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VELHOGENERAL.COM.BR INTELIGÊNCIA CULTURAL 1 27/11/2020 | VELHOGENERAL.COM.BR | CATEGORIA: DEFESA INTELIGÊNCIA CULTURAL: NOVOS PARÂMETROS NA FORMAÇÃO DO OFICIAL ANTE A NOVA GERAÇÃO DE CONFLITOS Por Claudio Passos Calaza* Oficial de Inteligência da USAF fala com crianças afegãs em vila perto da Base Operacional Avançada de Herrara, no Afeganistão (Foto: USAF/Staff Sargent Shawn Weismiller). Após um prolongado predomínio das disciplinas da área de exatas e tecnológicas, o alvorecer do século XXI parece apontar uma tendência ao resgate das Ciências Humanas na educação militar. Tudo se deveu ao impacto de uma nova geração de conflitos e também à introdução do conceito de Inteligência Cultural. A relação entre estes dois novos sistemas tem indicado novas perspectivas para a formação militar em modernas forças armadas, tendo em vista as necessidades do combatente ideal para uma nova modalidade de conflitos. A Inteligência Cultural incorpora a capacidade de interagir de forma eficaz com pessoas de históricos culturais diferentes. O impacto das guerras da atualidade não se resume somente à ação bélica em si, mas também se dá sob a vertente cultural, se fazendo sentir nas fases de abordagem, invasão e ocupação, até a pacificação, interagindo com sociedades e organizações possuindo culturas e códigos sociais bastante diversos. A presente comunicação científica, se valendo de fontes bibliográficas e documentais, aborda a Inteligência Cultural e sua adoção como parâmetro para a educação militar superior. A história da educação militar, em especial a da formação de oficiais, sempre foi marcada por ondas de modismos e tendências acadêmicas. O fenômeno vem sendo observado ao longo do tempo em academias militares de diversas nações ao longo do século XX. Os modismos curriculares se fizeram presentes ora privilegiando o profissionalismo, ora o bacharelismo. O dilema entre a valorização

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27/11/2020 | VELHOGENERAL.COM.BR | CATEGORIA: DEFESA

INTELIGÊNCIA CULTURAL: NOVOS PARÂMETROS NA FORMAÇÃO DO OFICIAL ANTE A NOVA GERAÇÃO DE CONFLITOS PorClaudioPassosCalaza*

OficialdeInteligênciadaUSAFfalacomcriançasafegãsemvilapertodaBaseOperacionalAvançadadeHerrara,noAfeganistão(Foto:USAF/StaffSargentShawnWeismiller).

Apósumprolongadopredomíniodasdisciplinasdaáreadeexatasetecnológicas,oalvorecerdoséculoXXIpareceapontarumatendênciaaoresgatedasCiênciasHumanasnaeducaçãomilitar.Tudosedeveuaoimpactodeumanovageraçãodeconflitose

tambémàintroduçãodoconceitodeInteligênciaCultural.Arelaçãoentreestesdoisnovossistemastemindicadonovasperspectivasparaaformaçãomilitaremmodernasforçasarmadas,tendoemvistaasnecessidadesdocombatenteidealparaumanovamodalidadedeconflitos.AInteligênciaCulturalincorporaacapacidadedeinteragirdeformaeficazcompessoasdehistóricosculturaisdiferentes.Oimpactodasguerrasdaatualidadenãoseresumesomenteàaçãobélicaemsi,mastambémsedásobavertentecultural,sefazendosentirnasfasesdeabordagem,invasãoeocupação,atéapacificação,interagindocomsociedadeseorganizaçõespossuindoculturasecódigossociaisbastantediversos.A

presentecomunicaçãocientífica,sevalendodefontesbibliográficasedocumentais,abordaaInteligênciaCulturalesuaadoçãocomoparâmetroparaaeducaçãomilitarsuperior.

