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SOCIEDADE DE ESTUDOS ITERDISCIPLINARES DA COMUNICAÇÃO INTERCOM 1996 - LONDRINA, PR GRUPO DE TRABALHO DE HUMOR E QUADRINHOS AS CORES COMO NARRATIVA NO SUBTEXTO NÃO- VERBAL: UM ESTUDO DOS QUADRINHOS DE PHILLIPE CAZAMAYOU POR CRISTIANE REGINA CASALE INSTITUTO METODISTA DE ENSINO SUPERIOR COMPROVA-SE A EXISTÊNCIA DE UM TERCEIRO CÓDIGO GRÁFICO-VISUAL (ALÉM DA IMAGEM A TRAÇO E DA LINGUAGEM ESCRITA, CONFORME LUIZ ANTONIO CAGNIN), ATRAVÉS DA OBRA DO AUTOR FRANCÊS DE QUADRINHOS PHILLIPE CAZAMAYOU, ONDE CLASSIFICOU-SE AS PROPRIEDADES DAS CORES COMO FUNÇÕES SEMÂNTICAS CONSTANTES NA TRANSMISSÃO DE MENSAGENS COMUNICACIONAIS. JUNHO DE 1996

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SOCIEDADE DE ESTUDOS ITERDISCIPLINARES DA COMUNICAÇÃO

INTERCOM 1996 - LONDRINA, PR

GRUPO DE TRABALHO DE HUMOR E QUADRINHOS

AS CORES COMO NARRATIVA NO SUBTEXTO NÃO- VERBAL:

UM ESTUDO DOS QUADRINHOS DE PHILLIPE CAZAMAYOU

POR

CRISTIANE REGINA CASALE

INSTITUTO METODISTA DE ENSINO SUPERIOR

COMPROVA-SE A EXISTÊNCIA DE UM TERCEIRO CÓDIGO GRÁFICO-VISUAL (ALÉM DA IMAGEM A

TRAÇO E DA LINGUAGEM ESCRITA, CONFORME LUIZ ANTONIO CAGNIN), ATRAVÉS DA OBRA DO

AUTOR FRANCÊS DE QUADRINHOS PHILLIPE CAZAMAYOU, ONDE CLASSIFICOU-SE AS PROPRIEDADES

DAS CORES COMO FUNÇÕES SEMÂNTICAS CONSTANTES NA TRANSMISSÃO DE MENSAGENS

COMUNICACIONAIS.

JUNHO DE 1996

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SOCIEDADE DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA COMUNICAÇÃO

INTERCOM 1996

AS CORES COMO NARRATIVA NO SUBTEXTO NÃO-VERBAL:

UM ESTUDO DOS QUADRINHOS DE PHILLIPE CAZAMAYOU

POR

CRISTIANE REGINA CASALE

JUNHO DE 1996

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................. 04

2. CORPUS METODOLÓGICO ................................................. 06

2.1. Objetivo ................................................................. 06

2.1.1. Tema ........................................................... 06

2.1.2. Delimitação do Objeto .............................. 06

2.1.3. Objetivos Geral e Específico ...................... 06

2.2. Justificativa ............................................................. 07

2.3. Objeto ................................................................... 08

2.3.1. Problema ..................................................... 08

2.3.2. Hipótese ...................................................... 09

2.4. Metodologia ......................................................... 09

2.5. Embasamento Teórico ............................................. 09

2.6. Definição dos Termos ............................................. 10

3. OS QUADRINHOS DE PHILLIPE CAZA .................................. 11

3.1. Um breve mas importante histórico .......................... 11

3.2. A importância dos subtextos nos

quadrinhos de Caza ................................................. 13

3.3. A consciência cromática de Caza .......................... 15

4. A NARRATIVA CROMÁTICA NO SUBTEXTO NÃO-VERBAL ... 17

4.1 A cor como código narrativo ................................. 17

4.2. A psicologia das cores nos Q de Caza .................. . 18

4.3. A narrativa cromática não-verbal ......................... 22

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................. 41

6. BIBLIOGRAFIA ................................................................ 42

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1. INTRODUÇÃO

s mais de cem anos das Histórias em Quadrinhos trouxeram grandes mudanças para a arte na

narrativa. A imagem o texto, sempre paralelos no desenvolvimento de seus códigos

comunicacionais, foram sendo, em meados do século XIX, repensados em suas formas de

expressão, e todo o potencial de ambas as linguagens-signagens foram recebendo

progressivamente, criativas abordagens dos artistas da época.

Nomes como Jean Charles Pellerin (França-1820), Rudolphe Töpfer (Alemanha-1847),

Wilhelm Busch (Alemanha-1865), Angelo Agostini (Brasil-1869), Franz Thomas (Inglaterra-

1884) entre outros, iniciaram o processo do que conhecemos hoje como Histórias em

Quadrinhos.1

Cada artista expressou diferencialmente a união da imagem e do texto, desenvolvendo

técnicas, temas e linguagens individuais, todos porém, com o objetivo comum de contar uma

história, criar uma narrativa.

Assim como em todas as formas de comunicação que vão tornando-se mais complexas e

evoluindo gradualmente, a narrativa das HQ’s em sua forma e conteúdo foi sendo influenciada e

transformada por experiências linguístico-visuais de quadrinistas no mundo inteiro.

Entre muitas dessas experiências de vanguarda destaca-se o autor de quadrinhos francês

Phillipe Cazamayou (ou simplesmente Caza), que na década de 70, no auge do movimento

hippie de contracultura criou em seu quadrinho, uma “narrativa de subtexto”: uma série de

informações não-verbais transmitidas através das cores, que sequencialmente formariam uma

outra narrativa, quase paralela ao próprio conteúdo narrativo das histórias que criava.

1 Anselmo, Zilda Augusta. A História dos Quadrinhos. Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1975.

O

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5

A transformação da cor em narrativa por Phillipe Caza, ainda que criada na década de 70,

nos remete a atual interdisciplinaridade da comunicação, que tem cruzado códigos, linguagens e

tecnologias para criar novos caminhos na transmissão de mensagens e informações.

É neste contexto acadêmico-tecnológico de novas buscas e questionamentos que se propõe

a análise científica - ainda que superficial - da experiência de vanguarda de Phillipe Caza: a

criação de um código cromático-narrativo não-verbal para o universo dos quadrinhos.

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2. CORPUS METODOLÓGICO

2.1. OBJETIVO

2.1.1. Tema

Tem-se como tema da pesquisa, estudar a utilização das cores como código

comunicacional nos quadrinhos e suas possibilidades pragmáticas na estrutura

narrativa deste meio de comunicação.

2.1.2. Delimitação do Objeto

Quanto a delimitação do objeto, propõe-se estudar as cores como elemento

narrativo nas histórias em quadrinhos de Phillipe Caza, sendo que as histórias

escolhidas para a análise foram:

NOME ORIGINAL

EM FRANCÊS

ADAPTAÇÃO PARA

O INGLÊS

ANO DA CRIAÇÃO /

PUBLICAÇÃO

Romance Romance 1976 / 1980

Dessombre Suburban Scenes:December 1976 / 1980

Envoûtement a l’escalier C Whoodoo the Voodoo ? 1977 / 1981

Overground Overground - / 1980

Du Bruit au Plafond Suburban

Scenes:November

- / 1980

Floration March Hair - / 1981

Arkhê Arkhê 1981-82/ -

2.1.3. Objetivos Geral e Específico

Tem-se como objetivo geral, estudar a criação de um subtexto narrativo não-verbal

nas HQ’s de Phillipe Caza pelo uso das cores através de um código cromático; e

objetivo específico, verificar a utilização das propriedades das cores na composição

da estrutura narrativa da HQ’s de Phillipe Caza.

