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71 Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição n o 41, p. 71-91, 2010 INTERFACE SEMÂNTICA LINGUÍSTICA E PSICOLINGUÍSTICA: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DO OBJETO Cristiane Dall`Cortivo Rafaela Janice Boeff RESUMO Este trabalho consiste numa interface entre os campos da Linguística e Cognição, e numa interface interna ao campo da linguística entre a Semântica Argumentati- va e a Psicoliguística. O objetivo é analisar, segundo as duas teorias, dois textos distintos, e ver de que forma é explicada a compreensão de cada texto de acordo com as teorias escolhidas. PALAVRAS-CHAVE: Semântica Linguística; Psicolin- guística, compreensão textual. Introdução V ivemos cercados de todo tipo e gênero de textos, o que torna a leitura cada vez mais importante e também mais excludente daqueles que não a dominam. Com certeza, ela deveria ser uma das principais habilidades asseguradas pela escola, porém, sabemos que essa é uma realidade longe de se concretizar. Neste contexto, o presente trabalho pretende analisar dois textos distin- tos, uma charge 1 de Aurélio, e uma tirinha 2 da Mafalda, a partir da Interface Externa entre Linguística e Cognição, e da Interface Interna entre a Semântica 1 Publicada no Jornal Zero Hora de Porto Alegre, no dia 30/11/2009. 2 Retirada do site http://2.bp.blogspot.com/_E4lRmmrd7LI/SrXlrHd21II/AAAAAAA- AKmI/RuV-miFd9uk/s400/Mafalda+-+indicador+de+desemprego.jpg,

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iNTErFACE SEmÂNTiCA LiNGuÍSTiCA E PSiCoLiNGuÍSTiCA: A CoNSTruÇÃo DE

SENTiDo Do oBJETo

Cristiane Dall`CortivoRafaela Janice Boeff

RESUMO

Este trabalho consiste numa interface entre os campos da Linguística e Cognição, e numa interface interna ao campo da linguística entre a Semântica Argumentati-va e a Psicoliguística. O objetivo é analisar, segundo as duas teorias, dois textos distintos, e ver de que forma é explicada a compreensão de cada texto de acordo com as teorias escolhidas.

PALAVRAS-CHAVE: Semântica Linguística; Psicolin-guística, compreensão textual.

introdução

Vivemos cercados de todo tipo e gênero de textos, o que torna a leitura cada vez mais importante e também mais excludente daqueles que não a dominam. Com certeza, ela deveria ser uma das principais

habilidades asseguradas pela escola, porém, sabemos que essa é uma realidade longe de se concretizar.

Neste contexto, o presente trabalho pretende analisar dois textos distin-tos, uma charge1 de Aurélio, e uma tirinha2 da Mafalda, a partir da Interface Externa entre Linguística e Cognição, e da Interface Interna entre a Semântica 1 Publicada no Jornal Zero Hora de Porto Alegre, no dia 30/11/2009.2 Retirada do site http://2.bp.blogspot.com/_E4lRmmrd7LI/SrXlrHd21II/AAAAAAA-

AKmI/RuV-miFd9uk/s400/Mafalda+-+indicador+de+desemprego.jpg,

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Linguística defendida por Oswald Ducrot (2005)3 e a Psicolinguística. O ob-jeto de estudo de ambas as teorias apresentadas neste trabalho será o texto, com o objetivo de verificar como ocorre sua compreensão a partir das duas abordagens teóricas.

A Teoria da Argumentação na Língua estuda a linguagem por meio dela própria, valorizando a relações entre os elementos que são responsáveis pela construção do sentido, cabendo ao interlocutor de cada texto refazer o per-curso semântico do locutor para a compreensão do sentido ali expresso. Dessa forma, debruça-se sobre o estudo da língua em uso, fruto da atividade de fala de um eu para um tu.

Pelo viés da Psicolinguística, a leitura tem sido considerada como um processo de interação entre leitor e texto. O leitor constrói sentido ao interagir com o texto, integrando as novas informações ao conhecimento já possuído, que é ativado no momento da leitura. Segundo Poersch e Amaral (1989)4, para entender esse processo é preciso aceitar que o significado depende do co-nhecimento prévio e da experiência do leitor. Nessa visão, o leitor possui um papel importante no processo da leitura, ele se torna um agente que traz para o texto sua própria bagagem cognitiva.

Para tanto, numa primeira etapa (cf. item 1), apresentamos alguns con-ceitos da Teoria da Argumentação na Língua necessários ao objetivo proposto, num segundo momento (cf. item 2), apresentamos algumas concepções acerca de leitura e processo inferencial, à luz da Psicolinguística. Na etapa seguinte (cf. item 3), analisamos o corpus e, por fim, realizamos as reflexões e as conclu-sões do estudo, trazendo os resultados da pesquisa e algumas observações que se acredita serem pertinentes.

1 semântica Linguística

Nesta seção, que tratará da Semântica Linguística, buscaremos nos deter na concepção de linguagem que orienta a análise segundo esse viés teórico, bem como trazer a metodologia de trabalho da Teoria da Argumentação na

3 DUCROT, Oswald. “A Pragmática e o estudo semântico da língua”. Letras de Hoje, v. 40, nº 1, p 9-21. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

4 POERSCH, J. M. & AMARAL, M. “Como as categorias textuais se relacionam com a compreensão em leitura”. Veritas, n. 35, n. 133, p. 77-89, 1989.

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Língua para o estudo do texto e do léxico, por meio do detalhamento de walguns conceitos.

1.1 Conceitos gerais

A Teoria da Argumentação na Língua (ANL) existe há pelo menos 30 anos e vem sendo deselvolvida por linguistas franceses, primeiramente por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre (19805, 19906), e atualmente por Oswald Ducrot e Marion Carel (20057, 20088), em sua fase de pesquisa de-nominada Teoria dos Blocos Semânticos (TBS).

