Upload
amanda-souza
View
215
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
trabalho formacao geral
Citation preview
13
INTRODUO
O termo 'direito' entendido pelos moralistas, pelos religiosos e por certos filsofos, no sentido de 'justo' e de 'justia' enquanto, para os juristas, significa 'regra de direito'. Para uns ideal; para outros, uma norma positiva. Alguns s vem nele uma disciplina de ao destinada a instituir ou preservar certo estado da sociedade', portanto uma simples disciplina social; outros buscam nele um conjunto de regras de boa conduta. Para alguns, o direito apenas um aspecto dos fenmenos sociais, como a sociologia e a histria. Para outros, 'um sistema de representaes intelectuais que se edificam segundo princpios que lhe so prprios, de modo totalmente independente dos fenmenos sociolgicos ou histricos'. Alguns pensam que sempre apenas 'o resultado provisrio da luta secular travada pelas foras sociais e das alianas de interesses que podem, em certos momentos, operar-se entre elas'. Outros rejeitam a idia de que o direito procede apenas de uma evoluo histrica e de um determinismo material e sustentam que o direito resulta apenas da vontade e da atividade humana
1.
O Direito contemporneo caracterizado pela passagem da
Constituio para o centro do sistema jurdico. Consagrado na segunda metade do
sculo XX pela soberania das Constituies normativas, o chamado Estado
constitucional de direito, entende que a validade das leis no depende apenas da
sua forma de produo, mas da congruncia de seu contedo com as
normas/valores constitucionais2. O direito comea a ser visto como um campo
necessrio de luta para a implementao das promessas da modernidade
(igualdade, justia social, direitos fundamentais, etc.) e assume um papel de
transformao da realidade da sociedade. Conceitos como soberania popular,
separao dos poderes e maiorias parlamentrias cedem lugar legitimidade
constitucional 3.
O Judicirio sempre foi um poder coadjuvante, por ser considerado
neutro politicamente. Apesar da visibilidade que ganhou por seu empenho em
resguardar valores desde o advento do novo direito constitucional, o Judicirio vem
enfrentando o dilema de adaptar sua estrutura organizacional, seus critrios de
interpretao e suas jurisprudncias s situaes inditas nas relaes sociais, fruto
1 VIRALLY, 1960; MIAILLE, 1976 apud BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. Traduo de
Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 6. 2 BARROSO, Lus Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporneo: os conceitos
fundamentais e a construo do novo modelo. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 245. 3 STRECK, Lenio. A revoluo copernicana do (neo) constitucionalismo e a (baixa)
compreenso do fenmeno no Brasil: uma abordagem luz da hermenutica filosfica. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2009, p. 4-5.
14
do desenvolvimento urbano-industrial que fez surgir uma sociedade condenada por
profundas contradies econmicas, que exige cada vez mais tutelas diferenciadas
para novos direitos sociais e a proteo de interesses difusos e coletivos4.
Como tendem a desafiar a rigidez lgico-formal do sistema jurdico
em vigor, essas situaes inditas tm colocado o Judicirio diante da necessidade
de rever suas funes bsicas. Nos tempos atuais, o Judicirio se viu obrigado a dar
respostas a demandas para as quais no possui experincia terica nem
jurisprudncia firmada, pois j no suficiente decidir conflitos mediante a simples
aplicao de normas abstratas gerais e unvocas a casos concretos5.
As funes judicantes forjadas a partir do Estado Liberal revelam-se
hoje em descompasso com a realidade. A cultura judiciria desse perodo fruto da
dogmatizao de princpios como a imparcialidade poltica e a neutralidade
axiolgica, integrados a um sistema que via no Judicirio um poder meramente
declarativo e reativo. Ou seja, cabia somente aos juzes a proteo dos direitos civis
e polticos dos cidados, muitos dos quais foram violados por regimes autoritrios
militares6.
Com a crescente tenso marcada pela intensa migrao interna,
pela urbanizao desenfreada, pelas desigualdades regionais, pela crise fiscal e
pelo fracasso das polticas pblicas, entre outras causas, o discurso institucional
tradicional do Judicirio ficou fragilizado7.
