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HISTÓRIA DA CHINA Prof. André Bueno Agosto de 2015 1 AULA 01 INTRODUÇÃO AO ORIENTALISMO O tópico principal desta nossa breve apresentação é: porque estudar História Oriental? Qual é o seu significado para o nosso processo de formação acadêmica, e como ela poderia contribuir para a construção de nossa “cultura geral”? O primeiro passo que podemos dar para responder estas perguntas, inicialmente, é invertê-las: porque não estudar a História asiática? Poderemos considerar nosso conhecimento como completo, se deixarmos de conhecer culturas que representam mais da metade do mundo? A necessidade de pesquisar mais sobre as sociedades asiáticas é premente no momento atual: as maiores populações do mundo ali se concentram (China e Índia); a língua mais falada e escrita do mundo (o chinês) também é asiática. O crescimento econômico tem alcançado níveis surpreendentes neste continente, o que podemos observar pelos fenômenos dos “Tigres asiáticos”, dos “Dragões asiáticos”, do Japão e da China comunista. A popularização da informática e dos eletrodomésticos só tem acontecido graças aos baixos custos de produção apresentado nestas áreas. A Ásia também foi palco de movimentos políticos importantes, tais como a independência pacífica da Índia, as guerras não vencidas pelas superpotências na Coréia, Vietnã e Afeganistão, e pelos novos modelos de capitalismo e socialismo adaptados à cultura tradicional. Somam-se a estes fatores a consideração de que a História asiática está estruturada numa dinâmica bastante diferente da nossa, como acontece no caso da China e da Índia, que estão em processo de desenvolvimento civilizacional desde a antiguidade. Assim sendo, como não estudar a História Oriental? Porque estudar a História Antiga do Oriente? Na medida em que a História das civilizações asiáticas possui uma complexidade toda própria, como poderíamos compreender seus efeitos modernos sem conhecer as suas bases de formação? Tem sido um erro bastante comum nas ciências humanas iniciar qualquer estudo sobre o Oriente consultando somente fontes modernas, em detrimento do conhecimento tradicional. Isso ocasiona um sério problema de superficialidade em estudos mais amplos, que se agravam seriamente nas pesquisas mais específicas. Além disso, as civilizações asiáticas possuem suas próprias tradições de construção do conhecimento histórico e científico. Como podemos, então, ignorá-las? Ou temos, teoricamente, o

Introdução ao Orientalismo

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Estudos sobre cultura, história e sociedades orientais; comparativo de suas histórias...

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HISTÓRIA DA CHINA

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Agosto de 2015

1

AULA 01

INTRODUÇÃO AO ORIENTALISMO

O tópico principal desta nossa breve apresentação é: porque estudar

História Oriental? Qual é o seu significado para o nosso processo de

formação acadêmica, e como ela poderia contribuir para a construção de

nossa “cultura geral”? O primeiro passo que podemos dar para responder

estas perguntas, inicialmente, é invertê-las: porque não estudar a História

asiática? Poderemos considerar nosso conhecimento como completo, se

deixarmos de conhecer culturas que representam mais da metade do

mundo?

A necessidade de pesquisar mais sobre as sociedades asiáticas é premente

no momento atual: as maiores populações do mundo ali se concentram

(China e Índia); a língua mais falada e escrita do mundo (o chinês) também

é asiática. O crescimento econômico tem alcançado níveis surpreendentes

neste continente, o que podemos observar pelos fenômenos dos “Tigres

asiáticos”, dos “Dragões asiáticos”, do Japão e da China comunista. A

popularização da informática e dos eletrodomésticos só tem acontecido

graças aos baixos custos de produção apresentado nestas áreas. A Ásia

também foi palco de movimentos políticos importantes, tais como a

independência pacífica da Índia, as guerras não vencidas pelas

superpotências na Coréia, Vietnã e Afeganistão, e pelos novos modelos de

capitalismo e socialismo adaptados à cultura tradicional.

Somam-se a estes fatores a consideração de que a História asiática está

estruturada numa dinâmica bastante diferente da nossa, como acontece no

caso da China e da Índia, que estão em processo de desenvolvimento

civilizacional desde a antiguidade. Assim sendo, como não estudar a

História Oriental?

Porque estudar a História Antiga do Oriente?

Na medida em que a História das civilizações asiáticas possui uma

complexidade toda própria, como poderíamos compreender seus efeitos

modernos sem conhecer as suas bases de formação?

Tem sido um erro bastante comum nas ciências humanas iniciar qualquer

estudo sobre o Oriente consultando somente fontes modernas, em

detrimento do conhecimento tradicional. Isso ocasiona um sério problema

de superficialidade em estudos mais amplos, que se agravam seriamente

nas pesquisas mais específicas. Além disso, as civilizações asiáticas

possuem suas próprias tradições de construção do conhecimento histórico e

científico. Como podemos, então, ignorá-las? Ou temos, teoricamente, o

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direito de subestimá-las, por não estarem de acordo com os nossos

parâmetros ocidentais?

Além disso, o estudo da História Antiga das civilizações asiática torna-se

necessário em virtude de suas singularidades. De que formas podemos

compreender a História do Império Chinês, por exemplo, que durou do séc.

–3 até +20? Ou da Índia, que não se reconhecia como um país até o séc.

+19 (geograficamente falando), mas se compreendia unida pela religião

hindu?

O estudo da Antiguidade Oriental nos possibilita, portanto: 1)

Compreensão mais abrangente sobre os fenômenos sócio – políticos

asiáticos; 2) Acesso a culturas diferentes e formas alternativas de

pensamento; 3) revisão do próprio conceitual Ocidental, no que tange a sua

aplicabilidade, universalidade e inteligibilidade.

Considerações sobre a História Asiática

É fundamental fazer uma análise do processo de construção da História

asiática, levando em conta duas perspectivas principais: a) a produção feita

na própria Ásia e b) aquela feita no Ocidente e/ou com técnicas ocidentais.

Perspectivas Asiáticas

Tomemos como primeiro exemplo a Índia. Até o estabelecimento dos

ingleses, a civilização indiana não considerava a História como uma das

principais disciplinas do saber. Em sua concepção, esta “ciência” se ligava

ao estudo de eventos materiais, que seriam efêmeros, transitórios e, por

conseguinte, falhos na compreensão de uma verdade superior (a

transcendência, ou realidade definitiva). Desta forma, a Filosofia, a

Religião, as Letras e as Ciências Naturais angariaram muito mais respeito

do que o estudo histórico, que acabou sendo realizado, em geral, por

estrangeiros (gregos, romanos, chineses, árabes, etc).

Num sentido completamente oposto, a China desenvolveu uma longa

tradição de Estudos Históricos, que desde o século –10 produziu

cronologias muito bem articuladas. Confúcio, o grande sábio chinês do séc.

–6, foi um dos grandes defensores do estudo da História como forma de

compreender a evolução da sociedade, esclarecendo questões morais e

sociais. No período do sécs –2 –1 , o Historiador Sima Qian teria elaborado

a primeira grande cronologia da História chinesa, utilizando uma série de

métodos inovadores para época (pesquisa de documentos, verificação de

data por tabelas astronômicas, etc.). A partir dele, houve uma sucessão de

profissionais que preservaram e divulgaram a História das dinastias

chinesas até o séc. +20, quando foi proclamada a república. Além disso,

desde a antiguidade os chineses procuraram formar coleções de livros e de

relíquias, e já no século +10 contavam com um método rudimentar de

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arqueologia. Buscaram também aplicar noções e procedimentos científicos

(chineses) na elaboração de modelos explicativos (Sima Qian, por exemplo,

aplicou a teoria dos cinco elementos na compreensão dos ciclos dinásticos).

Perspectiva Ocidental

Desde a Antiguidade o Ocidente vem mantendo contatos regulares com o

Oriente, e no séc. +1, romanos e chineses já se citavam mutuamente.

Apesar de terem ocorrido algumas épocas de menor comunicação, causadas

por crises sociais e políticas periódicas, o intercâmbio entre Europa,

Oriente Médio, Ásia Central e Extremo Oriente nunca arrefeceu, de fato.

Uma mudança radical só ocorreria a partir do séc. +16, no momento em

que se iniciam as grandes navegações e a colonização de territórios

ultramarinos por parte dos Estados Europeus.

Neste contexto, os europeus deixaram de manter apenas contato com os

orientais para estabelecerem um modo convivência, fato esse que

modificou bastante seu procedimento de observação. Grande parte deste

tempo foi dedicado a exploração comercial destas civilizações e,

concomitantemente, à imposição cultural e as conversões religiosas. Tal

processo ocorreu de formas diferentes na Ásia. Na Índia e na China, por

exemplo, ele foi durante um bom tempo localizado e restrito; já nas Ilhas

Filipinas e parte da Oceania, espalhou-se mais rapidamente e com maior

intensidade.

O resultado disso foi o embate cultural, e não o diálogo e a compreensão

mútua. Havia um discurso carregado de preconceito e desconfiança de

ambas as partes (um bom exemplo é a instalação portuguesa em Macau,

documentada tanto por lusos como por chineses), e os primeiros a perceber

esta situação foram os Jesuítas, que tentaram reverter este quadro

dedicando-se ao estudo das civilizações que buscavam converter. Os

esforços destes religiosos não foram acompanhados, entretanto, pela

maioria dos ocidentais. Com exceção da geração iluminista do século +18,

grande parte da Europa continuou a acreditar na idéia de imposição e

conversão. E o século +19 acompanhou esta tendência, com a afirmação do

racismo e do imperialismo dentro das ciências humanas, gerando uma série

de deformações bastante sérias no estudo da História Asiática.

Somente na metade do séc.+20 é que já havia, por parte da academia, uma

noção clara da grande quantidade de erros que foram imputados aos

modelos orientalistas. Desde então, têm se buscado, em conjunto com

especialistas nativos, resgatar e reconstruir esta História de uma forma mais

científica, mas com grande ênfase, no entanto, ao uso das técnicas

ocidentais. O processo de reconhecimento das ciências tradicionais

asiáticas tem sido mais demorado, e muitos preconceitos ainda subsistem

na Academia em relação a estas culturas.

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Correntes de Estudos Históricos

A Perspectiva Ocidental gerou, basicamente, duas correntes de estudos

históricos orientalistas, bastante distintas entre si por suas características e

objetivos.

Corrente “Histórica” ou “Européia”.

Esta corrente destaca-se pelo engajamento estrito no discurso científico

europeu, principalmente a partir do séc. +19. A civilização moderna,

européia gerava todos os modelos de comparação para serem aplicados na

História asiática. Tratava-se, portanto, de saber o que os orientais haviam

conseguido criar que fosse comparável a História e ao pensamento

Ocidental, o que lhe concedia o seu “grau” na “hierarquia das civilizações”.

Tais considerações foram feitas, no entanto, pelos mais diversos motivos.

Alguns pesquisadores estavam realmente preocupados em provar a

superioridade de suas culturas; outros, porém, utilizavam as técnicas

acadêmicas da forma que acreditavam ser conveniente e, por conta disso,

seus estudos acabavam gerando erros involuntários. Além disso, a atenção

concedida aos modelos tradicionais, em detrimento de propostas

inovadoras – paralelo ao desprezo (ou desconhecimento) dos conteúdos

culturais nativos – terminava por agravar a situação.

A evolução das ciências humanas tem, gradativamente, alterado este

panorama, e os programas interdisciplinares tem estimulado uma discussão

mais flexível e aberta sobre os tópicos relacionados a História Asiática. A

absorção e o emprego de técnicas ocidentais por especialistas orientais

também contribuiu bastante para a modificação desta situação, mas,

existem ainda muitos campos para serem trabalhados e rediscutidos. Não

raro ainda encontramos estudos, na academia, que são realizados com

informações totalmente defasadas; e a regularidade com que são

reproduzidas acaba por torná-las “verdades históricas” difíceis de

combater.

Corrente “Escritural” ou “Esotérica”

Esta corrente surgiu num fenômeno oposto ao do imperialismo colonialista.

Frustrados com a religião e a sociedade ocidental, uma série de autores

dedicou-se ao estudo das culturas asiáticas em busca de alternativas que

pudessem suprir as carências da “civilização moderna”. Pesquisadores das

mais diversas áreas, aventureiros, ou mesmo curiosos ligaram-se a esta

proposta, e o resultado foi o mais diverso possível.

O trabalho de transliteração textual alcançou, por vezes, excelentes níveis

de qualidade, já que os tradutores buscavam estudar melhor a língua e a

cultura com a qual lidavam, sem aplicar-lhes nenhum modelo de estudo

específico. A parte histórica, porém, era muito fraca e falha, limitando-se

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muitas vezes a repetir informações de uma ou outra tradição. Os aspectos

negativos, entretanto, eram múltiplos. Muitos ficaram simplesmente

fascinados pelas tradições asiáticas, e num processo de “conversão

cultural”, começaram por reclamar uma “superioridade espiritual” do

Oriente sobre o Ocidente. Por conta disso, esta linha de estudos perdeu a

credibilidade, sendo dificilmente aceita pela academia, mas angariando

simpatia entre os leigos. Seu principal problema é o fato dela construir uma

imagem ideal da Ásia, ignorando por completo seus problemas materiais e

sociais. Isso também tem gerado uma série de enganos no estudo do

Oriente, reproduzindo erros que têm se afirmado com uma intensidade

problemática entre o público que não mantém contato direto com a

academia.

Para finalizar, devemos ter em mente que os mesmos problemas têm se

apresentado entre os especialistas asiáticos. Há uma discussão importante

sobre a aceitação das teorias históricas ocidentais na academia, e têm se

buscado equilibrar elementos da cultura tradicional com essas avaliações.

A revalorização das ciências orientais também tem contribuído neste

mister, embora seu ressurgimento dê vazão, ocasionalmente, a uma

confusão entre as duas correntes.

Deformações Históricas

Busquemos agora discutir alguns tópicos sobre a História e a Cultura das

civilizações asiáticas. Em primeiro lugar, é importante não tratá-las em

bloco. Os primeiros estudiosos europeus fizeram isso, e só cometeram

enganos. Confundiram tradições históricas distintas com tanta constância

que, atualmente, só um estudo sério e dirigido pode esclarecer melhor um

iniciante. Os preconceitos, no entanto, se mantiveram. Vejamos alguns

deles:

“Árabes”

Hoje em dia, esta denominação tem sido utilizada para conjugar elementos

completamente diferentes entre si. Ela abriga povos tão diversos como os

sírios, palestinos, turcos, árabes, chechenos ou qualquer outro povo que

esteja localizado, geograficamente, perto do Oriente próximo. Quando

utilizada no sentido religioso (ou seja, igual a islã), ela abriga uma

quantidade ainda maior de povos e, pior, com tradições religiosas variadas.

Logo, o emprego deste termo em nada equivale a realidade complexa do

mundo islâmico, que tem recebido uma atenção bastante falha no meio

acadêmico.

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“Arianos contra drávidas”

No século 19 os pesquisadores europeus lançaram a idéia de que a História

da Índia antiga tinha se formado a partir do conflito entre duas civilizações

diferentes, os Arianos (povo indo-europeu branco e dominador), e o povo

drávida (nativo, negróide), O primeiro havia submetido o segundo numa

série de guerras de conquista, que terminaram com a imposição da cultura

Ária sobre todo o subcontinente indiano. Hoje sabemos, através da

arqueologia e da lingüística, que os termos “ariano” e “dasa” não se

referem a povos, mas sim à titulações; que não ocorreram apenas guerras,

mas houveram fusões pacíficas e férteis; que muitos elementos autóctones

ainda estão vivos na cultura indiana; e, por fim, que os “indo-europeus”

não tinham idéia de que eram “europeus”, e assim não podem ser ícones

imperialistas, como foi subentendido durante muito tempo.

O Modelo “Índia – China”

Até hoje ouvimos, com constância, a seguinte citação: “tal elemento surgiu

na Índia, foi levado para a China e de lá se difundiu, etc...”. Esta

deformação histórica ocorre pela associação do modelo greco-romano, em

voga no início do século 20, ao caso dessas duas civilizações asiáticas.

Como se defendia a idéia de que Roma havia absorvido muito de sua

cultura da Grécia helênica, um exame rápido sobre as culturas da Índia e da

China deu ensejo a que alguns pesquisadores fizessem o mesmo na Ásia,

retirando, por completo, sua diversidade e originalidade. Apesar dos

intensos esforços no sentido de investigar mais profundamente a cultura e a

ciência de ambas as civilizações, a permanência desta falácia ainda

predomina em muitos setores de estudo orientalistas, tanto na academia

quanto fora dela.

O “Imobilismo”

Por serem culturas antigas, muito se divulgou a idéia do “imobilismo

histórico”, ou seja, da preponderância das estruturas de longa duração na

História das civilizações asiáticas. Por conta disso, o desenvolvimento das

mesmas “arrastou-se” historicamente, em comparação à civilizações

européias. Devem ser tomados cuidados básicos com esta interpretação. 1)

Não confundir as dinâmicas próprias da História da Índia ou China, por

exemplo, com a da França. 2) os processos de evolução técnica, social,

econômica, etc estão organizados em ciclos diferentes para cada sociedade.

Não podemos, portanto, aplicar arbitrariamente o modelo de “longa

duração” ao caso asiático – se aplicado, são necessárias ressalvas

importantes; 3) uma investigação atenta sobre as cronologias históricas e os

processos de transformação política e cultural destas civilizações mostra

que elas estão longe de ser estáticas: ou elas devem ser assim consideradas

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apenas porque não se efetuaram certas mudanças que nós supomos que

deveriam ter ocorrido...?

Acredito que tenha sido importante levantar estes quatro casos para

exemplificar o quão importante é entender um pouco da História Oriental.

Ela nos permite compreender a existência de lógicas diferentes da nossa, e

conseqüentemente, nos enseja a revisar nossos critérios de aproximação e

avaliação teórica e metodológica.

Conceituação

E já que comentamos os problemas relacionados às questões de Teoria e

Método, vamos proceder à análise de alguns pontos que ainda têm gerado

discussão no meio acadêmico ocidental.

Mitologia ou Religião?

Em geral, aplicamos o termo “mitologia” para uma série de narrativas de

cunho religioso ou cultural que integram a história e o pensamento de uma

civilização. Seriam elementos que, essencialmente, não possuiriam

comprovação material, constituindo-se, assim, de histórias “irreais”. Ora,

como podemos considerar como “mitológicos” a existência dos deuses que

compõe uma religião como o hinduísmo, composta por mais de um bilhão

de crentes e ainda praticada em todo o mundo? Se a questão é, em si, a

comprovação material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam

problemas sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer

sobre a vida de Abraão ou Moisés, além das presentes na Bíblia. Se um

sistema de culto qualquer pode ser considerado como Religião, ele o pode

porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma comprovação

material total e completa. Portanto, é importante fazer a distinção entre os

dois termos, tendo em vista que o argumento da “mitologia” e da

“comprovação material” tem sido utilizado inúmeras vezes contra as

religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua “falta de base histórica”.

Filosofia ou Religião?

Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele

comporta em sua estrutura sistemas de crenças tão distintas como o ateísmo

e politeísmo?! Ou o Confucionismo, que foi eleito como religião estatal na

China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir

qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um

conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são

filosofias, e não religiões?O problema que se insere aqui é simples: a idéia

de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judaísmo-

Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a

presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos com

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situações complexas como a do movimento religioso budista ou do

Confucionismo, o emprego da idéia de “religião” ou “filosofia” tem sido

utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um

é “religião”, termina por não ser “filosofia”, e vice-versa. Fica patente que

tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e

filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário,

poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos

religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que

esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos,

posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e

história, com aplicações e sentidos próprios que podem – ou não –

aproximar-se dos nossos.

Filosofia ou Sistema de Pensamento?

Esta questão, por incrível que pareça, ainda permanece atual. O problema

é: podemos considerar os sistemas de pensamento oriental como Filosofia?

São vários os argumentos: 1) o termo se refere a uma tradição ocidental, ou

seja, é excludente; 2) os temas principais da Filosofia são diferentes dos do

pensamento oriental e 3) os métodos de discussão são diferentes. Foucault

já havia criticado com veemência a idéia dos “conceitos únicos” na

academia. Quando perguntando sobre sua opinião em relação a

determinado tema, ele teria afirmado que “primeiro, a academia deveria

definir a sua idéia sobre o tal conceito, e depois ela poderia ser discutida”.

A avaliação é mais do que pertinente para o caso do pensamento oriental.

Em primeiro lugar, a tradição filosófica ocidental não foi feita somente

daquilo produzido na Grécia ou em Roma. Ela é fruto, justamente, do

trabalho de diversos pesquisadores espalhados pelo mundo, que trouxeram

suas contribuições, enriquecendo-a. Como podemos, portanto, falar em

“tradição ocidental”? Tradição essa, aliás, que foi resgatada por filósofos

muçulmanos como Averrois e Avicena, que não eram ocidentais. E hoje

tem crescido bastante a idéia do intercâmbio cultural entre gregos e

orientais (incluindo indianos), na época de formação da filosofia grega, o

que desfaz a idéia de exclusividade desde o início. O segundo argumento,

dos temas filosóficos, é totalmente impreciso. A Filosofia ocidental inferiu

vários novos tópicos de discussão ao longo de seu desenvolvimento

histórico, o que invalida a idéia de “perenidade conceitual”; além disso,

alguns temas semelhantes aos ocidentais foram discutidos no Oriente, mas

os resultados foram diferentes. Isso invalida, portanto, o raciocínio

filosófico asiático? O problema é que os temas filosóficos não surgiram, na

Ásia, na mesma ordem que na Europa. A questão da natureza humana, por

exemplo, discutida por Hobbes, Locke e Rousseau surgiu, na China, em

torno do séc. –4 , nas mãos de Mengzi e Xunzi. No entanto, certas questões

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surgiram antes no Ocidente que no Oriente, e este ponto só vêm a

confirmar que as culturas não possuem o monopólio do saber, posto que

elas são capazes de inferir temáticas semelhantes em circunstâncias

diferentes.

Quanto à questão dos métodos de discussão, resta-nos questionar se existe

somente um método filosófico no Ocidente que comprove a sua total

diferença em relação às formas de trabalho orientais. As práticas do pensar

filosófico estão presentes, praticamente, em todos os autores asiáticos. A

ênfase com que são utilizadas, porém, é bastante variável. A apresentação

dos textos filosóficos orientais também é bem diversa, o que a torna

relativamente singular em relação aos trabalhos ocidentais. Isso

descaracteriza, por conseguinte, o pensamento oriental como Filosofia?

Acredito que, por todos estes motivos, o pensamento oriental poderia ser

chamado de Filosofia. Mas agora, faço uma consideração última que julgo

ser bastante significativa: e porque o pensamento oriental tem que ser

Filosofia? A luta de alguns especialistas em comprovar que o saber asiático

merece respeito foi mais do que eficaz em comprovar nosso

desconhecimento acerca do mesmo. No entanto, precisamos submeter estas

formas de pensar a idéia que temos de Filosofia para considerá-los como

importantes? Ou seja, eles só podem ser objeto de estudo se passarem pelo

crivo dos conceitos ocidentais? Usualmente, os autores despidos de

maiores preconceitos têm usado o termo Filosofia para designar estes

saberes, sem grandes complicações. No entanto, há uma grande resistência

nos meios acadêmicos em reconhecer a legitimidade dos mesmos, seja por

sua tradição histórica, ou por seus conteúdos. Também sobrevive o hábito

de exigir respostas do “pensamento oriental” para certas questões como se

ele fosse um único sistema filosófico, uma entidade que permeia o pensar

de todo o continente asiático. Um breve olhar sobre qualquer bom manual

do assunto já nos permite observar, no entanto, a multiplicidade de escolas

e correntes filosóficas que existiram na Índia e na China desde a

antiguidade, o que torna tal questionamento praticamente impossível.

“Invenção ou Descoberta”?

Nos anos 50, o pesquisador inglês Joseph Needham iniciou uma das tarefas

mais espetaculares da História da Ciência: recompor o passado da ciência

chinesa, avaliando cuidadosamente sua estrutura, eficácia e regularidade. E

qual não foi sua surpresa ao descobrir, gradativamente, que várias das

“invenções” ocidentais haviam sido criadas, séculos antes, na China?

O trabalho deste pesquisador foi revolucionário em mostrar dois aspectos

importantes da ciência oriental. Primeiro, que ela existia, sob uma forma

organizada, e produzia saberes com certa regularidade; e, segundo, que

apesar dela não estar baseada nos mesmos métodos e teorias ocidentais, ela

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possuía eficácia, que podia ser comprovada inclusive pelos nossos critérios.

Mais do que isso, Needham, demonstrou a originalidade e as limitações da

ciência chinesa em relação ao restante do mundo, assegurando, por

conseguinte, a capacidade inventiva das outras civilizações asiáticas. È

importante ressaltar a contraposição das idéias de “descoberta” e

“invenção”, posto que a primeira parece se dar de forma espontânea,

enquanto a segunda é resultante de um longo processo de investigação. Em

geral, se designava que o Oriente havia sempre “descoberto” as coisas (o

papel, o leme, etc,) como se tais não fossem frutos de raciocínio, e sim do

acaso. Needham provou, por conseguinte, que a Ásia podia “inventar”

também, e concluir de forma articulada a construção do conhecimento.

O preconceito que existe atualmente com as práticas científicas orientais

decorre, portanto, de três problemas fundamentais: primeiro, o não

reconhecimento, por parte da academia, de outro sistema de pensar que não

seja o ocidental; segundo, a reserva de mercado, diante do surgimento de

técnicas alternativas; terceiro, o acesso a esses saberes demanda um

relativo tempo de estudo, e a presença de poucos profissionais capacitados

têm favorecido o surgimento de falsários, que denigrem o processo de

afirmação das ciências orientais.

Conclusão

Estudar a História oriental é, portanto, uma necessidade. Ninguém precisa

virar um especialista no assunto, mas acreditamos que seja imprescindível,

para os historiadores, dominar alguns elementos das culturas asiáticas, que

possam ser adicionados ao seu instrumental teórico, metodológico e de

conhecimento gerais. Este campo não apresenta mais dificuldades do que

qualquer outro, a não ser pela distância que temos mantido em relação a

ele, e ao preconceito que sofre. Cerrar a porta para os estudos asiáticos não

diminui sua premência, nem a nossa ignorância. Porque, então, não estudar

a China, a Índia ou o Japão? Não se trata apenas de conhecer algo novo e -

ao mesmo tempo -, antigo, mas de abrir caminhos que nos permitam

questionar a nós mesmos, e o que temos feito para compreender melhor o

mundo.

Sugestões de Leitura

Uma leitura indispensável para se pensar a questão do orientalismo

atualmente é o livro de Edward Said, Orientalismo (São Paulo: Companhia

das Letras, 1996). Sobre como analisar conceitualmente a questão da

cultura e do pensamento asiático, ver os artigos de Raimon Panikkar,

Religion, Filosofia y Cultura (na internet em http://them.polylog.org/1/fpr-

es.htm) e de François Jullien, Da Grécia a China, ida e volta (Revista

Ethica, vol. 9, numero 1-2, 2002, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho,

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2004). Uma excelente coletânea de textos sobre o caso chinês está presente

em China e o Cristianismo (Petrópolis: Vozes, 1978), e podemos consultar,

ainda, o livro de Dawson, R. El Camaleon Chino (Madrid: Alianza, 1970).

Como manuais sobre História da China e da Índia, indicamos o livro de

Jopert, R. O Alicerce Cultural da China (Rio de Janeiro, 1979) e Allchin,

Índia Antiga (São Paulo: Abril Cultural, 1998) que, apesar de ser uma obra

de divulgação, contém informações atualizadas sobre as questões

relevantes da história antiga indiana.

RETER A CENTRALIDADE:

O SENTIDO DE HISTÓRIA PARA OS CHINESES

Quando se analisa o ideograma shi 史- „história‟ - a interpretação clássica

do mesmo nos indica uma mão que segura um pincel, ou estilete; "história",

neste sentido, significa então anotar, registrar, escrever o passado.

Em sua forma sintética, no entanto, shi parece englobar na parte superior o

ideograma zhong 中- meio, centralidade. Isso poderia significar que

história representa, também, "reter a centralidade"? O que viria a ser isso?

Reter o fio condutor

Significaria que, desde o início, quando os chineses começam a fazer

história - e isso teve origem, provavelmente, bem antes de Confúcio - o ato

de registrar o passado não significa apenas anotá-lo, mas também, guardar

o fio condutor que o permeia, que o estrutura, entre as tensões da

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permanência e do desaparecimento. A história acontece em ciclos, para os

chineses; trata-se, então, de perceber em que momento deste ciclo estamos.

Estamos numa fase de ascensão (yang) ou dissolução (yin)?

Esta estrutura macrocósmica se manifesta na reprodução das épocas

dinásticas; o que é a alternância de casas imperiais senão o inevitável ciclo

de mutação, de concretização ou dissolução? E, no entanto, não é isso

justamente a única coisa que permanece - a mudança?

A história é uma literatura

A história é um escrito, na China, que se supõe "baseado em fatos reais".

Se há uma metodologia em sua constituição, trata-se da busca obsessiva

por documentos, fontes, escritos, memoriais, datas e objetos materiais que

comprovem uma tese. Desde cedo, os historiadores chineses são arquivistas

e bibliotecários especializados. Confúcio foi o primeiro deles, e Sima Qian

(séc. -2 -1) aperfeiçoou estes procedimentos. No entanto, esta mesma

literatura se assenta em opiniões. Os autores mais decididos pensavam a

história como uma interpretação, uma metáfora da realidade, impossível de

ser reconstituída em sua totalidade - e por causa dessas opiniões, como foi

o caso de Sima - podiam chegar a ser punidos severamente, quando suas

análises iam de encontro ao senso comum ou a um conjunto de interesses

escusos.

O sentido de verdade

Esta história é, antes de tudo, um parâmetro atemporal - ela mostra o

passado, para que se compreenda o presente e se planeje o futuro. Confúcio

disse: "mestre é aquele que, por meio do antigo, revela o novo". Sobre a

história, então, recai a importante responsabilidade de construir e

fundamentar "verdades" sobre a vida, a política, a virtude e a moral.

Eis a razão pela qual, muitas vezes, o compromisso de um historiador com

o poder estabelecido degrada a força da própria história, na China. Se ela

nasce para guardar o fio condutor dos acontecimentos, ela é, ao mesmo

tempo, manipulável por ser literatura. Disso decorrem incalculáveis

polêmicas, divergências seculares de interpretação, debates incessantes

sobre o sentido de uma ou outra informação ou acontecimento. A

descoberta de um antigo texto perdido pode significar tanto o abalo de

concepções já estabelecidas como também, uma possibilidade criativa de

referendar uma postura clássica.

Curiosamente, são os autores que constantemente re-interpretam a história

que se transformam em seus paradigmas (leiam o texto sobre literatura,

para compreender melhor estas questões canônicas). Liu Zhiji, Sima

Guang, Zhuxi, entre muitos outros, foram estudiosos que criticaram e

reescreveram a história que tinham em mãos. O Shitong, de Liu Zhiji

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(período Tang), trata-se inclusive de um manual sobre como se deve

investigar e escrever história, informando-nos sobre os procedimentos de

pesquisa, interpretação, e o fundo moral da mesma. Tratava-se de um

avançadíssimo instrumento metodológico na época, praticamente sem par.

Os avanços e recuos da historiografia chinesa se desenrolaram dentro de

sua própria estrutura de pensamento até o advento do comunismo, o grande

impacto no "modo chinês" de fazer história. Antes do comunismo, a

tentação desta história milenar era tão forte que os europeus que decidiram

estudar a China se renderam a ela, utilizando a tradição como fonte.

A China como problema

Foi esta mesma história chinesa que colocou em xeque o inicio da

historiografia moderna ocidental, nos séculos 18-19, por meio da famosa

"querela" da cronologia. Os europeus que haviam decidido criar métodos

para a história entendiam que a análise de documentos era o cerne, o

método e a comprovação da mesma. Ora, a China dispunha de tudo isso; e,

no entanto, sua cronologia não remetia os primeiros soberanos chineses a

uma época anterior a criação do mundo pelo Deus cristão?

O incômodo desta situação levava ao inevitável conflito entre religião e

ciência: aceitar uma significava, automaticamente, negar a outra. A

história, com um método baseado na razão, punha em dúvida a crença no

criacionismo divino, e tudo por causa de uma civilização distante que não

se preocupara com as origens.

O resultado desta polêmica marcou o tom que, doravante, os europeus

empregariam usualmente com o resto do mundo africano e asiático.

Decidiu-se, arbitrariamente, que a história chinesa continha muito de

mitologia; que muito do que ela afirmava não poderia ser provado

justamente por não se pautar nos métodos ocidentais; e por fim, que quase

tudo sobre os tempos clássicos era lendário ou obscuro - com o que, a

tradução de um ou outro texto de mitologia ou romance referendou esta

concepção de modo aliviante para os historiadores europeus da época.

Nesta época, portanto, é que um autor como Hegel podia se vangloriar de

ter lido "todo o pensamento chinês", tendo acesso à meia dúzia de obras e

concluindo, de forma arrogante, que ali só havia superstição e costume.

A modernidade

Voltemos à época moderna; o início da arqueologia na China, feita por

ocidentais, foi complementada de modo natural pelos textos e pelo

antiquarismo clássico chinês. A teoria marxista é que dá, de fato, uma

virada nas concepções tradicionais. Os comunistas chineses buscaram, de

todo modo, transplantar a periodização marxista para sua cronologia

histórica - há que se perguntar se os mesmos não se sentiam a vontade,

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simplesmente, trocando os ciclos tradicionais por estes "novos ciclos"

importados.

Novamente, a tentativa de utilizar uma teoria externa ao pensamento chinês

só funcionou quando ela se adaptou ao mesmo - a força de uma tradição

não se quebra tão facilmente, e se ela se modifica, é muito mais em virtude

de pressões internas do que por uma imposição dogmática. No entanto, a

história da China oferecia contrapontos interessantes às teorias ocidentais.

Um exemplo clássico é a questão do feudalismo na China - se tal sistema

existiu na história desta civilização, ao que tudo indica, ele ocorreu durante

o período Zhou (sécs. -11 -3), pois todas as características econômicas e

sociais da época apontam para isso - ou seja, ele teria acontecido muito

antes da Europa. Não é, então, um anacronismo temporal e teórico

classificá-lo como tal? Do mesmo modo, a idéia de "Idade Média" não

significa nada para os chineses, a não ser que estejamos utilizando-a como

medida temporal - e neste período, a China Tang era simplesmente a maior

civilização do mundo.

Atualmente, as propostas comunistas continuam a ser utilizadas na

historiografia chinesa, mas estão plena e gentilmente contaminadas pela

historiografia clássica, provavelmente num desejo consciente dos próprios

chineses de revalorizar o seu passado. Os projetos do futuro não envolvem

mais, felizmente, a aniquilação da antiguidade, como se pregou no tempo

de Maozedong. O sentido de história, mais uma vez, é o da continuidade -

reter a centralidade, pensar sempre o que permanece e não o que já se foi,

pois o antigo é o alicerce do novo. A mudança é inevitável, assim como a

existência é extinguível. A história, então, é a preservação de tudo o que

pode significar a idéia de ser chinês; e conseqüentemente, os chineses a

trazem dentro de si.

Os ciclos dinásticos

A história tradicional se orienta, como dissemos, por ciclos dinásticos. Os

tempos anteriores a eles são de difícil análise, e o que temos de mais

recente e preciso sobre isso veio com a arqueologia. A China tem um

passado proto-histórico riquíssimo, tão antigo quanto o africano ou

europeu. A cultura de Zhoukoudian indica a existência do paleolítico;

depois, as culturas de Longshan e Yangshao apresentam as cerâmicas e

rudimentos do que seriam as civilizações organizadas posteriores.

Sobre isso, pouco fala a história chinesa clássica; eles são sempre

chamados de "tempos antigos", quando os seres humanos viviam em

grande dificuldade para lidar com a natureza. As descrições destas épocas

remotas se assemelham muito a do cotidiano das comunidades indígenas

brasileiras; é provável que os primeiros historiadores chineses agissem

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como antropólogos, e ao perambular pelo interior do país, encontraram

comunidades que preservavam este modo de vida, supondo-o ser primitivo:

No princípio não havia nem ordem moral ou social. Os homens

conheciam apenas suas mães, e não seus pais. Quando famintos,

saía, a caça; quando saciados, jogavam os restos fora. Devoravam

os alimentos com pele e pelos, bebiam sangue, cobriam-se de

couro e de juncos. (Baihutong, de Bangu).

Nos tempos primitivos os homens moravam em cavernas, e

vivam nas florestas. [...] nos tempos antigos sepultavam os

mortos cobrindo-os como uma camada de galhos secos,

deixando-os livre sobre a terra, sem túmulo ou jardim. (Dazhuan

do Yijing)

Este tempo será iluminado pelos patriarcas fundadores da civilização, Foxi,

Nugua e Shen Nong. Os três ensinam aos homens primitivos tudo que

precisam para viver: cozinhar, caçar, costurar, medir os espaços, utilizar os

trigramas (guas), plantar, etc... São sábios, antes de tudo, e não seres

fantásticos ou divinais. Somente na época Han os daoístas os

transformariam em deuses. O mesmo se sucede com 5 soberanos

posteriores, dos quais fazem parte Huangdi (o imperador amarelo) - todos

são seres humanos, mas suas histórias seriam preenchidas por lendas dos

mais diversos tipos.

Estas figuras todas se apresentam, para nós, lendárias, e sobre elas não

temos nenhuma comprovação ainda. O último dos 5 soberanos teria

entronado Yu, o grande, como fundador da dinastia Xia - e aí, as coisas se

complicam um pouco.

Yu é uma figura singular - ele seria o Noé chinês, tendo salvo o país do

dilúvio, mas de modo absolutamente frustrante para nossas mitologias; sua

política de contenção das águas envolveu dez anos de trabalho duro,

construindo diques, canais, pontes, etc. Sem arca ou mensagem dos deuses,

Yu é uma ponte entre um passado lendário e uma dinastia que parece ter

existido de fato.