A ANL tem se preocupado, desde sua origem, em dar conta do estudo semântico da linguagem. Isso a insere no quadro da Semântica Linguística, trazendo a ideia de um estudo do sentido contido na língua em uso, sentido esse que é puramente argumentativo e que fundamenta a tese que constitui o centro da investigação: a de que a argumentação está na língua, ou seja, a argumentatividade faz parte da natureza da linguagem.

O trabalho desenvolvido por Ducrot e seus colaboradores (1980, 1990, 2005) consiste em investigar o sentido da língua em uso a partir de suas rela-ções sintagmáticas, levando em consideração, para a descrição da língua, o sentido construído através das relações empreendidas entre as palavras que compõem o enunciado. Dessa maneira, não é a soma dos sentidos das pala-vras, para os semanticistas, que forma a ideia expressa pelo enunciado, mas a sua combinação, como de uma equação matemática, de que são derivados diferentes resultados de acordo com os valores a ela agregados.

Ducrot (1990) e Ducrot e Carel (2005) partem do princípio de que a linguagem não retrata os fatos do mundo, apenas os toma como tema para debate entre dois interlocutores. Dessa forma, os autores excluem o caráter

5 DUCROT, Oswald. “Analyse de textes et linguistique de l´énonciation”. In DU-CROT, Oswald et al. Les mots du discours. Paris: Minuit, 1980.

6 DUCROT, Oswald. Polifonia Y argumentación: conferencias del seminario Teoría de la Argumentación y Análisis del Discurso. Calli: Feriva, 1990.

7 DUCROT, Oswald; CAREL, Marion. La Semántica Argumentativa: una introduc-ción a la teoría de los bloques semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005.

8 DUCROT, Oswald. “Descrição argumentativa e descrição polifônica: o caso da negação”. Letras de Hoje. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 43, n. 1, p. 7-18, 2008.

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objetivo da língua, segundo o qual se acredita que ela é capaz de retratar com fidelidade a realidade que descreve. Para eles, a apreensão da realidade não passa de uma impressão que o locutor tem dessa realidade, e a toma como tema para seu discurso, sem estar comprometido com a verdade ou a falsidade de seus enunciados. Para os teóricos da semântica linguística, o sentido é cons-truído no discurso, independente das relações estabelecidas com o mundo extra-linguístico.

Para eles, a linguagem abarca apenas os aspectos relativos à subjetivida-de, o ponto de vista daquele que fala, e a intersubjetividade, decorrente da imagem e da relação que o locutor mantém com aquele a quem endereça sua fala. Tanto a imagem do eu, quanto a imagem do tu se marcam no enunciado e fazem parte da construção do sentido. Para Ducrot (1987)9, o sentido do enunciado é uma representação da sua enunciação, pois ele traz as marcas do processo que o originou e a subjetividade daquele que o proferiu.

Assim, os pontos importantes a serem considerados em uma análise, se-gundo a semântica linguística que definimos acima, dizem respeito às relações entre as palavras, em que a explicação do sentido do discurso deve ater-se ao material linguístico fornecido pelos enunciados, e aos aspectos inerentes à enunciação, ou seja, às marcas deixadas no enunciado pelo processo que o originou.

O trabalho de explicação do objeto recortado para estudo, sentido dos enunciados, parte de uma hipótese de explicação, segundo a qual as frases da língua contêm uma significação. A distinção entre o objeto teórico construído e os dados é importante na medida em que aquele revelará o processo que ori-ginou estes. Assim, para os enunciados, que constituem os dados, os autores atribuem um sentido (este que contém as marcas da enunciação e traduz o ponto de vista do locutor). Já a língua, construção teórica do linguista, contém uma significação formada por instruções. Tais instruções são uma espécie de modo de emprego, que dão as diretrizes para o interlocutor a respeito da forma como ele deve compreender o sentido dos enunciados. Para Ducrot e Carel (2008), a instrução impõe exigências, limites e restrições que deverão ser obe-decidas para que se chegue à compreensão do dito.

9 DUCROT, Oswald. “Esboço de uma temia polifônica da enunciação”. In: O Dizer e o Dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

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Dessa forma, as instruções são uma espécie de regulador, que restringe quais interpretações são ou não são possíveis. Portanto, não existe apenas uma interpretação, do mesmo modo que não é aceitável qualquer intrepretação: ela deverá obedecer às intruções presentes na significação das frases.

Uma das críticas geralmente feitas à ANL é em relação a sua proposta de estudar a linguagem a partir dela mesma, com exclusão do contexto. Para mui-tos, a participação do contexto (não o contexto linguístico, o meio no qual o discurso é contruído, mas o contexto extra-linguístico) é primordial para que se faça uma compreensão mais profunda quanto ao sentido dos textos. Em relação a isso, Ducrot (2005) realiza uma proposta de integração da semântica à pragmática, por meio da instrução.

Para ele, a palavra pragmática pode ter duas acepções que se ligam à semântica linguística: na primeira delas, pragmática é entendida como sinôni-mo de contextual, na medida em que para realizar tal ou tal compreensão seja necessário empreender uma pesquisa pragmática. Em um exemplo10 como

(1) O carro está na rua. é necessário empreender uma pesquisa pragmática para que se saiba qual

carro e qual rua se tornou tema para esse enunciado. Em um segundo sentido, pragmático é sinônimo de enunciativo, uma vez que a pesquisa se dá não mais em relação ao contexto, mas à enunciação realizada por esse locutor. Que di-ferenças podem ser descritas entre os enunciados seguintes:

(2) Faz calor no Cairo. (3)Que calor faz no Cairo!Evidentemente que em termos informativos, ambos apresentam o

mesmo conteúdo: o calor que faz no Cairo. No entanto, suas diferenças podem ser apontadas do ponto de vista enunciativo, em que uma delas é uma sentença declarativa, que pode ser proferida por alguém encarregado de dar a previsão do tempo, por exemplo. Já a outra pode ser descrita com relação à própria sensação de quem a enuncia, como fruto da experiência desse locutor.