A partir da transio do regime ditatorial para o regime democrtico,
o Judicirio se v obrigado a assumir funes inditas, por vezes incompatveis com
a estrutura jurdico-poltica, tpica do Estado Liberal, como o princpio da separao
dos poderes, e que se reconhecidas implicariam a ruptura do discurso institucional
tradicional. Se a soluo judicial de um conflito em essncia um atributo de poder,
na medida em que pressupe no apenas critrios fundantes e opes entre
alternativas, implicando tambm a imposio da escolha feita, todo julgamento
sempre tem uma dimenso poltica8.
No basta caracterizar a Constituio Federal de 1988 como social,
dirigente e compromissria. Normas jurdicas ineficazes podem transform-la em
4 FARIA, Jos Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justia. So Paulo: Malheiros, 2008,
p. 52. 5 Ibid., p. 52-53.
6 Ibid., p. 53.
7 Ibid., p. 54.
8 Ibid., p. 56.
15
uma Constituio simblica. A eficcia das normas constitucionais exige um
redimensionamento do papel do Poder Judicirio que se v diante do paradoxo de
uma Constituio rica em direitos e de prticas jurdico-judiciria que,
reiteradamente, (s) negam a aplicao de tais direitos9. O pensamento jurdico-
dogmtico dominante, positivista e privatista, entende que a Constituio apenas
um marco no ordenamento, e que os direitos fundamentais se resumem a direitos
subjetivos de liberdade voltados defesa da ingerncia indevida do Estado10.
Para Streck, o Estado Democrtico de Direito representa um plus
normativo 11em relao ao Estado Liberal e at mesmo ao Estado Social. Se com o
advento do Estado Social, em funo do forte poder intervencionista do Estado, o
foco passou a ser para o Poder Executivo, no Estado Democrtico de Direito, a
inrcia do Executivo e do Legislativo pode(ria) ser suprida pelo Judicirio quando
ferirem a Constituio12.
A presente pesquisa discute a possibilidade do Poder Judicirio,
atualmente e no Brasil, declarar um bem, desde que provocado, patrimnio cultural,
reavaliando o princpio da separao dos poderes e a funo do Judicirio frente s
suas responsabilidades sociais ps Constituio de 1988.
O Judicirio deixa de atuar como mero aplicador mecnico de
normas pr-estabelecidas e passa a assumir, com o advento do
neoconstitucionalismo, a responsabilidade pela efetivao dos direitos sociais, como
o direito preservao do meio ambiente cultural.
Silva, diante da consolidao do termo na legislao brasileira,
conceitua meio ambiente como sendo a interao do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida
em todas as suas formas 13.
Considera-se patrimnio cultural brasileiro, segundo o art. 216 da
Constituio Federal, os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao,
memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
9 STRECK, A revoluo copernicana, op. cit., p. 5.
10 Ibid., p. 6.
11 Princpio da inrcia. 12
Ibid., p. 7. 13
SILVA, Jos Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 1995, p. 2.
16
A fim de definir a categoria patrimnio cultural, prope-se nesta
pesquisa a indicao de trs subcategorias que melhor distinguiriam um bem
comum de um cultural, que seriam: 1) a comunidade; 2) o testemunho; 3) a
coletividade. Assim, patrimnio cultural pode ser definido como o conjunto de bens,
prticas sociais, criaes, materiais ou imateriais de determinada comunidade e
que, por sua peculiar condio de estabelecer dilogos temporais e espaciais
relacionados aquela cultura, serve de testemunho e de referncia s geraes
presentes e futuras, e constitui valor de pertena pblica, merecedor de proteo
jurdica e ftica por parte do Estado14.
Entre os bens incomensurveis e heterogneos do patrimnio
cultural, foi escolhido para este trabalho aqueles representados pelas edificaes.
Como bem salienta Choay, monumentos histricos e edificaes no so mais
expresses sinnimas. Os monumentos histricos so espcies do gnero
edificaes, que no pra de crescer com a incluso de novos tipos de bens e com o
alargamento do quadro cronolgico e das reas geogrficas no interior das quais
esses bens se inscrevem15.