Até algum tempo atrás, a dinastia Xia era pura lenda. Maurizio Scarpari, no

ótimo e recente "China Antiga" (2009) nos traz, porém, algumas das

evidencias arqueológicas que mudaram o plano da história em relação a

este período. O que mais a China nos reservará sobre estes tempos

obscuros?

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Shang

Os Xia foram substituídos pelos Shang, cujas datas oscilam entre -1600 -

1100. Organizados num sistema de cidades-estado, os Shang constituíam,

contudo, alguma espécie de unidade política, representado por um sistema

monárquico registrado em listas reais, em que se encontram o nome dos

reis, linhagens e clãs. O legado desta civilização é inumerável: desde a

escrita, que surge em carapaças oraculares, ao domínio inigualável do

bronze, passando por avanços inúmeros na agricultura e no domínio dos

animais.

Zhou

Das dinastias, os Zhou constituem a mais duradoura em termos temporais: -

1100 até aproximadamente -256, e aqui a história tradicional chinesa já

dispõe de fontes seguras para se construir.

Os Zhou substituem o sistema administrativo dos Shang por outro, que

fundia atribuições governamentais, econômicas e pessoais. Denominado

Fengjian, este modo de governar pode ser dito, em nosso conceitual, muito

do próximo da idéia de feudalismo, como apontamos anteriormente. A

figura do soberano consiste em articular, dirigir e mediar as relações entre

vários reinos distintos, ligados a ele por contratos de vassalagem. As

comunas agrícolas respondem a estes reis, que muitas vezes guerreiam

entre si, e empreendem uma política quase autônoma em seus territórios.

A tendência neste caso é a fragmentação do poder, fenômeno que passou a

ocorrer em torno do século -8. Estes acontecimentos são denunciados por

Confúcio na crônica das Primaveras e Outonos (Chunqiu), e dão margem a

uma grande especulação ética e política sobre a realidade da época. Surge,

pois, o período das "Cem escolas filosóficas", em que mestres debateriam

como solucionar os problemas da sociedade. Sobraram-nos somente os

relatos daqueles tidos como mais importantes, ou que alcançaram algum

tipo de destaque.

Em torno de -481, os reinos maiores haviam consolidado sua posição de

preponderância e restaram em número de sete, prontos a entrarem num

conflito aberto e declarado ao qual a mediação de Zhou não surtia mais

sentido. É o período dos Estados Combatentes, onde a luta pela supremacia

e por uma nova unificação chinesa desenrolou-se sem tréguas durante

séculos, vindo a terminar apenas em -221 com a vitória total do reino de

Qin.

O tempo dos Zhou é marcado pela criação da teoria do Mandato Celeste -

uma investidura da natureza (ou "Céu") para que uma casa real

administrasse o país. A perda do mandato significa a perda da virtude por

parte dos governantes, e o período de degradação se iniciava. É aqui que os

chineses dão partida a suas interpretações cíclicas da história; cada dinastia

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tem seu período de ascensão e queda; do mesmo modo, cada período

dinástico é comandado por uma visão de mundo introspectiva ou

cosmopolita - em todas as escalas, a alternância da mutação se faz presente,

tal como principio que determina as mudanças permanece sempre o

mesmo.

Império Qin e Han

Que fique claro, a historiografia tradicional chinesa entendeu que os

períodos Xia, Shang e Zhou também foram imperiais, e o que houve foi

apenas uma mudança nas políticas administrativas do mesmo. Portanto, o

advento dos Qin significa uma grande modificação neste panorama, mas

não necessariamente a formulação de algo novo.

Qinshi Huangdi, o primeiro (e da fato, único) soberano Qin assumiu o

poder em -221, e a lista com suas realizações é enorme. Unifica o país,

pesos, medidas, leis, centraliza a administração pública (amparado em seus

conselheiros legistas), cria uma máquina governamental eficaz; por outro

lado, seu mausoléu com milhares de guerreiros de terracota, a construção

da grande muralha, as campanhas militares, a repressão intelectual (com

direito à queima de livros e intelectuais) e social custam milhares de vidas

ao povo. Ao morrer, em -207, uma revolta geral toma conta da sociedade,

que derruba a dinastia numa guerra interna dura, porém rápida. Muito se

discute hoje, entre os intelectuais chineses, os aspectos despóticos de Qin;

mas quantas vidas a mais custariam para a China o período dos Estados

Combatentes? A figura de Qinshi Huangdi, tradicionalmente escalpelada

pela historiografia, está sendo recuperada pela nova visão marxista chinesa.

Há que se perguntar se, realmente, o que este soberano fez não foi muito

diferente dos seus congêneres egípcios, mesopotâmicos, persas ou romanos

- mas na China, os números sempre impressionam por sua magnitude,

dando pouco espaço a reflexões proporcionais. No entanto, o sistema

legista empregado por ele era deveras totalitário, e se era necessário para o

processo de unificação, exasperou rapidamente as estruturas sociais. Muita

força se esgota rápido - o exagero de yang desperta, assim, a força yin, que

dissolve e faz fluir.

Por conta disso, os Han (-206 +220) parecem ter aprendido a lição, tendo

sobrevivido bastante e sofrendo apenas um interregno (os Xin, de +15 +25,

considerados usurpadores), que marca sua divisão entre "anteriores" (ou,

ocidentais) e "posteriores" (orientais) por conta da mudança de capital.

Os Han absorvem a estrutura governamental Qin, mas a suavizam, dando

uma liberdade muito maior ao povo. A China da época se expande, e vive

uma de suas fases de ouro; abre-se a rota da seda, divulga-se o papel (dito

inventado nesta época, mas na verdade bem anterior), expulsam os

bárbaros do norte (que viriam a ser os Hunos, invasores da Europa), a

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economia cresce e expande-se o número de escolas e letrados. O

Confucionismo, adotado como doutrina oficial de governo, favorece um

panorama intelectual e científico rico, repleto de criações inovadoras, que

vão desde a elaboração de teorias cósmicas inovadoras como também, a

invenção do aço, do sismógrafo e da bússola.

Um sistema vasto e pesado como este exigia uma burocracia eficaz, que os

Han conseguiram promover por algum tempo; mas, como manda a história

chinesa, uma dinastia não pode durar para sempre. Incapaz, pois, de

suportar as exigências do seu próprio peso, os Han se desfazem em três

reinos (Sanguo), gerando um novo período de caos. Para o historiador, é a

repetição do ciclo, inexorável.

Tang e Song

Até que, em 618, uma nova casa real aproveita a frágil unificação

promovida pelos Sui (+581 +618) e retoma a união da China em suas mãos.

Estes foram os Tang, responsáveis pela nova fase de sucesso do país.

Enquanto o Ocidente se debatia em calamidades e o Islã se expandia, os

Tang conseguiram manter a coesão política e a integridade do território

chinês, criando a maior nação da época. Reabrem a rota da seda, estimulam

um comércio rico, recebem as religiões do oeste complacentemente (é a

época em que budismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, além das

religiões pagãs chegam) e figuram-se muito mais artistas (sua marca é a

cerâmica tricolor, com temas estrangeiros), poetas - numa miríade deles,

temos Libai e Dufu - e negociantes do que, propriamente, conquistadores.

Mas era difícil suportar as pressões de uma geopolítica tumultuada como a

deste período. Novamente, ao dissolver-se, a China cai na anarquia social e

no conflito. Tem que esperar até a vinda dos Song (+960 +1279), que

juntam os pedaços da civilização e lhe dão um novo caráter. Introspectivos,

dedicam-se a filosofia - na qual Zhuxi, o grande mentor do Neo-

Confucionismo, é seu luminar-, pintura, a porcelana (cuja técnica se

espalha nesta época), descobrem a pólvora e constituem uma cultura

magnífica, de recursos econômicos vastos, mas alheia ao estrangeiro. É

com dificuldade, pois, que eles percebem a chegada dos mongóis de Gengis

Khan - e tendo recursos inúmeros para reagir, ainda assim não oferecem

uma resistência sistemática e organizada, desintegrando-se diante do

invasor.

Yuan

Como tudo que vem pela força, o domínio mongol é efêmero, rápido, mas

deu-se a conhecer pelo seu cosmopolitismo (com exceção da dura

repressão aos chineses) que atraiu inúmeros missionários e viajantes

ocidentais, dos quais o mais destacado teria sido Marco Polo - se este,

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realmente, foi até lá. Sem experiência em governar grandes impérios - mas

apenas, em derrubá-los-, os mongóis foram expulsos em 1368,

atravessando a muralha a pé, numa indignidade ímpar.

Ming

Mas a nova dinastia chinesa, os Ming, incorpora muito da violência de seus

predecessores. Esta dinastia constrói-se sobre um receio ao estrangeiro e

aos movimentos sociais. Tal dilema se reproduz, diretamente, na oposição

entre liberdade individual e econômica; se as corporações Ming produzem

porcelana que vendem ao resto do mundo, preferem, no entanto, que os

mesmos estrangeiros não passem dos portos. A chegada dos missionários

ocidentais - e os portugueses têm a preeminência neste movimento durante

um bom tempo - é recebida com desconfiança. A armada de Zheng He, que

décadas antes singrou todo o oceano Índico e parte do Pacífico, apodreceu

no cais e as tecnologias navais foram abandonadas. A hermeticidade dos

Ming, que com grande dificuldade dialogava com o resto do mundo,

tornou-os míopes a realidade circundante, repetindo o erro dos Song; e em

1644, invasores do norte (os manchus), convocados para debelar uma

revolta interna, aproveitam a oportunidade e se lançam a conquista do

poder. Tornar-se-iam, assim, a última dinastia imperial da China - os Qing.

Qing

Estas repetições guardam, no entanto, algum sentido de evolução. Se os

Ming achavam que sua soluça era isolar-se do mundo, os Qing perceberam

que o ideal, talvez, fosse construir um modelo para desenvolver tais

relações. Mesmo sendo estrangeiros, eles buscaram não repetir erros

cometidos pelos Yuan, e em poucos anos os chineses foram reincorporados

a vida administrativa do país. Os estrangeiros são recebidos nos portos,

podem comerciar, mas sofrem severas restrições e são observados - o

receio convive com a necessidade e a realidade.

Este mundo Qing vai indo bem, mas o processo iniciado já na época Ming,

aos poucos, se manifesta de modo reincidente; há uma dificuldade

tremenda, além de um temor, em se investir em novas tecnologias (elas

podem cair nas mãos do povo, afinal), e a insistência dos europeus em

conquistar novas posições dentro do mercado irrita os imperadores. Alheios

às transformações que o capitalismo impunha ao Ocidente - ainda que os

chineses dessem, indiretamente, sua contribuição econômica para isso - o

modelo autocentrado e xenófobo dos Qing fica obsoleto para lidar com as

novas circunstancias do tempo. O século 19 traria a surpresa desagradável

da modernidade para a China.

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O Período Moderno

Já em sua primeira metade, os ingleses trazem a frota real para as Guerras

do ópio, numa demonstração inesperada e surpreendente de poder. Os Qing

vêem seu mundo ruir aos poucos quando se confirmam, também, seus

temores internos com a revolta Taiping, de inspiração religiosa cristã e com

os Boxers - debelados à custa de uma intervenção militar estrangeira.

Assinando tratados infames, a China vê perder seu espaço, honra e

dignidade no mundo. A última imperatriz, Cixi, é um atestado da

incapacidade absoluta dos manchus manterem o poder - sua habilidade em

negociar é tão lendária quanto sua cegueira política. Ela conseguiu,

deliberadamente, impedir todas as tentativas de reforma do governo chinês

- só assim ela poderia viver em seu mundo de fantasias na Cidade Proibida,

ignorando os acontecimentos no resto da China.

Em 1911, Sun Yatsen articula o processo político que enterra o império e

inaugura a primeira república asiática, de orientação vagamente socialista.

Sun também era um político hábil, mas um administrador limitado. Sua

morte, em 1927, encerra sua decisiva, mas breve, participação no processo

político chinês. Doravante, a sociedade dividir-se-ia entre o governo de

Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a proposta revolucionária do Marxismo,

liderado por Maozedong.

O conflito se arrastaria ao longo de décadas, passando pela invasão

japonesa de 1936 e a segunda guerra mundial. No final, em 1949, o carisma

e a organização dos comunistas expulsariam os restos da república, em

frangalhos, para a ilha de Taiwan. A China se dividiria em duas, situação

que perdura até agora.

A China comunista

Chegamos à etapa final destas unificações e desagregações. O uso de uma

ideologia estrangeira para realizar o novo governo da China foi inédito,

mas não estranho - tratava-se apenas de sinizá-lo, tal como foi feito no

budismo. As experiências péssimas com o capitalismo imperialista também

decidiram na escolha deste modelo de modernização. Entre idas e voltas, a

China voltou a ser poderosa com Maozedong, empregando um sistema

político duro como foi o legista. No entanto, foram-se 50 anos e o país já

sente novos ares de liberdade. A economia anda a todo o vapor, e as

dissensões sociais e políticas vão caminhando - na China, o tempo se mede

em décadas e séculos. Por conta disso, a aparente inimizade de Taiwan e a

China continental tendem a diluir-se, dando-se a aproximação pela via

comercial mas, principalmente, cultural.

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Por fim, o sentido desta introdução histórica...

Se breve, esta apresentação da história chinesa referenda, para os próprios,

o seu sentido de continuidade. Os movimentos se repetem, os ciclos de

alternam e a civilização não cessa de evoluir. Uma estrutura que se

desagrega é a base da futura sociedade; ainda que ela aguarde a estagnação

e a crise, o descompasso entre a realidade e o modo de ver o mundo é

sempre superado (mesmo que isso leve séculos). Ao estudar o passado,

busca-se reter o fio condutor, a permanência, os elementos da cultura que

dão as orientações para a existência e a coesão da sociedade. Esta é a

centralidade. Como disse Liu Zhiji, no Shitong:

O homem vive em sua forma corporal entre o céu e a terra, e sua

vida dura tanto como a de uma mosca de verão, ou como o passo

de uma égua manca, vista por uma ranhura na parede. Assim,

durante todos estes anos ele vive penando, pesando que seus

méritos não serão reconhecidos e lamenta que, logo apos sua

morte, seu nome será esquecido. Por isto, desde os grandes

imperadores, ao reis menores e aos mortais mais comuns, desde o

cortesão aos ermitãos em suas distantes covas e cabanas todo o

mundo, todos, de um modo ou de outro, se preocupam com estas

questões. E por quê?

Porque todos têm seu coração roubado pela ânsia de

imortalidade. E o que é, enfim, a imortalidade? Não e mais que

ter o próprio nome escrito em um livro. Se o mundo não tivesse

livros, se cada época não tivesse seus historiadores, então estes

homens sábios como Yao e Shun, ou os tiranos como Jie e Zhou,

uma vez mortos, e perdidas suas formas, antes que a terra de suas

tumbas endurecesse, o bem e o mal já haveriam se misturado, se

confundindo, e ambas, beleza e maldade, se encontrariam

perdidas para sempre. Mas, ainda que existe o oficio da historia,

ainda que os livros continuem existindo, ainda que os homens

morram e entrem na noite e no silencio eterno, seus atos

permanecerão, brilharam como estrelas da via Láctea.

Assim, quando alguém quiser estudar o passado, a única coisa

que deverá fazer é pegar um livro em sua estante e seu espírito

entrara em contato com o passado. Não necessitará sair de sua

casa e sua vista alcançará mil anos. Verá o que fizeram os bons e

quererá imitá-los, verá o que fizeram os perversos e seus

pensamentos serão introspectivos.

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AULA 2

MIRAÇÕES DO CELESTE:

AS FILOSOFIAS CHINESAS

O que podemos designar como uma "filosofia" chinesa nasceu, de modo

bem diferente, do seu congênere grego. Não nos ateremos aqui se tais

formas de pensamento nascidas na China podem - ou não - ser

denominadas "filosofias"; tal discussão, essencialmente ocidental, xenófoba

e solíptica, só faz desmerecer a tradição clássica deste lado do mundo. Com

raras exceções, como Voltaire, Schopenhauer e mesmo Nietzsche, o

restante dos autores se perdeu em definições efêmeras sobre o tema,

menosprezando de modo arrogante as outras formas de pensar alheias à sua

genealogia.

Disso resulta que uma estrutura de interpretação como a chinesa se torna

incompreensível para nós; milenar, durável, rico, múltiplo e cheio de

novidades, o pensar chinês representa um desafio epistemológico,

constantemente brecado por estas discussões efêmeras. Posto isso, nos

proporemos a analisar a tradição chinesa por ela mesma, independente das

classificações que se lhe queira atribuir. Pela sua própria existência, ela já

merece respeito, e constitui o alicerce fundamental desta civilização.

As raízes

O nascimento do pensar chinês está ligado a um passado temporalmente

insondável. Ainda não temos condições de afirmar quando ou como a

estrutura da filosofia chinesa começou a se consolidar, pois nossos

conhecimentos históricos sobre isso só nos dão indícios. Podemos, no

entanto, estimar algumas aproximações, e suas fases.

Em torno do século -12, no início do período Zhou, uma estrutura

interpretativa da natureza delineou-se no Yijing (o Tratado das Mutações),

que fazia compreender o funcionamento da natureza por meio de duas

coordenadas básicas fundamentais, Yang e Yin. Devemos ter um grande

cuidado ao interpretar estas duas noções, pois elas não são classificações

orgânicas e absolutas de eventos ou substancias - elas são, como dito,

coordenadas para entender o que uma coisa está, em essência, ou em que

posição ela se situa num sistema categórico. Ou seja, uma coisa está em

oposição à outra numa determinada situação - e uma só existe porque a

outra lhe faz uma oposição complementar, necessária para a manifestação

de ambas.

Assim, a luz só existe em função da escuridão; o macho em função da

fêmea, a mesa em função de apoiar papéis, a água em função do fogo, o

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verão em função do inverno, etc... Mas, cada coordenada Yang traz, em si,

a semente de Yin, e vice-versa, como representado no sistema Taiji (o

supremo sistema), aqui identificado:

No Yijing, estas coordenadas são representadas por linhas, e supunha-se

que a identificação de um arranjo ideal de linhas (o hexagrama) podia

mostrar tendências da natureza ou das energias, do que resultou o seu

caráter oracular extremamente marcante.

As seqüências binárias do Yijing foram depois estendidas ao entendimento

das estações, da formação do calendário, da constituição de uma

numerologia, da determinação dos espaços (visuais, materiais e estéticos,

numa junção extensa e complexa), aos estudos da natureza e da ritualística

(um estágio primitivo da sociologia). O conjunto de aplicabilidades do

Yijing penetrou profundamente na ciência antiga chinesa. É possível que o

texto tenha sido redigido em função de observações práticas da natureza,

mas o modo como ele se encontra estruturado manifesta uma interpretação

matemática (e de algum modo mítica) extremamente bem articulada e

raciocinada, capaz de impressionar vivamente autores modernos como

Leibiniz.

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A dinâmica 理(Li) princípio - 氣(Qi) energia

A antiguidade chinesa conhece, pois, uma forma de dualismo, mas que

poderíamos melhor classificar como oposição complementar. Primeiro,

porque uma depende da outra para existir, e cada uma das coordenadas em

análise depende de outra (e não a exclui). Segundo, porque como cada uma

dessas coordenadas apresenta-se em um estágio de "existência" (com

duração limitada), um ser ou objeto "está", e não "é".