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2.2. JUSTIFICATIVA

As transformações sociais e tecnológicas trouxeram a necessidade do desenvolvimento de

novas linguagens que acompanhem as características dos atuais meios de comunicação, ou seja,

variados elementos que transmitam grande quantidade de informação em curto espaço de tempo.

Dentro desta nova “sociedade visual” Modesto Farina, em Psicodinâmica das Cores em

Comunicação, fala que “é evidente que, na força comunicativa da imagem, o que predomina é o

impacto exercido pela cor (...)” 2

Este destaque e importância foram tão gradativos e acumulativos quanto a própria

percepção da cor.

Em Homem, Cor e Comunicação, Irene Tiski-Franckowiak cita a antropóloga Christine

Ladd Franklin3, que através de pesquisas descobriu que o homem das cavernas só via em preto,

branco e cinza e que a evolução para a percepção das cores foi lenta e gradual. Atualmente

pesquisas demonstram que evoluimos ao ponto de sermos capazes de perceber milhares de cores

e tons diferentes.

Essa evolução acompanhou também os estudos científicos sobre cores. Se em um momento

anterior a atenção se voltava para as propriedades psico-fisiológicas da cor (sua semântica), hoje

estamos no momento de descobrir a pragmática de sua estrutura, isto é, onde e como podemos

utilizá-la de forma consciente para gerar um resultado específico de mensagem.

Lúcia Santaella, em seu livro Cultura das Mídias, afirma que

“os níveis e graus de importância de cada código e os movimentos das

hierarquias entre os códigos vão compondo mensagens semioticamente

2Psicodinâmica das Cores em Comunicação. Ed. Edgard Blücher, São Paulo,1982., pgs. 25 e 27

3Evolution of Sensation of Colour. Ed. Pergamon, Oxfor, 1976, pág .77, apud Tiski-Franckowiak.

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diversificadas nas quais impera não a redundância, mas a cooperação

intercódigos, interlinguagens tanto na formação da mensagem quanto no efeito

de compreensão a ser produzido no receptor.” 4

Ainda em Cultura das Mídias, Lúcia Santaella coloca também a falta de pesquisas cujo

objeto de análise seja os processos de cruzamento e fusão que os códigos comunicacionais sofrem

com as (ainda recentes) mídias:

“A maior parte dos estudos dos meios de comunicação são conteudistas, isto é,

buscam nas mensagens apenas seus conteúdos verbais ou verbalizáveis. Esses

estudos se esquecem das peculiaridades e riquezas que as interações entre

linguagens pode criar (...) Em síntese: fica negligenciado o fato de que o modo

como essas mensagens se articulam é tão importante para a recepção quanto

aquilo que elas dizem.”5

A obra quadrinhística de Phillipe Cazamayou justifica-se como objeto de pesquisa ao

representar dentro de todo o panorama, um dos trabalhos mais importantes do cenário mundial da

mídia história-em-quadrinhos: desenvolve com o código comunicacional cor, um trabalho de

interação entre os movimentos hierárquicos quando a utiliza não apenas como diferencial de

tonalidade nos ícones de suas histórias, mas como elemento narrativo, produzindo diferentes

efeitos na leitura do conjunto de códigos (a HQ) e consequentes variações em sua interpretação.

2.3. OBJETO

2.3.1. Problema

Podem as cores, através de um código sistemático, criar uma narrativa não-verbal,

no subtexto das histórias em quadrinhos?

4Cultura das Mídias. Ed. Razão Social, São Paulo, 1992, pág. 27.

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2.3.2. Hipótese

As HQ’s de Phillipe Caza da década de 70 demonstraram que as cores, sendo

utilizadas de forma sistemática, podem criar uma narrativa não-verbal nos

subtextos das histórias em quadrinhos.

2.4. METODOLOGIA

Serão utilizados o método de abordagem indutivo, e o método de procedimento

monográfico, dado o estudo de caso deste trabalho. Será utilizada também entrevista pessoal com

Phillipe Caza (realizada entre Maio e Junho de 1996), além de técnicas de documentação

indireta.

2.5. EMBASAMENTO TEÓRICO

Será utilizada a Dissertação de Mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo de Luis

Antonio Cagnin, nominada Os Quadrinhos (cuja base teórica encontra-se em sua bibliografia) e

a estrutura sistêmico-gráfica desenvolvida na obra pelo ator.

Também serão utilizadas as teorias cromáticas de Modesto Farina em seu livro

Psicodinâmica das Cores em Comunicação, assim como as de Irene T. Tiski-Frackowiak em

Homem, Cor e Comunicação.

5Cultura das Mídias. Ed. Razão Social, São Paulo, 1992, pág. 28.

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2.6. DEFINIÇÃO DOS TERMOS

Subtexto “é o que está implícito no texto, nas entrelinhas. O subtexto pode aparecer nos

gestos, nas atitudes e postura dos personagens ou subtendido na fala”, na definição de

Doc Comparato em seu livro Roteiro: arte e técnica de escrever para o cinema e

televisão, como cita Flávio Calazans em sua Tese de Doutorado pela Universidade de

São Paulo, Propaganda Visual Subliminar Gráfica: Dos Iconesos ao Subtexto, um

Estudo de Caso. 6

Contexto, de acordo com Luiz Antonio Cagnin em Os Quadrinhos, são os dados que

envolvem ou antecedem a comunicação visual.7

Código é um “conjunto de signos e regras para sua combinação, que são usados no

envio e recepção de mensagens; um sinônimo de sistema de signo”, na definição de Jan

M. Meijer 8, como cita Lúcia Santaella em seu livro Cultura das Mídias.

Narrativa, citando Cagnin “é assim um produto de unidades articuladas segundo certos

princípios. É uma série articulada organizada de acontecimentos (...). Estabelece

unidades e organizando-as, forma um conjunto de normas, o código narrativo.” 9

Não-Verbal representando tudo o que não é verbo, seja em formas, cores, gostos,

cheiros ou sons.

6Calazans, Flávio Mário de Alcântara. Propaganda Subliminar Visual Gráfica: Dos Iconesos ao Subtexto, um

Estudo de Caso. Tese de Doutorado pela Universidade de São Paulo. São Paulo, 1993. 7 Cagnin, Luiz Antonio. Os Quadrinhos. Ed. Ática, São Paulo, 1975., pág. 46

8Concerning Clustering of Codes, mainly in Art and Culture. Multimedial Communication. Hess-Lüttich (ed.),

1982, pág.26, apud Santaella. 9Os Quadrinhos. Ed. Ática, São Paulo, 1975. pág. 155

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3. OS QUADRINHOS DE PHILLIPE CAZA

3.1. UM BREVE MAS IMPORTANTE HISTÓRICO

Não há dúvidas que o contexto histórico em uma descrição biográfica é tão importante

quanto a própria biografia em questão. No que se refere a Phillipe Caza, o contexto histórico de

Paris na década de 70 foi tão fundamental para sua produção quadrinística quanto sua própria

biografia.

Caza nasceu em 1941, em Paris, e aos sete anos foi para Haute Savoie, uma cidade do

interior da França, de onde só retornou com 18 anos. Sua família é de tradição artística, com pai

artista-colorista e mãe desenhista e professora. Após o retorno a Paris, trabalhou na publicidade,

desenhando e lidando com técnicas gráficas de imagens e cores.

