do jihad de Socoto, dan Fodio pro-clamou que a escravização de indivíduos livres de nascimento entre osmuçulmanos era ilegal, quer residissem em território islâmico ou em terri-tório inimigo.51 A preocupação óbvia dos líderes do jihad com a escraviza-ção considerada ilegal parece refletir uma prática intensa desta atividade.Muhammad Bello escreveu no Miftah al-Sadad que a escravização de fulas nãoera legal, a despeito de existir no Sudão Central fulas não-muçulmanos.52

Os movimentos reformadores islâmicos no Sudão Central foram pro-cessos consideravelmente complexos. Esses movimentos revelam o ápicedo papel dos clérigos na difusão e reforma do Islã nas áreas em questão.Com os eruditos religiosos sempre ligados a irmandades e detentores deum conhecimento islâmico refinado, a reforma ganha contornos aparen-temente conflitantes: o Islã militante e intelectualizado, a proteção e a re-denção de muçulmanos e o combate ao tráfico de muçulmanos escraviza-dos. Simultaneamente, o tráfico aumentou consideravelmente com a oferta

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crescente de indivíduos originários de uma região de conflito e uma de-manda igualmente crescente do tráfico atlântico. Pode-se detectar comomotivo do intenso debate jurídico-intelectual as tentativas de se delimitaros parâmetros religiosos dos indivíduos. Em outras palavras, fixar padrõesreligiosos era a referência que podia determinar os indivíduos passíveis deescravização. Como foi observado em outras ocasiões, essas tentativas nãoobtiveram êxito. Foi igualmente necessário imputar padrões de etnicidadesimultaneamente aos conceitos religiosos historicamente dúbios.

Segundo a teoria de Levtzion, quando os clérigos assumem o poder, oIslã torna-se militante, reformador e revolucionário. Sem dúvida, de acor-do com esse paradigma, o modelo pode ser aplicado em termos gerais atodos os movimentos reformadores islâmicos na África do século XIX, eno século XX a movimentos contemporâneos no Sudão, no Irã e no casoespecífico da ascensão da comunidade xiita libanesa.53

De volta aos jihads do Sudão Central, o conflito intenso, nas terrashauçás inicialmente e posteriormente em direção à Iorubalândia, no mori-bundo estado de Oió produziu prisioneiros de diversos extratos sociais ereligiosos. Portanto, o tráfico não distinguiu aristocratas de camponeses, nemeruditos de indivíduos parcialmente islamizados ou de adeptos das religiõestradicionais africanas. A trajetória desses indivíduos em terras americanasfaz parte de uma nova realidade que abrange um leque de atitudes, da aco-modação à rebelião. Adotando uma perspectiva africanista e um fluxo maisdinâmico no Atlântico, as áreas diversas do continente americano em queesses indivíduos se instalaram possui uma relevância limitada. Ao inverter aperspectiva dominante, o enfoque aqui proposto demonstra que esses afri-canos adultos e saudáveis priorizados pelo tráfico atlântico não se “crioliza-ram” facilmente, mas ao contrário, buscaram intensamente estabelecer emseus mundos as suas práticas sob condições quase sempre adversas.54

De forma análoga, um aspecto que pode ser percebido em Salvadorem 1835 é que os clérigos eruditos e intérpretes da lei assumem a direçãodos destinos da comunidade. Dentro de um padrão historicamente coe-rente, o Islã tornar-se-á militante, organizado de em torno de um lideran-ça letrada e de acordo com os padrões de uma confraria rebelde.

Quando o profeta Muhammad conquistou a cidade de Meca, orde-nou que Bilal, o muezim africano liberto, fizesse o chamado (azzan) para

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a oração.55 O chamado melodioso e comovente de Bilal ecoou por séculoscruzando desertos, savanas e florestas até atingir as margens da costa afri-cana do Atlântico.56

De acordo com Keneth Harrow, a literatura islâmica busca localizaridentidades muçulmanas em indivíduos conscientes dessa condição, nacondição arautos ou críticos, mas que refletem indubitavelmente em seusescritos, um discurso identificado com o Islã.57 A literatura islâmica surgiuda interseção entre cultura, discurso, texto e leitor. Isto se dá em relação atextos específicos, assim como leitores a específicos, e às maneiras pelas quaiso idioma foi empregado para construir textos e idéias relacionados.

A história da escrita islâmica na África pode ser concebida como de-senvolvimento das suas relações com o Oriente Médio e o Magrebe. Porestar geograficamente distanciada das terras centrais do Islã, a literaturaafricana ficou caracterizada pelo sincretismo e exposta a empréstimos dacultura local. As formas mais antigas podem ser entendidas comoarabocêntricas, em que a tradição do Islã “puro” parece ser extraída do âmagoda civilização árabe e em contraste com as formas “impuras” e impregna-das de tradições subsaarianas que fazem parte do processo de naturalizaçãodo Islã em terras africanas. Na África, como alhures, existia um estado detensão permanente entre a pureza e a impureza da literatura islâmica. En-tretanto, sob uma perspectiva menos preconceituosa, o rebaixamentosincrético tão deplorado pelos puristas é uma característica do desenvolvi-mento de um pensamento islâmico por intermédio de um processo histó-rico no Islã subsaariano.

Ao sul dos reinos de Mali e de Songai, floresceram centros urbanosonde o Islã se estabeleceu gradualmente principalmente a partir do séculoXV. As cidades hauçás de Kano e Katsina tornaram-se centros de intensaatividade islâmica. A tradição oral da Hauçalândia foi preservada atravésda memória dos antigos movimentos reformistas, como pode ser visto nodesenvolvimento dos labarai (narrativas orais). Em uma narrativa, em par-ticular, relata-se o confronto promovido por um soberano entre um sacer-dote bori e um mallam muçulmano. O soberano em questão colocou umcavalo dentro de uma casa sem que ninguém mais tivesse conhecimentodo fato. Em seguida perguntou ao sacerdote bori o que havia na casa; osacerdote respondeu que era um cavalo. Quando formulou ao mallam a

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mesma pergunta, este pediu a orientação de Allah e respondeu de formatotalmente diferente: dentro da casa havia um touro branco com chifres.O soberano na expectativa de encontrar o cavalo, ordena que se derrube asparedes da casa. Para espanto do soberano, um touro branco com chifresfoi encontrado. O soberano esperou em vão por anos pela transformaçãodo touro em cavalo e por meio desse milagre, Allah assegurou o triunfo daverdadeira fé em Katsina.58

O confronto entre o sacerdote bori e o mallam estabeleceu a estrutu-ra-padrão encontrada em muitas tradições orais africanas: a disputa entrepoderes mágicos como elemento central. O primeiro significado dessa dis-puta dialética é o triunfo do poder em decorrência da vitória do mallam. Atransformação mágica da besta sugere hermeneuticamente a intervençãodivina vinculada a importantes questões de contenda, jihad e interpreta-ção (ijtihad). A subordinação da identidade da besta à vontade de Allah e ademolição do muro da casa cercam a milagrosa transformação que, simul-taneamente, sugere significados místicos compatíveis com a tradição lite-rária da sabedoria islâmica. A inclusão dessa parábola no contexto especí-fico da narrativa oral sobre a conversão dos hauçás de Katsina demonstraaceitação do Islã por parte do soberano em um importante centro urbanoonde ocorreram os grandes jihads do século XIX.

Curiosamente, muitos sacerdotes bori de Kano que se confrontavamcom os mallans de Katsina eram também muçulmanos. A narrativa enfa-tiza soluções absolutas quando proclama: “Somente o Islã. O Islã e nadamais”. O Islã surge como vitorioso e conquistador em um primeiro mo-mento, mas o próprio texto deixa transparecer existência de um discursoreligioso preexistente.59 Essa narrativa oral pode ser interpretada sob doisaspectos principais: o primeiro e mais explícito da conquista e dissemina-ção do Islã pelos mallans, e o segundo, de forma mais implícita, do triunfode Katsina sobre Kano.