Assim, o pensamento chinês desconhece o problema do "ser" (como verbo

ou princípio), e preocupa-se no modo como uma coisa se "concretiza" num

determinado tipo de realidade apreensível. Esta manifestação se dá a

conhecer por uma materialização; o que lhe dá sentido (ou forma, alma,

estrutura) chama-se Li (princípio, estrutura); sua forma é composta por uma

"energia universal", ou vapor, chamado Qi. O conceito de Qi antecipa em

séculos a idéia de que a energia se condensa e se transforma em matéria.

Como sempre, é necessário que haja oposição para haver existência.

Alguns autores procuraram ver neste Li a concepção de alma ou espírito,

mas isso não é correto; Li pode "representar' a idéia de alma, se a

contrapusermos ao corpo. No entanto, Li pode ser também o oposto do

Nada (ou "não está"), se ele representa o motor da existência de algo.

Como foi dito, o sistema yin-yang representa, neste caso, uma oposição

necessária, mas não absolutamente total das coisas. Logo, este sistema

compreende uma complexa rede de categorias que se distribuem,

indefinidamente, na natureza.

Li, como um principio perene que determina o conjunto de características

de uma categoria se contrapõe, igualmente, a concepção de mutação (Yi),

responsável pelo modo como algo se manifesta no real. Ou seja, há um Li

que determina que todos os seres humanos nascem com dois braços,

pernas, olhos, etc. Se isso é perene e uniforme, então, o que se opõe a isso é

a mutação; daí porque as pessoas nascem todas diferentes, e tal regra

também não pode mudar. Há sempre quatro estações do ano, mas cada uma

é sempre ligeiramente diferente da outra. Esta dinâmica nunca muda, e

serve para explicar a multiplicidade das existências.

O surgimento da Ética

Em torno do século -6 este sistema não foi mais suficiente para dar conta

dos problemas que assolavam a sociedade da época. Fome, guerras,

corrupção dos costumes, falência das crenças morais, todas estas

circunstancias - essencialmente recorrentes na época - chegaram a um tal

nível de exacerbação que prenunciavam um cataclismo.

Não houve, necessariamente, uma ruptura com o pensamento antigo. Ao

contrário; entendia-se, em linhas gerais, que a crise era motivada por uma

desconexão do ser humano com este entendimento da natureza. Como

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inventora de algo que lhe é única e especial - a cultura - a humanidade

apegara-se aos aspectos mutáveis da mesma e esquecera como

funcionavam seus princípios ordenadores, causando uma tremenda

perturbação na harmonia entre o ser humano e a natureza (ou, nas palavras

chinesas, entre o "Céu e a Terra"). Assim, o pensar chinês não nasce de

rompimentos, nem se debate com os problemas míticos; ele planeja uma

forma de continuidade, mas que se transponha às necessidades pragmáticas

do cotidiano.

A preocupação dos autores e doutrinas que surgem nesta época é, pois,

encontrar um Dao (via, método), que equacionasse e desse solução a estes

problemas. Estas teorias (e conseqüentes metodologias) abordavam, pelos

mais diversos ângulos, a questão do Dao - seu cerne estaria na política, na

educação, na lei, no próprio ser humano? As diversas interpretações

possíveis originaram um número grande de Jias (escolas), dando origem a

um período conhecido como das "Cem escolas de pensamento".

Confúcio e a Escola dos Letrados (Rujia)

O primeiro dos pensadores a detectar esta crise foi Confúcio, defensor de

uma proposta renovadora para a sociedade. Embora defendesse a cultura

antiga e sua continuidade, o mestre entendia que era necessário investigar a

razão dos problemas para solucioná-los - e a reposta encontrada por ele foi

a deficiência na estrutura educativa, incapaz de conscientizar os seres

humanos sobre o seu papel no mundo.

Confúcio era, portanto, um árduo defensor da vida em sociedade, da

consciência crítica, das artes e da educação. Sua proposta, distante das

explicações religiosas e vagamente metafísica (para isso, o Yijing lhe

bastava), atinha-se as necessidades do povo e da organização

governamental. Reformar, estudar e retificar-se eram as palavras de ordem

de uma ética que pregava o respeito mútuo, as obrigações sociais (Li, ou

"ritual") e a manutenção da Harmonia.

Apesar de seu discurso - ou por causa dele, justamente -, Confúcio foi

odiado por vários políticos da época. Nobres, reis, ministros e funcionários

formavam um ativo time de antagonistas do velho professor, tentando

inclusive matá-lo numa oportunidade. A doutrina do mestre parecia

defensora de uma velha ordem, de contornos até mesmos conservadores,

mas exigia honestidade, probidade e sabedoria. Isto estava muito longe dos

interesses reais das classes dominantes.

Como disse Chan Wing-tsit, em seu breve (porém elucidativo) artigo

"História da Filosofia Chinesa", de 1939, a trajetória do pensamento chinês

se dá como numa longa sinfonia, em que o Confucionismo constitui o

fundo estruturante da sociedade chinesa, e que volta de tempos em tempos

para o centro das discussões filosóficas, a fim de ser reformulado. Esta

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observação é bastante profunda e pertinente. O pensamento de Confúcio,

apesar da oposição inicial dos governantes, foi assimilado pela sociedade, e

tornou-se o seu modo de entender-se e expressar-se. Aquilo que o povo não

sabia dizer por si de suas histórias e tradições, o Confucionismo parece

explicar. Este sucesso conquistou, gradualmente, todos os níveis da

civilização chinesa.

Os seguidores de Confúcio formaram um núcleo de estudos denominado

Rujia (escola dos letrados), cujo objetivo era aplicar o pensamento

Confucionista na reforma social e, se possível, desenvolve-lo. Neste

primeiro momento, os seguidores de maior destaque foram Mengzi

(Mêncio) e Xunzi. Ambos consolidaram o papel do Confucionismo

filosófico, embora tenham criado linhas diferentes de pensamento. Mengzi

acreditava numa bondade inata do ser humano, no papel do povo na

administração do governo (o mandato celeste) e na ênfase dos valores

morais. Quanto a Xunzi, defendia um pessimismo natural em relação à

sociedade e as pessoas, mas acreditava indefectivelmente na questão da

educação.

O Confucionismo retornaria a voga no período Han (sécs. -3 +3), quando

se tornaria doutrina oficial da dinastia. Mais adiante, analisaremos este

desenvolvimento, entendendo os ciclos pelas quais a doutrina seria

revigorada.

O Daoísmo

Um grupo de pensadores dessa mesma época denominou-se "seguidores da

via (grafados como „dao‟ ou „tao‟)", defendendo que a solução para a crise

da sociedade envolvia um abandono dos vícios humanos e o desapego a

materialidade. Eremitas, misteriosos, distantes, os daoístas afirmavam que

"A Via" era uma, a própria natureza. As instituições políticas deviam ser

abandonadas, um certo hedonismo e a liberdade eram a verdadeira lei

humana.

Laozi, Zhuangzi e Liezi foram seus principais representantes, embora

pouco possa se afirmar sobre sua existência. Se Laozi foi um autor

hermético, Zhuang era um vulgarizador da doutrina, embora seus

pensamentos sejam amplamente apreciados nos dias de hoje. Bem cedo, o

daoísmo aproximou-se da religião popular e fundiu-se a ela, perdendo

muito do seu lado filosófico. Por outro lado, ele se transformou no opositor

complementar do Confucionismo, elaborando e estruturando o pensamento

religioso dessa civilização.

Outras Escolas

Para além de Confucionistas e daoístas, outras escolas tiveram seu tempo e

participação no período das "Cem escolas". Coube aos seguidores de Mozi,

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autor quase contemporâneo de Confúcio, elaborarem um crítica pesada

contra o pensamento dos letrados. Baseados numa moral popularista e

comunitária, os moístas abominavam a nobreza, a cultura antiga e as

diferenças sociais. Pensavam poder mudar o mundo por meio de um

socialismo primitivo, cujos propósitos eram claros, porém radicais demais.

Se angariaram simpatia do povo por um tempo, logo caíram no

esquecimento em função de sua intransigência intelectual e por sua crítica

perseguidora aos Confucionistas.

O mesmo se deu em relação a escola Fajia (escola das leis). Surgida entre

pensadores decepcionados com o andamento da estrutura política

tradicional, os defensores da teoria das leis propunham um rompimento

com o passado, a criação de um Estado forte, calcado em um direito duro e

exigente, e um sistema administrativo rígido e controlador, capaz de inibir

a corrupção e o desregramento. Shang Yang e Hanfeizi foram pensadores

bem sucedidos na aplicação de suas idéias - embora tenham tido um fim

trágico. Hanfei, inclusive, foi um dos principais auxiliares de Qinshi

Huangdi na unificação do império Qin, e o resultado foi o que se viu: a

radicalização serviu algum tempo para estabilizar, mas nunca conduzir. No

fim, repetiu-se o ciclo yin-yang; quando um movimento chega ao extremo,

leva ao seu próprio declínio.

Por fim, os nominalistas (Mingjia), representados por Gong Sunlong e

Huishi, se transformaram nos representantes de um "sofismo" chinês. Sem

uma proposta definida, sua preocupação era o exercício da linguagem como

modo de compreensão filosófica. Para eles, as causas sociais seriam sempre

uma disputa de interesses, cuja competência do ganhador definia seu

sucesso.

A Escola Wuxing

Dentre essas escolas, uma delas conquistou um espaço específico dentro do

pensamento chinês, a escola dos cinco estados - wuxing (ou ainda, agentes

ou elementos). Esta escola inovava o pensamento científico antigo da teoria

yin-yang, complementando-o através da formulação de uma teoria sobre os

estados da matéria (qi). Segundo eles, Qi se concretizava em cinco estados

físicos diferentes: fogo, água, madeira, metal e terra. Estes estados se

engendravam em um ciclo de criação e destruição, dando dinâmica ao

processo de transformação da realidade.

Por esta teoria, as criaturas e coisas têm, portanto, uma certa quantidade de

Qi materializado num certo estado; do mesmo modo, a regra da mutação

determina que cada exemplar de uma mesma categoria tenha suas

especificidades (tamanho, intensidade, adição de outras formas de qi, etc.)

que lhe garantem sua singularidade. A teoria Wuxing não só organizou as

categorias classificatórias da ciência chinesa como também, deu uma base

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para o surgimento e a consolidação da medicina. Esta junção manter-se-ia

até os dias atuais na estrutura do pensamento tradicional.

O Período das grandes sínteses

A época Han enseja a formação das grandes sínteses, realizadas por autores

que se colocavam acima das discordâncias escolares. Em linhas gerais,

porém, entendeu-se a coexistência do Confucionismo (no espaço político,

educativo e social) com o daoísmo (no espaço religioso e mitológico).

Empreendeu-se, inclusive, uma dedicada recuperação das obras

Confucionistas, perseguidas durante o período Qin.

Os grandes pensadores deste momento foram Lujia, autor de um tratado

político que defendia um modo de governar liberal, embasado num

Confucionismo de matizes daoístas; Dong Zhongshu, organizador de uma

teoria política que conciliava o mesmo Confucionismo com a teoria

wuxing, justificando a autocracia imperial e comprovando a

individualidade humana; Liuan, autor daoísta preocupado com questões de

estratégia e administração pública; e por fim Wang Chong, um cético

Confucionista cujas observações científicas instigaram o espírito crítico dos

pensadores chineses.

Além destes, a ciência chinesa encontrou avanços notáveis com Zhang

Heng, eminente matemático, geólogo e astrônomo. Tais conquistas não

mantiveram a eternidade do império, mas transformaram-se em condições

definitivas para o avanço da filosofia chinesa.

Momentos de transformação

Durante o período de desunião decorrente do fim da Dinastia Han, a

chegada do Budismo foi a grande novidade para o pensamento chinês. A

vinda de pregadores budistas, provenientes da Índia, foi resultado das

características proselitistas desta doutrina, que acreditava numa pregação

universalista. Inicialmente, os budistas foram associados a um mito daoísta,

e acreditava-se que eles se constituíam numa forma estrangeira dessa

escola. Em breve, porém, constatou-se que estes missionários defendiam

uma disciplina original, capaz de apresentar desafios razoáveis as correntes

tradicionais do daoísmo e Confucionismo.

A proposta budista trazia inovações para a sociedade chinesa. Esta escola

propunha que a libertação individual se encontrava num esforço meritório,

fosse por meio da meditação ou da beneficência. Para as parcelas menos

favorecidas da sociedade, este discurso era extremamente atraente - ainda

mais quando alguns dos pregadores prometiam o paraíso celeste para

aqueles que praticassem boas ações.

Embora os daoístas possuíssem formas de meditação semelhantes as

budistas, uma concorrência estabeleceu-se entre eles. Até então, os mestres

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do Dao não se preocupavam em criar escolas ou templos, buscando muitas

vezes a reclusão no meio das florestas. Os budistas, porém, ofereciam

indiscriminadamente seus ensinamentos, e como não receavam afirmar ter

poderes mágicos - atributo, até então, do daoísmo religioso - logo

arrebanharam um grande número de adeptos, e forçaram os daoístas a rever

sua misantropia recalcitrante.

Quanto aos Confucionistas, pouco afeitos às questões ditas "religiosas", sua

preocupação com o budismo surgiu quando este pareceu afetar a ordem

social. A doutrina estrangeira, defensora de uma concepção de

reencarnação, propunha que a crença em ancestrais não era válida; que as

relações espirituais se sobrepunham as familiares e sociais; que atingir a

plenitude da alma, por meio da meditação, envolvia muitas vezes o

abandono do trabalho mundano; por fim, que estas teorias deviam estar à

frente dos problemas "materiais". Além disso, o discurso budista parecia

individualista em excesso; os Confucionistas acreditavam na reforma

íntima, mas de modo que ela servisse também a comunidade.

Grande parte destas críticas foram elaboradas por Hanyu, o único grande

Confucionista do período Tang. No mais, a escola dos letrados encontrava-

se acomodada, preocupada mais com os sistemas de exames imperiais do

que propriamente com problemas filosóficos. O Confucionismo teria que

esperar a época Song para revigorar-se.

Quanto aos daoístas, sua resposta foi pautada basicamente na obra de Ge

Hong, autor que catalogou e organizou as práticas do daoísmo religioso e

da alquimia. Ge propiciou o surgimento daquilo que, na China, sistematiza

a diferença entre o que é uma discussão filosófica (Jia, „escola‟) e aquilo

que poderíamos dizer "religioso" (Jiao, „ensinamento‟). Assim, quando os

daoístas se referiam aos ensinamentos clássicos, classificavam-no como

"daojia"; suas práticas, crenças e liturgias eram afirmadas, porém, como

"daojiao". A terminologia encontrou ressonância na intelectualidade, e no

final da época Song, os escritos já utilizavam "sanjiao" (três ensinamentos)

para designar a coexistência entre Confucionismo, daoísmo e budismo.

A linha que determina estas separações é tênue, mas interessante; os

Confucionistas nunca construíram um corpo de crenças que classificassem

como "jiao", no sentido religioso, exceto aquelas já presentes no Liji;

quanto aos budistas, sempre foram "jiao", talvez por seu discurso ser,

essencialmente, metafísico.

A questão é que o budismo, para estabelecer-se na China, precisou também

sinizar-se. Frente aos desafios impostos por uma cultura milenarmente

organizada, os budistas buscaram adaptar seu vocabulário e conceitual a

língua chinesa. Trouxeram uma nova iconografia, inspirada na Rota da

Seda, e traduziram textos do sânscrito e do páli que hoje só se encontram

no budismo chinês. As grutas de Dunhuang, patrimônio mundial localizado

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no norte do país, constituíram uma vasta biblioteca de textos originais

chineses e indianos que foi redescoberta, somente, no período do final do

séc. 19.

Note-se que o budismo, curiosamente, não promoveu grandes autores

filosóficos (não incluímos aqui os patriarcas, claro), e nem desenvolveu

grandes aprofundamentos teóricos; a grande novidade dos chineses foi a

elaboração do método Chan (no japonês, Zen), que deu um novo caráter as

formas de busca iluminativas para o budismo. O centro do Chan é o

sistema de meditação, considerado "rígido e duro" para os antigos padrões

budistas - no entanto, o mesmo se mostrava capaz de promover avanços

físicos e espirituais rápidos e destacados, promovendo assim mudanças nos

aspectos disciplinares do budismo.

Momentos de Introspecção

Durante a época Song, um novo movimento começa dentro do mundo do

pensamento chinês. O Confucionismo, estagnado pela assimilação ao

sistema político imperial e incapaz, até então, de responder aos desafios

metafísicos budistas, encontrava-se num momento de introspecção e

renovação.

O grande nome desta profunda reforma no Confucionismo foi Zhuxi (1130

- 1200). Zhuxi não foi, obviamente, o único autor de seu período; precedido

por pensadores como os irmãos Zheng, que já vinham apontando a

necessidade de uma avaliação dos conceitos Confucionistas calcada num

sistema racionalista, Zhuxi faz, porém, uma modificação completa na

estrutura da Rujia. Ele praticamente desmontou o sistema Confucionista,

analisou suas partes e apresentou-o, novamente, por meio de uma estrutura

que revelava o seu funcionamento. Fez mais, ainda; buscou na cosmologia

a raiz e os fundamentos pelos quais o mundo se estrutura, dando uma

resposta que poderíamos classificar como "científica" à metafísica budista.

Zhuxi defendeu a perenidade do universo; a matéria (Qi) sempre esteve,

está e estará em mutação, não tendo origem nem fim. Este é o princípio

(Li) que rege o cosmos. A questão da origem, bem como do sentido da

vida, pregada pelos budistas, é uma perda de tempo, um objeto

inalcançável criado pela imaginação; "estamos", simplesmente. O problema

da vida comum foi resolvido pela ética, já analisada por Confúcio e seus

seguidores - devemos buscar um meio de conviver baseado num

pragmatismo atual, interessado em nossa máxima preservação. Por fim, tal

conhecimento só se atingiria gradualmente, pelo estudo - a propensão dos

seres é uma potência, mas que apenas se realiza pelo esforço e

desenvolvimento individual.

Visto assim, Zhuxi reafirmou muitos dos conceitos defendidos por

Confúcio, mas o fez dentro de uma nova roupagem. Seu brilhantismo

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estava em cumprir, justamente, um desígnio do velho mestre: "sábio é

aquele que, por meio do antigo, encontra o novo".

Zhuxi é considerado, ainda hoje, um dos grandes nomes do Confucionismo

após Mêncio. Seus comentários aos clássicos e sua volumosa obra foram

incluídos no cânone dos letrados. Seu trabalho nos fornece muito sobre o

sentido interpretativo que temos do Confucionismo atualmente.

Desdobramentos Modernos

Mas o pensamento chinês não parou de evoluir. Numa apresentação sucinta

como esta, é bastante difícil abranger a extensão de autores e de propostas

filosóficas. Devemos nos ater, pois, as linhas principais.