O contato com o ambiente publicitário sempre o desagradou profundamente, mas apesar

disso manteve-se através da atividade de desenhista-colorista, desempenhando a função por mais

de 10 anos. Paralelamente, formou-se Bacharel em Filosofia (em essência, seu perfil mais

verdadeiro) e estudou Art Déco.

Porém, um dos maiores fatores a influenciar a obra de Caza é a participação ativa no

movimento hippie de contracultura, o Flower Power, que como em nenhum outro lugar, teve em

Paris sua mais forte manifestação: a tomada do poder pelos jovens em Março de 1968.

Partindo dessa máxima, pode-se ter um panorama da intensidade dos acontecimentos e

emoções existentes em todo o cenário da época, com os encontros feitos de música e LSD, os

protestos em praça pública, as idealizações e reivindicações da geração hippie.

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Considerar essa mesma força como impacto para a vida de Caza é fundamental para a

compreensão abrangente de sua obra, cujos significados e relevância dependem, em boa parte, do

conhecimento histórico e psico-cultural no qual ele estava inserido.

Além disso, para perceber o trabalho cromático das histórias, é necessário conhecer também

o estilo artístico da época, o psicodelismo (do grego e depois francês psychê - alma, espírito,

intelecto e do grego delos - visível, manifesto, evidente), que é na Arte, a forma a expressar o

conteúdo hippie, em sua força e energia.

É através do traço solto, com exageros e toques de surrealismo no desenho, que o

psicodelismo fala da liberdade, do explorar o desconhecido, da criatividade sem preconceitos. As

cores quentes de tons fortes expressam os mesmos sentimentos de vida, alegria e espontaneidade

- a voz hippie enfim.

A primeira publicação de Caza acontece em 1970, com uma história em estilo psicodélico

de 10 páginas chamada Kris Kool. Foi Eric Losfeld (que ao vê-la incentiva o autor a aumentá-la

de cinco para dez páginas) que a publica e inicia a carreia de Caza.

Logo após vem a publicação de Quand les costumes avaient des dents (Quando os ternos

tinham dentes), com também desenho e cores psicodélicas. A história demonstra a consciência e

participação de Caza em todas as vertentes do movimento: o roteiro, nascido para uma campanha

publicitária, fala sobre “simpáticos” ternos que devoram as pessoas que os vestem! Depois da

recusa (por motivos óbvios) do cliente fabricante de ternos, a idéia é transformada em HQ e

publicada em seguida.

Sempre na ativa, o autor teve suas histórias publicadas nas maiores revistas de quadrinhos

adultos, como Pilote, Metal Hurlant e Heavy Metal.

Em 1985 realizou em conjunto com produtores franceses o desenho animado Gandahar,

exibido no Brasil no circuito de Cinemas de Arte, em maio de 1995.

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Atualmente (e desde meados da década de 80), Phillipe Caza tem publicado pela editoras

Humanoides Associès, Dargaud e La Sirène (respectivamente), produzindo uma memorável

coleção de álbuns. Este ano lançou pela Le Pythagore Editions uma série de trabalhos diversos

como crayonnes (desenhos feitos à lapis), litografias, serigrafias e coleção de cartões, todos

assinados com tiragem limitada.

3.2. A IMPORTÂNCIA DOS SUBTEXTOS NOS QUADRINHOS DE CAZA

A série de histórias “Scenes de la Vie de Banlieue” tem como tema principal a vida urbana

da Paris da década de 70, retratando todos os conflitos entre a sociedade conservadora francesa e

os libertários-pacíficos hippies, de forma poética e intimista.

Nesta série, o autor se auto-retrata e torna-se morador de um prédio popular (os chamados

pombais no Brasil), colocando como personagens de sua visão urbanofóbica um vizinho e sua

esposa - Yvonne e Marcel Miquelon -, ambos com pouco mais de meia-idade.

É neste contexto que encontramos o subtexto nas histórias de Phillipe Caza: utilizando

elementos não-verbais, o autor transforma um casal de vizinhos no estereótipo da ignorância e

mediocridade, descrevendo assim, o perfil da vida de um cidadão da sociedade convencional pela

ótica de um hippie.

Percebe-se gradativamente, por exemplo, a falta de diálogo entre Yvonne e Marcel: quando

aparecem juntos, ela faz tricô e ele assiste (visivelmente entediado) a televisão, porém sempre

calados, como estranhos que nada têm a dizer um ao outro.

Em nenhuma cena Marcel dedica algum tipo carinho ou elogio a Yvonne: a relação, além

de assexuada, é também distante, sem proximidade física ou emocional. Percebe-se até mesmo

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uma irritação mútua, característica dos relacionamentos muito longos cuja rotina é a tônica

principal. O amor é, sem dúvida, o grande “objeto” da revolução hippie e o autor trabalha muito

desse universo em seus quadrinhos.

Marcel é também funcionário de escritório, com um serviço sistemático e entediante:

despachar com carimbos documentos e mais documentos, sendo observado e controlado todo o

tempo por seu chefe. Além de vestir terno e gravata, utiliza o metrô (lotado) como transporte

para o trabalho. A crítica é para a deprimente e medíocre falta de vida e liberdade que o morador

urbano não percebe ser vítima, mas que insiste em defender e viver.

Indivíduo irritadiço, Marcel está sempre querendo tirar satisfações com os vizinhos de

prédio, batando no teto ou chão de seu apartamento com a ponta da vassoura, com o objetivo de

fazer com que os outros parem de incomodá-lo, chegando muitas vezes até mesmo a ir a porta de

seu vizinho para dizer-lhe como se “sente em relação a isto ou aquilo”. Na verdade, o fiel retrato

de um típico relacionamento dos moradores de pequenos apartamentos em Paris: eternas

reclamações, mútua intolerância, implicâncias mesquinhas...mais uma crítica à falta de

privacidade e espaço que geram lutas pelo tão escasso e comprimido “território”.

Yvonne é a esposa dona-de-casa, que não possui uma personalidade definida (o que

também nos remete a submissão das mulheres que “esquecem” suas vidas em função da família).

Típica senhora que dorme com “bobes” nos cabelos, Yvonne trata Marcel como se fosse não um

marido, mas um filho. Mais uma vez, a crítica do autor é a vida “desamorosa”, o abandono aos

sonhos e a perda da própria personalidade.

Esses são, na verdade, alguns dos elementos com que Caza desenha e ilustra a censura e

incompreensão dos mais velhos, a vida artificial longe da natureza, o trabalho burocrático e

tediante, a resistência ao novo, a desumanidade das pequenas e apertadas caixas-de-concreto - os

prédios (para Caza símbolo de todo o absurdo que a cidade representa), a carência afetiva, a

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solidão e o tédio, o desprezo, a falta de amor à cultura e às artes, enfim, a total inexistência de

poesia e beleza da - com as próprias palavras do autor - socièté dégénérale 10

francesa.

Estes elementos, apesar de já demonstrarem riqueza de conteúdo e de estrutura narrativa,

não foram os únicos a serem usados para criar um subtexto não-verbal: faltam ainda as cores,

que no trabalho de Caza, assumiram um papel central na composição narrativa-visual de suas

histórias.

3.3. A CONSCIÊNCIA CROMÁTICA DE CAZA

O envolvimento com as cores de Caza é, na verdade, bastante anterior ao seu trabalho com

os quadrinhos. Através de entrevista pessoal realizada por fax entre Maio e Junho deste ano, Caza

diz que ele começa na infância:

“Criança, pintando, eu me disse: ‘O vermelho é muito bonito. O verde também é

muito belo, misturando-se os dois, vou obter alguma coisa ainda mais bonita!’”