Ahistóriadaeducaçãomilitar,emespecialadaformaçãodeoficiais,semprefoimarcada por ondas de modismos e tendências acadêmicas. O fenômeno vemsendoobservadoaolongodotempoemacademiasmilitaresdediversasnaçõesao longo do século XX. Os modismos curriculares se fizeram presentes oraprivilegiandooprofissionalismo,oraobacharelismo.Odilemaentreavalorização

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dasciênciasexatasouhumanasfezpartedemuitoscontextoseducacionais,todosprimando pela melhor formação de seus líderes militares. A tendência aoacentuadobacharelismomilitar,emdetrimentodasciênciasmilitares,parecetersidoumriscoconstante.

No Brasil, o bacharelismo militar foi um fenômeno traduzido pelo desvio naformaçãodoprofissionaldaguerradevidoaopredomíniodasciênciasconexassobreasautênticasciênciasmilitares.Estadistorção,geralmente,não temsidointencional,masumaconsequênciadespercebidadaperdadopragmatismodaformaçãodoprofissionaldaguerraemumanaçãopacíficacomescassashipótesesdeameaçasexternas.

Na educação castrense, de ummodo geral, o apelo a conhecimentos alheios àprática das armas é uma diligência antiga, mas nem sempre sistemática. Ossenhores da guerra valeram-se, frequentemente, de métodos que lhes eramsugeridosporoutrasatividades.Essascontribuiçõesvãodasimplesobservaçãoàreflexãocombinatória.Situam-senoníveldatecnologia,dasciênciasaplicadasou,pelomenos,apartirdaRenascença,dasciênciasfundamentais.

Grandesmestresdaartedaguerra,comoSunTzueMaquiavel,descreveramsuasteorias apoiados na observação da guerra comoum fenômeno eminentementeafeitoàsciênciashumanas.Clausewitz,clássicoteóricodaartemilitar,reconhecequeaguerraéumaatividadehumana,estandocondicionadaporfatoresprópriosaohomem–basicamente,suavontadeeosaspectospsicológicosqueatuariamnasituaçãolimitequeaguerratrazconsigo.Namáximaclausewitziana,aguerraera,sobretudo,“acontinuaçãodasrelaçõespolíticasporoutrosmeios”1.

A partir de meados do século XIX, as incorporações tecnológicas militaresprovocaramgrandeimpactonaartedaguerra,queacabaramporcondicionaraformação militar fortemente direcionada para o conhecimento técnico,favorecendoavalorizaçãodasciênciasexatasnomeioacadêmicomilitar.Apósumlongopredomíniodasdisciplinasdaáreadeexatasetecnológicas,oalvorecerdoséculoXXI,apesardasguerrascontinuaremcadavezmaiscondicionadasaumaltograudedependênciatecnológica,pareceapontarparaumatendênciaaoresgatedasciênciashumanasesociaisnaeducaçãomilitar.Tudosedeveuaoimpactodeuma nova geração de conflitos – a guerra de quarta geração 2 – e também àprovidencialintroduçãodoconceitodeInteligênciaCultural.Arelaçãoentreestesdoisnovossistemastemindicadonovasperspectivasparanaformaçãomilitaremdiversospaíses, tendoemvistaasnecessidadesdocombatente idealparaessanovamodalidadedeconflitos.

OsconflitosdequartageraçãosãomarcadospelaperdadomonopóliodoEstadosobre a guerra. Em todo o mundo, os militares se encontraram combatendo

1CLAUSEWITZ,Carl.DaGuerra.SãoPaulo:MartinsFontes,1996,p.23.2O termo“GuerradeQuartaGeração”,conhecidatambémpelasiglaem inglês “4GW”, temsidousadopelospensadores militares para designar os conflitos dos finais do século XX. Confrontos multidimensionais, queenvolvemaçõesemterra,nomar,noar,noespaçoexterior,noespectroeletromagnéticoenociberespaço,emarcados pelo fato de o “inimigo” poder não ser umEstado organizado,mas um grupo terrorista ou umaqualquer outra organização criminosa. A 4GW significa a perda, pelo Estado, do monopólio dos conflitosarmadosequeresultoudoTratadodeWestfáliade1648,quepôsfimàGuerradosTrintaAnos.