De acordo com alguns autores, o Islã foi aceito com relativa facilida-de na África devido a sua similaridade com a cosmologia das religiões indí-genas.60 Owasa-Ansah, no entanto, não concorda com essa premissa apli-cada de forma genérica, mas reconhece que, no caso específico das precese amuletos, a teoria da similaridade se encaixa perfeitamente.61

Os manuscritos produzidos pelos africanos muçulmanos na Bahiapodem ser definidos, de modo geral, como a reprodução de textos corânicos

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e du’ás.62 Em alguns documentos encontram-se fórmulas e desenhos queindicam a utilização de conhecimento esotérico (ilm al-batin). Como oschamados “papéis árabes” poderiam esclarecer os pontos ainda obscurosda revolta? As traduções feitas pelo hauçá Albino, por Monteil e por Reichartpraticamente dissecaram os manuscritos. O objetivo do trabalho não foireexaminar os referidos manuscritos e deduzir alguma ordenação lógica ousignificados pela análise das suratas (versículos corânicos) e du’as (súplicas).Concentramo-nos em trabalhar com manuscritos pouco trabalhados e cominterpretações incompletas. A exegese desse corpus documental faz inega-velmente parte da literatura produzida no Brasil no século XIX, buscandodocumentos e motivações similares produzidos na África e no OrienteMédio. A análise dos manuscritos constitui um manancial riquíssimo deinformações; por isso ressaltamos que a pesquisa de Monteil/Reichert nãoesgotou as possibilidades de análise dos manuscritos do Arquivo da Bahiacomo fonte histórica. Todavia, por questões relacionadas à delimitação eextensão do presente trabalho, fizemos a opção por enfatizar um corpodocumental em detrimento do outro. Existem dois corpos principais dedocumentos manuscritos em árabe no Brasil: o primeiro, já mencionado etraduzido que se encontra no Arquivo Público de Estado da Bahia; e o se-gundo que se encontra no Instituto Histórico do Rio de Janeiro no Rio deJaneiro, traduzido recentemente e que será objeto do nosso estudo.63

Segundo Diouf, um grande número de muçulmanos chegou ao NovoMundo alfabetizado em árabe e nos idiomas africanos que utilizavam oalfabeto árabe. Em contrapartida, outros grupos de africanos se origina-ram de culturas orais e a alfabetização entre escravos na América eradesencorajada. Desse modo, a capacidade de ler e escrever tornou-se umadistinção dos escravos muçulmanos.64

De acordo com Austin, a maioria dos senhores de escravos precisavasuprimir práticas que pudessem ser usadas para unir ou orientar os cativos.Se necessário, estabeleciam estratégias para cooptar determinados indiví-duos, reconhecendo e recompensando suas habilidades supostamente ex-cepcionais com um poder limitado sobre os outros escravos.65

O escritor e etnólogo William Hodgson, que viveu na África do Nor-te, tentou realizar uma pesquisa sobre os escravos muçulmanos alfabetiza-dos na América do Sul. Hodgson, no entanto, foi pressionado a abando-nar a tarefa devido à hostilidade dos donos de escravos. Segundo Hodgson,

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a hostilidade dos proprietários de escravos brasileiros não se devia apenasao já conhecido perigo potencial da literatura entre os africanos muçulma-nos. Esta animosidade, aos olhos escravistas, advinha da ameaça ao domí-nio intelectual senhorial baseado na premissa da inferioridade inerente aoafricano, e sua conseqüente incapacidade de produzir manifestações eru-ditas. Estas habilidades intelectuais constituiriam um reconhecimento tá-cito de humanidade e civilização originais e, portanto, sem nenhuma rela-ção com o cristianismo e seu suposto projeto civilizador. O fato de essesindivíduos possuírem a capacidade de ler e escrever revelava uma imagemque não condizia com a do selvagem primitivo e, conseqüentemente, pas-sível de ser escravizado. A partir da desmistificação dessa premissa, os fun-damentos do sistema escravista podiam ser questionados.66 De acordo comDiouf, esse argumento se revelou tão poderoso que nos Estados Unidosadotou-se um subterfúgio no mínimo original. Os norte-americanos pas-saram a negar a origem africana desses muçulmanos “excepcionais”, retra-tando-os como árabes ou mouros.67

Goody ressalta o poder da cultura escrita sobre a cultura oral, o poderque permite a primeira de dominar a última em vários aspectos. Este pro-cesso envolve algumas mudanças em nossas operações cognitivas, nesse casocom ajuda de textos e por meios denominados “tecnologias do intelecto”.O poder da escrita pode se fundamentar sobre vários elementos dentro deuma sociedade em particular. Isso abrange não apenas o poder hegemônicoque controla os meios de comunicação dos grupos dominantes, e freqüen-temente os religiosos, mas também os dominados que podem se utilizardesses meios para se inserir no meio ambiente social. Ele considerou para-digmático o exemplo dos escravos e libertos africanos na Bahia no iniciodo século XIX.68

Ainda de acordo com Goody, as religiões de tradição oral não conver-tem o indivíduo, apenas o tornam membro de um sistema político (tribo)e limitam-no, em grau maior ou menor, às crenças do grupo. Conversões,portanto, envolvem um conceito diferente de religião que exige compro-metimento com textos estabelecidos (crenças e rituais) e envolve a renún-cia de um conjunto de práticas em favor de outras. Dessa forma, o Islãtornou-se um aparato supra-étnico.69

O tráfico escravo não fez distinção social entre os indivíduos trazidospara a América, mas a demanda americana possuía seus próprios padrões.

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Por outro lado, a oferta africana, no caso específico da África Ocidental,devido às contingências de um conflito intermitente e à dinâmica do seutráfico interno, igualmente lançou indivíduos dos mais variados extratossociais no tráfico atlântico.

O resultado dessa disparidade social refletiu-se no nível de educaçãoe conhecimento adquiridos em terras africanas e na produção dos textosmanuscritos encontrados em épocas e situações diversas. As condiçõesadversas da escravidão dificultaram sobremaneira o desenvolvimento deuma comunidade com liberdade de praticar a religião publicamente. To-davia, a produção intelectual dos africanos muçulmanos na América foiprovavelmente muito maior do que a maioria das pessoas imagina oumesmo mais significativa do que os especialistas possam aceitar.70

O estudo do conhecimento islâmico enfoca basicamente ensaios ecomentários. Os estudiosos muçulmanos freqüentemente lêem e discutemos trechos clássicos, adquirindo assim um conhecimento genérico da his-tória islâmica, tratados jurídicos e assuntos relacionados com a devoçãoreligiosa. Esta tradição literária estava profundamente arraigada na ÁfricaOcidental e sabidamente espalhou-se no Novo Mundo.71

Os africanos muçulmanos enviados pelo tráfico podiam ser jovensainda com conhecimentos rudimentares das primeiras letras corânicas,professores, ulama ou marabutos eruditos.72 Os segmentos mais dinâmi-cos da população muçulmana eram constituídos por indivíduos eruditos,viajados, cosmopolitas e poliglotas. Em outras palavras, indivíduos comrecursos, mesmo sob condições adversas e em terras estranhas. De acordocom Diouf não há dúvida que muçulmanos iletrados foram enviados paraa América, mas certas passagens sobre a vida desses muçulmanos atestadosem documentos indicam a presença de um numero significativo de indi-víduos oriundos de uma elite intelectual.73

A educação islâmica primordialmente enfatizou o acesso do crenteao Corão, a rituais específicos, normas éticas e padrões de comportamentotodos derivados da mensagem divina e da tradição do Profeta. De formaanáloga transmitiu também padrões mais abrangentes além da alfabetiza-ção elementar. Proveu o estudante igualmente de direito islâmico, da teo-logia, do misticismo, da gramática árabe, da poesia, da literatura, da histó-ria, da aritmética, da astronomia ligada à terapias médico-mágicas.74 Esse

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complexo intricado de aprendizado que envolvia crianças e idosos possuíauma história de mais de mil anos na África subsaariana e tornou-se umimportante diferencial de mediação nas sociedades africanas.75

Nas diferentes regiões onde o Islã se estabeleceu, a educação islâmicanão apenas separou as comunidades vizinhas, mas também instituiu pa-drões importantes de cultura comuns para muçulmanos e não-muçulma-nos. Os traços desse longo idílio podem ser encontrados na língua, folclore,em lendas, vestimenta, nas datas celebradas em comum e num corpo abran-gente de práticas terapêuticas e mágicas, em parte locais, em parte de acor-do com padrões islâmicos.76