O resultado não tão bonito (um “marrom sujo”) deu-lhe uma maior consciência sobre as

cores, uma consciência certamente ampliada no envolvimento com a publicidade, mas nascida

dentro de sua própria família:

“Eu creio, sim, ter uma profunda relação com as cores. (...) A cor é a vida! (...) É

sem dúvida muito significativo saber que meu avô e meu tio foram artistas-

pintores, minha mãe professora de desenho (mas mais colorista que desenhista

10

Este é na verdade, um dos muitos trocadilhos com o idioma francês feitos por Caza. Socièté Générale é uma

conceituada instituição financeira da França. Ao acrescentar a sílaba “de” a expressão toma sentido duplo:

sociedade degenerada em relação a instituição (simbolizando todo um sistema de vida sócio-financeiro) e a

crítica-alerta à sociedade atual, com a perda dos valores humanos, o paradoxo da involução cultural e a própria

degeneração da raça humana (argumento que tem estado bastante presente em obras mais recentes de Phillipe Caza).

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(...) Eu penso que o fato de ter sempre visto em minha infância, cercado de

pintura, é importante...”

Sem dúvida que essa proximidade com o universo das cores e do desenho desde muito cedo

vai influenciar a concepção cromática de Caza, e sua participação no movimento hippie vem

contribuir ainda mais para essa consciência do poder expressivo da cor, surgida de tantos

caminhos diferentes.

Mas assim como acontece em qualquer arte, o trabalho de Caza foi transformando-se e

evoluindo, e o que nas primeiras histórias era mais intuição, com o tempo foi passando a ser mais

técnica e mais consciência. O cromatismo seguiu a mesma regra e será possível perceber isso na

análise do capítulo seguinte, com as diferenças na aplicação das cores das HQ’s da série Scenes

de la Vie de Banlieue da década de 70 e da história Arkhê, datada de 1981-82.

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4. A NARRATIVA CROMÁTICA DO SUBTEXTO NÃO-VERBAL

4.1. A COR COMO CÓDIGO NARRATIVO

Alguns pesquisadores têm percebido a cor como um processo muito mais complexo do que

apenas espectros óticos de luz. Em Psicodinâmica das Cores em Comunicação, Modesto Farina,

além de afirmar que “a cor é uma linguagem individual” (pág.27), traz pesquisas (ainda que não

totalmente compreendidas) de 1953, afirmando que

“(...) a distinção das cores, sua identificação, sua denominação e quaisquer

reações estéticas a elas são todas funções do córtex. O córtex (...) é a parte do

cérebro que se ocupa das sensações estéticas, de onde se conclui que a visão

cromática resulta do desenvolvimento e da educação do indivíduo.” 11

Irene T. Tiski-Franckowiak, em Homem, Cor e Comunicação,12

reforça a idéia de que a cor

pode ser utilizada como elemento individual na comunicação quando diz que

“Na comunicação, a cor tem uma função bem definida e específica, deve ajudar

na clareza da mensagem a ser transmitida. A cor, às vezes cria o clima desejado

e fala por si só, o que deve ser aproveitado como instrumento técnico.” (grifo

meu).

E novamente é em Os Quadrinhos, de Antonio Luiz Cagnin, que se vai buscar a essencial

estrutura de decodificação narrativa nos quadrinhos, onde ele cita:

“A história-em-quadrinhos é um sistema narrativo formado por dois códigos de

signos gráficos: a imagem, obtida pelo desenho; [e] a linguagem escrita.”13

11

Farina, Modesto. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. Ed. Edgard Blücher, São Paulo,1982., pág.109 12

Tiski-Franckowiak, Irene T. Homem, Cor e Comunicação. Ícone Editora, 1991, São Paulo, pág. 109. 13

Os Quadrinhos. Ed. Ática, São Paulo, 1975. pág. 25

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18

Ora, se “código” é um conjunto de signos e regras usados no envio e recepção das

mensagens e se as cores possuem e involuntariamente nos transmitem associações psico-

sensoriais, logo a utilização das cores, cuja transmissão das mensagens cromáticas seja feita por

um processo regular, poderá ser denominada código, e seu encadeamento, neste caso cronológico,

poderá ainda ser classificado como narrativo. A atuação desse código narrativo ocorrendo no

domínio do que está implícito na HQ, o colocará na definição de subtexto não-verbal.

4.2. A PSICOLOGIA DAS CORES NOS Q DE CAZA

As cores nos quadrinhos têm sido trabalhadas com bastante intensidade desde a década de

70. Apesar de ainda ter um alto custo financeiro, muitas experiências têm surgido em várias

partes do mundo. Phillipe Caza é um dos autores cujo reconhecimento do trabalho inclui também

a preocupação e inovação quanto ao processo cromático no quadrinho.

No mais recente livro de História e análise do quadrinho - Desvendando os Quadrinhos -,

Scott McCloud cita Caza ao falar sobre as cores de Hergé:

“No entanto, outros como Claveloux, Caza e Moebius viram nessa impressão

superior [das cores] uma oportunidade de se expressarem através de uma paleta

subjetiva mais intensa.” 14

Outro livro, na verdade uma vasta obra francesa da história do quadrinho mundial, L’Art de

la BD: du Scénario à la Réalisation, ao citar Caza também destaca a influência psicológica de

suas cores, ao dizer que produzem eficazmente uma ambientação ou clima de mistério, drama,

suspense; novamente apenas cores para gerar atributos não-verbais nas histórias. E como isso

pode ocorrer?

14

McCloud, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Ed.Makron Books, São Paulo, 1995, pág. 190

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19

As cores, como se sabe, são freqüências de ondas de luz que naturalmente atuam sobre a

emotividade, provocando reações sensoriais involuntárias ao corpo humano.

Apesar das cores já possuirem uma natural correspondência com um determinado estado

psíquico ou emocional, a associação cromática e suas influências de fato só acontecem dentro de

um contexto, ou seja, de acordo com onde e como a cor está sendo utilizada, poderá haver

siginificativas alterações dos predicativos cromáticos.

Em Os Quadrinhos, Cagnin fala sobre esse contexto e a função na recepção dos estímulos

visuais:

“(...) ao receber um estímulo (...) podemos perceber o objeto real e receber outras

informações acessórias, se houver capacidade de organizar as sensações

recebidas e de as relacionar com os dados que envolvem ou antecedem a

comunicação visual; estes dados são o que chamamos de contexto.”15

Para o trabalho cromático de Phillipe Caza (ao menos quanto a sua primeira fase que

costuma-se chamar “urbana”), essa capacidade de interpretar o contexto é, sem dúvida,

fundamental.

Isso porque a “leitura” das cores e as associações psico-emocionais feitas vão estar

relacionadas ao contexto das histórias, ou seja, para haver uma correta interpretação é necessário

perceber que Scenes de la Vie de Banlieue se passa na Paris da década de 70 em pleno

movimento hippie, em prédio de pequenos apartamentos onde existe um forte conflito de

gerações e de vizinhos, e que em na série de trabalho como Arkhê as histórias possuem outros

objetivos de mensagem, sendo quase todas, metáforas de temas universais.

15

Os Quadrinhos. Ed. Ática, São Paulo, 1975, pág.46

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20

A partir da relação das cores com esse contexto é possível perceber um padrão particular de

significados para as cores de Caza, um código, que decodificado faz possível uma interpretação-

leitura da HQ através da cor, ressaltando o subtexto existente por trás do roteiro verbo-

iconográfico.

A análise é feita com as cores básicas do arco-íris (vermelho, laranja, amarelo, verde, azul,

índigo, violeta) com apenas uma variação de matiz, o amarelo-limão, além de nuances

acromáticas preto, cinza e branco.