No entanto, vemos que tanto o enunciado (1), quanto (2) e (3) so-licitam essa pesquisa pragmática a partir de certa indicação: tal indicação está subdeterminada pelo material linguístico utilizado. Não se parte de

10 Os exemplos são os mesmos utilizados pelo autor no texto referido (DUCROT, 2005).

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qualquer ideia para realizar essa pesquisa pragmática, mas se parte do dito e, segundo suas necessidades, são buscadas no contexto apenas as infor-mações necessárias para compreender o sentido veiculado. Tais indicações estariam marcadas na instrução da frase, como para (1) “busque no con-texto ao qual o enunciado faz referência as especificidades necessárias”11. Já para os enunciados (2) e (3) é necessária a inserção de elementos referentes à enunciação para a pesquisa contextual, como marcas daquele que fala, de onde fala, a quem dirige seu enunciado. Esses elementos referentes à enunciação aparecem marcados no dito, a pesquisa pragmática consiste em resgatar esse processo fugaz por meio dos rastros deixados no seu produto – o enunciado.

1.2 Metodologia de análise da semântica Linguística

Quanto à metodologia de trabalho, a ANL, em sua forma atual, a Teoria dos Blocos Semânticos (TBS), trabalha com encadeamentos argumentativos, que têm o objetivo de explicitar a argumentação do discurso. Isso a coloca na interface interna com a sintaxe, uma vez que vê as relações entre as partes que compõem o enunciado, explicitando suas relações.

(4) Se João tem pressa, então ele corre.(5) Embora João tenha se apressado, não conseguiu chegar a tempo. No enunciado (4), há uma relação estabelecida do tipo ter pressa por-

tanto correr, e no enunciado (5), há outro tipo de relação entre os predica-dos: ter se apressado no entanto não chegar a tempo. A essas construções os autores chamam encadeamentos argumentativos ou argumentações. Elas tra-duzem o sentido segundo a interdependência entre os segmentos, ou seja, o significado de ter pressa está definido pela sua relação com correr, bem como pelo elemento que os une, portanto, constituindo uma relação normativa. Já ter se apressado tem seu sentido definido em relação ao segundo segmento não chegar a tempo, interconectado por no entanto, que constrói uma relação transgressiva. Note que ter se apressado conduz a uma continuidade positiva, pois em sua argumentação encontra-se a indicação de sucesso quanto ao

11 Tal instrução não é sugerida por Ducrot (2005), mas apenas uma sugestão das autoras deste trabalho como forma de ilustração.

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objetivo, chegar a tempo. Essa orientação argumentativa aparece negada pela introdução de embora e o segundo segmento pode ser encaixado de forma não paradoxal.

É importante ressaltar que normatividade e transgressividade nada têm a ver com ideologias, sentidos pré-estabelecidos, ou ainda normas sociais. Elas derivam exclusivamente do sentido instríseco das palavras e são fruto das rela-ções empreendidas entre os segmentos de um enunciado.

A TBS analisa também o sentido contido nas palavras por meio de sua argumentação interna (AI) e argumentação externa (AE). Tais conceitos des-crevem a argumentação contida nas palavras por meio de uma paráfrase (AI) e por meio de discursos que podem ser encadeados a ela (AE). Assim, encontra sua interface interna com a morfologia, no momento em que tem também como objeto de estudo o léxico. Vejamos alguns exemplos:

(6) João teve pressa, portanto não foi prudente.(7) João não foi prudente, portanto correu o risco de sofrer um acidente.Aqui a palavra em análise é prudente: se fizermos sua argumentação in-

terna, teremos como resultado perigo portanto precaução. Se construirmos sua argumentação externa, teremos encadeamentos que partem de prudente, ou que chegam a ela, como é o caso de (6) e (7), sintetizados em ter pressa portanto não ser prudente e não ser prudente portanto correr risco de acidente.

Tanto os encadeamentos que traduzem a argumentação dos enunciados, como os encadeamentos responsáveis pela descrição do léxico são importantes para a explicação do sentido dos discursos. Em alguns casos, como nos dois exemplos (a tirinha e a charge propostas) que examinaremos no decorrer des-te trabalho, será necessário recorrer, além do dito, a elementos extratextuais, como imagem, ou até mesmo, com respeito a determinadas informações con-textuais, recurso esse guiado pela instrução.

2 Psicolinguística

Pretendemos, nesta seção, abordar alguns conceitos que devem fornecer o mínimo necessário para o desenvolvimento de uma concepção de compre-ensão leitora e processo inferencial, pelo viés da Psicolinguística, acreditando que sejam relevantes para o entendimento deste trabalho.

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2.1 Leitura e Compreensão leitora

Leitura é um processo psicolinguístico complexo em que o leitor constrói, a partir da percepção de elementos linguísticos e da ajuda de elementos não presentes no texto, o significado equivalente àquele que o autor quis expres-sar. Esse processo de construção de significado, a partir das pistas linguísticas deixadas no texto, é denominado por Goodman (1991)12 como jogo psicolin-guístico de adivinhação. Segundo esse autor, ao ler, o leitor vai construindo um texto paralelo intimamente ligado ao texto que está impresso. Esse novo texto criado envolve inferências baseadas nos conhecimentos que o leitor traz para o texto, e qualquer explicação futura do leitor a respeito do que leu se dará a partir desse texto construído em paralelo.