Na devassa que foi instaurada em decorrência da Revolta Malê em1835 se encontrou uma grande quantidade de documentos escritos emárabe. A tradução do escravo hauçá Albino durante o processo criminalresumiu o conteúdo de uma parte dos papéis árabes apreendidos pelasautoridades.77

A tradução de Albino foi um na verdade um inventário dos “papéisárabes” encontrados pelas autoridades. Os exercícios de caligrafia e osamuletos foram em parte preservados.Todavia, o plano dos rebeldes nooriginal não foi encontrado.78 A menção feita por Albino às tabuas utiliza-das pelos rebeldes é um exercício de memorização corânico largamenteutilizado na África Ocidental chamado wala uassa.79 Conforme Reis ob-servou no relato do diplomata inglês Hugh Clapperton em visita ao Califadode Socoto em 1826.80

Assim, bebendo as palavras de Allah nas ile kewu,81 os africanos na Bahiatambém memorizavam e preservavam as passagens corânicas, além de obterproteção mística. Da mesma forma que jejuavam durante o mês de Ramadãe bebiam as “palavras de Deus” na quebra do jejum (ifhtar) ao anoitecer.82

Danmole enfatizou o uso de amuletos pelos mudjadeens do emiradode Ilorin na Iorubalândia setentrional.O recurso desses artefatos era comumna Nigéria pré-colonial e na África Ocidental em geral. Em Ilorin os mallansestavam profundamente envolvidos com os negócios da guerra.83 Os reli-giosos confeccionavam os artefatos chamados ondè yfunpá, assim comooutros amuletos para os guerreiros.84 Todos os amuletos eram feitos comtextos corânicos. Além desses amuletos, os soldados de Ilorin carregavamum calabash contendo remédios que assegurariam a vitória das tropas

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islâmicas (al-jamat islamiya). Outros amuletos eram enterrados por espi-ões em território inimigo com o objetivo de inutilizar suas armas. Umasubstância líquida chamada hantu era também espalhada para enfraqueceros inimigos. As preces e outras atividades espirituais aparentemente con-tribuíram de forma decisiva na performance militar do exército de Ilorin ede outras regiões da Nigéria. Através das preces o moral das tropas atingiao ápice. Danmole observou:

As preces também preparava-os psicologicamente para os perigos do com-bate. A crença na eficácia dos amuletos e das preces contribuíam para queos guerreiros exibissem uma sensação de invencibilidade. Talvez a vantagempsicológica mais importante das preces e amuletos por parte dos exércitosdo emirado tenha sido a crença que a perda da vida no campo de batalhaseria recompensada abundantemente no Paraíso. Conseqüentemente, oscombatentes de Ilorin marchavam para guerra no século XIX certos de queDeus estava com eles.85

É importante ressaltar que a confecção de amuletos por mallans paraguerreiros não estava restrita a Ilorin. Os guerreiros de outras partes daIorubalândia também utilizavam os serviços místicos dos mallans.86 A si-milaridade das práticas islâmicas na África e na Bahia não deixa dúvidas dasua origem comum.

Os mesmos procedimentos místicos foram utilizados pelas tropas deIlorin e pelos malês em Salvador. Ou seja, foram “plantados” amuletos notrajeto dos rebeldes que anulariam a eficácia das armas de fogo das tropasbaianas. Sabidamente esse artifício não funcionou em 1835.

No Brasil e em Portugal, por exemplo, o amuleto conhecido comomandinga aparece no século XVIII. O termo foi freqüentemente utilizadonos processos da Inquisição contra os africanos e seus descendentes, do Brasilàs ilhas do Mediterrâneo.87 O relato do Francisco Gonçalves Martins, che-fe de polícia de Salvador, destacou a importância dos talismãs:

O certo é que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes faziampersuadir aos miseráveis, que certos papéis os livrariam da morte, d’ondevem encontrar-se nos corpos mortos grande porção dos direitos, e nas ves-timentas ricas e esquisitas, que figurão pertencer aos chefes, e que foramachados em algumas buscas.88

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Já no Rio de Janeiro na correspondência do chefe de polícia Eusébiode Queiroz ao Ministro da Justiça Manoel Alves Branco no fatídico ano de1835 foi relatado:

Fiz vir a minha presença um preto Nagô para interrogar a respeito dos Nagôsda Bahia e daquelle ouvi dizer que os Nagôs não sabem ler, nem escrever emandam educar alguns rapazes em sua Nação vizinha e que usam barbas com-pridas no queixo, informo os quais (?) de escripta por conseqüência os escriptosnão são em língua Nagô (?) outro idioma que só os Nagôs (?) entendem.89

Na correspondência policial aparecem os primeiros sinais da presen-ça muçulmana na Corte com a apreensão do amuleto muçulmano elapolícia. De acordo com o conteúdo pode-se perceber claramente que setrata de um amuleto africano de acordo com os padrões do existentes naBahia ou em qualquer área do mundo islâmico.

Na primeira parte do documento, o diligente chefe de polícia da cor-te relata o depoimento do africano encarregado da tradução. Este parececonfirmar a assertiva de alguns depoimentos dos processos na Bahia. Osnagôs não possuíam erudição suficiente nos assuntos islâmicos e manda-vam educar seus jovens em estados islâmicos vizinhos.90

Na interpretação de Líbano Soares, o amuleto revelou além das pro-priedades protetoras inerentes ao artefato, uma distensão interna dos afri-canos. Corroborando essa interpretação e aprofundando um pouco mais adiscussão, os estudiosos da diáspora muçulmana têm desenvolvido a teo-ria da existência de duas correntes de resistência islâmica escrava na Amé-rica. Essas distensões aparentemente não foram suprimidas em face daopressão da escravidão e, conseqüentemente, os muçulmanos na diásporanão tiveram uma percepção uniforme da escravidão assim como nas estra-tégias de resistência para superar essa condição.91 Porém, na tentativa deentender melhor as distensões detectadas na documentação, faz sentido queesses indivíduos tenham reagido de acordo com as diferentes correntesideológicas existentes na África Ocidental. Pode-se especular que houve porparte dos africanos muçulmanos a utilização de estratégias de acordo comafiliações ideológicas e as oportunidades oferecidas pelo cativeiro.92

Uma das vertentes políticas identificadas no documento revela umcomprometimento com a prática militante do jihad. Estes, na ÁfricaOcidental, condenavam a escravização de muçulmanos livres, a venda de

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escravos para os cristãos e agressivamente buscavam a imposição da leiislâmica. Todavia, o Islã na África Ocidental possuía também uma tradi-ção de acomodação em Estados em que os governantes muçulmanos fre-qüentemente toleravam as práticas religiosas tradicionais dos camponeses.Esta atitude foi veementemente condenada pelos reformadores islâmicos.Wilks, por exemplo, observou essa tradição islâmica “quietista”, que tole-rava práticas tradicionais e em algumas ocasiões opunha-se ao jihad.93 Se-gundo Willis, os “quietistas” representavam uma corrente incapaz de cor-responder às expectativas reformadoras do Islã africano do século XIII daHégira. Os mudjahidin, embebidos da austeridade revolucionária, recusa-ram-se a fazer concessões. O jihad era o único caminho capaz de romper oimpasse entre o Islã e a descrença.94 Uthman dan Fodio, por sua vez, tam-bém criticou severamente os mallams “quietistas”, que tentavam utilizan-do uma postura ambígua preservar suas posições nas cortes pagãs.95 Essasassertivas pressupõem a existência de um considerável grau de animosida-de entre os muçulmanos dessas duas correntes conflitantes, resultando emguerras e conflitos no interior da comunidade islâmica. A tradição “quietista”estava aparentemente ligada aos mandingos, enquanto a tradição do jihadaparece claramente ligada aos fulas, hauçás e iorubás. Na devassa que se-guiu a revolta escrava de 1835 na Bahia, indivíduos recorrem ao artifíciode pertencer a grupos étnicos e lingüísticos menos comprometidos com amilitância islâmica, argumento que foi decisivo na tentativa de escapar doestigma rebelde dos muçulmanos hauçás e iorubas, e conseqüentementeobter a absolvição ou comutação por penas mais brandas.96 Esses exem-plos foram usados de forma análoga por Austin nas biografias de escravosislamizados nos Estados Unidos no século XIX. Os indivíduos estudadospor Austin integraram-se à nova ordem utilizando a erudição como formade ascender socialmente nos estreitos limites da sociedade escrava.97 Den-tre vários exemplos, podemos citar que durante a Guerra de 1812, entreEstados Unidos e Inglaterra, escravos africanos islamizados lutaram paradefender as propriedades dos senhores. Esses indivíduos, nesse caso oriun-dos do Sudão Ocidental não pertenciam à tradição militante do jihad.98