O sentido original do termo o do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (advertir, lembrar), aquilo que traz lembrana alguma coisa. A natureza afetiva do seu propsito essencial: no se trata de apresentar, de dar uma informao neutra, mas de tocar, pela emoo, uma memria viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se- monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivduos para rememorar ou fazer que outras geraes de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifcios, ritos ou crenas. A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuao sobre a memria. No apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediao da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, no passado qualquer: ele localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade tnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. Para aqueles que edificam, assim como para os destinatrios das lembranas que veiculam, o monumento uma defesa contra o traumatismo da existncia, um dispositivo de segurana. O monumento assegura, acalma, tranqiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietao gerada pela incerteza dos comeos. Desafio entropia, ao dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta combater a angstia da morte e do aniquilamento
16.
14
MARCHESAN, Ana M. Moreira. A tutela do patrimnio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50. 15 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. Traduo de Luciano Vieira Machado. 2. ed. So Paulo: UNESP, 2006, p. 12. 16
Ibid., p. 18.
17
Outra distino importante a de monumento e monumento
histrico. Enquanto o monumento puro e simples uma criao deliberada cuja
destinao foi pensada a priori, de forma imediata, o monumento histrico no ,
desde o princpio, desejado e criado como tal; ele constitudo a posteriori pelos
olhares convergentes do historiador e do amante da arte 17.
Foi a gerao da Semana de Arte Moderna quem deu o pontap
inicial para a proteo dos bens culturais, influenciando propostas e projetos de leis
que se tornariam realidade apenas em 1937, com o Decreto-Lei n 25. Projeto de
autoria de Mrio de Andrade, essa norma a principal ordem legislativa em termos
de bens culturais18.
Concomitantemente, na Alemanha, surgiu um grupo de intelectuais
de tendncias marxistas, no ortodoxos, que pretendiam analisar criticamente a
sociedade contempornea. Para isso, fundaram o Instituto para Pesquisa Social,
mais conhecido como Escola de Frankfurt.
Esse projeto teve incio a partir de uma semana de estudos
marxistas (1922) na Turngia, idealizada e organizada por Felix Weil, na qual
participaram os marxistas Karl Korsch, Georg Lukcs, Friedrich Pollock, Karl August
Wittfogel e outros.
Esses dois acontecimentos esto associados aos anseios de uma
anlise crtica da realidade dos problemas sociais. O primeiro, voltado ao mbito
nacional e esttico, opositor importao dos ideais europeus e s formas estticas
rgidas, tambm se preocupou com o social; visava o alcance de uma identidade
nacional. O segundo pretendeu analisar e buscar uma alternativa emancipatria
para a sociedade como uma totalidade19.
Atribui-se Escola de Frankfurt20 a criao do conceito indstria
cultural, formulado numa segunda fase do Instituto, quando da sua transferncia
para os Estados Unidos em razo da Segunda Guerra Mundial. Sob a influncia da
17
CHOAY, op. cit., p. 25. 18
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Mars de. Bens Culturais e sua proteo jurdica. 3. ed. amp. atual. Curitiba: Juru, 2006, p. 55 e 58. 19
Leandro Konder, filsofo marxista brasileiro, em sua obra Intelectuais Brasileiros e Marxismo, aponta a influncia ideolgica marxista dos principais autores do Movimento Modernista no Brasil, Oswald de Andrade e Mrio de Andrade. 20
Os tericos de Frankfurt raramente possuam uma unidade temtica e um consenso epistemolgico terico e poltico. O que propiciava uma atuao conjunta era a capacidade que tinham de raciocinar dialeticamente. In: FREITAG, Barbara. A teoria crtica: ontem e hoje. 5. ed. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 67.
18
cultura americana, expresso mxima do capitalismo, pensadores como Adorno e
Horkheimer escreveram A Dialtica do Esclarecimento, obra na qual propem o
conceito de arte reprodutvel, demonstrando nesta um carter esttico que tem se
constitudo como elemento ideolgico para a manuteno do status quo.
