51
Curso de Férias INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins de Melo Junior Rio de janeiro 2015

INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

Curso de Feacuterias

INTRODUCcedilAtildeO Agrave CRISTOLOGIA

Aurecir Martins de Melo Junior

Rio de janeiro

2015

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo 1

i O ponto de partida 2

ii O objeto 2

iii O lugar 3

iv As dificuldades atuais 4

v Jesus histoacuterico e o Cristo da feacute 5

vi Trecircs fases cristoloacutegicas 6

1 - Cristologia do Novo Testamento 8

11 Sinoacuteticos e Atos 8

12 Paulo 9

13 Joatildeo 10

2 - Cristologia dos seacuteculos II ndash IV 13

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo 13

211 Adocionismo 13

212 Modalismo 13

213 Subordinacionismo 14

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia 14

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens 14

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos 15

221 Ebionismo 15

222 Marcionismo 15

223 Docetismo-agnosticismo 16

224 Irineu a unidade de Deus 16

225 Tertuliano as duas naturezas 17

226 Oriacutegenes 17

23 Cristologia no seacuteculo IV 18

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus 18

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος 19

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa 20

234 O apolinarismo e a alma de cristo 20

4 - Cristologia dos seacuteculos V ndash VII 21

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas 21

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina 21

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena 21

313 A Tradiccedilatildeo Latina 21

32 A Crise Nestoriana 22

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio 22

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio 22

323 A resposta de Nestoacuterio 23

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio 23

33 O conciacutelio de Eacutefeso 24

34 A doutrina de Satildeo Cirilo 24

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433 24

36 O Monofisismo 25

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia 25

362 O monofisismo de Ecircutiques 25

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo 26

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia 26

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553) 27

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla 28

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo 28

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo 28

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo 29

5 - Cristologia especulativa 29

41 As operaccedilotildees teacircndricas 29

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai 30

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo 31

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo 31

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica 32

451 O modo da uniatildeo 32

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo 32

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica 33

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica 33

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo 34

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural 34

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica 34

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo 34

461 Natureza e pessoa na cristologia 34

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa 35

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa 35

464 Ser e Pessoa em Cristo 35

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo 36

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo 36

472 As teorias em torno ao eu de Cristo 36

473 O uacutenico eu de Cristo 36

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia 36

481 Anton Guumlnther 37

482 Antonio Rosmini 37

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia 38

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner 39

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo 40

49 A Santidade de Cristo 40

491 A santidade de Jesus Cristo 40

492 A graccedila da uniatildeo 40

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo 41

494 A graccedila capital 41

495 A plenitude da graccedila em Cristo 41

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade 42

497 As tentaccedilotildees de Cristo 42

410 A ciecircncia de Cristo 43

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo 43

4102 A visatildeo imediata de deus 43

4103 Jesus viator e comprehensor 43

4104 Ciecircncia infusa 44

4105 A ciecircncia adquirida 44

4106 Jesus e a feacute 45

4107 A infalibilidade de Jesus 45

4108 A consciecircncia de Jesus 46

Bibliografia 47

Introduccedilatildeo

ldquoE voacutes quem dizeis que eu sourdquo1 A partir desta indagaccedilatildeo de Jesus aos seus disciacutepulos frente a

qual Pedro faz sua profissatildeo de feacute e revela que Jesus eacute o cumprimento da esperanccedila messiacircnica e o

Filho do Deus vivo2 iniciamos nosso estudo de Cristologia

No mundo hoje muitas satildeo as ldquoverdadesrdquo ditas sobre Jesus A quem o identifique como o

Libertador um revolucionaacuterio um espiacuterito elevado um profeta da mensagem de Deus dentre

tantas outras definiccedilotildees que podemos encontrar Em nosso estudo buscaremos encontrar

fundamentos soacutelidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele eacute

Toda especulaccedilatildeo teoloacutegica eacute auxiliada por distintas ciecircncias por exemplo a exegese a

histoacuteria a filosofia as ciecircncias sociais etc3 A partir de entatildeo esboccedila alguns saberes fundamentais

sobre Jesus sua existecircncia pessoa missatildeo interpretaccedilatildeo da Igreja ao longo dos seacuteculos presenccedila

atual na consciecircncia dos homens repercussatildeo na histoacuteria posterior e sua capacidade de engendrar

esperanccedila e salvaccedilatildeo Deste modo compreende-se que a Cristologia dogmaacutetica (ou sistemaacutetica)

que supotildee a feacute como Dom de Deus e luz para a inteligecircncia e potecircncia para a vontade eacute

acompanhada por de outras trecircs formas de cristologia a histoacuterica a fundamental e a filosoacutefica

Resumidamente

Cristologia histoacuterica estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geograacutefico

cultural religioso e social

Cristologia fundamental indaga os signos (sinais) que acompanham a existecircncia de

Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelaccedilatildeo de Deus

Cristologia filosoacutefica mostra que dimensotildees do ser do homem e da histoacuteria se

esclarecem agrave luz de Jesus enquanto universal concreto4

Cristologia dogmaacutetica pressupotildee a revelaccedilatildeo como accedilatildeo de Deus na histoacuteria de

Israel com seu aacutepice na pessoa de Cristo a feacute eacute o princiacutepio do conhecimento

Assim a accedilatildeo do teoacutelogo deve contar com a revelaccedilatildeo divina (Sagrada Escritura) com os

oacutergatildeos de transmissatildeo eclesial (liturgia sentido da feacute nos crentes tradiccedilatildeo conciliar autoridade

episcopal magisteacuterio) com os princiacutepios objetivos da existecircncia cristatilde (Espiacuterito Santo sucessores

dos apoacutestolos) e com os subjetivos (carismas comunitaacuterios e dons teologais) Oferecendo desta

forma inteligecircncia e razatildeo externa da proacutepria feacute5

1 Mc 829a 2 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 3 Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e a razatildeo ldquoA razatildeo privada do contributo da Revelaccedilatildeo percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final A feacute privada da razatildeo pocircs em maior evidecircncia o sentimento e a experiecircncia correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal Eacute ilusoacuterio pensar que tendo pela frente uma razatildeo deacutebil a feacute goze de maior incidecircncia pelo contraacuterio cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersticcedilatildeo Da mesma maneira uma razatildeo que natildeo tenha pela frente uma feacute adulta natildeo eacute estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do serrdquo JOAtildeO PAULO II Carta enciacuteclica Fides et ratio Satildeo Paulo Paulus 2001 p68 4 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p XIX 5 Ibidem

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 2: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo 1

i O ponto de partida 2

ii O objeto 2

iii O lugar 3

iv As dificuldades atuais 4

v Jesus histoacuterico e o Cristo da feacute 5

vi Trecircs fases cristoloacutegicas 6

1 - Cristologia do Novo Testamento 8

11 Sinoacuteticos e Atos 8

12 Paulo 9

13 Joatildeo 10

2 - Cristologia dos seacuteculos II ndash IV 13

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo 13

211 Adocionismo 13

212 Modalismo 13

213 Subordinacionismo 14

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia 14

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens 14

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos 15

221 Ebionismo 15

222 Marcionismo 15

223 Docetismo-agnosticismo 16

224 Irineu a unidade de Deus 16

225 Tertuliano as duas naturezas 17

226 Oriacutegenes 17

23 Cristologia no seacuteculo IV 18

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus 18

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος 19

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa 20

234 O apolinarismo e a alma de cristo 20

4 - Cristologia dos seacuteculos V ndash VII 21

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas 21

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina 21

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena 21

313 A Tradiccedilatildeo Latina 21

32 A Crise Nestoriana 22

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio 22

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio 22

323 A resposta de Nestoacuterio 23

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio 23

33 O conciacutelio de Eacutefeso 24

34 A doutrina de Satildeo Cirilo 24

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433 24

36 O Monofisismo 25

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia 25

362 O monofisismo de Ecircutiques 25

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo 26

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia 26

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553) 27

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla 28

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo 28

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo 28

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo 29

5 - Cristologia especulativa 29

41 As operaccedilotildees teacircndricas 29

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai 30

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo 31

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo 31

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica 32

451 O modo da uniatildeo 32

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo 32

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica 33

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica 33

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo 34

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural 34

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica 34

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo 34

461 Natureza e pessoa na cristologia 34

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa 35

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa 35

464 Ser e Pessoa em Cristo 35

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo 36

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo 36

472 As teorias em torno ao eu de Cristo 36

473 O uacutenico eu de Cristo 36

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia 36

481 Anton Guumlnther 37

482 Antonio Rosmini 37

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia 38

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner 39

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo 40

49 A Santidade de Cristo 40

491 A santidade de Jesus Cristo 40

492 A graccedila da uniatildeo 40

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo 41

494 A graccedila capital 41

495 A plenitude da graccedila em Cristo 41

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade 42

497 As tentaccedilotildees de Cristo 42

410 A ciecircncia de Cristo 43

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo 43

4102 A visatildeo imediata de deus 43

4103 Jesus viator e comprehensor 43

4104 Ciecircncia infusa 44

4105 A ciecircncia adquirida 44

4106 Jesus e a feacute 45

4107 A infalibilidade de Jesus 45

4108 A consciecircncia de Jesus 46

Bibliografia 47

Introduccedilatildeo

ldquoE voacutes quem dizeis que eu sourdquo1 A partir desta indagaccedilatildeo de Jesus aos seus disciacutepulos frente a

qual Pedro faz sua profissatildeo de feacute e revela que Jesus eacute o cumprimento da esperanccedila messiacircnica e o

Filho do Deus vivo2 iniciamos nosso estudo de Cristologia

No mundo hoje muitas satildeo as ldquoverdadesrdquo ditas sobre Jesus A quem o identifique como o

Libertador um revolucionaacuterio um espiacuterito elevado um profeta da mensagem de Deus dentre

tantas outras definiccedilotildees que podemos encontrar Em nosso estudo buscaremos encontrar

fundamentos soacutelidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele eacute

Toda especulaccedilatildeo teoloacutegica eacute auxiliada por distintas ciecircncias por exemplo a exegese a

histoacuteria a filosofia as ciecircncias sociais etc3 A partir de entatildeo esboccedila alguns saberes fundamentais

sobre Jesus sua existecircncia pessoa missatildeo interpretaccedilatildeo da Igreja ao longo dos seacuteculos presenccedila

atual na consciecircncia dos homens repercussatildeo na histoacuteria posterior e sua capacidade de engendrar

esperanccedila e salvaccedilatildeo Deste modo compreende-se que a Cristologia dogmaacutetica (ou sistemaacutetica)

que supotildee a feacute como Dom de Deus e luz para a inteligecircncia e potecircncia para a vontade eacute

acompanhada por de outras trecircs formas de cristologia a histoacuterica a fundamental e a filosoacutefica

Resumidamente

Cristologia histoacuterica estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geograacutefico

cultural religioso e social

Cristologia fundamental indaga os signos (sinais) que acompanham a existecircncia de

Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelaccedilatildeo de Deus

Cristologia filosoacutefica mostra que dimensotildees do ser do homem e da histoacuteria se

esclarecem agrave luz de Jesus enquanto universal concreto4

Cristologia dogmaacutetica pressupotildee a revelaccedilatildeo como accedilatildeo de Deus na histoacuteria de

Israel com seu aacutepice na pessoa de Cristo a feacute eacute o princiacutepio do conhecimento

Assim a accedilatildeo do teoacutelogo deve contar com a revelaccedilatildeo divina (Sagrada Escritura) com os

oacutergatildeos de transmissatildeo eclesial (liturgia sentido da feacute nos crentes tradiccedilatildeo conciliar autoridade

episcopal magisteacuterio) com os princiacutepios objetivos da existecircncia cristatilde (Espiacuterito Santo sucessores

dos apoacutestolos) e com os subjetivos (carismas comunitaacuterios e dons teologais) Oferecendo desta

forma inteligecircncia e razatildeo externa da proacutepria feacute5

1 Mc 829a 2 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 3 Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e a razatildeo ldquoA razatildeo privada do contributo da Revelaccedilatildeo percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final A feacute privada da razatildeo pocircs em maior evidecircncia o sentimento e a experiecircncia correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal Eacute ilusoacuterio pensar que tendo pela frente uma razatildeo deacutebil a feacute goze de maior incidecircncia pelo contraacuterio cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersticcedilatildeo Da mesma maneira uma razatildeo que natildeo tenha pela frente uma feacute adulta natildeo eacute estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do serrdquo JOAtildeO PAULO II Carta enciacuteclica Fides et ratio Satildeo Paulo Paulus 2001 p68 4 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p XIX 5 Ibidem

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 3: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena 21

313 A Tradiccedilatildeo Latina 21

32 A Crise Nestoriana 22

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio 22

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio 22

323 A resposta de Nestoacuterio 23

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio 23

33 O conciacutelio de Eacutefeso 24

34 A doutrina de Satildeo Cirilo 24

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433 24

36 O Monofisismo 25

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia 25

362 O monofisismo de Ecircutiques 25

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo 26

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia 26

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553) 27

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla 28

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo 28

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo 28

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo 29

5 - Cristologia especulativa 29

41 As operaccedilotildees teacircndricas 29

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai 30

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo 31

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo 31

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica 32

451 O modo da uniatildeo 32

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo 32

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica 33

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica 33

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo 34

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural 34

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica 34

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo 34

461 Natureza e pessoa na cristologia 34

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa 35

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa 35

464 Ser e Pessoa em Cristo 35

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo 36

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo 36

472 As teorias em torno ao eu de Cristo 36

473 O uacutenico eu de Cristo 36

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia 36

481 Anton Guumlnther 37

482 Antonio Rosmini 37

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia 38

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner 39

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo 40

49 A Santidade de Cristo 40

491 A santidade de Jesus Cristo 40

492 A graccedila da uniatildeo 40

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo 41

494 A graccedila capital 41

495 A plenitude da graccedila em Cristo 41

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade 42

497 As tentaccedilotildees de Cristo 42

410 A ciecircncia de Cristo 43

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo 43

4102 A visatildeo imediata de deus 43

4103 Jesus viator e comprehensor 43

4104 Ciecircncia infusa 44

4105 A ciecircncia adquirida 44

4106 Jesus e a feacute 45

4107 A infalibilidade de Jesus 45

4108 A consciecircncia de Jesus 46

Bibliografia 47

Introduccedilatildeo

ldquoE voacutes quem dizeis que eu sourdquo1 A partir desta indagaccedilatildeo de Jesus aos seus disciacutepulos frente a

qual Pedro faz sua profissatildeo de feacute e revela que Jesus eacute o cumprimento da esperanccedila messiacircnica e o

Filho do Deus vivo2 iniciamos nosso estudo de Cristologia

No mundo hoje muitas satildeo as ldquoverdadesrdquo ditas sobre Jesus A quem o identifique como o

Libertador um revolucionaacuterio um espiacuterito elevado um profeta da mensagem de Deus dentre

tantas outras definiccedilotildees que podemos encontrar Em nosso estudo buscaremos encontrar

fundamentos soacutelidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele eacute

Toda especulaccedilatildeo teoloacutegica eacute auxiliada por distintas ciecircncias por exemplo a exegese a

histoacuteria a filosofia as ciecircncias sociais etc3 A partir de entatildeo esboccedila alguns saberes fundamentais

sobre Jesus sua existecircncia pessoa missatildeo interpretaccedilatildeo da Igreja ao longo dos seacuteculos presenccedila

atual na consciecircncia dos homens repercussatildeo na histoacuteria posterior e sua capacidade de engendrar

esperanccedila e salvaccedilatildeo Deste modo compreende-se que a Cristologia dogmaacutetica (ou sistemaacutetica)

que supotildee a feacute como Dom de Deus e luz para a inteligecircncia e potecircncia para a vontade eacute

acompanhada por de outras trecircs formas de cristologia a histoacuterica a fundamental e a filosoacutefica

Resumidamente

Cristologia histoacuterica estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geograacutefico

cultural religioso e social

Cristologia fundamental indaga os signos (sinais) que acompanham a existecircncia de

Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelaccedilatildeo de Deus

Cristologia filosoacutefica mostra que dimensotildees do ser do homem e da histoacuteria se

esclarecem agrave luz de Jesus enquanto universal concreto4

Cristologia dogmaacutetica pressupotildee a revelaccedilatildeo como accedilatildeo de Deus na histoacuteria de

Israel com seu aacutepice na pessoa de Cristo a feacute eacute o princiacutepio do conhecimento

Assim a accedilatildeo do teoacutelogo deve contar com a revelaccedilatildeo divina (Sagrada Escritura) com os

oacutergatildeos de transmissatildeo eclesial (liturgia sentido da feacute nos crentes tradiccedilatildeo conciliar autoridade

episcopal magisteacuterio) com os princiacutepios objetivos da existecircncia cristatilde (Espiacuterito Santo sucessores

dos apoacutestolos) e com os subjetivos (carismas comunitaacuterios e dons teologais) Oferecendo desta

forma inteligecircncia e razatildeo externa da proacutepria feacute5

1 Mc 829a 2 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 3 Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e a razatildeo ldquoA razatildeo privada do contributo da Revelaccedilatildeo percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final A feacute privada da razatildeo pocircs em maior evidecircncia o sentimento e a experiecircncia correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal Eacute ilusoacuterio pensar que tendo pela frente uma razatildeo deacutebil a feacute goze de maior incidecircncia pelo contraacuterio cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersticcedilatildeo Da mesma maneira uma razatildeo que natildeo tenha pela frente uma feacute adulta natildeo eacute estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do serrdquo JOAtildeO PAULO II Carta enciacuteclica Fides et ratio Satildeo Paulo Paulus 2001 p68 4 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p XIX 5 Ibidem

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 4: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

464 Ser e Pessoa em Cristo 35

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo 36

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo 36

472 As teorias em torno ao eu de Cristo 36

473 O uacutenico eu de Cristo 36

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia 36

481 Anton Guumlnther 37

482 Antonio Rosmini 37

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia 38

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner 39

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo 40

49 A Santidade de Cristo 40

491 A santidade de Jesus Cristo 40

492 A graccedila da uniatildeo 40

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo 41

494 A graccedila capital 41

495 A plenitude da graccedila em Cristo 41

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade 42

497 As tentaccedilotildees de Cristo 42

410 A ciecircncia de Cristo 43

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo 43

4102 A visatildeo imediata de deus 43

4103 Jesus viator e comprehensor 43

4104 Ciecircncia infusa 44

4105 A ciecircncia adquirida 44

4106 Jesus e a feacute 45

4107 A infalibilidade de Jesus 45

4108 A consciecircncia de Jesus 46

Bibliografia 47

Introduccedilatildeo

ldquoE voacutes quem dizeis que eu sourdquo1 A partir desta indagaccedilatildeo de Jesus aos seus disciacutepulos frente a

qual Pedro faz sua profissatildeo de feacute e revela que Jesus eacute o cumprimento da esperanccedila messiacircnica e o

Filho do Deus vivo2 iniciamos nosso estudo de Cristologia

No mundo hoje muitas satildeo as ldquoverdadesrdquo ditas sobre Jesus A quem o identifique como o

Libertador um revolucionaacuterio um espiacuterito elevado um profeta da mensagem de Deus dentre

tantas outras definiccedilotildees que podemos encontrar Em nosso estudo buscaremos encontrar

fundamentos soacutelidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele eacute

Toda especulaccedilatildeo teoloacutegica eacute auxiliada por distintas ciecircncias por exemplo a exegese a

histoacuteria a filosofia as ciecircncias sociais etc3 A partir de entatildeo esboccedila alguns saberes fundamentais

sobre Jesus sua existecircncia pessoa missatildeo interpretaccedilatildeo da Igreja ao longo dos seacuteculos presenccedila

atual na consciecircncia dos homens repercussatildeo na histoacuteria posterior e sua capacidade de engendrar

esperanccedila e salvaccedilatildeo Deste modo compreende-se que a Cristologia dogmaacutetica (ou sistemaacutetica)

que supotildee a feacute como Dom de Deus e luz para a inteligecircncia e potecircncia para a vontade eacute

acompanhada por de outras trecircs formas de cristologia a histoacuterica a fundamental e a filosoacutefica

Resumidamente

Cristologia histoacuterica estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geograacutefico

cultural religioso e social

Cristologia fundamental indaga os signos (sinais) que acompanham a existecircncia de

Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelaccedilatildeo de Deus

Cristologia filosoacutefica mostra que dimensotildees do ser do homem e da histoacuteria se

esclarecem agrave luz de Jesus enquanto universal concreto4

Cristologia dogmaacutetica pressupotildee a revelaccedilatildeo como accedilatildeo de Deus na histoacuteria de

Israel com seu aacutepice na pessoa de Cristo a feacute eacute o princiacutepio do conhecimento

Assim a accedilatildeo do teoacutelogo deve contar com a revelaccedilatildeo divina (Sagrada Escritura) com os

oacutergatildeos de transmissatildeo eclesial (liturgia sentido da feacute nos crentes tradiccedilatildeo conciliar autoridade

episcopal magisteacuterio) com os princiacutepios objetivos da existecircncia cristatilde (Espiacuterito Santo sucessores

dos apoacutestolos) e com os subjetivos (carismas comunitaacuterios e dons teologais) Oferecendo desta

forma inteligecircncia e razatildeo externa da proacutepria feacute5

1 Mc 829a 2 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 3 Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e a razatildeo ldquoA razatildeo privada do contributo da Revelaccedilatildeo percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final A feacute privada da razatildeo pocircs em maior evidecircncia o sentimento e a experiecircncia correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal Eacute ilusoacuterio pensar que tendo pela frente uma razatildeo deacutebil a feacute goze de maior incidecircncia pelo contraacuterio cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersticcedilatildeo Da mesma maneira uma razatildeo que natildeo tenha pela frente uma feacute adulta natildeo eacute estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do serrdquo JOAtildeO PAULO II Carta enciacuteclica Fides et ratio Satildeo Paulo Paulus 2001 p68 4 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p XIX 5 Ibidem

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 5: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

Introduccedilatildeo

ldquoE voacutes quem dizeis que eu sourdquo1 A partir desta indagaccedilatildeo de Jesus aos seus disciacutepulos frente a

qual Pedro faz sua profissatildeo de feacute e revela que Jesus eacute o cumprimento da esperanccedila messiacircnica e o

Filho do Deus vivo2 iniciamos nosso estudo de Cristologia

No mundo hoje muitas satildeo as ldquoverdadesrdquo ditas sobre Jesus A quem o identifique como o