Nessa perspectiva, a compreensão de um texto é vista como um processo cognitivo e se caracteriza pela ativação do conhecimento prévio do indivíduo e pela construção de uma nova informação com base naquela que já possuía. O sentido do texto é construído pelo leitor através da interação de diversos níveis de conhecimento, ou seja, o leitor interage com o texto e com o autor utilizando as informações visuais apresentadas pelo texto e os conhecimentos contidos na memória, que são ativados por pistas linguísticas.

O processamento da informação, na leitura de um texto, pode se dar de maneira descendente (top-down) ou ascendente (botton-up). Neste, o leitor tende a recorrer mais frequentemente ao texto, fazendo maior uso das pistas linguísticas, enquanto naquele leva em conta a existência de uma estrutura cognitiva que já contém as relações básicas. O uso de processamento ascen-dente ou descendente, segundo Kato (1990)13, depende, entre outros fatores, do grau de maturidade do leitor, do nível de complexidade do texto e do estilo cognitivo do leitor.

Fonseca e Parente (2006)14 afirmam que as atividades do ouvinte – e acre-ditamos que o mesmo se estende ao leitor –, durante a compreensão textual,

12 GOODMAN, K.; GOODMAN, Y. M. “About Whole Language: Japanese (First Language)”. Education Research Monthly, No. 233, October, 1991, pp. 64-71.

13 KATO, M. O Aprendizado da Leitura. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1990.14 FONSECA, R. P.; PARENTE, M. A. “Compreensão da linguagem no envelheci-

mento”. In. PARENTE, M. A. (coords.) Cognição e Envelhecimento. Porto Alegre, Artes Médicas, 2006.

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não se restringem apenas à compreensão de enredo, fazendo-se necessário in-ferir as intenções do autor, que, na maioria das vezes, são manifestadas impli-citamente. Em outras palavras, a compreensão de informações implícitas se dá a partir da geração de inferências que, por sua vez, são induzidas a partir das informações explícitas associadas aos conhecimentos prévios relevantes ao entendimento do conteúdo linguístico.

Pode-se dizer, então, que para o entendimento de um texto é funda-mental que se processem inferências, baseadas na associação de informações contextuais com o conhecimento prévio do indivíduo. De modo que, quanto mais conhecimentos o leitor possuir sobre o assunto e o contexto no qual está inserido e menor for o número de informações implícitas, menor será seu esforço cognitivo para alcançar a compreensão.

2.2 inferência

Conforme Gutiérrez-Calvo (1999)15, as inferências consistem em repre-sentações mentais, que o leitor ou ouvinte constrói na compreensão de um texto ou discurso, a partir da aplicação de seus próprios conhecimentos às indi-cações explícitas da mensagem. Pereira (2009)16 afirma que, na Psicolinguística, a inferência consiste numa estratégia de leitura que exige processamentos cog-nitivos capazes de manipular pistas textuais deixadas pelo autor, com o objetivo de chegar à compreensão do texto.

As inferências podem ser classificadas quanto ao valor de verdade que assumem ou quanto à sua função na compreensão do discurso. Quanto ao valor de verdade, elas podem ser lógicas ou pragmáticas. Lógicas são aquelas baseadas em regras formais, já as pragmáticas representam a realidade de uma forma provável, não sendo totalmente certas e podendo ser subdivididas em conectivas e elaborativas.

15 GUTIÉRREZ-CALVO, M. “Inferencias em la comprensión del lenguaje”. In. Veja, M.; Cuetos, F. (coords.), Psicolinguística del español, (p. 231-270). Madrid: Trotta, 1999.

16 PEREIRA, V. W. “Predição Leitora e Inferência”. In: Inferências linguísticas nas interfaces [recurso eletrônico] / Jorge Campos (Org.). – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009.

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As conectivas dão coerência local à mensagem, estabelecendo uma rela-ção semântica entre as unidades linguísticas (p. ex. Ana caiu. Todos choravam no velório. A inferência conectiva que pode ser gerada é que Ana morreu). Já as elaborativas apenas ampliam as informações textuais explícitas (p. ex. Ana caiu. As inferências elaborativas que podem ser geradas são que Ana machu-cou-se, está no hospital, quebrou uma perna ou até mesmo que ela morreu).

O processo inferencial, segundo Poersch (1991)17, é uma etapa do pro-cesso de recuperação do sentido implícito ao texto, a inferência é o resultado do raciocínio que o leitor faz ao incluir no texto as informações que o autor não colocou de maneira explícita. O ato de ler requer a extração de infor-mações linguísticas dadas pelo autor, que devem ser analisadas pelo leitor e comparadas às informações que ele tem consolidadas na memória – seu co-nhecimento prévio – fazendo associações que lhe permitirão a construção de significados. Para Mckoon e Ratcliff (1992)18, o conteúdo linguístico é com-preendido a partir da ativação automática do que está na memória.

Coscarelli (1996)19 é categórica ao afirmar que os processos inferenciais são a alma da leitura e quem não faz inferências não lê. Para compreender aquilo que lê, é necessário que o leitor vá além do que está escrito e acesse o seu conhecimento prévio, essencial à compreensão, pois é o seu conhecimento sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências necessárias para relacionar as partes do texto num todo coerente, uma vez que nem todas as informações estão explícitas no texto e devem ser resgatadas pelo leitor.

3. Análise dos textos

Nesta seção, analisaremos os dois textos, charge e tirinha, com base na Teoria da Argumentação na Língua e, após, pelo processo Inferencial da Psi-colinguística. Os textos analisados encontram-se expostos abaixo e serão de-nominados, a partir de agora, como texto 1 e texto 2.