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inimigos não estatais, gerando tensões para os quais não se encontravampreparados.Sãoagora inimigosorganizaçõesguerrilheirasegrupos terroristasque não agem de acordo com as convenções de Genebra, combatendo porprincípiosemotivaçõesquetranscendemaosclássicosobjetivosnacionaisoudeEstado.SegundoLind,essanovamodalidadedeguerraésobremaneiramarcadaporumavoltaaummundodeculturas,nãomeramentedepaíses,emconflito3.

OutroteóricoaproporumanovamodalidadeconflitosaofinaldoséculoXXfoiSamuelHuntington.Segundoele,nomundopós-GuerraFria,aprincipalfontedasguerras se desenvolveria com base num conflito de identidades culturais ereligiosas. É a teoria do choque de civilizações, originalmente formulada porHuntingtonem1993esolidificadaemsuaobra“OChoquedasCivilizações”naqualescreve:

“Minhahipóteseéqueafontefundamentaldeconflitosnestemundonovonão será principalmente ideológica ou econômica. As grandes divisõesentre a humanidade e a fonte dominante de conflitos será cultural. OsEstados-nações continuarão a seros atoresmaispoderososno cenáriomundial,mas os principais conflitos da política global ocorrerão entrepaíses e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizaçõesdominaráapolíticaglobal.Asfalhasgeológicasentrecivilizaçõesserãoasfrentesdecombatedofuturo”4.

Arelaçãoentreguerraeculturapareceserumafortetendênciadosteóricosnosúltimos tempos. Enquanto, no século XIX, Clausewitz conceituava a guerrasubordinadaaoprimadodapolíticanaformadeviolência,noiníciodoséculoXXI,umeminenteautordaHistóriaMilitar,oinglêsJohnKeegan,vinculoutalconceitocomoumaformadecultura.ParaKeegan,aguerra,desdeosmaisremotostempos,deve ser entendida comoumamanifestação inerente à cultura5. Tais reflexõesteóricasfavorecemnovasabordagensnopreparoeconduçãodosconflitosbélicosmodernos.

A condução das guerras de quarta geração e, por conseguinte, dos conflitosassimétricos,pareceimpornovasexigênciasquevãomuitoalémdaformacomoasforçasmilitarescombatem,sejanatécnicaounalogística,massimcomoelassecomportamnopréepós-batalhadentrodeumteatrodeoperações.Oimpactonãose resume à ação bélica em si, mas também se dá sob a vertente cultural, sefazendo sentir nas fases de abordagem, invasão e ocupação, até a pacificação,interagindocomsociedadeseorganizações–governamentaisounão–possuindoculturasecódigossociaisbastantediversos.Naconjunturadestanovamodalidadedeconflitosarmados,trata-sederesolversituaçõessociaiseculturaiscomplexasem um ambiente hostil, as quais requerem uma preparação e métodos deexecuçãodiferentesdosquetradicionalmentetêmsidoempregados.

3LIND,William;SCHMITT,John;SUTTON,JosepheWILSON,Gary:“TheChangingFaceofWar:intotheFourthGeneration”,MarineCorpsGazette(oct.1989):pp.22-26.4HUNTINGTON,SamuelP.OChoquedeCivilizaçõeseRecomposiçãodaOrdemMundial.RiodeJaneiro:EditoraObjetiva,1996,p.39.5KEEGAN,John.UmaHistóriadaGuerra.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2006,p.29.