Libertador um revolucionaacuterio um espiacuterito elevado um profeta da mensagem de Deus dentre

tantas outras definiccedilotildees que podemos encontrar Em nosso estudo buscaremos encontrar

fundamentos soacutelidos para tentar responder o questionamento de Jesus sobre quem ele eacute

Toda especulaccedilatildeo teoloacutegica eacute auxiliada por distintas ciecircncias por exemplo a exegese a

histoacuteria a filosofia as ciecircncias sociais etc3 A partir de entatildeo esboccedila alguns saberes fundamentais

sobre Jesus sua existecircncia pessoa missatildeo interpretaccedilatildeo da Igreja ao longo dos seacuteculos presenccedila

atual na consciecircncia dos homens repercussatildeo na histoacuteria posterior e sua capacidade de engendrar

esperanccedila e salvaccedilatildeo Deste modo compreende-se que a Cristologia dogmaacutetica (ou sistemaacutetica)

que supotildee a feacute como Dom de Deus e luz para a inteligecircncia e potecircncia para a vontade eacute

acompanhada por de outras trecircs formas de cristologia a histoacuterica a fundamental e a filosoacutefica

Resumidamente

Cristologia histoacuterica estuda os fatos da vida de Jesus em seu meio geograacutefico

cultural religioso e social

Cristologia fundamental indaga os signos (sinais) que acompanham a existecircncia de

Jesus e que nos permite reconhece-lo como revelaccedilatildeo de Deus

Cristologia filosoacutefica mostra que dimensotildees do ser do homem e da histoacuteria se

esclarecem agrave luz de Jesus enquanto universal concreto4

Cristologia dogmaacutetica pressupotildee a revelaccedilatildeo como accedilatildeo de Deus na histoacuteria de

Israel com seu aacutepice na pessoa de Cristo a feacute eacute o princiacutepio do conhecimento

Assim a accedilatildeo do teoacutelogo deve contar com a revelaccedilatildeo divina (Sagrada Escritura) com os

oacutergatildeos de transmissatildeo eclesial (liturgia sentido da feacute nos crentes tradiccedilatildeo conciliar autoridade

episcopal magisteacuterio) com os princiacutepios objetivos da existecircncia cristatilde (Espiacuterito Santo sucessores

dos apoacutestolos) e com os subjetivos (carismas comunitaacuterios e dons teologais) Oferecendo desta

forma inteligecircncia e razatildeo externa da proacutepria feacute5

1 Mc 829a 2 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 3 Neste contexto vale lembrar o que diz a Fides et ratio sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e a razatildeo ldquoA razatildeo privada do contributo da Revelaccedilatildeo percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final A feacute privada da razatildeo pocircs em maior evidecircncia o sentimento e a experiecircncia correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal Eacute ilusoacuterio pensar que tendo pela frente uma razatildeo deacutebil a feacute goze de maior incidecircncia pelo contraacuterio cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou supersticcedilatildeo Da mesma maneira uma razatildeo que natildeo tenha pela frente uma feacute adulta natildeo eacute estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do serrdquo JOAtildeO PAULO II Carta enciacuteclica Fides et ratio Satildeo Paulo Paulus 2001 p68 4 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p XIX 5 Ibidem

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 6: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

2

ldquoCristologiardquo significa literalmente ldquodoutrina ou discurso acerca de (Jesus o) Cristo Christos corresponde agrave traduccedilatildeo para o grego do termo hebraico mashiah (o Ungido [de Deus]) Originalmente portanto Christus (forma latinizada) natildeo eacute um cognome da figura histoacuterica de Jesus de Nazareacute mas uma confissatildeo dela () O tiacutetulo ldquoCristordquo representa de modo vicaacuterio e sucinto todas as prediccedilotildees do portador da salvaccedilatildeo com as quais se tentou tanto no passado como no presente expressar quem eacute Jesus eacute e o que ele significa para noacutes6

Em suma a Cristologia eacute o tratado teoloacutegico que daacute conta e razatildeo agrave confissatildeo de feacute de Pedro

e de toda a Igreja ndash ldquoJesus eacute o Cristo o Filho de Deusrdquo 7ndash mediante a narraccedilatildeo dos fatos de sua vida

particular e da proposiccedilatildeo de sua verdade universal Jesus eacute entatildeo compreendido natildeo soacute como uma

origem histoacuterica de uma nova relaccedilatildeo com Deus Ele eacute o objeto a que se dirige a feacute do cristianismo

i O PONTO DE PARTIDA O ponto de partida e de referecircncia da cristologia eacute a histoacuteria pessoal de Cristo

Compreende-se aqui histoacuteria pessoal como o conjunto de mensagens accedilotildees e acolhimento da

vontade do Pai e de certo modo a decisatildeo dos homens por Ele A histoacuteria pessoal tem uma face

exterior e outra interior de modo que para se conhecer uma se faz necessaacuterio conhecer a outra e

vice e versa

Portanto a vida factual de Jesus torna-se sinal de sua consciecircncia Isto eacute os fatos histoacutericos

visiacuteveis nos colocam frente a uma realidade invisiacutevel eterna Pois assim como em todos os homens

a consciecircncia se revela a si mesma nas obras em Cristo o reconhecemos como Filho de Deus tambeacutem

por suas obras

Jesus Cristo portanto Verbo feito carne enviado ldquocomo homem aos homensrdquo ldquoprofere as palavras de Deusrdquo (Jo 334) e consuma a obra salviacutefica que o Pai lhe confiou (cfr Jo 536 174) Eis por que Ele ao qual quem vecirc vecirc tambeacutem o Pai (cfr Jo 149) pela plena presenccedila e manifestaccedilatildeo de Si mesmo por palavras e obras sinais e milagres e especialmente por Sua morte e gloriosa ressurreiccedilatildeo dentre os mortos enviado finalmente o Espiacuterito de verdade aperfeiccediloa e completa a revelaccedilatildeo e a confirma com o testemunho divino que Deus estaacute conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna8

Deste modo haacute duas formas de conhecimento de Cristo Uma que o vecirc pela hermenecircutica

histoacuterica que O vecirc como um judeu que estaacute na origem do cristianismo e outra teoloacutegica que o vecirc

a partir se sua revelaccedilatildeo sobrenatural acolhida pela feacute Na verdade esta eacute a forma de conhece-lo

definitivamente tanto na pessoa humana como divina Assim partindo da histoacuteria de Cristo a

cristologia tende a chegar na consciecircncia de Cristo

ii O OBJETO De modo sucinto e claro quase oacutebvio o objeto da cristologia eacute a pessoa de Cristo Poreacutem

eacute preciso evidenciar que natildeo se trata de uma visatildeo unilateral sobre a pessoa de Cristo Conhecer a

Cristo supotildee conhecer sua origem sua relaccedilatildeo com Deus e seu desiacutegnio de salvaccedilatildeo dos homens

6 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 7 Cf Mt 1616 Jo2031 1Jo 222 At 922 8 DV4

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 7: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

3

Como vimos a confissatildeo cristoloacutegica potildee Cristo em relaccedilatildeo com Deus como Filho eterno9

Insere em nossa compreensatildeo de Cristo a realidade trinitaacuteria a qual funda a possibilidade da criaccedilatildeo

e o sentido da encarnaccedilatildeo Em consequecircncia disto a cristologia haacute de considerar a relaccedilatildeo de Cristo

com Deus na Trindade (θεολογία) e sua accedilatildeo no tempo para a salvaccedilatildeo dos homens (οἰκονομία)

Deste modo a cristologia tem que ser exposta como conjugaccedilatildeo em Cristo do ser de Deus

(θεολογία) e do tempo do homem (οἰκονομία) pois se esquecida qualquer uma destas realidades

reduziria Cristo a uma mera fatalidade judaica ou a um mito universal10

A profissatildeo de feacute da Igreja em Jesus como o Cristo o Filho de Deus une intimamente a

pessoa e a missatildeo de Jesus Tradicionalmente estas duas realidades foram separadas subdividindo a

cristologia em duas partes A primeira eacute a Cristologia propriamente dita ou seja a que se refere agrave

pessoa de Cristo ndash Verbo divino encarnado agrave sua constituiccedilatildeo ou identidade ontoloacutegica sua

Encarnaccedilatildeo uniatildeo hipostaacutetica e propriedades A segunda eacute denominada Soteriologia que estuda a

sua obra de salvaccedilatildeo consumada no sacrifiacutecio da cruz Natildeo obstante natildeo se pode fazer uma

separaccedilatildeo entre estas duas partes pois Jesus em sua humanidade criada e concreta eacute a antecipaccedilatildeo

dos planos de Deus para a humanidade e iniacutecio da nova humanidade11 Assim pela Cristologia se

chega agrave Soteriologia mas tambeacutem pela Soteriologia se chega agrave Cristologia

Agrave luz disto conclui-se que o objeto da Cristologia eacute a pessoa de Cristo enquanto constituiacuteda

nestas trecircs realidades na relaccedilatildeo com o Pai e com o Espiacuterito sua missatildeo salviacutefica para os homens e

sua situaccedilatildeo no mundo no tempo e lugar12

iii O LUGAR A especulaccedilatildeo teoloacutegica busca explicitar e explicar o que Deus revelou a cerca de si na

histoacuteria Ao compreendermos Jesus como plenitude de toda a revelaccedilatildeo compreendemos a

centralidade da cristologia na teologia

O conteuacutedo profundo da verdade seja a respeito de Deus seja da salvaccedilatildeo do homem se nos manifesta por meio dessa revelaccedilatildeo em Cristo que eacute ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelaccedilatildeo13

Jaacute definimos a Cristologia como a parte da teologia que tem como objeto Jesus enquanto

verbo encarnado e enquanto sua missatildeo redentora Em consequecircncia podemos afirmar que a

Cristologia eacute o tema central e o ponto crucial da teologia cristatilde sendo entatildeo uma chave para todos

os outros temas da teologia14 Isto eacute no iniacutecio e no centro da eacute cristatilde natildeo se encontra um livro ou

uma ideia abstrata mas sim uma pessoa viva De fato desde a era mais remota do cristianismo se

professa Jesus como Senhor que venceu a morte ressuscitou e se faz presente por seu Espiacuterito15

Toda a especulaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo se faz agrave luz do dado revelado o Verbo que se fez carne Ele

9 Cf Mt 1616 Mc 829 Lc 920 10 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 7 11 Cf 1Cor 1545-49 12 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 8 13 DV 2 14 KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012 p219 15 Cf Rm 109 Fl 211

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 8: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

4

falou as palavras de Deus16 mostrou-nos a face de Deus17 Assim sendo Cristo se torna a chave

hermenecircutica para a Teologia

iv AS DIFICULDADES ATUAIS O anuacutencio da Boa Nova de Jesus encontrou dificuldades desde a era apostoacutelica Eacute comum

por exemplo encontrar nos textos do Novo Testamento o combate agraves doutrinas que deturpavam o

anuacutencio e a compreensatildeo de Jesus18 A comunidade cristatilde preocupada em salvaguardar o depoacutesito

da feacute recebido da pregaccedilatildeo e vida de Jesus reuniu em seus escritos o que Jesus fez e falou Deste

modo foi se estruturando a tradiccedilatildeo cristatilde

Poreacutem na modernidade com o desenvolvimento do meacutetodo histoacuterico criacutetico estes textos

passaram a ser contestados em seu valor histoacuterico O pensamento que surge a partir de entatildeo teraacute

como consequecircncia a separaccedilatildeo do Jesus-histoacuterico e do Cristo-da-feacute

Podemos destacar algumas vertentes dessas dificuldades A primeira eacute relativa agrave dificuldade

que a razatildeo encontra para saltar dos fatos agrave verdade de feacute ldquoAs verdades histoacutericas como contingentes que

satildeo natildeo podem servir de prova agraves verdades da razatildeo como necessaacuterias que satildeordquo19 Transpor esta dificuldade

estaacute na capacidade de observar no homem a abertura agrave transcendecircncia e agrave histoacuteria simultaneamente

Logo a revelaccedilatildeo de Deus natildeo eacute concluiacuteda diretamente da histoacuteria mas pelos sinais que Deus

mesmo oferece ao homem dentro da histoacuteria

Um segundo niacutevel dessas dificuldades estaacute relacionado agraves definiccedilotildees cristoloacutegicas dos

primeiros conciacutelios com os testemunhos primitivos da feacute que anuncia a salvaccedilatildeo como

acontecimento e descrevem a Cristo em sua funccedilatildeo soterioloacutegica sem que fazer afirmaccedilotildees sobre

seu ser sobre o do homem e o de Deus Exige-se o transpasso de categorias de uma cultura de

memoacuteria relato e paraacutebola a outra cultura da fiacutesica e da metafiacutesica Tarefa esta que a Igreja tem se

dedicado e mostrado a continuidade entre ambos os tipos de categorias

O terceiro problema eacute a constituiccedilatildeo pessoal e comunitaacuteria da feacute em detrimento da

constituiccedilatildeo sacramental e institucional da Igreja Isto eacute o discurso sobre Jesus tende ao

subjetivismo no qual se pensa a mensagem e a pessoa de Jesus a mercecirc do homem Nesta linha de

pensamento podemos perceber que a cristologia eacute construiacuteda no privileacutegio de alguns autores ou

textos em vez de outros como tambeacutem de alguns conciacutelios frente a outros absolutizaccedilatildeo de um

tiacutetulo e o rechaccedilamento de outros Esta postura inverte os valores e torna o homem Senhor o

soberano de Deus e Cristo e estes como seus servos A Igreja eacute o lugar proacuteprio da cristologia eacute

uma comunidade aberta nascida da vocaccedilatildeo divina e da liberdade humana Rebater esta dificuldade

significa compreender e conjugar a lugar necessaacuterio e os limites do indiviacuteduo na Igreja com a

autoridade dos sucessores dos apoacutestolos

A consequecircncia desta uacuteltima dificuldade satildeo as relaccedilotildees entre a unidade de feacute em Cristo e o

pluralismo de cristologias ou a forma de expor o fundamento e o conteuacutedo da feacute nele comeccedilando

pelo Novo Testamento e seguindo na Histoacuteria da Igreja Dentro deste problema aparece a questatildeo

da unidade e diversidade em Deus de sua manifestaccedilatildeo multiacuteplice no mundo e de sua autorrevelaccedilatildeo

16 Cf Jo 334 17 Cf Jo 1410 18 Cf 1 Tm 63 Gl 16s 2Pe 21-3 1Jo41-3 2Ts 29-12 19 LESSING apud CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 p 27

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 9: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

5

em Cristo ou qual a relaccedilatildeo deste com as religiotildees do mundo

Trecircs tem sido as respostas20

Exclusivismo Barth Kraemer e o protestantismo radical ndash salvaccedilatildeo soacute haacute em Cristo

Inclusivismo Lubac Rahner e a maioria dos teoacutelogos catoacutelicos ndash haacute salvaccedilatildeo para

todo homem que vive na verdade e ama a justiccedila mas a salvaccedilatildeo soacute encontra sua

plenitude em Cristo

Pluralismo salviacutefico Hick Knitter e a chamada teoria pluralista das religiotildees ndash cada

religiatildeo eacute salviacutefica no seu lugar e no seu tempo Jesus eacute uma expressatildeo de um Cristo

universal que tem muitos nomes21

v JESUS HISTOacuteRICO E O CRISTO DA FEacute O estudo da cristologia pode ser orientado por diversos modos o que chamaremos de

meacutetodos Se pode comeccedilar a falar de Cristo a partir dos dias de Joatildeo Batista ateacute o dia em que ele foi

elevado aos ceacuteus22 e chegar ao significado de Cristo para a Igreja e para a humanidade de hoje Mas

tambeacutem pode seguir o caminho inverso partindo do encontro pessoal que a feacute torna possiacutevel hoje

e regressar agrave histoacuteria de Cristo na busca de sua origem e fundamento Este duplo cominho jaacute pode

ser percebido na teologia do Novo Testamento uma ascendente e outra descendente

Ascendente parte do Jesus humano para a partir das suas atividades humanas

revelar a sua Pessoa divina Eacute comum nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos

Apoacutestolos nos Sinoacuteticos e em outras passagens neotestamentaacuterias em que Ele vem

apresentado como profeta servo obediente de Yahweh servo que se submeteu agrave

morte e foi manifestado como Senhor ressuscitado por Deus

Risco ater-se somente a estes textos infere no erro hermenecircutico o qual reduz

Jesus a um simples homem que foi agraciado e adotado por Deus um ser divinizado

por uma accedilatildeo de Deus que transmutou seu ser de homem

Descendente parte da divindade de Jesus que o vecirc como Logos encarnado plantando

sua tenda no meio de noacutes23 Eacute tiacutepica em Joatildeo e nas uacuteltimas cartas do Corpus

Paulinum Jesus eacute sempre comparado agrave Sabedoria dos textos Sapiecircncias do Antigo

Testamento

Risco da mesma forma como a teologia ascendente o acento uacutenico neste meacutetodo

gera o erro do monofisismo ou docetismo Isto eacute Cristo seria um ser eterno que

sem deixar sua natureza divina assumiria uma natureza humana como um

invoacutelucro sem consistecircncia proacutepria

Deste modo acentuamos que o estudo da Cristologia mesmo que partindo de um meacutetodo

especiacutefico natildeo se pode deixar de considerar o outro O estudo cristoloacutegico deve ser feito a partir

20 CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 pp 29-30 21 Estas respostas parecem relacionar-se diretamente agrave questatildeo da salvaccedilatildeo dos que natildeo pertencem visivelmente agrave Igreja Natildeo eacute um assunto do qual se trate diretamente este curso poreacutem a niacutevel de compreensatildeo recomenda-se a leitura dos documentos conciliares Lumen Gentium e Gaudium et Spes (Cf LG 16 GS 22) 22 Cf At122 23 Cf Jo 11-14

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 10: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

6

da conexatildeo dessas duas perspectivas

Outro fator que implica na forma de fazer cristologia eacute a influecircncia do pensamento cientiacutefico

posterior ao Renascimento Mesmo que a ciecircncia teoloacutegica pertenccedila a uma esfera de especulaccedilatildeo

distinta da ciecircncia empiacuterica esta influenciou a Teologia com seu modo de pensar moderno e

contemporacircneo Em consequecircncia disto o dado revelado deveria se sujeitar ao crivo da

compreensatildeo da inteligecircncia humana O referencial teocecircntrico cedeu lugar desta forma ao

antropocentrismo Por outro lado a Teologia sofreu tambeacutem o influxo do subjetivismo de kantiano

Deste modo Cristo eacute o protoacutetipo eacutetico da norma moral que a priori o ser humano conhece em sua

mente como lei de razatildeo universal Desse modo o Jesus da histoacuteria eacute reduzido a um modelo moral

Assim tanto a Pessoa quanto a obra de Cristo passam a ser consideradas sob uma oacutetica

prevalentemente histoacuterica empiacuterica segundo o criteacuterio do cientificamente palpaacutevel

A partir de entatildeo na pesquisa biacuteblica foram inseridas duacutevidas sobre a veracidade histoacuterica

dos evangelhos Destaca entatildeo a divergecircncia entre o que chamavam de ldquoo Jesus preacute-pascalrdquo e ldquoo

Cristo poacutes-pascalrdquo Esta duacutevida consiste resumidamente na acusaccedilatildeo de ter a comunidade cristatilde

primitiva do seacuteculo I construiacutedo uma caricatura do verdadeiro Jesus em prol de um Cristo que

suscitasse a feacute nas pessoas por meio da pregaccedilatildeo

vi TREcircS FASES CRISTOLOacuteGICAS24

Racionalismo

Jesus eacute considerado apenas como um homem formativo ou um visionaacuterio fracassado mas

natildeo como o Filho de Deus Afirma ser impossiacutevel chegar a verdadeira figura histoacuterica de Jesus de

Nazareacute a partir da pesquisa sobre a vida de Jesus

Principais representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) H E Gottlob Paulus

(1761-1851) D F Strauss (1808-1874) f C Baur (1792-1860)

Fideiacutesmo

O desenvolvimento do Meacutetodo da Histoacuteria das Formas apontava a negaccedilatildeo dos evangelhos

como relatos biograacuteficos de Jesus ou narraccedilotildees sobre Ele Os evangelhos satildeo considerados apenas

um conjunto de peccedilas individuais de finalidade sobretudo catequeacutetica e de confissatildeo da feacute Este

dado corrobora tanto para a tese dos racionalistas como a dos fedeiacutestas Poreacutem diferente dos

racionalistas os Fideiacutestas acreditavam interessar somente a feacute no Cristo poacutes-pascal uacutenica

possibilidade de acesso ao Cristo dos Evangelhos Desta forma natildeo interessava o acesso ao Jesus-

histoacuterico mas a mensagem contida no relato do Cristo-da-feacute

Principais representantes Martin Kaumlhler e Rudolf Bultmann

Fase poacutes- bultmanniana

Esta fase caracteriza-se pela busca de equiliacutebrio e pela volta ao Jesus-histoacuterico O meacutetodo

que eacute usado nesta fase eacute o Meacutetodo da Histoacuteria da Redaccedilatildeo Detendo-se ao texto final demonstra que

os evangelistas ainda que tenham recebido colecionado e compilado as unidades literaacuterias satildeo na

verdade testemunhas dos fatos narrados e verdadeiros autores literaacuterios dos Evangelhos A volta do

24 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 11: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

7

Jesus histoacuterico fundamenta-se na dependecircncia que demostra ter o Cristo do keacuterygma no Jesus

histoacuterico

Os estudiosos dessa fase afirmam que os Evangelhos natildeo falsificaram as palavras e atos de

Jesus Eles na verdade possuem um caraacuteter de testemunho do Jesus histoacuterico eles explicitam uma

feacute germinal dos disciacutepulos ainda antes da glorificaccedilatildeo na Paacutescoa Consideram tambeacutem o caraacuteter da

inspiraccedilatildeo biacuteblica

Por fim firmam alguns criteacuterios de historicidade dos Evangelhos25

Muacuteltipla atestaccedilatildeo os dados satildeo atestados em vaacuterios textos do Novo Testamento

Descontinuidade nos relatos pode-se perceber que alguns dos fatos narrados natildeo se

enquadram nas concepccedilotildees judaicas de seu tempo nem com as concepccedilotildees de um