17 POERSCH, J. M. Implicações da Psicolingüística nos processos de produção e recepção do código escrito. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 127-145, 1991.

18 MCKOON, G.; RATCLIFF, R. “Interference during reading”. Psychological Rew-iew. 99, p. 440-466, 1992.

19 COSCARELLI, C. V. O ensino da leitura: uma perspectiva psicolinguística. ABRA-LIN (Curitiba), Macéio, p. 163-174, 1996.

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3.1 Análise da tirinha da Mafalda

Figura 1 – texto 1

3.1.1 Análise semântica pelo viés da Teoria da Argumentação na Língua

No primeiro quadrinho, temos o enunciado exclamativo É incrível a importância do dedo indicador!. A palavra incrível expressa uma avaliação do locutor a respeito do tema do enunciado: o dedo indicador. Nesse caso, temos uma marca a respeito de como o eu vê aquilo que toma como objeto de sua fala, elemento esse que está ligado à enunciação. Assim, construímos com o enunciado o encadeamento

é um dedo indicador portanto tem importânciaÉ importante, também para a explicação desse texto, descrever a argu-

mentação interna das palavras dedo indicador, pois seu sentido terá uma relei-tura na sequência, que será responsável pelo efeito de humor. Então como AI de dedo indicador temos:

Ai (dedo indicador) parte da mão, portanto serve para fazer gestos, entre eles, apontar

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No segundo quadrinho, temos o enunciado Um patrão faz assim com o indicador... e três mil operários vão para a rua. Aqui há a necessidade de recor-rer à imagem para compreender como se pode descrever o sentido de assim. Podemos extrair dela uma argumentação externa, que descreverá pela sua con-tinuidade seu significado:

AE (assim) assim, portanto realizar determinado movimento com o dedo indicador

Na sequência, podemos fazer a argumentação interna do enunciado do segundo quadrinho, como abaixo:

Patrão realiza movimento com o dedo indicador, portanto despede muitos empregados

No terceiro quadrinho, temos uma interjeição, aaaaah! segundo a qual Mafalda parece se dar conta de algo. Tal interjeição tem seu sentido diretamente ligado ao enunciado do quarto quadrinho, que diz Esse deve ser o tal indicador de desemprego de que tanto se fala. Nesse enunciado, há a produção do efeito de humor da tirinha devido à relação de sentido entre dedo indicador e indicador de desemprego. Do ponto de vista da forma, indicador tem a mesma sequência de grafemas tanto para um, quanto para outro. No entanto, na primeira expressão indicador está qualificando dedo, e na segunda, indicador é qualificado por de de-semprego. Retomemos a argumentação interna de dedo indicador e, em seguida, formularemos a AI de indicador de desemprego, segundo o sentido do texto, ou aquilo que Ducrot e Carel (2005) denoninam argumentação interna contextual:

Ai (dedo indicador) – parte da mão, portanto serve para fazer gestos, entre eles apontar

Ai (indicador de desemprego) – dedo indicador usado para despedir funcionários, portanto causa do desemprego

Essas argumentações internas acima dizem respeito ao sentido que o lo-cutor Mafalda constrói, sendo interlocutor ela própria, pois seus enunciados parecem se caracterizar como uma reflexão em voz alta. Notamos, no entanto, que a esse discurso subjaz ainda outra relação eu-tu: aquela entre o locutor criador do quadrinho e o interlocutor que o lê. Esse segundo locutor conhe-ce a expressão indicador de desemprego e espera que seu interlocutor também conheça, para que ocorra o efeito humorístico. Nesse caso, a informação a respeito do indicador de desemprego que o locutor espera que seu interlocutor tenha é a seguinte, conforme a AI abaixo

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Ai (indicador de desemprego) – cálculo do governo sobre desempre-go, portanto indica o número de desempregados no país

O efeito de humor se dá quando Mafalda associa dedo indicador ao seu gesto, traduzido no texto por assim, a algo sobre o qual ela já ouviu falar, mas de que não tem conhecimento exato, fazendo essa ligação entre as expressões. Tal ligação aparece marcada pela interjeição aaaaah!, ligada à enunciação, que traz marcada em si essa associação que o locutor faz entre os termos.

Assim, a informação que deve ser buscada no contexto é referente à instru-ção de indicador de desemprego, em que o interlocutor, caso não disponha dessa informação, deverá seguir a instrução que indica o trabalho a ser realizado: busque no contexto informações a respeito de tal expressão para compreender o sentido do texto, e o sentido humorístico. Para Ducrot (1987,1990), o sentido humorísti-co não é um sentido derivado, mas é um das formas de construir sentido por meio da língua, é uma utilização dela. Portanto, o uso das expressões dedo indicador e indicador de desemprego trazem consigo, nesse uso, uma argumentação cuja fun-ção, por meio de seu aparecimento no mesmo discurso, é o efeito humorístico.

3.1.2 Análise Inferencial Psicolinguística

A tirinha acima mostra, por meio de informações verbais e não verbais, a per-sonagem Mafalda refletindo sobre a importância do dedo indicador. No primeiro quadrinho, ela olha surpresa para seu dedo e exclama É incrível a importância do dedo indicador!; no segundo, a menina, perplexa, posiciona seu dedo indicador paralelo ao corpo, como que apontando para fora e diz Um patrão faz assim com o indicador... e três mil operários vão para a rua; a seguir, fica pensativa, com a mesma expressão facial de quem acaba de compreender algo e exclama Aaaaah!... e, final-mente, conclui que Esse deve ser o tal indicador de desemprego de que tanto se fala!.