COR ASSOCIAÇÃO POSITIVA ASSOCIAÇÃO NEGATIVA

VERMELHO Vida, energia, coragem, vigor Perigo, raiva, alerta, descontrole

LARANJA Intensidade, ação Revolta, vingança

AMARELO Alegria Tensão, crise, transição, ansiedade

VERDE Vegetação, natureza Desconforto, repulsa, agonia

AZUL Frescor, calma, exotismo,

fantasia, eternidade, liberdade,

espaço, verdade, felicidade

-

ÍNDIGO Grandeza, profundidade, justiça,

nobreza, espiritualidade

-

VIOLETA - Fúnebre, decrépito, degeneração,

melancolia, inércia,

AMARELO-LIMÃO - Desarmonia, decepção, mau-humor,

orgulho

PRETO - Pessimismo, opressão, dor, fim

CINZA - Tédio, desencorajamento,

infelicidade, decadência, carência

vital

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21

BRANCO Harmonia, paz, pureza -

O encontro de várias cores (geralmente primárias ou quentes com poucas alterações nas

tonalidades principais) em um único quadrinho de Caza modifica a análise, passando a ser uma

interpretação da simultaneidade das cores e não de seus significados quando isoladas.

No aspecto geral, pode-se dizer que essa simultaneidade é uma ode à vida, acompanhando

ou atmosfera de sonho e fantasia ou uma atmosfera onde esteja em questão a liberdade e a

conquista do ideal particular de felicidade.

O preto e o branco geralmente estarão complementando outras cores, dando sentido

positivo (para o branco) ou negativo (para o preto).

A escolha dos aspectos positivos ou negativos para as cores que possuam atributos nos dois

sentidos dependerá das outras que a acompanharão, segundo o contexto da história.

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22

4.3. A NARRATIVA CROMÁTICA NÃO-VERBAL

A análise das histórias-em-quadrinhos será feita a partir de elementos de ambientação da

HQ, tez dos personagens (cuja relação com a mensagem psicológica é direta), segundo a própria

compreensão das cores por Caza:

“Há em mim esta idéia de que a cor, em HQ não devia somente servir a traduzir

a realidade ou identificação dos personagens (...). Tenho a idéia de que a cor

deve ser mais agradável, mais excitante, se fundir sobre as vontades estéticas

surpreendentes, mais poética que realista, mas também e sobretudo servir a

narração, com as noções de impacto ou de “feeling” (...)”

“Pode se falar também de cor “expressionista” (...) O mais importante seria

exprimir os ambientes, as emoções, sentimentos, e os comunicar ao expectador-

leitor. (...) Eu, o faço nos “Banlieue” com uma certa exageração, uma certa

evidência no simbolismo (...)”

ROMANCE

PAGINA 1 PAGINA 2 PAGINA 3

1 2 3 10 11 12 16 17 18 19

4 8 13 20 21

6 7

5 9 14 15 22

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É uma das histórias cuja narrativa cromática tem mais força e é mais explícita.

A primeira página mostra uma mulher jovem, sozinha em um apartamento, chorando muito

deprimida. Ela consome pílulas anti-depressivas (que tira de uma máquina fornecedora instalada

em seu próprio apartamento). Quando vai consumir algumas delas, vê um anúncio de uma

empresa de serviços (não identificado) em uma revista e entra em contato passando seus dados

pessoais.(Q1 a 9) 16

Toda a página é marcada por um roxo-acinzentado. Nada mais explícito: o roxo (que é uma

variação tonal do violeta) vem trazer o tédio, a inércia e a melancolia de uma vida urbana,

associações reforçadas pelo desencorajamento, infelicidade e carência vital do cinza.

O único detalhe diferentemente colorido é o anúncio da revista, que aparece em dois quadrinhos

(Q6,7) em tons rosa e amarelo. O rosa (vermelho+branco) do amor e ternura e o amarelo da

alegria vão ser para a personagem, um elo com a vitalidade perdida de um mundo triste e

acinzentado. Nesta página, o subtexto é a crítica à sociedade urbana, decadente, artificial e vazia.

No primeiro quadrinho da segunda página, a sala do apartamento continua toda em tom roxo-

acinzentado, sendo que novamente o diferencial cromático é o anúncio da revista, em tons

quentes na figura de um príncipe. (Q10)

Do segundo quadrinho em diante, quando o príncipe do anúncio chega à porta, é que se pode

perceber com certeza que é ele quem traz cores - literalmente - à vida da jovem. Todo o ambiente

fica colorido sendo que o foco de emissão da “luz” é o príncipe. Ele canta e toca para ela e aos

poucos a personagem vai se deixando envolver em situações oníricas. O último quadrinho da

página é bastante colorido, com predomínio do azul. Ocorre aqui, a simultaneidade cromática,

quando a personagem principal atinge o máximo de seu sonho, no mesmo momento em que toca

a sineta do marcador de tempo que o príncipe leva preso à cintura. Ele representa o amor e a

beleza, ideiais de felicidade da jovem protagonista. (Q10 a 15)

16

Q = quadrinho

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A terceira página é ainda mais explícita: o príncipe se despede e no momento em que fecha a

porta, tudo volta a ser cinza, restando colorido, apenas o bilhete de cobrança pelos serviços

prestados. O príncipe sai do prédio e entra no carro da empresa, onde um motorista o espera

impaciente para um próximo serviço. Ele novamente, é o único elemento colorido. No último

quadro, por uma avenida onde todo trânsito e a multidão de pessoas é cinza, o carro se destaca,

sendo também o único detalhe em cores do contexto. (Q16 a 22)

As cores acompanham todos os elementos que representam a vida, a alegria e a liberdade, sendo a

cor, nesta história, um terceiro personagem, podendo transmitir com facilidade, todo o sentido e o

argumento da HQ.

A narrativa cromática de Romance fica, então, assim:

melancolia, tédio, carência vital

inércia

tédio, carência vital

melancolia, tédio, energia

carência vital, energia

melancolia

melancolia

melancolia, energia

vida, intensidade, alegria, fantasia

vida, ação, alegria, liberdade, fantasia, felicidade

vida, ternura, amor, liberdade, espaço, fantasia, felicidade

vida, ternura, decadência

decadência, energia

energia, decadência

energia, decadência

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25

infelicidade, decadência, energia

energia, decadência

decadência, infelicidade, tédio, opressão, dor, energia

DESSOMBRE

PAGINA 1 PÁGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

5 6 7 8

18

9 10 11 12

1 2 3 17

13 14 15 25 26 27

19 20 21

22 23 28

4 16

24

Dessombre é toda, basicamente, em duas cores, porque fala de dois momentos, dois

mundos separados pela cor, realidades que se transformam pelas cores existentes.

O primeiro quadrinho da primeira página mostra o único personagem decidindo-se por

mudar as cores cinzentas de seu apartamento. Ele coloca um carpete verde e pinta todo o

(pequeno) apartamento de azul, dormindo logo em seguida. Cinza mais uma vez é a realidade

decadente da infeliz vida urbana. O azul e verde são usados para trazer os tão fundamentais

espaço e natureza que a cidade não conhece mais. (Q1 a 4)

A segunda página vai, gradualmente, mostrando a percepção, consciência do personagem

das transformações sofridas por seu apartamento durante seu sono: o azul das paredes se

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transforma em céu azul, o carpete verde, em grama, e o mínimo apartamento é agora um imenso

espaço livre! É o poder das cores, criando vida e espaço, mudando a realidade. (Q5 a 16)

A terceira página é marcada pela euforia de ter de volta a vida natural. O personagem,

vibrando de alegria, pula e se solta por todo o imenso espaço que acredita ter: acaba indo de

encontro a parede, que afinal sempre esteve lá, pois tudo não passou de uma ilusão, de um desejo

desesperado de que fosse verdade. É o azul da liberdade, do espaço, do frescor, da fantasia, da

felicidade que traz e recria os sentimentos de se viver em contato com a natureza. A blusa do

pijama que ganha outras cores e alguns detalhes em vermelho dão energia e vigor ao personagem.