Cristo glorioso ou as da Igreja primitiva

Conformidade o Jesus dos Evangelhos eacute uma personagem que se adequa aos usos

costumes liacutengua de um palestinense

O estilo de Jesus Jesus nos relatos dos Evangelhos possui uma especificidade que lhe

eacute proacutepria

Coerecircncia dos relatos a base comum de relatos mostra enfoques diversos e riquezas

de detalhes de um mesmo acontecimento

Principais representantes Joachim Jeremias E Kaumlsemann O Culmann e ainda os

exegetas catoacutelicos em geral

25 A Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica Dei Verbum do Conciacutelio Vaticano II reproduzindo os elementos essenciais da Instruccedilatildeo da Comissatildeo Biacuteblica sobre a verdade histoacuterica dos Evangelhos de 21041964 bem como atenta aos resultados das pesquisas modernas acerca da historicidade dos Evangelhos e do Jesus histoacuterico assim se pronunciou em siacutentese nos seus nuacutemeros 11 12 e 19

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 12: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

8

-1-

Cristologia do Novo Testamento

11 Sinoacuteticos e Atos

Quando tratamos dos meacutetodos da Cristologia ndash ascendente e descendente ndash dissemos que a

Cristologia ascendente eacute comum nos sinoacuteticos e nos primeiros capiacutetulos dos Atos dos Apoacutestolos

Deste modo veremos que estes relatos partem das accedilotildees terrenas de Jesus para chegarem ao Cristo

glorioso Apresentam uma cristologia bastante primitiva com um material querigmaacutetico antigo

com centralidade na Paixatildeo-Morte-Ressurreiccedilatildeo de Jesus muitos hebraiacutesmos26 e biblicismos27

Assim o Ato dos Apoacutestolos em um primeiro momento ressalta a humanidade de Jesus

Partindo de sua humanidade a compreensatildeo sobre Jesus se alarga para sua messianidade Contudo

apesar de jaacute apontar para uma messianidade a cristologia dos Atos dos Apoacutestolos natildeo apresenta uma

confissatildeo da divindade de Jesus

Evidenciaremos a seguir alguns textos que demonstrem essas duas caracteriacutesticas

Humanidade

a) discurso de Pedro no dia de Pentecostes At 222-23

b) discurso de Pedro a Corneacutelio e a seus companheiros At 1038

c) semelhanccedila com Moiseacutes At 322 e At720s

Messianidade

a) Jesus eacute chamado de Cristo - At 236 318 542 922

e) Jesus eacute chamado de ldquoo Justordquo - At 314

f) Jesus eacute Chamado de ldquopedra angularrdquo - At 411

A compreensatildeo messiacircnica do momento ainda estava muito ligada a um rei que viesse e

restaurasse o reino de Israel e expulsasse os inimigos Aparentemente morte de Jesus na cruz teria

desfeito essa esperanccedila e Jesus natildeo seria o Messias enviado Poreacutem o texto dos Atos testemunha o

contraacuterio Jesus eacute entatildeo identificado natildeo soacute como messias mas como Filho de Deus Natildeo haacute uma

distinccedilatildeo entre os tiacutetulos ldquoFilho de Deusrdquo e ldquoMessiasrdquo Isto eacute a concepccedilatildeo de um Messias-rei se

associa a noccedilatildeo mais espiritual e gloriosa daquele que se assenta agrave direita de Deus Mesmo que ele

tenha sofrido a humilhaccedilatildeo da morte de Cruz foi ressuscitado por Deus Pai a ele foi concedido

poder e gloacuteria28

Outro tiacutetulo dado a Jesus eacute o de ldquoServo de YHWHrdquo29 Jesus eacute apresentado como o

cumprimento das promessas neotestamentaacuterias30 O Servo Tal Servo eacute todavia o ungido de Deus31

26 Modos de falar tiacutepicos da liacutengua hebraica tais como Deus o ressuscitou ao terceiro dia ao inveacutes de ldquoEle ressuscitourdquo (At 1040) 27 Jesus eacute apresentado como o cumprimento das promessas feita no Antigo Testamento 28 Esta caracteriacutestica eacute afirmada pela cristofania no relato da ascensatildeo do Senhor (At 19-11) 29 At 826-40 30 Is 5213 ndash 5312 31 At 427

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 13: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

9

pelo qual Deus abenccediloa realiza curas sinais e prodiacutegios32

Tambeacutem eacute chamado Senhor (κύριος) este nome eacute usado pelos judeus para referir-se a

YHWH revelando assim um forte aspecto religioso Isto aproxima Jesus de Deus de modo a

conferir ao nome de Jesus os mesmos meacuteritos do nome de YHWH quem o invocar seraacute salvo33

Outros tiacutetulos satildeo atribuiacutedos a Jesus relevando essa proximidade com Deus ldquoPriacutencipe da vida34rdquo

Priacutencipe e Salvador35

Em suma o cume da revelaccedilatildeo de Jesus estaacute em sua Paacutescoa isto eacute o homem Jesus e suas

accedilotildees passam a ser reconhecidos como divinas a partir de sua ressurreiccedilatildeo

12 Paulo

Ainda no contexto da cristologia ascendente Paulo retoma vaacuterios tiacutetulos de Jesus jaacute

existentes na tradiccedilatildeo primitiva tais como Profeta Filho de Davi36 Filho do Homem Rei etc

Acrescenta tambeacutem outros tiacutetulos tais como Imagem de Deus (Cl 115) Bem-Amado (Ef 16)

Sabedoria de Deus (1 Cor 124) Segundo Adatildeo (1 Cor 1545) o tiacutetulo κύριος jaacute presente no Atos

dos Apoacutestolos e na comunidade cristatilde palestinense antiga parece ser o preferido por Paulo

geralmente associado agrave invocaccedilatildeo Maran atha37 Eacute comum encontrar nos textos paulinos conceitos

da tradiccedilatildeo primitiva ndash morte expiatoacuteria38 o tiacutetulo Filho de Deus tanto no sentido messiacircnico

como no sentido proacuteprio39 A inserccedilatildeo da Tradiccedilatildeo primitiva pode ser percebida nos textos que se

referem ao culto (confissotildees de feacute e accedilotildees de graccedilas) como tambeacutem nos hinos Neste sentido

podemos citar os textos de Rm 109 confissatildeo de feacute em Jesus como Senhor e possuidor da salvaccedilatildeo

1 Cor 1125 a instituiccedilatildeo da Eucaristia em o hino lituacutergico de Fl 26-11 entre outros Ainda em

passagens que relacionam Cristo com a criaccedilatildeo (1 Cor 86 Cl 115)

Dois temas que parecem central na cristologia paulina eacute o anuacutencio do juiacutezo de Cristo e a

exaltaccedilatildeo de seu reinado Estes temas de primeiro momento parecem muito proacuteximos com uma

variaccedilatildeo sem grande importacircncia No entanto revela na pregaccedilatildeo paulina dois traccedilos de tradiccedilatildeo

uma primitiva e uma posterior

Haacute pois uma tradiccedilatildeo cristatilde na maneira de apresentar Cristo Jesus como o juiz ou o salvador dos uacuteltimos dias (At 320 e cf 1 Ts 110) designado e jaacute entronizado por sua ressurreiccedilatildeo e que deve descer do ceacuteu para o julgamento Nesta tradiccedilatildeo a ressurreiccedilatildeo estaacute relacionada com o juiacutezo ela foi da parte de Deus a designaccedilatildeo do juiz escatoloacutegico40

As confissotildees de feacute posteriores endossaram a expressatildeo ldquoCristo estaacute assentado agrave direita de Deusrdquo que paralelamente agrave foacutermula ldquoJesus eacute Senhorrdquo reconhece o reinado atual de Cristo Eacute sem duacutevida muito antiga contudo seus traccedilos no Livro dos Atos satildeo relativamente

32 At 31326 430 33 At 221 34 At 315 35 At 531 36 Cf 2 Sm 7 37 O Senhor vem (1 Cor 1622) 38 1 Cor 153 Rm 61-4 39 Rm 13s 40 Cerfaux Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003 p25

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 14: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

10

apagados (At 234 755 visatildeo de Estecircvatildeo) Paulo emprega-a vaacuterias vezes Rm 834 Cl 31 Ef 12041

No discurso paulino natildeo se pode colher evidentemente caracteriacutesticas do Jesus-histoacuterico

mas sim do Jesus Mestre protoacutetipo dos filhos de Deus regra de soluccedilatildeo para a vida da Igreja e seus

problemas No entanto podemos assim mesmo colher os seguintes elementos da relaccedilatildeo de Paulo

com o Jesus da histoacuteria

Jesus eacute identificado como o crucificado como Jesus de Nazareacute42

Refere-se agrave condiccedilatildeo humana de Cristo agrave mansidatildeo e bondade de Jesus ao

ensinamento de Jesus a respeito do amor aos inimigos e ao divoacutercio43

Sobre o tiacutetulo de Cristo Paulo tende a usaacute-lo unido ao nome de Jesus O sentido deste

termo diferencia-se ao que eacute comum no meio judaico Paulo trata Jesus como o Messias em senso

teoloacutegico Por exemplo Rm 95 ndash Cristo eacute Deus bendito pelos seacuteculos 2 Cor 510 ndash Cristo eacute Juiz

Ef 523 ndash o Cristo eacute o Cabeccedila da Igreja

O tiacutetulo de κύριος eacute frequente no Antigo Testamento significando o rei representante de

Deus na Terra Aplicado a Cristo e associado aos demais tiacutetulos adquire uma amplitude muito

maior profundamente religioso44 Este tiacutetulo eacute associado tambeacutem a YHWH45 Aleacutem disso equivale

agrave afirmaccedilatildeo da divindade de Jesus alguns atributos proacuteprios de YHWH satildeo transferidos para Jesus

como por exemplo Senhor da Gloacuteria A LXX traduziu YHWH por κύριος

Outros tiacutetulos que Paulo usa relativos agrave Jesus satildeo ldquoFilho de Deusrdquo em sentido proacuteprio por

vezes como sinocircnimo de Messias46 ldquoImagem do Deus Invisiacutevelrdquo ldquoPrimogecircnito de toda criaturardquo47

Jesus eacute Senhor da criaccedilatildeo48

13 Joatildeo

O evangelho de Satildeo Joatildeo apresenta uma cristologia mais desenvolvida49 Jesus eacute identificado

fundamentalmente como o Revelador de Deus no Mundo como podemos identificar no iniacutecio do

livro do Apocalipse50 Eacute um profeta por excelecircncia51 eacute aquele do qual Moiseacutes havia escrito na lei52

nos laacutebios de Jesus satildeo postas as palavras que se referiam a Moiseacutes53 Ele eacute o Moiseacutes da Nova

Alianccedila54 Ele natildeo fala por si mas transmite aos homens as palavras que Deus lhe deu55 ele resume

a antiga Lei na Lei do amor

41 Ibidem p27 42 Cf Rm 13-4 2 Cor 123-24 43 Cf 2 Cor 89 Fl 27 2 Cor 101 Rm 1219-20 1 Cor 710-11 44 Cf Rm 149 2 Cor 45 1 Cor 85s 123 45 Cf Rm 109-13 em paralelo com Jl 35 1 Cor 216 46 Cf Rm 83 Gl 44 1 Cor 1547 2 Cor 89 Fl 26-11 47 Cf Cl 115 48 Cf Rm 1136 1 Cor 86 Cl 115-17 Hb 11s 49 BIacuteBLIA DE JERUZALEacuteM p1834 (nota introdutoacuteria aos textos joaninos) 50 Ap 11a 51 Jo 614 74052 52 Jo 145 546 cf Dt 181518 53 Jo 1248-50 828-29 716b-17 54 Jo 117 924-34 55 Jo 716-18 141024 178 334

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 15: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

11

ldquoDou-vos um mandamento novo que vos ameis uns aos outros Como eu vos amei amai-vos tambeacutem uns aos outrosrdquo56

A Cristologia joanina eacute marca de uma cristologia descendente parte da divindade de Jesus

no sentido de acentuar a preexistecircncia do Verbo (o Logos) divino no seio da Trindade a sua

Encarnaccedilatildeo ao assumir a natureza humana o seu retorno ao Pai com a sua Ressurreiccedilatildeo depois de

viver como homem Isto eacute trata a cristologia a partir do keacuterygma do que foi dito sobre o Senhor57

O Logos mais precisamente o Filho preexistente de Deus que vive em unidade com o Pai e eacute o mediador da criaccedilatildeo assume a carne (114) Ele tem um nome Jesus de Nazareacute e uma histoacuteria a que vai ser contada no evangelho58

O proacutelogo do Evangelho eacute a chave hermenecircutica para o relato da vida terrestre de Jesus

Nele Satildeo Joatildeo anuncia a vinda de Deus entre os seus isto eacute todos os seres humanos

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e o Verbo era Deus

2 Ele estava no princiacutepio junto de Deus

3 Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito

4 Nele havia a vida e a vida era a luz dos homens

5 A luz resplandece nas trevas e as trevas natildeo a

compreenderam 59

ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν

θεόν καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος

οὖτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ

ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν

ἐν αὐτῶ ζωὴ ἦν καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν

ἀνθρώπων

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει καὶ ἡ σκοτία

αὐτὸ οὐ κατέλαβεν

Eacute a partir desta concepccedilatildeo que Satildeo Joatildeo desenvolve sua teologia na qual concebe um Deus

que se faz proacuteximo agrave sua criaccedilatildeo por amor Assim toda a histoacuteria de Jesus deve ser lida na

perspectiva dessa afirmaccedilatildeo

Se o proacutelogo apresenta uma cristologia da encarnaccedilatildeo o corpo do evangelho desenvolve

uma cristologia do enviado Que pode ser compreendida como desenvolvimento e explicaccedilatildeo da

primeira Neste sentido na qualidade de enviado do Pai Cristo o representa no mundo natildeo di

palavras suas mas a do Pai60 natildeo efetua as suas obras mas as do Pai61 natildeo faz a sua vontade mas a

do Pai62 Seguindo a Loacutegica joanina Cristo eacute verdadeiro Deus na medida que eacute seu enviado ao

mesmo tempo que eacute um com ele e diferente dele63

Destaquemos entatildeo trecircs momentos do envio

1 A preexistecircncia e a encarnaccedilatildeo 2 Cumprimento da missatildeo a missatildeo eacute antes de tudo cumprida na realizaccedilatildeo dos milagres

56 Jo 1334s 57 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila 58 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 462 59 Jo 1 60 Jo 334 1410 17814 61 Jo 434 51719ss3036 828 1410 172434 62 Jo434530638102537 63 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 463

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 16: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

12

estes satildeo sinais (σημεῖα) e de revelador por sua pregaccedilatildeo

3 O retorno o retorno se daacute na cruz lugar da elevaccedilatildeo e da glorificaccedilatildeo64 A intenccedilatildeo cristoloacutegica de Joatildeo eacute vinculada a soteriologia A confissatildeo do enviado do Pai na

pessoa do homem Jesus daacute acesso agrave vida eterna65

Cristo natildeo eacute uma pessoa diferente do homem Jesus (1Jo222 5115) e precisamente por isso sua morte se reveste de uma significaccedilatildeo decisiva Ele eacute o lugar onde se manifesta a salvaccedilatildeo A apariccedilatildeo de formulas expiatoacuterias sublinha esse aspecto (1Jo 17 22 410 56)66

64 Jo 1232 65 Cf Jo30-31 66 ZUMSTEIN Jean O evangelho segundo Joatildeo In MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola 2012 p 484

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 17: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

13

-2-

Cristologia dos seacuteculos II ndash IV67

Na cristologia do Novo Testamento encontramos categorias que orientam a cristologia

posterior Os relatos do Novo Testamento nos apresentam a humanidade de Jesus sua

messianidade sua filiaccedilatildeo divina seu senhorio sua funccedilatildeo criadora na origem do mundo a

preexistecircncia em Deus a parusia para julgar o mundo e a funccedilatildeo recapituladora da obra salviacutefica

A compreensatildeo da natureza de Deus (Trindade) e da pessoa de Cristo (encarnaccedilatildeo) se fazem

unidas Ambas satildeo objeto da reflexatildeo teoloacutegica durante os primeiros seacuteculos encontrando sua

resposta definitiva no Conciacutelio de Niceacuteia que define a verdadeira divindade de Cristo e no conciacutelio

de Constantinopla que define a igualdade do Espiacuterito Santo com o Pai e o Filho

A histoacuteria da salvaccedilatildeo foi compreendida como desiacutegnio do Pai realizado em um momento

do tempo pelo Filho universalizado e interiorizado para cada homem pelo Espiacuterito Daiacute surgem

dois problemas chave Qual eacute a relaccedilatildeo de Jesus confessado verbo e Filho com Deus tal como era

compreendido pelo monoteiacutesmo Qual a relaccedilatildeo do Verbo eterno com a carne

21 As primeiras respostas Adocionismo modalismo subordinacionismo

A Igreja herdou do judaiacutesmo uma feacute monoteiacutesta A confissatildeo de feacute nas trecircs pessoas nunca

caracterizou um triteiacutesmo mas uma compreensatildeo monoteiacutesta de Deus que se realiza sua divindade

em comunicaccedilatildeo e autodoaccedilatildeo como Pai Filho e Espiacuterito Santo Surge a seguinte questatildeo Qual o

sentido e conteuacutedo dessa divindade de Cristo eacute uma divindade metafoacuterica ou em sentido proacuteprio

Em resposta a esta questatildeo surgiram quatro soluccedilotildees adocionismo modalismo subordinacionismo

211 Adocionismo

O adocionismo estaacute unido aos nomes de Teoacutedoto o Curtidor (excomungado a 190 em

Roma) e de Paulo de Samosata no Oriente (260 a 268 bispo de Antioquia) Para eles Jesus natildeo eacute

Deus por natureza mas um homem sobre o qual desceu o Espiacuterito Santo ou o Verbo e que Deus

aceitouadotou como Filho Destaca-se sua personalidade e modelo moral que o valeram de Deus

poder para fazer milagres e cuja virtude e sofrimento Deus premiou com a elevaccedilatildeo e dignidade

divina

212 Modalismo

Se situa no polo oposto Doutrina pregada por Praacutexeas Noeto e Sabelio Frente a dualidade

que supotildee o adocionismo destacam a unidade divina como princiacutepio supremo (μοναρχία) e frente

agrave reduccedilatildeo a exemplaridade moral ou heroiacutesmo com o que outros explicam a transcendecircncia e a

novidade de Cristo eles afirmam sua divindade Soacute haacute um princiacutepio divino e os nomes de Pai Filho

e Espiacuterito designam bem os aspectos (modos) sob os quais a realidade divina se manifestam a noacutes ou

os papeis que assumiram ao longo da histoacuteria Por isso dado que Deus se encarnou no seio de Maria

padeceu e morreu por noacutes se pode dizer que sendo Pai sofreu pelos homens A isto chamamos de

67 A partir desde capiacutetulo no qual nos ateremos a cristologia dogmaacutetica usaremos como texto base CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001 em forma de resumo

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 18: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

14

patripacionismo Foi designada como heresia desvelando como a proposta modalista na realidade

negava a verdadeira realidade e diferenccedila entre pai Filho e Espiacuterito Assim pode-se dizer tambeacutem

que a accedilatildeo uacutenica de Deus se deu em trecircs aspectos temporais e transitoacuterios Pai ndash criaccedilatildeo Filho ndash

encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo Espiacuterito ndash santificaccedilatildeo Trecircs nomes para um uacutenico e mesmo sujeito divino

213 Subordinacionismo

Eacute proacuteximo tanto ao adocionismo quanto ao modalismo mas seu ponto de partida e interesse

satildeo distintos Essa teoria nasce em conexatildeo com as afirmaccedilotildees gregas de um demiurgo que serve

como realidade intermediaacuteria entre o Deus absoluto e o mundo material Sua funccedilatildeo eacute portanto

mediadora entre Deus e o mundo salvar a transcendecircncia de Deus em relaccedilatildeo com o cosmo e com

a histoacuteria Entre o adocionismo e o modalismo os defensores desta interpretaccedilatildeo compreendem o

Verbo como a primeira criaccedilatildeo de Deus o agente do Pai em uma criaccedilatildeo que pode ser pensada

como eterna e portanto nesse sentido o verbo seria eterno mas em todo caso diferente de Deus

em sua natureza e infinitamente superior agraves criaturas Eacute considerado como um Deus de segunda

ordem um segundo Deus intermediaacuterio entre a realidade criadora e a criada

214 Resposta catoacutelica Conciacutelio de Niceacuteia

Foi o Conciacutelio de Niceacuteia que situa o verbo ao lado de Deus compreendendo sua origem

como geraccedilatildeo eterna e natildeo criaccedilatildeo temporal e sua natureza igual agrave do Pai diferenciada somente

por provir dele e estar voltado a ele como um Filho procede sem semelhanccedila vive em relaccedilatildeo e

existe sempre desde o Pai A consubstancialidade do Filho definida em Niceacuteia e a do Espiacuterito

definida em Constantinopla de maneira equivalente satildeo o ponto final da compreensatildeo trinitaacuteria de

Deus preparada pelos grandes teoacutelogos capadoacutecios (Satildeo Basiacutelio Satildeo Gregoacuterio de Nazianzo Satildeo

Gregoacuterio de Nissa) que elaboraram a teoria da unidade de essecircncia ou natureza e da trindade de

pessoas

215 Satildeo Justino O Logos em pessoa e os logos dos homens

Satildeo Justino o filoacutesofo maacutertir e o expoente mais qualificado dos padres apologistas oferece

uma nova perspectiva cristoloacutegica Defende que a filosofia encontra sua consumaccedilatildeo na revelaccedilatildeo

de Cristo Por isso nunca abandonou o manto filosoacutefico e viveu sua conversatildeo ao cristianismo como

a radical maneira de acender agrave verdade que sempre havia buscado O ponto de comunicaccedilatildeo entre

a filosofia e o cristianismo se constroacutei mediante o conceito de Logos Cristo eacute o Logos

transcendente cuja comunicaccedilatildeo comeccedila na criaccedilatildeo e culmina na encarnaccedilatildeo

O termo λόγος remete a fontes diversas a literatura sapiencial judia assimilada pelo

proacutelogo de Satildeo Joatildeo identificando Logos-sabedoria-Cristo e as especulaccedilotildees heleniacutesticas tanto de

procedecircncia platocircnica quanto estoacuteica Esta categoria cumpre desta maneira duas funccedilotildees

estabelece uma conexatildeo entre a divindade inacessiacutevel e o mundo e confere uma estrutura inteligiacutevel

a toda a realidade desde a divindade ao homem e ao cosmo

O Logos manifestado e encarnado em Cristo se converte assim em um princiacutepio de

intelecccedilatildeo de toda a realidade e de toda a histoacuteria anterior enquanto tronco de incardinaccedilatildeo de toda

as verdades que existem como sementes dispersas pelo cosmo e nos homens O Logos semeado

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 19: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