Os itens presentes na tirinha levam o leitor a buscar, em seu ambiente cognitivo, informações como essas:

I1: O dedo indicador é importante.I2: Um patrão pode demitir três mil operários apenas com um gesto.I3: Indicador de desemprego é um índice, calculado pelo governo fede-

ral, que visa medir o número de pessoas desempregadas no país.I4: O país passa por uma crise e há um grande número de pessoas de-

sempregadas.

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I5: Esse indicador de desemprego é muito divulgado pela mídia.I6: A Mafalda é uma menina muito crítica, que costuma refletir sobre a

situação do país.Analisando as informações 1 e 2, percebemos que Mafalda está refletin-

do sobre a importância do dedo indicador e chega à conclusão de que esse dedo é muito importante, pois basta o patrão movimentá-lo para demitir três mil operários. E, então, por meio de uma associação do vocábulo “indicador” à função que ela atribui ao dedo com mesmo nome, a personagem conclui, mais uma vez, que tal dedo é realmente o “indicador de desemprego” (in-formação 3) divulgado pela mídia (informação 5), não percebendo que essa nomenclatura é dada a um índice, estimado pelo governo federal, que calcula o número de pessoas desempregadas no país.

Num primeiro momento, o leitor pode pensar que se trata de uma inge-nuidade da menina, em atribuir o poder de demissão do patrão ao dedo indi-cador. Porém, se ele for capaz de buscar em seus conhecimentos prévios que a tirinha da Mafalda caracteriza-se por apresentar uma personagem infantil que possui um senso crítico muito apurado para sua faixa etária, tendo em vista que passa todo o tempo refletindo sobre a situação do país (informação 6), além de estar a par da crise enfrentada pela sociedade atual (informação 4), ele poderá perceber que se trata de um posicionamento crítico a esse elevado índice de desemprego no país, seja por culpa dos patrões, do governo ou de ambos.

3.2 Análise da Charge

Figura 2 - texto 2

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3.2.1 Análise semântica pelo viés da Teoria da Argumentação na Língua

Esse texto difere-se do outro por demandar uma busca muito maior de informações no contexto, pois o gênero charge caracteriza-se, em termos gerais, por fazer alusão aos fatos que ocorrem no momento em que ela é produzida.

Na charge acima, temos duas pessoas conversando, caracterizados, se-gundo a figura, como dois torcedores do time do Internacional, localizado em Porto Alegre (RS). No diálogo, o primeiro locutor (L1) dirige-se ao inter-locutor fazendo-lhe uma pergunta: Tá levando medo? O interlocutor toma a palavra, tornando-se também um locutor (L2) e dirige-se ao seu interlocutor dizendo Sim! Se o metrô, até o Beira Rio, não ficar pronto até domingo...

Nesse texto, também temos locutores internos (L1 e L2), que são os personagens da charge, e um locutor, diríamos externo, que é o produtor da charge. Da mesma forma, temos interlocutores internos à charge e o interlo-cutor externo, que é aquele a quem se dirige o criador da charge. É importante situarmos na cena enunciativa, além dos seres de fala, o momento e o local em que se deu essa enunciação. A situação em que se dá essa enunciação é no dia 30 de novembro de 2009, após uma rodada de jogos de futebol do Campe-onato Brasileiro, segundo a qual o time do Internacional, para ser campeão, dependia, no jogo seguinte, de uma vitória do seu maior rival, o time do Grêmio. Esse é o tema sobre o qual falam os locutores/interlocutores internos à charge. Além disso, outra situação que diz respeito à cena enunciativa é com relação à construção do metrô na cidade de Porto Alegre, cujo pedido havia sido negado poucos dias antes da escritura dessa charge, sendo que o Beira Rio é o estádio do time do Internacional, por onde passaria o metrô.

Portanto, nesse texto, o diálogo entre os locutores/interlocutores se de-senvolve com base nesses fatos, tomados para tema do seu discurso. L1 dirige-se à I1 perguntando se está com medo. I1 torna-se L2 e afirma que sim, está com medo, e que esse medo está ligado à construção ou não do metrô.

Para que o interlocutor externo, aquele a quem a charge é endereçada entenda qual o ponto de vista dos personagens, deve seguir a instrução presente no discurso, mas também na enunciação: ele deve buscar no contexto as infor-mações necessárias para compreender aquilo que o eu quis dizer. A presença da enunciação no enunciado, ou seja, as marcas que o locutor deixa dele próprio no discurso, e a maneira como marca seu interlocutor (uma vez que não há eu

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sem tu) indicam que o texto que o locutor constrói não é para qualquer inter-locutor, mas para aquele que tenha conhecimento desses fatos do contexto. Assim, a imagem do tu presente no discurso deixa transparecer que o locutor se dirige a alguém específico. Caso contrário, a pesquisa contextual deverá ser efe-tuada, segundo a instrução, ou ainda, o texto permanecerá sem compreensão por parte do interlocutor. Afirmamos, portanto que há na relação entre os seres de linguagem, eu e tu, uma relação que define, de antemão, que interlocutor aquele que produz o texto tem em mente, e disso decorre que nem todos os interlocutores estão aptos a compreender todos os discursos: é necessário que sigam as instruções presentes para alcançarem a compreensão. É importante salientar que a pesquisa contextual não precede a compreensão, mas o trabalho a ser realizado para atingir a compreensão indicará que elementos devem ou não ser buscados no contexto. Dessa forma, o autor mantém o primado da lin-guagem sobre os fatos, indicando que leitura deve ser feita do tema do discurso.

Assim, o sentido construído por esse locutor, situado na cena enunciati-va acima descrita, e após ter buscado as informações necessárias no contexto, indica que tão certo quanto o metrô não ficará pronto até o domingo, o time do Internacional não será campeão, argumentações que dão sentido à palavra medo enunciada pelo primeiro locutor.