Em 1823, na rebelião escrava de Demerara, um capataz muçulmano de-nunciou os revoltosos aos britânicos. O estereótipo de escravo muçulma-no endemicamente revoltoso se desfaz em meio a interpretação dialética

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acerca da prática e proselitismo das diversas correntes islâmicas na ÁfricaOcidental e na diáspora islâmica no Atlântico.99

O livrinho malê

O documento conhecido como “livrinho malê” consiste de umamuleto manuscrito com passagens corânicas. Esse amuleto foi doado porum cidadão chamado J. de Sampaio Vianna e foi encontrado no pescoçode um revoltoso morto durante a revolta muçulmana de 1835.100

O estilo de escrita árabe magrebina é o mesmo dos manuscritos en-contrados no arquivos baianos. A grafia limpa e com poucos erros indicaum grau de erudição considerável. As suras em alguns trechos demonstramclaramente a relação com a situação dos escravos e libertos muçulmanosna Bahia. Os versículos abrangem a maior parte do Corão (114 versículos),porém, não escritos integralmente; aparentemente os versículos e seus tre-chos específicos escolhidos foram selecionados deliberadamente. O textose inicia no versículo 2, al-Bácara (A Vaca) e termina no versículo 69, al-Hácara (A Realidade). Como não se tem registro da existência de exem-plares do Corão na Bahia para esse período, deduz-se, portanto, que o autortivesse conhecimento de todo ou de grande parte do texto corânico.101

Algumas passagens corânicas reproduzem de forma incrivelmente fiela situação da comunidade muçulmana na Bahia no período que antece-deu a revolta de 1835:

E o que vos impede de combater pela causa de Deus e dos indefesos(mustadh’af),102 homens, mulheres e crianças? Que dizem: ó Senhor nosso,tira-nos desta cidade (Meca), cujos habitantes são opressores. Designa-nos,de Tua parte, um protetor e um socorredor!103

De acordo com esses trechos e no decorrer dos versículos, percebe-seclaramente uma comunidade sob coerção além dos limites óbvios da es-cravidão. Tecnicamente falando, o autor demonstra não apenas o domíniodo conteúdo corânico, mas uma sofisticada capacidade de analogia (qiya)104

do Corão com a realidade. Essa habilidade é um recurso circunscrito a eru-ditos islâmicos.

A última parte do documento traz a transcrição da Surah Ya sin quasena íntegra.105 Seria pertinente esclarecer o significado desse versículo den-

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tro da tradição islâmica clássica e da tradição das vertentes islâmicas na ÁfricaOcidental. Ya sin são duas letras do alfabeto árabe e a sua revelação remon-ta ao período final da revelação profética em Meca, antes da imigração paraMedina. Os versículos foram revelados no sentido de advertir o clã de Coraixdas conseqüências de sua descrença, tirania e arrogância. De acordo comtradição profética, a Surah Ya sin é o coração do Corão, como, de formaanáloga, a Surata al-Fatiha é a sua essência.

A utilização da Surah Ya sin na Iorubalândia podia variar de acordocom os círculos ligadas ao sincretismo, à acomodação ou à reforma. Porexemplo, na sua utilização como forma de controle adivinhatório nos cír-culos sincréticos do Islã com a religião tradicional. Um caso específico eraa utilização da sura em questão em casos de maldição, encantamentos einsanidade. A insanidade seria causada por jinns (gênios, espíritos) e trata-da com a poderosa Surah Ya sin recitada pelo alufá no ouvido do doente“com o coração e o conhecimento em uníssono que Deus é Uno”.106

De acordo com a análise conjunta do corpus documental dos manus-critos preservados foi possível chegar a algumas conclusões.107 Pode-se ates-tar que se tratava de alguém que conhecia as regras gramaticais e por isso co-meteu poucos erros. A firmeza da pena, sem hesitação, sugere que o autorera um praticante contumaz da escrita e da leitura no idioma árabe. Essascaracterísticas ficam patentes na Surah Ya sin e no du’á rabbana respectiva-mente. Deve ser ressaltado que a vocalização não foi empregada de maneirauniforme.108 A constatação poderia significar que o autor foi obrigado, porqualquer razão, a terminá-lo sem vocalizá-lo inteiramente. Existe ainda ahipótese de o autor ter escrito o manuscrito para uso próprio; dessa formanão haveria necessidade de vocalizá-lo, especialmente no caso de textos tra-dicionalmente memorizados como o Corão.109 O autor identifica-se comoSuleiman ibn Dawuud sem erros de grafia no seu nome em árabe.110 Partedo manuscrito parece ter sido montado para ser utilizado como amuleto emuma escrita que não é árabe nem hauçá. Não obstante, o autor estar envolvi-do em exercícios ligados à escrita e ao conhecimento das passagens corânicas.

A análise dos manuscritos revela um considerável gama de possibili-dades. Esse é um estudo preliminar, mas já aponta para algumas aborda-gens específicas. Os manuscritos têm sido tratados pela historiografia ape-nas como uma fonte auxiliar do objeto. Essa assertiva foi construída pelo

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desconhecimento da força da escrita, da poesia e da recitação no caso espe-cifico de culturas e sociedades islamizadas.

A revelação de vertentes místicas organizadas associadas ao conheci-mento místico islâmico socialmente e politicamente proeminentes, nosoferece ao menos uma opção, para perceber tais manifestações dentro deuma perspectiva coerente de acordo com práticas preexistentes.

Notas

1 O conceito foi empregado no trabalho como uma extensa entidade supranacional deordem jurídica, religiosa e cultural. Tradicionalmente, porém, é uma terminologia usadapor legisladores islâmicos para determinar terras sobre controle de governantes muçul-manos.2 LOVEJOY, Paul E. “Background to Rebellion: “The Origins of the Muslim Slaves inBahia”, in: Slavery and Abolition, 15, 2, 1994, p. 25.3 Segundo Brockopp, em contraste, os relatos de escravidão doméstica na Grécia antiga,Roma, Egito e Babilônia são mais completos. BROCKOPP, Jonathan E. Early Maliki Law:Ibn Abd al-Hakam and his major compedium of jurisprudence. Leiden-Boston-Köln: Brill,2000, p.117. Os relatos mais próximos da escravidão doméstica na sociedade islâmicatratam do mercado de escravos. Esses mercados revelam importantes aspectos da escravi-dão como um fenômeno mais abrangente e nos permite conhecer mais sobre o tráficoescravo do que vida dos escravos domésticos. Ver: RAGIB, Yusuf. “Les Marchés aux esclavesen terre d’Islam”, in: Mercati e Mercanti nell alto medioevo. Spoleto, 1993, pp. 721-763.Ragib também relata a pseudociência da fisiognomonia pela qual os escravos eram exami-nados. Esse assunto é objeto do estudo de MÜLLER, Hans. Die Kunst des Sklavenkauf,nasch arabischen, persischen und türkischen Ratgebern vom 10. bis zum 18. Jahrhundert.Freiburg: i.B., 1980 e LEWIS, Bernard. Islam from the Prophet to the Capture ofConstantinople. New York: Harper Collins, 1974.4 BROCKOPP, op. cit., p. 119.5 Idem, p. 208.6 Ver: HRBEK, I. “Die Slawen im Dienst der Fatimiden”, in: Archive Orienalni, 21, 1953,pp. 543-581.7 HEFFENING, W. “Zum Aufbau der islamischen Rechtswerke”, in W. Heffening andW. Kirfel (ed.) Studien zur Gestichte und Kultur des nahen und fernen Ostens. Leiden, 1935,pp. 101-118.8 BROCKOPP, op. cit., p. 148.9 Idem, p. 148. Abd Allah ibn Abd al-Hakam acrescenta que essa regra aplicava-se mesmoa escravos que pertencessem simultaneamente a muçulmanos e cristãos. Se o muçulmanoemancipasse sua parte, deveria comprar a parte de seu sócio cristão.