Com a revoluo tecnolgico-industrial que possibilitou a reproduo
em srie das obras de arte, os bens culturais deixam de ser bens de consumo
reservados a uma elite para se converterem em bens de consumo de massa. A obra
de arte foi transformada em mercadoria. A cultura, inserida na lgica do mercado,
passa a ter valor de troca. Essa falsa democratizao da arte recebeu de Adorno e
Horkheimer o nome de indstria cultural 21.
Em razo dessa mercadorizao, prolifera-se a discusso em torno
da proteo do patrimnio cultural, visto que como mercadoria, a cultura gera lucro.
Em razo disso deve o Judicirio, ao atuar no sentido de proteger os
bens culturais, fazer uma reflexo profunda para verificar se o bem cultural por
representar o interesse da sociedade, ou porque ele aderiu a lgica da indstria
cultural e passou a ser economicamente vivel.
Portanto, nem tudo o que cultural patrimnio ao qual se agrega o
adjetivo cultural22. No obstante a importncia da preservao, esta no pode ser
global, como afirma Souza Filho, porque impedir a ao do homem no meio
ambiente seria manter esttico o processo cultural. Como j dito anteriormente, o
processo cultural revela-se cumulativo, ou seja, no extingue a cultura h tempos
praticada23.
O bem cultural algo capaz de satisfazer as necessidades vitais
sociais de reconhecimento do homem no mundo, tanto no passado, como no
presente, para a construo do futuro.
O intuito da preservao do bem cultural fazer reviver um passado,
a fim de preservar a identidade dos povos e grupos sociais e refletir sobre o destino
das sociedades atuais24.
A legislao brasileira, em matria de meio ambiente cultural, como
se ver, estabeleceu diversos instrumentos de proteo, dentre eles o tombamento.
Tombamento o ato administrativo da autoridade competente, que declara ou
21
FREITAG, Barbara. A teoria crtica: ontem e hoje. 5. ed. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 68-71. 22
MARCHESAN, op. cit., p. 13-14. 23
SOUZA FILHO, op. cit, p. 21. 24
CHOAY, op. cit., p. 26-29.
19
reconhece valor histrico, artstico, paisagstico, arqueolgico, bibliogrfico, cultural
ou cientfico de bens que, por isso, passam a ser preservados 25.
Trata-se de um ato declaratrio e discricionrio26. Declaratrio na
medida em que um bem cultural no por ser tombado, mas em razo de suas
qualidades intrnsecas. Discricionrio desde que no haja risco atual que ameace o
bem. Embora haja obrigao e no mera faculdade, o Poder Pblico pode escolher
o momento de tombar, utilizando-se assim de sua discricionariedade quanto
oportunidade da prtica do ato, mas no quanto ao seu exerccio27.
Se a Administrao Pblica se omite da prtica de um ato e age
contrariamente ao interesse pblico, questiona-se se possvel ao Judicirio exercer
o controle desse ato.
A demolio da fbrica da Cervejaria Adritica, da cidade de Ponta
Grossa, Paran, foi objeto de ao judicial, julgada improcedente, sob a justificativa
de que o Poder Judicirio no ente legtimo num Estado Social Democrtico de
Direito para reconhecer um bem como cultural, atribuio essa cabvel apenas ao
Executivo.
Entendeu o juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justia de Paran
que no cabia ao Judicirio valorar a convenincia da preservao do patrimnio
histrico.
Sob o prisma do fenmeno do neoconstitucionalismo, confrontar-se-
a deciso do Judicirio com a importncia histrica do bem em questo, bem
como a aplicabilidade dos conceitos jurdicos indeterminados, em especial
excepcional valor e feio notvel, a fim de, ao final, avaliar se o Poder Judicirio
atuou de modo coerente ao ordenamento poltico-jurdico brasileiro.
25
SOUZA FILHO, op. cit., p. 83. 26
polmica a questo da discricionariedade em relao ao meio ambiente. Muitos autores entendem que nesta matria todos os atos so vinculados. Para este trabalho, como se ver adiante, a discricionariedade extremamente restrita. 27
SOUZA FILHO, op. cit., p. 88.