3.2.2 Análise Inferencial Psicolinguística

Na charge acima, aparecem informações verbais e não verbais. As infor-mações não verbais mostram duas personagens vestidas com camisetas do time Internacional, que estão caminhando e conversando, aparentemente, apreen-sivas. Quanto às informações verbais, trata-se de um diálogo entre as perso-nagens, em que a primeira pergunta à outra se Tá levando medo?, ao que esta responde que Sim! Se o metrô, até o Beira Rio, não ficar pronto até domingo....

Para compreensão da charge, o leitor deve buscar, em seu ambiente cog-nitivo, informações não ditas no texto e sem as quais não é possível construir o sentido pretendido pelo autor. Informações tais como essas:

I1: O Campeonato Brasileiro de Futebol é uma disputa que concede o título de melhor time de futebol do Brasil ao campeão de cada ano.

I2: Essa competição se encerra no domingo seguinte ao da produção da charge, quando será conhecido o novo campeão.

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I3: O Internacional encontra-se na segunda colocação, com 62 pontos.I4: O Flamengo é o primeiro colocado com 64 pontos.I5: Em cada partida, o vencedor soma três pontos.I6: O adversário do Flamengo na última rodada do campeonato é o

Grêmio.I7: Grêmio é o principal time rival do Internacional.I8: Há um projeto de ampliação da rede de metrô da cidade de Porto

Alegre, do centro da cidade até o Beira Rio, estádio do Internacional. I9: Esse projeto foi cancelado, pelo menos até o ano de 2010, pelo gover-

no federal, por falta de verbas.A charge é um gênero textual que tem como característica o fato de

retratar um evento pontual e, portanto, exige do leitor um conhecimento de mundo específico, nesse caso, conhecimento sobre o Campeonato Brasileiro de Futebol e a situação em que se encontra o time do Internacional na última rodada desse campeonato em 2009, bem como a situação de ampliação da rede de metrô na cidade de Porto Alegre. Seguramente, a charge não será efe-tivamente compreendida por leitores que não possuam esses conhecimentos.

Analisando os itens apresentados na charge e as informações listadas aci-ma, podemos concluir, por meio de uma inferência conectiva, que as duas personagens são dois torcedores do Internacional, visto que estão usando a camiseta desse time, e que estão com medo de algo. Nesse ponto, podemos ver que o autor não diz tudo o que quer dizer, uma vez que não explicita o motivo pelo qual os torcedores estão com medo e deixa a cargo do leitor o resgate das informações necessárias para a construção do sentido. E, tendo em vista que as inferências são resultados das pistas deixadas pelo autor, somadas ao co-nhecimento prévio do leitor, este poderá atribuir um sentido não condizente com aquele pretendido pelo emissor, ou até mesmo não ser capaz de atribuir sentido à charge, caso seu conhecimento de mundo seja insuficiente e falhe.

A questão fundamental para o entendimento da charge, então, é esclarecer o porquê do medo das personagens. Em primeiro lugar, é necessário que o leitor busque, em seu conhecimento, informações sobre o Campeonato Brasileiro de Futebol (informação 1), uma disputa que concede o título de melhor time de futebol do Brasil ao campeão de cada ano. Somando-se a isso a informação 2, podemos inferir que o evento importante que ocorrerá no próximo domingo é o término dessa competição, bem como o reconhecimento do time campeão.

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Aqui já é possível ao leitor inferir que o medo vivido pelos colorados está relacionado à conquista do título de campeão, porém de uma maneira vaga. Para que o leitor possa esclarecer melhor essa relação, é essencial recorrer ao seu conhecimento sobre a situação em que se encontra o time em questão. As-sociando as informações 3, 4 e 5, verificamos que essa equipe está na segunda colocação do campeonato, atrás apenas do Flamengo, com uma diferença de dois pontos e com chances de ser campeã, caso vença sua partida e o Flamengo perca a sua, pois em cada vitória o time vencedor ganha três pontos.

Neste ponto, percebemos que um novo conhecimento de mundo é fun-damental ao leitor, o contexto de ampliação da rede de metrô da cidade de Porto Alegre (informações 8 e 9), que pretendia estender sua linha do centro da cidade até o Beira Rio, estádio do Internacional. À primeira vista, essa in-formação não é relevante ao contexto futebolístico apresentado anteriormen-te, mas o que a torna indispensável para a construção do sentido e do humor da charge é o fato de que essa melhoria na linha do metrô foi cancelada pelo governo federal, devido à falta de verbas.

De posse dessas informações expostas, o leitor pode inferir que os tor-cedores colorados têm convicção de que seu time não será campeão, pois se a condição utilizada como argumento pela segunda personagem é a conclusão do metrô até domingo e sua construção foi cancelada, assim também eles não serão campeões.

E, finalmente, para entender o porquê dessa convicção colorada, há ain-da outro aspecto que merece atenção: que o leitor conheça o adversário do Flamengo, o Grêmio, e um pouco de sua rivalidade histórica contra o Inter-nacional (informações 6 e 7), o que torna o sonho do título mais imprová-vel, uma vez que a equipe gremista poderia perder propositalmente, a fim de impedir que seu rival seja campeão.

4 Conclusão

Neste trabalho, realizamos análises de dois textos de gêneros diferen-tes, segundo duas abordagens teóricas, promovendo uma Interface Externa entre a Linguística e a Cognição, por meio da Teoria da Argumentação na Língua, que detém seu olhar sobre as relações realizadas por meio da linguagem, e a Psicolinguística, que traz o ponto de vista cognitivo para o

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estudo da leitura e do texto. A Interface Interna, por sua vez, se deu entre a Semântica Linguística e a Psicolinguística, duas subáreas da Linguística que podem tomar o mesmo objeto para estudo, segundo abordagens e me-todologias diferentes.