No período Ming, uma nova linha teórica desdobrar-se-ia no panorama

filosófico, a escola da Mente („xinxue‟ ou „xinjia‟). Seu questionamento é

moderníssimo, e antecipa em séculos a construção dos problemas

principais da Filosofia da Mente no Ocidente. Os pensadores desta linha

renovadora buscavam entender o que era, e como funcionava, aquilo que

podia ser classificado como Mente (xin). Tal consideração existia em

função das conquistas empreendidas por Zhuxi no campo do

Confucionismo; 1o, não aceitar, deliberadamente, o argumento da "alma"

como sede da razão e do raciocínio; 2o, se tal existe, então ela deve ser

investigada como um fenômeno físico, único sobre o qual se pode estipular

algo; 3o, a sede da razão é, então, aquilo que podemos investigar de forma

consciente, que é nossa própria Mente.

Já no período Song um autor, chamado Lu Xiangshang, havia atentado para

este problema; no entanto, foi Wang Yangming, da época Ming, quem

decidiu aprofundar a investigação do problema.

Para ele, razão e mente eram o mesmo, e se processavam como um

fenômeno físico. Por causa disso, o conhecimento sobre as coisas podia ser

"desperto", imediato, se a razão compreendesse ou percebesse, de átimo,

como algo se processa. A investigação do mundo externo poderia ser, pois,

uma investigação do interno - e consequentemente, todo o universo está

contido no ser, tal como ser está contido no universo.

Tais assertivas nos levam a perceber, de modo inequívoco, uma influencia

budista no discurso de Wang, mesmo que este disesse ser um letrado. No

entanto, já percebemos que a estrutura do pensar chinês tende a síntese, e

não à exclusão. Wang, pois, foi o contraponto de Zhuxi.

As implicações cientificas e éticas da obra de Wang são interessantes; pode

realmente uma pessoa conceber, por exemplo, um outro planeta sem ter

estado lá? Segundo Wang, isso é tão possível quanto imaginarmos uma

experiência cientifica que, no final, acaba dando certo. Ao concebermos

algo, apenas o fazemos por que tal já está em nós.

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O surgimento do pensar contemporâneo

A última fase da China imperial, durante a época Qing, constitui um

momento de perda de iniciativa intelectual entre os chineses. Embora

alguns autores gostem de afirmar as grandes realizações do período, como

a constituição do Siku Quanshu (a grande biblioteca de livros, ver o ensaio

sobre Literatura deste volume), no geral o período Qing - exceto no final - é

pobre de autores interessantes.

Isto se deve, em muito, ao fato desta ser uma dinastia estrangeira,

preocupada mais em reprimir vozes nativas do que estimulá-las. Algo

semelhante havia ocorrido na época da dominação mongol - naquele

momento, o único grande pensador foi Yelujucai, que convenceu os

dominadores a não transformarem o país numa grande estepe, conseguindo

preservar a cultura chinesa e a estrutura administrativa imperial.

Os Qing se estabeleceram, pois, como reacionários e conservadores. Não

incentivaram o novo, senão num sentido estreito. A chegada dos europeus

foi ainda mais impactante; os chineses, com uma tradição de pesquisa e

conhecimento científico, viram-se cada vez mais superados pelos

estrangeiros, ao ponto de praticamente limitar suas visões filosóficas ao

campo moral, numa vã esperança de que isso salvaguardasse sua cultura.

Caquético, o pensamento chinês desta época sofria de superficialidade e de

dinamismo; recusava os desafios intelectuais, ao invés de encará-los e

assimilá-los. O ressurgimento de um ímpeto intelectual só viria,

novamente, com a crise. Foi o que ocorreu, finalmente, no ocaso dos Qing.

Os nomes mais importantes desta época - Kang Youwei, Liang Qichao,

Zhang Binglin e Liu Shipei - partem sempre de um conjunto de premissas

básicas consagradas no pensamento Confucionista, mas endogenamente

ligadas ao raciocínio clássico chinês; 1o, trazer o campo de discussões para

o âmbito pragmático, para que se pudesse capturar o princípio dos

problemas; 2o, que contribuições os desafios propostos pelas formas de

pensar ocidentais poderiam proporcionar ao pensamento chines?; e, 3o,

qual o método mais eficaz para solucionar estes problemas?

As múltiplas propostas existentes envolviam, no geral, uma reformulação

dos procedimentos éticos e educacionais da sociedade. O ânimo e a

esperança, concomitantes a necessidade e ao desespero de reformar a China

permitiram que, com a ascensão da república (uma concepção política

ocidental), Sun Yatsen empreendesse um novo impulso na intelectualidade

e para a filosofia chinesa, incorporando muito do trabalho realizado por

estes autores. No entanto, os problemas econômicos e políticos do país

exigiam mais, e a resposta para isso só viria com o comunismo maoísta.

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O Comunismo de Maozedong

Não devemos ser ingênuos com o comunismo chinês, uma criação derivada

da teoria marxista com uma brilhante inserção de valores antigos. Mao era

um bom conhecedor do marxismo, mas era melhor ainda da realidade de

sua sociedade. Adaptando o expediente revolucionário para uma nação

agrícola, Mao defendeu ainda um resgate de antigas filosofias, tais como o

Legismo e o Moísmo. Mao tinha um interesse em particular pelo regime de

Qin, que teria unificado a China a custa de grandes realizações. Para ele, o

legismo trazia uma série de considerações sobre a economia chinesa que

encontravam eco, desde a antiguidade, até as épocas recentes. A

objetividade das políticas legistas também lhe pareceram eficazes, e muito

das acusações que pesam sobre a lei e o sistema político chinês de hoje

devem-se a esse "revival" totalitário. No curto período chamado das "Cem

flores", na década de 50, Mao conclamou os pensadores a criticar e avaliar

o regime político chinês. Em breve, as discordâncias e críticas culminaram

numa perseguição aos pensadores ditos "revisionistas", e na afirmação de

uma visão dogmática. Tempos depois, um dos assessores de Mao, Lin

Biao, conspirou contra o governo, foi expurgado e morto em circunstâncias

estranhas, e realizou-se uma grande campanha na China chamada (e

publicada) de "Crítica a Lin Biao e Confúcio"! Tais ecos mostram que, nem

de longe, a teoria socialista fez desaparecer a cultura antiga.

Ainda é cedo, contudo, para analisar por completo o caráter da influência

marxista na China. Sinizado, o marxismo hoje em dia é empregado em

outros sentidos bastante diferentes da teoria original. Como afirmou Denis

Blodswoord em seu "Imagens da China", talvez Mao seja esquecido, como

pode também tornar-se "Maozi" - tudo dependerá de como sua herança será

interpretada.

O Futuro

A redescoberta do pensamento chinês vem se processando em frentes

diferentes. Desde a década de 30, tanto na China como em outros países

onde residem pensadores chineses, o resgate do pensamento tradicional

vem sendo feito num sentido que poderíamos novamente entender como

opositor e complementar. Por um lado, temos pensadores como Hu Shih,

Chan Wing-tsit ou Feng Youlan que se detiveram, fundamentalmente, no

resgate da tradição chinesa e sua divulgação no Ocidente; por outro, temos

uma grande leva de autores cujas análises misturam, de modo original, as

contribuições ocidentais com uma ou outra escola tradicional chinesa (um

excelente estudo sobre esta situação atual é o de Chung-Ying Cheng e

Nicholas Bunnin, "Contemporary Chinese Philosophy"). O Confucionismo,

em si, está sendo reavaliado tanto em Taiwan como na China continental,

nas suas formas filosóficas e sociológicas.

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Os desafios, pois, são outros. Para os chineses, será o de continuar a

entender as operações entre princípio e energia, perene e mutável, que se

desdobram sobre sua forma de pensar; para os ocidentais, porém, deverá

ser o de penetrar neste mundo, que lhe parece ainda tão inacessível ainda

que convivam no mesmo planeta...ambos são os opostos complementares,

numa dimensão universal do problema; e todas as vias são mirações do

celeste.

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AULA 3

O ‘POVO AMARELO’:

A CIVILIZAÇÃO DOS TRÊS RIOS E SUA SOCIEDADE

A sociedade chinesa é gregária, e privilegia-se como detentora dos direitos;

o indivíduo se realiza, neste meio, tanto quanto ele conseguir anular-se a si

mesmo, dissolvendo-se na multidão. E o paradoxo chinês não termina por

aí; ao realizar-se, este mesma pessoa que buscou um dia ser apenas mais

um, passa a ser um destaque entre os seus, um modelo a ser seguido.

O ideal de uma vida familiar, comunitária e unida, é um dos aspectos

fundamentais da ideologia chinesa, vindo desde a antiguidade e

sustentando-se de modo incomum através dos tempos. Pode ser, talvez, um

dos fatores de coesão desta mesma sociedade; mas esta forma de pensar

também defende que, para realização desta coesão, o individuo deve

aperfeiçoar-se, estudar, dominar seus sentidos, desejos e metas. Disso se

conclui que o macro-cosmo da idéia de sociedade, na visão chinesa, não

abre mão de modo algum do micro-cosmo - o ser humano, único-, e mesmo

a sua integração total (ou será submissão) depende, justamente, da

construção de seu senso crítico.

O que parece, pois, tão moderno em nossos discursos de inclusão é, ao

mesmo tempo, a constatação de como as relações de poder podem

estabelecer-se por meio de relações culturais únicas. Se os chineses

entendem alguma idéia de cultura, é para que ela, justamente, enquadre o

indivíduo; ao mesmo tempo, se depende do mesmo aceitar e entender tais

imposições, isso lhe constrói a capacidade crítica, sempre tão necessária

para a compreensão das estruturas sociais.

Contudo, isso não parece tornar os chineses mais críticos que qualquer

outro povo no mundo - ao contrário, sua paciência estóica, sua capacidade

de resistir a períodos longos de estagnação e conflito, demonstra a

existência de um senso cultural capaz muito mais fortemente de articular a

sobrevivência da tradição do que, propriamente, destruí-la. Há, pois, algum

elemento que torna eficaz a continuidade da própria sociedade sobre os

indivíduos? A tentação da milenaridade atrai aqueles que buscam fórmulas

de administração social mais eficientes; no entanto, é possível que esta

durabilidade seja provocada por condições e interpretações que os próprios

chineses realizaram sobre sua sociedade. Neste capítulo, então,

analisaremos o que pode ser dito desta visão chinesa sobre uma sociedade

ideal.

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A origem Matriarcal

A sociedade chinesa, muito provavelmente, surgiu articulada por clãs

matriarcais. Nos tempos primitivos, a mulher parece ter tido um papel

preponderante como líder social, o que se apresenta em evidências

arqueológicas. Os daoístas guardam consigo, igualmente, o mito da mãe-

terra como provedora de toda criação. Mais uma peculiaridade parece

comprovar isso; a palavra "nome", em chinês (equivalente ao nosso

sobrenome familiar) é formada por dois ideogramas, "mulher" e "vindo", o

que quer dizer que o nome de alguém "vem de sua mãe". Sabedoria

atemporal chinesa: pode-se sempre saber quem é a mãe, mas o pai é uma

garantia de confiança.

Mas quando começam os tempos documentados da história, a sociedade

patriarcal já estava estabelecida. Quanto a mulher, caberá sempre lutar pela

sua posição na sociedade, caracterizando uma tensão que inevitavelmente

se acentuará ao longo dos milênios.

O indivíduo como parte da sociedade

Os chineses entendem, desde a antiguidade, que um ser humano se constrói

junto aos outros. Não há pessoa que possa ser dita humana se não tiver sido

construída pela educação e o convício social. Mêncio, Xunzi e outros

autores Confucionistas discutiriam se, ao nascer, o ser humano é bom ou

ruim, séculos antes de Locke, Hume e Rousseau. A solução foi dada, ao

final, em torno do séc. -2 por Dong Zhongshu, pensador que afirmava que

o ser humano tinha propensões 勢 (shi) naturais, derivadas da existência de

um agente ou outro (água, fogo, metal, madeira e terra) em maior

quantidade na sua constituição física - ainda assim, no entanto, acreditava-

se que o ser humano vinha com um potencial maior para o bem do que,

propriamente para o mal. A vitória de Mêncio neste quesito se deve em

função de duas afirmações; primeira, que se o ser humano não fosse bom

por natureza, não se preocuparia em constituir sociedades ou leis que o

protegessem e o ajudassem - o caos seria, assim, absoluto. Além disso,

pessoas más não se preocupariam em criar leis, a não ser para se proteger

uma das outras - mas quem as seguiria, se todos fossem maus? O segundo

argumento se baseia na idéia de que esta preservação, garantida pela

própria sociedade, é positiva. Pode ocorrer que as relações sociais de

equilíbrio não sejam aplicadas, mas isso se daria em função da ignorância

ou de uma maldade que pode ser cerceada. Logo, a sociedade existe para

garantir ao indivíduo, desde o seu nascimento, a sobrevivência - e o ser

humano, consequentemente, garante a sociedade a sua existência, ao dar

continuidade a este encadeamento. Este conjunto de relações, portanto, é

positivo - e logo, calca-se no bem.

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Assim sendo, um chinês vem ao mundo com potencial de ser humano, mas

só se realiza em convívio com os outros. Abandonado numa floresta, por

exemplo, quanto tempo ele sobreviveria? E, se fosse adotado por macacos,

quais seriam seus modos e valores? Tal dívida com a cultura e a sociedade

é constatada desde cedo pelos chineses, e por isso é tão forte o desejo de

integração.

A Família (jia)

A família, e em escala maior, o clã (shizu), são os pilares da estrutural

relacional da sociedade chinesa. Já nos tempos antigos, teias complexas de

parentesco orientavam as relações de poder, devidamente estudadas por

Marcel Granet em seu ótimo livro "A civilização chinesa" e também por

Leon Vandermeersch em "Wang Dao, la voie reale".

Estes conjuntos familiares ordenavam, organizavam e pressionavam a

sociedade de acordo com seus interesses particulares. Tal é a necessidade

de coesão dessas redes que Sima Qian, nos sécs. -2 -1 conseguiu, no Shiji,

reconstruir parte delas (na verdade, as famílias nobres), explicando suas

origens, ascendências e conexões possíveis. Isso era demasiado importante;

mostrava quais clãs possuíam antiguidade, respeito, poder e

principalmente, uma ancestralidade digna de louvor. Este fator referendava,

para uma família, o seu sucesso em integrar-se a sociedade e administrar,

condignamente, seus negócios - ou ao menos, era o que eles buscavam

representar socialmente.

A perenidade deste sistema é incrível dentro da sociedade chinesa, e

tradicionalmente ele se confunde com outras instancias da vida política,

social e econômica. Nas comunidades interioranas, os clãs organizavam a

divisão do trabalho, escolhiam os possíveis jovens que poderiam se

candidatar aos exames imperiais, julgavam e puniam os crimes menores,

administravam causas legais e exerciam funções religiosas nos templos

dedicados aos ancestrais. Já nas cidades, os clãs agiam como grupos

econômicos e políticos, formando corporações e partidos bastante

influentes no cotidiano e na administração pública.

Obviamente, estes esquemas não se aplicam uniformemente na sociedade.

As parcelas mais pobres da população já sofriam de problemas que

consideramos modernos; dissoluções familiares, dificuldades de emprego,

ausência de uma coesão interna da família. Há um ideal de família,

portanto, mas que se realiza de modo variado - e muitas vezes díspar -

dentro da própria sociedade.

As relações de poder

Muitas vezes a estrutura familiar se sobrepõe ao Estado, como é caso das

dinastias e das casas nobres. Os chineses não entendiam isso como algo

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totalmente errado - cargos de confiança são construídos por relações de

fidelidade -, mas entendiam claramente o perigo que isso representava na

harmonia social, na medida em que se favorecia um grupo em detrimento

de outros. A idéia do funcionalismo público, criado para dirimir estas

concentrações perigosas e ensejar um sistema meritocrático foi bem

sucedida na China, mas exigiu, mesmo assim, certa reforma dos costumes.

Podemos rastrear a conscientização do problema quando Confúcio busca

estabelecer quais são as relações de poder ideais dentro da sociedade:

Os deveres de obrigação universal são cinco, e as qualidades

morais pelas quais eles são sustentados são três. Os deveres são

os compreendidos entre o governante e o governado, entre pai e

filho, entre marido e mulher, entre o irmão mais velho e o mais

novo, e os que decorrem entre os amigos. São esses os cinco

deveres de obrigação universal. Sabedoria, compaixão e coragem

- são essas as três qualidades morais do homem, universalmente

reconhecidas. Não importa de que modo os homens põem em

exercício essas qualidades morais, o resultado é um único e o

mesmo. (Zhong Yong).

Como se pode ver, a idéia, aqui, é a de que a família deve ser o núcleo

inicial de formação do indivíduo; no entanto, seu dever final é servir a

sociedade, e não apenas a um grupo. Confúcio, cuja vida foi marcada pela

ausência do pai e pela devoção de sua mãe, parece ter percebido, bem cedo,

o quão importante é o papel destas redes familiares para a integração social

- mas elas são um meio, e não um fim em si mesmas - sem o que, o

individuo nunca pode alcançar algum tipo de liberdade e sabedoria.

Os anciãos

O ancião, por seu acúmulo de experiência, é venerado pelos familiares. Ter

um avô é um privilegio; um bisavô, algo ainda mais digno. A dívida com

os anciãos é carnal - graças à eles estamos no mundo; é também social, pois

são eles que transmitem os rudimentos da cultura e dão a primeira

educação que uma pessoa tem. Espera-se que ele tenha sabedoria, e sua

palavra é respeitada - quando não seguida automaticamente, se o ancião

ainda tiver condições de exercer uma liderança lúcida.

Os filhos e a família, neste caso, são sua aposentadoria. Cabem a eles

sustentá-los em sua idade avançada, mas não raro, os idosos envolvem-se

nos cuidados familiares e na formação dos netos. Nesta fase, dedicam-se a

passatempos, artes, leituras e atividades de gosto próprio - como disse

Xunzi, o ser humano deve estudar até o fim de seus dias, pois o

conhecimento é infindável e sempre nos reserva surpresas. Um funeral

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sincero, o pranto de admiração e sua entrada no pavilhão dos ancestrais são

a sagração de uma vida.

A Piedade Filial (Xiao)

Confúcio tentou delinear os princípios pelos quais uma família deveria se

auto-organizar, e de como se dariam as relações de intimidade entre seus

membros. Tal conceito foi explicado no Xiaojing - texto que se supõe

apócrifo, mas ainda assim, aceito sem grandes ressalvas pela

intelectualidade chinesa. Nele, Confúcio definiria o que seria Xiao -

traduzido de forma aproximada como "piedade filial", ou talvez

"fraternidade", conceito fundamental nas relações sociais entre parentes,

nas amizades e no trabalho. Xiao funde, de fato, hierarquia, devoção e

respeito à sabedoria. A proposta de Confúcio, neste caso, parece ser a de

resolver os dilemas morais ligados ao conflito de interesses entre família X

sociedade, estabelecendo um nível de obediência e importância nos

acontecimentos cotidianos:

Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do

qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te de novo e te

explicarei a questão. Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada

fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos

atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo da piedade

filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da

conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras

e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial.

Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do

governante, e se completa pela formação do caráter. (...) Assim

como servem a seus pais também servem às suas mães e

igualmente as amam. Assim como servem a seus pais servem aos

seus governantes e igualmente os veneram. Amor se tributa

principalmente à mãe e veneração é que principalmente se tributa

ao governante, quando estas duas coisas são cultuadas no pai.