15

(σπερματικός Λόγος) no mundo apareceu pessoalmente encarnado em Cristo Por isso ele eacute o

eixo de toda realidade o princiacutepio de toda a inteligibilidade o dinamismo inerente a toda busca de

verdade e de justiccedila o recapitulador de tudo Quem viveu conforme o princiacutepio racional proacuteprio

(logos consciecircncia diriacuteamos hoje) satildeo cristatildeos em antecipaccedilatildeo maacutertires com Cristo

Noacutes temos recebido o ensinamento de que Cristo eacute o primogeacutenito de Deus e anteriormente indicamos que ele eacute o Verbo do qual todo gecircnero humano participa E assim os que viveram conforme o Verbo satildeo cristatildeos mesmo que tenham sido tidos por ateus como sucedeu entre os gregos com Socrates Heraacuteclito e outros semelhantes68

Justino situa a geraccedilatildeo do Verbo como um processatildeo de amor no interior de Deus Eacute difiacutecil

entretanto precisar se se trata de uma geraccedilatildeo no sentido da teologia posterior ou de uma criaccedilatildeo

na funccedilatildeo do cosmos e portanto subordinacionismo

No que tange agrave relaccedilatildeo com o Pai Justino afirma que o Cristo-Logos eacute anterior agraves criaturas coexistente com o Pai mas ao mesmo tempo gerado quando no princiacutepio criou e ordenou todas as coisas por meio dele Parece haver aqui portanto a afirmaccedilatildeo de dois estaacutegios distintos do Logos um enquanto imanente ao Pai o Logos eacute criador com o Pai coexistente e coeterno com Ele mas ainda uma potecircncia intelectiva em Deus outro a partir do momento em que o mundo eacute criado quando entatildeo eacute gerado emanado do Pai em vista da criaccedilatildeo e governo do mundo (sem contudo dividir a Unicidade de Deus)69

Com a cristologia do Logos imanente a Deus (ἐνδιάθετος) e proferido (προφορικός) Satildeo

Justino mostra pela primeira vez a significaccedilatildeo universal de Cristo e dessa forma faz o Cristianismo

herdeiro da histoacuteria anterior e iluminador da posterior Tal universalismo do cristianismo se realiza

ao mostrar que Cristo eacute o tronco do qual as ramas de toda verdade justiccedila e esperanccedila recebem a

seiva

22 Trecircs modelos de Cristologia deficiente e trecircs grandes teoacutelogos

221 Ebionismo

No seacuteculo II encontramos um sistema cristoloacutegico que reduz Cristo agraves possibilidades e

limites do a Lei de Moiseacutes e a esperanccedila judaica permitiam Cristo natildeo transcendia o Antigo

Testamento Isto eacute rechaccedilam o nascimento virginal de Jesus considerando que nasceu de Maria e

Joseacute como os demais homens e que por conseguinte eacute um homem

Haacute de se considerar a dificuldade que a mentalidade judaica tinha para unir sua feacute monoteiacutesta

com a feacute em Jesus como Deus Deste modo aceitaram a mensagem profeacutetica mas negaram a

transcendecircncia divina de sua pessoa Cristo eacute entatildeo concebido como nudus homo mero homem

expressotildees que se repetiram ateacute o final da patriacutestica

222 Marcionismo

Marciatildeo postula a radical separaccedilatildeo e contraposiccedilatildeo de Cristo em ralaccedilatildeo a Deus a histoacuteria

e moral apresentadas no Antigo Testamento Estabelece uma ruptura entre o Deus que se revela no

Antigo Testamento e o que se revela em Jesus Cristo O Deus do Antigo testamento eacute um Deus

68 I Apol 462-3 69 SANTOS Juacutelio Cesar Rocha dos Cristologia Rio de Janeiro ISTARJ 2015 Apostila

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 20: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

16

mau violento e natildeo eacute conciliaacutevel com o Deus misericordioso o Deus bom e Pai de Jesus Cristo

Descarta entatildeo todo o Antigo Testamento e elege do Novo soacute aqueles livros que na linha

de Satildeo Paulo destacam a misericoacuterdia e a accedilatildeo redentora descartando as afirmaccedilotildees que segundo

ele mantecircm traccedilos judaicos Forccedilando a Igreja a estipular o cacircnon das Escrituras que eacute expressatildeo

autecircntica e normativa da revelaccedilatildeo de Cristo

223 Docetismo-agnosticismo

Eacute a resposta de outro mundo cultural com que se encontra o evangelho o helenismo Sua

ideia de transcendecircncia absoluta de Deus e o carecer da categoria de criaccedilatildeo soacute permite pensar a

relaccedilatildeo de Deus com o mundo em categorias de apariccedilatildeo Podem pensar uma epifania do divino

mas nunca uma encarnaccedilatildeo de Deus70

Jaacute no Novo testamento encontramos esta repulsa da uniatildeo entre o Filho de Deus e o homem

Jesus Partindo do pressuposto que a mateacuteria eacute maacute a carne alheia a Deus e o mundo natildeo eacute vontade

originaacuteria de Deus Criador mas resultado de uma degradaccedilatildeo Isto levou a duas consequecircncias

cristoloacutegicas graves por um lado distinguir dois Cristos um transcendente e pertencente ao mundo

superior (o Verbo) e outro visiacutevel y passivo que eacute sua envoltura exterior (o homem Jesus) Por

outro lado levou atribuir a Cristo formas natildeo carnais de corporeidade Consequecircncia disso eacute o

esvaziamento do sentido da paixatildeo e morte de Jesus

224 Irineu a unidade de Deus

Santo Irineu restaura os princiacutepios fundamentais de uma cristologia historicamente situada

e soteriologicamente vaacutelida Haacute um soacute Deus que estabeleceu com coerecircncia interna e integrando o

tempo de maturaccedilatildeo do homem um plano de salvaccedilatildeo que abarca o Antigo e o Novo Testamento

Natildeo haacute duas economias de salvaccedilatildeo contrapostas como afirma os marcionitas Natildeo haacute dois deuses

diversos nem dois Cristos um Logos celeste transcendente e impassiacutevel e um homem Jesus

terreno e deste mundo A ideia de unidade da economia divina domina todo o pensamento de Irineu

Unidade de Deus unidade de Cristo unidade do homem e unidade do plano salviacutefico como

divinizaccedilatildeo Dividir a Deus ou dividir a Cristo eacute a morte do cristianismo e o fim da salvaccedilatildeo Cristo

eacute um e um mesmo (εἷς καὶ ὁ ἀυτός) antecipando a foacutermula de calcedocircnia

Cristo eacute o que encabeccedila esse plano divino e por isso o que o sintetiza o esclarece aparecendo

na histoacuteria e o recapitula consumando-o

Haacute pois um soacute Deus Pai como temos visto e um soacute Jesus Cristo nosso Senhor que abarcou toda a ordem da salvaccedilatildeo e o recapitulou todo em si Este ldquotodordquo inclui o homem criaccedilatildeo de Deus Tambeacutem o homem foi recapitulado por tanto ao fazer-se visiacutevel o Invisiacutevel compreensiacutevel o Inefaacutevel passiacutevel o Impassiacutevel ao fazer-se homem a Palavra O resumiu tudo em si para que assim como a Palavra eacute soberana no celeste e espiritual reine igualmente no visiacutevel e corpoacutereo assumindo a preeminecircncia e constituindo-se em cabeccedila da Igreja e atraindo para si no momento preciso71

Irineu vecirc uma conexatildeo profunda a encarnaccedilatildeo e a redenccedilatildeo soacute Deus pode resgatar e

divinizar o homem Aqui aparece um princiacutepio guia de toda a cristologia patriacutestica A salvaccedilatildeo natildeo

70 Cf At 1411 71 Adv Haer III 166

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 21: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

17

eacute um resultado de uma accedilatildeo externa nem de um decreto divino nem de uma conquista do proacuteprio

homem mas da ascensatildeo de Deus ao homem para que participando Ele em nossa carne mortal noacutes

possamos participar em sua vida imortal Deus eacute o agente e o conteuacutedo da salvaccedilatildeo humana

225 Tertuliano as duas naturezas

Tertuliano inicia uma seacuterie de relaccedilotildees entre os dois estados ou dimensotildees de Cristo as

categorias de substacircncia pessoa unidade Eacute o primeiro que fala da Trinitas unius Divinitatis o

primeiro que emprega o vocaacutebulo persona e o primeiro que elabora a foacutermula dogmaacutetica uma soacute

substacircncia em trecircs pessoas

Tertuliano tem a intenccedilatildeo de demonstrar a divindade de Cristo frente ao pensamento

pagatildeo Desta maneira demonstra que Cristo natildeo eacute uma alternativa agrave unidade divina que por

conseguinte natildeo eacute um diteiacutesmo e qual eacute o sentido da encarnaccedilatildeo Defende deste modo a unidade

divina com a encarnaccedilatildeo frente ao monarquismo

Oferece foacutermulas que tencionam expressar a novidade e complexidade de Cristo

afirmando sua dupla realidade como Deus et homo Para assinalar isto emprega frequentemente a

foacutermula Spiritus et caro Este binocircmio eacute usado para explicar a constituiccedilatildeo especiacutefica de Cristo uma

maneira de nomear as duas substacircncias e um duplo estado Junto a esta afirmaccedilatildeo afirma tambeacutem a

consistecircncia e permanecircncia de ambas propriedades em um uacutenico sujeito A distinccedilatildeo de sua operaccedilatildeo

eacute a prova dessa permanecircncia

Vemos um duplo ldquoestadordquo (=natureza) natildeo confuso mas unido em uma soacute Pessoa o Deus e homem Jesus () e a tal ponto a propriedade de cada uma das substacircncias foi salva que tanto a realidade espiritual (ie a natureza divina) agiu nele isto eacute as perfeiccedilotildees morais

as obras os sinais quanto a carne executou suas accedilotildees72

Tertuliano compartilha com Santo Irineu a preocupaccedilatildeo antidoceta e com ela a insistecircncia na carne

como acircmbito da salvaccedilatildeo humana Uma salvaccedilatildeo oferecida desde fora natildeo seria uma salvaccedilatildeo do homem jaacute

que o que se necessita eacute refazer o plano originaacuterio desfeito pelo pecado (ἁμαρία) original desde dentro seu

acircmbito de influecircncia que eacute a carne (σάρξ) Sem a encarnaccedilatildeo natildeo teriacuteamos a seguranccedila de que nosso estado

natildeo eacute uma degradaccedilatildeo metafiacutesica um mal originaacuterio ou o resultado de uma queda primordial A encarnaccedilatildeo

outorga dignidade metafiacutesica e confianccedila histoacuterica agrave criaccedilatildeo

226 Oriacutegenes

Oriacutegenes em sua obra De principiis nos oferece os criteacuterios para elaborar a cristologia Sua

doutrina sobre o Logos supotildee um avanccedilo sobre os apologetas e apresenta duas linhas diferentes

Uma afirma claramente a divindade ainda que na outra chame a Cristo ldquosegundo Deusrdquo73

reservando ao Pai a designaccedilatildeo de αὐτόθεος ἁπλοός ἀγαθός ser e bondade original O Filho eacute

72 Videmus duplicem statum non confusum sed coniunctum in una Persona Deum et hominem Iesum () et adeo salva est utriusque proprietas substantiae ut spiritus res suas egerit in illo id est virtutes et opera et signa et caro passiones suas functa estTert adv prax 27 11 73 Embora o chamemos segundo Dios (δεύτερος Θέος) sabe-se que por segundo Deus natildeo entendemos outra coisa que

uma virtude que compreende em si todas as virtudes e uma razatildeo (λόγος) que compreende em si toda qualquer razatildeo do que sucede segunda natureza e principalmente para o bem do universo E esta razatildeo ou logos afirmamos ter-se unido ou identificado em medida superior a todas as almas com a alma de Jesus o uacutenico que pode alcanccedilar de maneira perfeita a participaccedilatildeo do Logos em si da Sabedoria em si e de Justiccedila em si (Contra Celso 539)

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 22: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

18

a imagem desta bondade e inferior ao Pai Sendo posteriormente acusado de subordinacionismo

Muito contribuiu para a compreensatildeo da processatildeo do Logos no seio da Trindade por meio

do conceito de ldquogeraccedilatildeo eternardquo Assim explica em seu Tratado De Principiis

() eacute iacutempio e proibido comparar com a geraccedilatildeo dos homens e animais a geraccedilatildeo do Filho Unigecircnito

por Deus Pai que lhe daacute o ser Eacute necessaacuterio que haja nesse caso algo de excepcional e digno de Deus

ao qual nada pode ser comparado nem na realidade nem na imaginaccedilatildeo ou pensamento para que se

possa entender como Deus natildeo gerado se torna o Pai do Filho uacutenico Essa geraccedilatildeo eterna e perpeacutetua

eacute como a radiaccedilatildeo que vem da luz De fato natildeo eacute por uma adoccedilatildeo espiritual que o Filho de Deus se

torna extriacutenseco mas ele o eacute por natureza74

Oriacutegenes tem o meacuterito de ter estabelecido com toda a claridade a existecircncia de uma alma

humana em Cristo A alma de Jesus eacute para ele um dado patente da Escritura75 e por sua vez eacute uma

exigecircncia da reflexatildeo teoloacutegica Por tanto a alma eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da encarnaccedilatildeo Ela

estabelece a conjunccedilatildeo entre as outras duas realidades o Verbo e o corpo

Quando fala que o Verbo assumiu o homem inteiro natildeo como tradicionalmente se pensa

uma humanidade completa em si que eacute suscitada pelo espiacuterito com sua humanidade mas em forma

sucessiva e separada Sua compreensatildeo de alma de Cristo estaacute marcada pela ideia da preexistecircncia

das almas sendo a sua da mesma natureza que as demais almas A diferenccedila das outras ela

permaneceu sempre fiel e unida ao Bem com uma santidade indefectiacutevel A uniatildeo da alma com o

Verbo eacute uma uniatildeo transformadora de tal forma que tudo o que sente faz e entende eacute Deus e a

ele permanece imutavelmente unida

Oriacutegenes antecipou tambeacutem outras muitas perspectivas cristoloacutegicas enquanto enriqueceu

o vocabulaacuterio com palavras como physis hypoacutestasis ousiacutea homouacutesios theaacutenthrocircpos Nele encontramos

jaacute a explicaccedilatildeo das epinoiacuteai os muacuteltiplos nomes de Cristo que descrevem seu ser sem que nenhum

o esgote Antecipa tambeacutem a teoria da communicatio idiomatum (comunicaccedilatildeo das propriedades) Ele

mesmo e uacutenico Verbo Filho de Deus eacute o homem Jesus por isso de Deus enquanto encarnado se

podem predicar atributos humanos e do homem enquanto unido pessoalmente ao Verbo se pode

predicar atributos divinos

23 Cristologia no seacuteculo IV

231 Ario relaccedilatildeo de Cristo com Deus

Com Aacuterio chegamos agrave formulaccedilatildeo extrema do subordinacionismo Tambeacutem com ele

chegamos a um reducionismo cristoloacutegico pois ele afirma que o Verbo se faz carne fazendo as vezes

da alma

O Conciacutelio de Niceia natildeo centrou sua reflexatildeo nessa segunda questatildeo mas na primeira

concentrando-se na filiaccedilatildeo divina de Jesus diante da negaccedilatildeo ariana

Afirmar que o Pai eacute fonte e origem de toda a Trindade equivale afirmar a existecircncia de uma

ordem dentro de Deus Por isso existe prioridade do Pai precisamente enquanto eacute fonte da

divindade do Filho e do Espiacuterito Santo Neste sentido cabe dizer que o Pai eacute maior pois dEle

74 Oriacuteg princ 124 75 Mt 2638 Jo 1017 1227 1321

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 23: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

19

procedem as outras duas Pessoas De fato chamamos o Pai a primeira Pessoa o Filho a segunda e

o Espiacuterito a terceira

Esta ordem interna da Trindade que deriva da ordem da procedecircncia natildeo pode significar

nem prioridade temporal nem subordinaccedilatildeo no terreno ontoloacutegico O Filho eacute igual ao Pai em tudo

pois eacute Deus de Deus

Segundo Aacuterio o Verbo eacute ldquopoiemardquo uma ldquocoisardquo feita uma criatura Para afirmar isto ele

se apoiava na Escritura (Jo 14 28) ou na aplicaccedilatildeo ao Logos dos textos do AT concernentes agrave

Sabedoria (Sb 24 14 Eclo)

ldquoDeus nem sempre foi Pai mas alguma vez Deus estava somente sem ser Pai e mais tarde

se fez Pai Nem sempre o Filho existiu porque tendo sido feitas todas as coisas do nada e sendo

todas as criaturas e obras tambeacutem o Verbo de Deus foi feito do nada e alguma vez Ele natildeo existia

nem existia antes de ser feito mas que tambeacutem teve princiacutepio ao ser criadordquo

Por isso para ele natildeo se pode dizer com rigor que o Verbo tenha sido gerado mas que foi

feito uma criatura Mais ainda o Verbo estaacute subordinado agrave criaccedilatildeo pois segundo Aacuterio foi feito

pelo Pai em vista da criaccedilatildeo do mundo

Aacuterio segue de forma incorreta o esquema ldquoLogos-sarxrdquo Segundo ele o Verbo se uniria

diretamente agrave carne de Cristo fazendo as vezes da alma O Verbo teria sofrido em sua mesma

natureza divina as humilhaccedilotildees e as dores da paixatildeo o que seria incompatiacutevel com a imutabilidade

e impassibilidade proacuteprias de Deus Em consequecircncia impunha-se a afirmaccedilatildeo de que o Verbo natildeo

possui uma autecircntica natureza divina mas que eacute uma criatura jaacute que um verdadeiro Deus natildeo

poderia suportar semelhante humilhaccedilatildeo

Aacuterio combina um subordinacionismo adocionista ndash Jesus seria filho adotivo de Deus ndash com

uma cristologia Ele afirma que o Verbo eacute uma produccedilatildeo ldquoad extrardquo do Pai Para ele eacute impossiacutevel

dizer que o Filho seja gerado da mesma substacircncia do Pai O Filho confessado na profissatildeo batismal

como igual ao Pai se converteu na teoria ariana em mediador criado da criaccedilatildeo em um ser

pertencente a uma esfera intermediaacuteria como se fosse um sol criado que iluminasse todo o

universo

232 A cristologia de Niceacuteia Cristo ὁμοούσιος

O documento chave do Conciacutelio eacute o Siacutembolo no qual se professa explicitamente a feacute na

perfeita divindade do Verbo ou seja na sua consubstancialidade com o Pai O Filho natildeo eacute algo feito

pelo Pai mas uma comunicaccedilatildeo do proacuteprio ser do Pai por modo de geraccedilatildeo o Filho eacute gerado pelo

Pai

O que ocorre natildeo eacute uma geraccedilatildeo por graccedila mas uma geraccedilatildeo por natureza Precisamente

porque o Pai entrega ao Filho sua proacutepria substacircncia ao geraacute-lO por isso eacute necessaacuterio dizer que o

Filho tem a mesma substacircncia do Pai

O ponto central do Siacutembolo eacute o ldquohomousiosrdquo Com isso a consequecircncia eacute que um grupo

defende a feacute de Niceia e reconhece a aceitaccedilatildeo do ldquohomousiosrdquo outro grupo despreza a denominaccedilatildeo

e se chama ldquoanomeosrdquo (que desprezam absolutamente a igualdade da substacircncia) e outro grupo se

denomina ldquohomeousianosrdquo os quais desprezam a igualdade de substacircncia poreacutem aceitam a

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 24: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

20

semelhanccedila

233 O debate posterior a Niceia e a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa

Niceia colocou as bases para defender em toda sua radicalidade a afirmaccedilatildeo do NT da filiaccedilatildeo

divina de Jesus Havia protegido a feacute trinitaacuteria tanto do subordinacionismo como do modalismo

A figura de destaque desse periacuteodo eacute S Atanaacutesio O centro da sua teologia eacute a afirmaccedilatildeo de

que o Verbo se fez homem em ordem agrave divinizaccedilatildeo do homem Ele considera o arianismo

principalmente como um perigo para a soteriologia cristatilde De fato nossa salvaccedilatildeo consiste em

participar da vida divina por meio do espiacuterito de adoccedilatildeo que recebemos ao sermos incorporados a

Cristo

ldquoSe fez homem para que noacutes fossemos deificados se revelou a si mesmo mediante um

corpo a fim de que pudeacutessemos conhecer ao Pai invisiacutevel levou consigo a ignomiacutenia do homem

para que noacutes herdaacutessemos a imortalidaderdquo

Atanaacutesio estaacute desenvolvendo a teologia da mediaccedilatildeo do Logos baseada no fato de que une

em si mesmo o humano e o divino O Verbo nos salva porque sendo Deus tomou sobre si

realmente o homem

Para Atanaacutesio ldquoousiacuteardquo e ldquohypoacutestasisrdquo seguem sendo praticamente sinocircnimos enquanto que

natildeo ele utiliza o termo ldquoproacutesoponrdquo para designar com ele o que em latim se entende como

ldquopersonardquo

Jaacute os Capadoacutecios entendem por ldquoousiacuteardquo a natureza que eacute comum a todos os seres de uma

mesma espeacutecie enquanto que ldquohypoacutestasisrdquo entendem estas mesmas qualidades concretas numa

existecircncia individual

A feacute cristatilde confessa de fato que na Trindade haacute uma natureza e trecircs Pessoas enquanto

que em Jesus confessamos que existe uma pessoa e duas naturezas Na Trindade haacute uma soacute

substacircncia e trecircs hipostaacutesis em Cristo haacute duas substacircncias e uma soacute pessoa

234 O apolinarismo e a alma de cristo

Apolinaacuterio luta contra Aacuterio no terreno trinitaacuterio e sem duacutevida se aproxima dele no terreno

cristoloacutegico Defende a perfeita divindade do Verbo mas afirma que o Verbo se une com a

humanidade de Cristo fazendo as vezes da alma

Em Jesus haacute um corpo alma animal e o Verbo o qual desempenharia as mesmas funccedilotildees

que o ldquonousrdquo ou seja a alma superior

O problema de fundo de Apolinaacuterio eacute duplo um de ordem metafiacutesico e outro de ordem

antropoloacutegica Primeiro eacute impossiacutevel que dois seres (naturezas) inteligentes e livres possam unir-

se num soacute ser Jaacute o problema de ordem antropoloacutegica estaacute direcionado com a questatildeo da liberdade

humana e sua falibilidade

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 25: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