Os últimos quadrinhos da página são o retorno ao mundo real, à vista da janela de onde só se vê

outros prédios e a obstinação do personagem de se adaptar ao mundo cada vez mais sujo e

cinzento. (Q18 a 24)

O primeiro quadrinho da última página mostra a mistura de várias cores - o amarelo, o

rosa, o azul, o laranja - para a obtenção do cinza, com o qual o personagem decide pintar agora

seu apartamento. Mas é terminar a tarefa de “voltar ao mundo real” através da cor cinza, que o

sonho renasce: a tinta não adere bem e pequenos lascos começam a cair por toda a parede,

parecendo ser pequenos blocos de neve. (Q24 a 28)

Para Dessombre não há necessidade de uma narrativa cromática, porque ela é uma

metademonstração da narrativa da cor. Segundo Phillipe Caza,

“Dessombre é uma história típica, pois é uma história que fala da cor... a cor é

um dos personagens, quase... É uma fábula sobre o poder da imagem, do

imagináiro, de esperança, do sonho. É a ingenuidade de pensar que repintando o

mundo de azul e verde, isto o fará mudar...Em um mundo cinza, morto, a cor é a

vida! Ao entrar no sonho, flutua...para depois recair quando se bate no muro da

realidade...Abatimento, desespero, desgosto, renúncia, depressão: pinta-se tudo

de cinza. Mas por meio deste cinza, o sonho volta com obstinação, o sonho e a

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esperança (para mim a neve é qualquer coisa de alegria, de poético, uma festa...é

qualquer coisa de puro, que limpa tudo)...”

ENVOÛTEMENT A L’ESCALIER C

PAGINA 1 PÁGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

8

9 10 15 16

1 2 3 22 23 24

11 12

13

17 18 19

4 6

25 26

5 7

14 20 21 27 28

Whoodoo the Voodoo? é o nome dado em inglês para uma das histórias mais bem narradas

“cromaticamente” por Caza em sua primeira fase urbana.

A primeira página mostra Marcel e Yvonne em seu apartamento violeta, quando a pele de

Marcel sofre uma pequena ruptura na altura da testa, mas rapidamente começa a se abrir por todo

o rosto e ele em segundos se transforma em um verdadeiro monstro, em tons de vermelho e

verde. O violeta do apartamento é representativo de todo um subtexto complexo de como é e

vive o casal Miquelon: decrépitos e inertes de corpo e alma, cuja vida é sinônimo de tédio e

ignorância. Caza simboliza em Yvonne e Marcel tudo o que representa a não-vida, ou seja, a

morte (física, mental e espiritual) que tem como cor associativa, o violeta. (Q1 a 7)

Na segunda página Yvonne corre para o vizinho (o personagem auto-retratado de Caza) em

busca de ajuda, que acaba sendo arrastado para o apartamento onde vê Marcel balbuciar alguns

grunidos, totalmente desfigurado. O corredor do prédio, sempre amarelo-limão, ilustra a

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28

desarmonia dos pequenos prédios, com seus outros tantos moradores mau-humorados idênticos à

Marcel, decepcionantes e orgulhosos. (Q8 a 14)

O azul marca os primeiros quadrinhos da terceira página, quando o “vizinho” chamado

vomita ao ver o estado de Marcel, ficando verde em seguida. Sem muita preocupação, liga para a

emergência médica e volta ao seu apartamento (agora estranhamente decorado e em preto e

vermelho), onde pára em frente a uma mesa que tem em sua superfície, dois crânios com velas

acesas.

O azul dos primeiros quadros, que se passa no corredor do prédio (e que portanto deveria

ser amarelo-limão), corresponde a calma e a sensação de liberdade do personagem de Caza ao ver

o estado do insuportável vizinho. Com o preto e vermelho do interior de seu apartamento, faz-se

a associação de energia negativa, opressora, dolorosa, contrária a energia da vida.

A ultima página mostra o feitiço ou voodoo feito em um papel pelo personagem de Caza,

que está agora queimando-o (e nunca mais querendo fazê-lo novamente), ao mesmo tempo em

que o médico sobe as escadas amarelo-limão e encontra o apartamento violeta, agora ainda mais

decrépito com o estado de Marcel que, simultaneante a queima do papel-voodoo pelo personagem

de Caza, sofre uma combustão espontânea. A chegada do médico tem na onomatopéia da sinere

na cor azul, a promessa de libertação da dor e do mal.

Assim, a narrativa cromática de Envoûtement a l’escalier C fica com as seguintes

associações:

decrépito, inerte

decrépito, inerte

decrépito, inerte, ação, vingança

decrépito, intensidade, perigo, fim

decrépito, intensidade, perigo, fim, agonia

desarmonia, tensão

decrépito, intensidade, agonia

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calma, liberdade, desconforto, repulsa

calma, liberdade

desarmonia

perigo, descontrole, raiva, dor, fim

tensão, liberdade

agonia, desarmonia

ação, revolta, ansiedade

decrépito, inerte

ação, revolta, intensidade

decrépito, ação, intensidade, transição

OVERGROUND

PAGINA 1 PÁGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

1 6 7 8 10 11 12 13 21 22

2 314 15 16 17 18

923

4 5 19 20

PÁGINA 5 PÁGINA 6 PÁGINA 7 PÁGINA 8

24 2532 33 35 36 50 51

52 5326 27 28 37 38

29 30 31 34 39 40 41 42 54

Overground é a história que pode sintetizar a relação entre os hippies e sociedade

convencional da Paris da década de 70.

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30

Na primeira página dois hippies chegam ao prédio e cumprimentam Yvonne. Ao irem

dormir Yvonne e Marcel escutam música vinda do apartamento vizinho dos hippies e Marcel

decide ir até lá, para fazê-los parar. O violeta é agora a cor não de um apartamento, mais de toda

uma cidade, que para Caza representa o oposto de tudo o que é vida e felicidade, um violeta que

simboliza a morte dos desejos e apatia total do absurdo urbano. Amarelo-limão para os

corredores do prédio que representa, além a falta de harmonia entre os moradores, o orgulho e

mediocridade da sociedade convencional, que cercada de concreto e poluição vive sem perceber

o quanto se destrói. Ao decidir ir até o apartamento dos hippies, o quarto de Marcel fica laranja

(uma revolta indignada) e logo depois ele mesmo se torna vermelho de raiva (uma raiva

simbólica de toda a sociedade convencional contra figuras que contrastem e ameacem o status

quo). (Q1 a 5)

A segunda, terceira, quarta, quinta e sexta página é a ida de Marcel ao apartamento dos hippies e

o contato com eles. Assim que chega, Marcel se surpreende com o interior do apartamento de

madeira, com lâmpadas à gás, e lareira ao invés de TV. Ele bebe, conversa e percebe a harmonia

do grupo, o visível bem-estar de cada um, uma alegria serena que desperta nele boas lembranças

dos avós em tempos passados. Quando Marcel pergunta sobre como fizeram a decoração interna

do apartamento, o personagem de Caza lhe chama até a varanda e mostra o céu com luar e

estrelas, dizendo que aquela é que é a decoração. Marcel, que agora se tornou “amigo” dos

hippies, ao voltar para seu apartamento frio e vazio decide quebrar tudo para ficar com a

verdadeira decoração, que é a natureza. A polícia é chamada e os hippies, da varanda, comentam

que aquele é um a menos para se preocuparem, e que para ele é tarde demais. (Q6 a 54)

As cores são em todos os momentos bastante significativas: na segunda e terceira páginas, a

cor predominante é um marrom (relacionado a segurança ou paternidade), além de vermelho-

alaranjado focalizado nos personagens, traduzindo vida, energia e coragem do grupo de hippies.