Portanto, quando servem ao governante com piedade filial, são

leais. Quando servem aos seus superiores com veneração, são

obedientes. Por não faltarem, em sua lealdade e obediência,

aqueles a quem servem, são capazes de conservar seus

vencimentos e posições e manter seus sacrifícios. (Xiaojing).

O Xiaojing (Tratado da Piedade Filiam) é um texto sucinto, porém

fundamental, para a compreensão do ideal de vida social entre os chineses.

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O papel feminino

Numa história de 5000 anos, o papel da mulher é algo dificilmente

analisável, principalmente se levarmos em conta que ele não se mantém

imóvel, estável ou claramente definido, como se pode presumir numa

leitura rápida e superficial da questão. Na China, como dissemos, os

primeiros clãs são matrilineares; a preponderância do patriarcalismo é

posterior, e já está "pronta" na época Shang. No entanto, as mulheres nunca

entregaram facilmente a sua posição, e podemos entender o seu papel

histórico muito mais como conflituoso do que, propriamente, de submissão

total. Mozi dizia que "a mulher sustentam metade do Céu", e sem ela nada

existiria. Os daoístas aceitavam o mesmo ponto de vista, e muitos dos

cultos [bem como a alquimia sexual] por eles praticados colocava a mulher

em posição de veneração.

Aceitar que a sujeição da mulher é uma marca na sociedade chinesa é

cometer, por conseguinte, um sério erro de observação. Os direitos da

mulher, na China, sofreram uma degradação mais séria a partir do período

Yuan (séc. 13 e 14), e grande parte dos costumes vis que lhes foram

impostos derivam de uma agudização dos problemas sociais e políticos das

últimas dinastias chinesas. A condição de sua inferioridade foi debatida

desde a antiguidade - e se há debate, é porque não há consenso. Uma série

de quatro textos fundamentais (Nujie “O Livro feminino”, de Han; Nu

Lunyu “Analectos Femininos”; Nujia “Lições domésticas”, e Nuzhuan

“Modelos para as Mulheres”), escritos desde a época Han até a dinastia

Qing (ou seja, um de mais de mil anos de história) buscou, por variadas

razões, interpretar - ora positivamente, ora negativamente - os papéis e

modelos femininos adequados ao funcionamento correto da sociedade. É

importante ressaltar que muitas vezes estas discussões não encontram eco

nas parcelas mais pobres da sociedade - muitas vezes comandadas por

mulheres viúvas ou abandonadas as quais cabia, a todo custo, manter a

coesão familiar e sustentar os seus membros através do trabalho honesto.

Logo, é verdade quando se diz que as mulheres tinham seus casamentos

arranjados; que se submetiam aos pais, depois aos maridos; que viravam

servas de suas sogras; que muitas vezes um filho homem era preferido; que

em tempos de crise, ela podia ser vendida (mas isso em geral afetava as

crianças, masculinas ou femininas); e por fim, que seu destino era, em

geral, cuidar da casa e da família. Tudo isso é verdadeiro, como foi também

(e em alguns lugares, ainda é) para a sociedade brasileira.

Mas se negligencia alguns aspectos dessas relações familiares, tais como:

as mulheres poderiam ser matriarcas numa família poderosa, e isso não raro

acontecia; podiam recusar noivos, ainda que escolhidos pelos pais; tinham

direito ao divórcio e recebiam seus bens, em caso de separação ou viuvez; a

China teve ao longo da sua história duas imperatrizes, além de várias

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personagens femininas famosas por sua força, conhecimento ou influência

junto ao poder. Quanto ao hábito de enfaixar os pés, além de ser uma marca

típica das elites e da classe média, foi uma moda tão vil quanto os

espartilhos europeus, que causavam tuberculose. Maldições estéticas como

essa estão indissoluvelmente ligadas a trajetória feminina.

O que se pode extrair disso é que a história chinesa é permeada por uma

tentativa contínua de o patriarcado estabelecer-se como forma única de

poder nas relações de gênero. Se seu sucesso fosse absoluto, tantos textos

não teriam sido escritos tentando justificá-lo, aprová-lo ou defende-lo.

Hoje, vive-se a excrescência destes tempos recentes de machismo,

combatidos pela ideologia comunista, mas cumpliciados nas classes mais

baixas da população. O livro de Xinran, “As boas mulheres da China”, é

uma denúncia das tentativas do masculino afirmar-se, novamente, no seio

da sociedade chinesa. A modernidade, porém, é a uma barreira decisiva

para isso, e espera-se que tal retorno a tradição seja apenas uma rebarba nas

novas gerações.

Ritos (Li)

O que se traduziu pessimamente como "ritos" (Li), talvez fosse mais

adequadamente entendido como "práticas sociológicas". Novamente,

retornamos a Confúcio. Para ele, Li era o cerne dos modos de conduta da e

na sociedade, o que exigia uma explicação aprofundada de seus

fundamentos, procedimentos e aspectos estruturais. O que se consigna,

pois, no Liji - o "Tratado dos ritos" (ou se preferirmos, o pouco sonoro

"Tratado das práticas sociológicas") são os modos pelos quais devemos agir

em sociedade, e o papel de seus elementos constituidores:

Li não é senão a cristalização do que é correto. Se uma coisa está

de acordo com os padrões corretos, novas práticas sociais são

instituídas, embora as ignorassem os governantes do passado.

Exemplo do correto é o encaminhamento de cada classe de

pessoas em seu próprio setor, e assim se articula a verdadeira

humanidade. Aqueles que seguem o correto, observando o

caminho adequado e cultivando a verdadeira humanidade, tornar-

se-ão hábeis administradores. A verdadeira humanidade constitui

a base da conduta apropriada e encarna a adequação aos padrões

corretos. Aqueles que atingiram à verdadeira humanidade

tornam-se líderes da espécie humana. [...] Li é o princípio da

cortesia e do respeito mútuo. Por isso, quando aplicado ao culto

nos templos, tem-se a piedade; quando aplicado na corte, tem-se

a ordem nas esferas oficiais; quando aplicado no lar, tem-se a

afeição entre pais e filhos, harmonia entre os irmãos; quando

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aplicado na cidade, tem-se o acatamento da ordem entre os mais

velhos e os mais moços. Eis por que tinha cabimento o que dizia

Confúcio: "Nada melhor do que a li para a preservação da

autoridade e para o governo do povo. (Liji).

Por este motivo, o Liji (Manual dos Rituais) é um manual riquíssimo sobre

a mentalidade sociológica chinesa; neles estão explicados os modos

corretos de se vestir, as razões disso; como se fazer cumprimentos,

saudações, rituais religiosos e sacrifícios; como se deve estudar; o que é a

música; o que é política; como ser sábio, e assim sucessivamente...

Uma leitura desse texto explica muito sobre os modos de agir dos chineses;

sua aparente introspecção, a necessidade de conter-se diante dos outros, a

gentileza franca, o resguardo perante o desconhecido, a fidelidade e a

dedicação ao trabalho - muitas dessas coisas são explicadas pela sensível

análise que Confúcio fez do espírito de seu povo, consolidando aí as

orientações necessárias paras a gerações futuras.

Redes sociais

Mas a vida gregária não se faz apenas em família; ela se estabelece,

também, nas redes de relações sociais que indivíduos, grupos e

comunidades tecem entre si, a fim de beneficiarem-se mutuamente. Estas

redes tiveram vários nomes ao longo da história, e hoje são chamadas de

“Guanxi”.

Estes laços são construídos na base de trocas e acordos materiais, mas

dependem também de amizade e confiança mútua. Tais redes formam,

muitas vezes, aquilo que entendemos como troca de favores, clientelismo,

associações de auxílio mútuo, sociedades secretas ou grupos de interesse.

Pragmáticos, os chineses não consideram absurdos tais procedimentos, ao

contrário; pregam que haja equilíbrio em sua execução para que o todo não

saia perdendo para a parte.

As regulações em torno dessas redes sociais são, portanto, bastante

flexíveis, variáveis e oportunas. Na China histórica, as sociedades secretas

já foram muito importantes em processos revolucionários; do mesmo

modo, as corporações de comerciantes valeram-se da sua capacidade de

união para combater monopólios estatais na época do império; e hoje, um

empresário chinês preocupa-se bastante em associar-se a quem quer que

for, aproximando-se vagarosamente por meio de jantares, conversas

particulares e alguma convivência com seus futuros parceiros. A lógica

pura e simples do mercado, e seus atrativos financeiros, não são

absolutamente decisivos para a construção de uma Guanxi - os critérios da

confiança mútua e de uma associação "familiar" são indispensáveis.

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A nova sociedade

Os desafios da modernidade para a estrutura social chinesa são, justamente,

o da continuidade e da adaptabilidade. As exigências da superpopulação já

enterraram, por agora, os anseios antigos de uma família gigantesca, e

fragmentaram por completo o poder dos clãs. Se o machismo insiste em

voltar e se consolidar, a visão comunista de mundo deu munição suficiente

para que as chinesas não aceitem mais uma pura e simples submissão. Em

Taiwan, esta mesma modernidade - aliada ao pragmatismo da necessidade

econômica e histórica - deslocou a mulher do seu espaço tradicional de

dona do lar para o de uma ativa trabalhadora.

As exigências da economia de mercado têm forçado os chineses,

inequivocamente, a observar os papéis da relação indivíduo-produção-

sociedade na geração do bem estar coletivo. Se por um lado a economia

está indo bem, os índices de poluição estão afetando severamente o meio

ambiente - quanto, pois, vale o desenvolvimento?

A preocupação central da vida social chinesa está naquilo que Confúcio

chamou de Ren, "Humanismo"; ideograma formado pelas palavras

"pessoas" e "dois". "Duas pessoas em harmonia", é o que diz Ren. De que

maneira, pois, as gerações futuras desenvolverão seus modos de agir, seus

"Li", para que a harmonia entre o indivíduo e sua comunidade possa se

manter?

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AULA 4

ENTRE AS MONTANHAS E OS MARES:

Religião e Mitologia Chinesa

Como em tudo que se estuda sobre a China, falar da religião e da mitologia

é, desde o início, um problema conceitual. O entendimento que os chineses

têm dos seus "mitos" confunde-se facilmente com a religião e a filosofia,

embora seja bem demarcado por uma literatura específica. O que vamos,

pois, abordar neste ensaio? Devemos fazer uma seleção de temas, posto que

nos veremos obrigados, de certo modo, a repetir algumas informações

dadas em outros textos deste mesmo volume. O que buscaremos tratar aqui

é do conjunto de crenças que alimenta o imaginário chinês e que nos

permite classificá-los, até certo ponto, como tradições religiosas.

Obviamente isso tem os seus limites, que serão dados paulatinamente.

A princípio, a própria idéia de religião - tal como encontramos no mundo

judaico-cristão - não se repete entre os chineses. O mundo desta civilização

não se encontra desligado da natureza e das divindades, ao contrário; ele

está plenamente inserido no cosmos, no qual o ser humano é o seu melhor

intérprete. Desde os tempos antigos os chineses sondam a realidade,

elucubrando sobre seus atributos e convivendo com o desconhecido como

algo que, simplesmente, pode vir a ser (ou não) conhecido um dia.

O xamanismo

A primeira razão que podemos entender como sagrada, entre os chineses,

surge ainda nos tempos proto-históricos, advinda da sistematização do

xamanismo. O Animismo xamânico foi encontrado em todas as partes da

China, e arraigou-se na população. Até hoje pratica-se, no país, uma

espécie de religião popular inclassificável - se bem que, algumas vezes,

incorporado diretamente pelo daoísmo religioso. Estas crenças estruturam-

se num sistema caótico, ligado por meios complexos a um outro mundo do

qual somos reflexo e manifestação. Os xamãs descobriram por meio do

sonho e do êxtase mediúnico - momentos mais próximos da morte - que o

outro mundo é semelhante ao nosso, mas lá as forças manifestam-se e toda

sua plenitude. Foi este pensamento que criou os cultos aos animais, aos

espíritos da natureza, e os deuses sob forma de astros e entidades

zoomórficas. Durante o período Shang, o que encontramos são vestígios

deste pensamento já institucionalizado, na forma de um culto imperial

organizado. Os diálogos com o além se estabeleciam por meio de carapaças

de tartaruga ou ossos oraculares, nos quais os espíritos forneciam as

informações de como proceder. Os indícios, esparsos, afirmam que os

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chineses da época dedicavam-se justamente a estas forças da natureza, as

quais já se dirigiam como entidades corporificadas e inteligentes.

A época dos Zhou traria uma reforma importantíssima nesta interpretação

do cosmo; as forças da natureza obedeceriam a uma única entidade,

chamada Tian (Céu). O Céu não seria necessariamente um deus, ou O

Deus, mas uma consciência unificada, um principio inteligente que operaria

os modos de manifestação da natureza.

Esta reinterpretação influenciou, sobremaneira, os modos dos chineses

encararem suas perspectivas religiosas. Os seguidores de Confúcio, por

exemplo, sempre entenderiam a existência desta única entidade como fator

o formativo do universo, chegando por vezes a afirmar a inexistência de

uma vida após a morte - embora o mestre defendesse ardorosamente a

existência dos espíritos. Daoístas e Budistas não tiveram problemas sérios

com esta concepção, embora mantivessem o Céu como uma instância

reservada aos seus deuses e budas. Quanto ao povo, pareceu-lhes uma

concepção demasiado profunda e distante, mas respeitosa demais para ser

ignorada. Ainda que se dirigissem ao além, tinham - e tem - o céu como o

espaço deste sobrenatural.

Os espíritos e os Ancestrais

Voltemos aos espíritos, pois os chineses não os deixaram de lado. Confúcio

defendia a invocação e os rituais destinados aos ancestrais, tanto como

forma de respeito, quanto de orientação e proteção:

As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé redondo

e o vaso quadrangular postos em ordem, e os instrumentos de

música - o qin, o cibu a flauta, o xing (pedra musical suspensa

por um fio e batida como gongo), os guizos e tambores, tudo nos

seus lugares, e a oração do “sacrifício aos mortos” e a de

“resposta dos mortos” eram cuidadosamente elaboradas e lidas a

fim de que os espíritos do céu e os dos ancestrais pudessem

baixar ao lugar do culto. Todas essas práticas tinham o propósito

de manter a devida distinção entre governantes e governados,

preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gentileza entre os

irmãos, regular as relações entre superiores e subalternos, e

estabelecer de parte a parte as condições de convívio entre

marido e mulher, para que sobre todos pairasse a benção do Céu.

(Liji)

Quando se honram os mortos e a memória dos ancestrais remotos

se mantém viva, a virtude de um povo encontra-se em seu

apogeu. (Lunyu)

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Ao mesmo tempo, no Lunyu (Diálogos), dizia ao seu discípulo Zilu para se

preocupar com os vivos, e não com os mortos. Contradição? Talvez não.

Provavelmente o Mestre entendia que os espaços estavam definidos, e

precisavam ser respeitados - mas ao mesmo tempo, isso tornava pragmática

a necessidade de resolver os assuntos humanos. Confúcio não se furtava,

pois, de usar os Conselhos do Yijing para fins oraculares, mas sabia que a

ultima decisão em um assunto deste mundo era feita por nós mesmos.

Por conta disso, se os outros sistemas invocam até hoje médiuns para

resolverem seus problemas, na época Han um Confucionista chamada

Wang Chong duvidava mesmo da existência de fantasmas. Um pequeno

trecho de seus argumentos nos mostra com que perspicácia o autor era

capaz de criticar as crenças no além;

Desde que teve começo o universo, milhões de pessoas têm

morrido, em tempos diferentes. O número dos que hoje vivem é

muito menor que o dos que morreram no passado. Se, portanto,

os mortos se tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um

fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas junto a seu leito

de morte, deveria vê-los aos milhões, enchendo todas as ruas, os

becos, os vestíbulos e os pátios, e não apenas ver um ou dois

fantasmas... É da natureza das coisas que um fogo novo possa ser

aceso, mas não há fogo extinto que comece a arder de novo.

Novos seres humanos nascem, mas é impossível que um homem

morto volte a viver. (...) A forma decorre da associação com o

espírito, mas o espírito também se torna consciente por

associação com a forma material. Não havendo fogo que arda por

si só, como haverá espírito consciente sem corpo? Quando

pessoas falam e fazem coisas ao lado de quem dorme, o

adormecido não sabe disso. Da mesma forma, quando se fazem

coisas boas ou más na presença de um caixão, o defunto não

pode ter consciência disso. Se, portanto, quem está simplesmente

a dormir, com sua forma corporal intacta, não pode ter

consciência do que ocorre, como será isto possível quando a

forma corporal já estiver decomposta?

(„Luheng‟, de Wang Chong)

Os chineses, no geral, acreditam ainda (e muito) na existência de almas. O

ser humano, a princípio, possui dentro de si Hun (a alma espiritual) e Po

(alma animal, ou material). Se uma pessoa consegue cumprir o seu ciclo de

vida, pode ir para outro lugar ou reencarnar (veremos adiante), ou ainda,

transformar-se em Shen (espírito iluminado, um deus ou divindade cultual).

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No entanto, se morre de forma violenta ou se suicida por razoes egoístas,

hun não consegue se livrar de po e então, pode virar um guei - espírito

animal, fantasma ou vampiro - preso a este mundo até que os rituais de

libertação apropriados sejam realizados. De muito pouco adiantou, para o

povo, o ceticismo de Wang.

O Fantástico e o Imaginário

A capacidade autêntica que o pensamento mitológico tinha de sobreviver

na China é, por outro lado, notável. Wang nunca conseguiu fazer tanto

sucesso quanto um livro publicado mais ou menos na mesma época,

intitulado Shanhaijing - o „Tratado das montanhas e dos mares‟. Nele há o

primeiro compêndio de geografia e fauna mitológica chinesa, com uma

descrição repleta de seres fantásticos e lendas antigas. Uma literatura desse

tipo surge para se contrapor a razão, e seu alcance é dificilmente

mensurável. Ao contrário do mundo grego, em que Homero e Hesíodo

foram os primeiros, na China a redação dos mitos chega muito depois da

escrita. Um exemplo clássico desta mesma condição é o problema do mito

de criação; os chineses não propuseram nenhum em sua antiguidade mais

remota, e Confúcio não nos informa nada sobre isso. De fato, parece que,

para os antigos, o ser humano não tinha condição alguma de saber o que

houve antes dele próprio. O mito que surge depois, de Pangu, é nitidamente

importado de outras regiões, durante o período Han. Um relato interessante

destas propostas sobre a criação do mundo está no livro de Anthon Christie,

„Mitologia Chinesa‟. Com uma bela iconografia e textos acessíveis, este

livro nos apresenta uma introdução bastante agradável dos mitos chineses.

Fato é, no entanto, que os chineses no geral não se preocuparam com a

criação, mas sim com o funcionamento do universo. No comentário das

Dez asas do Yijing (o Tratado das mutações), Confúcio inicia a história da

humanidade quando nos damos conta de que somos seres humanos. Este

pragmatismo parece ser único na história das religiões.

Vida após a morte e reencarnação

A alternância e o debate entre a certeza (e a incerteza) da vida após a morte

foi alimentada pelos budistas, cujas propostas para explicar o mundo e o

sobrenatural pareciam bastante atraentes quando chegaram ao país em

torno do séc +4.