21

-3-

Cristologia dos seacuteculos V ndash VII

31 As grandes tradiccedilotildees cristoloacutegicas

311 A Tradiccedilatildeo Alexandrina

A tradiccedilatildeo alexandrina eacute mais antiga que a antioquena Ela destaca seu interesse na

especulaccedilatildeo metafiacutesica e por preferecircncia dada ao pensamento platocircnico e a interpretaccedilatildeo alegoacuterica

da SE

Na Cristologia a tradiccedilatildeo alexandrina 76 se caracteriza por oferecer decididamente uma

cristologia de cima e por seguir o esquema Logos-sarx Esta cristologia potildee a unidade de Cristo

precisamente no fato de que eacute o Verbo quem tomou sobre si a carne A pessoa do Verbo resulta

assim no centro de unidade das duas naturezas e responsaacutevel pelos atos da natureza humana

Aos alexandrinos lhes custa distinguir as duas naturezas em Cristo depois da uniatildeo O

monotelismo e o monofisismo foram suas expressotildees extremas e sua tentaccedilatildeo mais frequente

312 A Tradiccedilatildeo Antioquena

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica antioquena 77 eacute mais recente Seu comeccedilo pode situar nos fins do

seacuteculo IV precisamente na reaccedilatildeo de Diodoro de Tarso contra o apolinarismo

A tradiccedilatildeo antioquena segue o esquema Loacutegos-aacutenthropos sublinhando a humanidade de

Cristo como humanidade completa e centro de operaccedilotildees Antes de tudo importa sublinhar a

distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Por isso a tradiccedilatildeo preocupa-se em deixar salva a transcendecircncia

divina e em consequecircncia se esforccedila por evitar que se possa conceber a uniatildeo de ambas as naturezas

como uma mescla entre o humano e o divino

Daiacute sua reserva ante o tiacutetulo de Theotoacutekos e sua tendecircncia a considerar a encarnaccedilatildeo como

uma inabitaccedilatildeo do Verbo no homem Jesus Natildeo eacute que se despreocupe da unidade de Cristo Eacute que

a coloca em segundo plano jaacute que o que lhe preocupa eacute manter antes de tudo a distinccedilatildeo entre as

duas naturezas completas

313 A Tradiccedilatildeo Latina

A tradiccedilatildeo cristoloacutegica latina remonta tambeacutem a tempos anteriores a Niceia Funde suas

raiacutezes em Tertuliano e encontra sua expressatildeo mais genial em Agostinho Tambeacutem ela aplica agrave

cristologia desde um primeiro momento agrave distinccedilatildeo tertuliana entre substacircncia e pessoa

Junto agrave forte defesa da humanidade e da carne de Cristo tatildeo firme em Tertuliano insiste

76 ldquoA primeira tem um sentido viviacutessimo da missatildeo do Verbo na encarnaccedilatildeo do seu envolvimento na histoacuteria da salvaccedilatildeo o seu acento baacutesico reside

em afirmar a verdade da economia isto eacute da vinda do Filho na histoacuteria Isto leva a enfatizar no homem Jesus Cristo a realidade da sua dimensatildeo divina sem dedicar excessiva atenccedilatildeo agrave inteireza do ldquohumanordquo falar-se-aacute do logos que assume uma carne humana Vendo o misteacuterio de Cristo segundo o chamado esquema Logos-sarx mas definitivamente sem precisar ulteriormente a consistecircncia desta carnerdquo (Serenthagrave 1986 p 230) 77 Cristo dizia ser um homem completo que participa plenamente da vida fiacutesica e psicoloacutegica do homem capaz em particular de decisotildees humanas

distintas do querer divino Com isto natildeo se pretendia pocircr em duacutevida ou diminuir a uniatildeo iacutentima entre o Verbo e o homem queria-se simplesmente

sublinhar a humanidade plena e real de Cristo Ele eacute dotado de corpo e de alma natildeo soacute de sarxrdquo (Serenthagrave 1986 p 231)

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 26: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

22

na unidade de Cristo fixando-se precisamente na unicidade do sujeito

A tradiccedilatildeo latina eacute profundamente antiariana Possivelmente seu traccedilo mais ldquooriginalrdquo

consista precisamente em sua tendecircncia ao equiliacutebrio sublinha a distinccedilatildeo entre as duas naturezas

poreacutem acentua ao mesmo tempo a comunicaccedilatildeo de idiomas

32 A Crise Nestoriana

A formaccedilatildeo de Nestoacuterio 78 foi dada pela escola de Antioquia Na luta contra os arianos e

apolinaristas ele esforccedilou para que em nenhum momento se pudessem confundir em Cristo a

natureza humana e a divina Por isso desprezou que se possam apropriar diretamente ao Verbo as

paixotildees da natureza humana por exemplo o nascimento e a morte Esses padecimentos somente

se podem aplicar ao Verbo em forma indireta a saber as paixotildees do homem Jesus o qual estaacute

unido ao Verbo

Nestoacuterio utiliza uma linguagem em que daacute a entender que em Cristo haacute dois sujeitos o

sujeito divino e o sujeito humano unidos entre si por um viacutenculo moral poreacutem natildeo fisicamente

Em consequecircncia despreza que se possa dar agrave Virgem o tiacutetulo de Theotoacutekos Para ele ela seria

apenas Christotoacutekos Matildee de Cristo o qual estaacute unido ao Verbo Assim acontece para ele porque

as accedilotildees e padecimentos de Cristo natildeo satildeo propriamente accedilotildees e padecimentos do Verbo Ele fala

da Virgem como anthropotoacutekos e natildeo theotoacutekos Para Nestoacuterio natildeo se pode aceitar que Deus seja

sujeito dos acontecimentos da vida de Jesus

321 A correspondecircncia entre S Cirilo e Nestoacuterio

A carta de Cirilo aos monges estaacute centrada na maternidade divina e somente

incidentalmente alude agrave unidade de Cristo

A resposta de Nestoacuterio a esta carta eacute tambeacutem quase toda ela cristoloacutegica explicando sua

posiccedilatildeo em torno da comunicaccedilatildeo de idiomas o Verbo natildeo eacute passiacutevel e portanto tampouco eacute

suscetiacutevel de uma segunda geraccedilatildeo

O Conciacutelio de Eacutefeso natildeo elabora uma nova foacutermula dogmaacutetica Os Padres conciliares se

limitaram a ler duas cartas a segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio aprovada solenemente e que

portanto passa a ser a doutrina oficial do Conciacutelio e a resposta de Nestoacuterio a esta carta que eacute

condenada

322 A segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio

Cirilo insiste na unidade do sujeito dos verbos79 que correspondem tanto agrave divindade como

78 Nestoacuterio expressatildeo extrema da cristologia antioquena teria ensinado uma verdadeira e propriamente dita ldquodivisatildeordquo em Cristo afirmando a

presenccedila de duas ldquopessoasrdquo no uacutenico Senhor Jesus Cristo pessoas unidas entre si somente atraveacutes de uma relaccedilatildeo de tipo moral natildeo se pode fazer do Filho de Deus como tal o centro de atribuiccedilatildeo real das propriedades da natureza humana a chamada heresia dos dois filhos Sobretudo natildeo se pode dizer que Maria eacute a Matildee de Deus Ela eacute propriamente Matildee de Jesus ainda que este natildeo possa ser separado do tipo particular de totalidade que eacute justamente o Cristo Assim dir-se-aacute que Maria natildeo eacute theotoacutekos mas somente Christotoacutekos (Serenthagrave 1986 p 253) 79 ldquoNatildeo dizemos de fato que a natureza do Verbo foi transformada e se fez carne mas tambeacutem natildeo que foi transformada em um homem completo

composto de alma e corpo antes poreacutem que Verbo uniu segundo a hipoacutestase a si mesmo uma carne animada por alma racional e veio a ser homem de modo inefaacutevel e incompreensiacutevel e foi chamado filho do homem natildeo soacute segundo a vontade ou beneplaacutecito nem tampouco como assumindo

somente a pessoa e que satildeo diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade mas um soacute o Cristo e Filho que resulta de ambas natildeo porque

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 27: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

23

agrave humanidade de Jesus o mesmo que eacute gerado de Deus nasce de mulher morre e ressuscita

O ldquodescerrdquo do Verbo teve lugar sem que houvesse mutaccedilatildeo em sua natureza A encarnaccedilatildeo

natildeo eacute pois uma metamorfose do divino no humano se natildeo uma inefaacutevel e inexpressaacutevel uniatildeo

entre o divino e o humano uma uniatildeo tatildeo iacutentima e fiacutesica que permite apropriar ao Verbo os

acontecimentos da vida de Jesus

Cirilo despreza que essa uniatildeo possa entender como uma simples inabitaccedilatildeo ou conjunccedilatildeo

do humano e o divino e por outra parte despreza tambeacutem que se possa entender em forma

apolinarista como se o divino absorvesse o humano

323 A resposta de Nestoacuterio

Nestoacuterio recrimina Cirilo que ao ler Niceia entendeu que o Verbo ao encarnar-se fez-se

passiacutevel em sua natureza divina (o que Cirilo nunca disse) Ele estima que caso se diga que o Verbo

nasce de Maria estaacute-se dizendo que nasce dela em sua divindade

Cirilo baseia seu pensamento no fato de que o Verbo assumiu segundo a hipoacutestasis uma

natureza humana completa Nestoacuterio80 baseia seu desprezo da posiccedilatildeo ciriliana no fato de que o

Verbo por ser Deus eacute imutaacutevel

Nestoacuterio quer negar que o Verbo tenha sofrido em sua natureza humana e em

consequecircncia tem que atribuir agrave natureza humana de Cristo um sujeito distinto do Verbo

A Tradiccedilatildeo aceita que o Verbo sentiu temor ante o momento da paixatildeo destacando isso

sim que sentiu esse temor em sua natureza humana Poreacutem eacute o Verbo que sentiu o temor

Nestoacuterio ao contraacuterio nega que o Verbo se aproprie realmente das debilidades da natureza

humana Em consequecircncia tem que negar que a encarnaccedilatildeo tenha sido real

324 A terceira carta de Cirilo a Nestoacuterio

O Papa Celestino ao receber a correspondecircncia de Cirilo reuniu um Siacutenodo romano que

condenou Nestoacuterio e lhe ordenou retratar-se sob pena de excomunhatildeo

Cirilo escreve a carta que eacute acompanhada de doze anatematismos Nela ele fala da uniatildeo

de ambas as naturezas natildeo somente como de uma uniatildeo segundo a hipoacutestasis mas tambeacutem segundo

a natureza Nessas condenaccedilotildees Cirilo se refere agrave uniatildeo de naturezas em Cristo como uniatildeo segundo

a hipoacutestasis uma uniatildeo fiacutesica e insiste em que Cristo eacute Deus e homem

Para um alexandrino como Cirilo fisis e hipoacutestasis designam um indiviacuteduo concreto a

pessoa independente e subsistente Para Cirilo natildeo haacute mais que uma hipoacutestasis ou fisis em Cristo

ou seja um indiviacuteduo concreto Os antioquenos ao contraacuterio identificam fisis com substacircncia

concreta e existente Por isso os antioquenos entendem a linguagem de Cirilo em chave

monofisista

a diferenccedila das naturezas tivesse sido cancelada pela uniatildeo mas ao contraacuterio porque a divindade e a humanidade mediante seu inefaacutevel e arcano encontro na unidade formaram para noacutes um soacute Senhor e Cristo e Filhordquo (Denzinger 2007 p96) 80 Mas em contraste com Nestoacuterio Cirilo insistia que haacute uma uniatildeo verdadeira substancial entre as duas naturezas em Cristo E rejeitava a ideia de

uniatildeo moral ou devocional Um de seus anaacutetemas contra Nestoacuterio eacute o seguinte ldquoAquele que natildeo confessa que o Logos veio de Deu s Pai para se unir hipostaticamente com a carne para formar com a carne um Cristo Deus e homem seja amaldiccediloadordquo Se natildeo foi o proacuteprio Deus que apareceu na vida terrena de Cristo de modo que o proacuteprio Deus assim sofreu e morreu ele natildeo pode ser nosso Salvador O ponto de vista de Nestoacuterio tornou

impossiacutevel a verdadeira divindade de Cristo e dessa maneira tambeacutem a salvaccedilatildeo por meio dele (Hagglund1995p81)

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 28: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

24

33 O conciacutelio de Eacutefeso

O Conciacutelio se reuacutene em Eacutefeso no ano 431 O Conciacutelio se inicia sem a presenccedila dos legados

pontifiacutecios e de alguns antioquenos

A sessatildeo contra Nestoacuterio comeccedilou com a leitura do Siacutembolo de Niceia e prosseguiu com a

leitura da segunda carta de Cirilo a Nestoacuterio Por votaccedilatildeo aceitou-se esta carta como conforme a

feacute de Niceia dando-lhe a autoridade do Conciacutelio

Os orientais que ainda natildeo tinham chegado assim que chegaram reuniram-se num conciacutelio

oposto condenaram e depuseram a Cirilo Redigiram uma profissatildeo de feacute moderada e de grande

valor na qual se proclama S Maria como Theotoacutekos seraacute esse texto a base para a Ata de uniatildeo de

433

Os legados pontifiacutecios chegaram ao comeccedilo de julho e se uniram agraves sessotildees seguintes Leram

e aclamaram a carta de Celestino a Cirilo confirmaram a deposiccedilatildeo de Nestoacuterio o qual ainda natildeo

havia se retratado O Conciacutelio natildeo pretende elaborar uma foacutermula nova Os bispos apenas tentaram

manter-se fieis agrave tradiccedilatildeo recebida e evitar que a feacute proclamada em Niceia fosse mal compreendida

34 A doutrina de Satildeo Cirilo

Cirilo se caracteriza sobretudo por desprezar decididamente o dualismo ou seja a

separaccedilatildeo das naturezas em Cristo Neste natildeo somente natildeo haacute dois filhos mas eacute um ao qual se

atribuem com toda propriedade os atributos divinos e humanos O grande defensor da unidade de

Cristo centra sua argumentaccedilatildeo no fato de que o Verbo se fez carne

Nos primeiros escritos Cirilo segue muito de perto a doutrina cristoloacutegica de Atanaacutesio e

sua aplicaccedilatildeo do esquema Logos-sarx Cirilo se nega a descrever a encarnaccedilatildeo no sentido de que o

Verbo tenha assumido um homem se natildeo no sentido de que o Verbo uniu a si mesmo uma carne

animada de uma alma vivente Dessa uniatildeo resultou um soacute Cristo um soacute Filho

Para dar realismo a essa uniatildeo Cirilo utiliza expressotildees mais fortes uniatildeo verdadeira uniatildeo

segundo a hipoacutestasis uniatildeo segundo a natureza uniatildeo fiacutesica Cirilo defende a realidade da uniatildeo

entre ambas as naturezas Trata-se de uma uniatildeo fiacutesica que vai mais aleacutem da uniatildeo de vontades e eacute a

uacutenica que justifica uma plena comunicaccedilatildeo de idiomas

Todas as expressotildees que se usam nos evangelhos devem atribuir-se agrave uacutenica pessoa agrave uacutenica

hipoacutestasis encarnada do Verbo Unem-se duas naturezas poreacutem depois da uniatildeo natildeo haacute divisatildeo nas

naturezas Haacute uma soacute natureza ndash fisis ndash do Filho porque Ele eacute um ainda que se tenha feito homem

e carne

35 O siacutembolo da uniatildeo do ano 433

O Conciacutelio de Eacutefeso terminou um pouco confuso A condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Nestoacuterio

por parte do Conciacutelio seguiu a condenaccedilatildeo e deposiccedilatildeo de Cirilo por parte dos orientais

O texto da uniatildeo recolhe o ensinamento de Eacutefeso sobre a unidade de Cristo poreacutem ao

mesmo tempo sublinha a distinccedilatildeo entre ambas as naturezas Afirma-se sem rodeios a maternidade

divina e para designar a uniatildeo se utiliza o termo ldquohenoacutesisrdquo que eacute o de S Cirilo e o de Eacutefeso enquanto

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 29: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

25

que se evita o de ldquosynapheiardquo que eacute o que utiliza Nestoacuterio

Mais tarde o conciacutelio de Calcedocircnia aceitaraacute solenemente a carta de S Cirilo a Joatildeo de

Antioquia conferindo-lhe toda sua autoridade Encerrava-se assim uma controveacutersia proclamando

a feacute comum da Igreja na encarnaccedilatildeo do Verbo e na maternidade divina de Maria

36 O Monofisismo

A foacutermula de uniatildeo de 433 havia insistido na unidade de Cristo e apontado a uniatildeo (heacutenosis)

existente entre as duas naturezas como a razatildeo em que se sustenta esta unidade A partir daqui a

atenccedilatildeo haveria de centrar-se na consideraccedilatildeo de como eacute essa uniatildeo que produz essa unidade em

Cristo

De fato ainda que o Conciacutelio de Eacutefeso e a foacutermula de uniatildeo houvessem afirmado com forccedila

a unicidade da pessoa de Cristo essa claridade natildeo era suficiente para manter nem a paz religiosa

nem a unanimidade na doutrina

Em Eacutefeso se insistiu em que a uniatildeo entre ambas as naturezas tem lugar segundo a hipoacutestasis

As expressotildees uniatildeo hipostaacutetica ou uniatildeo segundo a hipoacutestasis satildeo utilizadas aqui para significar que

em Cristo a natureza humana e a natureza divina estatildeo unidas na Pessoa do Verbo

Trata-se da uniatildeo mais iacutentima que pode dar-se entre o divino e o humano o Verbo toma

sobre si a carne com uma uniatildeo tatildeo estreita que os ldquoacta et passa Christirdquo satildeo em realidade atosfeitos

e paixotildees do Verbo

Encontramo-nos diante da reaccedilatildeo contra o monofisismo ou seja contra a afirmaccedilatildeo de que

em Cristo depois da uniatildeo natildeo haacute mais que uma soacute natureza mono-fysis

361 O monofisismo e o Conciacutelio de Calcedocircnia

O monofisismo tem formas diversas de manifestar-se

Um tipo de monofisismo considera que a natureza humana ao ser assumida pelo Verbo

resultou absorvida pela natureza divina outro pensa a uniatildeo entre o humano e o divino em Cristo

como se da uniatildeo das duas naturezas houvesse resultado uma nova e especial natureza divino-humana

exclusiva em Cristo

362 O monofisismo de Ecircutiques

O monofisismo que o Conciacutelio de Calcedocircnia tem diante de si eacute o de Ecircutiques Seu

monofisismo eacute num primeiro momento o que afirma que Cristo eacute uma Pessoa de duas naturezas

poreacutem que pela uniatildeo que haacute entre ambas jaacute natildeo subsiste ldquoin duobus naturisrdquo mas em uma soacute

natureza

A natureza humana estaria absorvida na divina havendo assim uma soacute natureza depois da

uniatildeo tendo como consequecircncia que a carne de Cristo jaacute natildeo eacute consubstancial agrave nossa se natildeo que

foi transformada em algo distinto

A afirmaccedilatildeo de uma natureza em Cristo podia implicar uma doutrina hereacutetica ou uma

doutrina compatiacutevel com a feacute ainda que imperfeitamente expressa O que vai depender do uso do

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 30: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

26

termo ldquophysisrdquo pois S Cirilo em Antioquia dava ao termo uma conotaccedilatildeo diversa

Cirilo designava com este termo o sujeito concreto enquanto que os antioquenos

designavam diretamente a natureza

363 O ldquoTomus ad Flavianumrdquo

A Carta de S Leatildeo a Flaviano eacute uma siacutentese da cristologia latina na qual se equilibram as

afirmaccedilotildees das duas naturezas com a unidade do sujeito em Cristo O documento utiliza o vocaacutebulo

duofisita ele reforccedila a existecircncia de duas naturezas em Cristo e o fato de que cada uma atua segundo

o que lhe eacute proacuteprio sem duacutevida o esquema utilizado para abordar a encarnaccedilatildeo pode dizer que eacute o

esquema Logos-sarx

Depois de qualificar Ecircutiques de imprudente e incapaz o Papa inicia sua argumentaccedilatildeo

sublinhando o duplo nascimento de Cristo graccedilas ao qual haacute uma dupla consubstancialidade com

o Pai e conosco Fala-se de um duplo nascimento de um mesmo sujeito

Depois de citar Jo 1 14 o Papa insiste em que a mediaccedilatildeo de Cristo se baseia precisamente

nesta dupla consubstancialidade E assim tal como convinha a nosso remeacutedio um soacute e mesmo

mediador entre Deus e os homens o homem Cristo Jesus pode por uma parte morrer e por

outra natildeo morrer Assim pois Aquele que eacute Deus verdadeiro nasceu na natureza iacutentegra e perfeita

de um homem verdadeiro

A um duplo nascimento segue uma dupla natureza Estas naturezas unidas num uacutenico

sujeito permanecem iacutentegras e perfeitas depois da uniatildeo

O Papa natildeo apenas insiste que em Cristo haacute uma soacute pessoa e duas naturezas mas ensina

tambeacutem que estas naturezas unidas sem mescla nem confusatildeo conservam suas proacuteprias faculdades

e operaccedilotildees proacuteprias Poreacutem ele acrescenta que cada natureza realiza o que lhe eacute proacuteprio sempre

em comunhatildeo com a outra dado que ambas as naturezas pertencem a um mesmo e uacutenico sujeito

o Verbo

37 O Conciacutelio de Calcedocircnia

Finalmente no ano 451 teve lugar em Calcedocircnia um verdadeiro conciacutelio ecumecircnico que

definiu solenemente o dogma da uniatildeo hipostaacutetica no qual os Padres natildeo quiseram acrescentar nada

agrave doutrina conciliar anterior mas somente quiseram oferecer uma explicaccedilatildeo autecircntica desta

doutrina O documento final pode ser dividido em trecircs partes um longo preacircmbulo uma exposiccedilatildeo

dos erros que o Conciacutelio tem presente e a definiccedilatildeo da feacute propriamente dita

A definiccedilatildeo conciliar propriamente dita se centra na confissatildeo ldquoum soacute Filho nosso Senhor

Jesus Cristordquo perfeito Deus e perfeito homem Eacute uma afirmaccedilatildeo que se repete de diversas formas

buscando deixar claro que confessamos um soacute Cristo em duas naturezas que se encontram unidas

sem confusatildeo sem mutaccedilatildeo sem divisatildeo sem separaccedilatildeo de forma que constituem uma soacute pessoa

pois Cristo natildeo estaacute dividido

Na definiccedilatildeo observa-se o mesmo caminho do texto do Papa Leatildeo da unidade de Cristo se

passa agrave dualidade para voltar novamente agrave unidade De fato defende-se a unidade de Cristo jaacute

proclamada em Eacutefeso e se insiste em que sem diminuir esta unidade a duplicidade das naturezas