(Q6 a 20)

Na quarta e quinta páginas o vermelho predomina, vindo do fogo da lareira, seguido por

focos de amarelo. Agora a associação cromática de subtexto vai além do grupo de hippies: a

energia de vida, vitalidade, a coragem e o vigor estendem-se ao lugar onde o hippie quer ficar, ou

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31

seja, ele quer um lugar que lhe transmita vida e onde ele seja permitido ser e viver alegremente.

(Q21 a 31)

A sexta página é onde Marcel vê o luar com as estrelas que vai ‘transformá-lo”. A

associação cromática do índigo é a grandeza e nobreza da alma, a profundidade, a espiritualidade

e a justiça buscada pelos hippies, que é o que justamente vai modificar o comportamento de

Marcel. (Q32 a 34)

A sétima página, totalmente em amarelo-limão, é o retorno de Marcel ao seu apartamento,

quando ele percebe a desarmonia de sua vida e na oitava e última página, resolve mudar isso,

quebrando a “decoração”. O “quebrar” tem um foco de cor amarela, expandindo para o laranja e

para o vermelho, indicando a crise e transição, a revolta e a vingança, a raiva e o descontrole de

Marcel. Yvonne totalmente verde, grita em agonia, diante da súbita loucura do marido. A polícia

chega e o laranja do som da sinere mais uma vez indica a ação, neste caso, a revolta, o “acerto de

contas” da polícia. Neste caso, poderia-se também aplicar o conceito de simultaneidade das

cores, uma vez que Marcel está exercendo uma liberdade para conquistar seu ideal de felicidade,

que é ironicamente, a destruição de seu atual estado e local de vida. (Q35 a 42)

A nar rativa cromática de Overground fica então, assim:

decrépito, fúnebre, inerte

desarmonia

ansiedade, revolta

raiva, descontrole

desarmonia

alegria

alegria

segurança (marrom)

segurança

segurança

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vida, coragem, energia, vigor

vida, coragem, energia, vigor

vida, coragem, energia, vigor

segurança

grandeza, profundidade, nobreza, espiritualidade

desarmonia

desarnonia

crise, revolta, descontrole

agonia, crise, revolta, descontrole

revolta, acerto de contas

grandeza, profundidade, nobreza, espiritualidade

DU BRUIT AU PLAFOND

PAGINA 1 PAGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

1 2 8 9 10 17 18 19 27 28 29

3 4 11 12 13 20 22 23

4 5 6 7 14 15 16 24 25 26 30

Du Bruit au Plafond, apesar de não ter data de criação, é uma das primeiras histórias da fase

urbana de Caza. O desenho é, comparativamente a outras histórias do próprio autor, bastante

inferior, além de ter uma estrutura cromática bastante diferente de outras HQ’s.

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Na primeira página, Marcel começa a ouvir barulhos vindos de cima assim que se deita para

dormir. Não há código narrativo. (Q1 a 7)

Na segunda página, irritado com o barulho, Marcel bate com a ponta da vassoura no teto,

mas em seguida lembra-se que está no último andar. Nesta também ainda não há código

narrativo. (Q8 a 16)

Na terceira página Marcel decide ir ver de onde vem o barulho, e começa a subir a escada.

Aqui já se pode perceber o caraterístico amarelo-limão de desarmonia dos corredores e prédios

de apartamentos. (Q17 a 26)

Na última página, chegando até o alçapão que dá acesso à laje do prédio, Marcel percebe

que é daí que vem o barulho e faz força para abrí-lo. Quando consegue tem a surreal surpresa de

ver que a porta do alçapão era um túmulo e que saiu dentro de um cemitério, no qual estavam

reunidas várias pessoas (mais parecidas com almas), aparentemente rezando, no meio da noite.

Aqui o código cromático também acontece, com o violeta aparecendo na tez dos que estavam em

volta do túmulo e no céu do cemitério, o que comprova mais uma vez a relação direta do violeta

com morte.

FLORATION

PAGINA 1 PAGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

1 2 3 4 9 10 16 16 23 24

5 25 26

6 11 12 13 18 19 20

7 8 14 15 21 22 27 28 29

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34

Existem em Floration, dois momentos que não se encaixam à regra. São os quadrinhos 20 e

21, com as cores amarelo e violeta: o personagem principal está feliz com Marguerite, fazendo

com que a interpretação do amarelo e do violeta rivalizem com o momento da história.

Floration é uma das histórias da primeira fase de Caza - a fase urbana -, onde o processo

de narração cromática ainda não estava totalmente estruturado, o que pode ser notado também

outras histórias, como em Du Bruit au Plafond.

Caza, assim como todo artista, foi transformando sua obra e evoluindo cada parte de seu trabalho,

do traço do desenho ao texto, dos argumentos à psicologia dos personagens e consequentemente

também a utilização e aplicação das cores.

No primeiro quadrinho, um homem sério (auto-retrato de Caza), vestido formalmente, olha

estático para o leitor. O vermelho e o preto são as cores de fundo, em listras diagonais. Vermelho

é, no sentido positivo, a cor da energia, da vida, mas com o preto ele passa a ser a energia

reprimida, melancólica, de raiva ou descontrole de uma situação. (Q1)

O homem está se apresentando e introduzindo o leitor na história, ou seja, as cores vão se

referir ao contexto em que ele está inserido: depressivo, repressor, revoltante. O personagem

neste quadrinho possui uma tez amarela, óculos de lentes verdes e camisa da mesma cor. O

amarelo representa a tensão e ansiedade e o verde desconforto e agonia. As cores deste primeiro

quadrinho sintetizam muito bem uma fase da vida de Caza (que se auto retrata): seus anos de

trabalho na publicidade, quando se sentia oprimido, com profunda repulsa pela atividade.

Os quadrinhos seguintes repetem a mesma posição do personagem, com a mudança das

estações: do inverno violeta - período de tristeza e morte simbólica; à primavera azul trazendo a

“liberdade” e fazendo resnascer a vida. (Q3 e 4)

Ainda na primeira página, fios do cabelo do personagem começam a ficar verde e logo que

a primavera chega, delicadas flores se abrem por todo seu cabelo. O fundo dos quadrinhos é de

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um rosa pastel (aqui considerado uma variação do vermelho+branco), ambientação de um

acontecimento positivo e ameno. (Q5)

A alergia que o personagem começa a apresentar, tem nas cores uma representação de

fundo vermelho, com um raio amarelo (de bordas constrastantes azuis): um vermelho de perigo,

ameaça; um amarelo de crise e transição. (Q10)

O médico consultado que lhe fala sobre a alergia, tem no consultório (além da mórbida

caveira em um quadro acima de sua cabeça) um lilás-azulado como fundo, reiterando a

mensagem icônica funesta. (Q11)

No final desta segunda página, ele veste um pijama de dormir que é da mesma cor do

cabelo: azul. É o momento em que ele sente mais à vontade com suas flores, representado pela

cor de maior expressão positiva para Caza, o azul da paz e da felicidade. (Q13)