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10 O escravo emancipado tem o direito de propriedade sobre seus pertences, mas no casodos filhos, estes continuam a pertencer ao senhor. Idem, p. 151.11 Ibidem, p. 152. Abd Allah ibn Abd al-Hakam a perda da propriedade não implicava aperda dos direitos de clientela. É importante notar que essa punição específica foi além dasinjunções encontradas no Corão. Podem ser encontradas exceções ao bom tratamento deescravos no al-Muktasar al-kabir. Por exemplo, quando estrangeiros, sob a proteção demuçulmanos, castravam escravos em terras islâmicas. A emancipação nesse caso não era umdireito. A explicação para esse caso particular de maus-tratos sugere a existência de “fábricade eunucos” em território muçulmano. Além disso, escravas podiam conseguir a emancipa-ção por um contrato “em troca de produção” por crianças (que seriam escravas), mas nessescasos, havia a precondição de que o procedimento não causasse danos psicológicos para amãe. O que deixa subentendido que tal arranjo legal podia ser oneroso para a escrava.12 No caso em que as dívidas ultrapassassem os bens do escravo ou o escravo masculino(gulam) que tivesse atingido a maturidade. Ibidem, p. 152.13 Ibidem, p. 152. Ambas as fontes, cristãs e judaicas, incluem mukatab, mudabbar, o escra-vo maltratado, umm walad e o cego, como passíveis de serem libertados após alguns anos.Abd al-Hakam acrescentou os infantes em fase de amamentação, os portadores de enfermi-dades crônicas como também passíveis de manumissão, mas nesses casos específicos a deci-são caberia inteiramente ao senhor. Em outra passagem, ele especifica os escravos que a pro-priedade não pode ser questionada legalmente: os eunucos, os mancos e os caolhos.14 De acorco com Crone, os aspectos do clientelismo romano não podem ser confundidoscom os mesmos aspectos da lei maliquita. CRONE, Patricia. “Two legal problems bearingon the Early History of the Qur’an”, in: Jerusalem Studies in Arabic and Islam, 18, 1994,pp. 1-37.15 Outros exemplos consideram a clientela das crianças nascidas de uma mulher livre comum escravo posteriormente emancipado; e o escravo que é libertado do seu senhor (sa’ibah),neste caso, os vínculos são transferidos a toda comunidade muçulmana. Ver CRONE,op. cit., p. 68, sobre uma interessante interpretação dessa prática.16 No caso de se permitir ao escravo libertar um escravo de sua propriedade, os vínculos declientela acumulados passam para o senhor original. BROCKOPP, op. cit., p. 153.17 Especificamente não pode ser comprada, vendida, ou objeto de desistência. Abd al-Hakam estendeu essas assertivas estabelecendo que esse vínculo não podia ser mudadopelas autoridades por danos físicos ao escravo. Idem, p. 153.18 Ibidem, p. 138.19 HUNWICK, John & HARRAK, Fatima. Miraj Al-Su’ud: Ahmad Baba’s replies on slavery.Rabat: Institute of African Studies, University Mohammed V Souissi, 2000, p. 7.20 Idem, p. 7. Ele utilizou o titulo alternativo al-Kashf wa’l-bayan li-asnaf majlub al-sudan.21 Ibidem, p. 7.22 Sudan, plural de aswad, quer dizer “negro”. Foi utilizado aqui em oposição ao termobidan (branco), referente aos povos árabes e bérberes do Saara.

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23 Termo aplicado coletivamente originalmente aos zoroastristas, do antigo Persa magushusado para designar os sacerdotes (magus, pl. magi), mais tarde usado genericamente apovos que não fossem judeus ou cristãos, mas com os quais os muçulmanos desejavammanter boas relações. Ver o hadith no qual o Profeta disse: “Trate-os como tratam o Povodo Livro” (judeus e cristãos). Ver: ANAS, Malik b. Muwatta al-imam Malik, riwayat Yahyaal-Laythi. Beirut: Ratib Amrush, 1971, p. 188. No Mediterrâneo ocidental, entretanto,foi aplicado de forma hostil aos vikings.24 Idem, p. 11. O texto dessa fatwa faz parte do códice de al-Isis. O Sudão em questão é obilad al-sudan, a “terras dos povos negros”.25 KHALDUN, Ibn. The Muqaddimmah: An Introduction to History. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1989, pp. 58-59.26 Abu Ishak Ibrahim b. Hilal al-Sijilmasi, (morto circa 1497-1498), jurista norte-africa-no célebre por suas fatwas.27 Shihab al-Din Ahmad b. Idris al-Qarafi al-Sanhaji (morto em 1285), jurista maliquitade origem bérbere que viveu no Cairo e advogava o princípio de que as leis deviam mudarconforme as circunstâncias.28 HUNWICK & HARRAK, op. cit., p. 9.29 Idem, pp. 21-53.30 WILLIS, John R. Slaves and Slavery in Muslim Africa, vol.2: The Servile State. London:Frank Cass, 1985, p. 3.31 Idem, pp. 1-9.32 LOVEJOY, Paul E. “The Clapperton-Bello Exchange: the Sokoto Jihad and the Trans-Atlantic Slave Trade, 1804-1837,” in Christopher Wise (ed.), The Desert Shore: Literaturesof the African Sahel (Boulder: Lynne Rienner, 2000), p. 203.33 SMITH, Abdallahi. “The Islamic Revolutions of the 19th Century”, in: Journal ofHistorical Society of Nigeria, 2, 1961, p. 176, MARTIN, B.G. Muslim Brotherhoods in theNineteenth-Century Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, p. 18. Em 1817,no ano da morte de Uthman dan Fodio, seu irmão Abdullahi escreveu um tratado sobreos princípios do sufismo, que enfatizava a iniciação dele e Uthman dan Fodio, por inter-médio de Jibril b. Umar. BRENNER, Louis. “Muslim thought in the Eighteenth-CenturyWest Africa”, in: LEVTZION, Nehemia & VOLL, John O. Eighteenth-Century Renewaland Reform in Islam. Syracuse (NY): Syracuse University Press, 1987, pp. 56-57, Last,Murray. The Sokoto Caliphate. New York: Humanities Press, 1967, Murray Last, “Reformin West Africa: The Jihad Movements of the Nineteenth Century,” in History of West Africa,ed. J. F. A. Ajayi and Michael Crowder (London, 1975). FARINHA, António Dias. “OsMarabutos e a Presença Portuguesa em Marrocos” in: Colectânea de Estudos em Honra doProf. Doutor Damião Peres, Academia Portuguesa de Letras, Lisboa, 1974, pp.301-307.34 MARTIN, op. cit., p. 18.35 Idem, p. 18.36 Sabb al’-ajin ‘alayha, freqüentemente mencionado por Uthman dan Fodio como signode politeísmo. De forma análoga, Ibn al-Qadi enfatizava que sacrifícios a espíritos, árvo-