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 31: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

27

segue existindo depois da uniatildeo

Cristo eacute um poreacutem a partir de Calcedocircnia jaacute natildeo se pode falar de uma uacutenica natureza A

linguagem cristoloacutegica entrou por novos caminhos Depois de Calcedocircnia fez-se universal na

teologia trinitaacuteria uma terminologia que cunharaacute definitivamente a expressatildeo do dogma uma

substacircncia trecircs hipoacutestasis Em Calcedocircnia chega-se a uma linguagem que teraacute uma aceitaccedilatildeo

universal uma hipoacutestasis em duas naturezas

O Conciacutelio natildeo tenta dizer como eacute a uniatildeo mas como natildeo se deve concebecirc-la A uniatildeo das

naturezas tem lugar sem que estas sofram nenhuma mudanccedila nem mescla Esta uniatildeo tem lugar no

terreno fiacutesico de forma que natildeo se pode concebecirc-la como uma mera justaposiccedilatildeo de naturezas nem

como uma uniatildeo moral Cristo natildeo estaacute dividido nem as naturezas estatildeo separadas nele mas

confluem ateacute a unidade pessoal

S Leatildeo define que cada natureza atua sempre em comunhatildeo com a outra A distinccedilatildeo de

naturezas se encontra emoldurada pois na forte unidade do Verbo que tomou sobre si a natureza

humana O Conciacutelio quer dizer unicamente que o mesmo sujeito ndash o Verbo ndash eacute Deus e homem

A uniatildeo hipostaacutetica se fez salvo a propriedade de ambas as naturezas Depois da uniatildeo cada

natureza segue conservando suas proacuteprias caracteriacutesticas no ser e no operar sem que se confundam

entre si

371 A questatildeo dos trecircs capiacutetulos e o II Conciacutelio de Constantinopla (553)

A recepccedilatildeo do Conciacutelio de Calcedocircnia natildeo foi paciacutefica A situaccedilatildeo que se seguiu agrave assembleia

pode esquematizar-se assim

O Ocidente aceitou sem problemas o ensinamento cristoloacutegico do Conciacutelio e o Oriente se

dividiu em trecircs grandes correntes a) a monofisista na qual se incluem natildeo somente os eutiquianos

mas numerosos seguidores de S Cirilo cuja linguagem se tornou arcaica e podem considerar -se

como somente verbalmente monofisistas b) a nestoriana que vai perdendo importacircncia c) a

calcedoniana que vai assentando-se pouco a pouco

Uma das tentativas de aproximaccedilatildeo com os monofisistas foi a questatildeo dos trecircs capiacutetulos

defendida pelo imperador Justiniano (527-565) Trata-se da condenaccedilatildeo poacutestuma dos trecircs mais

destacados autores antioquenos Teodoro de Mopsuestia Teodoreto de Ciro e Ibas de Edesa

Eacute convocado o Conciacutelio II de Constantinopla em 553 que reafirmou a aceitaccedilatildeo dos quatro

primeiros conciacutelios ecumecircnicos anteriores e insistiu tambeacutem na unidade de Cristo e na comunicaccedilatildeo

de idiomas

O Conciacutelio oferece uma leitura esclarecedora do ensinamento de Calcedocircnia a insistecircncia

de Calcedocircnia em torno das duas naturezas natildeo significa que ambas as naturezas tenham de

considerar-se em planos iguais mas que a natureza humana haacute de considerar-se como certamente

distinta da natureza divina poreacutem recebendo seu ser pessoal do Verbo

Por esta razatildeo o Verbo eacute o sujeito uacuteltimo das accedilotildees de Cristo ou com maior precisatildeo o

Verbo encarnado O fato de que Cristo tenha uma natureza humana natildeo significa que tenha uma

hipoacutestasis humana pois sua natureza humana estaacute sustentada na hipoacutestasis do Verbo

Essa perfeita natureza humana natildeo tem seu uacuteltimo fundamento em uma pessoa humana

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 32: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

28

nem carece de personalidade se natildeo que estaacute sustentada no ser pela Pessoa do Verbo A natureza

humana de Cristo igual agrave nossa em todas as suas propriedades naturais eacute sem duacutevida a natureza

humana do filho de Deus

38 O monotelismo e o III Conciacutelio de Constantinopla

O II Conciacutelio de Constantinopla havia aprofundado na leitura do Conciacutelio de Calcedocircnia o

que mostra como seu ensinamento podia integrar as posiccedilotildees alexandrina e antioquena

A questatildeo sem duacutevida se concentra agora numa nova perspectiva a unidade e a distinccedilatildeo

de operaccedilotildees em Cristo Encontramo-nos pois diante da controveacutersia com o monoenergismo e

com o monotelismo que defendem que em Cristo haacute uma soacute operaccedilatildeo (eneacutergeia) ou uma soacute vontade

(theacutelema)

381 A dualidade de operaccedilotildees em Cristo

A controveacutersia comeccedila com o monoenergismo Os monofisistas ao identificarem as

naturezas em Cristo depois da uniatildeo identificavam as vontades e as operaccedilotildees

Ao substantivo ldquoeneacutergeiardquo se lhe acrescenta o adjetivo hipostaacutetica ndash uma soacute operaccedilatildeo

hipostaacutetica ndash e a foacutermula de entendimento parecia ideal jaacute que se transladava a questatildeo ao sujeito

da operaccedilatildeo que eacute uacutenico a Pessoa do Verbo

No ano 633 Ciro (Patriarca de Alexandria) propotildee um ldquoPacto de uniatildeordquo com os

monofisistas baseado na seguinte foacutermula ldquoO uacutenico e mesmo Cristo e Filho opera o que eacute divino e

o que eacute humano por uma soacute atividade teacircndricardquo

Ciro enfoca a questatildeo desde a unicidade do operante e desde aqui fala de uma soacute atividade

teacircndrica ou seja uma soacute ldquoeneacutergeiardquo divino-humana

No ldquoTomus ad Flavianumrdquo o Papa S Leatildeo havia insistido em que ambas as naturezas ndash a

divina e a humana ndash atuam sempre com uma admiraacutevel comunhatildeo entre si A questatildeo da atividade

haacute que referi-la primariamente agrave natureza atraveacutes da qual opera o sujeito e natildeo ao sujeito mesmo

Haacute duas naturezas em Cristo poreacutem um uacutenico sujeito que opera Segue-se portanto que

haacute uma soacute operaccedilatildeo pois dada a uniatildeo hipostaacutetica em Cristo se daacute de fato uma uacutenica realidade

divino-humana

382 Vontade divina e vontade humana em Cristo

Da disputa em torno do monoenergismo passou-se agrave questatildeo do monotelismo Surge a

afirmaccedilatildeo condenada pelo III Conciacutelio de Constantinopla confessamos uma soacute vontade do Senhor

Jesus Os sucessivos desenvolvimentos doutrinais se centraram nesta expressatildeo uma soacute vontade

Efetivamente a oraccedilatildeo no Horto manifesta antes de tudo o acordo da vontade de Cristo

com a vontade do Pai Este acordo natildeo poderia existir se natildeo existisse autecircntica vontade

S Maacuteximo eacute sem duacutevida o grande lutador contra o monotelismo Neste ambiente

teoloacutegico tem lugar o Conciacutelio de Latratildeo no ano 649 O grande teoacutelogo do Conciacutelio foi S

Maacuteximo Com formulaccedilotildees muito proacuteximas a S Maacuteximo o Conciacutelio insiste em que o mesmo e

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 33: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

29

uacutenico Cristo existe nessas naturezas e atua naturalmente atraveacutes delas O Conciacutelio toca tambeacutem no

tema da operaccedilatildeo teacircndrica Esta clarificaccedilatildeo adquire seu maacuteximo expoente na definiccedilatildeo do III

Conciacutelio de Constantinopla no ano 681

Haacute duas naturezas perfeitas em Cristo O III Conciacutelio de Constantinopla pontua que estas

duas naturezas estatildeo vivas e operantes de forma que atuam intimamente unidas poreacutem sem

confusatildeo

O ser e o atuar de Cristo hatildeo de entender-se pois como um acordo perfeito entre as duas

naturezas tambeacutem no que concerne agrave sua operaccedilatildeo Ambas as accedilotildees satildeo naturais enquanto que

correspondem a naturezas nas quais subsiste Cristo

Daiacute a precisatildeo em torno agrave operaccedilatildeo teacircndrica que natildeo pode conceber-se como uma soacute accedilatildeo

mas como uma harmocircnica uniatildeo entre as duas accedilotildees naturais que correspondem a suas naturezas

383 A distinccedilatildeo entre ldquoVoluntas ut Ratiordquo e ldquoVoluntas ut Naturardquo

Desta perspectiva contempla-se a oraccedilatildeo do Senhor no horto ldquonatildeo se faccedila a minha vontade

mas a tuardquo (Mt 26 39) Trata-se natildeo de uma simples resistecircncia da carne a morrer como queria o

Patriarca de Constantinopla Seacutergio se natildeo uma autecircntica resistecircncia da vontade humana do Senhor

ao sofrimento e agrave morte resistecircncia que eacute vencida livremente pela mesma vontade com o meacuterito

que tolera que este vencimento foi levado a cabo por uma caridade e uma obediecircncia infinitas

Esta realidade levaraacute a teologia posterior agrave distinccedilatildeo entre voluntas ut natura (vontade

enquanto sua inclinaccedilatildeo natural) e voluntas ut ratio (vontade enquanto que elege dirigida pela

razatildeo)

No Senhor a voluntas ut natura e a sensibilidade dissentiam agraves vezes da vontade divina

poreacutem estavam inteiramente submetidas a ela enquanto voluntas ut natura 81 Por outro lado sem

duacutevida com sua voluntas ut ratio Jesus queria sempre o mesmo que Deus e isto resulta manifesto

quando diz ldquonatildeo se faccedila o que eu quero mas como tu queresrdquo

Em Cristo natildeo se deu portanto nenhuma contrariedade de vontades Somente haacute

contrariedade de vontades quando haacute oposiccedilatildeo sobre o mesmo objeto e pelo mesmo motivo

Em Cristo natildeo sucedeu isto porque a voluntas ut natura rejeita a morte como algo nocivo

agrave natureza humana enquanto que a voluntas ut ratio e a vontade divina a queriam por uma razatildeo

superior a salvaccedilatildeo dos homens

-4-

Cristologia especulativa

41 As operaccedilotildees teacircndricas

A expressatildeo operaccedilatildeo teacircndrica teve relativa importacircncia na controveacutersia monotelista

Trata-se de entender que natildeo haacute uma uacutenica operaccedilatildeo resultante da confusatildeo do divino e do humano

81 Natildeo haacute duacutevida de que Cristo com sua sensibilidade e sua voluntas ut natura podia querer algo distinto do que Deus queria como se vecirc pela peticcedilatildeo

ldquoMeu Pai se eacute possiacutevel afasta de mim este caacutelicerdquo (Mt 26 39)

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 34: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

30

ou seja como se constituiacutessem um tipo ldquointermeacutediordquo de operaccedilatildeo entre o humano e o divino

Poreacutem como todas as accedilotildees de Jesus satildeo accedilotildees da Pessoa divina tambeacutem suas operaccedilotildees

humanas podem e devem dizer-se accedilotildees de Deus neste sentido e soacute neste sentido as accedilotildees de

Cristo podem chamar-se accedilotildees divino-humanas

Existe pois um significado correto da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo divino-humanasrdquo (teacircndricas)

de Jesus Cristo todas suas accedilotildees humanas enquanto que accedilotildees da Pessoa divina podem chamar-se

teacircndricas 82

Existe tambeacutem outro uso da expressatildeo ldquooperaccedilatildeo teacircndricardquo No operar de Cristo haacute accedilotildees

exclusivamente divinas (todas as que faz o Verbo enquanto Deus e que satildeo comuns agraves trecircs Pessoas

divinas) e accedilotildees humanas Estas como satildeo realizadas pela Pessoa do Verbo mediante sua natureza

humana podem chamar-se accedilotildees teacircndricas pois satildeo accedilotildees humanas do Verbo

Alguns autores reservam esta expressatildeo para as accedilotildees humanas de Jesus que satildeo instrumento

de seu operar divino para produzir efeitos que transcendem a mera capacidade humana Em

qualquer caso ao considerar as accedilotildees humanas de Jesus de Nazareacute eacute importante ter sempre em

conta que cada um dos gestos humanos eacute gesto de Deus

42 A uacutenica filiaccedilatildeo de Jesus ao Pai

A unicidade da pessoa em Cristo exige confessar a unicidade de filiaccedilatildeo ao Pai jaacute que a

relaccedilatildeo de paternidade e filiaccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo da pessoa e natildeo da natureza

O adocionismo de Elipando e Feacutelix eacute uma heresia de curta duraccedilatildeo e consistente em afirmar

que Cristo enquanto Deus eacute Filho natural do Pai e que enquanto homem e cabeccedila dos homens eacute

seu filho adotivo de forma que nossa uniatildeo com Ele nos faz participar de sua filiaccedilatildeo adotiva

Trata-se de um adocionismo completamente distinto do adocionismo trinitaacuterio ou seja

daquele subordinacionismo que considerava que o Filho eacute filho porque foi adotado como tal pelo

Pai

Natildeo duvidavam que a segunda Pessoa da Trindade eacute Deus mas natildeo utilizaram bem a

comunicaccedilatildeo de idiomas e por esta razatildeo dizem que Cristo enquanto homem natildeo eacute filho natural

de Deus mas adotivo

Segundo os adocionistas a natureza humana de Cristo haveria sido adotada filialmente pelo

Pai ao ser assumida pelo Verbo na encarnaccedilatildeo Em consequecircncia o filho de Maria assumido pelo

Verbo natildeo seria filho natural de Deus se natildeo somente filho adotivo

O pensamento subjacente remete a uma concepccedilatildeo da encarnaccedilatildeo como se consistisse na

uniatildeo de dois sujeitos capazes de relaccedilotildees pessoais distintas

Para Feacutelix natildeo eacute a pessoa que se manifesta diretamente nas propriedades de cada natureza

se natildeo um hipoteacutetico sujeito

82 Conf Suma III q 19 ad 1

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 35: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

31

43 Relaccedilatildeo de adoraccedilatildeo dos homens com Cristo

A adoraccedilatildeo ou culto de latria eacute o ato de render a maacutexima honra e reverecircncia a Deus em

razatildeo de sua infinita perfeiccedilatildeo e transcendecircncia com relaccedilatildeo agraves criaturas A adoraccedilatildeo eacute por isto

diversa da simples veneraccedilatildeo ou culto de dulia devida aos santos e eacute tambeacutem diversa do culto de

hiperdulia ou maacutexima veneraccedilatildeo devida a Santa Maria

Nestoacuterio afirmou uma dupla honra devida a Jesus a adoraccedilatildeo propriamente dita que teria

que render a Cristo-Deus e a veneraccedilatildeo correspondente a Cristo-homem

Eacute importante notar que a definiccedilatildeo do II Conciacutelio de Constantinopla ao ratificar a unidade

de adoraccedilatildeo devida a Jesus o faz excluindo tanto uma dupla adoraccedilatildeo (nestorianismo) como uma

falsa concepccedilatildeo (monofisismo) do porquecirc desta uacutenica adoraccedilatildeo

A adoraccedilatildeo eacute devida agrave Pessoa com tudo aquilo que lhe pertence divindade e humanidade

A humanidade de Cristo eacute assim adorada enquanto que eacute a humanidade de Deus pois sua carne foi

feita corpo de Deus 83

44 Comunicaccedilatildeo de idiomas e linguagem humana sobre o misteacuterio de Cristo

Entre as diversas consideraccedilotildees que poderiacuteamos fazer sobre a linguagem cristoloacutegica haacute

uma de particular importacircncia que eacute consequecircncia imediata da uniatildeo hipostaacutetica a comunicaccedilatildeo de

idiomas ou seja a aplicaccedilatildeo das propriedades divinas e humanas agrave uacutenica Pessoa de Cristo

Este modo de falar foi utilizado desde o iniacutecio dos escritos do NT Este oferece expressotildees

tiacutepicas da comunicaccedilatildeo de idiomas At 3 15 Jo 3 13 At 20 28 Rm 8 32 1 Cor 2 8 1 Jo 3 16

A comunicaccedilatildeo de idiomas natildeo pode fazer-se arbitrariamente se natildeo somente de modo que

respeite a verdade da encarnaccedilatildeo Podemos afirmar que Deus morreu mas natildeo que a divindade

morreu como tambeacutem podemos dizer que este homem eacute Deus mas natildeo podemos falar que ldquoa

humanidade de Cristo eacute Deusrdquo

A teologia refletindo sobre esta linguagem cristoloacutegica estabeleceu regras concretas para

a comunicaccedilatildeo de idiomas

As principais recolhidas por S Tomaacutes satildeo84

a) Os nomes concretos de uma natureza e suas proposiccedilotildees afirmativas natildeo negativas

e podem predicar-se em Cristo dos nomes concretos da outra natureza e de suas propriedades

b) Os nomes abstratos de uma natureza natildeo podem predicar-se dos nomes abstratos

de outra natureza e de suas propriedades

c) Os nomes concretos ndash de uma natureza e de suas propriedades ndash ordinariamente

natildeo podem predicar-se das coisas abstratas

d) Os nomes abstratos da natureza divina podem predicar-se dos concretos da

natureza humana por real identidade ainda que a expressatildeo natildeo seja gramaticalmente correta

e) Os nomes abstratos da natureza humana natildeo se podem predicar dos concretos da

83 Assim entende-se o culto a tiacutetulos especiacuteficos como ao Sagrado Coraccedilatildeo de Jesus 84 Conf Suma III q 16

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 36: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

32

natureza divina

f) Os adjetivos da natureza divina natildeo podem predicar-se de nomes concretos da

natureza humana ainda que os adjetivos da natureza humana possam predicar-se dos nomes

concretos da natureza divina

g) As proposiccedilotildees que expressam o fim ou o comeccedilo do ser aplicadas a Cristo sejam

empregadas com muita cautela

h) Mais importante do que aprender as regras particulares eacute considerar sempre ao

falar sobre o misteacuterio de Cristo a realidade da uniatildeo hipostaacutetica

45 A Uniatildeo Hipostaacutetica

451 O modo da uniatildeo

A afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute Filho de Deus comporta confessar ao mesmo tempo sua perfeita

divindade sua perfeita humanidade e a unidade existente entre ambas Trata-se de unidade que estaacute

mais aleacutem da mera intencionalidade e que haacute de entender-se em sentido fiacutesico

A teologia dos seacuteculos posteriores e especialmente a teologia escolaacutestica realizou um

grande esforccedilo por aperfeiccediloar como haacute de entender-se esta uniatildeo hipostaacutetica ou segundo a

hipoacutestasis

452 As ldquotrecircs opiniotildeesrdquo sobre o modo de uniatildeo

Pedro Lombardo sintetiza em seus Quatro Livros das Sentenccedilas as trecircs opiniotildees sobre o

modo da uniatildeo hipostaacutetica mais divulgadas em sua eacutepoca

A primeira opiniatildeo eacute denominada a teoria do ldquohomo assumptusrdquo Seu autor mais conhecido

eacute Hugo de S Vitor

Ao encarnar-se o Verbo teria assumido um ldquosujeitordquo jaacute subsistente em si mesmo composto

de alma e corpo ao assumi-lo o Verbo se teria feito homem e este sujeito ao ser assumido pelo

Verbo teria comeccedilado a subsistir na pessoa do Verbo sem que por ele houvesse mescla nas

naturezas

Esta opiniatildeo potildee em Cristo duas hipoacutestasis ou supostos que eacute o mesmo que por duas

pessoas

A segundo opiniatildeo pertence a Gilberto Porretano Eacute chamada ldquoa teoria da subsistecircnciardquo

Pedro Lombardo a descreve assim a pessoa do Verbo antes da encarnaccedilatildeo era simples

poreacutem na encarnaccedilatildeo se fez composta Natildeo eacute que com a encarnaccedilatildeo tenha recebido alguma

mudanccedila mas que como antes era somente a pessoa do Verbo com a encarnaccedilatildeo fez-se a pessoa

do homem natildeo porque sejam duas pessoas mas porque a mesma eacute pessoa de Deus e pessoa do

homem

A pessoa que era simples e que existia em uma soacute natureza agora subsiste em duas Ela se

torna composta por subsistir em duas naturezas Em consequecircncia a humanidade de Jesus subsiste

em virtude da subsistecircncia do Verbo

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 37: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

33

Essa eacute opiniatildeo que S Tomaacutes seguiraacute entendendo que nela se expressa a feacute da Igreja (Suma

q 2 a6)

A terceira opiniatildeo apresentada por Pedro Lombardo se conhece como a teoria do ldquohabitusrdquo

O nuacutecleo desta opiniatildeo tenta evitar que se possa dizer que a pessoa do Verbo pela uniatildeo

hipostaacutetica resulta composta A uniatildeo hipostaacutetica seria um ldquohabitusrdquo ela seraacute entendida como a

uniatildeo existente entre o homem e o seu vestido

S Tomaacutes a desprezaraacute porque a natureza humana consiste na uniatildeo de alma e de corpo e

portanto se o Verbo houvesse assumido ambos separados natildeo haveria assumido uma verdadeira

natureza humana Aleacutem disso essa uniatildeo seria acidental (Nota 9 p 257 Suma q 2 a 6 in c)

453 Uniatildeo substancial uniatildeo acidental e uniatildeo hipostaacutetica

Entende-se por uniatildeo a reuniatildeo das partes no conjunto do todo que constituem A uniatildeo

considerada em si mesma pode ser fiacutesica ou moral Ao longo dos seacuteculos insistiu-se que a uniatildeo

entre a humanidade de Cristo e pessoa do Verbo eacute uma uniatildeo fiacutesica

A uniatildeo fiacutesica por sua vez pode ser substancial ou acidental segundo a uniatildeo que dela

surge acidental ou substancial

Posto que o conceito de uniatildeo substancial eacute contraposto ao de uniatildeo acidental a uniatildeo

hipostaacutetica se pode situar ao lado da uniatildeo substancial Trata-se de uma uniatildeo pessoal uacutenica

Entende-se por uniatildeo pessoal aquela uniatildeo da qual resulta uma pessoa As duas naturezas

completas se unem numa uacutenica pessoa

454 Conceito de uniatildeo hipostaacutetica

Pela uniatildeo hipostaacutetica a natureza humana de Jesus que eacute perfeita estaacute unida agrave pessoa do