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Tendo como exemplo bastante ilustrativo, tais desafios levaram o Corpo deFuzileirosNavaisdoEUAaperceber,pioneiramente,aimportânciadaInteligênciaCulturalparaa formaçãodeseuscombatentes,devendotalprincípiodesceraoescalão inferior da hierarquia, incidindo do general ao menos graduado daspraças6.A iniciativa foi logoacolhidapelasdemaisForçasArmadasamericanaspara, em seguida, ser admitida por outros países, principalmente entre osmembros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Para osdefensoresdessanovacorrenteeducacionalmilitar,aInteligênciaCulturalseriaachave do sucesso para integrar o combatente o máximo possível com associedades locais, adquirindo também superioridade em outras vertentes daguerraqueextrapolamaocombatetradicionalbaseadonademonstraçãodeforçaenoexercíciodaviolência.

Relatóriosdecampanhaevidenciamqueasguerrasdo IraqueedoAfeganistãoestãodemandandoeproduzindoexcelenteslaboratóriosparaoexercíciomilitardaInteligênciaCultural,conformedestacouomajoramericanoToddClark:

A Guerra Global contra o Terror identificou graves deficiências nacapacidade dosmilitares dos EUA operarem com sucesso em diversasculturas. Emparticular, osmilitares dos EUA não conseguiramprestaratenção e entender às normas sociais e valores da cultura iraquiana eafegã.EssafalhacausouumrachadefinitivoentreasForçasdaCoalizãoea população de cada nação. Entretanto, isso não pode ter propiciado ainsurgência,masfoicertamenteenvolvidonacriaçãodealgumgrauapoioparaosinsurgentes.DesenvolverecultivaracapacidadedaInteligênciaCulturaldosmilitaresdosEUAprometeproverummeiodepenetraromuroexistenteentreasforçasexógenaseapopulaçãolocal.Umaforçaculturalmenteinteligenteagedemaneiramaisaceitávelàsnormaslocaise, portanto, desenvolvem um relacionamento mais favorável. Nosconflitos futuros, a conquista preliminar de interações culturais podegarantiraqualquerumsufocarumainsurreiçãoemsuainfânciaou,pelomenos,negaremmuitoseuespaçodemanobra7.

Compreendidosestesdesafios,aeducaçãoparaaInteligênciaCulturalpassouaserumimportanteparâmetroaserconsideradonopreparodatropa,direcionadoinicialmente para a formaçãodas forças especiais americanas. Combase nestaproposição, as tropas de elite das Forças Armadas americanas passaram a serintensamenteformadasparaconheceralínguaeoscostumeslocais,conduzindooperaçõesemsintoniacomaculturanativa,obtendomelhorrespostanasaçõesde inteligência, bemcomonasarmadas.Todaa iniciativanesse sentidopareceestar sendo, em larga medida, recompensada, culminando com o sucesso daOperaçãoGeronimoque localizou e eliminouo terroristaOsamaBin LadennoPaquistão, emmaio de 2011. Foi amplamente divulgado pela imprensa que astropasengajadasnestasoperações,osSEALsdaMarinhaAmericana,a160ªSOAR

6LIND,op.cit.,loc.cit.7CLARK,Todd,J.DevelopingaCulturalIntelligenceCapability.2008.pp.60-61.

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(Airborne),osRangerseaDeltaForcedoExército,receberamdistintainstruçãocombasenaInteligênciaCulturalparatalatuação8.

FUNDAMENTOS DA INTELIGÊNCIA CULTURAL AInteligênciaCultural,comoconceito, foiprimeiramentedescritaem2003porChristopher Earley e Soon Ang, sendo a teoria originalmente voltada para acapacitaçãodegerentesempresariais9.Osprincípiosporeleslevantadosparaaqualificaçãoprofissionalnomundodosnegócioslogoconquistaramaceitaçãonacomunidadederecursoshumanos.EssesautoresdefiniramInteligênciaCulturalcomo“acapacidadedeumapessoaseadaptaranovoscontextosculturais”10.Oobjetivo principal era resolver o problema do porquê os indivíduos nãoconseguemadaptar-seoucompreendernovasculturas.Asquestões levantadaspelateoriaforamlogopercebidaspelacomunidadedeinteligência,quepassouaincluirseusprincípiosnoconteúdodeseuscursosdeformação11.