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res e outras criações são formas de adoração. A única adoração possível é aquela dirigidaexclusivamente a Deus. Seguindo os padrões estabelecidos por al Maghli, Ibn al-Qadiobservou: “um muçulmano comete apostasia simplesmente por imitar um infiel” em prá-ticas que somente um infiel realizaria. Pare ele, a shari’a trata apenas das manifestaçõesexótericas (zahir) do comportamento humano, e não de manifestações esotéricas (batin)que não podem ser vistas. MANSOUR, Mohamed Al & HARRAK, Fatima. A Fulanijihadist in the Maghrib: Admonition of Ahmad Ibn al-Qadi at Timbukti to the Rulers of Tunisiaand Morocco. Rabat: Institute of African Studies, 2000, p. 28.37 O corolário para essa situação de acordo com a lei islâmica é que aquele que nasceuinfiel (kafir bi l’asala) pode ser escravizado, enquanto os infiéis mencionados nas catego-rias 5 e 6 não devem ser escravizados se forem capturados como prisioneiros de guerra.38 Pode-se incluir nessa categoria, a cobrança de taxas canonicamente ilegais, suborno,opressão e injustiça mencionados no Kitab al-farq, e as acusações de adoração de ídolosem Bornu.39 Essa categoria foi motivo de grande controvérsia entre os muçulmanos na época de danFodio. Os defensores do ilm al-kalam (erudição teológica) entre os talaba não aceitavamaqueles que não podiam explicar o significado dos artigos da fé. Uthman dan Fodio ad-moestou os talabas sobre essa atitude.40 MASRI, El F.H. (edited. and translated). Uthman ibn Fudi. Bayan wujub al-Hijra Ala‘L-‘Ibad. Khartoum: Khartoum University Press, 1978, p. 8.41 “A enfática negação ideológica do primado da identidade étnica (e posição social) quecaracteriza as religiões universais surgidas no Oriente Médio pode ser compreendida nes-ta perspectiva, já que praticamente qualquer movimento de reforma social ou ética nassociedades poliétnicas dessa região colidiriam com as convenções e normas de caráter ét-nico.” BARTH, Fredrik. O guru iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:Contra Capa, 2000, p. 36.42 Idem, pp. 36-37.43 São várias suratas e hadiths neste sentido. ZIDAN, Ahmad & ZIDAN, Dina (text &translation). Sahih Al-Bukhari. Cairo: Islamic INC, 1970, et passim. Em um hadith o Profetaenfatizou: “E árabe aquele que fala o árabe”. No contexto, não deixa de ser uma tentativade estender o conhecimento do idioma a qualquer povo que viesse estudar a revelação,independentemente de vínculos étnicos.44 BARTH, Fredrik. O guru iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2000, p. 72 e Nomads of South Persia: The Basseri tribe of the Khamseh Confederacy.Prospect Heights: Waveland Press, 1961.45 Idem, p. 73.46 MARTIN, op. cit., p. 126.47 O trabalho de Martin enfocou vários movimentos islâmicos da África Ocidental, aolongo do Magrebe, até África Oriental. O xarifismo e a ação das irmandades sufis foramelementos importantes na mobilização das populações islâmicas e na legitimação de suas

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lideranças. Ver MARTIN, op. cit., et passim. Ver também o xarifismo marroquino e oconceito de imitatio Muhammadi, em CORNELL, Vincent. Realm of the Saints: Powerand authority in Moroccan Sufism. Austin: University of Texas Press, 1998, pp. 129-229.48 EL MASRI, op. cit., p.9.49 LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 204.50 HISKETT, M. The Sword of Truth. New York: Oxford University Press, 1973, p. 77.51 LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 207.52 Bello citou a fatwa de Ahmad Baba. Idem, p. 205. Sobre as comunidades fulas islamizadase não-islamizadas ver: SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a rebelião de 1835 na Bahia. RevistaBrasileira, separata, FaseVII, abril-maio-junho 2002, Ano VIII, n° 31, pp.13-14.53 LEVTZION, Nehemia. “Islam in African and Global Contexts: Comparative Studiesof Islam”, paper apresentado na conferência The Institute Of Global Studies, BinghamptonUniversity, April 19-22, 2001. Sobre a ascensão da comunidade xiíta no Líbano, ver:AJAMI, Fouad. The vanished Imam: Musa al-Sadr and the shia of Lebanon. Ithaca (NY):Cornell University Press, 1986. No caso libanês, exemplificado pela ascenção incontestedos movimentos políticos-religiosos dos grupos xiitas Amal e Hezbollah.54 LOVEJOY, Paul E. “The Relation between Jihad and slavery in the Americas”, apre-sentado no IFCS/UFRJ, Novembro de 2001.55 ISHAQ, Ibn. The Life of Muhammad. London: Oxford University Press, 1955, p. 774.56 RYAN, Patrick J. Imale: Yoruba participation in the Muslim tradition. Missoula: ScholarsPress, 1978, p. 1.57 HARROW, Kenneth, op.cit., in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 519.58 STARRAT, Priscilla. “Islamic influences on oral traditions in Hausa literature” in:HARROW, Kenneth. The marabout and the muse. Portsmouth (NH): Heinemann, 1996, p. 9.59 Idem, p. 164.60 Lewis, I.M. (ed.). Islam in tropical Africa. London: Oxford University Press, 1968 eDIOUF, Sylviane A. Servants of Allah: African Muslims enslaved in the Americas. New York:NYU Press, 1998, p. 4.61 OWASA-ANSAH, David. “Prayer, Amulets, and Healing”, in: LEVTZION &POUWELS, op.cit., p. 480.62 A primeira e única tradução conhecida dos manuscritos feita na época da insurreição(1835) foi realizada pelo hauçá Albino na presença de um juiz de paz. MONTEIL, Vincent.“Anályse de 25 documents árabes dês Malés de Bahia (1835)”, in: Bulletin de l’InstituteFoundamentale d’Afrique Noire, ser.B, 29, números 1-2, 1967, pp.88-98 e REICHERT,Rolf. Os documentos árabes do Arquivo do Estado da Bahia. Centro de Estudos Afro-Orien-tais, Universidade Federal da Bahia, 1979.63 A tradução foi realizada pelo Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University,Toronto, Canadá. Agradeço ao Prof. Paul E. Lovejoy e especialmente a Ibrahim Hamzapela versão do árabe para o inglês.

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64 DIOUF, op. cit., p. 107.65 AUSTIN, Allan D. African Muslims in antebellum America: Transatlantic stories andspirituals struggles. New York & London: Routledge, 1997, p. 5.66 DWIGHT, Theodore. “Condition and character of negroes in Africa”, in: SCHIEFFELIN,Henry. The people of Africa: A series of papers on their character, condition, and future prospects.New York: A.D.F. Randolph, 1871, p. 49.67 DIOUF, op. cit., p. 109.68 GOODY, Jack. The power of written tradition. Washington (DC): SmithsonianInstitution Press, 2000, pp. 1-2.69 Idem, p. 106.70 LOVEJOY, Paul E. “The Muslim factor in the Atlantic Slave Trade”, Forthcoming in:LOVEJOY, Paul E. (ed.). African Slaves in Dar es-Salaam: The Central Sudan, Slavery, andthe Muslim Diaspora. Princeton: Markus Wiener, p. 7.71 Idem, p. 7.72 Vamos considerar para efeitos conceituais a definição de Hunwick que alarga o concei-to subjetivo de “erudito” ou “letrado”, dessa forma o termo incluiria não apenas os insti-tucionalmente reconhecidos como ulemás (cadis, jurisconsultos e professores), mas imans,khatibs, sufis ascetas, os místicos pietistas (sulahas), e em geral a todos inseridos na catego-ria de “homens-santos”. Este termo englobaria um escopo considerável de categorias quecorrespondem, a entre outras, ao mandinga mori, ao fulfulde cerno, ao hauçá mallam, aosongai e iorubá alfa, ao arabo-sudanês faki, ao somali wadadi, ao ubíquo marabuto ere-mita ou santo) da terminologia franco-árabe. HUNWICK, John. “Secular Power andReligious Authority in Muslim Society: The Case of Songhay” in: Journal of AfricanHistory, 37, 1996, pp. 175-194. O termo “marabuto” e derivado de murabit, que signi-fica “eremita ou “santo”. Possivelmente através da história islâmica ligado a ribat (centroreligioso fortificado, português “rebate”) ou a “rabita”, “convento”, português “arrábida”.FARINHA, op. cit., p. 302 e FARIAS, Paulo de Fernando de Morais. “The Almoravids:Some questions concerning the character of the movement during its periods of closestcontact with the Western Sudan” in: Bulletin de I.F.A.N. t. xxix, série B, 3-4, 1967, pp.794-878, FARINHA, António Dias. “Contribuição para o estudo das palavras portugue-sas derivadas do árabe-hispânico” in: Portugaliae Histórica, vol. 1, Lisboa, 1973, p. 262,no. 115. Em 1600 surge em espanhol a palavra morabito e em francês que conheceu gran-de difusão existe uma citação para 1651. CORAMINAS, Joan. Breve Diccionario etimológicode la lengua Castellana. Madrid: 1967, p. 402.73 DIOUF, op. cit., p. 39.74 REICHMUTH, Stefan. “Islamic Education and Schorlarship in Sub-Saharan Africa”,in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 419.75 Idem, p. 419.76 Ibidem, p. 421. De acordo com Gbadamosi, a interface do Islã com a cultura iorubáfacilitou a introdução do primeiro na Iorubalândia. GBADAMOSI, T.G.O. The Growth