Quando o personagem, que está tentando conquistar uma jovem - Marguerite, sente medo

de ser rejeitado por causa de suas flores, tem como fundo um verde, que traduz esse sentimento

de desconforto e agonia perante a mulher que está tentando conquistar. (Q16)

O início do relacionamento dos dois é marcado pelo vermelho e por várias outras cores, a já

citada simultaneidade cromática, que é a representação de Caza para a felicidade completa e total

harmonia. (Q18)

O último quadrinho da página é todo um arco-íris, que simboliza a máxima e feliz união do

casal. Porém, quase no fim dos arcos decrescentes, ao invés das cores vê-se a alternância de

linhas brancas e pretas, com o domínio final das linhas totalmente pretas, como uma consciência

ou alerta de nem tudo pode ser perfeito ininterruptamente. (Q22)

A última página parece comprovar o foco negro anterior. Problemas financeiros obrigam o

personagem a procurar emprego, mas suas flores assustam e se torna difícil para ele ser aceito, o

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que lhe causa muita preocupação e angústia. As cores que acompanham essa seqüência estão em

perfeita sincronia: retícula em preto e branco fazem o fundo e parte do rosto de outro personagem

que lhe cobra mudanças em sua postura. Os óculos são os únicos elementos coloridos no

quadrinho: está em vermelho e em cada lente pode se ver o rosto triste do personagem principal

(Caza). Preto e branco são os clássicos do contraste, da negação e resistência mútua, ou seja, a

exata situação vivida pelo personagem: a necessidade de cortar as flores contra seu desejo ao

mesmo tempo em que precisa do emprego. O vermelho que acompanha (na lente dos óculos)

mais uma vez é o alerta de perigo. (Q23)

As flores que caem do cabelo com a chegada do outono, tem como fundo outro violeta,

que, sendo o começo do período introspectivo da natureza, é simbolicamente um começo

também de morte e tristeza. (Q26)

O vermelho e o preto aparecem juntos em mais dois quadrinhos desta página, tendo

idênticos contextos: tristeza e depressão. No primeiro, o personagem aparece sentado,

cabisbaixo, com as mãos segurando o rosto, visivelmente deprimido, sendo a causa a dificuldade

de arrumar emprego. No segundo, em câmera alta, ele aparece lendo uma carta-bilhete de

Marguerite, que lhe abandona súbita e inesperadamente. (Q24, 28)

O último quadrinho é o começo do nascimento das batatas na barba do personagem. Um

fundo rosa pastel é novamente apresentado, assim como foi com nascimento das flores. Um

acontecimento que para ele é positivo, mas que está apenas começando. (Q29)

Em resumo, a narrativa cromática da história Floration ficaria assim:

depressão

tristeza

liberdade

acontecimento positivo

natureza

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irritação

acontecimento positivo

alerta/crise

morbidez

tranqúilidade

desconforto

felicidade

desconforto

felicidade e fim

conflito

depressão

depressão

acontecimento positivo.

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38

ARKHÊ

PAGINA 1 PAGINA 2 PÁGINA 3 PÁGINA 4

1 3

2 6 9 10 11

4 5 7

8

PÁGINA 5 PÁGINA 6 PÁGINA 7 PÁGINA 8

12

13 18

14 19 2116

20

15 17 21 22

PÁGINA 9 PÁGINA 10 PÁGINA 11 PÁGINA 12

26 28 30 31

23 24 25 29

27

32 33

PÁGINA 13 PÁGINA 14

34 37

36

35

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Arkhê é uma das histórias de Caza onde o conceito de narrativa cromática de subtexto pode

melhor ser compreendido.

A história é visivelmente diferente da série Scenes de la Vie de Banlieue, tanto no desenho

quanto no argumento e diagramação. Como diz o próprio autor, a HQ (que foi criada 10 anos

depois das suas primeiras publicações), teve em sua gênesis ambições maiores de expressão e o

resultado é uma metáfora universal, que possibilita a cada leitor sua própria interpretação, com

reflexões particulares e com certeza de alguma forma, crescimento interior.

O subtexto de Arkhê é, na verdade, a metáfora com a Alquimia, com o ciclo natural do

micro e macrocosmo, cuja interpretação vai ocorrer através das cores, que desde a Idade Média

vem simbolicamente representando as fases alquímicas.

A cor é, em Arkhê, um segundo roteiro e argumento, absolutamente implícito no texto e

desenho.

Para esta história, a análise será do próprio autor Phillipe Caza:

“Arkhê é uma história que eu fiz no mesmo período que os “Banlieue” mas em outro

estado de espírito para uma outra revista (Metal Hurlant) e com outras ambições, mais “místicas”

(mas eu não gosto desta palavra) talvez poética e simbólica. Sim, pode-se dizer uma história

“sincrética”, quer dizer, ensaiando de fazer a síntese entre o elemento de origem bíblica, outras

vindas da alquimia e outras da filosofia tradicional chinesa e algumas noções científicas Big

Bang, buraco negro... O aspecto alquímico teve bastante importância ao nível da escolha de cores.

A Grande Obra Alquímica passa pelas fases clássicas designadas por suas cores: nigredo, albedo,

citrinitos, rubedo... Os 4 elementos tradicionais entram em jogo também: a Arca passa pelo

negro, pelas profundezas da água, o amarelo da terra, o azul do ar, o vermelho do fogo... assim

purificada, o chumbo cujo negro da arca é transformado em ouro (depois, é ainda mais difícil de

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exprimir...o abstrato, o espírito, a transparência, a ausência de cor, e no renascimento final, as

cores da vida que voltam com o arco-íris).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Phillipe Caza é, sem dúvida alguma, um marco para as histórias-em quadrinhos.

A qualidade e complexidade de sua criação pode (e deve) gerar outros estudos, tanto no aspecto

icônico, quanto no verbal, histórico, psicológico, social.

Porém, a relevância de seu trabalho é ainda mais evidente quando percebe-se, através de seu

quadrinho, que a cor pode ter uma função narrativa, seja reforçando o conteúdo icônico-verbal ou

incluindo efetivamente elementos na comunicação.

Partindo dos estudos de Luiz Antonio Cagnin, pode-se propor então, para as histórias-em-

quadrinhos, um terceiro código gráfico-visual, além da imagem e da linguagem escrita.

Outros trabalhos poderão comprovar (ou não) a utilização eficaz das cores dentro de uma

proposta cromo-narrativa, seja nas histórias-em-quadrinhos ou em qualquer outro meio de

comunicação.

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6. BIBLIOGRAFIA

6.1. DOCUMENTOS INÉDITOS

Entrevista com o autor de quadrinhos Phillipe Cazamayou, realizada por fax pela autora,

especialmente para esta pesquisa científica, entre Maio e Junho de 1996.

6.2. FONTES BIBLIOGRÁFICAS

Anselmo, Zilda A. A História dos Quadrinhos. Ed. Vozes, Petrópolis, 1975.

Cagnin, Luiz Antonio. Os Quadrinhos. Ed. Ática, São Paulo, 1975.

Calazans, Flávio Mário de Alcântara. Propaganda Subliminar Visual Gráfica: Dos

Iconesos ao Subtexto, um Estudo de Caso. Tese de Doutorado pela Escola de

Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

Farina, Modesto. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. Ed. Edgard Blücher, São

Paulo, 1982.

McCloud, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Ed. Makron Books/Harper Business,

São Paulo, 1995.

Santaella, Lúcia. Culura das Mídias. Ed. Razão Social, São Paulo, 1992.

Tiski-Franckowiak, Irene T. Homem, Cor e Comunicação, 2a. edição. Ed. Ícone, São Paulo,

1991.