Pouco tempo depois, em 2006, David C. Thomas e Kerr Inkson consolidaramtecnicamente os pressupostos de Earley em Inteligência Cultural: habilidadespessoais para negócios globalizados 12 . Segundo os novos autores do tema, aInteligência Cultural incorpora a capacidade de interagir de forma eficaz compessoasdehistóricosculturaisdiferentes.Contudo,muitomaisqueumasimpleslista de protocolos, a Inteligência Cultural propõe uma abordagem sistemáticaparaavariedadedeinteraçõesqueprofissionaisenfrentamrelacionando-seemculturas diferentes nos diversos países, oferecendo uma série de técnicasespecíficas13.

Para Thomas e Inkson, a Inteligência Cultural abarca o entendimento dosfundamentosdainteraçãointercultural,passandopelodesenvolvimentodaumaabordagem consciente para as interações interculturais e, finalmente, pelaconstruçãodehabilidadesadaptativaseumrepertóriodecomportamentosquepossam tornar uma pessoa eficiente em diferentes situações interculturais.Interagir de forma eficiente com variadas culturas passou a ser um requisitocategóriconoambienteglobaldaatualidade14.Eistopareceestarconquistandoamplavalidaçãonaformaçãoetreinamentodeforçasmilitares.

Emummundoglobalizado,sejaelenoâmbitodosnegóciosoumilitar,aessênciado global passou a ser a interação com pessoas culturalmente diferentes. A

8VEJA.SãoPaulo:EditoraAbril,edição2216–ano44–nº19,11maiode2011,p.88.9 EARLEY, Christopher; ANG, Soon. Cultural Intelligence: Individual Interactions Across Cultures. Stanford:StanfordUniversityPress,2003.10Ibidem,p.59.11RIVA,Julia.CulturalIntelligence.CentralIntelligenceAgency.Disponívelem:https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/csi-publications/csi-studies/studies/Vol49no2/Cultural_Intelligence_Book_Review_10.htm.12THOMAS,David;INKSON,Kerr.InteligênciaCultural:habilidadespessoaisparanegóciosglobalizados.RiodeJaneiro:Record,2006.13Ibidem.14Idem,pp.23-34.

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Inteligência Cultural abarca o entendimento dos fundamentos da interaçãocultural,passandopelodesenvolvimentodaumaabordagemconscienteparaasinteraçõesinterculturaise,finalmente,pelaconstruçãodehabilidadesadaptativase um repertório de comportamentos quepossam tornar omilitar eficiente emdiferentessituaçõesinterculturais,sejadeconflitooudealiança.

O primeiro estágio para o desenvolvimento da Inteligência Cultural é oentendimento do que é cultura e como sua variação afeta o comportamento.Cultura não é uma variedade aleatória de costumes e comportamentos. Ela écomposta por valores, atitudes e percepções sobre comportamentosintercambiadosporpessoasdeumgrupoespecífico.Sãoaspectossistemáticoseorganizadosqueforamdesenvolvidoscomoresultadodaevoluçãodassociedadesedo seu convívio comproblemas comuns.As culturaspodemserdefinidasdeacordocomseusvaloresascrençasfundamentaisqueaspessoascompartilhamsobre como as coisas devem ser e como o indivíduo a ela sujeitado deve secomportar. É compartilhada e transmitida de geração para geração possuindointensocomponentehistórico15.