Verbo de forma que natildeo constitui uma pessoa humana - natildeo existe em virtude de seu proacuteprio ato

de ser mas existe em virtude do ser divino do Verbo

O Verbo eacute homem precisamente porque subsiste na sua natureza humana comunicando-

lhe seu proacuteprio modo pessoal de existir na Trindade

A uniatildeo hipostaacutetica eacute pois uma uniatildeo inteiramente singular que natildeo tem equivalente no

acircmbito de nossa experiecircncia humanidade e divindade permanecem em Cristo como substacircncias

distintas poreacutem constituem uma soacute pessoa

As accedilotildees de Cristo o nascer e o morrer satildeo accedilotildees do Verbo Trata-se pois de uma uniatildeo

real jaacute que eacute real o fato de que a natureza humana pertence com toda verdade agrave pessoa do Verbo

ainda que esta uniatildeo natildeo modifique nem a natureza humana nem a natureza divina na qual

eternamente subsiste o Verbo

Posto que a Sagrada Escritura atribua ao mesmo sujeito caracteriacutesticas humanas e

caracteriacutesticas divinas para manter iacutentegros esses dados eacute necessaacuterio concluirmos que ambas as

naturezas natildeo estatildeo unidas em niacutevel de naturezas mas em niacutevel de sujeito (Suma q 2 a4)

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 38: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

34

455 Os conceitos de uniatildeo e assunccedilatildeo85

A uniatildeo hipostaacutetica eacute consequecircncia de que o Verbo tenha unido a si mesmo a natureza

humana

O termo assunccedilatildeo refere-se agrave encarnaccedilatildeo in fieri o Verbo sujeito ativo da encarnaccedilatildeo

toma sobre si a natureza humana fazendo-a sua O termo se encontra no terreno da accedilatildeo enquanto

que o termo uniatildeo se refere agrave relaccedilatildeo que mantecircm entre si a natureza divina e a natureza humana

como consequecircncia desta assunccedilatildeo

A assunccedilatildeo eacute o fundamento ou a razatildeo de que esta natureza se encontra relacionada com

relaccedilatildeo de unidade com a Pessoa do Verbo e em consequecircncia com sua natureza divina

456 A uniatildeo hipostaacutetica dom sobrenatural

A uniatildeo hipostaacutetica eacute a maior das uniotildees que pode ocorrer entre Deus e uma natureza criada

Esta uniatildeo entre o Verbo e sua natureza humana eacute antes de tudo comunicaccedilatildeo que a ela faz o Verbo

de si mesmo eacute pois um dom sobrenatural feito a essa natureza Daiacute que a uniatildeo hipostaacutetica seja

chamada com toda propriedade de ldquograccedila de uniatildeordquo

457 Indissolubilidade da uniatildeo hipostaacutetica

Pertence agrave feacute que a uniatildeo hipostaacutetica comeccedilou no mesmo instante em que foi concebida a

humanidade de Jesus e tambeacutem que esta uniatildeo nunca se interrompeu e nunca cessaraacute

Natildeo houve nenhum momento em que a humanidade de Jesus natildeo estivesse unida

hipostaticamente ao Verbo

Jesus natildeo teve uma existecircncia proacutepria antes de ser a humanidade de Deus Sua natureza

humana natildeo foi assumida como se antes fosse criada e depois assumida se natildeo que foi criada na

mesma assunccedilatildeo A uniatildeo hipostaacutetica natildeo se interrompeu nem sequer na Paixatildeo e morte de Jesus

At 3 15 1 Cor 2 886

46 A unidade ontoloacutegica da pessoa o Ser de Cristo

461 Natureza e pessoa na cristologia

A distinccedilatildeo entre natureza e pessoa foi de suma importacircncia para expor a doutrina

cristoloacutegica nos primeiros seacuteculos

O Conciacutelio de Niceia utilizou a distinccedilatildeo para desprezar a doutrina ariana de que o Filho eacute

ldquode outra hypoacutestasis ou de outra ousiacuteardquo que o Pai

Os Padres Capadoacutecios tiveram um papel de primeira ordem na clarificaccedilatildeo dos termos

entenderam ousiacutea como aquilo que eacute comum aos indiviacuteduos da mesma espeacutecie hypoacutestasis a ousiacutea

completa e distinta pelos caracteres individuais que a determinam

No acircmbito latino Tertuliano utilizou o termo substantia para falar da realidade do Filho

85 Suma q 2 a 8 in c 86 Suma q 50 aa 2 e 3

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 39: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

35

contra os modalistas Ele deu aos latinos a base conceitual para falar de uma sustacircncia trecircs personae

na Trindade e de duas substantia e uma hypoacutestasis em Cristo

462 Diversas definiccedilotildees de pessoa

Boeacutecio (525) substacircncia individual de natureza racional Substancialidade individualidade

e racionalidade aparecem unidas Na definiccedilatildeo de Boeacutecio substacircncia individual indica a raiz da

proacutepria individualidade enquanto que a natureza racional indica a possibilidade de comunicaccedilatildeo

pessoal

Ricardo de S Vitor (1173) Deus eacute uma substacircncia individual de natureza racional e sem

duacutevida natildeo pode dizer dela que seja uma soacute pessoa A Pessoa divina eacute definida como existecircncia

incomunicaacutevel da natureza divina

Para ele a pessoa designa o modo de existir imprescindiacutevel para que possa dar-se o amor

um modo de existir que ao mesmo tempo distingue e une O conceito ldquopessoardquo estaria mais

relacionado agrave incomunicabilidade do que a substacircncia

A pessoa natildeo eacute formalmente algo mas algueacutem que possui uma natureza dotada de razatildeo

S Tomaacutes (1274) pessoa eacute o subsistente de natureza racional Ele substitui o termo

substacircncia de Boeacutecio por subsistecircncia Ele dirige sua definiccedilatildeo para o sujeito que eacute o suporte da

natureza enquanto subsiste como distinto e incomunicaacutevel

Em Deus as Pessoas se constituem pela relaccedilatildeo subsistente A Pessoa do Verbo ndash que eacute relaccedilatildeo subsistente ndash se relaciona com sua natureza humana comunicando-lhe seu proacuteprio modo de existir na Trindade (Suma I q 29 a 3)

Na doutrina Trinitaacuteria o conceito de pessoa se utiliza para designar a distinccedilatildeo dos Trecircs

dentro da unidade da Trindade na cristologia se utiliza para designar a unidade existente entre as

duas naturezas do Verbo encarnado

463 As teorias em torno ao constitutivo formal da pessoa

A pessoa implica uma natureza completa a subsistecircncia A natureza humana de Cristo eacute

completa mas natildeo eacute pessoa pois a subsistecircncia eacute a da Pessoa do Verbo A questatildeo que fica eacute sobre

a concepccedilatildeo de subsistecircncia e sua relaccedilatildeo com a natureza

Partindo de Eacutefeso e Calcedocircnia os autores vatildeo tomar a ideia de pessoa como sujeito de

atribuiccedilatildeo das accedilotildees O termo ou estaraacute direcionado para a substacircncia ou para o esse mantendo

sempre a ideia de que o Verbo eacute o sujeito das accedilotildees de sua natureza humana

464 Ser e Pessoa em Cristo

Toda natureza humana singular constitui uma pessoa humana a natildeo ser que se decirc um caso

de uma natureza humana que exista em virtude do ser de outra pessoa S Tomaacutes fala de um soacute ser

em Cristo (Suma q 17 a3) A Pessoa do Verbo eacute a que faz existir a natureza humana de Jesus

(CIC 470) sem que por isto fique limitada ou circunscrita por ela

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 40: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

36

Quando se fala da uniatildeo hipostaacutetica natildeo se estaacute falando da Encarnaccedilatildeo do Ser divino se natildeo

da Encarnaccedilatildeo somente da Pessoa do Filho de Deus o qual comunica a sua humanidade aquilo que

no seio da Trindade lhe distingue das outras Pessoas como Filho e Verbo

47 A unidade psicoloacutegica da pessoa o eu de Cristo

Considerando a dualidade de naturezas e de inteligecircncias em Cristo pareceria que nEle

devem dar-se dois eu (um divino e outro humano) jaacute que haacute duas autoconsciecircncias (uma divina e

outra humana) Poreacutem ao mesmo tempo e na medida em que o Eu eacute expressatildeo da Pessoa pareceria

que em Jesus deva dar-se um uacutenico Eu jaacute que eacute uma soacute Pessoa

471 A teoria do ldquoassumptus homordquo

Entre as mais conhecidas tentativas de explicaccedilatildeo teoloacutegica da psicologia de Jesus estaacute a de

Deacuteodat de Basly (+1937) Tomando como ponto de partida a integridade da natureza humana de

Cristo Deacuteodat mencionou que em Cristo se datildeo dois Eu um divino (que segundo ele seria

comum agraves trecircs Pessoas divinas) e outro humano

Deacuteodat interpreta que a humanidade de Jesus constituiria um indiviacuteduo humano distinto do

Verbo ainda que unido a Ele ontologicamente de tal modo que ainda que forme uma soacute pessoa

com o Verbo a humanidade de Jesus seria em si mesma um sujeito autocircnomo com a mesma

autonomia que qualquer sujeito humano (Nota 112 p 288)

472 As teorias em torno ao eu de Cristo

Paul Galtier enfatizou que em Jesus assim como haacute duas inteligecircncias haacute tambeacutem dois Eu

um divino e outro humano Sem duacutevida o Eu humano de Cristo (que manifesta a autoconsciecircncia

da sua humanidade) natildeo eacute expressatildeo de uma pessoa humana mas o eu humano da Pessoa divina

Recentemente Jean Galot esclaresceu que em Jesus haacute um uacutenico Eu haacute uma unidade

psicoloacutegica da Pessoa de Cristo em correspondecircncia agrave sua unidade ontoloacutegica

473 O uacutenico eu de Cristo

No NT haacute numerosos textos nos quais Jesus pronuncia a palavra Eu e o faz de tal maneira

que expressa uma unidade pessoa de Deus-homem (Jo 17 5)

A mesma expressatildeo ldquoEu sourdquo utilizada por Jesus indica seu uacutenico Eu divino Assim Paulo

VI ao abordar o dogma cristoloacutegico definido pelos primeiros Conciacutelios explica que em Jesus haacute

uma soacute Pessoa um soacute Eu vivente e operante em dupla natureza divina e humana

O que parece cada vez mais certo ao lermos os evangelhos eacute que Cristo tem um soacute Eu e

que da unidade ontoloacutegica de sua Pessoa se segue tambeacutem sua unidade psicoloacutegica

48 O Conceito Moderno de Pessoa e sua incidecircncia na Cristologia

Na modernidade87 com a questatildeo subjetivista trazida por Descartes comeccedila a surgir uma

87 Wojtwla lembra que na filosofia moderna a partir de Descartes instaura-se uma divisatildeo do ser humano em corpo substacircncia pensante Os dois

elementos se relacionam de forma paralela desaparecendo a noccedilatildeo de todo uacutenico A consciecircncia por sua vez neste contexto antropoloacutegico passa

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 41: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

37

nova perspectiva completamente diversa no que se refere ao conceito de pessoa

Se anteriormente definia-se a pessoa desde o objetivo ndash a substacircncia o ato de ser ndash a

partir de Descartes se tentaraacute defini-la desde a subjetividade desde a autoconsciecircncia do proacuteprio

eu desde a capacidade de relaccedilatildeo com um tu ou desde a abertura agrave transcendecircncia

Pode-se dizer que com Descartes comeccedila a abrir-se caminho para esse novo conceito de

pessoa baseado natildeo na relaccedilatildeo com a autonomia do ser do proacuteprio sujeito mas na relaccedilatildeo com seu

pensamento com sua autoconsciecircncia a convicccedilatildeo de que o homem somente tem garantia de ser

ele mesmo se se pensa a si mesmo Cogito ergo sum O eu consiste na autoconsciecircncia ou seja

na sua subjetividade 88 Portanto para Descartes a pessoa se identifica com o eu pensante com o

eu consciente

Dada sua antropologia dual Descartes coloca a essecircncia da pessoa na alma enquanto ser

pensante inextenso e contradistinto do corpo que eacute substacircncia extensa A racionalidade e

portanto a autoconsciecircncia e a abertura sempre formaram parte da definiccedilatildeo claacutessica de pessoa

A qualidade de imagem e semelhanccedila de Deus outorga agrave pessoa humana uma dimensatildeo misteriosa e

inefaacutevel Precisamente em seu caraacuteter de imagem de Deus radica seu caraacuteter de pessoa A pessoa eacute

um indiviacuteduo dotado de comunicaccedilatildeo e de autotranscendecircncia fazendo insistecircncia na chamada do

infinito tatildeo especiacutefica e irrenunciaacutevel para o coraccedilatildeo do homem

481 Anton Guumlnther

O primeiro a tentar incorporar esta noccedilatildeo de pessoa agrave cristologia foi Anton Guumlnther

(+1836) que entendeu a pessoa como consciecircncia de si89

Ele divide todo o real em substacircncia extensa e inextensa mateacuteria e espiacuterito entendendo

esta divisatildeo como a estrutura fundamental da realidade O problema cristoloacutegico surgiu

imediatamente

De fato se o que constitui a pessoa eacute sua autoconsciecircncia e em Cristo existem duas

inteligecircncias ndash humana e divina ndash seraacute necessaacuterio por nEle tantas pessoas como inteligecircncias com as

quais se percebe a si mesmo ou ao inveacutes caso se parta do princiacutepio de que eacute uma soacute pessoa teraacute

que por nEle um soacute ato de entender

482 Antonio Rosmini

Escreve Rosmini

gradualmente a ser entendida como um sujeito autocircnomo da accedilatildeo A pessoa eacute identificada quase completamente com a consciecircncia A consciecircncia eacute objeto da experiecircncia exterior do homem O corpo por sua vez acompanhando os demais corpos naturais submete-se agrave observaccedilatildeo da experiecircncia interiorrdquo (SILVA Paulo Ceacutezar A eacutetica personalista de Karol Wojtyla p 24 88 cf SALES Benes Alencar Heranccedila Medieval da Antropologia Cartesiana ndash Revista Veritas Setembro de 2002 p 321-322 89 ldquoLa peronalidad ndash escrebe Guumlnther - iquestes otra cosa que conciencia de siacute mismo iquestY no es acaso esta consciencia la forma esencial del espiacuteritu iquestY

puede hablarse de una verdadera humanidad que excluya esta forma esencial es decir encerrando en un envoltorio corporal un espiacuteritu dimidiado

por carecer de formardquo (A GUumlNTHER Vorschule zur spekulativen Theologie t II Viena 1822 260) ldquoEn cada persona es necesario distinguir

esencia y forma La primera es el ser en siacute mismo sustancia-principio la segunda es el pensamiento de este ser cuando ella tiene el

ser mismo por contenido He aquiacute por queacute la consciencia de siacute es aquello por lo que el ser se retoma a siacute mismo se convierte en sujeto

espiritual o yordquo (ibiacuted 296) Cfr A MICHAEL ldquoHypostaserdquo cit col 431-432

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 42: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

38

Tomai qualquer objeto que vos agrade e com a abstraccedilatildeo retirai dele as suas qualidades proacuteprias as mais comuns aquilo que vos restaraacute como a uacuteltima qualidade de todas seraacute a existecircncia e por meio dela ainda podereis pensar alguma coisa um ente ()90

Para Rosmini a abertura ao ser objetivo seria constitutiva da pessoa isto eacute a ideia do ser

soacute pode ser inata

Tanto em Guumlnther como em Rosmini encontramos um notaacutevel esforccedilo para falar da uniatildeo

hipostaacutetica desde o conceito de pessoa que brota do giro subjetivista da filosofia Ambos

propugnaram um conceito de pessoa em dependecircncia de seus atos espirituais sem darem o

suficiente relevo ao fato de que estes atos natildeo satildeo o constitutivo da pessoa humana mas dimanam

da pessoa jaacute constituiacuteda

Com isso a uniatildeo em Cristo do humano e do divino podia interpretar-se como uma uniatildeo

no plano da accedilatildeo mas natildeo no niacutevel do ser E isso natildeo era suficiente para manter em toda sua

integridade a afirmaccedilatildeo de que Jesus eacute o Filho de Deus

483 Dificuldades no uso da noccedilatildeo de pessoa na teologia

A histoacuteria da teologia testemunha que o uso do conceito de pessoa e sua distinccedilatildeo do

conceito de substacircncia constituiu uma poderosa ajuda para expor corretamente tanto a feacute trinitaacuteria

como a feacute cristoloacutegica

O conceito de pessoa serviu primeiro para designar o que haacute de distinto no uacutenico Deus

trecircs pessoas Utilizou-se depois para designar o que haacute de uacutenico em Cristo uma pessoa

No acircmbito trinitaacuterio a pessoa se define como relatio subsistens ou seja o acento recai

diretamente sobre a relaccedilatildeo e natildeo sobre a subsistecircncia

Na cristologia o acento recai sobre a subsistecircncia mas sobre a racionalidade na uniatildeo

hipostaacutetica o Verbo comunica agrave sua natureza humana seu proacuteprio modo pessoal de existir na

Trindade

No seacuteculo XX as principais criacuteticas ao uso de pessoa sobretudo no acircmbito da teologia

trinitaacuteria vieram de dois conhecidos teoacutelogos Karl Barth e Karl Rahner

Barth natildeo pretende eliminar de todo o conceito de pessoa em Deus poreacutem propotildee

restringi-lo agrave essecircncia divina para afirmar com este conceito que Deus eacute uacutenico poreacutem natildeo eacute o

espiacuterito absoluto mas uma pessoa um Eu que existe em si mesmo e por si mesmo dotado de

pensamento e vontade proacutepria

As dificuldades barthianas para aplicar a Deus o conceito de pessoa estatildeo em dependecircncia

ademais de sua afirmaccedilatildeo de que personalidade e finitude satildeo inseparaacuteveis estatildeo tambeacutem em

relaccedilatildeo com seu conhecido desprezo pela analogia

Tambeacutem Rahner experimenta graves duacutevidas sobre a oportunidade de utilizar o termo

pessoa na teologia trinitaacuteria Suas razotildees provecircm fundamentalmente do significado que lhe outorga

a filosofia moderna significado bem diverso segundo ele do que recebeu na eacutepoca patriacutestica 91

90 REALE G e ANTISERE D Histoacuteria da Filosofia vol 3 p 280 91 Pero si no se aplica a Dios el concepto de persona iquest coacutemo expresar que los Tres de la Trinidad se poseen a siacute mismos y se autodonan

en las relaciones trinitarias K Barth propone substituir la expresioacuten tres personas por la de tres modos de ser (Seinsweise) foacutermula

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 43: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

39

Rahner pretende reservar o termo pessoa a Deus e o de personalitas aos trecircs da Trindade

(distintas formas de subsistecircncia) que nos saem ao encontro na histoacuteria da salvaccedilatildeo

484 O intento cristoloacutegico de Karl Rahner

Em Rahner se encontra um novo esforccedilo por incorporar agrave cristologia o conceito de

autoconsciecircncia como o nuclear da noccedilatildeo de pessoa para considerar daqui a uniatildeo hipostaacutetica

Sua ecircnfase eacute fruto da sua filosofia transcendental Sua afirmaccedilatildeo eacute clara de que Jesus de

Nazareacute eacute o Filho de Deus 92

A cristologia transcendental de Rahner parte de uma antropologia na qual o homem eacute

compreendido como o ente que no exerciacutecio do seu intelecto se caracteriza por uma tendecircncia ao

infinito que transborda os dados meramente categoriais

A pessoa humana segundo ele consiste na abertura aprioacuterica da consciecircncia humana ao ser

em geral abertura que no fundo eacute uma abertura ao infinito ou seja a Deus

Em Cristo posto que haacute dois centros de consciecircncia haacute dois sujeitos o humano e o divino

Apesar de natildeo dizer haver em Jesus dois sujeitos o pensamento acaba dando margem agrave

defesa de dois ldquoeu(s)rdquo em Jesus um ldquoeurdquo divino e outro humano

A subjetividade humana de Jesus eacute distinta da do Verbo e ao mesmo tempo precisamente

porque nrsquoEle em Jesus se daacute uma abertura total ao infinito ndash ou seja a Deus ndash esta subjetividade

pode receber a total autodoaccedilatildeo de Deus 93

Coerente com sua proposta de introduzir na cristologia o conceito moderno de pessoa

Rahner tenta mostrar em Jesus uma unidade original de ser e consciecircncia que parece inspirada na

definiccedilatildeo plotiniana de Deus Jesus tem consciecircncia daquilo que eacute e eacute aquilo do que tem

consciecircncia

O homem Jesus se situa em uma unidade de vontade que domina a priori seu ser inteiro e

em uma obediecircncia da qual deriva toda sua realidade humana Com isso parece que Rahner

somente pode conseguir a unidade no plano da accedilatildeo Quando se potildeem dois sujeitos um frente ao

outro a uniatildeo entre ambos seraacute simplesmente a uniatildeo de accedilatildeo de relaccedilatildeo de amor natildeo se podendo

dizer entatildeo que Jesus eacute Deus Seu pensamento acaba se tornando ambiacuteguo

No caso da uniatildeo hipostaacutetica haacute que acrescentar que segundo a feacute da Igreja eacute o Verbo que

toma sobre si ndash assume ndash a natureza humana sem que seja a obediecircncia humana aquilo de que deriva

toda a realidade humana de Jesus e muito menos sem que essa abertura do humano ao divino seja

a razatildeo da uniatildeo hipostaacutetica

que o acerca peligrosamente a Sabelio o no es maacutes que un circunloquio para expresar lo mismo que se designa con el teacutermino persona

La advertencia es de K Rahner en su trabajo ldquoEl Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvacioacutenrdquo

en J FEINER-M LOumlHRER Mysterium salutis II cit 328-329 Barth rechazoacute eneacutergicamente que su foacutermula pudiese entenderse en

sentido modalista (OCAacuteRIZ Fernando MATEO-SECO Lucas e RIESTRA Joseacute El misteacuterio de Jesucristo p 301) 92 Como observa J Galot aunque desde una perspectiva es verdad que a partir de Descartes el concepto de persona acentuacutea la

subjetividad mucho maacutes que en la eacutepoca precedente sin embargo este concepto no es del todo contradictorio con el concepto de

persona utilizado antes de Descartes tambieacuten alliacute se utiliza el concepto de persona para ldquosubrayar la originalidad y la riqu eza iacutentima

de la persona las caracteriacutesticas que la diferencian de todas las demaacutes confirieacutendole un rostro uacutenicordquo (J GALOT Cristo contestato

p 195) 93 K RAHNER ndash W THUumlSING Cristologiacutea Estudio teoloacutegico e exegeacutetico cit 67

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 44: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