Antes disso, apenas Zhuangzi supunha um ciclo de retorno para a terra. Os

daoístas religiosos incorporariam, depois, a idéia popular do julgamento da

corte celeste - um tribunal especial era constituído pelo juiz do inferno, e

julgava os méritos de uma alma. Se boa, poderia ir logo para o Céu ou

reencarnar - se não, seria torturada algum tempo até poder reencarnar

novamente.

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O céu chinês, como foi dito, é apenas uma reprodução do que vemos na

terra. Uma pessoa poderia esperar uma boa colocação do outro lado, mas

continuaria a trabalhar e viver como se estivesse na terra. Poderia, ainda,

interferir como ancestral, antes de voltar.

Os Confucionistas da época Song não acreditavam muito nessas coisas, e

sua tendência era de crer que a alma simplesmente se dissolvia junto com o

corpo. Afinal, que evidências de alma possuíam para provar sua existência?

Somente entre os budistas firmou-se o dogma da reencarnação, muito

popular em contos chineses fantásticos. Os fantasmas, porém, são um dos

temas preferidos da literatura; o Soushenji (Histórias de fantasmas), da

época Tang, é um desses livros dedicados inteiramente a histórias de terror

envolvendo guei's.

Ainda o Céu

Mas que céu chinês é este? É um espaço em aberto, em que convivem todas

as forças e personagens do mundo mítico-religiosos chinês. Se para os

Confucionistas o Céu é uma razão operante da natureza, para daoístas e

budistas este espaço ganha contornos notavelmente autênticos e

diferenciados.

Para os daoístas, nele residiria a divindade suprema, o Imperador de Jade, o

soberano de todo o céu. Junto com ele, estariam seus deuses e auxiliares,

vivendo em palácios e propriedades tais como na terra.

No entanto, é com extrema flexibilidade que os chineses recebem os

budistas no céu. Lá, eles também localizam o espaço de Buda, como

aparece na epopéia do Rei macaco (Xiyouji). O pensar chinês, neste ponto,

parece tratar-se de um discurso de crenças; o que uma pessoa acredita, é o

que irá vivenciar junto aos seus deuses. Se acreditar em outra coisa, é o que

fará também.

Os Deuses

Se são inumeráveis os deuses chineses, alguns são fundamentais para a

existência da sociedade. Os deuses do lar são mais chamados pelo povo do

que as divindades maiores. Veja-se o caso do deus da cozinha, por

exemplo; é ele quem leva o relatório anual da casa para o tribunal do

inferno, apresentando a conduta dos membros de uma família. Agradá-lo é

uma boa forma de conseguir um melhor julgamento após a morte. Os

guardiões da porta também afastam os maus espíritos, protegendo a família

de energias ruins. Os ancestrais, ainda, dão bons conselhos e aparecem em

sonhos quando necessário. Os grandes deuses, pois, são invocados em

ocasiões públicas e eventos sociais. Sua cosmogonia é explicada em um

texto tardio, mas interessante, chamado "A criação dos deuses" (Fengshen

yanyi). Mas é a proximidade dos espíritos que garante a maior interferência

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na realidade. Uma canção popular sobre o deus da cozinha é bem direta

sobre isso:

No último dia da duodécima lua

o deus do Lar volta para o Céu

para contar o que viu cá na Terra.

Antes de o queimarem em fumo o tornarem,

toda a família lhe dá de comer

para que fique com o ventre farto.

Leitão bem assado, peixe mui gostoso,

bolos aloirados, frutos bem maduros,

o vinho, um regalo, não se olha a despesas.

O deus do Lar esquece as querelas, as palavras insolentes,

as faltas de todos. Sobe ao Céu bêbado e satisfeito.

O que é preciso depois é arranjar outro deus!

A longa trajetória desse pensar religioso fez a corte celeste se transformar

em algo idêntico a corte imperial da terra (embora os chineses vissem isso

de forma contrária). Eles têm, inclusive, o seu "Olimpo" no monte Taishan

(a "montanha suprema"), mas não sabemos dizer quem subiu lá para

conferir - apesar de que os mundos espirituais e terrestres se interpenetram,

não sendo necessário encontrar nada lá para supor que os deuses existam.

Os ministros do céu administram o „além‟ como os daqui o fazem.

Ocasionalmente recebem adendos, como Guandi - deus da justiça que teria

sido um herói durante a época dos três reinos. Uma das peças fabulosas

desta história é a figura de Guan Yin (ou Kwan yin), um antigo bodisatva

budista que transformou-se numa deusa protetora das mulheres e crianças.

Este parece se tratar de um dos poucos casos em que um deus muda de

sexo ao longo de seu culto, e firma-se numa forma diferente da sua

original. Novamente, a ausência de informações sobre o mito pode

simplesmente legitimá-lo, ao invés de exterminá-lo.

O Bestiário

Neste mundo fantástico, os chineses também conceberam atributos

especiais aos animais - imaginários ou não. A figura do tigre e do dragão

dominam o mundo animal, mas outros animais como a fênix, a tartaruga, o

macaco e o unicórnio tem seu destaque garantido. São dois os ciclos

explicativos das funções animais: um está ligado a dinâmica dos cinco

agentes (no qual cada animal representa um dos agentes) e o ciclo do

zodíaco (composto por doze animais). Cada um deles representa um

sentido ordenador do mundo, mas é curioso notar como eles mudam. Por

exemplo: os cinco animais que representam os agentes na medicina chinesa

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(galo, carneiro, cavalo, boi e porco) são diferentes daqueles que aparecem

no Fengshui (a arte do vento e da água, a técnica de arquitetura e

geomancia clássica da China); dragão, fênix, serpente, tartaruga e tigre.

O unicórnio, segundo Sima Qian, anuncia a vinda de Confúcio, mas não faz

parte do zodíaco. Animais como o elefante e o rinoceronte, existentes no

mundo Shang, desapareceram (ou nunca fizeram parte) da mitologia. As

raposas, porém, alimentam o imaginário, podendo transformar-se em seres

humanos e terem uma longa vida. O dragão tinha sua existência

"comprovada" pelos misteriosos ossos achados em escavações ocasionais

(com certeza, fósseis), e os chineses podiam, ainda, contar com a presença

de novas espécies; na época Ming, por exemplo, um par de girafas

presenteadas ao imperador foi considerado um bom presságio, pois estes

animais de pescoço longo "viam longe". Mas neste bestiário chinês, não se

pode esquecer nem mesmo do singelo rouxinol, tema de histórias infantis

diversas, ou da gralha, animal de estranho papel na conexão entre o mundo

dos humanos e dos espíritos.

Imortalidade

Um dos elementos que toma corpo na religiosidade chinesa é a idéia de

imortalidade. Esta proposta já existia na época Qin, já que o primeiro

imperador foi um dos que morreu atrás de um elixir da longa vida. A lógica

era simples: se com remédios podemos estender nossa vida, então não seria

possível encontrar um meio de harmonizar o corpo com a natureza

indefinidamente? Se esta busca não foi sistematizada durante um bom

tempo, no final do período Han um daoísta chamado Ge Hong escreveu no

seu Baopuzi os fundamentos e disciplinas da alquimia daoísta, servindo de

referência posterior para todos os outros que desejavam atingir a

imortalidade.

Uma apresentação belíssima desta questão está no livro de John Blofeld

"Taoísmo, a busca da imortalidade", que mesmo sendo antigo - e não tendo

sido feito por um historiador - nos fornece um quadro bastante acessível

dos sentidos e significados destas buscas para os daoístas.

De qualquer modo, os chineses nunca puseram totalmente em dúvida a

existência da imortalidade. Os oito imortais daoístas, grupo de figuras

fantásticas com poderes especiais, têm todos uma história humana que

explica sua entrada na imortalidade. Ninguém os viu; mas se ninguém os

procura, também, como podem ser vistos? Eis uma lógica irrefutável para a

manutenção do mito.

A Continuidade

E o que há de esperar para o futuro? As tradições religiosas já estão

voltando na China, após uma breve diminuição nos tempos mais duros do

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comunismo. Os chineses nunca foram ateus convictos, mas sempre foram

pragmáticos o suficiente para saber das necessidades do agora. Se hoje um

arquiteto usa de Feng Shui para localizar adequadamente uma construção,

trata de colocar-lhe também um bom alicerce para garantir sua solidez.

Maozedong, que tanto combateu as superstições, hoje se transforma numa

espécie de padroeiro e santo da justiça. Os funerais prosseguem da mesma

maneira de séculos atrás; queima-se dinheiro para pagar as despesas no

tribunal do inferno. O sentido religioso milenário, construído pelo

equilíbrio das "três vias" - Confucionismo, daoísmo e budismo, ou sanjiao -

, volta simplesmente a ocupar o seu lugar no imaginário coletivo. Na

antiguidade, quando o budismo começou a entrar na China, os chineses

achavam que Buda era Laozi que retornava com sua doutrina completa.

Depois, descobriram que Buda era um estrangeiro, e achinesaram o

budismo até ele se tornar um orgulho nacional. Esta receptividade e

flexibilidade são as condições fundamentais do senso religioso chinês, e

com elas os chineses seguirão adiante. Este é o futuro de qualquer religião

que queira estar com os chineses: sincretizar-se. E, por fim, vale o velho

espírito popular chinês, ilustrado por esta anedota:

Os três fundadores das religiões chinesas, encontrando-se um dia

aborrecidos no Céu, decidiram ir dar uma volta pela Terra. Certo

dia, fatigados e cheios de sede, aperceberam, num lugar solitário,

uma nascente, perto da qual trabalhava um camponês. Buda,

acostumado a mendigar, foi encarregado de pedir autorização ao

camponês para se saciarem na fonte. Buda apresentou-se, e o

camponês disse-lhe:

- Já que aqui estás, autorizo-te de bom grado a que bebas da

nascente se me responderes a uma pergunta. Porque é que

afirmas serem os homens livres e iguais, mas consentes que nos

teus mosteiros haja um superior que está acima dos outros?

Buda não deu resposta. Laozi apresentou-se, por sua vez.

- Vós, os daoístas - disse o camponês -, pretendeis possuir o

segredo do elixir da longa vida. Então porque é que não o destes

aos vossos pais, e os deixastes morrer?

Vendo os seus dois compadres em maus lençóis, Confúcio

ofereceu-se para responder às perguntas do aldeão.

- Bom - prosseguiu este -, tu ensinas que não se deve abandonar

os mais velhos, mas passaste a tua longa vida a vagabundear de

príncipe para príncipe. Como justificas tal atitude? Confúcio, por

sua vez, nem tugiu nem mugiu perante a malícia do pobre

camponês.

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- Bem - disse este -, vão lá matar a sede, se querem refrescar-se,

mas não se julguem acima do comum, quando a vossa sabedoria

é tão depressa desmentida, e as vossas lições tão depressa

esquecidas.

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AULA 5

VISÕES DOS BÁRBAROS

Um campo fértil e interessante é o estudo da identidade e da alteridade

entre os chineses. A China é uma civilização, uma cultura antiga que

engloba múltiplas etnias. A majoritária, denominada Han, compõe a grande

massa que compartilha deste arcabouço; no entanto, a civilização chinesa

não é impermeável as influencias externas, como se supõe. A relação dos

chineses com os habitantes fora do seu mundo é cíclica, variável e

circunstancial. Não se pode falar de uma xenofobia absoluta entre os

chineses, como também não se pode criticar infindavelmente a sua postura

cultural. Os chineses foram - e de certo modo ainda são - sinocêntricos, e

lêem o seu redor pelas suas estruturas mentais. A pergunta que fica é se os

ocidentais fazem muito diferente, ainda que invoquem a criação da

"universalidade".

O que é ser chinês?

Desde a Antigüidade, ser chinês é uma noção vaga. No tempo dos Zhou,

ser chinês equivalia a compartilhar uma cultura comum, dividida porém

entre vários reinos e regiões. Confúcio entendia que esta era a terra do

centro, o lugar em que havia uma cultura estabelecida e milenar; fora dela

existiam os bárbaros, que ele assim denominava por terem um modo de

vida diferente do seu.

No entanto, as primeiras singularidades na concepção de "ser chinês" já

aparecem na visão do mestre; em primeiro lugar, compartilhar esta cultura

não significa, necessariamente, compreendê-la em seus meandros. Tanto o

é que Confúcio lamentava o estado geral de sua gente, e o abandono das

pessoas em relação às tradições; além disso, ele ameaçou várias vezes ir

morar com os bárbaros, tal era sua decepção com os "seus". Para o mestre,

os bárbaros podiam não ter as mesmas tradições que as suas, mas eram tão

pessoas (Ren) quanto ele. Assim sendo, podia ser até melhor morar com os

"incultos" do que com aqueles que, teoricamente, deveriam praticar os

costumes e rituais que tornavam alguém um "cavalheiro" (junzi).

Desta forma, podemos perceber que o conceito de identidade cultural de

Confúcio é, antes de tudo, um estado e um domínio da ancestralidade, dos

valores que tornavam alguém chinês. Isso significava, por conseqüência,

que alguém "podia" se transformar em chinês, e que esse alguém, enquanto

praticasse estes ritos, "estaria chinês"; mas essa não seria uma condição

perene. Um degenerado moral, por exemplo, constituía o indivíduo a

margem da sociedade, e logo, "animalizado" ou que "deixava de ser gente"

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(= não ser mais chinês). Por outro lado, uma pessoa nascida no estrangeiro

e que se dedicasse ao estudo e prática da língua, cultura e tradições

chinesas poderia vir-a-ser chinês... Sendo inclusive admirado por não ter a

vantagem natural de nascer no país.

Confúcio não conhecia muitos estrangeiros em sua época, mas é bem

provável que mantivesse sua opinião sobre outros povos mais estranhos

que os bárbaros do norte. De qualquer modo, a cultura chinesa estabeleceu-

se como a referencia unificadora da civilização, razão pela qual

encontramos hoje dialetos que escrevem o mesmo chinês que pronunciam,

porém, de modo diferente. O contraste entre o Mandarim (chinês oficial) e

a pronuncia cantonesa no sul da China é um exemplo flagrante desta

condição. Mas isso só mostra que os chineses estiveram, desde sempre,

muito mais dispostos e interessados em assimilar do que propriamente

excluir. A xenofobia na China tem raízes históricas, que veremos adiante.

Hoje, os chineses se entendem também uma etnia, de caracteres genéticos

mais ou menos estabelecidos; em grande parte isso se deveu as hediondas

teorias segregacionistas que os europeus levaram para o país, alcançando

um "sucesso" amargo em estabelecer diferenças e criar tensões raciais.

Os outros nos tempos antigos

Uma série de fatores naturais isolou a China (ver capítulo sobre o espaço

chinês), levando-a a entrar em contato tardiamente com outros povos

absolutamente diferentes de suas tradições. Quando isso acontece, sua

cultura já está organizada o suficiente para ler o "outro" pelos seus próprios

matizes.

Mesmo assim, o eco de um Confucionismo humanista manifesta-se na

flexibilidade com que os chineses encaram o mundo lá fora. Durante o

período Han, quando a China entra em contato com o império romano e o

império parta, as descrições que dão dessas civilizações alçam-nas à

condição de povos "equivalentes", por assim dizer, ao império do meio.

Um trecho dessas descrições pode nos ajudar a compreender melhor esta

visão do outro:

O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de

línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas

cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas

bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os

governantes desempenham suas funções durante um curto espaço

de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos.

Quando as coisas não vão bem, são substituídos. [Há aí um

anacronismo, pois trata-se de uma referência aos cônsules da

época da República.] O povo de Daqin possui elevada

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estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra

produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, âmbar,

vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de

Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze.

Os mágicos de Daqin (sírios?) são os melhores do mundo. Sabem

engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin

são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre

barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O

povo de Anxi impede-os de comunicar-se conosco por terra;

além disso, as estradas são infestadas de leões, o que torna

necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os Daqin

primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.).

Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a

Rinan (Tonquim). („Hanshu‟, de Bangu)

Esta descrição da vida imperial romana estava um tanto atrasada (o que se

fala nesse fragmento estava mais próximo da época da República), mas o

tom é o que nos interessa; os romanos eram considerados culturalmente

evoluídos, em função de algumas características específicas.

A noção de ser civilizado

Pois nessa visão chinesa, ser civilizado (chinês) não é, apenas, ser

Confucionista. Equivale também ter e morar em cidades, e praticar

agricultura; estar ligado a terra e ser sedentário, desenvolvendo técnicas

que fazem evoluir a relação do ser humano com a natureza, e não apenas

depender dela e de seus caprichos. Possuir um sistema político e leis

avançadas, capazes de equilibrar as relações entre as pessoas e os poderes.

O contrário de tudo isso era a vida do nômade, dos terríveis Xiongnu - que,

expulsos da China, atacariam depois o império romano como "hunos" -

entre tantos outros povos que viviam em estado de "selvageria". Chega a

ser interessante perceber que o Ocidente acharia a mesma coisa dos hunos e

dos germanos. Mas, para os chineses, os romanos constituíam uma

civilização equivalente a sua, e por isso mesmo digna de respeito e

admiração.

Quanto ao fluxo de estrangeiros, os anais dinásticos nos informam que os

ocidentais (ou, qualquer povo vindo da África, Arábia, Oriente Médio ou

Europa) continuaram a aparecer nos portos e fronteiras chinesas, mesmo

durante as épocas de crise.

O cosmopolitismo Tang

Se o fim de Han apenas arrefeceu o ímpeto das comunicações com o

exterior, o período Tang resgatou todo este cosmopolitismo,

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desenvolvendo-o ao máximo. Os Tang transformaram em moda a

representação de mercadores estrangeiros, adotaram o barrete persa como

chapéu, disputavam as mercadorias de luxo vindas do Ocidente pela rota da

seda, que amavam com gosto por seu exotismo, e receberam todas as

religiões vindas com a diáspora do fim do mundo romano; cristãos, judeus,

muçulmanos, budistas, maniqueus, pagãos, etc... Um imperador Tang

afirmou mesmo que "todas eram vias para A Via (Dao)". Os chineses desta

época não tinham receio dos estrangeiros, senão aqueles que ameaçam suas

fronteiras e sua cultura. Os árabes os atacam, mas uma batalha de

proporções épicas (Talas) demarca a fronteira entre as terras do Islã e dos

chineses; mesmo isso não impediu a recepção dos muçulmanos na China -

e, contanto que a lei básica fosse observada, qualquer credo era

considerado uma opção intelectual e devocional.

O tempo de introspecção da dinastia Song diminuiu um pouco o interesse

pelos estrangeiros, mas não o comércio e o intercambio cultural. Listas de

embaixadores e suas respectivas regiões de origem eram minuciosamente

anotadas, e o conhecimento sobre o exterior era razoável. O início do

trauma chinês com os estrangeiros viria com a expansão mongol, que

iniciaria o tempo das terríveis invasões estrangeiras.

Começos de um receio exterior

As críticas as culturas dos estrangeiros eram pontuais, como foi a de Hanyu

feita ao budismo na época Tang. Mesmo assim, o budismo transformou-se

num sucesso dentro da China, mostrando a capacidade de absorção desta

civilização. O que surge com o império mongol (Yuan) é uma época de

preconceito, separação racial e temor diante do bárbaro. Genghis Khan era

um grande conquistador, cuja capacidade limitada de diálogo causava

pavor entre os súditos. Os mongóis impuseram um regime repressor, que

aviltava a condição dos chineses dentro de seu próprio país.