A EDUCAÇÃO MILITAR COM BASE NA INTELIGÊNCIA CULTURAL Curiosamente,aaplicaçãomilitardaInteligênciaCulturalnocampodebatalhanãoé um fenômeno do século XIX. Na realidade, ela foi amplamente utilizada porperspicazeschefesmilitaresemconflitosconvencionaiseassimétricosjáapartirdo século V a.C. Durante a Guerra do Peloponeso, tanto os atenienses quantoespartanostiraramproveitodoconhecimentodas“fraquezas”culturaisdeseusoponentes, procurando ao mesmo tempo intensificar sua presumidasuperioridade cultural. Por ocasião do planejamento para a batalha na Ilha deLesbos, os atenienses inicialmente decidiram que o ataque deveria ocorrerdurante um festival religioso local para, assim, serem favorecidos pelo fatorsurpresa. No entanto, em última análise, a ideia foi rejeitada por receio dasconsequênciasqueaintencionadaofensivanaqueladatapudessepromoverentreosaliadosdeAtenasnailha,simbolizandoumpossíveldesrespeitoàculturadopovodeLesbos16.

Em tempos mais recentes, o uso inovador e ousado de Inteligência Culturalalcançou surpreendentes sucessos no campo de batalha, apesar dos escassosrecursosmilitares.DuranteaPrimeiraGuerraMundial,otenente-coronelThomasLawrence,ofamosoLawrencedaArábia,foicapazdeutilizarsuacompreensãodaculturaárabeparaganharaconfiançadeFaisal,oterceirofilhodeSharifHusseinbinAli.ComousodesuaInteligênciaCulturaleletornou-seoconselheirologísticodo movimento rebelde e comandante de um exército de dez mil homens,sustentandoosucessodarevoltaárabecontraosturcosemfavordosinteressesbritânicosnaregião17.

15Ibidem.16KAGAN,Donald,AGuerradoPeloponeso.RiodeJaneiro:Ed.Record,2006,pp.136-137.17BROWN,Malcolm.T.E.Lawrence:LawrencedaArábia.RiodeJaneiro:Ed.NovaFronteira,2006,pp.9-29.

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Valorizando o intercâmbio entre culturas, o desenvolvimento da InteligênciaCulturalenvolve,emlargamedida,conhecimentosafeitosàsciênciashumanasesociais. São estas disciplinas fundamentais para o desenvolvimento do lídermilitarculturalmenteinteligente.ParainteragiredecidircombasenaInteligênciaCultural o oficial necessita reunir conhecimentos caros à Filosofia, Sociologia,Psicologia, História, Geografia, Relações Internacionais e aos idiomas. Para osnovoslíderesmilitares,torna-sedesejávelpossuiramploeaprofundadoestudodahistóriadassociedadesecivilizações.Talconhecimentopassaaadquiririgualimportânciaaofundamentalestudodahistóriamilitardasacademias,atéentãoumaferramentaindispensávelnaconstituiçãodopensamentomilitaresubstitutodaexperiênciadiretaemcombate.

Notocanteànecessidadedeomilitardesenvolveramplitudeedomínioemlínguasestrangeiras, a Inteligência Cultural é pródiga em tal recomendação. Acomunicaçãoéumaferramentafundamentalparaqualquerinteraçãosocial,sejaelenaguerraenapaz.Acomunicaçãointerculturalapresentamuitasbarreirasparaacompreensãocompartilhada,porqueosindivíduosdediferentesculturasnãocompartemasmesmasexperiências,códigosouconvenções.Ashabilidadescomo idiomasão importantes,masacomunicação interculturalenvolvemuitomais que variações nos idiomas ou linguagens. Os códigos e convenções dalinguagemtambémsereferemasinaisnão-verbaiseestilosdecomunicação18.