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of Islam among the Yoruba, 1841-1908. Atlantic Highlands (NJ): Humanities Press, 1978,p. 2.77 “Devassa Do Levante De Escravos Ocorrido Em Salvador Em 1835” in: Anais do Ar-quivo Público do Estado da Bahia vol. 38, p. 130. Daqui em diante apenas “Devassa doLevante”.78 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacio-nal, 1977.79 GOODY, op. cit., p.94.80 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês. (SegundaEdição Revista e Ampliada.) São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (no prelo).81 Segundo Ryan, na sua tese, o termo se refere à escola corânica. De forma mais acurada,resume melhor a instituição conhecida como “casa da recitação” porque envolve o apren-dizado. RYAN, op. cit., p. 194.82 “Quando esteve em Socoto em 1826, a capital do califado fula-hauçá, Clapperton ob-servou algo semelhante numa escola corânica freqüentada por crianças das “classes médiae baixa”. Os alunos recitavam em coro suas lições, escritas pelo mestre sobre as tábuas, queeram lavadas e a água bebida somente após terem eles decorado a lição. O gesto propiciatórioestava então vinculado à memorização das orações ou de passagens do Alcorão, uma espé-cie de recompensa pela tarefa cumprida. Assim se entende melhor as “vinte vezes escrita”do depoimento de Albino. Este, porém, pareceu distinguir entre exercícios elementares,sem eficiência protetora, e orações mais complexas, estas sim bebidas para fechar o corpo.O uso tanto doméstico como militar dessa beberagem foi documentado em outro trechodo diário de Clapperton, escrito em Boussa, uma cidade do reino de Borgu, ao norte deOió.”

REIS, op. cit. Na Ilha de Bissau, o Aluhá é tábua onde escrevem-se os exercícios para osalunos. O aparo (Kalamo, literalmente “aparo”, derivado do árabe Khalâm) é feito dedelgadas hastes de bambu. A tinta obtém-se ou pela maceração de cascas (do tronco) damangueira (árvore) ou de carvão vegetal reduzido a pó e misturado na água. CARREIRA,António. “Aspectos históricos da evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa” in: Bole-tim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XXI, 84, 1966, pp. 455-457.83 DANMOLE, H.O. “Crises, Warfare, and Diplomacy in the Nineteenth-Century Ilorin”,in: FALOLA, Toyin. Warfare and diplomacy in precolonial Nigeria. African Studies Program(University of Winsconsin-Madison), 1992, p. 52 See J.F.A. AJAYI, J.F A. “The Aftermathof the Fall of Oyo”, in AJAYI, J.F.A. & CROWDER, M. History of West Africa II. London:Longman Publishing Group, 1987, pp. 129-166.84 Ondè é um amuleto costurado em uma bolsa de couro colocada em volta da cintura.Yfunpà é um amuleto de couro usado no braço. A pele de qualquer felino podia ser usadana confecção desses amuletos por causa da habilidade desses animais de se moverem fur-tivamente. No depoimento do forro nagô-igbo Lobão em 1835, ele descreveu os amuletosencontrados pela polícia em sua casa: “Foi perguntado qual era o fim para o que ele traziaaquilo, cujos patuás, ou embrulhos de couro foram abertos neste ato descosendo-se com

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um canivete de aparar penas, onde se achou vários fragmentos de cousas insignificantes,como seja algodão, embrulhado em um pouco de pó e outros até com bocadinhos de lixoe o saquinho com uns poucos de búzios dentro, envolto em um dos embrulhos de couroum pequeno papel escriturado com letras arábicas, ao que ele respondente, declarou, quetrazia aquilo para o livrar do vento, e que os búzios servia-se deles para untar sabão nacabeça quando lavava.” Devassa do Levante, vol. 53, p. 112. Leão, o africano na Granadamuçulmana do final do século XV, descreveu os amuletos como sendo pequenas bolsas decouro contendo escritos misteriosos para proteção contra a inveja e doenças. “Os puristasconsideravam essas práticas contrárias à religião. No entanto, seus próprios filhos freqüen-temente usavam amuletos porque os primeiros não logravam fazer suas esposas e mãesescutarem a razão. Eu não posso negar a utilização de amuletos por mim mesmo. Fui pre-senteado no meu primeiro aniversário com um desses artefatos com desenhos cabalísticosque nunca pude decifrar. Eu não acreditava no seu poder mágico, mas o homem é tãovulnerável ao Destino que não pode resistir à atração de objetos envoltos em mistério.Poderá Deus, que me criou tão fraco, um dia reprovar-me pela minha fraqueza?”MAALOUF, Amin. Leo Africanus. Lanham (MD): New Amsterdam books, 1988, p. 30.85 AJAYI, op. cit., in: AJAYI, J. F. A. & CROWDER, M. op. cit., p. 46.86 Idem, pp. 129-166.87 Ver: SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidadepopular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 213-226.88 “Relato do chefe de policia Francisco Gonçalves Martins”. Jornal do Comércio, Rio deJaneiro, 10/02/1835.89 Ij6-170, jan-jul., 1835, Ofício do chefe de Polícia ao Ministro da Justiça, Arquivo Na-cional. O documento foi publicado anteriormente em SOARES, Carlos Eugenio Líbano.A capoeira escrava e outras a tradições rebeldes no Rio Janeiro (1808-1850). Campinas: Editorada Unicamp, 2001, p. 356. A presente transcrição foi feita diretamente da fonte. Agrade-ço a Alzira Durão pela transcrição.90 Na América, certos rótulos étnicos implicavam em afiliação religiosa. Iorubá, por exem-plo, podia incluir muçulmanos, apesar de freqüentemente se referir a não-muçulmanos(nagô e lucumi). O termo “iorubá” é aparentemente de origem hauçá e songhai cunhadodo trabalho de Ahmad Baba em 1615 em Tombuctu no seu tratado de jurisprudência daescravidão no Islã. Nessa época, em Tombuctu, o songhai era falado e não o hauçá. Otermo também foi usado em dendi, um dialeto do songhai falado em Borgu pelos comer-ciantes. No hauçá o termo é yarabawa (plural) e bayarabe (singular). LOVEJOY, Paul E.“The relationship between jihad and slavery in the Americas”, p. 9. Ver também: LAW,Robin. “Ethnicity and the Slave Trade: “Lucumi” and Nago” as Ethnonyms in West Africa”,in: History in Africa 24, 1997, pp. 205-219.91 LOVEJOY, “The Relationship between jihad and slavery in the Américas”, p. 11.92 DIOUF, op. cit., pp. 11-13, 38, 135-137, 165-170.93 De acordo com Wilks, a tradição “quietista” a que ele se refere como a tradição suwarianaenvolvia “acomodação e coexistência”, baseadas nas políticas e práticas estabelecidas por