Quando retoma o poder, a sociedade chinesa tem sua visão de mundo

obscurecida pelo receio do estrangeiro. Os Ming estabeleceram um regime

duro, tanto interna como externamente. Realizam navegações incríveis,

como as de Zheng He, mas abandonam toda a tecnologia e os ganhos

diplomáticos para se interiorizarem. Numa das medidas claustrofóbicas

tomadas para evitar as ameaças vindas do mar, o governo ordena o

abandono das faixas de terra costeiras, numa distancia de 15 km terra

adentro. E a chegada dos portugueses apenas reforça este temor.

A apresentação dos europeus é a pior possível. Tentam tomar a terra pela

força, agem de modo arrogante, ignoram a cultura chinesa, e negociam

como se fossem tão poderosos quanto o império do meio. Num primeiro

momento, os chineses contiveram de maneira eficaz a presença destes

estrangeiros. No entanto, os lusos aprendem a lição e buscam estabelecer

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formas de diálogo mais interessantes ao comércio. De invasores,

transformam-se em aliados, ao combaterem os piratas japoneses, e

conseguem a concessão de Macau.

O trabalho de Fok Kai Cheong (em “Revista da Cultura”, Macau, 1995)

mostra que os letrados chineses não chegaram a um acordo nítido sobre

como lidar com os estrangeiros. Divididos em dois partidos, um favorável a

convivência e outro a expulsão, os funcionários do império testavam

fórmulas que pudessem dar conta deste desafio, mas sem uma

continuidade:

Em 1530, em resultado deste debate alargado entre apoiantes de

uma política proibitiva do comércio marítimo e os abolicionistas

que apoiavam um comércio regular, mas controlado, emergiam

dois temas dominantes. O primeiro fundamentava-se num temor

profundo que os portugueses e os seus semelhantes pudessem

alterar a paz e, por isso, ameaçar a segurança na costa. Tal temor

era partilhado por ambas as partes. Os abolicionistas

especificavam que o comissário-adjunto da Defesa Militar e o

comandante da Defesa Costeira contra os piratas, em locais como

Dongguan e Nantou, deveriam examinar todos os navios que se

aproximassem dos portos com mais vigilância. Os estrangeiros,

como os portugueses, que não apresentassem credenciais para

participação no comércio tributário, deveriam ser excluídos das

zonas costeiras e subjugados por meios militares, caso

resistissem. Contudo, os proibicionistas realçavam a eficácia de

penalizar severamente os que tentassem fazer comércio com

navios estrangeiros com o objetivo de desencorajá-los de virem à

China. O segundo tema era o valor do comércio marítimo. Aqui,

havia uma fissura entre os dois grupos. Os apoiantes de uma

política proibicionista consideravam o comércio com os estados

marítimos meramente como um meio de os pacificar, para que se

pudesse manter a segurança das zonas costeiras. Os

abolicionistas, por outro lado, estavam convencidos de que o

comércio marítimo dava um contributo vital ao bem-estar

econômico das províncias costeiras. Assim, aconselhavam o

recomeço do comércio regulado, mesmo correndo o risco de

possíveis pilhagens por parte dos portugueses que, pensavam

eles, podiam ser repelidos se as medidas de defesa marítima

fossem apertadas. Estes dois temas vieram a determinar em

grande medida a atitude dos funcionários do governo Ming em

relação à presença dos portugueses na China, hostil ou simpática.

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O despreparo para lidar com estas questões ficou claríssimo quando

ocorreu a crise no fim do período Ming. Os Jurchen (Manchus), "aliados

bárbaros" convocados por uma das facções imperiais para conter os

separatistas, acabaram se aproveitando do vácuo e tomaram o controle do

país, formando a nova dinastia - os Qing. Com isso, os chineses vêem se

repetir o seu pesadelo cultural, tão temido quanto a perda de seu passado -

o domínio estrangeiro. Os Qing repetem várias da ações de seus

antecessores mongóis, instaurando um regime opressivo, segregador e

isolacionista. Tanto a relação com as regiões periféricas quanto com os

europeus não supera a concepção do "regime tributário", e a visão

sinocêntrica consolida-se como uma barreira psicológica, reticente em

relação ao estrangeiro e cada vez mais contida.

Os Qing herdam esta percepção de afastamento. Os estrangeiros são

tolerados nos portos, mas proibidos de adentrar o país, salvo exceções

obtidas pelos jesuítas. A proibição oficial de se ensinar chinês aos

estrangeiros é a prova máxima deste desejo de isolacionismo; não se devia

permitir a possibilidade de alguém sinizar-se, exceto aos próprios nativos!

Com isso, a dinastia jurchen criava uma medida contraditória, perversa e

insolúvel; quem não viesse a ser chinês, não poderia viajar pela China, do

mesmo modo como era impossível alguém viajar pela China para aprender

a cultura chinesa porque não se podia ser chinês!

Sem canais de diálogo, a civilização chinesa desta época não conhecia os

estrangeiros, e sustentava sua ignorância com uma aparente estabilidade

econômica. Quando da chegada dos ingleses no final do séc. 18, com a

embaixada do Lorde Macartney, a reação Qing não poderia ter sido pior.

Um relato fantástico deste encontro de civilizações pode ser visto no livro

"o Império imóvel", de Alain Peyrefitte. A carta que o imperador chinês

envia ao oficial britânico é uma peça literária de intransigência grotesca,

absurdamente caipira e alheia;

Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista,

ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de

Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam [...] Não

tenho necessidade dos manufaturados de vosso país. [...] Cabe a

vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior

devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua

submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranqüilidade a

vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui

todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum

produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma

necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca

de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de

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vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar;

tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes

de nosso império Celestial. [...] Obedecei tremendo e não sejais

negligente!

A que nível os chineses tinham chegado! Antes um centro de saber, o

Reino do Meio tornara-se, praticamente, uma aldeia. Perdera

conhecimento, isolara-se numa visão de mundo diminuta e limitada. Eis o

grande perigo dos regimes que lutam contra a educação; preocupados

sempre com as revoluções internas, esquecem-se dos perigos que vem de

fora.

A agressão imperialista

A China era grande demais para ser controlada por inteiro, mas os europeus

percebam que podiam tirar partido dela. Usando sua tecnologia militar

superior, ingleses e portugueses impuseram seus pontos de vista ao

imperador. As Guerras do Ópio, realizadas pelos primeiros, demonstraram

a possibilidade de domar o império do meio e obter concessões vantajosas.

Portugal exigiu o mesmo logo depois, e seguiram-se franceses, alemães e

japoneses.

O governo Qing não sabia o que fazer, senão reprimir ainda mais os

chineses. Solapada a sua capacidade representativa, os manchus não

conseguiam mudar seu ponto de vista xenófobo, e sentiam-se cada vez

mais isolados. A abertura do Japão demonstrou que era possível adaptar-se

aos novos tempos, sem perder a essência de sua cultura. No entanto, os

chineses não encontravam espaço para isso, e os letrados comprometidos

com o poder estrangeiro limitavam-se a repetir uma ladainha moralista,

afirmando uma suposta "superioridade cultural" que iria salvá-los do

estrangeiro.

André Levy, em seu livro "Cartas do Extremo Ocidente" nos traz um

panorama riquíssimo dessa visão sinocêntrica sobre a Europa. Um grupo de

chineses viajou por vários países do velho continente, anotando seus

costumes, hábitos, cotidiano, etc. Não surpreende que a observação destes

viajantes é de espanto total quanto aos costumes dos "bárbaros brancos". A

idéia original de Confúcio quanto a lidar com o outro foi fossilizada numa

alteridade exclusivista, que via de modo pejorativo as culturas alheias:

Existem alguns resquícios dos costumes da idade de ouro do

terceiro milênio na excelência da administração das escolas, dos

hospitais, das prisões ou da prefeitura de todos esses países

ocidentais. Quanto à doutrina que reverencia Jesus, ela inspira,

contudo, o temor do Céu e o domínio de si, a consciência do

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dever de ajudar o próximo e de tirar proveito das coisas: ela não é

tão contrária assim à Via do nosso santo Confúcio. O Parlamento

com duas Câmaras, alta e baixa, também está de acordo com a

idéia antiga de partilhar com as massas os castigos e as

recompensas. É verdade que se produz, aqui ou ali, abusos, e que

às vezes ministros ou militares poderosos cobiçam o monopólio

do poder; buscam o apoio do populacho, tramam complôs e

forçam o soberano a abdicar, como ocorreu recentemente no

Brasil e no Chile. Décadas atrás, tais acontecimentos se davam

com muita freqüência, em uma situação análoga à da

Confederação Chinesa antes da redação das Primaveras e

Outonos, por Confúcio (no século VI antes da nossa era). A esse

respeito, sua concepção de relacionamento entre soberano e

súdito parece um tanto quanto contrária à Via do nosso santo

Confúcio. Rapazes e moças com mais de vinte e um anos são

declarados emancipados e não têm que pedir autorização aos pais

para se casar. Quando um rapaz se casa, ele se separa dos pais,

vai morar em outro lugar com a mulher e gera a própria fortuna;

no pior dos casos eles nem se falam mais. Ainda que se possa

preferir isso à hipocrisia das relações entre pais e filhos na China,

ou às brigas entre nora e sogra, tratar os pais como meros

passantes equivale a rejeitar o parentesco de sangue. As leis

proíbem que se chegue à agressão física. Um filho que atinja o

pai é condenado a três meses de prisão. O mesmo vale para o pai

que bate no filho. O motivo é que eles se baseiam no amor, sem

graus de diferenciação como preconiza a doutrina heterodoxa de

Micius (forma latinizada de Mo Di, o filósofo que viveu entre os

séculos V e IV antes da nossa era): eis como se chega a uma tal

aberração. A relação entre pais e filhos é um tanto quanto

contrária à Via do santo Confúcio. É costume no Ocidente dar-se

mais valor à mulher do que ao homem. Se um homem encontra

uma mulher no caminho, ele deve deixá-la passar e caminhar na

frente. É de bom-tom, nos banquetes, que se sirva antes a mulher

do que o homem. Quando uma mulher tem um amante, mesmo

sendo esposa de duque ou marquês, não é raro que ela abandone

o marido, e ninguém estranha que ela se case de novo. Se o

marido tem uma amante, a esposa pode processá-lo, exatamente

o contrário da nossa antiga teoria de apoio ao yang e repressão do

yin. As mulheres têm vários homens antes do casamento, e às

vezes não tem sequer vergonha de ter uma criança. É por isso que

muitas mulheres não se casam nunca, detestando o

constrangimento que traria a presença de um marido. A relação

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entre esposos é um tanto quanto contrária à Via do nosso santo

Confúcio. Certamente, no desenvolvimento de cada país, toda

doutrina política merece consideração. Mas no que concerne às

três relações fundamentais, no final das contas, aqueles países

não valem a China. Mesmo os ocidentais parecem prestes a

admiti-lo, já que reconhecem que o nosso país foi a primeira

região civilizada do mundo. Entretanto, a mudança não poderia

se operar de forma brutal, pois os costumes resultam de um longo

processo. Considero que o cristianismo foi um fator de

civilização, e que seu poder de atração era grande em uma época

em que o Ocidente estava em um estado primitivo, mas ele está

em um beco sem saída; é uma via inexoravelmente incompleta e

criticável. O menor erro pode levar a milhas de afastamento. Isso

não é uma prova? (Xue Fucheng, 1891).

Os chineses repetiam assim a metodologia do ultraje, que aprenderam ao

longo dos séculos com as invasões estrangeiras. O Colonialismo europeu

conseguia ser, no entanto, inédito em sua capacidade agressiva. Em Hong

Kong, no início do século 20, podia se encontrar um parque público em que

se lia a placa "proibida a entrada de cães e de chineses". Não é de se

estranhar que, inúmeras vezes, as revoltas chinesas deste período

reivindicavam a expulsão dos estrangeiros.

O Mundo contemporâneo

A derrubada dos Qing vem acompanhada da retomada das possessões

estrangeiras, e da recuperação da identidade chinesa. Salvo Macau e Hong

Kong, todas as outras colônias retomam ao poder nativo. A República

chinesa incorpora a noção de se ocidentalizar para adquirir cultura e

tecnologia capazes de torná-los páreos e competitivos no mundo moderno,

mas de modo autóctone e independente. A mente chinesa guiou-se, neste

contexto, por escolher as formas que lhe pareciam mais convenientes para

ensejar este processo de adaptação - e no caso principal, novamente, pela

adoção da teoria comunista.

Quanto à visão do mundo exterior, a China acordou então para a

universalidade, mas manteve muitas de suas reticências quanto as antigas

nações colonialistas. Veja-se novamente o caso de Hong Kong e Macau; a

primeira voltou, com má vontade da coroa inglesa, para as mãos chinesas, e

foi considerada uma vitória e uma reparação por estes; quanto a Macau, foi

negociada com uma tranqüilidade quase natural, sem cisões, dado o tempo

de relação que Portugal havia desenvolvido com a China, e do encontro de

um modelo de comunicação satisfatório entre ambos.

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No campo externo, a China de hoje aproxima-se dos países com que não

teve grandes atritos, tendo presença ativa na África e bons entendimentos

nas Américas. Algumas desconfianças em relação às nações européias, ao

Japão e os EUA estão sendo superadas em função dos interesses

comerciais, mas a atitude da sociedade chinesa é de reserva em relação a

estes países. Depois das experiências terríveis sofridas com os estrangeiros,

só agora o país afasta-se lentamente da xenofobia. Demorará um tempo

para que a China volta a ser realmente cosmopolita, como foi um dia

durante os Han ou os Tang, mas já hoje os efeitos da globalização se fazem

presentes na mentalidade cotidiana.

Um estrangeiro que aprende a língua, conhece um pouco da cultura e se

porta de modo adequado consegue conquistar um certo respeito do cidadão

comum chinês. Não se deve esperar uma incorporação completa, e a atitude

de alguns ocidentais (principalmente os esotéricos) de se afirmarem

"chineses" ou sinizados é tida como patética e digna de piada. Mas a China

de agora quer que o mundo a entenda, de modo sério, tanto quanto ela foi

forçada a compreender o que estava fora de sua tradição. Um humanismo

real depende de assimilar a cultura desta civilização, tanto quanto espera-se

que ela compreenda e aceite os modos de vida ocidentais. Retorna-se, de

certo modo, o sonho de Confúcio; "entre os quatro mares, somos todos

irmãos"; e abre-se novamente o caminho para uma nova integração

mundial, equilibrada e raciocinada para além das tensões destrutivas.

Mas será, ela, realizável?

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SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

[Por se tratar de um curso introdutório, foram privilegiadas aqui as

indicações em português e espanhol]

Do autor:

Mirações do Celeste [2009]: www.miracoes.blogspot.com.br

Cem Textos de História Chinesa [2009] www.chinologia.blogspot.com.br

História da China Antiga [2001] www.china-antiga.blogspot.com.br

História

Blunden, C. & Elvin, M. China. in Grandes Impérios e Civilizações.

Lisboa; Edições Del Prado, 1997

Gernet, J. O mundo Chinês. Lisboa: Cosmos, 1979.

Granet, M. Civilização Chinesa. Rio de janeiro: Ferni, 1979 (1930)

Joppert, R. O Alicerce Cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979

Loewe, M. La China Imperial. Madrid: Revistas de Ocidente, 1969

Morton, W. China - História e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

Schafer, A. China Antiga. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1968

Spence, J. Em Busca da China Moderna. São Paulo: Companhia das Letras,

2000

Thorp, R. Os reinos soterrados da China. Rio de Janeiro: Abril, 1999

Arqueologia

Scarpari, M. China Antiga. São Paulo: Folio, 2009.

Watson, W. China Antiga. Lisboa: Verbo, 1971

Watson, W. China. Lisboa: Verbo, 1969

Arte

Auboyer, J. & Goepper, R. O Mundo Oriental in Mundo da Arte. RJ: José

Olympio, 1966.

Bedin F. Como reconhecer a arte Chinesa. Lisboa: Martins Fontes, 1986

Joppert, R. O Samadhi em Verde e Azul. Rio de Janeiro: Avenir, 1983

Pischel, G. Arte Chinesa. Lisboa: Arcádia, 1963

Rawson, P. Tao. Madrid: Prado, 1997

Riviere, J. Arte Oriental. RJ: Salvat, 1979

Speiser, W. Extremo Oriente. Lisboa: Verbo, 1969

Filosofia

Cheng, A. História do Pensamento Chinês. Petrópolis: Vozes, 2011.

Granet, M. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

Jullien, F. Figuras da Imanência. SP: Editora 34, 1998.

Jullien, F. Tratado da eficácia. SP: Editora 34, 1998.

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Jullien, F. Um sábio não tem idéia. SP: Martins Fontes, 2000.

Kaltenmark, M. Filosofia Chinesa. Lisboa: Ed.70, 1977

Moore, C. (org.) Filosofia; Oriente, Ocidente. São Paulo: Cultrix-Usp, 1978

Normand, H. Os Mestres do Tao. SP: Pensamento, 1988

Religião

Adler, J. A Religião na China. Lisboa: Estampa, 2003.

Blofeld, J. Taoísmo- busca da imortalidade. São Paulo: Cultrix, 1989

Boff, L. (org.) China & Cristianismo. RJ: Petrópolis, 1979

Christie, A. China – Mitos e Lendas. Lisboa: Verbo, 1986.

Fewtchang, S. La metáfora imperial. Madrid: Belaterra, 2003.

Gernet, J. China y Cristianismo. México: FCE, 1998

Kielce, A. O Taoísmo. SP: Martins Fontes, 1986.

Palmer, M. Elementos do Taoísmo RJ: Ediouro, 1993

Smith, D. Religiões Chinesas. Lisboa: Arcadia, 1973

Fontes

Guerra, J.J. Quadras de Lu e Relação auxiliar. Macau: Jesuítas Portugueses,

1983. - O Padre J. Guerra foi um dos poucos sinólogos portugueses que

dominou com maestria a língua chinesa, dedicando-se a traduzir os

clássicos confucionistas. As Quadras de Lu são outro título das Primaveras

e Outonos, de Confúcio. Este mesmo autor produziu traduções memoráveis

da obra de Confúcio, embora pouco divulgadas, que são: Quadrivolume de

Confúcio (contendo os textos básicos desta escola), Mâncio (Mengzi),

Escrituras Seletas (Shujing), Livro dos Cantares (Shijing), Tratado das

Mutações (Yijing), além de um dicionário de chinês e um sistema de

transliteração universalista da língua chinesa, que infelizmente não vingou.

Laozi Daodejing. SP: Hedra, 2002

Liezi. O tratado do vazio perfeito. SP: Landy, 2001

Wilhelm, R. I Ching. SP: Pensamento, 1986.

Wilhelm, R. Tao Te King. SP: Pensamento, 1989.

Yang, S. O Livro de Shang Yang. Lisboa: Europa América, 1999

Yutang, L. Sabedoria da Índia e China (2v.) RJ: Pongetti, 1959