O ensino de idiomas nas academias militares parece ter se intensificado e seestendido nos últimos anos, extrapolando de vez os corriqueiros cursos daslínguasclássicaspredominantesnomundoocidental.Busca-seagoraestendertalconhecimentoàslínguasorientais,eatéaosidiomasraros.Cadanação,dentrodeseu contexto geopolítico e interesses militares, vêm incrementando o rol deidiomas disponibilizados em suas escolas. Hoje, a Academia Naval dos EUA,sediada em Annapolis MD, oferece aos seus aspirantes um rol eletivo de seteidiomas–árabe,espanhol,russo,francês,alemãojaponêsechinês–atingindo-seacompletaproficiênciaao longodequatroanosdecurso.Emperfeitasintoniacomospreceitosda InteligênciaCultural, os cursosmilitaresde idiomas estãoindomuitoalémdoensinotécnicodalíngua,adentrandoemvertentesculturaisdaidentidadelinguísticadecadapovo19.

UmadasmaioresprioridadesdaMarinhaamericanaedasdemaisForçasArmadasdos EUA é o desenvolvimento da linguagem e da experiência cultural em seuscombatentes, não importando a sua especialidade. Em um recente documentoaprovado pelo Pentágono, o Defense Language Transformation Roadmap, aproficiência em língua estrangeira e o conhecimento cultural são considerados“tãoimportantequantoossistemascríticosdearmas”esãochamadosde“ativosestratégicosnaguerraglobalao terrorismo”.A introduçãodocursodeárabee

18THOMAS,op.cit.,pp.139-157.19UnitedStatesNavalAcademy,LanguagesandCultureDepartment.,Mission.Disponívelem:http://www.usna.edu/LanguagesAndCultures/mission.php.

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chinês na academia de Annapolis se deveu às orientações emanadas pelorespectivodocumento20.

Outro aspecto de interesse para a educaçãomilitar de que trata a InteligênciaCultural se refere à formaçãopara a liderança. Influenciar homens emulherespara que atinjamos objetivos propostos, por si só, constitui umdesafiomuitogrande, mas quando a dinâmica das interações interculturais é adicionada, odesafiosetornaaindamaior.Líderesmilitaresculturalmenteinteligentestendemaconquistarmaioraceitaçãoemumambienteculturalmentediversoenvolvendouma coalizão, forças aliadas ou a abordagem de uma população ou grupopotencialmentehostisemumteatrodeoperações.

ThomaseInksonadvertemqueatentativadeemularocomportamentodeumaliderança pertencente à cultura dos seguidores pode se tornar uma situaçãopotencialmente arriscada. Pode até ser que uma adoção moderada dessescostumes renda ao líder alguma aceitação por parte dos seguidores, mas, emexcesso,estapoderáserinterpretadacomfalsaouofensiva.Gruposculturalmentediversosdeseguidorespodemterexpectativasdistintasquantoàliderança21.

Avisãodefuturodaeducaçãomilitar,emespecialdaquelasnaçõesquealmejamposiçãodedestaqueparasuasforçasarmadasemummundoglobalizado,apontaparaaformaçãodooficial,comolídermilitaraptoaenfrentarosnovosdesafiosdoséculoXXI,sendoeducadoparaatuaremambientesculturalmentecomplexos,sejam em forças de paz, aliançasmilitares ou contra sociedades culturalmenteantagônicas. Conhecer a cultura do inimigo ou aliado, sua história, valores etradições, passou a ser tão importante quanto o conhecimento sobre suacapacidadeeestratégiamilitares.

*ClaudioPassosCalazaécoroneldentistadareservadaForçaAéreaBrasileira,mestreemCiênciasAeronáuticaseespecialistaemHistóriaMilitareAeronáutica.Atua,desde2007,comoinstrutordadisciplinadeHistóriaMilitarnaDivisãodeEnsinodaAcademiadaForçaAérea,emPirassununga/SP.Éautordolivro“1964–PrecursoresdaAcademiadaForçaAérea–ONovoNinhodasÁguias”

20UnitedStatesofAmerica.DepartmentofDefense.DefenseLanguageTransformationRoadmap.Jan2005,p.3.21THOMAS&INKSON,op.cit.p.178.