No caso deste trabalho, o objeto escolhido para análise foi a compre-ensão de dois textos, segundo tais vieses teóricos. O objetivo foi ver de que maneira tais teorias podem interagir para explicar melhor esse objeto, cada uma com suas metodologias, tendo um cruzamento de resultados que se com-plementam. Vejamos abaixo:

A Semântica Linguística e sua análise da língua em uso revelou fenôme-nos importantes da linguagem, como o humor, na tirinha da Mafalda (texto 1), e as instruções que devem ser seguidas pelo interlocutor para compreender textos como a charge (texto 2). Do ponto de vista enunciativo, revelou que as relações entre os seres discursivos constituem também o sentido do enuncia-do, pois as suas marcas são deixadas nele pela enunciação. Percebeu-se que o texto 2 demandou uma maior pesquisa contextual e enunciativa, enquanto o texto 1, necessitou uma menor pesquisa contextual, bem como na linguagem visual. Isso se deve ao fato de a charge, conforme já comentado em momento oportuno, durante a análise, estar mais relacionada com o momento da enun-ciação (especialmente a noção temporal, que envolve o momento da produção do enunciado), fazendo alusão a fatos que toma como tema.

Na análise psicolinguística, percebeu-se que o esforço cognitivo dispen-sado para a compreensão da tirinha é menor que aquele exigido para a com-preensão da charge. Além de retratar assuntos mais amplos que a charge, a tirinha apresenta sua mensagem, embora não totalmente, de maneira mais ex-plícita, possibilitando ao leitor que realize um processamento de leitura mais ascendente, ou seja, baseado nas informações dadas pelo autor. Já a charge, por se referir a um fato pontual, como já foi mencionado anteriormente, exi-ge que o leitor realize um número bem maior de inferências, buscando em seu ambiente cognitivo inúmeras informações contextuais que o autor deixou implícitas, realizando, assim, um processamento de leitura descendente. E se seu conhecimento prévio falhar, ele poderá gerar inferências elaborativas não correspondentes ao sentido pretendido pelo autor.

No que diz respeito às teorias e análises, de maneira geral, vimos que ambas dão conta do objeto escolhido para análise a partir de pontos de vista

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diferentes e metodologias distintas: a Semântica Linguística foi capaz de ana-lisar os dois textos a partir do material linguístico disponível. Evidenciou a relação entre as palavras, entre as frases e entre os seres discursivos, por meio da enunciação, bem como permitiu uma análise do léxico para a explicação do teor humorístico do texto 1. Já a Psicolinguística, partindo de outro en-foque, considerou os conhecimentos prévios do leitor, bem como o contexto extralinguístico, alcançando também o objetivo proposto, de compreensão e construção do sentido do texto.

Observando o resultado das análises, verificamos que, em relação à charge, a Semântica Linguística evidenciou de maneira bem clara a importância da ins-trução e da relação entre locutor e interlocutor, na medida em que aquele deixa marcas deste em seu enunciado, formando a imagem de um interlocutor “ideal” a quem seu discurso é endereçado. A Psicolinguística, por sua vez, na análise da charge, nos mostrou que ela só será efetivamente compreendida se o leitor possuir conhecimentos prévios a respeito dos fatos aos quais faz alusão (o final do Campeonato Brasileiro e a ampliação da rede de metrô), podendo, assim, gerar inferências adequadas para aproximar-se do sentido pretendido pelo autor.

Quanto à tirinha, vimos que os resultados da análise apontaram resulta-dos diferentes: a análise semântica evidenciou o uso humorístico da linguagem (pela troca do sentido da palavra indicador, conforme demonstramos com a argumentação interna das expressões em que ela aparece). Já a Psicolinguís-tica mostrou o sentido crítico construído por meio da tirinha, o que decorre do fato de essa teoria considerar, para leitura de um texto, os conhecimentos prévios do leitor, nesse caso específico, saber que as tirinhas da personagem Mafalda normalmente fazem críticas à situação política e social do país. Tal revelação não aparece na Semântica Linguística, pois ela se detém na análise dos enunciados e do sentido expresso por eles e, neste caso, não há informa-ções verbais a respeito da criticidade da personagem.

Apesar de partirem de pressupostos diferentes, podemos dizer que uma análise enriquece a outra na medida em que a Semântica Linguística se de-bruça sobre o estudo da língua, cujo conhecimento é importante para que se possa fazer uma boa leitura, e a busca de informações no contexto, ou a ativação de diversos processos mentais pressupostos pela Psicolinguística favo-recem uma compreensão global do sentido, produzindo, no caso do texto 1, um humor crítico.

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Também em uma situação de produção textual sobre os temas apresen-tados nos textos acima, o conhecimento da linguagem, bem como as infor-mações trazidas por esse leitor, que passa a ser autor de um texto, contribuem para uma melhor argumentação, no sentido linguístico, bem como para uma introdução de melhores argumentos: conhecendo os fatos, ele pode apresentar seu ponto de vista a respeito deles com mais clareza e propriedade.

Entendemos, portanto, que a interface externa entre campos do conhe-cimento como a Linguística e a Cognição, bem como as interfaces internas a um mesmo domínio têm o papel de trazer inúmeras contribuições e novos fundamentos para o exercício da pesquisa, revelando faces do objeto que talvez permanecessem ocultas, não fosse graças a essa articulação.

ABSTRACT

This paper is about an external interface between the fields of Linguistics and Cognition, and an internal interface in the field of linguistics between Argumentative Semantic and Psycholiguistics. It aims to analyze, according to both theories, two distintic texts, and verify how the understanding of each text is explained according to the chosen theories.

KEYWORDS: Linguistic Semantics, Psycholinguistics, reading comprehension.

Recebido em: 31/03/2010Aprovado em: 17/06/2010