40

485 As cristologias ldquonatildeo-calcedonianasrdquo

Estas dificuldades estatildeo na base do intento de alguns autores por elaborarem uma cristologia

agrave margem ou melhor contra a definiccedilatildeo de Calcedocircnia Por isso recebem esse nome Trata-se de

elaborar uma cristologia sem aceitar a distinccedilatildeo entre natureza e pessoa tal como eacute proposto pelo

Conciacutelio Entre os autores mais conhecidos estatildeo Piet Schoonenberg e Edward Schillebeeckx

Segundo Schooonenberg Calcedocircnia teria negado a verdadeira humanidade de Jesus ao

negar que Ele eacute uma pessoa humana pois para ele o fundamental seria dizer que Jesus de Nazareacute

eacute uma pessoa humana Por isso ele propotildee uma pessoa humana em duas naturezas invertendo

Calcedocircnia

Ao contraacuterio Schillebeeckx afirma que Jesus seria uma pessoa humana tatildeo de Deus que

poderiacuteamos dizer que nEle se daacute uma identificaccedilatildeo hipostaacutetica Estaacute-se referindo a uma identificaccedilatildeo

entre a pessoa humana de Jesus e o Verbo e nada mais Assim Jesus seria um ser humano em quem

tem lugar a revelaccedilatildeo suprema de Deus 94

49 A Santidade de Cristo

A santidade eacute uma palavra que designa a perfeiccedilatildeo de Deus sua Majestade sua Bondade

infinita e sua transcendecircncia Por esse motivo todas as suas obras satildeo santas disso resulta que aquele

que entra em relaccedilatildeo especial com Deus recebe a denominaccedilatildeo de santo

A santidade eacute uma graccedila um dom que eleva a pessoa ateacute o niacutevel de comunicaccedilatildeo com Deus

Esta comunicaccedilatildeo tem lugar de forma suprema em Cristo Sua humanidade natildeo soacute estaacute unida a Deus

senatildeo que eacute a humanidade de Deus Por isso Ele eacute santo de um modo supremo e uacutenico

Ao falarmos da santidade de Jesus Cristo estamos a nos referir como eacute oacutebvio agrave santidade

do Verbo essencialmente santo por ser um com o Pai e com o Espiacuterito Santo

Podemos nos perguntar ateacute que ponto essa santidade absoluta e total da Divindade do Verbo

se comunica agrave humanidade de Jesus e que consequecircncias comporta

491 A santidade de Jesus Cristo

A Biacuteblia refere-se expressamente agrave santidade de Jesus Cristo a partir de algumas

perspectivas a estreita relaccedilatildeo existente entre Jesus e o Espiacuterito Santo a existecircncia mesma de Jesus

ser fruto da accedilatildeo do Espiacuterito portanto sua santidade se faz derivar desta atuaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

Jesus eacute santo tambeacutem em sua humanidade pela accedilatildeo plena do Espiacuterito com seus frutos e com seus

dons Esta santidade eacute de fato paradigma e fonte de santidade dos demais homens

492 A graccedila da uniatildeo

Pela encarnaccedilatildeo a natureza humana de Cristo foi elevada a uma maior uniatildeo com a

divindade com a pessoa do Verbo Pode ser chamada de graccedila da uniatildeo 95 Trata-se de um dom

94 cf CONGREGACcedilAtildeO PARA A DOUTRINA DA FEacute Decl Mysterium Filii Dei n3 95 A graccedila da uniatildeo eacute o proacuteprio existir pessoal que eacute dado gratuitamente por Deus agrave natureza humana na pessoa do Verbo que eacute o termo da assunccedilatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 6 a 6 in c)

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 45: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

41

infinito com a mesma infinitude do Verbo que recolhe ontologicamente unida sua natureza humana

Podemos usar a expressatildeo santidade substancial para expressar esta santidade pois a

natureza humana estaacute unida ao Verbo substancialmente A pessoa do Verbo eacute impecaacutevel Natildeo se

compreende pois como para fazer a esta natureza humana tatildeo santa que seja impecaacutevel natildeo bastaria

sua uniatildeo pessoal a esta natureza senatildeo que ela deveria receber essa impecabilidade mediante um

dom acidental como eacute a graccedila habitual

A graccedila da uniatildeo por si soacute daacute a Cristo a impecabilidade Esta uniatildeo tatildeo forte exclui todo o

pecado pois essa graccedila se daacute em Cristo por meio da uniatildeo hipostaacutetica 96

493 A graccedila habitual as virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo

Devemos dizer que Cristo eacute verdadeiro Deus segundo a pessoa e natureza divinas Como

poreacutem na unidade da pessoa permanece a distinccedilatildeo de naturezas logo a alma de Cristo natildeo eacute

divina por sua essecircncia mas por participaccedilatildeo - o que se daacute pela graccedila 97

Cristo eacute santo substancial e formalmente pela graccedila da uniatildeo Em Cristo a graccedila habitual

segue a graccedila da uniatildeo isso quer dizer que a divinizaccedilatildeo de sua natureza humana se daacute

fundamentalmente por pertencer ontologicamente ao Verbo

Para que pudeacutessemos falar da graccedila habitual em Cristo era preciso levar em consideraccedilatildeo as

virtudes infusas e os dons do Espiacuterito Santo Ele possuiu todas as virtudes de forma conveniente agrave

sua condiccedilatildeo de Filho de Deus e de sua missatildeo de Redentor

A santidade moral de Jesus se deve agrave accedilatildeo do Espiacuterito sobre Ele Podemos dizer tambeacutem

que Ele possui todas as graccedilas

Cristo eacute mais que um profeta porque nEle o dom da profecia natildeo tinha nenhuma

imperfeiccedilatildeo obscuridade ou limitaccedilatildeo Por isso Ele pode anunciar aos demais homens realidades

que escapavam a seu conhecimento 98

494 A graccedila capital

Cristo por ser o novo Adatildeo se relaciona com os redimidos de forma semelhante agrave videira

com os ramos Soacute poderemos dar frutos se estivermos unidos a Ele Cristo exerce a missatildeo de novo

Adatildeo e de Cabeccedila da Igreja Jesus eacute a causa instrumental de toda a nossa santificaccedilatildeo porque Ele eacute

a fonte e a causa de todo bem feito a noacutes homens99

495 A plenitude da graccedila em Cristo

Por conta da uniatildeo hipostaacutetica e da capitalidade de Jesus sobre o gecircnero humano podemos

96 Esta eacute a razatildeo porque Santo Tomaacutes nunca chama a graccedila habitual de Cristo de graccedila santificante pois a santificaccedilatildeo deriva para Cristo da graccedila da uniatildeo A observaccedilatildeo eacute de R Garrigou-Lagrange De Cristo Salvatore Marietti Roma 1946 182 97 Cfr Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 1 ad 1 98 Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 7 a 8 in c e ad 2 99 A alma de Cristo ndash explica Tomaacutes de Aquino ndash possuiu a graccedila em toda a sua plenitude Esta eminecircncia de sua graccedila eacute a que o capacita para comunicar sua graccedila aos demais no qual consiste precisamente a graccedila capital Portanto a graccedila pessoal que justifica a alma de Cristo eacute a mesma graccedila que LHE pertence como cabeccedila da Igreja e princiacutepio justificador dos demais entre ambas somente existe uma distinccedilatildeo de razatildeo (Santo Tomaacutes de Aquino STh III q 8 a 5 in c)

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 46: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

42

dizer que Ele teve a plenitude da graccedila desde o primeiro momento de sua concepccedilatildeo porque eacute o

Filho natural de Deus e o novo Adatildeo

Enquanto homem Cristo cresceu em graccedila durante sua vida terrena Para confirmarmos

isso podemos recorrer ao texto de Lc 2 52 ldquoJesus crescia em idade sabedoria e graccedila diante de

Deus e diante dos homensrdquo

Muitos teoacutelogos atuais procuram falar de crescimento em graccedila em Cristo sem deixar de

levar em consideraccedilatildeo a plenitude de graccedila que Ele sempre teve

496 A impecabilidade de Cristo e sua liberdade

A impecabilidade de Cristo eacute fruto da uniatildeo hipostaacutetica da santidade substancial e da

infinitude de graccedila habitual ou seja sua incapacidade de pecar

Jesus natildeo poderia pecar porque eacute contraacuterio agrave natureza divina qualquer sombra de pecado

Eacute absurda a ideia de Cristo poder pecar em sua natureza humana porque se isso acontecesse seria a

pessoa do Verbo quem pecaria Jesus eacute o sacerdote santo igual a noacutes em tudo exceto no pecado

Ele oferece sacrifiacutecios por toda a humanidade e natildeo por si mesmo jaacute que foi concebido nasceu e

morreu sem o pecado 100

Daiacute surge o problema de harmonizar a liberdade em Cristo com a sua impecabilidade

Temos que levar em conta que o pecado natildeo eacute constitutivo da natureza humana mas sim que ele

foi introduzido contra a natureza

Os evangelhos relatam que Jesus foi livre pois de outra forma Ele natildeo poderia ter

obedecido aos desiacutegnios de Deus Pai Um exemplo mais que evidente da liberdade e obediecircncia de

Cristo podemos constatar na oraccedilatildeo que Ele faz ao Pai no Horto das Oliveiras onde Ele manifesta

o seu sentimento de repulsa agrave dor e agrave morte Ele nos mostrou que era livre a ponto de aderir

plenamente com sua vontade humana fortificada pela oraccedilatildeo agrave vontade do Pai

497 As tentaccedilotildees de Cristo

Cristo essencialmente era impecaacutevel em virtude da uniatildeo hipostaacutetica logo podemos afirmar

que em Cristo natildeo havia a fomes peccati ou seja a desordem interna introduzida no homem pelo

pecado original Por esse motivo Cristo natildeo experimentou a tentaccedilatildeo ab intriacutenseco ou seja desde

dentro

Dizer que Cristo natildeo padeceu a desordem da concupiscecircncia natildeo significa dizer que Ele natildeo

teve sensibilidade muito pelo contraacuterio podemos ver sua sensibilidade se revelar nas suas pregaccedilotildees

e em suas paraacutebolas Ele possui uma natureza humana santa e retamente ordenada

No entanto a Sagrada Escritura nos diz que Jesus foi tentado pelo democircnio no deserto

depois do batismo e essa tentaccedilatildeo foi externa o que natildeo significa que natildeo tenha sido real ou

autecircntica

As trecircs tentaccedilotildees de Cristo estatildeo ligadas ao tipo de messianismo que o judaiacutesmo esperava

100 Conc XI de Toledo ano 675 (DH 539) As mesmas palavras se encontram no Conciacutelio de Florecircncia Decr pro Jacobitis (DH 1347)

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 47: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

43

Jesus mostra que o seu messianismo natildeo buscava proveito proacuteprio e que Ele veio para cumprir a

vontade do Pai Isso tudo estaacute ligado agrave luta de Jesus contra o mal que Ele venceu com perseveranccedila

dando-nos o exemplo de como lutar contra o mal

410 A ciecircncia de Cristo

4101 A ciecircncia divina e a ciecircncia humana de Cristo

Pertence agrave feacute que Cristo possui uma dupla inteligecircncia uma inteligecircncia divina e uma

inteligecircncia humana

Enquanto Deus o Verbo possui a ciecircncia divina que eacute infinita e incomunicaacutevel agrave

humanidade assumida enquanto homem tem os conhecimentos que satildeo possiacuteveis agrave natureza

humana visatildeo beatiacutefica ciecircncia infusa e ciecircncia adquirida A existecircncia de um conhecimento

humano em Cristo eacute patente em todo NT (Lc 2 52)101

Apolinaacuterio com temor em relaccedilatildeo agrave liberdade humana de Cristo acabou negando que

Cristo tivesse alma intelectual Pertence agrave feacute da Igreja que existe em Cristo uma inteligecircncia

humana correspondente agrave alma racional que possui e que essa inteligecircncia natildeo estaacute despojada da

atividade que lhe eacute proacutepria 102 Dada sua dignidade divina Cristo deve ter toda ciecircncia e em todos

os modos possiacuteveis a inteligecircncia humana

4102 A visatildeo imediata de deus

Os teoacutelogos quase unanimemente afirmaram que Cristo durante sua vida terrena gozava

da visatildeo imediata de Deus Essa unanimidade deixou de existir na teologia contemporacircnea (Jo 8

38 3 11 6 46 8 55 3 32 Mt 11 27) Ateacute S Agostinho natildeo menciona explicitamente esse tipo

de visatildeo em Cristo

Da Idade Meacutedia ateacute o Vaticano II era unacircnime entre os teoacutelogos a afirmaccedilatildeo da ciecircncia de

visatildeo em Cristo 103 A plenitude da santidade e a graccedila existentes em Cristo parecem tambeacutem exigir

a visatildeo imediata de DeusJ Galot eacute um dos teoacutelogos que nega a ciecircncia de visatildeo em Cristo pois

para ele este tipo de visatildeo natildeo eacute atestado nem na Escritura nem nos PadresTradiccedilatildeo Cristo

deveria ter tido uma vida humana como a de outro homem qualquer

4103 Jesus viator e comprehensor

Admitir em Cristo a visatildeo imediata de Deus leva a admitir tambeacutem que Ele durante sua

vida terrena eacute ao mesmo tempo viator e comprehensor isto eacute estava ao mesmo tempo em estado

de caminhante e em estado de fim ou seja havia chegado ao fim de seu destino humano104

Admitir a ciecircncia de visatildeo em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu

conhecimento adquirido S Tomaacutes afirmou repetidamente que em Cristo coexistem o estado de

101 GS 22 102 DH 151 103 Suma q 9 a2 104 Suma q 50 a 6

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 48: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

44

caminhante e de comprehensor105

A dificuldade de conciliar em Cristo homem um conhecimento total claro e certo como

eacute o conhecimento intuitivo e imediato de Deus com um conhecimento que progride pouco a pouco

e que natildeo eacute total nem goza da claridade da ciecircncia de visatildeo como eacute a ciecircncia adquirida parece

solucionar-se caso se tenha presente a distinta natureza de ambos os conhecimentos

Enquanto que o conhecimento natural se adquire atraveacutes dos sentidos por imagens ou

espeacutecies a ciecircncia de visatildeo eacute sem imagens ou espeacutecies por comunicaccedilatildeo imediata da Divindade a

alma fazendo a Cristo conhecer de uma forma que excede absolutamente o modo proacuteprio do

conhecimento humano

4104 Ciecircncia infusa

Designa-se por ciecircncia infusa aquele conhecimento que natildeo se adquire diretamente pelo

trabalho da razatildeo mas que eacute infundido diretamente por Deus na inteligecircncia humana A partir da

Idade Meacutedia a maior parte dos teoacutelogos pensa que Cristo gozou de ciecircncia infusa

A SE natildeo proporciona textos nos quais fique clara a existecircncia da ciecircncia infusa em Cristo 106

Eacute necessaacuterio tambeacutem recordar que em Cristo repousa em plenitude o Espiacuterito Santo com

seus dons (Is 11 1ss) Natildeo haacute porque negar a existecircncia em Cristo da ciecircncia infusa e de autecircnticos

carismas

4105 A ciecircncia adquirida

Por ciecircncia adquirida designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas

proacuteprias forccedilas mediante seus sentidos (Lc 2 52)

Com o passar dos tempos negar que Cristo tivesse autecircntica ciecircncia adquirida implicava

negar consequecircncias importantes da verdade da encarnaccedilatildeo De fato negar a existecircncia em Cristo

de uma ciecircncia adquirida eacute negar nrsquoEle a forma normal atraveacutes da qual os homens adquirem seus

conhecimentos que eacute atraveacutes dos sentidos107

Alguns textos do NT segundo Oriacutegenes revelam que Cristo pergunta natildeo para saber algo

mas para ensinar perguntando (Mt 8 26 9 4) Jaacute em outros textos parece que Ele pergunta como

quem natildeo sabe mas em alguns a pergunta parece pedagoacutegica (Jo 6 5) ou parece que Ele deseja

conhecer algo (Mc 6 38 11 13 Lc 8 30)

Natildeo parece loacutegico pois negar que Jesus tenha aprendido verdadeiramente em sua vida

terrena ou seja tenha adquirido novos conhecimentos atraveacutes de sua experiecircncia

Alguns teoacutelogos entre eles S Tomaacutes ensinaram que a ciecircncia adquirida de Cristo abarca

tudo aquilo que possa ser conhecido pela accedilatildeo do entendimento agente

A ciecircncia adquirida do Salvador teve sempre a perfeiccedilatildeo conveniente a sua idade a seu

105 Suma q 7 a 8 (c) 106 Jo 1 14 Hb 10 5ss Jo 1 47ss 4 17s 107 Suma q 9 a 4 (c) q 12 a 2 a 3

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 49: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

45

tempo aos lugares onde vivia e em proporccedilatildeo com as pessoas com quem conversava e com os

desiacutegnios de sabedoria a que se propunha para a gloacuteria de Deus e salvaccedilatildeo do mundo

4106 Jesus e a feacute

Ao pensar que Cristo possuiacutea jaacute na terra a visatildeo imediata de Deus a teologia comumente

negou a existecircncia nrsquoEle da virtude da feacute precisamente por coerecircncia com as caracteriacutesticas

essenciais da feacute e da visatildeo imediata de Deus

Aqueles que defendem que Cristo teve visatildeo imediata de Deus e ao mesmo tempo definem

a feacute como conhecimento do que natildeo se vecirc afirmam que em Cristo natildeo houve feacute se natildeo visatildeo108

Outros autores mesmo aceitando a ciecircncia de visatildeo em Cristo gostam de falar tambeacutem de

feacute em Cristo como fidelidade sendo num sentido menos proacuteprio Tambeacutem afirmam a feacute aqueles

que negam a ciecircncia de visatildeo Mesmo que ratifiquemos que Cristo natildeo tenha tido a feacute teve o seu

meacuterito

4107 A infalibilidade de Jesus

Em Cristo se encontra o homem com a Verdade (Jo 14 6) Por isso Ele eacute o uacutenico Mestre

(Mt 23 10)

Somente depois da criacutetica iniciada por Reimarus (1694-1768) comeccedila-se a introduzir em

setores do pensamento catoacutelico a ideia de que Jesus errou sobre a data do fim do mundo e quanto agrave

natureza do seu messianismo

Desde uma perspectiva cristoloacutegica haacute que dizer que a existecircncia de um erro em Cristo

sobretudo no que concerne a sua missatildeo e seus ensinamentos implicaria que natildeo seja Deus

A maior parte dos teoacutelogos afirma como pertencente agrave feacute natildeo somente que Cristo natildeo se

equivocou mas que era infaliacutevel posto que a uniatildeo hipostaacutetica fazia metafisicamente impossiacutevel que

errasse Contudo fica a questatildeo se houve ignoracircncia

Alguns textos do NT parecem indicar uma ignoracircncia de Jesus sobre determinadas coisas

(Mt 24 36 Mc 5 8 Mt 26 39 Lc 7 9)

Com relaccedilatildeo ao texto de Mt 24 36 alguns Padres o entendem diretamente como uma

ignoracircncia de Cristo sobre o dia do juiacutezo

Apesar de notaacuteveis testemunhos a favor da ignoracircncia de Jesus satildeo numerosos os Padres

que se inclinam a defender em Cristo enquanto homem o conhecimento do dia do juiacutezo

S Agostinho por exemplo negou constantemente que Cristo ignorasse a data do fim do

mundo A Escolaacutestica seguiraacute sua interpretaccedilatildeo com poucas variantes Cristo disse que ignorava o

dia do juiacutezo natildeo porque de fato o ignorasse mas porque nem queria nem podia revelaacute-lo109

Nem o erro nem a ignoracircncia podem dar-se em Cristo pois iriam contra a dignidade de sua

Pessoa e contra a mesma Providecircncia divina ao natildeo dotarem a natureza humana de Cristo do

conveniente para desempenhar sua missatildeo de Mestre NEle se daacute o desconhecimento de algo que

108 Suma q 7 a 3 (c) 109 Suma q 10 a 2 ad 1

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 50: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

46

natildeo se tem que saber

O Magisteacuterio da Igreja desprezou em diversas ocasiotildees as teses dos que admitiam ignoracircncia

em Jesus inclusive sobre o dia do juiacutezo

4108 A consciecircncia de Jesus

A teologia contemporacircnea sintetiza desta forma o conjunto de questotildees relativas a estas

duas perguntas Jesus sabia que era Deus Jesus conhecia qual era sua missatildeo

A contestaccedilatildeo tradicional foi afirmativa a ambas as perguntas Jesus sabia que era Deus e

conhecia sua missatildeo e natildeo se equivocou sobre sua dimensatildeo kenoacutetica

ldquoA consciecircncia que Jesus tinha de si mesmo e de sua missatildeordquo (CTI 1985)

O documento mencionado apresenta quatro proposiccedilotildees que abarcam os aspectos mais

destacados da questatildeo

ndash Jesus mostrou superabundantemente em seus gestos e palavras que tem consciecircncia de

sua relaccedilatildeo filial com o Pai e em consequecircncia de ser ele mesmo Deus e apoiado nesta

consciecircncia atuou com autoridade divina

ndash Jesus conhecia sua missatildeo aceitava-a e ofereceu sua vida por todos

ndash Jesus quis fundar a Igreja

ndash A consciecircncia que Jesus tem de sua missatildeo lhe permite entregar sua vida em favor de cada

homem de forma que com S Paulo todos podemos dizer que Ele morreu por noacutes

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986

Page 51: INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA Aurecir Martins …. O intento cristológico de Karl Rahner.....39 4.8.5. As cristologias “não-calcedonianas” .....40 ... a fundamental e a filosófica

47

Bibliografia

CARDEDAL Olegaacuterio Gonzaacutelez de Cristologia Madri BAC 2001

CERFAUX Lucien Cristo na teologia de Paulo Satildeo Paulo Editora Teoloacutegica 2003

DENZINGER Compecircndio dos siacutembolos definiccedilotildees e declaraccedilotildees de feacute e moral Trad

Peter Hunermann Satildeo Paulo Paulinas Ediccedilotildees Loyola

HAGGLUND Histoacuteria da Teologia Bengt Mario L Rehfeldt Porto Alegre Editora

Concordia 1995

KESSELER Hans Cristologia In SCHNEIDER Theodor (Org) Manual de dogmaacutetica v I

ed 4 Petroacutepolis Vozes 2012

MARGUERAT Daniel Novo Testamento histoacuteria escritura e teologia Satildeo Paulo Loyola

2012

SERENTHAacute Maacuterio Jesus Cristo ontem hoje e sempre Satildeo Paulo Editora salesiana Dom

Bosco 1986