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al-hajj Salim Suwari, inicialmente em Ja (Dia) em Massina e mais tarde em Jahaba,Bambuhu no final do século XV. Reverenciado por juula e jahanke, e desse modo associa-do de forma abrangente com os mandingos, al-hajj Salim Suwari advogava ser possívelmuçulmanos viverem em comunidades não-muçulmanas. Assim teriam acesso à riquezapor via do comércio e do artesanato nesse mundo, o que não significava a negação da sal-vação no “outro” mundo. Essa crença baseava-se na rejeição de um proselitismo ativo. Aconversão real ocorreria apenas no reino de Deus. Portanto, o jihad era rejeitado comoinstrumento de mudança, exceto em situações extremas de sobrevivência da comunidademuçulmana. Todos os infiéis seriam em algum momento convertidos, mas em estágiospreestabelecidos. Aos muçulmanos restava manterem-se puros de acordo com a tradiçãodo Profeta para esperar adequadamente a conversão futura dos infiéis. WILKS, Ivor.“Consul Dupuis and Wangara: A window on Islam in the early Nineteenth-CenturyAsante”, in: Sudanic Africa, 6, 1995, p. 61.94 WILLIS, John R. In the Path of Allah: The passion of al-hajj Umar: An essay into the natureof charisma in Islam. London: Frank Cass & Co., 1989, p. 49.95 MARTIN, op. cit., p. 29.96 Ver: Devassa Do Levante, vols. 38-40-50-54.97 Ver AUSTIN, op. cit.,98 LOVEJOY, “The relationship between jihad and slavery in the Americas”, p. 12. Vertambem: LOVEJOY, Paul E. and ADDAOUN, Yacine D. The Arabic Manuscript ofMuhammad Kaba Saghanughu of Jamaica, c.1823. University of West Indias, Mona,Jamaica, January 9-12, 2002, p. 10. O Kitab al-salat escrito por Muhammad Kaba naJamaica, permitiu ligar os muçulmanos enviados para essa região como parte da tradição“quietista” da irmandade Qadiria no Sudão Ocidental, e revela a presença do sufismo noCaribe.99 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos deDemerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 232. No caso de Demerara,a participação maciça de escravos cristianizados, sob a liderança de um pastor inglês, podeter influído decisivamente para o afastamento dos muçulmanos. Em contrapartida, pode-se constatar um caso de colaboração inter-religiosa na revolta de Denmark Vessey emCharleston, em 1822. ROBERTSON, David. Denmark Vessey. New York: Vintage Books,2000, PEARSON, Edward A. Designs against Charleston: The Trial Record of the DenmarkVessey Slave Conspiracy of 1822. Chapel Hill: The University of Carolina Press, 1999 eWALKER, Lois A. & SILVERMAN, Susan. Documented History of Gullah Jack Pritchardand the Denmark Vesey Slave Insurrection of 1822. Lewiston: The Edwin Mellen Press, 2000.100 Coleção Instituto Histórico. “Livrinho Encontrado Preso ao Pescoço de um Negro MortoDurante a Insurreição dos Malês na Bahia”. Doação de J. de Sampaio Vianna, originais:IHGB, 102 p., lata 987, pasta 5.101 Na África Ocidental, por exemplo, as famílias enviavam os filhos para a escola corânicaquando a criança pudesse “contar ate dez”. Os professores detinham total autoridade so-bre os alunos, direito este outorgado pelo pai. Os estudantes começavam decorando a surah

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al-Fatiha (versículo de abertura do Corão) e as dez últimas suratas (conhecidas como “cur-tas”). O próximo estágio era estudar a gramática árabe, ler e recitar o texto corânico intei-ro. Cada trecho (ahzab) decorado era celebrado. A cerimônia de formatura da instruçãoprimária terminava com uma cerimônia em que o estudante ricamente vestido recitava aprimeira parte do Corão diante dos professores, colegas e parentes. O professor era devi-damente recompensado pelos pais com dinheiro e roupas novas. Esse aprendizado na es-cola corânica era também pré requisito básico para se iniciar a vida profissional.REICHMURT, op. cit., in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 424. Leão, o africa-no, no início do século XVI, relatou sua experiência pessoal: “Para entender o significadoda “grande recitação” na vida do crente é preciso ter vivido em Fes, cidade onde o apren-dizado foi construído ao redor das escolas (madrasas). Apos vários anos de pacientememorização, chega-se a ponto de se recitar todos os versículos do Corão. Quando issoacontece, o professor declara o estudante pronto para a “grande recitação” e imediatamentepassa da infância ao mundo dos homens, do anonimato para a fama. É quando algunscomeçam a trabalhar e outros são admitidos nos estágios superiores de aprendizado, fon-tes de erudição e autoridade”. MAALOUF, op. cit., p.136. Sanim, um dos líderes da Re-volta Malê, deixou escapar que apesar de todos os indícios apontarem-no como mestre,ele não exercia essa atividade em terras brasileiras: “Que é verdade ter o nome de Sanimna sua terra, mas que é falso o dizer se que ele ensina a língua, ou reza de Malê por quequando veio para terra de branco, não tratou mais disse, e nem se lembra”. Devassa doLevante, vol. 38, p. 119.102 Aquele reconhecidamente fraco, maltratado e oprimido. O mestre hauçá Dandará foimais claro: “e que ele é Mestre em sua Terra, e que aqui ele tem ensinado os rapazes; po-rém que não é para mal. Devassa do Levante, vol. 54, p. 212.103 Livrinho Malê, p. 3. Surata An Nissá (As Mulheres, versículo 4: 102). A numeraçãoobedecerá à paginação da tradução inglesa disponível em anexo na versão original da dis-sertação. A versão portuguesa usada no trabalho é a de Samir El Hayek. O Significado dosVersículos do Alcorão Sagrado, tradução Samir El Hayek. São Paulo: Marsam, 1994.104 Ver conceitos de qiya em: PHILIPS, Abu Ameenah Bilaal. Evolution of the Madh-habs(Schools of Islamic Law). Ryadh: International Islamic Publishing House, 1988/1409 AH.105 O documento apresenta transcrições dos seguintes versículos: Al-Bácara (a Vaca), Áal‘Imran (A Família de Imran), Al-Nissá (As Mulheres), Al-Máida (A Mesa Servida), Al-A’raf (Os Cimos), Yunis (Jonas), Hud (Hud), Ibrahim (Abraão), An Nahl (As Abelhas),Al-Cahf (A Caverna), Taha (Taha), Al-Anbiyá (Os Profetas), Al-Muminun (Os Crentes),Al-Furcan (O Discernimento), Ach Chu’ará (Os Poetas), Al-Cassas (As Narrativas), As Sajda(A Prostração), Al-Ahzáb (Os Partidos), Sabá (Sabá), Fáter (O Criador), Sad (A Letra Sad),Caf (A Letra Caf ), Az Záriat (Os Ventos Disseminadores), Al-Camar (A Lua), Al-Mumtahana (A Examinada), Al Hácca (A Realidade), Al Ma’arij (As Vias de Ascensão),Al-Tahrim (As Proibições).106 RYAN, op.cit., p. 187.107 Agradeço a Yacine Daddi Addaoun, doutorando do Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University, seus comentários sobre o documento.

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108 A vocalização breve no idioma árabe é feito com o uso de sinais diacríticos fatha, dammae kasra colocados sobre as consoantes. As vogais longas possuem letras específicas.SABBAGH, Alphonse N. Dicionário árabe-português-árabe. Rio de Janeiro: Ao LivroTécnico/Ed. UFRJ, 1988, p. 10.109 O indivíduo que memoriza todo o texto corânico é chamado Huffaz.110 Havia dois africanos chamados Suleiman ou Sule envolvidos na rebelião de 1835. Umera liberto nagô e foi o pivô da denúncia da rebelião devido à denúncia de sua compa-nheira. O outro era escravo nagô do inglês Stuart e apontado como um dos mestres dosescravos muçulmanos da Vitória. Ambos teriam perecido em combate. Essa hipótese éreforçada pelo fato de o manuscrito ter sido encontrado no pescoço de um africano mortona revolta.

Resumo

O artigo trata da origem da jurisprudência islâmica maliquita e na especificidade dasua aplicação à escravidão, além da evolução do debate em África envolvendo etnici-dade, religião e escravização e de uma análise-síntese do manuscrito árabe que encon-tra-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro. Os tópicos abor-dados no artigo, originariamente, fazem parte de um contexto consideravelmente maisamplo, mas podem contribuir de forma positiva para alargar a discussão sobre o estu-do da diáspora africana no Brasil.

Abstract

This article analizes the Malikite Islamic laws about slavery, the Muslim booklet heldat Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro, as well as the hugedebate between Muslim scholars in Africa over questions of ethnicity, religion, andslavery. Though the scope has been narrowed for this article, the discussion neverthelesssheds new light on the African Diaspora in Brazil.

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